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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA
CENTRO DE ARTES - CEART
MESTRADO EM TEATRO
LGIA MARINA DE ALMEIDA
Ns fizemos isso para vocs, brancos, saberem que ns
existimos!: imagens de luta dos povos originrios do Brasil
(2013-2015)
Florianpolis, SC
2016
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LGIA MARINA DE ALMEIDA
Ns fizemos isso, para vocs, brancos, saberem que ns existimos!:
imagens de luta dos
povos originrios do Brasil (2013-2015)
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Teatro, da Universidade do
Estado de Santa Catarina, como requisito
parcial para obteno do ttulo de Mestre em
Teatro, na linha de pesquisa Linguagens
Cnicas, Corpo e Subjetividade.
Orientadora: Prof. Dra. Ftima Costa de Lima
FLORIANPOLIS, SC
Agosto de 2016
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Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central da
UDESC
A447n
Almeida, Lgia Marina de
Ns fizemos isso para vocs, brancos, saberem que ns existimos!:
imagens de luta dos povos originrios do Brasil (2013-2015) / Lgia
Marina de Almeida. - 2016.
182 p. il.; 21 cm
Orientadora: Ftima Costa de Lima Bibliografia: p. 175-182
Dissertao (Mestrado) - Universidade do Estado de Santa Catarina,
Centro
de Artes, Programa de Ps-Graduao em Teatro, Florianpolis,
2016.
1. ndios. 2. Povos latinos da Amrica Latina. I. Lima, Ftima
Costa de. II. Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de
Ps-Graduao em Teatro. III. Ttulo.
CDD: 306.08 - 20.ed.
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LGIA MARINA DE ALMEIDA
Ns fizemos isso para vocs, brancos, saberem que ns existimos!:
imagens de luta dos
povos originrios do Brasil (2013-2015)
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Teatro, da
Universidade do
Estado de Santa Catarina, como requisito parcial para obteno do
ttulo de Mestre em Teatro,
na linha de pesquisa Linguagens Cnicas, Corpo e
Subjetividade.
Banca Examinadora
Orientadora:
______________________________________________________________
Prof. Dr. Ftima Costa de Lima
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)
Membro:
Externo
______________________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Jos Ferreira dos Santos (nome indgena: Cas
Angat)
Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC)
Membro:
Interno
______________________________________________________________
Prof. Dr. Tereza Mara Franzoni
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)
Florianpolis, 15 de agosto de 2016.
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Dedico este trabalho a todxs que tombaram na luta pela terra e
aos que lutam e ensinam
para uma existncia sobre/com a terra com mais dignidade e
amor.
Dedico este trabalho a todxs as guerreiras e guerreiros que
aparecem nas fotos deste
trabalho, que eu no conheo mas que lutam por nossa sobrevivncia,
mesmo sem nos
conhecer.
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AGRADECIMENTOS
Agradeo profundamente (e brevemente aqui, porque tem gesto que s
no vivo de
um abrao mesmo) e com todo meu corao os parceiros de
jornada:
Ana, Luis, Caio, Letcia, Anna Julia, Lucas, Patrcia, Luiz, Cida,
Alicnio, Manoel;
Ftima, Tereza, Cas, Brgida, Tonico, Alexandre, Cnthia,
Tiago;
CAPES, Grupo Imagens Polticas, Mila, Thony, Rodrigo, todxs xs
funcionrios da
UDESC, todxs meus colegas do PPGT e colegas do grupo
Democratizao do PPGT;
La Pocha Nostra, Coletivo Coiote, ERRO grupo, II Trupe de
Choque;
Todxs xs envolvidxs no curso de Indstria Cultural e Cultura de
Massas do LECERA
(MST-UFSC) e dos projetos Arte no Campo e Residncia Agrria Jovem
(MST-UDESC);
Estudantes, professores e funcionrios da Escola Estadual Indgena
de Ensino Mdio
Pascoal Leite Dias e amigxs moradores da Terra Indgena Limo
Verde;
Valdelice, Jatali, Amncio, Ernesto, Srgio, Ldio, Natanael,
Kellen, Talita, Arami
Marcos, Joo, Rodrigo, Tom, Rony, Arami A., Tai, Wilson, Roberta,
Fabiane;
Everton, Mirela, Cau, Mrcia, Jnata, Leonardo, Lola, Jlia,
Helosa, Gurcius;
I-San, Omar;
Ruth, Ioanna, Jenny, Bruno;
Gustavo, Lia, Luiz, Patrcia, Andr, Marcel, Hector, Pedro,
Eduardo, Felipe, Carla,
Francine;
Bruna, Marcela, Lucas, Maria Luiza, Ana, Thiago, Felipe, Lo,
Nilo, Benjamin, Dani;
Ivan, Juliana, Christiane, Luciana, Gabriela, Stlio, Nizael,
Eduardo, Ctia, Michelly,
Lucilene;
Bel, Anas, Tiago, Marizilda;
Naiara, Ins, Jos, Alai, Leonardo, Luana, Alice, Leila.
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1
Os brancos desenham suas palavras porque seu
pensamento cheio de esquecimento. Ns
guardamos as palavras dos nossos antepassados
dentro de ns h muito tempo e continuamos
passando-as para os nossos filhos. As crianas,
que no sabem nada dos espritos, escutam os
cantos dos xams e depois querem ver os
espritos por sua vez. assim que, apesar de
muito antigas, as palavras dos xapirip sempre
voltam a ser novas. So elas que aumentam
nossos pensamentos. So elas que nos fazem ver
e conhecer as coisas de longe, as coisas dos
antigos. o nosso estudo, o que nos ensina a
sonhar. Deste modo, quem no bebe o sopro dos
espritos tem o pensamento curto e enfumaado;
quem no olhado pelos xapirip no sonha, s
dorme com um machado no cho.
David Kopenawa Yanomami2
1 Imagem retirada do feed de notcias do Facebook. Em pesquisa no
stio de busca de
informaes Google, a autoria da frase atribuda ao poeta libans
Khalil Gibran.
2 KOPENAWA, sem ano, s/p
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Os Guarani Kaiow sabem que a palavra dos
no ndios, no Brasil, nada diz. Desde 1980
denunciado que os jovens indgenas se enforcam
em ps de rvores porque as palavras dos
brancos nada dizem. Sem poder viver, se matam.
Isso chamou alguma ateno, no incio do
fenmeno, depois entrou na rotina, j no era
notcia. Os altos ndices de desnutrio, que j
levou crianas morte, tambm so bem
conhecidos. Nem a conscincia de que os
indgenas passam fome acelerou o processo de
demarcao de suas terras
Eliane Brum3
Esse papel que t aqui pra ser assinado no tem
vida, mas por causa dele nosso povo t morrendo
l.
Elson Guarani-Kaiow4
3 BRUM, 2016b, s/p
4 INSTITUTO SCIOAMBIENTAL, 2016, s/p
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RESUMO
ALMEIDA, Lgia Marina de. Ns fizemos isso para vocs, brancos,
saberem que ns
existimos!: imagens de luta dos povos originrios do Brasil
(2013-2015). Dissertao
(Mestrado em Teatro - Linha de pesquisa: Linguagens Cnicas,
Corpo e Subjetividade) -
Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Ps-graduao
em Teatro,
Florianpolis, 2016.
Este trabalho visa apresentar um arquivo com imagens fotogrficas
de aes
simblicas, que envolvem algum tipo de representao, realizadas
pelos povos originrios do
Brasil em situao de luta contra a colonizao ainda vigente,
expresso, especialmente, na
Proposta de Emenda Constitucional 215 (PEC 215), do ex-deputado
Almir S. Estas imagens
foram to somente conhecidas e recolhidas por mim no espectro do
ativismo virtual e sua
seleo foi orientada pela pergunta: como os povos originrios do
Brasil refuncionalizam as
ferramentas de agitao e propaganda disponveis?
Palavras-chave: agitprop, PEC 215, povos originrios do Brasil,
ativismo virtual.
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RESUMEN
ALMEIDA, Lgia Marina de. Hicimos eso para que ustedes, los
blancos, supieran que
nosotros existimos!: imgenes de lucha de los pueblos originarios
del Brasil (2013-2015).
Tesis (Maestra en Teatro - Lnea de investigacin: Lenguajes
Escnicas, Cuerpo y
Subjetividad) - Universidad del Estado de Santa Catarina.
Programa de Posgrado en Teatro,
Florianpolis, 2016.
Este trabajo pretende presentar un archivo de imgenes
fotogrficas de acciones
simblicas que involucran algn tipo de representacin realizada
por los pueblos originarios
del Brasil en situacin de lucha contra la colonizacin an
vigente, expresada especialmente
en la Propuesta de Enmienda Constitucional 215 (PEC 215), del ex
diputado Almir S. Estas
imgenes fueron conocidas y recopiladas por m en el mbito del
activismo virtual y su
seleccin estuvo orientada por la pregunta: cmo es que los
pueblos originarios del Brasil
refuncionalizan las herramientas de agitacin y propaganda
disponibles?
Palabras-clave: agitprop, PEC 215, pueblos originarios del
Brasil, activismo virtual.
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABNT Associao Brasileira de Normas Tcnicas
APIB - Articulao dos Povos Indgenas do Brasil
ATL Acampamento Terra Livre
CAPES Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel
Superior
CIMI Conselho Indigenista Missionrio
CPI Comisso Parlamentar de Inqurito
EZLN Ejercito Zapatista de Liberacin Nacional
FIFA Federao Internacional de Futebol
FUNAI Fundao Nacional do ndio
IELA Instituto de Estudos Latino-Americano
INCRA Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria
ISA Instituto Scio Ambiental
MASP Museu de Arte de So Paulo Assis Chateaubriand
MEC - Ministrio da Educao
MinC Ministrio da Cultura
PEC Proposta de Emenda Constitucional
PPGT Programa de Ps-Graduao em Teatro
STF Superior Tribunal Federal
UDESC Universidade do Estado de Santa Catarina
UFSC Universidade Federal de Santa Catarina
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SUMRIO
PREFCIO OU CARTA AO LEITOR Ins Saber e Jos Estrada
................. 15
MANIFESTO: PORQUE FECHAMOS A BANDEIRANTES? .....................
17
TUPI OR NOT TUPI?
.....................................................................................
18
INTRODUO: NO H UM DOCUMENTO DE CULTURA QUE NO
SEJA, AO MESMO TEMPO, UM DOCUMENTO DA
BARBRIE.........................................................................................................
19
APNDICE
...........................................................................................................
30
1. INCIO: QUAL O REAL DA
POESIA?..................................................................................................
31
1.1. Margem abandonada - Paisagem com
argonautas-brancos-espritos-tatus-gigantes
.................................................................................................
31
1.2. Mbarakay medida performativa
.............................................................
36
1.3. Teatro da resistncia novas ferramentas de luta
........................................ 41
1.4. Xipe-totec - vestir a pele
........................................................................................................................
49
1.5. #SomosTodos? diferena e identidade
................................................... 54
1.6. - A palavra que age. / Como?
..................................................................
56
1.7. Arte versus PEC 215
...................................................................................
63
1.8. Fazer a arte falar
.......................................................................................
70
2. PONTE: AGITAO E PROPAGANDA
.................................................. 73
2.1. Agitprop
.......................................................................................................
76
2.2. Aprender a ver
.......................................................................................................................
79
2.3. Alm da palavra
..........................................................................................
81
2.4. Metodologia muito mais uma forma de organizar as dvidas do
que estruturar as certezas
...................................................................................
83
-
2.5. Tecido de luta
..............................................................................................
87
3. MEIO: IMAGENS DE LUTA
.............................................................
91
16 de abril de 2013 Abril Indgena
...............................................................
95
09 de agosto de 2013 - T l o corpo estendido no cho
............................... 98
23 de maro de 2013 Devir ndio
..................................................................
100
18 de agosto de 2013 (R)existncia!
..............................................................
103
02 de outubro de 2013 Carregar o corpo
..................................................... 106
02 de outubro de 2013 Papel cenogrfico
.................................................... 109
04 de outubro de 2013 Fantasmagorias
....................................................... 111
27 de maio de 2014 Corpo-manifesto
........................................................... 113
29 de maio de 2014 Caminho entre opostos
................................................. 116
6 de junho de 2014 Fazer a carapua servir
................................................. 119
26 de novembro de 2014 Consequncias de olhar a terra de longe
............. 125
04 de dezembro 2014 Arma simblica
.......................................................... 129
15 de abril de 2015 Nenhuma palavra: a imagem fala
................................ 130
21 de maio de 2015 Acender as velas j profisso (...) a gente
morre sem
querer morrer
.....................................................................................................
133
28 de outubro de 2015 - Cartaz-humano
......................................................... 135
26 de novembro de 2015 Qual o real da poesia?
...................................... 139
07 de dezembro de 2015 Colocar o corpo
..................................................... 143
16 de dezembro de 2015 Stio especfico
......................................................... 146
CONSIDERAES FINAIS: FIM SEM FIM
................................................. 149
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
................................................................
169
REFERNCIAS IMAGTICAS
......................................................................
175
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15
PREFCIO OU CARTA AO LEITOR
Prezado leitor,
Primeiramente (Fora Temer!) gostaramos de expressar nosso prazer
em trabalhar na
reviso desta dissertao, devido importncia de seu contedo. Lgia
nos mostra um
universo do qual pouco sabemos, trazendo histrias e perspectivas
de mundo trazidas por
pessoas que muitas vezes no tm voz, ou so desconsiderados pela
sociedade moderna, ou
como nos diz a autora, pelo povo da mercadoria.
Lgia faz um extenso trabalho de busca na internet sobre os povos
originrios do
Brasil, historicamente maltratados, excludos e at chacinados, e
o que encontra so pedaos,
ou pistas que ela faz questo de escancarar como contribuio com a
luta contra seu
aniquilamento, incorporando, artstica e intelectualmente, a
subjetividade indgena. Entre
fotos, comentrios dispersos e muitas vezes no rastreveis na mdia
(como Facebook e stios
de notcias), Lgia, por uma srie de motivos, nos mostra a
dificuldade de montar esse quebra-
cabea no formato acadmico tradicional.
O primeiro motivo a humildade: ao invs de analisar suas
performances e aes e
justificar a importncia de sua postura - ato bastante comum em
pesquisas acadmicas de
Artes Cnicas -, ela dedica seu tempo em evidenciar a luta dos
povos originrios desta terra
mesmo sabendo que o tempo que ela tinha para produzir um
material escrito seria reduzido.
Somando a isso, Lgia no conseguiu encontrar uma forma coerente
para dispor o
contedo: Se o objeto uma atitude revolucionria; contrariamente,
o modo em que se
apresenta no eficaz enquanto luta, por lutar do lado que no
pertence j que no pretende
ser uma terica. Dessa forma, seu texto quase uma metfora dos
ndios tentando viver num
mundo colonizado pelos no-ndios.
Portanto, dentre os problemas com a forma, o maior deles est na
sua confuso de
papis - Lgia oscila entre os dois mundos, os dos povos
originrios versus o dos povos da
mercadoria. Ora ela explica, interpreta e busca justificar, ora
ela descreve e se deixa
emocionar.
De qualquer maneira, esta dissertao abre a possibilidade para
que novas pesquisas,
de diferentes posturas e abordagens, sejam feitas a respeito
dessa luta. um passo, ou muitos
deles, para que a voz dos povos originrios do Brasil sejam
ouvidos e documentados.
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16
O mais importante, ao final, que a leitura e a absoro do contedo
desta dissertao
seja feita sem preconceitos, com a mente aberta para novas
interpretaes da realidade que
vivemos. A pesquisadora ainda no encontrou uma forma eficaz de
lutar atravs do texto
escrito, como j faz performaticamente. Ns, revisores, estudiosos
da linguagem, tentamos
manter a essncia desta contradio em que se encontra Lgia, em
detrimento de uma forma
colonizadora. Ao invs de suprimir suas ideias com palavras que
no condizem com suas
aes, e transformar seu trabalho no que no busca ser, procuramos
deixar que o leitor
descubra quem a verdadeira Lgia Marina de Almeida.
Ines Saber de Mello & Jos Luis Estrada Araneda
Florianpolis, julho de 2016
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17
MANIFESTO: PORQUE FECHAMOS A BANDEIRANTES?
Hoje ns indgenas guarani de todas as aldeias de So Paulo
fechamos pacificamente a
rodovia dos bandeirantes, que passa em cima da nossa aldeia no
Pico do Jaragu. Fizemos
isso para vocs, brancos, saberem que ns existimos e que estamos
lutando por nossas
terras, porque precisamos delas para ter onde dormir e criar
nossas crianas. Esse nome,
bandeirantes, para ns significa a morte dos nossos antepassados.
Mas muitos de vocs
brancos tem orgulho deles e dos seus massacres contra nosso
povo.
Em homenagem a eles vocs batizaram o palcio do governador de So
Paulo, e levantaram
esttuas por toda parte. H muitos que querem repetir o que
fizeram os bandeirantes no
passado, nos exterminando e roubando nossas terras para
enriquecer.
Os polticos ruralistas, aliados do Governo, querem aprovar a PEC
215, para parar todas as
demarcaes que ainda faltam, e ainda roubar terras que j esto
demarcadas. Nossos
guerreiros vo continuar resistindo, e faremos o que for
necessrio para ter uma parte das
nossas terras de volta. Ns somos os primeiros habitantes desse
territrio.
Ser que h muita terra pra pouco ndio? No essa a nossa
realidade.
Vivemos no que sobrou da mata atlntica, nossas terras so
minsculas e somos muitos,
enquanto alguns poucos polticos e empresrios tem muita terra e
ainda querem mais.
Com esse ato pacfico que fazemos agora exigimos:
- Que os deputados arquivem a PEC 215, e parem de tentar
destruir nossos direitos.
(...) Convocamos todos os movimentos sociais e todas as pessoas
que so contra a devastao
da natureza e so contra a concentrao da riqueza do pas na mo de
poucos
latifundirios... Vamos s ruas nesse dia para mostrar que nesse
pas deve ter espao para
todos!5 (COMISSO GUARANI YVYPUA, 2013)
5 Manifesto: Porque fechamos a bandeirantes? parte da ao
realizada em 26 de Setembro de
2013, anunciando a Semana Nacional de Mobilizao Indgena daquele
ano. Os Guarani
Mbya de So Paulo bloqueram a Rodovia dos Bandeirantes que
atravessa suas terras
exigindo o reconhecimento dessas e a suspenso da PEC 215.
Imagens da ao e texto do
manifesto disponveis em: . Acesso
em 19/07/16.
https://www.youtube.com/watch?v=eV7WMdvGirM
-
18
Tupi or not tupi?
Quando eu era pequena, em So Paulo (SP), lugar aonde nasci e
cresci, filha de nordestino
com paulista, me diziam que eu parecia uma indiazinha.
Adulta, morando em Dourados (MS), me perguntavam, desculpando-se
pela pergunta, se eu
era filha de bugre.
No Mxico, me diziam mestiza.
Tambm em Dourados (MS), um colega guarani-kaiow de um curso de
teatro que eu
participei, me disse que eu parecia parente dele.
Uma amiga me chamava de ndia padro Rede Globo.
Em Florianpolis (SC), quando eu raspava a sobrancelha, cortava a
franja curta e colocava
uma pena para prender o cabelo, me paravam em locais pblicos
para perguntar se eu era uma
ndia.
Recentemente, em Florianpolis tambm, uma mestranda do curso de
Antropologia Social da
UFSC, pertencente ao povo originrio Xokleng, povo que, por sua
vez, foi praticamente
exterminada pelos chamados bugreiros do sul do pas (os mesmos
que exibiam colares com as
orelhas cortadas dos indgenas assassinados por eles) me
perguntou se eu era indgena. Eu
respondi que no. Gostaria de ter respondido que eu sou e no sou
indgena, ao mesmo tempo.
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19
INTRODUO: NO H UM DOCUMENTO DE CULTURA QUE NO SEJA, AO
MESMO TEMPO, UM DOCUMENTO DA BARBRIE6
Atualmente, queixou-se o Sr. Keuner, existem
muitas pessoas que se gabam de poder escrever
grandes livros inteiramente ss, e isso tem a
aprovao geral. O filsofo chins Chuang-Ts
escreveu, na idade madura, um livro de cem mil
palavras, do qual nove dcimos eram citaes.
Entre ns, livros assim no podem mais ser
escritos, pois falta o esprito. Em conseqncia,
as idias so apenas de cunho prprio,
parecendo preguioso aquele que no as produz
em nmero suficiente. certo que assim no h
idias que sejam tomadas de outros, e tambm
no h formulao de uma idia que se pudesse
citar. E como precisam de pouca coisa para sua
atividade, essas pessoas! Uma pena e algum
papel tudo o que podem exibir. E sem qualquer
auxlio, apenas com o msero material que uma
pessoa levaria nas mos, so capazes de erguer
suas cabanas. Desconhecem edifcios maiores
que aqueles que um indivduo capaz de
construir.7
Bertolt Brecht
Antes de comear, gostaria de expor uma espcie de manual de
leitura deste trabalho
cuja construo foi quase que totalmente feita com materiais
retirados da internet. Sendo
assim, pelo intenso contato com a mesma, busquei plasmar aqui
uma das caractersticas
formais possibilitada pela internet: o hipertexto.
Segundo a Wikipdia8:
6 Segundo o filsofo alemo Walter Benjamin: No h documento de
cultura que no seja,
ao mesmo tempo, um documento da barbrie. E, assim como ele no
est livre da barbrie,
assim tambm no o est o processo de sua transmisso, transmisso na
qual ele passou de um
vencedor a outro. Por isso, o materialista histrico, na medida
do possvel, se afasta dessa
transmisso. Ele considera como sua tarefa escovar a histria a
contrapelo. (BENJAMIN,
1987, p. 225)
7 BRECHT, 2006, p. 23
8 Por determinado tempo no se via com bons olhos a citao de
informaes vindas de
stios eletrnicos de pesquisa como a Wikipdia em trabalhos
acadmicos. A Wikipdia se
-
20
Hipertexto o termo que remete a um texto ao qual se agregam
outros
conjuntos de informao na forma de blocos de textos,
palavras,
imagens ou sons, cujo acesso se d atravs de referncias
especficas,
no meio digital denominadas hiperlinks, ou simplesmente links.
Esses
links ocorrem na forma de termos destacados no corpo de
texto
principal, cones grficos ou imagens e tm a funo de
interconectar
os diversos conjuntos de informao, oferecendo acesso sob
demanda
s informaes que estendem ou complementam o texto principal.
O
conceito de "linkar" ou de "ligar" textos foi criado por Ted
Nelson nos
anos 1960 e teve como influncia o pensador francs Roland
Barthes,
que concebeu em seu livro S/Z o conceito de "Lexia", que seria
a
ligao de textos com outros textos. Em termos mais simples, o
hipertexto uma ligao que facilita a navegao dos internautas.
Um
texto pode ter diversas palavras, imagens ou at mesmo sons que,
ao
serem clicados, so remetidos para outra pgina onde se esclarece
com
mais preciso o assunto do link abordado.9
Esta forma-internet, com seus hiperlinks, hipertextos, abas
mltiplas de pesquisa, etc.,
influenciou a forma de apresentao desta pesquisa, sobretudo no
tocante relao entre texto
e suas notas de rodap e texto e as citaes de outros autores
(epgrafes e no corpo do texto).
Inclusive, acredito, que a melhor forma de ler este trabalho
seja no computador.
Em trabalhos acadmicos as epgrafes, notas de rodap e citaes so
comumente
apresentados com a fonte menor que o corpo do texto. Entretanto,
aqui so apresentados com
o mesmo tamanho de fonte sem distino por duas razes.
O dilogo elipsar entre tais notas de rodap e a voz de outros
autores, ou seja, entre
diversas referncias ao serem articuladas e reorganizadas para os
fins aqui presentes, so parte
fundante e determinante da totalidade deste trabalho. como se
este no pudesse ser lido sem
define como uma enciclopdia livre que todos podem editar. Talvez
a questo acadmica
em relao Wikipdia seja justamente com o carter anti-autoral
desta, em que as
informaes so editadas e compartilhadas, quase como saberes
populares annimos
registrados. Acredito que h uma disputa por essa enciclopdia
livre, entre as posies
polticas de esquerda e de direita no Brasil. A exemplo disso,
recentemente, a pgina no
Wikipdia sobre o educador Paulo Freire foi alterada por rgo do
governo do nosso atual
presidente interino golpista Michel Temer (Servio Federal de
Processamento de Dados),
depreciando a obra-ao do educador ao apresent-la como fraca,
atrasada e doutrinria,
dentre outros em favor da poltica educacional conservadora que o
governo interino manifesta
querer implementar. Ento, ao invs de desprezar esta forma de
compartilhamento de
informaes gostaria de incorpor-la e disput-la tambm.
9 Verbete Hipertexto disponvel em: . Acesso em:
18 de julho de 2016.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Hiperlinkhttps://pt.wikipedia.org/wiki/Hiperlinkhttps://pt.wikipedia.org/wiki/Linkhttps://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%8Dconehttps://pt.wikipedia.org/wiki/1960http://barthes/https://pt.wikipedia.org/wiki/Hipertexto
-
21
as idas e vindas do que est fora do texto (notas de rodap) ou
sem a voz dos vrios autores
presentes aqui10
.
Entendo tais elementos no s como fundamentais para esta mostra
de processo, mas
tambm como vozes que cruzam e constituem o trabalho como um
todo. Escolhi manter o
mesmo padro de tamanho de fonte para tentar plasmar, nesse
detalhe, a importncia que
atribuo para a voz do outro na construo das ideias aqui
apresentadas.
Alm disso, proposital a inteno de fazer com que o leitor faa o
esforo de
conectar essas diversas abas de informaes necessrias para a
leitura desse material. Este
exerccio - no plano simblico - justamente uma maneira de
conectar o leitor ao resultado de
um exerccio, tambm fsico, da investigao de como lutam os povos
originrios do Brasil
contra sua total aniquilao.
Conforme sugesto da banca de qualificao deste trabalho utilizo
de um modo
discursivo mais pessoal, e por isso colocado na primeira pessoa
do singular, o qual permite
tambm que as diversas vozes deste trabalho, inclusive a minha,
produzam perceptualmente
um discurso mais polifnico (forma esta que tambm tem ntima relao
com os aprendizados
deduzidos desta pesquisa: os estudos que empreendi sobre o modo
de organizao de diversos
povos originrios do Brasil apontam para a conservao da
biodiversidade e convivncia e
manuteno da diferena).
A igualdade dos tamanhos da fonte do corpo do texto e das tais
abas faz com que no
seja dada maior importncia para o corpo do texto, quando
comparado ao demais elementos
(notas de rodap, etc), ou ainda minha voz, quando comparada a
citao de outra pessoa.
importante ressaltar que propor a igualdade de valor no o mesmo
que confundir a minha
voz com a de outrm. Pretendo ento fazer com que o leitor possa
identificar no corpo do
texto a autoria das diferentes vozes, por isso sua notao ser
indicada de maneira similar s
normas da ABNT: o uso das aspas duplas ( ) para a diferenciao
autoral nas citaes
menores que trs linhas, e o recuo do pargrafo com espaamento
simples para citaes de
mais de trs linhas. Vale dizer tambm que mantenho as citaes dos
autores tal como elas
so. Assim, se essas citaes contm uso de aspas duplas dentro da
citao eu mantenho bem
como mantenho grifos, uso de caixa alta, citao a outros autores
e demais elementos
10
Assim, no nos ser foco, ainda que acontea, comentar tudo o que
se mostrar aqui neste
trabalho, ou fazer as pontes de uma passagem a outra. Como
tratarei mais adiante, creio que
meu trabalho aqui mais parecido com o de uma coletora que expe
os frutos de sua coleta:
os materiais brutos, recm retirados de sua fonte.
-
22
constitutivos do texto do autor que convidei para a discusso.
Quando eu suprimir alguma
parte do texto original eu indicarei usando (...) no meio da
citao. Caso eu venha a fazer
algum grifo numa determinada citao, eu avisarei o leitor
previamente.
Para ressaltar alguma palavra ou expresso, e sugerir uma espcie
de efeito
semelhante a fazer ao ato de sinalizar aspas com a mo quando
queremos ressaltar algo em
nosso discurso oral, utilizarei as aspas simples ( ) como o
indicador de um gesto. Para
manter a coerncia, quando conceitos ou termos esto implicados no
uso de uma palavra
destaco-a com o uso de itlico ao invs de aspas simples.
Quanto s referncias bibliogrficas tambm adoto um padro. Toda
referncia
indicada pela referncia da onde obtive a citao (autor, grupo,
etc.) e no pelo autor da
citao. Para tal eu indico ao leitor previamente, no corpo do
texto o autor que escreveu
determinado texto que cito ou que referenciado em textos de
outros como tendo dito ou
escrito aquele determinado texto (ex: Segundo Cas Angat...) e
indico ao final da citao a
referncia bibliogrfica aonde se pode encontrar este excerto de
texto (ex: PARDAL, 2016,
s/p).
A formatao deste texto tambm apresenta alguns subttulos nos dois
primeiros
captulos e divises indicadas por (***) neste texto introdutrio e
nas consideraes finais a
fim de concentrar assuntos. O terceiro captulo ser subdividido
por datas das aes que
trataremos l. A inteno dos subttulos nos captulos, seguidas
muitas vezes por epgrafes,
a de tambm trazer imagens poticas, suspiros, para o texto.
Alm de proposies na forma de apresentao desta pesquisa, creio
que outra questo
importante de abordar logo nessa introduo, uma questo de
linguagem sobre qual
nomenclatura utilizar para definir os chamados indgenas e os
no-indgenas.
Se seguir a conveno social da utilizao dos termos indgena ou
ndio (conforme
nomenclatura utilizada em nossa Constituio11
para designar esses povos, to diversos entre
si), estaria utilizando uma terminologia ligada colonizao
europeia. O discurso ideolgico
11
O captulo oitavo de nossa Constituio chama-se Dos ndios segundo
esta edio:
BRASIL. Constituio (1988). Constituio da Repblica Federativa do
Brasil. Braslia, DF:
Senado Federal: Centro Grfico, 1988. Em geral, a maioria das
lutas que veremos neste
trabalho tem a ver com exigir a no alterao dos artigos 231 e 232
da referida Constituio
que garantiu alguns direitos fundamentais para os povos
originrios (PEC 215, por exemplo,
visa alterar estes artigos). A luta para que, tambm, os governos
cumpram o que foi
prometido em 1988 aos povos originrios, principalmente no que
toca demarcao de suas
terras e que at hoje, 28 anos depois, no foi cumprido.
-
23
europeu chama os diversos povos encontrados aqui, na nomeada
Amrica, de indgenas em
aluso aos nativos da regio onde hoje o pas ndia, porque segundo
o conto (que atualmente
bem desacreditado) ndia supostamente era a regio que os
navegadores queriam encontrar.
Apesar de haver vrios documentos que comprovam que nossos
descobridores j tinham
uma ideia do que iriam encontrar antes do chamado descobrimento,
o termo indgena e suas
derivaes foram usados e perpetuados. O escritor Daniel
Munduruku12
apresenta discusso
sobre esta problemtica:
Para comear, vou destacar que no sou ndio e que no existem
ndios no Brasil. O que existem so povos. Eu sou Munduruku e
pertencer a um povo ter participao dentro de uma tradio
ancestral brasileira. Quando eu digo que no existem ndios,
quero
dizer que existe uma diversidade muito grande de ancestralidade.
So
pelo menos 250 povos indgenas e so faladas pelo menos 180
lnguas
no Brasil. A palavra ndio surgiu de maneira equivocada e reduz
os
povos. Est ligada a uma srie de conceitos e pr-conceitos.
Normalmente ela est vinculada a coisas negativas, embora haja
muito
romantismo na histria, a maioria do pensamento quer dizer que
o
ndio um ser fora de moda, atrasado no tempo e selvagem.
Algum
que est atrapalhando o progresso e continuamos reproduzindo
um
esteretipo que foi sendo passado ao longo da nossa histria.
(BALBINO, 2013, s/p)
Assim, pela utilizao social recorrente dos termos, em algumas
circunstncias mesmo
sabendo do contexto que o forma, eu farei uso destes termos. No
entanto, opto por privilegiar
a expresso povos originrios do Brasil, ou ainda, povos
originrios desta terra, por ser a
forma como se autonomeiam vrios representantes destes povos nos
documentos que
fundamentam essa pesquisa, e por reconhecer a autonomeao de uma
pessoa ou um povo
como um direito social. Um exemplo est na fala da liderana Snia
Guajajara13
, em
entrevista para o IELA da UFSC:
12
Segundo a Wikipdia, Daniel Munduruku (1964-) um escritor e
professor brasileiro.
Pertence etnia indgena mundurucu. graduado em filosofia, histria
e psicologia. Tem
mestrado em antropologia social pela Universidade de So Paulo.
doutor em educao pela
Universidade de So Paulo. Diretor-Presidente do Instituto Uka -
Casa dos Saberes
Ancestrais. Como escritor, se destaca na rea da literatura
infantil. J recebeu vrios prmios
no Brasil e no exterior: Jabuti, da Academia Brasileira de
Letras, rico Vanucci Mendes
(CNPq), Tolerncia (UNESCO). Disponvel em:
. Acesso em: 18/07/16.
13 Segundo a Wikipdia, Snia Bone Guajajara (Terra Indgena
Araribia, Maranho, 1974)
uma lder indgena brasileira. Sua militncia em ocupaes e
protestos levou-a coordenao
https://pt.wikipedia.org/wiki/1964https://pt.wikipedia.org/wiki/Escritorhttps://pt.wikipedia.org/wiki/Professorhttps://pt.wikipedia.org/wiki/Brasilhttps://pt.wikipedia.org/wiki/Mundurukuhttps://pt.wikipedia.org/wiki/Filosofiahttps://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3riahttps://pt.wikipedia.org/wiki/Psicologiahttps://pt.wikipedia.org/wiki/Antropologia_socialhttps://pt.wikipedia.org/wiki/Universidade_de_S%C3%A3o_Paulohttps://pt.wikipedia.org/wiki/Educa%C3%A7%C3%A3ohttps://pt.wikipedia.org/wiki/Literatura_infantilhttps://pt.wikipedia.org/wiki/Daniel_Mundurukuhttps://pt.wikipedia.org/wiki/Maranh%C3%A3ohttps://pt.wikipedia.org/wiki/1974
-
24
as pessoas acham que a gente t lutando por um privilgio, por
um
direito especial, enquanto que, na verdade, ns, enquanto
povos
originrios, a gente luta apenas por um direito territorial, que
um
direito tambm originrio, um direito que antecede inclusive a
Constituio federal, um direito que nos foi arrancado. [...]
Ento,
quando a gente luta pela terra, no querendo a terra de outra
pessoa,
lutando pela retomada de um territrio tradicional, um territrio
que
era nosso. (INSTITUTO DE ESTUDOS LATINO-AMERICANOS,
2015).
Tambm utilizo os termos no-indgena ou homem branco14
, por serem expresses
culturalmente sedimentadas na linguagem. No entanto tambm
utilizarei, em sua maioria, o
termo povo da mercadoria. De acordo com a liderana David
Kopenawa Yanomami15
:
executiva da Articulao dos Povos Indgenas do Brasil (APIB) e da
Coordenao das
Organizaes Indgenas da Amaznia Brasileira (COIAB). graduada em
Letras e ps-
graduada em Educao Especial pela Universidade Estadual do
Maranho . Recebeu
em 2015 a Ordem do Mrito Cultural. Disponvel em:
. Acesso em: 18/07/16.
14 Sobre essa questo, inscrevo aqui a compilao de alguns pontos
de vista sobre o homem
branco de algumas lideranas indgenas de distintos povos
realizada pela antroploga
Graciela Chamorro em seu livro Terra Madura:
O ressurgimento do outro indgena traz consigo tambm a
possibilidade de ouvir, da boca dos prprios indgenas, o modo
como
eles construram o branco - o colonizador de ontem e de hoje
-
como seu outro. Assim, o que se pode verificar nas
narrativas
indgenas sobre a origem do mundo, a chegada dos brancos e os
500
anos do Brasil, publicadas pelo Instituto Scio-Ambiental, que
na
perspectiva dos povos indgenas, os ndios so anteriores aos
brancos, na ordem do parentesco e na ordem do territrio. Os
brancos
no chegaram aqui, eles saram daqui; no descobriram os ndios,
mas
encobriram a si mesmos, at voltarem para o que pensaram ser
um
encontro com o desconhecido, mas que no foi seno o encontro
com
o olvidado (Viveiros de Castro, 2000, p. 16). Para o Yanomami
Davi
Kopenawa (2000b, p. 19, 2000a, p. 21-23), os brancos foram
criados na floresta amaznica pelo ser criador Omama, mas este
os
expulsou porque tinha medo da sua falta de sabedoria e porque
se
tornaram perigosos para o grupo. Esse episdio no impede que
os
Yanomami reconheam que os brancos so engenhosos e que tm
muitas mquinas e mercadorias. Por outro lado, eles so muito
esquecidos, precisando por isso desenhar suas palavras. Eles
fixam
seu pensamento sem descanso em suas mercadorias, como se
elas
https://pt.wikipedia.org/wiki/Letrashttps://pt.wikipedia.org/wiki/2015https://pt.wikipedia.org/wiki/Ordem_do_M%C3%A9rito_Culturalhttps://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%B4nia_Guajajara
-
25
os brancos dizem: somos os nicos a nos mostrar to
engenhosos!
Somos realmente o povo da mercadoria! Poderemos ser cada vez
mais
numerosos sem jamais passar necessidades!Abriu-se, assim, um
mpeto de expanso; seu pensamento se enfumaou e a noite o
invadiu. Ele se fechou s outras coisas. Foi com estas palavras
da
mercadoria que os brancos comearam a cortar todas as rvores,
maltratar a terra e a sujar as guas. (TIBLE, 2013, p.432)
Tendo em vista as diversas contradies, que tratarei de pontuar
durante este trabalho
acerca das conceitualizaes dos termos ndio e no-ndio, indgena e
no-indgena, povos
originrios do Brasil e ainda povo da mercadoria, escolho
utiliz-los em conjunto ao invs de
optar por um nico termo por se tratar, em primeiro lugar de no
reduzir (ou doutrinar) a
pluralidade dos discursos proferidos por
representantes-pensadores de diversos povos
originrios do Brasil.
Se esta pesquisa se interessa em aprender e divulgar modos de
ver o mundo desses
povos, a linguagem utilizada precisa ser coerente tais pontos de
vista que venho aqui defender
e circular por estas oposies, uma vez que esta questo e o prprio
tecido social, imbricam
de forma complexa esses povos.
No entanto, gostaria de frisar que dentre a terminologia
disponvel, os termos povos
originrios do Brasil e povo da mercadoria, parecem ser mais
adequados ao situar estes
grupos sociais no tempo e nas foras econmicas: o termo povos
originrios porque se
fossem suas namoradas. Ailton Krenak retoma os relatos dos
Tikuna,
dos Guarani e do seu grupo, os Krenak, e afirma que seus
parentes
sempre reconheceram na chegada do branco o retorno de um
irmo
que foi embora h muito tempo, e que, indo embora, afastou-se
do
tipo de humanidade que os indgenas estavam construindo. Para
ele, o
branco um sujeito que aprendeu muita coisa longe de casa,
esqueceu muitas vezes de onde ele , e tem dificuldade de saber
para
onde est indo (Krenak, 2000, p. 46-47). (CHAMORRO, 2008,
p.292-293)
15Segundo a Wikipdia: David Kopenawa Yanomami (1956-) um
escritor e
lder indgena brasileiro. Ainda criana, viu a populao de sua
terra natal ser dizimada por
duas epidemias, ambas trazidas pelo contato com o homem branco:
uma de gripe, em 1959, e
outra de sarampo, em 1967. Trabalhou na Fundao Nacional do ndio
como intrprete. Foi
um dos responsveis pela demarcao do territrio Yanomami em 1992.
Recebeu o prmio
ambiental Global 500 da ONU. Em 2010, viu sua autobiografia La
chute du ciel (A queda do
cu), escrita em parceria com o antroplogo francs Bruce Albert,
ser lanada na Frana.
Disponvel em: . Acesso em:
18/07/16.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Escritorhttp://brasil/https://pt.wikipedia.org/wiki/Brasilhttps://pt.wikipedia.org/wiki/Epidemiahttps://pt.wikipedia.org/wiki/Gripehttps://pt.wikipedia.org/wiki/1959https://pt.wikipedia.org/wiki/Sarampohttps://pt.wikipedia.org/wiki/1967http://ndio/https://pt.wikipedia.org/wiki/Int%C3%A9rpretehttps://pt.wikipedia.org/wiki/Yanomamihttps://pt.wikipedia.org/wiki/1992https://pt.wikipedia.org/wiki/2010https://pt.wikipedia.org/wiki/Autobiografiahttps://pt.wikipedia.org/wiki/Antrop%C3%B3logohttps://pt.wikipedia.org/wiki/Fran%C3%A7ahttps://pt.wikipedia.org/wiki/Davi_Kopenawa_Yanomami
-
26
remetem queles que esto nessas terras antes da chegada dos
colonizadores europeus; e da
mercadoria uma vez que a forma-mercadoria definidora e oposta
aos povos originrios.
Em oposio ao binarismo ndio e no-ndio e tambm como forma de
tentar me
posicionar et(n)icamente nessa discusso, tomo os princpios do
manifesto-campanha ndio
ns (assinada por cerca de 500 pessoas)16
, que gostaria de compartilhar na ntegra aqui (os
grifos so meus):
Frente a esse quadro de quase paralisao dos processos de
demarcao fundiria, do aumento do poder de influncia do
agronegcio no Congresso Nacional e do investimento em
grandes
projetos econmicos, a ideia da campanha , no bojo dos processos
de
resistncia dos povos indgenas, compor um ns participante
dessa
luta. Ao ser questionado sobre o porqu da construo gramatical
do
mote da campanha, Pdua Fernandes, poeta e ensasta, reitera a
importncia de respeitar o protagonismo dos indgenas na luta
pelos
seus direitos e explica quem ns: Somos todos ndios uma
identidade perfeita, isso a gente no pode dizer. No posso
dizer
que eu sou ndio, mas no posso dizer que eu sou branco. ndio
ns uma conjugao imperfeita, uma identidade problemtica,
de interesse, respeito, mas no quer dizer que voc exatamente
aquilo. No somos ndios, mas ndio ns. como na poesia de
Rimbaud, Carta ao Vidente, em que ele diz que eu um outro.
O eu no se encerra dentro dele mesmo, ele tem uma identidade
com
o outro, mas uma identidade problemtica, porque ele no
exatamente o outro, mas tambm no apenas eu. Ns no somos
exatamente ndios, mas podemos ter uma empatia com o ndio,
ns podemos tentar nos colocar no lugar dos ndios. ndio ns
nasceu entre no ndios, no ndios dispostos a comprar essa
briga. Ento no somos ndios, mas ndio ns. David Karai
Popygua, na ocasio do lanamento da campanha, lembra que a
populao brasileira foi treinada para achar que a luta indgena
no
real. Hoje, a liderana vive na menor terra indgena do Brasil, a
TI
Jaragu, e os Guarani Mbya batalham cotidianamente pela
efetiva
reviso do processo de demarcao de suas terras. Muitos, no
entanto,
no sabem que existem ndios na cidade, quem dir que os
Guarani
sofrem violentas consequncias por habitarem um territrio to
pequeno! ndio Ns uma importante ferramenta para romper
essa invisibilidade, pois alm de ser uma plataforma de
divulgao
que fura o bloqueio tanto da grande imprensa que ignora
essas
pautas quanto do crculo fechado das organizaes indigenistas,
uma forma de reeducar a populao brasileira, para usar a
frase
de David, no sentido de se reconhecer enquanto aliados da
luta.
O ns tira o cunho assistencialista que por vezes d a linha em
outras
campanhas de apoio causa indgena, que por mais que possam
ter
16
A listagem dos que apoiam a campanha pode ser vista atravs do
enlace eletrnico
disponvel em: . Acesso em 26/09/16.
http://www.indio-eh-nos.eco.br/apresentacao/
-
27
boa vontade, olham para indgenas como vtimas que devem ser
pajeadas. Os ndios no so uns coitados merc das intempries da
bancada ruralista, tampouco uns desocupados que s querem
mais
terra. Ao assumirmos a luta enquanto ns, a relao vai alm de
igual
pra igual, preserva-se o eu ao mesmo tempo em que
transfigura-se
no outros. Assim como para Pierre Clastres Guarani so homens e
ao
mesmo tempo deuses, somos brancos e ao mesmo tempo ndios
abre-se uma fissura intra e entre identidades, do eu e do outro,
para
criar uma terceira, na qual no h uma relao de subordinao entre
o
primeiro e o segundo caso, o ns
Resgatando a necessidade de se criar mecanismos que assegurassem
o
virar ndio em detrimento de ferramentas que delimitem quem
ndio e que no , pode-se dizer que a campanha uma desses
dispositivos que destravam a potncia de devir-ndio presentes
em
ns. Pode-se falar no s de ns, como pronome, mas ns como
plural da palavra n, aponta Andr Vallias, designer grfico,
poeta e produtor de mdia interativa, que tambm faz parte da
campanha. N, aquilo que ligao, enlace, enredo, embarao,
vnculo, articulao das falanges do dedo, que possui a
qualidade
de unir sob um mesmo espectro as mais diversas lutas e
identidades. (MARGEM, 2015, s/p)
Me parece que este n imagtico presente no ttulo da campanha ndio
ns o ideal
enquanto imagem-ideia para tratar das complexas interaes entre o
ndio e no-ndio num
pas como o Brasil, por isso defendo a importncia de ter
apresentado o manifesto na ntegra.
tambm importante mencionar que muitas vezes apresento citaes
longas quando
acredito ser necessrio mostrar a completude do material no s
enquanto identificao com
seu pensamento, mas tambm pela crena de que desnecessrio
produzir um novo material
escrito se j existe produo de outro autor que explique o que
quero apresentar. Assim, fiz
nascer um trabalho cujo exerccio comunicar-se em meio a diversas
vozes, e
consequentemente, com as diferentes formas de expresso dos
outros autores que chamei para
essa discusso.
* * *
Enquanto pesquisadora posicionada na linha Linguagens Cnicas,
Corpo e
Subjetividade do Programa de Ps-Graduao em Teatro da
Universidade do Estado de Santa
Catarina procurei dialogar com os aspectos que essa linha de
pesquisa visa pesquisar . Um dos
objetivos da ementa da citada linha de pesquisa dar nfase
pedagogia do artista cnico.
Sendo assim, creio que estou em consonncia esta linha porque o
objetivo fundante desse
-
28
estudo foi, encontrar uma forma de como me posicionar dada pelo
modelo de ao corporal
dos povos originrios do Brasil em situaes de luta pelo seu modo
de vida. Um
posicionamento dado, simbolicamente e/ou representacionalmente
com o corpo.
Tornou-se tambm objetivo dispor um arquivo fotogrfico, composto
por imagens de
aes de corpo presente realizadas pelos povos originrios do
Brasil que, segundo minhas
anlises como pesquisadora e tambm artista cnica, se utilizam de
certa representao na
luta, simblica e real, pela manuteno de seus modos de viver,
pelos seus territrios originais
e pela vida mesma.
Por que ento um modelo de ao influenciadas ou baseadas em
questes indgenas
no poderiam contribuir tambm a ns, artistas cnicos no-indgenas,
no contexto de nossas
lutas e prticas cnicas?
Ao apresentar este arquivo fotogrfico penso que suas imagens
poderiam funcionar
como um exemplo pedaggico artistas cnicos interessados na fuso
entre arte e poltica.
***
Este trabalho, em linhas gerais se organiza em trs captulos mais
as consideraes
finais.
Entre a introduo e o primeiro captulo, adiantamos nosso APNDICE
j que
sugerimos o leitor que faa essa quebra na leitura do texto e
veja o vdeo proposto j que de
assistir esse vdeo depende a continuidade da construo de
sentidos do trabalho. O vdeo
parte integrante do processo, por isso apresentado nesse
lugar.
No captulo primeiro intitulado O INCIO: QUAL O REAL DA
POESIA?,
apresentarei os motivos que me levaram a realizar este trabalho
e sobretudo a situao que
gerou a pergunta norteadora deste trabalho: como os povos
originrios do Brasil
refuncionalizam as ferramentas simblicas de agitao e propaganda
disponveis? Buscarei
apresentar tambm um panorama do ativismo virtual em torno da
luta dos povos originrios
do Brasil.
O segundo captulo possui o ttulo A PONTE: AGITAO E
PROPAGANDA.
Neste buscarei apresentar a inspirao, o modelo de ao, para a
construo desse arquivo de
imagens bem como a metodologia empregada para constru-lo.
Buscarei tambm situar o
leitor sobre a condio dos povos originrios do Brasil na
atualidade.
-
29
No terceiro captulo, O MEIO: IMAGENS DE LUTA, apresentarei as
imagens
recortadas do jornalismo virtual com as devidas informaes
reunidas nesse arquivo, seguidas
de comentrios tecidos por mim que indicam menos uma
conceitualizao acadmica sobre as
mesmas e mais notas poticas do porque escolhi tais imagens e no
outras, do que vi nelas
como resposta pergunta geradora deste trabalho, do ponto de
vista da artista interessada em
aprender com essa forma de simbolizar e lutar (ao mesmo tempo)
dos povos originrios
(falarei um pouco mais sobre isso no captulo primeiro).
Para encerrar, nas CONSIDERAES FINAIS: FIM SEM FIM, busquei
relatar o
que eu ainda gostaria de fazer a partir dessa pesquisa, o que
seria necessrio, ao meu ver, para
que esse arquivo pudesse ser tambm ele um novo disparador de aes
simblicas para ajudar
na luta dos povos originrios do Brasil (e de todos ns) contra a
colonizao, pasteurizao e
capitalizao das vidas. Aes-smbolo, aes-sonho, de um outro mundo
possvel.
Jornemos, pois!
-
30
APNDICE
Vdeo da performance A palavra que age medida performATIVA
#1.
Sugerimos que o leitor assista a este vdeo antes de prosseguir
com a leitura. De assistir esse
vdeo depende as consideraes que faremos no prximo captulo. Este
vdeo tambm est disponvel
em: . Acesso em: 21/07/16
https://www.youtube.com/watch?v=Lar_LtmmVeQ
-
31
1. INCIO: QUAL O REAL DA POESIA?
CARNAVAL
Sol
Esta gua um deserto
O mundo, uma fantasia
O mar, de olhos abertos
engolindo-se azul
Qual o real da poesia?
Francisco Alvim17
Do sangue derramado
Pelos guerreiros do passado massacrados
Fazendeiros, mercenrios, latifundirios
Vrios morreram tentando defender sua terra
Onde vivo
Aldeia
J existiu guerra
msica Terra Vermelha, Br MC's18
1.1. Margem abandonada - Paisagem com
argonautas-brancos-espritos-tatus-gigantes
19
Em 28 de novembro de 2008 estreou no Brasil o filme Terra
Vermelha20
, produo
talo-brasileira baseada em fatos reais, com direo de Marco
Bechis e atuaes como a do
falecido cacique guarani-kaiow Ambrsio Vilhalva e dos
integrantes do grupo de rap guarani
Bro Mcs. O filme trata dos conflitos entre indgenas e
fazendeiros pelas terras no Mato
Grosso do Sul. Em uma das primeiras cenas, que mostra o conflito
direto entre o homem
branco, fazendeiro e dono das terras (interpretado por Leonardo
Medeiros) e o grupo de
17 ALVIM, 2004, p.9
18 BRO MCs, 2012
19 Criei estes subttulo em parte inspirado em ttulo de texto do
teatrlogo alemo Heiner
Muller e como David Kopenawa Yanomami nomeia as mineradoras.
20 O filme Terra Vermelha pode ser assistido na ntegra atravs do
enlace eletrnico
disponvel em: . Acesso em:
04/03/16.
https://www.youtube.com/watch?v=nOCFZWF_Wb4
-
32
indgenas em processo de retomada de suas terras originrias (em
guarani, tekoha), temos o
seguinte dilogo entre personagens:
- Fazendeiro Lucas Moreira: Meu pai chegou aqui h mais de 60
anos, eu planto comida, pras pessoas comerem.
- Cacique Ndio: Desce ao cho e agarra com uma das mos um
punhado de terra vermelha seca. Come, vagarosamente, esse
punhado
de terra seca, olhando-o fixamente.
Segundo a pesquisadora Juliana Grasili Bueno Mota
(UNESP/UFGD):
Na historiografia e etnografia sobre os povos Guarani, a palavra
nativa
tekoha significa o lugar onde possvel reproduzir modos de ser
e
viver. O prefixo teko corresponde s normas, leis, costumes e
tradies, a singularidade do modo de vida Guarani e Kaiow. O
sufixo ha d sentido de lugar onde o modo de vida /ou pode
ser
realizado. Assim, pode-se dizer que tekoha o lugar onde possvel
a
reproduo do modo de vida desses povos, de modo que necessrio
considerar que sem teko no h tekoha, mas tambm, que sem
tekoha
no h teko. (MOTA, 2015, p.423)
Entre 2012 e 2014, morei no Mato Grosso do Sul, alternando-me
entre as cidades de
Dourados, Campo Grande e Aquidauana, e a conheci o termo tekoha
e a luta guarani-kaiow
pela retomada das terras originrias, onde eles creem que possvel
a reproduo de seus
modos de vida.
Vinda de So Paulo, pude, durante essa estada, vivenciar o lado
rural que
completaria a operao do agronegcio brasileiro (esta desenvolvida
em minha cidade de
origem, com os engravatados no alto dos arranha-cus)21
. Segundo as antroplogas Artionka
Capiberibe e Oiara Bonilla:
Em suma, o agronegcio um modelo que necessita sempre mais:
mais terras, mais gua, mais agrotxico, mais transgnicos. Nos
ltimos trinta anos, o centro-oeste, regio que concentra a
produo
agropastoril, vem sendo consumido pelo desmatamento, que
penetra
agora com fora na regio amaznica, avanando para o Acre e o
sul
do Amazonas, onde o desmatamento j atinge terras indgenas como
a
dos isolados Katauixi (Terra Indgena Katauixi/Jacaruba) e a
Terra
Indgena Caititu, dos ndios Apurin. Consequentemente, os casos
de
conflitos agrrios nessa regio explodiram, registrando dezenas
de
21
Para maiores informaes sobre esse duplo do agronegcio assistir
ao vdeo sombra de
um delrio verde (29`) com direo de An Baccaert, Cristiano
Navarro e Nicola Mu.
Disponvel em: . Acesso em: 04/03/16.
https://www.youtube.com/watch?v=c2_JXcD97DI
-
33
assassinatos de camponeses, assentados, seringueiros e ndios
na
ltima dcada. (CAPIBERIBE e BONILLA, 2015, p.302-303)
Em meus longos deslocamentos semanais por essas cidades pude ver
a geografia do
agronegcio (parte rural): confinamento de bois, vegetao
devastada, montes de cupinzeiros
(que se instalam quando a terra est pobre de nutrientes),
plantaes monoculturais (cana-de-
acar, soja, milho, etc.), usinas, casas grandes-fazendas, chuva
de agrotxico (pulverizadas
nas plantaes por pequenos avies) e, tambm, a resistncia a essa
paisagem. Essa
resistncia aparece nos acampamentos na beira da estrada por
parte do movimento indgena
de retomada de suas terras ancestrais (e tambm por parte de
movimentos de trabalhadores
sem-terra) em frente a essas fazendas de um s22
, apontando para a mudana deste panorama
poltico-social, deste horizonte histrico-econmico.
Ainda segundo a pesquisadora Juliana Grasili Bueno Mota:
Podemos dizer que a luta pelo retorno ao tekoha tem na
constituio
de acampamentos de retomadas uma expresso de resistncia e
prticas descolonizadoras, pois contesta os processos de
territorializao imposta nas reservas23
. E, do mesmo modo um grito 22
Segundo a jornalista Eliane Brum, eleita a melhor jornalista de
mdias sociais na 11 edio
do Trofu Mulher Imprensa (2016): H muita terra para pouco ndio?
No. Como costuma
dizer o socioambientalista Mrcio Santilli, h muita terra para
pouco fazendeiro. Segundo o
Censo de 2010 do IBGE, h 517 mil ndios aldeados em menos de 107
milhes de hectares
de terras indgenas, o equivalente a 12,5% do territrio
brasileiro. E onde esto essas terras?
Mais de 98% delas esto na Amaznia Legal e menos de 2% fora de l.
J os 46 mil maiores
proprietrios de terras, segundo o Censo Agropecurio do IBGE,
exploram uma rea maior do
que essa: mais de 144 milhes de hectares. Sobre a realidade da
concentrao fundiria no
pas, que continua a crescer, o Cadastro de Imveis Rurais do
Incra (Instituto Nacional de
Colonizao e Reforma Agrria) mostra que as 130 mil grandes
propriedades rurais
particulares concentram quase 50% de toda a rea privada
cadastrada no Incra. J os quase
quatro milhes de minifndios equivalem, somados, a um quinto
disso: 10% da rea total
registrada. Em entrevista ao jornal O Globo, o pesquisador
Ariovaldo Umbelino de Oliveira,
coordenador do Atlas da Terra, afirmou que quase 176 milhes de
hectares so improdutivos
no Brasil. (BRUM, 2015)
23 Segundo Juliana Grasili Bueno Mota: Em Mato Grosso do Sul, a
maior parte dos
indgenas das etnias Guarani e Kaiow vive em condio de Reserva.
Criadas no incio do
sculo XX (Reserva Indgena de Dourados, Caarap, Aldeia Limo
Verde, Taquapery, Aldeia
Porto Lindo, Sassor, Piraju e Amamba) pelo Servio de Proteo ao
ndio (SPI), entre os
anos de 1915 a 1928, essas Reservas tinham como objetivo abrigar
os indgenas que estavam
sendo expulsos de seus territrios tnicos ancestrais por projetos
de colonizao, elas fizeram
parte de um iderio civilizatrio de ocupao dos espaos vazios do
interior brasileiro
desconsiderando a grande presena indgena nesse estado. (MOTA,
2015, p. 418)
http://oglobo.globo.com/brasil/concentracao-de-terra-cresce-latifundios-equivalem-quase-tres-estados-de-sergipe-15004053
-
34
de resistncia ao Estado colonialista brasileiro, o qual, em
linhas
gerais, foi um dos principais responsveis pela atual situao em
que
vivem os Guarani e Kaiow, ao promover a colonizao no indgena
em seus tekoha e, atualmente, no cumprir os direitos dos
povos
indgenas sobre seus territrios, garantidos atualmente pela
Constituio Federativa do Brasil de 1988 e Decreto 1.775 de oito
de
janeiro de 1996, ao entender que os territrios indgenas so
de
propriedade da unio e de posse inalienvel dos povos
indgenas.
(MOTA, 2015, p. 426)
Ainda segundo a autora, esses acampamentos beira das tekohas so
territrios de
esperana: esperana de retomar suas culturas e tambm o prprio
corpo e a prpria vida
(individual e coletiva): tekoha o corpo do ndio, sem ele a gente
no vive, diz o xam
Jorge, em entrevista autora (MOTA, 2015, p. 424).
(1, 2 e 3) Indgenas Guarani Kaiow em acampamentos beira da
rodovia que liga as cidades
sul-mato-grossenses de Amamba e Ponta Por (Rodovia MS-386,
2011).24
(4) Crianas guarani-kaiow no acampamento Kurusu Amba (Coronel
Sapucaia/MS, 2011).25
24
Fotografias: Wilson Dias/ Agncia Brasil. Disponveis em:
http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/galeria/2011-12-05/integrantes-da-comissao-de-
direitos-humanos-da-camara-dos-deputados-visitam-comunidades-indigenas-em-#.
Acesso
em: 19 de julho de 2016.
25 Idem
http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/galeria/2011-12-05/integrantes-da-comissao-de-direitos-humanos-da-camara-dos-deputados-visitam-comunidades-indigenas-em-http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/galeria/2011-12-05/integrantes-da-comissao-de-direitos-humanos-da-camara-dos-deputados-visitam-comunidades-indigenas-em-
-
35
(5) Manifestao guarani-kaiow pelo fim da violncia e das mortes
na regio. Acampamento
de Guaiviry (Aral Moreira/MS, 2011).Texto da imagem: Matar pode
matar, o corpo acaba,
mas a terra nunca acabar.26
Vale dizer que apesar de no nos aprofundarmos nessa pesquisa
nesta forma de
resistncia - o acampamento - cremos que se trata tambm de uma
forma instalacional de
comunicao. O acampamento existe porque os povos originrios
parecem no concordar
com a forma espacial da reserva a qual foram subjugados. No
teramos, aqui, nessa ao
indgena, a ressignificao mais adequada para a experincia da arte
contempornea do site-
specific (em portugus: stio especfico), ou seja, uma aovida
determinada e determinante
para e por um espao especfico?27
26
Idem.
27 Para uma noo mais aprofundada sobre site-specific ver a
dissertao de mestrado do
artista visual Jorge Menna Barreto. Disponvel em:
. Acesso em 18/07/16.
../../../../../110111415/Downloads/4970000.pdf
-
36
1.2. Mbarakay medida performativa
No contexto apresentado no sub-item anterior, propus um projeto
de performance28
para a Seleo pblica de performances e instalao artstica para
participar do V Festival
Internacional de Teatro de Dourados de 2013. O
projeto-performance se chamou A palavra
que age medida performATIVA29
#1. Tal ao performtica visava a alguns objetivos gerais.
O primeiro objetivo foi o de se constituir como a primeira ao
dentro de uma srie de
aes que se seguiriam a essa dentro de outro projeto, intitulado
Qual o real da poesia?
medidas performATIVAS, na qual eu era a proponente e que recebeu
o Prmio Rubens Corra
de Teatro da Fundao de Cultura do Estado do Mato Grosso do Sul
de 2013 para sua
realizao. Durante toda sua execuo, que contaria com diversas
performances pelo Estado,
alm da organizao de um encontro pblico sobre gnero, performance
e diversidade sexual
(o primeiro da regio), o objetivo foi investigar a linguagem
artstica da performance com
contedo de fundamental debate no cenrio sul-mato-grossense: a
violncia contra a mulher, o
machismo e a sociedade patriarcal. O Estado, segundo o Mapa da
Violncia de 201230
, o
quinto estado brasileiro com maior ndice de violncia contra a
mulher (alm de conter a
dcima cidade do Brasil com maior nmero de assassinatos de
mulheres, Ponta Por,
localizada a menos de duas horas de Dourados);
O segundo objetivo era conseguir verba para as aes de retomada
de terras originrias
dos Guarani-Kaiow (compra de alimentos, roupas e itens de
necessidade bsica para os
acampados, por exemplo).
28
A esta poca meus estudos sobre a linguagem performance eram
muito iniciais, assim, eu,
justamente com essa performance, comearia , de forma mais
sistemtica, meus estudos na
rea. No entanto meus conhecimentos preliminares de at ento
tinham passado pelo texto
Por uma potica da performatividade: o teatro performativo da
pesquisadora franco-
canadense Josette Fral e creio que dele deduzi princpios
norteadores para a construo desta
e de outras performances, quando ela condensa os principais
elementos constitutivos do
performativo na exposio do processo de criao e no dilogo com o
risco e malogro.
29 Aqui a palavra medida tem a funo de evocar seu sinnimo
atitude e tambm de fazer
aluso s medidas provisrias parlamentares, assim, para estes fins
a palavra teria dois
sentidos polticos. Cito este fato em relao a uma informao
declarada por Snia Guajajara
de que h, hoje, tramitando no Congresso Nacional 182 medidas
provisrias parlamentares
anti-indgenas.
30 O Mapa da Violncia 2012 est disponvel em:
. Acesso em: 18/07/16.
http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2012/mapa2012_mulher.pdf
-
37
Quanto aos objetivos especficos da ao, transcrevo abaixo um
trecho do projeto que
submeti avaliao naquela ocasio31
. Apesar de eu ter transcrito aqui o projeto quase que na
ntegra (alm de t-lo complementado com algumas notas de rodap)
creio que estas ideias de
projeto (e a consequente realizao da performance), aqui esboadas
de forma longa, so
fundamentais para compreendermos da onde vem a pergunta
fundadora desta presente
dissertao (que veremos no fim do captulo):
Este projeto-performance nasceu como um PEDIDO DE AJUDA.
Assim como Sherazade contava suas histrias ao Sulto como
estratgia para no ser morta por este, aguando noite a noite
sua
curiosidade pela continuidade da histria, eu tambm quero
viver,
aguando a minha curiosidade e de quem eu me relacionar pela
transformao da histria da injustia, da histria em que homens
exploram os corpos uns dos outros.
Sou nascida e criada na cidade de So Paulo/SP e l fiz parte, por
dez
anos, de um coletivo, que passou de teatral para
interlinguagens
artsticas, chamado II Trupe de Choque e que atuou em
diversos
espaos pblicos e perifricos da cidade, como por exemplo uma
Usina de Compostagem de Lixo desativada e o Hospital
Psiquitrico
Phillipe Pinel (periferias leste e oeste da cidade
respectivamente).
Em abril de 2012 me mudei para o Mato Grosso do Sul e durante
mais
de um ano resolvi investigar o ato de no atuar como atriz,
performer,
contadora de histria ou danadora, mas como artista-docente
(condutora de processos cnicos) dos primeiros cursos de
Artes
Cnicas e Dana do Estado que situam-se na Universidade Federal
da
Grande Dourados e na Universidade Estadual do Mato Grosso do
Sul.
No entanto as diversas questes sociais que vivenciei na cidades
que
vivi (Dourados, Campo Grande e Aquidauana) como: machismo,
violncia contra a mulher, agronegcio, matana indgena,
monocultura, agrotxico, confinamento de boi, confinamento
dos
trabalhadores em grandes canaviais, etc., me despertaram
novamente a
vontade, como estratgia de sobrevivncia (PARA NO MORRER -
como Sherazade), de sistematizar atravs do meu CORPO essas
questes na esperana de transform-las ou de ao menos chamar
ateno para elas.
Para tal enfrentamento de crise pensei que a performance seria
a
melhor ferramenta de combate artstico-pedaggica, at por ser
linguagem artstica pouqussimo trabalhada no Mato Grosso do
Sul.
A PALAVRA QUE AGE. um ttulo copiado. Cpia aqui entendida
como forma de aprender algo pela imitao (corporal) do gesto
do
outro. Ao imitar o adulto a criana encontra a sua prpria
31
Escrevi este projeto em julho de 2013, dentro da Cmara dos
Deputados de Dourados,
como participante da ocupao realizada por estudantes,
professores e sociedade civil que
tinha como principal pauta a reduo das passagens de nibus do
municpio e melhoras nas
condies do transporte pblico em geral.
-
38
gestualidade, ou deveria ser assim... Uma boa cpia no engessa
quem
copia e sim traz novos modelos de ao a este. Um boa cpia
sempre
transmutada no ato da transposio. Uma boa cpia expe o corpo
do
copiador e do copiado.
Como a noo de cpia foi criminalizada pelo sistema de patentes
e
de direitos autorais utilizaremos aqui o termo modelo de ao
agir
a partir de um modelo ser aqui tratado como possibilidade de
criticar
o modelo, problematizando-o, conservando e negando o modelo
ao
mesmo tempo.
Este ttulo inspirado no documentrio32
homnimo que trata da
noo de corporalidade (integrada dana, msica, representao,
ritual, natureza, vida, todas as idades, etc.) na etnia indgena
Guarani-
Kaiow. Boa parte da comunidade Guarani-Kaiow brasileira vive
no
estado do Mato Grosso do Sul.
Esta grande comunidade, conforme amplamente divulgada nas
redes
sociais internticas, vem sendo assassinada (h muitos e muitos
anos)
e espoliada de suas terras.
Ns, brancos, ao vermos os pedidos de ajuda dos guaranis-kaiows
na
internet, prontamente anexamos aos nossos nomes VIRTUAIS, ou
seja, ao nosso corpo virtual, ao nosso AVATAR, o ttulo Fulano
de
Tal Guarani-Kaiow. Mas de fato queremos imitar (copiar) o
modo
de vida corporal de um Guarani-Kaiow? Ao querermos ser
parentes
de um Guarani-Kaiow (alterando nosso sobrenome virtual)
estamos
de fato dispostos a compreender, aprender e tentar viver a
partir do
modelo de ao fornecido pela prtica de existncia
Guarani-Kaiow?
Ou mais, ao querermos ajudar os Guarani-Kaiow no nos
esquecemos e transferimos o problema como sendo
exclusivamente
indgena ao passo que quem est tambm sem terra, sem natureza,
sem articulao coletiva e sem voz no somos tambm ns prprios,
os no-Guarani-Kaiow?
Neste projeto-performance continuamos a investigao, que j
estamos desenvolvendo, do sentido da ao corporal
Guarani-Kaiow.
J pudemos observar, nas bibliografias e vivncias empricas com
os
Guarani-Kaiows, que no h separao entre dana, corpo, msica,
crena, coletividade, no h separao entre vida e arte. Este
parece
ser um dos princpios que permeiam tambm a linguagem da
performance. Ento, neste projeto, a noo de PERFORMANCE
ligou-se ao modelos de ao fornecidos pelos Guarani-Kaiows.
Alm
disso, ligada noo de performance est a de tomar o corpo
alguns
RISCOS NECESSRIOS (conforme teorizao do performer
mexicano Guillermo Gomz-Pea do coletivo La Pocha Nostra)33
.
Para a investigao de tais RISCOS tomamos como modelo de ao s
32
CUNHA, Edgar Teodoro da; PIMENTEL, Spency; PUZZO, Gianni.
Mbaraka A palavra
que age. Vdeo disponvel em: . Acesso em 02/09/13.
33 GOMEZ-PEA, Guillermo. A muerte (segundo duelo).
Vdeo-performance disponvel em:
. Acesso em 02/09/13.
http://vimeo.com/34768557http://www.youtube.com/watch?v=TZMlbpoYnGI
-
39
prticas (corporais-integradas) exercidas pelo povo Pyelito
Kue
34 ao
divulgarem sua carta35
enviada ao Governo Federal e tambm da
liderana indgena Valdelice Vern da Aldeia Taquara (que tambm
usa a internet como espao de luta, mas aqui, pela sobrevivncia
de
seu CORPO REAL que j sofreu dezenas de ameaas de morte)36
.
34
Segundo comunicado do Conselho Aty Guasu: O acampamento da
comunidade guarani e
kaiow de Pyelito Kue/Mbarakay comeou no dia 08 de agosto de
2011. (...) importante
ressaltar que os membros (crianas, mulheres e idosos) dessa
comunidade proveniente de uma
reocupao, no dia 23 de agosto de 2011, s 20h, foram atacados de
modo violentos e cruis
pelos pistoleiros das fazendas. A mando dos fazendeiros, os
homens armados passaram
permanentemente a ameaar e cercar a rea minscula reocupada pela
comunidade Guarani-
Kaiow na margem do rio que este fato perdura at hoje. Em um ano,
os pistoleiros que
cercam o acampamento das famlias guarani-kaiow, j
cortaram/derrubaram 10 vezes a ponte
mvel feito de arame/cip que utilizada pelas comunidades para
atravessar um rio com a
largura de 30 metros largura e mais de 3 metros de fundura.
Apesar desse isolamento
pistoleiros armados ameaam constantemente os indgenas, porm 170
comunidades
indgenas reocupante do territrio antigo Pyelito kue continuam
resistindo e sobrevivendo na
margem do rio Hovy na pequena rea reocupada at os dias de hoje,
esto aguardando a
demarcao definitiva do territrio antigo Pyelito Kue/Mbarakay. No
dia 8 dezembro de
2009, este grupo j foi espancado, ameaado com armas de fogo,
vendado e jogado beira da
estrada em uma desocupao extra-judicial, promovida por um grupo
de pistoleiros a mando
de fazendeiros da regio de Iguatemi-MS. (CONSELHO ATY GUASU,
2012, s/p)
35 Segundo carta do povo guarani-kaiow de Pyelito Kue/Mbarakay:
Ns (50 homens, 50
mulheres e 70 crianas) comunidades Guarani-Kaiow originrias de
tekoha Pyelito
kue/Mbrakay, viemos atravs desta carta apresentar a nossa situao
histrica e deciso
definitiva diante de da ordem de despacho expressado pela Justia
Federal de Navira/MS,
conforme o processo n 000003287.2012.4.03.6006, do dia 29 de
setembro de 2012.
Recebemos a informao de que nossa comunidade logo ser atacada,
violentada e expulsa da
margem do rio pela prpria Justia Federal, de Navira/MS. Moramos
na margem do rio Hovy
h mais de um ano e estamos sem nenhuma assistncia, isolados,
cercado de pistoleiros e
resistimos at hoje. Comemos comida uma vez por dia. Passamos
tudo isso para recuperar o
nosso territrio antigo Pyleito Kue/Mbarakay. De fato, sabemos
muito bem que no centro
desse nosso territrio antigo esto enterrados vrios os nossos
avs, avs, bisavs e bisavs,
ali esto os cemitrios de todos nossos antepassados. (...)
Cientes desse fato histrico, ns j
vamos e queremos ser mortos e enterrados junto aos nossos
antepassados aqui mesmo onde
estamos hoje, por isso, pedimos ao Governo e Justia Federal para
no decretar a ordem de
despejo/expulso, mas solicitamos para decretar a nossa morte
coletiva e para enterrar ns
todos aqui. (GUARANI-KAIOW DE PYELITO KUE/MBARAKAY, 2012,
s/p)
36 Podemos ver algumas aes-falas de Valdelice Vern atravs destes
enlaces eletrnicos:
Palavras de Valdelice Vern Prmio Culturas Indgenas (2013),
disponvel em:
https://www.youtube.com/watch?v=C6r3RYhrrjY e Liderana
Guarani-Kaiow denuncia
ameaa de deputado federal na Cmara dos Deputados (2015),
disponvel em:
https://www.youtube.com/watch?v=uVWtMWbUIhg. Ambos acessados em:
24 de maro de
2016.
https://www.youtube.com/watch?v=C6r3RYhrrjYhttps://www.youtube.com/watch?v=uVWtMWbUIhg
-
40
Outra relao que buscaremos investigar a relAO e sentido dos
Guarani-Kaiows para a PALAVRA. Em um texto, intitulado e' a
palavra alma, a antroploga Graciela Chamorro, professora da
Universidade Federal da Grande Dourados, nos revela algumas
pistas
dessa relao:
A palavra a unidade mais densa que explica como se trama a
vida
para os povos chamados guarani e como eles imaginam o
transcendente. As experincias da vida so experincias de
palavra.
Deus palavra. (...) O nascimento, como o momento em que a
palavra
se senta ou prov para si um lugar no corpo da criana. A
palavra
circula pelo esqueleto humano. Ela justamente o que nos mantm
em
p, que nos humaniza. (...) Na cerimnia de nominao, o xam
revelar o nome da criana, marcando com isso a recepo oficial
da
nova palavra na comunidade. (...) As crises da vida doenas,
tristezas, inimizades etc. so explicadas como um afastamento
da
pessoa de sua palavra divinizadora. Por isso, os rezadores e
as
rezadoras se esforam para trazer de volta, voltar a sentar a
palavra
na pessoa, devolvendo-lhe a sade.(...) Quando a palavra no
tem
mais lugar ou assento, a pessoa morre e torna-se um devir, um
no-
ser, uma palavra-que-no--mais. (...) e' e ayvu podem ser
traduzidos tanto como palavra como por alma, com o mesmo
significado de minha palavra sou eu ou minha alma sou eu.
(...)
Assim, alma e palavra podem adjetivar-se mutuamente,
podendo-se
falar em palavra-alma ou alma-palavra, sendo a alma no uma
parte,
mas a vida como um todo. (BRUM, 2012, s/p).
Buscaremos assim pesquisar a intrnseca relao entre PALAVRA e
AO CORPORAL (performativa, danada, ritual, etc.) baseada no
modelo Guarani-Kaiow.
Para isso ser necessrio tambm pesquisar-mostrar a
corporalidade
ocidental (ou determinada corporalidade ocidental). Para tal
continuamos a pesquisa em relao ao CORPO CIBORGUE.
Em 1963, pesquisando as maneiras de adaptar o ser humano para
o
vo espacial tripulado, a NASA publicou um relatrio no qual
cunhou
o termo cyborg a partir das slabas iniciais de cybernetic
organism. A
filsofa norte-americana Donna Haraway (2009) aproveitou para
conferir uma dimenso poltica e conceitual ao ciborgue,
definindo-o
como um hbrido de mquina e organismo, como uma criatura to
socialmente real quanto ficcional, a quem cabe habitar um
mundo
contraditoriamente natural e construdo. Para a filsofa, a
medicina
moderna est repleta de ciborgues, a replicao no mundo
ciborgue
est desvinculada da reproduo orgnica, e a guerra moderna uma
orgia ciborgue.
Esta ciso entre as prticas corporais da cidade
(ciborgue-passiva) e
das prticas corporais Guarani-Kaiow (orgnico-ativa) que
geram
determinadas formas de viver juntos ser o mote de investigao
ATIVA junto ao pblico convidado a compor esta experincia.
(ALMEIDA, 2013, s/p)
-
41
Tal projeto de performance foi contemplado no Festival
Internacional de Teatro de
Dourados da UFGD e recebeu um prmio pblico de R$1.500,00 para
sua encenao. Ela se
realizou no dia 22 de setembro de 201337
, no Parque dos Ips, regio central da cidade de
Dourados. Como o vdeo da performance encontra-se como
apndice-abertura dessa
dissertao (e cremos que para que continuemos essa discusso seria
importante que o leitor o
assistisse antes de seguir), no a descreverei integralmente. No
entanto, apresentarei algumas
questes que surgiram de sua realizao. Ao refletir sobre ela trs
anos depois, me parece que
fundamentam ou introduzem o presente trabalho.
Comearei expondo e analisando alguns dos expedientes temticos
que queria abordar
na performance (descritos brevemente no projeto) para depois
voltar a refletir sobre a
realizao da mesma.
1.3. Teatro da resistncia novas ferramentas de luta
O primeiro aspecto que gostaria de abordar sobre o uso da
internet, a rede virtual38
,
para sobrevivncia dos corpos reais dos povos originrios do
Brasil. No texto Ciberativismo
indgena: uma anlise da pgina do Aty Guasy no Facebook so
apresentadas os seguintes
dados que interessam para esta argumentao na medida em que
posicionam a luta virtual dos
povos originrios do Brasil:
As redes sociais so os meios mais acessados na internet
pelos
brasileiros conectados, 92% acessam alguma rede. O Facebook
o
primeiro da lista com 83% da preferncia dos pesquisados,
seguido
pelo Whatsapp (58%), e Youtube (17%). O Facebook funciona
por
meio de perfis e comunidades onde os usurios compartilham
notcias,
fotos, vdeos, links e diversos tipos de contedo; um sistema
criado
pelo americano Mark Zuckerberg enquanto era estudante de
Harvard.
(...) Os movimentos indgenas, iniciados na dcada 70 com intuito
de
reaverem os direitos s terras originrias tomadas pelos
no-ndios,
37
A performance A palavra que age medida performativa #1, em vdeo,
captado e editado
por Wilson Baroucki, encontra-se como apndice-abertura desta
dissertao. O enlace
eletrnico desse mesmo vdeo est disponvel em:
. Acesso em: 04/03/16.
38 Vale apontar para o fato de que a internet teve sua origem
como arma militar e que se
encontra ainda sob domnio do capital global. No entanto, creio
que aqui, h a tentativa de
reposicionar esse meio tecnolgico, essa arma de guerra, a favor
da luta indgena.
https://www.youtube.com/watch?v=Lar_LtmmVeQ
-
42
tem se apropriado das ferramentas das novas mdias para
fortalecerem
e difundirem suas lutas e cultura. Devido ao fato de seus
membros s
se tornarem pautas de notcias quando algum fator negativo ocorre
ou
quando suas reivindicaes entram em conflito com os interesses
da
cultura hegemnica dominante, as comunidades indgenas
encontraram na internet uma maneira de expor seus
posicionamentos,
seja por meio de escritores indgenas, internautas ou organizaes
e
entidades indigenistas ou indgenas. Por isso, a criao de pginas
em
redes sociais e blogs, mesmo em quantidades ainda tmidas,
tornaram-
se uma ferramenta importante para contrapor e desconstruir
as
informaes tendenciosas realizadas pelas mdias dominantes, ou
seja,
demonstrar a viso do outro lado envolvido. (MARTINS,
MONTEIRO E NAKAZATO, 2015, p. 4-5)
(6) Mobilizao Nacional Indgena (Braslia, outubro de 2013)
39
A utilizao de ferramentas miditicas para a sobrevivncia da luta
no nova dentro
do movimento indgena40
. Talvez possamos afirmar que ele tenha comeado com o
Exrcito
39
Fotografia: Bel Harari
40 Um exemplo da mudana das estratgias de sobrevivncia dos povos
originrios atravs da
tecnologia virtual pode ser vista atravs da arrecadao do Mbareat
Resistncia: Festival
Povos da Terra realizado em So Paulo/SP em 11 de novembro de
2015, em apoio luta
indgena, organizado de forma auto-gestiva por organizaes
indgenas e artistas e ativistas
no-indgenas. Alm da arrecadao de dinheiro e bens de primeira
necessidade a ser
totalmente doado para as aldeias dos Guarani-Mbya em So Paulo e
as aldeias Guarani-
Kaiowa do Mato Grosso do Sul, um dos chamados pblicos do
festival foi pela doao de
-
43
Zapatista de Libertao Nacional (EZLN) da regio maia da atual
Chiapas, no Mxico, em
1994. De acordo com pesquisadora feminista norte-americana Sarah
Grussing, l, este
deslocamento dos corpos e vozes indgenas para uma zona incorprea
representava uma
chamada solidariedade da sociedade civil mexicana e do pblico
internacional (ABDEL-
MONEIM, 2002). Ainda segundo Sarah Grussing, o teatro da
resistncia neozapatista, na
forma desse ciborgue:
capaz de nos des-locar ao nos convidar a atravessar
fronteiras
geogrficas, tnicas e de classe, e a participar, na qualidade
de
leitores(as)/escritores(as)/ espectadores(as)/atores(atrizes)
de
textos/performances de uma guerrilha multimdia, de esforos
de
resistncia virtual contra projetos globais neoliberais. (...) O
slogan da
Conveno Democrtica Nacional do EZLN Para nosotros nada,
para todos, todo - suplicou-nos que acabssemos com aquela
fadiga
de compaixo atravs do argumento de que todas as causas so
somente uma causa, e que, de algum modo desconcertante, os
ndios
mascarados carregando AK-47, foices, ou apenas usando suas
vozes,
esto lutando por ns, seres desesperanados/as, e no o contrrio,
ns
por eles/elas. (...) A ideia lanada em comunicado aps
comunicado,
testemunho aps testemunho, que sem o ciberzapatismo as
comunidades neozapatistas desaparecero, como tantos
outros/as
rebeldes invisveis ao longo da histria - mas que, tambm, sem
essas
comunidades indgenas muitos de ns jamais teramos visto
aquele
lugar com o qual sonhamos diante do arco-ris ciberntico,
aquele
espao utpico hipertextual reservado para compartilharmos
histrias
espaciais e construir modelos virtuais de interao humana. A
ligao
efetiva do material e do virtual um modelo que reconhecemos
atravs da fico (cientfica) e com o qual sonhamos em nossa
vida
real. (ABDEL-MONEIM, 2002, p. 55-60)
Esta autora tambm alude ao fato de que vrios ativistas que
protestaram contra a
Organizao Mundial do Comrcio e seu projeto neoliberal global em
Seattle (E.U.A.), em
1999, na chamada resistncia pacfica, se dizem inspirados
justamente pelo ativismo
neozapatista. Aqui no Brasil no foi diferente. O Movimento Passe
Livre, conhecido por ser
disparador das Jornadas de Junho de 2013 - onda de protestos
contra o aumento da passagem
do transporte pblico e a favor de sua gratuidade, declaram
inspirao nas aes dos povos
originrios quando ocuparam a Cmara dos Deputados em Braslia em
abril de 2013 e por
celulares com cmeras para a distribuio para esses povos para que
os abusos contra eles
pudessem ser registrados e divulgados em tempo real na rede
virtual.
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todo o processo de ocupao e luta da Aldeia Maracan no Rio de
Janeiro (sero dados a ver
melhor essas duas aes ao longo deste trabalho).41
Talvez a primeira ao vitoriosa indgena, no Brasil, se utilizando
das ferramentas
cibernticas, mais especificamente da rede social Facebook, tenha
sido a divulgao em
massa da carta elaborada pelo povo guarani-kaiow de
Pyelito-Kue/Mbarakay. Assinada em 8
de outubro de 2012, este povo sugere
ao Governo e Justia Federal para no decretar a ordem de
despejo/expulso, mas decretar nossa morte coletiva e enterrar
ns
todos aqui. Pedimos, de uma vez por todas, para decretar
nossa
extino/dizimao total, alm de enviar vrios tratores para cavar
um
grande buraco para jogar e enterrar nossos corpos. Este o
nosso
pedido aos juzes federais. J aguardamos esta deciso da
Justia
Federal. Decretem a nossa morte coletiva Guarani e Kaiow de
Pyelito Kue/Mbarakay e enterrem-nos aqui. Visto que
decidimos
integralmente a no sairmos daqui com vida e nem mortos.
(GUARANI-KAIOW DE PYELITO KUE/MBARAKAY, 2012,
s/p)
Esta carta acabou sendo viralizada e conhecida como o anncio de
um suicdio
coletivo indgena ou como ameaa de morte coletiva. Mas em nenhum
momento este povo
ameaou se suicidar. Tal engano talvez seja mesmo pela nossa
incapacidade, como
militantes/ativistas de Facebook de elaborar, com outras
palavras os atos