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Nº. 87/2008
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS
PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA
ÁREA ANÁLISE AMBIENTAL E DINÂMICA TERRITORIAL
Ivie Nunes de Santana
O planejamento turístico como instrumento de legitimação cultural
em território quilombola
Dissertação apresentada ao Instituto de
Geociências como parte dos requisitos para
obtenção do título de Mestre em Geografia.
Orientadora: Profª Dra. Maria Tereza Duarte Paes
CAMPINAS / SP
Agosto 2008
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© by Ivie Nunes de Santana, 2008
Catalogação na Publicação elaborada pela Biblioteca
do Instituto de Geociências/UNICAMP
Santana, Ivie Nunes de.
Sa59p O planejamento turístico como instrumento de legitimação
cultural em território quilombola / Ivie Nunes de Santana--
Campinas, SP.: [s.n.], 2008.
Orientadora: Maria Tereza Duarte Paes.
Dissertação (mestrado) Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Geociências.
1. Turismo - Planejamento. 2. Turismo – Aspectos culturais.
3. Território nacional. I. Paes, Maria Tereza Duarte.
II. Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Geociências
III. Título.
Título em inglês: The tourist planning as an instrument of cultural legitimization in
the quilombola territory.
Keywords: - Tourism - Planning;
- Tourism - Culture;
- Territory use;
Área de concentração: Análise Ambiental e Dinâmica Territorial
Titulação: Mestre em Geografia.
Banca examinadora: - Maria Tereza Duarte Paes;
- Celso Costa Lopes;
- Regina Célia Bega dos Santos.
Data da defesa: 29/08/2008
Programa: Geografia
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“Eu necessitava de teoria para estruturar meu pensamento, e argumentava com você
que um pensamento não estruturado sempre ameaça naufragar no empirismo e na
insignificância. Você respondia que a teoria sempre ameaça se tornar um constrangimento que
nos impede de perceber a complexidade movediça da realidade”.
(GORZ, 2008)
Ao meu pai.
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Agradecimentos
A Deus, pela vida.
A minha família, que com a mínima noção do que eu fazia durante os meses em campo, me
apoiou espiritual e materialmente durante todo o tempo de curso, porque afinal, parecia mesmo
importante concluir esse mestrado.
Aos meus amigos, aos já existentes e aos conquistados nesse período, agradeço a companhia na
minha busca de sentido pra toda e qualquer coisa.
Ao pessoal do IGE e da UNICAMP. As conversas durante os cafés, os bandecos e as festinhas
foram os melhores motivos que me mantiveram na pós-graduação. Aos professores, alunos e
funcionários pela atenção, pelo carinho, pelas idéias. Um abraço pro seu Aníbal.
A querida sala 6. Aos veteranos e aos novatos que sempre me acolheram e me auxiliaram. À
Josita, sempre amiga.
Aos amigos de entrada, ao presente Cris e a saudosa Clau.
A super Val, por vezes você foi a razão que me animou a concluir o mestrado. A leal Edinalva, a
secretaria do IGE só se completa com você.
A professora Tereza, por me ensinar o valor de um conceito e pela parceria durante o curso.
Ao professor Celso, por me levar ao Vale do Ribeira e por trabalhar pela extensão comunitária.
A professora Regina, pela atenção dada a este trabalho.
A professora Angela, orientadora pra vida.
Ao pessoal do PCQ, pela vidinha no Vale do Ribeira.
Às comunidades de André Lopes e Sapatu, meu sincero agradecimento por me permitirem
intervir como pesquisadora e partilhar como pessoa.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 1
PARTE I: O TURISMO NA BASE DA PRODUÇÃO TERRITORIAL 3
Capítulo 1: A conformação do território turístico 3
Capítulo 2: O turismo como proposta para o desenvolvimento local: limites e potencialidades 10
Possibilidades conceituais acerca de desenvolvimento 25
Capítulo 3: O olhar do turista sobre o território 34
PARTE II: O TERRITÓRIO CONSTRUÍDO: IDENTIDADE E CONCEPÇÕES DE USO 45
Capítulo 4: Definição política e cultural do território quilombola 45
Concentração quilombola no Vale do Ribeira 52
Capítulo 5: Histórico da ocupação negra regional: origem dos bairros de André Lopes e Sapatu 59
Origem do bairro de André Lopes 61
Origem do bairro de Sapatu 64
Capítulo 6: Territorialidade como expressão material de uma identidade cultural 69
Associações de Remanescentes de Quilombos das Comunidades de André Lopes e de
Sapatu
76
Capítulo 7: Da agricultura ao turismo: o território normatizado por políticas desenvolvimentistas
e legislação ambiental
84
PARTE III: PLANEJAMENTO COMUNITÁRIO DO TURISMO: POSSIBILIDADES DE
INTERVENÇÃO TERRITORIAL
97
Capítulo 8: Relação entre universidade e comunidades: Oficinas de Planejamento Comunitário
do Turismo
97
Capítulo 9: O caso das comunidades de André Lopes e Sapatu 109
Capítulo 10: O planejamento turístico como instrumento de legitimação cultural em território
quilombola.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 150
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1. Alojamento do PCQ na comunidade de André Lopes
Figura 2. Mapa de localização do município de Eldorado no estado de São Paulo
Figura 3. Placa para visitantes na comunidade de André Lopes
Figura 4. Estrada de acesso à caverna na comunidade de André Lopes
Figura 5. E.E. Maria Antonia Chules Princesa
Figura 6. Igreja e centro comunitário (ao fundo) de André Lopes
Figura 7. Bairro de André Lopes
Figura 8. Rodovia SP-165 na comunidade de Sapatu
Figura 9. E.E. do bairro de Sapatu
Figura 10. Bairro de Sapatu
Figura 11. Rio Ribeira no trecho entre as comunidades de André Lopes e Sapatu
Figura 12. Espécie de palmito Juçara
Figura 13. Mapa do Mosaico de Unidades de Conservação do Jacupiranga
Figura 14. Centro comunitário de Sapatu
Figura 15. Centro de artesanato de André Lopes
Figura 16. Parque Estadual do Jacupiranga
Figura 17. Placa de anúncio da cachoeira Queda do Meu Deus
Figura 18. Área de acesso à cachoeira Queda do Meu Deus
Figura 19. Trilha de acesso à cachoeira Queda do Meu Deus
Figura 20. Praça central do município de Eldorado
Figura 21. Praça em Eldorado
Figura 22. Placa de informações turísticas em Eldorado
Figura 23. Espaço público Aldeia Cultural – Eldorado
Figura 24. Núcleo Caverna do Diabo – PEJ
Figura 25. Acesso à Caverna do Diabo
Figura 26. Restaurante do núcleo Caverna do Diabo
Figura 27. Espaço para exposição de artesanato comunitário no núcleo
Figura 28. Entrada para a caverna
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LISTA DE SIGLAS
AAGEMAN – Associação de Guias e Auxiliares de Ecoturismo
ABA – Associação Brasileira de Antropologia
ADCT – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
AMAMEL – Associação dos Monitores Ambientais do Município de Eldorado
APA – Área de Proteção Ambiental
ASPAC – Associação Comunitária pela Preservação do Meio Ambiente de Silves
AVIVE – Associação Vida Verde da Amazônia
BIRD – Banco Interamericano de Desenvolvimento
CBA – Companhia Brasileira de Alumínio
CEB – Comunidades Eclesiais de Base
CESET – Centro Superior de Educação Tecnológica
CESP – Companhia Energética do estado de São Paulo
CNPQ – Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia
CNUMAD 92 – Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento
COMTUR – Conselho Municipal de Turismo
COOPECANTUR – Cooperativa de Artesanato e Turismo
COOPTUR – Cooperativa de Trabalho em Turismo da Amazônia
CPT – Comissão Pastoral da Terra
DADE – Departamento de Apoio ao Desenvolvimento das Estâncias
DFID – Department for International Development
DPRN – Departamento de Proteção aos Recursos Naturais
E.E. – Escola Estadual
EEM – Estação Ecológica Mamirauá
FCP – Fundação Cultural Palmares
GA-PCQ – Grupo de Apoio - Programa Comunidades Quilombolas
IBAMA – Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis
ICMS – Imposto sobre circulação de mercadorias e prestação de serviços
IDESC – Instituto para o Desenvolvimento Sustentável e Cidadania do Vale do Ribeira
IDH – Índice de Desenvolvimento Humano
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IDSM – Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá
IF – Instituto Florestal
INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
IPAAM – Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia
ISA – Instituto Sócio-Ambiental
ITESP – Instituto de Terras do Estado de São Paulo “José Gomes da Silva”
MCT – Ministério da Ciência e Tecnologia
MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário
MOAB – Movimento dos Ameaçados por Barragens
MPF – Ministério Público Federal
ONU – Organização das Nações Unidas
PCQ – Programa Comunidades Quilombolas
PDDTA – Plano Diretor de Desenvolvimento Turístico e Agrícola
PEC – Programa de Ecoturismo
PEJ – Parque Estadual do Jacupiranga
PETAR – Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira
PIB – Produto Interno Bruto
PREAC – Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários
RDS – Reserva de Desenvolvimento Sustentável
RDSM – Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá
RPPN – Reserva Particular do Patrimônio Natural
RESEX – Reserva Extrativista
RTC – Relatório Técnico-Científico
SBPC-AM – Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência - Estado do Amazonas
SCM – Sociedade Civil Mamirauá
SNUC – Sistema Nacional de Unidades de Conservação
UFPA – Universidade Federal do Pará
UHE Tijuco Alto – Usina Hidrelétrica Tijuco Alto
UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas
WCS – The Wildlife Conservation Society
WWF – World Wilf Fund for Nature
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS
PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA
ÁREA ANÁLISE AMBIENTAL E DINÂMICA TERRITORIAL
Ivie Nunes de Santana
RESUMO
“O planejamento turístico como instrumento de legitimação cultural em território
quilombola”.
Através deste trabalho buscamos identificar se o planejamento turístico pode servir a
comunidades quilombolas como instrumento para a gestão territorial das áreas que ocupam, de
acordo com sua lógica cultural de apropriação, em um contexto onde o turismo é uma das
atividades potenciais para aproveitamento do território. Especificamente, procuramos identificar
as possibilidades de conformação de uma prática turística diferenciada, atrelada antes aos
preceitos comunitários de uso do território que aos de consumo sobre o território, característica
marcante do turismo contemporâneo. Por isso a noção de legitimação cultural, ao considerarmos
o uso do território afinado às concepções definidas pelas próprias comunidades frente a formas de
intervenção territorial de outras naturezas.
Palavras-chave: turismo, planejamento, cultura, território.
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INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS
PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA
ÁREA ANÁLISE AMBIENTAL E DINÂMICA TERRITORIAL
Ivie Nunes de Santana
ABSTRACT
“The tourist planning as an instrument of cultural legitimization in the quilombola
territory”
Through this work we’ve tried to identify if the tourist planning can be useful to
quilombolas communities as an instrument for the territorial management of the areas which
occupy according to the cultural logic of appropriation, in a context where the tourism is one of
the potential activities to make a good use of the territory. To be more specific, we’ve tried to
identify the possibilities of consolidating a distinguished tourist practice more attached to the
community first concepts of using the territory than the consumption over the territory, notorious
characteristic of the contemporary tourism. What leads us to the idea of cultural legitimization,
considering the use of territory connected to the conceptions defined by the same communities
facing forms of territorial intervention of new natures.
Keywords: tourism, planning, culture, territory.
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APRESENTAÇÃO
Este trabalho baseia-se na análise do planejamento turístico empreendido na esfera
comunitária e voltado à gestão territorial de áreas reconhecidas como pertencentes a populações
quilombolas. Tomamos por pressuposto a idéia de que o planejamento do turismo pode
configurar-se como instrumento para a gestão territorial comunitária, tornando essas
comunidades, portanto, menos vulneráveis a riscos e a impactos provenientes de uma atividade
turística estruturada principalmente por concepções externas.
Buscamos, de forma geral, identificar se o planejamento turístico pode servir às
comunidades como instrumento para empreender a gestão territorial das áreas que ocupam de
acordo com sua lógica cultural de apropriação, em um contexto onde o turismo é uma das
atividades potenciais para aproveitamento do território. Por isso a noção de legitimação cultural,
ao considerarmos o uso do território afinado às concepções definidas pelas próprias comunidades
frente a formas de intervenção territorial de outras naturezas.
Especificamente, procuramos identificar as possibilidades de conformação de uma prática
turística diferenciada, atrelada antes aos preceitos comunitários de uso do território que aos de
consumo sobre o território, característica marcante do turismo contemporâneo. E ainda,
identificar a partir das concepções construídas pelas comunidades em torno do planejamento
turístico, o quão representativa pode ser sua lógica cultural em relação a outros sujeitos
envolvidos na construção do território.
Para tanto, o trabalho foi desenvolvido por meio da realização de Oficinas de
Planejamento Comunitário do Turismo com duas comunidades remanescentes de quilombos do
município de Eldorado, no Estado de São Paulo. As oficinas integraram o trabalho de extensão
comunitária realizado pelo Programa Comunidades Quilombolas (PCQ) da Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP), que por sua vez, compreende o desenvolvimento de
atividades e projetos em parceria com comunidades remanescentes de quilombos do Vale do
Ribeira, visando seu desenvolvimento sócio-cultural.
Em setembro de 2005, o programa apresentou algumas demandas das comunidades
parceiras do programa; nessa ocasião foram apresentadas demandas referentes à formação de um
possível Grupo de Trabalho de Turismo e Educação Ambiental. Entre outubro e novembro de
2005, foram feitos os primeiros contatos entre os alunos responsáveis pelo grupo de trabalho e as
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comunidades; a proposta desde o início foi trabalhar o turismo local com base no planejamento
comunitário. O trabalho se organizaria através de oficinas com os representantes interessados de
cada comunidade onde as demandas apresentadas por elas seriam tratadas como temas para o
planejamento turístico. Em dezembro de 2005, a Associação de Remanescentes de Quilombo do
Bairro de André Lopes e a Associação de Remanescentes de Quilombo do Bairro de Sapatu
manifestaram interesse pela realização das oficinas.
De janeiro a março de 2006, aconteceram as primeiras reuniões com as comunidades para
a definição de projetos, calendário e participantes das oficinas. As Oficinas de Planejamento
Comunitário do Turismo foram organizadas em forma de reuniões com grupos definidos pelas
associações de André Lopes e de Sapatu. Essas reuniões foram chamadas “oficinas” pelo caráter
de discussão e construção coletiva sobre propostas e conceitos que se apresentou inicialmente e
que orientou as atividades desenvolvidas durante todo o processo. No período de abril a julho de
2006, foram realizadas 20 reuniões envolvendo 23 moradores na comunidade de André Lopes; na
comunidade de Sapatu, foram realizadas 15 reuniões envolvendo 21 moradores.
Como resultados deste trabalho, as comunidades de André Lopes e Sapatu produziram: o
diagnóstico da situação atual do turismo nas comunidades; o levantamento de demandas para o
desenvolvimento do turismo comunitário; a participação na discussão sobre o Plano Diretor
Municipal e o Conselho Municipal de Turismo de Eldorado; a elaboração de planos para atrativos
turísticos já em utilização; a elaboração de projetos de desenvolvimento local para submissão a
editais. Este último resultado se refere ao estudo de um edital para financiamento de projetos e à
construção de uma proposta que pudesse ser a ele submetida, visto que o financiamento via
editais é, atualmente, uma das principais formas para a viabilização de projetos comunitários.
O processo de realização das oficinas, bem como os resultados produzidos através delas,
subsidiaram a dissertação aqui apresentada. Este estudo considera especialmente as noções de
planejamento do turismo construídas por cada comunidade, com base no contexto local e no
histórico de intervenções que configuram atualmente o território quilombola. As comunidades,
reconhecidas como proprietárias de uma porção territorial da região do Vale do Ribeira, vêm
assumindo posturas de regulação sobre tais intervenções, das quais o turismo, proposto como
alternativa para o desenvolvimento local, também faz parte. Nesse caso, as noções construídas
através das oficinas de planejamento comunitário da atividade representam as concepções que
cada comunidade possui para orientar a gestão dos territórios em que vivem.
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INTRODUÇÃO
A Parte I trata do desenvolvimento do turismo sob a perspectiva territorial. No capítulo
primeiro, analisamos as repercussões espaciais da atividade, considerando a relação entre
concepções distintas de apropriação territorial, tomadas pelos turistas e pela população local, e as
territorialidades construídas nessa relação. Identificamos, dentro dessa relação ainda, a presença
de um campo de poderes que se materializa a partir dos usos e das funções que os sujeitos
determinam ao território.
No capítulo segundo, discutimos estudos de caso de turismo desenvolvidos com base na
participação de comunidades no processo de gestão territorial. Analisamos os limites e as
potencialidades de estudos realizados sobre a Prainha do Canto Verde, no Estado do Ceará, e
sobre a Reserva Mamirauá e Silves, ambos no Estado do Amazonas. Esses estudos, pelo fato de
se constituírem em referências distintas de práticas turísticas envolvendo comunidades,
subsidiaram algumas das discussões realizadas durante as Oficinas de Planejamento Comunitário
do Turismo. Através de sua análise, discutimos ainda em que medida a sobreposição de lógicas
distintas de apropriação territorial pode gerar processos mais ou menos legítimos de
desenvolvimento para as comunidades em questão.
No capítulo terceiro, discutimos as motivações que orientam a prática contemporânea da
viagem, considerando-se os critérios de significação e representação social nela embutidos.
Analisamos a natureza dessas motivações através de uma referência geográfica e outra
antropológica e buscamos, na interação entre elas, identificar as razões que regem a produção do
turismo a partir das concepções de ordem cultural existentes na relação entre turistas e território.
Consideramos especialmente a discussão em torno da apropriação de recursos materiais e
simbólicos derivada da prática turística, relacionando-a a representação e ao significado que esses
mesmos recursos dispõem para a população residente e para a população visitante.
A Parte II do trabalho trata do processo de construção do território a partir de diferentes
concepções de uso e apropriação. No capítulo quarto, discutimos o reconhecimento das
comunidades como remanescentes de quilombo; analisamos o processo de identificação social
como recurso político de acesso a terra, garantido segundo artigo da Constituição Brasileira.
Buscamos também identificar de que forma a identidade quilombola se constrói a partir da
produção do território dessas comunidades.
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No capítulo quinto, apresentamos o processo de formação territorial das comunidades de
André Lopes e Sapatu, considerando o histórico de ocupação das comunidades negras na região.
Na seqüência, no capítulo sexto, discutimos as relações que as comunidades estabelecem com o
espaço que habitam, no sentido de identificar componentes culturais presentes na produção do
território. Analisamos os usos e as funções que são atribuídas a este território como forma de
interpretação da dinâmica cultural das comunidades, onde os preceitos de sociabilidade,
identidade e uso social da terra estão atrelados às características ambientais e conformam um tipo
específico de produção social.
No capítulo sétimo, apresentamos o processo de normatização conferido ao território
através de sujeitos e ações que condicionam as formas de uso atual de seus habitantes.
Analisamos, nessa perspectiva, as formas de adaptação e resistência que as comunidades
envolvidas manifestam diante da instituição de determinadas normas e como elas se relacionam
nessa arena de conflitos. Introduzimos a perspectiva do desenvolvimento turístico nas
comunidades como atividade econômica e forma de intervenção territorial.
A Parte III trata da proposta de planejamento comunitário do turismo com base no
trabalho de extensão comunitária realizado. No capítulo oitavo, descrevemos o processo de
trabalho construído entre universidade e comunidades, especificamente a partir das Oficinas de
Planejamento Comunitário do Turismo.
No capítulo nono, apresentamos os resultados das oficinas realizadas durante o ano de
2006 com as comunidades de André Lopes e Sapatu. Analisamos esses resultados como
indicativos de um modelo de territorialização gerido nas comunidades e representativo de sua
ordem cultural. Analisamos também a conformação de territórios específicos em um espaço
contínuo de ocupação territorial.
No capítulo décimo, discutimos em que medida o instrumento de planejamento turístico
pode auxiliar na definição de funções do território que sejam representativas de uma visão
comunitária, especialmente em relação aos conflitos de ordem territorial que envolvem as
comunidades. Analisamos também, como esse instrumento pode conferir maior legitimidade ao
processo de desenvolvimento concebido pelas comunidades, característico de sua própria lógica
cultural.
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PARTE I: O TURISMO NA BASE DA PRODUÇÃO TERRITORIAL
Capítulo 1: A conformação do território turístico
O turismo, à medida que se caracteriza por um processo de deslocamento de pessoas,
mesmo temporário, confere ao espaço um atributo especial, quando este é, ao mesmo tempo,
condicionante das relações estabelecidas pela atividade turística e condicionado por meio das
transformações por ela causadas. O próprio deslocamento necessário para a prática do turismo é
tanto um produto da existência de diferentes subespaços, como um fator determinante na
produção dos mesmos.
A apreensão simultânea de recursos estabelecidos socialmente pela população local e
adaptados para o exercício da atividade turística, orienta as relações em torno das quais o turismo
se manifesta, comportando-se como condicionante do ordenamento territorial (CRUZ, 2001, p.7).
O turismo incorpora novos usos e novas funções à dinâmica sócio-espacial já existente; a
diferença na forma de conceber o uso do espaço encontra no turismo uma via de expressão
política de onde são apreendidos os variados discursos e racionalidades que regem a organização
da atividade. O espaço, dessa forma, passa a se conformar sob um caráter híbrido, marcado pela
sobreposição de fatores internos e externos, que conflituosos ou convergentes, terminam sempre
por se relacionar dando origem ao território, produzido material e simbolicamente pela sociedade.
Da passagem do espaço ao território, Raffestin (1993) nos fala de uma relação de
produção que une uma categoria à outra por meio de processos sociais caracterizados pela
representação do espaço que, ao se tornar concretamente organizada, se transforma em território.
A representação do espaço, por si só, já compreende um sistema de relações, através das quais,
segundo o autor, o território é idealizado. “Portanto, o espaço representado não é mais espaço,
mas a imagem do espaço, ou melhor, do território visto e/ou vivido. É em suma o espaço que se
tornou o território de um ator, desde que tomado numa relação social de comunicação”
(RAFFESTIN, 1993, p.147).
A atividade realizada por turistas que procuram viver experiências inéditas ou exóticas em
áreas dotadas de ricos ecossistemas e habitadas por populações diferenciadas quanto ao modo de
produção social é uma expressão da materialização do território turístico. Esse território por sua
vez, encerra tanto a perspectiva do turista, com suas possíveis aspirações e expectativas
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projetadas sobre o território de forma pontual, quanto à perspectiva de seus habitantes, formada
pelos usos e pelas funções atribuídos ao território de forma permanente, que se mantém após a
passagem do turista e que contém essa passagem em sua conformação.
O turismo promove o diálogo entre distintas representações territoriais, formadas a partir
de códigos culturais heterogêneos. Uma das bases dessa relação reside na diferença entre a
“territorialidade sedentária” da população local e a “territorialidade nômade” dos turistas
(KNAFOU, 1996, p.64). O condicionante temporal que determina, nesse caso, algumas das
circunstâncias de apropriação do território, contrapõe formas de produção espacial originadas sob
perspectivas distintas que, para além dos efeitos positivos ou negativos que podem significar para
um ou outro sujeito, manifestam, sobretudo, a existência de um campo de poder entre eles
(RAFFESTIN, 1993).
Parece ainda contraditório o fato de que os viajantes que procuram no turismo uma forma
de abstração do seu cotidiano desejem encontrar no lugar visitado as mesmas referências que têm
diariamente no lugar onde vivem. “Assim, fugindo-se do cotidiano pelo anticotidiano, a pessoa
fatalmente se descobre no cotidiano” (KRIPPENDORF, 2001, p.55). Segundo o autor, para o
turista estar em férias, basta não trabalhar e não estar em casa, porém todas as demais atividades
do seu dia-adia devem seguir normalmente, do contrário, a experiência da viagem pode ser
desconfortante e até ameaçadora.
“Mesmo quando o turista acredita estar viajando para “consumir o clima” de um dado
destino tropical, o conjunto da infra-estrutura turística e da infra-estrutura suporte
(acesso, saneamento básico, energia elétrica, telefonia) desempenha papel fundamental
na sua decisão. Quantos turistas iriam para o Caribe ou para o litoral do Nordeste se
tivessem que dormir em barracas, utilizar banheiros coletivos e tomar banho em rios ou
no mar?” (CRUZ, 2001, p.25).
Na busca por um ambiente familiar fora de casa, os turistas estimulam a criação ou a
reutilização de espaços que atendam as suas necessidades habituais. O turismo compõe o espaço
a partir da inserção de bens e serviços por vezes externos ao lugar e utiliza-se deste para a
configuração de objetos desejados pelos turistas e que irão compor a paisagem, a cultura, o lazer.
“Assim, estabelece-se uma relação entre antigas paisagens e velhos usos e novas formas
e funções. E este movimento entre o velho e o novo impulsiona a relação do lugar com o
mundo que atravessa com novos costumes, hábitos, maneiras de falar, mercadorias,
modos de agir... Assim, também a identidade do lugar é constantemente recriada,
produzindo um espaço social híbrido, onde o velho e o novo fundem-se dando lugar a
uma nova organização sócio-espacial” (LUCHIARI, 2000, p.108-109).
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Na concepção do turismo, a dinâmica existente entre o velho e o novo pode ser
comparada à dinâmica existente entre o local e o global. As demandas externas, baseadas nos
critérios de uma atividade turística padronizada permitem que o turista seja satisfeito quanto às
expectativas de um ambiente acolhedor e que ainda possua certas especificidades no que diz
respeito à cultura, à população e ao ambiente local. Para que a viagem seja completa, o turista
deseja vivenciar experiências exclusivas e peculiares que dêem identidade ao lugar que visita,
mesmo que essas experiências não sejam, talvez por força do turismo, realmente autênticas. As
paisagens são transformadas, manifestações culturais são encenadas e relações sociais são
produzidas; todas se constituem em um atrativo turístico, este sim, autêntico.
Como movimento expressivo da conexão entre o local e o global presente no contexto das
viagens está o turismo de massa. Este pressupõe a idéia de uma sociedade de massa pronta a
praticar o turismo sob a forma de consumo com características definidas a partir de um conceito
padrão de qualidade. Salvo a diferença quantitativa de turistas que compõe esse movimento,
razão que se justifica no próprio nome, o turismo de massa mantém uma identidade muito
próxima com as outras modalidades (ecológico, rural, cultural...) turísticas, podendo até ser
considerado um subproduto delas (KRIPPENDORF, 2001, p.61). Nesta interpretação, à medida
que novos lugares são descobertos por formas alternativas de turismo e vão ao longo do tempo se
popularizando, o turismo de massa instala-se como motor das trocas entre as dinâmicas local e
global.
Nem tanto pelos números, mas pelas proporções que o turismo de massa compreende, as
repercussões derivadas da sua prática são bastante complexas. A presença excessiva dos turistas,
bem como as transformações decorrentes dela, influem sobremaneira na construção do novo
espaço. As trocas exercidas entre diferentes realidades se ampliam, se intensificam e dão novo
rumo à vida local. A população residente se vê envolvida, queira ou não, por um processo do qual
também é integrante; ela participa da mudança, mas tem seu papel de sujeito questionado,
especialmente quando percebe que a mudança se orienta principalmente em função da
comunidade turística.
A partir da caracterização do “olhar do turista” como prática social, Urry (1996, p.16-18)
argumenta que este olhar é composto por signos pré-estabelecidos, difundidos através da mídia e
da propaganda e reforçados pelos discursos da viagem e do turismo. Esses signos representam o
objeto do olhar que torna a experiência da viagem extraordinária, rompendo com o sistema
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ordinário/cotidiano da vida do viajante. Já a formação de tais signos e objetos é, por sua vez, uma
característica própria do turismo, destinada a atender as expectativas das populações visitantes.
A artificialidade de muitas atrações turísticas é fruto de complexas relações estabelecidas
entre turistas e população local e compreende um dos desdobramentos derivados deste processo.
Outro diz respeito à organização da indústria turística, que no intuito de servir ao “olhar de
massa”, pode entrar em conflito com a forma de organização social da população local no que se
refere à gestão da atividade turística, à conservação ou ao desenvolvimento da localidade, à
influência da atividade sobre as tradições e os costumes locais, às formas de trabalho geradas
pelo turismo (URRY, 1996).
Nesse sentido, Luchiari (2000, p.124-127) faz uma exposição sobre os possíveis efeitos
que a urbanização turística tende a gerar aos grupos locais. Ao considerar a urbanização turística
dotada de uma característica peculiar, em que o espaço é marcado a partir do consumo e não da
produção, a autora discorre entre uma série de repercussões sentidas permanentemente pela
comunidade local, mas das quais não foi precursora.
O trabalho gerado pelo turismo, tão aclamado por sua capacidade em absorver mão-de-
obra local, descortina-se como um processo que aliado à urbanização turística, promove o
crescimento populacional e gera subempregos sazonais para uma parcela da população que se
caracteriza freqüentemente por ser feminina, infantil ou jovem, com baixa qualificação, ou ainda
por um grande número de trabalhadores clandestinos. Já a demanda por cargos especializados é
suprida muitas vezes pela contratação de profissionais de outros lugares.
A gestão da atividade turística, geralmente empreendida por grupos que possuem maior
capacidade administrativa, política ou financeira, acaba por segmentar o acesso da população
local à condução dos rumos da atividade. Os interesses dos grupos eleitos, nem sempre comuns,
favorecem a marginalização de outros grupos sociais também sensíveis às repercussões causadas
pelo turismo.
A valorização seletiva do solo, estimulada pela especulação imobiliária, determina
espaços de uso turístico que têm seu acesso livre ou restrito conforme o valor que lhe é atribuído
e aos grupos que podem pagar por esse custo. O espaço se reconfigura na busca pela atratividade
turística, natural ou artificial e incorpora relações de uso permeadas pelo consumo.
O aumento da demanda por produtos nos períodos de alta temporada turística eleva
também o custo de vida da população local. Esse aspecto remete ainda aos efeitos causados pelo
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aumento do consumo de outros recursos, tais como água e energia e pela deposição de resíduos
provenientes dos recursos e produtos consumidos. Tais efeitos compreendem desde a poluição de
ambientes até a escassez ou o contingenciamento de recursos, tanto durante as temporadas
turísticas, como fora delas.
O uso do espaço dentro de uma lógica produtiva orientada para a valorização turística de
determinados lugares denota a presença de diferentes sujeitos e de suas respectivas intenções,
sejam elas consensuais ou não; enquanto isso, a característica de valorização amplia as
possibilidades de realização da atividade turística de forma que quaisquer recursos, sejam
naturais ou culturais, se transformem em atrativos dentro de um período histórico específico
(CRUZ, 2001, p.17).
Enquanto prática social, o turismo também abre precedentes para a incorporação
espontânea ou planejada de ordenamentos territoriais. Segundo Rodrigues (1996, p.17), a
atividade pode assumir tanto um caráter artesanal como global, variando conforme o poder de
representação predominante à organização do território. O autor desenvolve sua idéia ressaltando
que através de alguns centros de comando, como por exemplo, grandes empresas de capital
internacional, inúmeras áreas passam a ser valorizadas e destinadas como potenciais atrativos
turísticos.
Diante das primeiras ações de comando, outras ações surgem como reflexos,
representativas de outros comandos, advindas de outros sujeitos. Essa relação produtiva,
localizada no espaço, não se estabelece por uma dinâmica puramente econômica, mas antes, por
uma dinâmica política, que integra os diferentes sujeitos e planos em um mesmo processo social.
A política enquanto recurso pode ser apreendida por qualquer sujeito, variando diante das
circunstâncias e do poder de intervenção que cada um possui. É através da prática política,
inerente “a todo ser que pertence à coletividade” (RAFFESTIN, 1993, p.34), que se estabelecem
as relações de produção do espaço, e que envolvem na constituição do território, os demais
recursos, como os de ordem econômica, por exemplo. Essas relações, por sua vez, são também a
arena de disputas, conflitos e manifestações de poder, e quando se tratam da apropriação ou da
representação do espaço, expressam a “multidimensionalidade” dos sujeitos, incluindo as
dissimetrias sociais, resultantes de processos de dominação e resistência entre eles (RAFFESTIN,
1993, p.53).
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8
O planejamento do turismo figura nesse quadro como um instrumento de ordenamento
territorial que, no plano operacional, se orienta pelo princípio de equacionar diferentes sistemas
de ação que regulamentam o uso turístico do território. A esses diferentes sistemas de ação
correspondem algumas representações que partem, segundo Rodrigues (1996), de condições
fundamentais para a realização do turismo. Seriam elas: “a satisfação das necessidades do
turista, os custos e os benefícios que o turismo traz à população residente e a preservação do
patrimônio cultural e ambiental” (RODRIGUES, 1996, p.26).
Os processos sociais decorrentes da incorporação territorial do turismo são alvos de
muitas críticas, geralmente voltadas contra a natureza da atividade e em muitos casos, deram
forma a relações conflituosas entre turistas e população local, norteadas por concepções de
diferenciação e marginalidade social. Na base dessa relação reside um sentimento de “recusa do
outro”, manifestado por um lado pelas populações locais que não apreendem a passagem do
turista, efêmera e fugidia (KNAFOU, 1996, p.64); e por outro, pelos próprios turistas, que
buscam se apropriar temporariamente de um território, sem reconhecer a identidade cultural que a
população residente construiu em um espaço secundariamente turístico.
Baseado nessa prerrogativa surgem inúmeros casos onde a prática do turismo segrega
espacialmente populações e seus contextos culturais, criando formas territoriais fragmentadas,
alheias à presença dos sujeitos pertencentes ao espaço vivido. E mesmo somando-se a acusação
do turismo como “devorador de recursos e paisagens” (KNAFOU, 1996, p.67), o discurso de
afirmação da atividade vai ganhando forma, especialmente quando se trata de considerá-la como
alternativa de desenvolvimento de determinadas áreas, reguladas por noções conservacionistas.
Mais ainda, quando seriam essas áreas caracterizadas por ecossistemas complexos, as zonas de
maior apelo turístico na atualidade (RODRIGUES, 1996).
A vocação turística como mecanismo de desenvolvimento é uma das razões para a
promoção da atividade no Vale do Ribeira, região que concentra as maiores áreas conservadas de
Mata Atlântica do Estado de São Paulo e onde se localiza o estudo apresentado neste trabalho. As
possibilidades de desenvolvimento do turismo, envolvendo duas comunidades rurais pertencentes
ao município de Eldorado, caracterizam a natureza da atividade aí empreendida, bem como os
sujeitos e as formas de relacionamento mantidas por eles no processo de construção do território.
Em contextos como o do Vale do Ribeira, marcados pela necessidade de desenvolvimento
social aliado às práticas de conservação ambiental, surgem alternativas de gestão voltadas à ação
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local, pensadas na tentativa de conferir um caráter conciliatório e socialmente mais justo ao
território. A ação local subentende uma lógica territorializada, que mantém vínculos identitários
com o lugar, o que reforçaria por sua vez, a manifestação do poder local, mais consistente e
representativo e menos dependente e vulnerável em relação a sujeitos e a ações externas.
Entretanto, a conformação de um poder local não está isenta de distorções; uma vez exercido
pelos homens, o poder compreende a pluralidade de concepções que são construídas
territorialmente a partir de relações produtivas e que são em sua essência contraditórias,
diferenciadas e sobrepostas umas às outras no próprio campo relacional do poder (RAFFESTIN,
1993, p.36).
As relações sociais constitutivas do processo de produção territorial criam, através da
prática do turismo, novas possibilidades de que o território seja representativo em maior ou
menor medida das causas e dos interesses dos sujeitos relacionados, determinando, dessa forma,
o grau de positividade e negatividade com que a atividade é sentida. O mesmo espaço, portanto,
passa a conformar noções de uso e significados diferenciados de apropriação territorial, que
renovam o sistema produtivo local, construído sobre uma base prévia de sociabilidade, que volta
e meia é submetida a intervenções culturais fragmentadas e temporalmente circunscritas, dado o
tempo de uso e permanência dos turistas no lugar (CRUZ, 2001).
Sendo assim, o turismo, instituído como prática ou concebido como atividade potencial de
uso territorial, se transforma também numa possibilidade de intermediação e construção de outros
processos sociais. Com base na reflexão sobre lugares onde o turismo despontou como alternativa
para o desenvolvimento local, buscamos identificar referenciais teóricos e práticos, similares ao
contexto do Vale do Ribeira, que permitam enriquecer essa discussão. A similaridade desses
referenciais reside na relação de apropriação política e cultural das comunidades sobre os
territórios que habitam, visto que suas formas de reprodução social baseiam-se fundamentalmente
na possibilidade de acesso aos recursos naturais existentes nesses territórios.
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10
Capítulo 2: O turismo como proposta para o desenvolvimento local: limites e
potencialidades
A possibilidade do turismo se converter em alternativa para o desenvolvimento de
algumas localidades já supera a idéia de crescimento econômico que reduziu, por muito tempo, a
concepção de desenvolvimento. Hoje, a atividade turística pode ser vista não só como
dinamizadora da economia local, mas como elemento estruturante de uma ordem cultural e
ambientalmente responsável, abrindo caminho para as reflexões sobre a sustentabilidade.
Essa prerrogativa amplia consideravelmente as expectativas quanto ao turismo; os bons
frutos da atividade são proclamados por seus promotores – governos, sociedade civil, iniciativa
privada –, esperados pela população local e desejados pelos turistas. É em torno desses sujeitos
também que a atividade turística se conforma, privilegiando os interesses hora de um, hora de
outro e criando novas territorialidades decorrentes desse processo. O turismo se relaciona com o
lugar e essa condição amplia mais uma vez sua escala de influência, à medida que para se
realizar, envolve elementos das ordens política, cultural, econômica e ambiental do território em
que está instalado. Dessa forma, a proposta de sustentabilidade a partir do turismo está submetida
a essa estrutura integradora que compreende a produção social do espaço.
Com o objetivo de analisar propostas que, partindo do pressuposto de sustentabilidade,
orientaram projetos alternativos de uso e gestão do território, incluindo o turismo como atividade
potencial dentro de seus planos estratégicos, destacamos três estudos de caso representativos do
turismo comunitário no Brasil, quais sejam: Prainha do Canto Verde, em Beberibe – Ceará,
Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e Silves, ambos no Estado do Amazonas. De
forma geral, todos se caracterizam por processos culturais peculiares, cuja base de produção das
populações está centrada nos ajustes ecológicos, tornando necessária a conservação dos recursos
naturais para a manutenção da estrutura social desses grupos.
Os preceitos de conservação ambiental passam também pela gestão dos projetos que
contemplam o desenvolvimento das comunidades, e o turismo aparece como atividade
complementar de geração de renda entre outras finalidades. Esses estudos representam
referências distintas quanto à forma como o turismo usualmente acontece em lugares de
reconhecido potencial natural – através de processos bruscos de urbanização, privatização de
áreas e seleção de paisagens, segregação da população local, danos ambientais e conflitos sócio-
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culturais –, e contém igualmente as possibilidades e os limites de conformarem novas estratégias
ao processo de produção sócio-espacial.
A gestão do território, apropriada como direito e exercício de representatividade política
das populações, imprime um tom diferente aos projetos e pode se aproximar da idéia de
desenvolvimento baseado em preceitos válidos de sustentabilidade. O interesse parte, portanto, da
busca de contribuições que esses projetos podem oferecer a outras populações, em outros
territórios que abrigam contextos sócio-culturais similares, salvaguardadas as especificidades
locais de cada processo.
As especificidades locais por sua vez, se encontram permanentemente em contato com
racionalidades externas e num movimento dialético de apreensão e dispersão compõem novas
territorialidades. Assim, faz-se importante discutir essa tendência à luz do conceito de
desenvolvimento, envolvendo os discursos e as idéias embutidos no conceito de sustentabilidade.
E ainda, identificar como esses exemplos, somados ao estudo empreendido no Vale do Ribeira,
podem subsidiar a discussão do turismo como vetor para o desenvolvimento local.
O primeiro exemplo nos remete à discussão do desenvolvimento do turismo na Prainha do
Canto Verde em Beberibe (CE), a partir da forma como a comunidade local se insere no
planejamento e na gestão da atividade.
As características morfológicas do ambiente que compõe a Prainha estão diretamente
associadas ao modo de produção local; a adaptação das práticas culturais aos sistemas naturais
configura a base da estrutura social da comunidade (MENDONÇA, 2004; SILVA, 2003). No
caso da Prainha do Canto Verde, a divisão das atividades produtivas é espacializada pelo
conjunto terra e mar, a partir do qual se estabelecem as relações sociais, a divisão do trabalho e a
diferenciação sócio-econômica entre os comunitários, esta última tida como baixa devido ao
caráter de solidariedade que permeia a atividade pesqueira (SILVA, 2003). Além da pesca, a
agricultura de subsistência, as atividades artesanais e as demais práticas comunitárias reforçam
essa estrutura social, marcada essencialmente pela relação de dependência quanto aos recursos
naturais, característica que fundamenta a construção da territorialidade local (MENDONÇA,
2004).
No caso da pesca, algumas mudanças relacionadas à forma de manejo foram geradas em
resposta, sobretudo, a determinadas ações externas que trouxeram a necessidade de se reordenar a
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12
atividade e a própria estrutura social dos grupos. Com a construção de um entreposto de venda,
de uma fábrica de gelo e da aquisição de um veículo, os pescadores puderam eliminar
atravessadores que comercializavam o pescado, melhorando o rendimento das famílias
envolvidas com a atividade. Silva (2003) diz que, nesse processo, foi fundamental o apoio do
senhor René Schärer, ex-executivo suíço que se integrou à comunidade em 1991 e se tornou uma
de suas principais lideranças políticas. Por intermédio dele, foi criada a Fundação dos Amigos da
Prainha do Canto Verde, formada por empresários suíços e alemães que, juntamente com a
associação de moradores, propiciou a compra do veículo e a construção do entreposto e da
fábrica de gelo, em 1993. Já em 1996, surge o primeiro regulamento da pesca e em 2001, a
comunidade solicita ao IBAMA a criação de uma reserva extrativista marinha visando o controle
sobre a pesca predatória e a gestão da atividade pesqueira (MENDONÇA, 2004).
Contudo, a organização política constituída na Prainha do Canto Verde está relacionada
ao trajeto histórico da comunidade que ocupa suas terras desde o século XIX. Silva (2003) e
Mendonça (2004) concordam que a população se fortaleceu política e institucionalmente a partir
da ameaça de perda da posse de terra desencadeada por um processo de grilagem que começou
em 1979. Desde então, a comunidade começou a se organizar; inicialmente, junto a um
movimento de direitos humanos da Arquidiocese de Fortaleza e mais tarde, com a participação
do senhor René Schärer. Em abril de 1989 foi constituída a Associação de Moradores da Prainha
do Canto Verde e em dezembro de 1991, iniciou-se o projeto de desenvolvimento comunitário da
Prainha do Canto Verde apoiado pela Fundação dos Amigos da Prainha (MENDONÇA, 2004).
Enquanto aguardava a decisão judicial sobre a posse das terras, a comunidade instituiu o “Direito
de Costume”, um regulamento tácito sobre o uso e a ocupação do território da Prainha (SILVA,
2003, p.57). O documento que cumpre o mesmo propósito aparece no trabalho de Mendonça
(2004) denominado “Regulamento para uso da terra”, criado em 1996 e baseia suas disposições
no objetivo de “organizar a ocupação do espaço e garantir o uso da terra pelos nativos de forma
eqüitativa, sem a inserção de agentes externos, mesmo que a terra ainda não seja de propriedade
da comunidade”1 (MENDONÇA, 2004, p. 101).
A prática política, decorrente da ameaça de expropriação de suas terras, envolveu grande
parte da comunidade que acolheu a luta comunitária como elemento cultural de afirmação
política. Essa característica, segundo Silva (2003), é o que mantém a comunidade unida em torno
1 Nesta citação, Mendonça (2004) se utiliza de documento disponibilizado pela comunidade.
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dos projetos de desenvolvimento que existem na Prainha.
Além das questões produtiva e fundiária, a comunidade passou a empreender ações e
projetos voltados, de forma geral, à melhoria da qualidade de vida local. As primeiras iniciativas
políticas parecem haver ampliado a escala de atuação comunitária para outras áreas, tais como
saúde, educação e infra-estrutura que estão diretamente associadas ao modelo de
desenvolvimento que se deseja realizar no território.
Essa movimentação denota claramente o rearranjo da territorialidade local decorrente do
contato e da relação entre territorialidades distintas no mesmo território. A racionalidade de
mercado, representada pelos empreendedores do processo de grilagem e pelos atravessadores e
pescadores externos à comunidade se impõe sobre a dinâmica cultural da mesma e a faz
responder, por sua vez, através de uma racionalidade local, norteada pelo objetivo de manter a
posse sobre a terra e regular a pesca, porém apoiada em racionalidades externas de organização
social e produtiva representadas pela Arquidiocese de Fortaleza e pela figura do senhor René
Schärer.
Em 1993 iniciam-se as discussões acerca da organização da atividade turística que
chegaria mais cedo ou mais tarde à comunidade, ano em que a mesma recebe pela primeira vez, a
visita informal de “turistas amigos”, apoiadores de projetos desenvolvidos na Prainha
(MENDONÇA, 2004, p. 77). Com base nas referências de outras praias do litoral cearense, a
comunidade adquiriu ciência dos prejuízos e dos benefícios trazidos pela atividade turística
(SILVA, 2003). Através de pesquisas e da organização de grupos de trabalho para discutir o
desenvolvimento do turismo na comunidade, foi criado em 1997 o Conselho de Turismo, cujo
objetivo é “desenvolver o turismo ecológico de forma comunitária para melhorar a renda e o
bem estar dos moradores: preservando nossos valores culturais e os recursos naturais de nossa
região” 2 (MENDONÇA, 2004, p.108).
Já em 1998, junto à Fundação Amigos da Prainha e ao Instituto Terramar, a comunidade
organizou o “Seminário de Eco-turismo Comunitário”, onde foram elaboradas as primeiras
proposições para a fundamentação e a operação do turismo na comunidade. Fruto deste
seminário, foi elaborado o projeto “Turismo Socialmente Responsável da Prainha do Canto
Verde”, proposta base para a estruturação do turismo na comunidade, cuja implementação ficaria
a cargo da Cooperativa de Artesanato e Turismo (COOPECANTUR), organização que
2 Idem 1.
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14
substituiria o Conselho de Turismo na função de operacionalizar a atividade (MENDONÇA,
2004, p. 110; SILVA, 2003, p.64). A escolha pela cooperativa como forma de organização reflete
a preocupação da comunidade em incluir o maior número de moradores na gestão da atividade,
bem como na participação dos rendimentos que ela pode prover. A COOPECANTUR foi criada
em 2001, a partir da estrutura pré-existente do Conselho de Turismo, e combina juridicamente, o
caráter de propriedade privada e de administração coletiva. Para seu melhor funcionamento,
foram criados sete grupos de trabalho de acordo com as categorias de prestação de serviço:
“hospedaria, barraqueiros, cozinheira e merendeiras, guias de turismo e trilhas, excursões e
passeios, artesanato e estagiários” (MENDONÇA, 2004, p.116).
A cooperativa aparece como instrumento de articulação política da comunidade e em
relação à atividade turística, orienta sua gestão, bem como a sua inserção no território. A
cooperativa, por exemplo, a partir das sobras geradas pela prestação de serviços, realiza diversas
ações de contrapartida à comunidade. Existem dois fundos criados com recursos provenientes da
atividade turística; o Fundo Social foi criado durante o seminário realizado em 1998 e
compreende 20% da receita gerada através do turismo, cujo investimento se destina a obras
comunitárias relacionadas a saúde, educação, eventos sociais, infra-estrutura, etc. Já o Fundo de
Reserva compreende 80% da receita e é destinado a ações de melhoria relacionadas ao turismo
como infra-estrutura, capacitação e equipamentos. Essas atitudes conferem por sua vez, maior
unidade e senso de responsabilidade à comunidade a respeito de sua participação na gestão da
atividade e do próprio território.
Percebe-se também que há um consenso comunitário em torno das idéias sobre o tipo de
atividade turística e de turistas que se deseja para a Prainha. Segundo relatório elaborado durante
o seminário, a escolha do tipo de turismo passa fundamentalmente pela escolha da população que
a comunidade espera receber:
“São pessoas que procuram a tranqüilidade e a beleza natural da região, que se
interessam pela cultura e tradição dos Povos do Mar e se engajam na preservação do
meio ambiente. São ecologistas, membros de ONG, estudiosos e estudantes de Geografia
e Turismo, movimentos de direitos humanos e grupos de igrejas. São pessoas que
possam abrir mão de piscinas, butiques e da vida noturna agitada.” 3 (SILVA, 2003,
p.65).
A comunidade trabalha a idéia do turismo sob o caráter comunitário, o que lhe dá maior
autonomia para definir segundo sua própria lógica, a abrangência e a importância da atividade
3 Nesta citação, Silva (2003) se utiliza de documento disponibilizado pela comunidade.
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turística no território. De forma geral, o turismo é considerado como atividade que agrega
melhorias à qualidade de vida local através da geração de trabalho e renda, da possibilidade de
fixação dos jovens na comunidade, do impulso dado à economia local, da capacitação
profissional da comunidade, do aumento da auto-estima da população (SILVA, 2003).
A atividade turística, de acordo com a comunidade, não deve se tornar atividade principal,
a pesca se mantém nessa categoria envolvendo mais de 60% da comunidade e garantindo sua
principal fonte de renda (MENDONÇA, 2004); no entanto, ela pode ser potencializada a partir de
melhorias eleitas pela própria comunidade durante seus processos de avaliação interna. A
comunidade observa que há necessidade de melhor infra-estrutura dos serviços – qualitativa e
quantitativa –, de profissionalização e capacitação dos moradores para os serviços turísticos, de
maior oferta e diferenciação de produtos turísticos, de campanhas de promoção direcionadas a
públicos específicos, de maior estruturação interna da comunidade para a realização de eventos,
de maior ocupação turística durante as temporadas do ano, de políticas públicas direcionadas a
projetos de turismo comunitário, de maior concessão de linhas de crédito, de maior articulação
regional junto a outras comunidades.
Contudo, a população da Prainha tem consciência sobre as formas de se alcançar tais
melhorias; no caso das campanhas de promoção turística, ela considera o risco de aumento
exagerado do fluxo de visitantes. A comunidade tem a intenção de fortalecer sua articulação
política na região para aumentar seu poder de barganha frente a órgãos públicos e a outras
instituições e tem buscado se envolver em encontros, parcerias e convênios com outras
comunidades, ONG e universidades no intuito do efetivar seus projetos. Sua estratégia em relação
ao turismo é dinamizá-lo internamente, respeitando as normas e as regras locais e fortalecer uma
rede de turismo comunitário brasileiro, unindo diferentes comunidades em torno da proposta do
turismo como fonte de trocas culturais, estimulando turistas a conhecer as comunidades e a forma
como vivem, ao mesmo tempo em que contribuem para o desenvolvimento das mesmas (SILVA,
2003).
Devido à capacidade organizativa e à autonomia política desenvolvidas pela comunidade,
o projeto de turismo não sofre influência das políticas públicas voltadas para a atividade que são
implantadas no município de Beberibe. Contudo, a Secretaria Municipal de Turismo demonstrou
interesse em desenvolver projetos em parceria com a comunidade para difundir o modelo de
turismo comunitário pela região (MENDONÇA, 2004).
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Como resultados do projeto “Turismo Socialmente Responsável da Prainha do Canto
Verde”, a comunidade recebeu o prêmio TODO!99 da ONG alemã Studienkreis für Turismus und
Entwicklung durante a Feira Internacional de Turismo em Berlim; o prêmio TOURA D‟OR 2000
pela produção de documentário sobre turismo sustentável; é indicada no guia de turismo The
good alternative travel guide, produzido pela ONG inglesa Tourism Concerns e em novembro de
2003 recebeu menção honrosa do prêmio British Airways Tourism for Tomorrow Awards da
Federação de Operadores Turísticos.
O segundo exemplo trata da organização comunitária dentro do plano de manejo da
Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Mamirauá (RDSM), especialmente quanto à
participação das comunidades no projeto de ecoturismo, uma das atividades produtivas
empreendidas na reserva.
A RDSM está localizada no estado do Amazonas, próxima ao município de Tefé e é
considerada a maior reserva dedicada à proteção da várzea amazônica (PINTO, 2004;
VASCONCELOS, 2007). A origem da reserva se deu a partir do Projeto Mamirauá, elaborado
por cientistas e pesquisadores no final da década de 1980 e que em 1990 consolidou-se na
Estação Ecológica Mamirauá (EEM), unidade de conservação que, por concessão estadual,
passou a ser gerida pela Sociedade Civil Mamirauá (SCM), organização não-governamental
criada em 1991 pelo grupo de pesquisadores na época envolvidos com o projeto. Desde o início
até a fase atual, o projeto passou por algumas transformações que com o passar do tempo
definiram a configuração da reserva, os objetivos e os sujeitos participantes de seu processo de
gestão. Inicialmente pensado como projeto para garantir a reprodução do macaco Uacari Branco,
as pesquisas se iniciaram na área quando ela ainda era considerada estação ecológica. Em 1996, é
instituída a RDSM, em 1997 o plano de manejo da reserva é concluído e em 1999 é criado o
Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM), centro de pesquisas especializado
em áreas de várzeas, cujos objetivos, dentre outros, são "desenvolver e administrar a realização
de projetos que objetivem a conservação e especialmente a preservação de florestas inundadas;
promover o desenvolvimento sustentável da região em articulação com a população local” 4
(PINTO, 2004, p. 84-86; VASCONCELOS, 2007, p.32).
A partir da definição da área como Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS), o
4 Nesta citação, Pinto (2004) e Vasconcelos (2007) se utilizam de documento disponibilizado pelo IDSM.
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plano de manejo começou a ser implementado e ela foi dividida em duas partes: Zona de
Preservação Permanente e Zona de Uso Sustentável. Em 2001, o IDSM assume a administração
da reserva através de um contrato de gestão com o Governo Estadual do Amazonas e no mesmo
ano, a reserva passa a integrar o SNUC, Sistema Nacional de Unidades de Conservação (DIAS,
2005).
A trajetória de constituição da reserva reuniu a participação de diversos sujeitos. Dentre
esses, encontram-se instituições financiadoras internacionais tais como World Wilf Fund for
Nature (WWF), The Wildlife Conservation Society (WCS), Department for International
Development (DFID) e União Européia. Essas instituições, consideradas parceiras do projeto,
foram fundamentais para sua viabilização e são representativas de uma lógica global,
fundamentada nos critérios de conservação da natureza que ultrapassam as fronteiras
administrativas dos países e influenciam localmente a dinâmica territorial (PINTO, 2004). As
instituições públicas nacionais por sua vez, assumiram caráter regula tório sobre o projeto,
fornecendo apoio legal e operacional a sua execução. Dentre essas instituições, estão o Conselho
Nacional de Ciência e Tecnologia (CNPq), o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), o
Ministério das Relações Exteriores, o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (IPAAM), a
Universidade Federal do Estado do Pará (UFPA), o Museu Paraense Emílio Goeldi, o Governo
do Estado do Amazonas e secretarias e órgãos vinculados. Esse quadro de institucional idade é
representativo da manutenção da soberania nacional sobre o território (PINTO, 2004) que
congrega na sua organização, distintas racionalidades e formas de intervenção política.
O conselho administrativo atual do IDSM conta com representantes do MCT, do CNPq,
do IPAAM, da Sociedade Brasileira para o Progresso de Ciência (SBPC-AM), da Academia
Brasileira de Ciências, representantes dos funcionários da RDSM e representantes das
comunidades, um para cada uma delas. Na atual fase de gestão, o IDSM renovou seu contrato
junto ao Governo Estadual do Amazonas e ao IPAAM para dar continuidade ao projeto até 2009.
O projeto também conta com verba vinda do Governo Federal e de instituições da iniciativa
privada (DIAS, 2005).
A área de reserva, formada por florestas alagadas, abrange o constante movimento de
cheias e secas que determina a dinâmica social das comunidades ribeirinhas a partir
fundamentalmente do processo de mobilidade espacial em busca de habitação e áreas produtivas.
Dias (2005) diz que a partir da década de 1960 alguns fatores de incentivo ao aumento da pesca
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deram origem à exploração intensa da atividade na Amazônia e os lagos de várzea se tornaram
alvo de pescadores comerciais. Esse fato, aliado à urbanização que se intensificou também nesse
período, causou grande aumento da demanda por peixes.
Os conflitos gerados por sua vez, produziram uma articulação entre as comunidades que
juntamente com a Comissão Pastoral da Terra de Tefé, começaram a discutir formas de
intervenção territorial para conter a pesca predatória. A partir daí, surge a proposta de regulação
de dois lagos, um destinado à preservação das espécies e outro à pesca de subsistência. Contudo,
Dias (2005) descreve que a falta de unidade comunitária e a própria necessidade de subsistência
dos grupos comprometeram a proposta. Paralelo a isso, a falta de apoio e regulamentação do
IBAMA abriu precedentes para a continuidade da pesca comercial. Diante da ausência
governamental frente à questão, as comunidades decidiram por sua conta, fechar os lagos para
uso próprio.
A prévia organização da comunidade para a defesa da causa dos lagos foi uma boa
oportunidade para que a SCM iniciasse suas pesquisas quando a área ainda era considerada
estação ecológica. As discussões sobre o ordenamento do território e o uso de áreas destinadas
para a preservação eram as mais urgentes para as comunidades, visto que sob a forma de estação,
o território seria dividido em duas porções: 90% destinados à preservação e os 10% restantes,
destinados a pesquisas. Essa determinação posta em prática excluiria as comunidades da área;
dessa forma, os gestores da antiga estação se empenharam para que as alterações na legislação
incluíssem o modelo segundo o qual a reserva se constituiu em 1996.
Entretanto, a estrutura social das comunidades não garantiu adesão às propostas da reserva
sem resistências. Dias (2005) conta que mesmo os processos de articulação política das
comunidades não desfizeram um modelo organizacional em que sujeitos hegemônicos locais –
patrões e comerciantes – se sobrepunham às comunidades através da manobra de ações de
poderes públicos e privados. Esse fato, no entanto, é visto como uma prática política da própria
região, marcada por relações de “clientelismo” (DIAS, 2005, p.17) que influenciam o contexto
social e produtivo regional. No caso da instalação da reserva, esses grupos hegemônicos locais,
cujos interesses seriam os mais comprometidos pelos planos de manejo – exploração
indiscriminada de recursos como peixe e madeira – formaram maior resistência ao projeto,
coibindo as comunidades de aderirem à causa através de ameaças.
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Segundo Dias (2005), a dificuldade do instituto em sensibilizar as comunidades decorria
da falta de envolvimento das mesmas com um projeto elaborado externamente, não atrelado
propriamente as suas demandas locais. Isso, aliado à estrutura socialmente dispersa, constituída
com base no conflito de interesses entre as comunidades e em relações de parentesco e
clientelismo, determinou em parte a dificuldade de participação e identificação das comunidades
com os projetos da reserva.
A estrutura espacial do território que compõe a reserva abriga diferentes discursos e
ordens que não estão necessariamente relacionados a uma lógica definida, onde as ações locais
comportam o caráter de sustentabilidade e as ações externas, o caráter de exploração sócio-
ambiental. Pode-se observar que há não só uma inversão das ordens, mas uma troca que produz
um território difuso, apropriado por inúmeros sujeitos. Os grupos comerciais de madeireiros e
pescadores, por exemplo, instituem uma ordem divergente, se apropriando dos recursos naturais
segundo a demanda de mercado que não contempla a manutenção dos processos ecológicos da
reserva. Contudo, esses grupos fazem parte da sociedade local, pelo relacionamento que
estabelecem com as comunidades e pela proximidade que mantêm com a área.
O IDSM por sua vez, representa uma lógica igualmente externa, voltada à conservação
dos recursos naturais e à manutenção das formas de reprodução social das comunidades. Para
isso, utiliza técnicas e informações diferentes das locais, mas busca potencializar a dinâmica
social local, baseada nos conhecimentos e no sistema produtivo das comunidades. O IDSM ainda
representa a instituição de outras ordens, as advindas dos financiadores, dos governos, da
iniciativa privada, de cientistas e pesquisadores que impõem sua racionalidade através do
processo de configuração territorial.
A atividade turística faz parte desse contexto flutuante de interesses manifestos por cada
grupo social envolvido. Ela está inserida dentro do Programa de Manejo Sustentável da RDSM
como atividade econômica complementar às atividades tradicionais das comunidades, a
agricultura, a pesca e a extração madeireira.
Para todas essas atividades, o IDSM desenvolve junto à comunidade, planos de manejo
sustentável e o turismo como tal, foi instituído sob a forma de “ecoturismo” (DIAS, 2005, p.69).
Vasconcelos (2007) diz que o plano de manejo da reserva impõe restrições quanto ao uso dos
recursos naturais, todavia, esse plano é condizente com o modo de uso tradicional dos recursos e
é estabelecido junto às comunidades habitantes da reserva. O turismo e o artesanato são exemplos
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de atividades propostas como alternativas econômicas compensatórias às restrições impostas pelo
plano de manejo.
O turismo é realizado em uma área especificamente determinada para sua prática,
denominada Zona de Manejo Especial de Ecoturismo, onde está localizada a Pousada Uacari. As
comunidades que participam do projeto de ecoturismo da reserva estão próximas à zona de
manejo e se organizam através da Associação de Guias e Auxiliares de Ecoturismo
(AAGEMAN) para exercerem quaisquer funções em relação à atividade, seja quanto à prestação
de serviços (condução, recepção, venda e atendimento aos turistas), seja quanto à participação
nas decisões sobre o gerenciamento da pousada (PERALTA, 2007, p.3).
A renda gerada através do ecoturismo é dividida entre as comunidades envolvidas na
atividade; elas recebem 50% do total e os outros 50% restantes são destinados ao “sistema de
fiscalização da atividade”. Dias (2005) não trata da formação desse sistema, mas o processo de
divisão sugere que nesse sistema, chamado Setor Mamirauá, não há participação das
comunidades. Peralta (2007, p.4) por sua vez, diz que para se ter acesso aos recursos desse
sistema, as comunidades devem elaborar projetos e submetê-los à aprovação de uma comissão
comunitária.
A geração de renda através do turismo motivou, logo no primeiro ano de repasse, um
processo de organização comunitária referente ao destino dos recursos. As comunidades
envolvidas elaboraram “normas de conduta” para distribuir os recursos recebidos de acordo com
a avaliação e a atuação de cada uma. Essas normas incluem diretrizes de gestão da atividade
turística como maior envolvimento da comunidade em relação ao turismo, participação das
comunidades nos trabalhos de fiscalização ambiental, qualificação no atendimento ao turista,
proibição para receber turistas clandestinos, obediência às normas de uso e ocupação da reserva,
entre outros (DIAS, 2005).
Os recursos recebidos por cada comunidade, de acordo com os dados apresentados por
Dias (2005), foram aplicados em infra-estrutura para as atividades sociais e produtivas de cada
comunidade.
E no caso de algumas comunidades, a renda gerada pelo turismo superou a renda gerada
pelas atividades tradicionais como pesca, agricultura e extração madeireira, direcionando o
turismo como principal atividade produtiva comunitária em termos de ocupação e rendimento,
mesmo que essa não fosse a proposta inicial quando da implantação do projeto de ecoturismo na
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reserva (PERALTA, 2007, p.5).
A autora sugere os riscos de algumas comunidades priorizarem o turismo como atividade
produtiva em detrimento de suas práticas tradicionais. Esses riscos estão relacionados à forma de
ocupação da terra, mantida tradicionalmente através da agricultura, ou à dependência constituída
em relação à atividade turística. De qualquer forma, o turismo é considerado como atividade
produtiva potencial para as comunidades da reserva, visto que associada a outras atividades como
o artesanato – para venda aos turistas –, a pesca e a própria agricultura – para abastecimento da
pousada –, tem gerado expressivos aumentos da renda local (PERALTA, 2007, p.7-8).
A prática do ecoturismo na RDSM parece reproduzir a configuração político-institucional
presente na reserva mediante o uso do território. Nota-se que as comunidades, ainda que
beneficiadas pela geração de renda e pela articulação política, têm a ação e a participação restritas
ao uso que lhe é determinado pela gestão do projeto. As normas de conduta são um exemplo
disso, visto que sua escala de ação não ultrapassa ou contraria os limites de uso instituídos pela
reserva. A divisão da renda gerada pela atividade demonstra que há um controle administrativo e
financeiro do turismo, como no caso da destinação dos 50% do lucro ao Setor Mamirauá e da
forma de organização da pousada, em que a comunidade aparece como prestadora de serviços.
O contexto de produção da atividade turística e de estruturação da própria reserva
apresenta um rearranjo institucional diferenciado, onde as funções de gestão do território são
compartilhadas de diferentes formas; através da regulação das instituições públicas, do
financiamento de instituições internacionais e da execução de ações por uma organização não
governamental criada para tanto. As comunidades habitantes da reserva são componentes desse
projeto e sua participação na gestão territorial é um dos critérios considerados para dimensionar a
sustentabilidade do empreendimento.
A ação local, no caso da RDSM, é composta pela união de todas essas lógicas que
refletem uma territorialidade dúbia, onde a política comunitária, a dinâmica cultural, os
conhecimentos e as formas sociais de produção das comunidades são incorporados por um
sistema de normalização hegemônico, afinado aos preceitos da conservação ambiental, de
controle e uso do território. Uma territorialidade que enquadra a dinâmica comunitária dentro de
certos limites; sua garantia de permanência está condicionada às formas de uso territorial
empreendidas na reserva.
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O terceiro exemplo aqui destacado refere-se à organização do turismo comunitário no
município de Silves (AM), a partir da análise da atividade realizada por ribeirinhos na pousada
Aldeia dos Lagos.
Silves está sediado na região nordeste do estado do Amazonas, distante cerca de 300 km
de Manaus. Comporta população de aproximadamente 8.000 habitantes e caracteriza-se por ser
um município predominantemente rural, com a maior parte da população concentrada nessa área,
e pela dependência econômico-administrativa em relação à capital estadual (FARIA, 2005;
PINTO, 2004). Silves é uma ilha fluvial, cercada pelas águas do rio Urubu e do lago Sacará. O
rio Urubu dá origem a um dos maiores lagos da região, o lago do Canaçarí. Esse lago, pelo
regime de cheia e seca que sofre anualmente, tem importância estratégica para a reprodução de
variadas espécies de peixes e constitui-se na principal fonte de recursos para as comunidades
ribeirinhas localizadas na região (PINTO, 2004).
A pesca por sua vez, também é considerada a principal atividade produtiva das
comunidades ribeirinhas de Silves. Foi em torno da necessidade de conservação dos recursos
pesqueiros que as comunidades da região se uniram, originando um movimento de defesa dos
lagos contra a pesca predatória (FARIA, 2005; PINTO, 2004; SANSOLO, 2003). Esse
movimento iniciou-se na década de 1970, quando houve aumento da demanda por pescados para
abastecimento dos principais municípios da região, que na época passavam por intenso processo
de urbanização. A prática comercial da pesca, feita com base em instrumentos que permitem a
captura de grande quantidade de espécies, comprometia diretamente a pesca artesanal realizada
pelas comunidades ribeirinhas.
Nessa mesma época, a Igreja Católica atuava na formação das chamadas Comunidades
Eclesiais de Base (CEB), com o objetivo de fortalecer a população rural frente aos impactos das
migrações impulsionadas pelo processo de urbanização regional. Essa iniciativa tinha como
propósito promover condições para a permanência dessa população na área rural através da
reorganização dos assentamentos existentes. Com base no trabalho de estruturação social e
política da população rural, conformou-se o conceito de comunidade na região, constituído em
torno de características como convivência, solidariedade, parentesco e posse coletiva da terra
(PINTO, 2004).
Dotadas de certa capacidade político-organizativa, as comunidades ribeirinhas uniram-se
a partir da década de 1980 para combater a pesca comercial predatória nos lagos da região.
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Apoiados em um decreto estadual que proibia a pesca comercial nos rios da região,
representantes das comunidades de Silves e do município vizinho de Itapiranga decidiram criar
um sistema de fiscalização e controle da pesca nos lagos, entre outras iniciativas. Esse
movimento, apoiado pela Igreja Católica e pela Associação dos Trabalhadores Rurais de Silves
originou em 1993, a ASPAC, Associação Comunitária pela Preservação do Meio Ambiente de
Silves (PINTO, 2004).
Desde sua legalização, a ASPAC vem consolidando ações em prol da conservação dos
recursos naturais da região. Dentre essas ações, destaca-se a aprovação de uma lei municipal que
regulamenta a atividade pesqueira de acordo com a função e a importância dos lagos para a
conservação ambiental e a manutenção das atividades comunitárias. Dessa forma, foram
definidas três categorias de uso para os lagos da região; os lagos de procriação, cuja proteção é
integral e não se admite nenhum tipo de pesca; os lagos de manutenção, onde somente a pesca
artesanal de subsistência é permitida, e os lagos de exploração pesqueira, onde a pesca comercial
também é permitida, respeitando-se os limites impostos por lei (FARIA, 2005, p. 70; PINTO,
2004, p. 131; SANSOLO, 2003, p. 45).
A mobilização em torno da fiscalização sobre a conservação dos recursos pesqueiros da
região envolveu outros participantes além da própria ASPAC, como a Associação Profissional
dos Pescadores do Município de Silves, a Associação Vida Verde da Amazônia (AVIVE), a
Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais
Renováveis (IBAMA) e a Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Silves (PINTO, 2004, p.
131).
Nesse contexto, o turismo figura como atividade econômica também relacionada à
conservação ambiental dos recursos naturais e ao fortalecimento comunitário dos ribeirinhos. A
construção da pousada Aldeia dos Lagos, por iniciativa da ASPAC, teve como objetivo promover
fonte alternativa de renda para as comunidades através do “ecoturismo“, aproveitando-se o
incipiente potencial já identificado durante visitas realizadas às comunidades, relacionadas à
causa da conservação dos lagos (PINTO, 2004).
A pousada foi construída com financiamento da organização WWF – Brasil, Fundo
Mundial da Natureza, viabilizado através da apresentação de projeto elaborado por um
pesquisador da CPT. As obras tiveram início em 1994 e as primeiras operações da pousada foram
realizadas em 1996 com a visita de turistas italianos. No mesmo ano, a ASPAC recebeu apoio da
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WWF – Brasil para o desenvolvimento do Programa de Ecoturismo (PEC), cuja finalidade era
capacitar as comunidades em técnicas de manejo do ecoturismo relacionadas à educação e à
conservação ambiental (PINTO, 2004).
A partir daí, a ASPAC continuou a realizar parcerias com outras instituições voltadas ao
financiamento, à capacitação técnica e à estruturação do turismo comunitário. No ano de 2000,
foi criada a Cooperativa de Trabalho em Turismo da Amazônia (COOPTUR), que juntamente
com a ASPAC, é responsável pela organização dos roteiros turísticos e pela administração da
pousada.
A pousada é de pequeno porte, composta por 12 quartos, além de cozinha, restaurante e
loja. Essa característica delimita a quantidade e a qualidade da visitação na pousada; o turismo
praticado é considerado ecoturismo de base comunitária (PINTO, 2004, p.141) e tem como
fundamento a participação comunitária na definição de todo o processo de operação turística, da
gestão à prestação de serviços.
Quanto à legitimidade da participação comunitária no processo de constituição do turismo
local, Pinto (2004) e Sansolo (2003) atestam que a estruturação da atividade foi iniciativa das
próprias comunidades, que vislumbraram a possibilidade de se consolidar uma alternativa
econômica para a população afinada aos preceitos de conservação ambiental já adotados. A
iniciativa comunitária deu origem às negociações que viabilizaram o próprio empreendimento;
além do financiamento via projeto concedido pela WWF – Brasil, as comunidades conseguiram
junto ao Governo Municipal, a concessão do terreno e a viabilização do acesso para a construção
da pousada, realizada em regime de mutirão pelos comunitários (PINTO, 2004).
A participação das comunidades na prestação dos serviços turísticos é definida segundo as
“aptidões” (PINTO, 2004, p.143) de cada uma que variam entre atividades de hospedagem,
alimentação, condução dos passeios, pesca, entre outras que compõem os roteiros turísticos
elaborados. Sobre a renda obtida através do turismo, 20% é destinado a um fundo para a
conservação e 10% a um fundo de reposição e expansão comunitária da atividade (PINTO,
2004).
Destaca-se também a natureza do turismo empreendido pelas comunidades, baseada na
valorização da cultura ribeirinha, de caráter extrativista e condicionada à dinâmica ambiental
local. Essa característica determina a concepção dos roteiros turísticos, voltados à promoção do
contato entre comunitários e visitantes e à disseminação dessa cultura em sua essência, sem os
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tradicionais artifícios de representação turística.
Ao invés de atrativo turístico, a cultura local conforma-se como canal de afirmação de um
modelo específico de reprodução social. Através dos valores e conceitos construídos dentro dessa
cultura, realiza-se também a intermediação e a negociação sobre a gestão do território. As
comunidades vêm consolidando, através de projetos e ações, a racionalidade local, já composta
por referências técnicas e instrumentais advindas da troca com os diferentes sujeitos partícipes do
processo de gestão territorial.
O modelo comunitário resiste delineando um processo de desenvolvimento que incorpora
ordens externas em favor da manutenção de formas históricas de uso e ocupação territorial. Essas
formas também se atualizam, mas mantêm essencialmente as funções e as características
inerentes à reprodução da cultura ribeirinha, associada ao meio rural e à conservação dos recursos
naturais. O turismo comunitário é representativo do processo de evolução da ordem local;
instituída por escolha das comunidades, a atividade apresenta-se como alternativa econômica e de
agregação de valor às práticas locais, realçadas sob a perspectiva cultural de uma população em
relação às outras.
Possibilidades conceituais acerca de desenvolvimento
Tomando esses três exemplos como referência, buscamos compreender em que medida os
processos de territorialização vivenciados por cada comunidade se traduzem em processos de
desenvolvimento, onde as noções comunitárias de uso territorial são legitimadas e as condições
de reprodução social das comunidades locais são respeitadas.
A concepção do desenvolvimento pautada no crescimento econômico e representada por
índices como Produto Interno Bruto (PIB) e Renda Per Capita tornou-se restrita e ineficiente
para justificar um conceito que, com o passar do tempo e das conquistas sociais, ganhou
abrangência quanto ao seu significado. Comparando-se a evolução dos indicadores sociais que
servem justamente como instrumentos para mensurar o nível de desenvolvimento em que uma
sociedade ou população se encontra, pode-se observar a evolução do conceito de
desenvolvimento que, baseado no desempenho econômico em décadas anteriores, hoje é
concebido segundo uma ótica social que vai desde a satisfação das necessidades básicas do
indivíduo até as necessidades subjetivas do ser humano.
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Segundo JANUZZI, P. M. et al (2002, p.40-41), até meados da década de 1950, o
conceito de desenvolvimento esteve atrelado ao de nível de vida, representado pelo nível de
consumo, baseado na idéia de ter; nos anos 1960, esse conceito passa de nível de vida a estado de
bem-estar e mantém a noção de desenvolvimento associada à capacidade de consumo dos
indivíduos, mas agora representada não só pelo acesso aos bens de consumo, como também aos
serviços, e expressa por números referentes ao grau de escolaridade, nutrição, saúde e emprego. É
na década de 1970 que o redirecionamento das análises e dos estudos é mais fortemente sentido e
a concepção de desenvolvimento passa a ser medida também pela incorporação dos aspectos
sociais aos econômicos, incluindo uma abordagem mais subjetiva sobre os tradicionais
indicadores quantitativos. Já na década de 1970, a questão ambiental entra nessa discussão e a
noção de desenvolvimento é influenciada pelas concepções de ecodesenvolvimento e
sustentabilidade, tomando-se a relação entre produção e uso dos recursos naturais.
A partir daí, o conceito de desenvolvimento passa a ser pensado de forma integradora,
contemplando aspectos econômicos, sociais e ambientais. Como expressão desse pensamento, a
Organização das Nações Unidas (ONU) cria, no início da década de 1990, o Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH). Este seria o parâmetro para medir o desenvolvimento a partir
de três indicadores: expectativa de vida, taxa de analfabetismo e nível de renda, que
representariam a saúde, o conhecimento, e o acesso a bens materiais, elementos fundamentais
para a conquista da qualidade de vida (JANUZZI, P. M. et al, 2002, p.41).
A despeito do processo de evolução do conceito de desenvolvimento, Oliveira (2002) fala
da criação do IDH ser uma tentativa da ONU em recuperar o significado do termo de
desenvolvimento, admitindo que “[...] a disputa do campo semântico apresenta-se como uma
arena política da hegemonia ideológica que não se pode desconhecer” (OLIVEIRA, 2002, p.11).
Acerca das diferentes abordagens em que o desenvolvimento é trabalhado, há uma idéia
generalizada embutida em todas elas que o caracteriza como um processo de transformação e
mudança dotado, via de regra, de um caráter de positividade. O desenvolvimento seria assim
sempre pensado sob a égide do progresso e como um caminho para superar a estagnação e o
atraso de uma sociedade em movimento (OTH, 1997, p.88). Dessa forma, concebe-se o
desenvolvimento como isento de responsabilidades sobre efeitos e conseqüências que por vezes,
agravam um quadro social ou que ainda, possam gerar uma crise.
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“Não se imagina um único instante que o que vai mal hoje é efeito de um modo de
desenvolvimento determinado. Não se pode representar o desenvolvimento como a
destruição de fontes naturais, o empobrecimento, o desemprego, o subemprego, o
fechamento de fábricas. Entretanto, todos esses fatos fazem parte do processo de
desenvolvimento” (OTH, 1997, p.88).
Na contramão desse consenso em que o desenvolvimento seria necessariamente um
processo gerador de efeitos positivos, a proposta de desenvolvimento sustentável surge como
alternativa a um modelo que entre outras conseqüências geradas, conformou uma crise ambiental
mundial.
Após um longo período em que o processo desenvolvimentista se norteou pelos rumos do
crescimento econômico, potencializando as distâncias sociais e destruindo culturas de
subsistência e processos de manutenção dos sistemas naturais (SHIVA, 1989), estas mesmas
culturas de subsistência que viviam da reprodução da natureza com técnicas que respeitavam um
relativo ajuste ecológico, foram utilizadas para se pensar um novo modelo de desenvolvimento –
desenvolvimento sustentável – que aparece na década de 1970, ainda como ecodesenvolvimento,
proposto como um modelo de crescimento que leva em conta os limites do meio ambiente, a
diminuição da pobreza e da desigualdade social e a provisão de melhores condições de vida para
a população, agora em escala global.
Essa proposta foi formalizada com a publicação do Relatório Nosso Futuro Comum,
elaborado pela Comissão Mundial de Meio Ambiente e Desenvolvimento em 1987. Com base na
proposta, a ONU solicitou à comissão a elaboração de uma série de medidas relacionadas à
efetivação do conceito dentro de planos e critérios da política internacional. Essas medidas
atrelavam o conceito a um modelo de desenvolvimento que preconiza o crescimento econômico
como indutor da sustentabilidade sócio-ambiental a partir da disseminação de tecnologias e
informações adequadas (LUCHIARI & SERRANO, 1993, p.23).
No entanto, algumas críticas apontaram que o conceito de desenvolvimento sustentável,
estruturado na lógica do crescimento econômico, inclusive como uma necessidade para se prover
os recursos que sanariam ou minorariam a crise ambiental em curso, legitimava a continuidade do
processo de produção de mercado baseado no lucro e na acumulação de capital. O mesmo
processo que por sua vez, dá também continuidade à exploração dos recursos naturais e ao
agravamento da pobreza e da desigualdade social (SHIVA, 1989).
O discurso da sustentabilidade sugere, portanto, que o crescimento econômico continua
sendo a chave para a solução dos problemas sociais e ambientais. Segundo Frey (2001, p.117), o
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próprio Relatório Nosso Futuro Comum apresenta a pobreza como causa da degradação
ambiental, relevando a importância dos processos desenvolvimentistas de alto consumo dos
países industrializados, e conclui que o crescimento econômico poderia então reverter esse ciclo.
Sob este ponto de vista, o desenvolvimento sustentável desqualifica as culturas de
subsistência (SHIVA, 1989), a “[...] possibilidade de uma vida sustentável em condições de
pobreza [..]” (FREY, 2001, p.117) e coloca o crescimento econômico como determinante para o
desenvolvimento humano (GUIMARÃES, 1997).
A discussão sobre o conceito é reforçada durante a Conferência das Nações Unidas para
o Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD 92), mais conhecida como Rio 92 ou Eco 92, a
partir de outras perspectivas, tais como as das organizações da sociedade civil. Essas
organizações redefinem a questão com base no questionamento sobre o próprio modelo de
desenvolvimento, propondo alternativas de produção, de cooperação internacional e de
relacionamento político entre governos e sociedade, norteadas pela retomada da ética nas relações
humanas (LUCHIARI & SERRANO, 1993).
Guimarães (1997), por sua vez, analisa o desenvolvimento sustentável como um discurso
que acomoda os ânimos diante da crise e da necessidade de uma mudança estrutural quanto às
formas de organização social. Nesse caminho, ele desvenda as contradições inerentes a esse
processo e demonstra que a sustentabilidade propagada inclusive pelas instituições de referência
como a ONU fica no plano da retórica, à medida que tais instituições se orientam prioritariamente
pelas regras do sistema econômico e financeiro mundial e validam ações diretamente nocivas ao
meio ambiente e à sociedade.
Essa discussão nos interessa particularmente considerando o contexto dos exemplos
apresentados, bem como o contexto do Vale do Ribeira, região do estudo em questão. A
combinação dos termos desenvolvimento e sustentabilidade está presente na definição dos
modelos e das propostas apresentadas em todas as situações, não só como conceitos explicativos,
mas como parâmetros das ações dos sujeitos envolvidos. Igualmente, em todas as situações, pela
relação de dependência produtiva das comunidades locais com o ambiente, os processos de
desenvolvimento passam necessariamente pelas condições de provisão de recursos naturais. Em
especial, no caso do Vale do Ribeira, as considerações de que existe um conflito entre
desenvolvimento e conservação ambiental da região, remetem à discussão sobre o caráter do
desenvolvimento, da sustentabilidade desse processo e de sua abrangência social, considerando-
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se os diversos grupos e interesses aí existentes.
Sem se perder nas limitações da proposta de desenvolvimento sustentável, tanto Frey
(2001), como Guimarães (1997) procuram fazer propostas de adequação dos termos de
sustentabilidade a políticas efetivas. Frey (2001) fala das formas de reação de grupos organizados
da sociedade frente a processos de destruição ambiental sentidos muito de perto. Essa ação, de
caráter fortemente civil, deu origem, muitas vezes, a planos e medidas voltados à questão
ambiental. A participação social, no entanto, não poderia segundo o autor, estar alijada da
participação do Estado como ator fundamental na promoção de políticas de desenvolvimento
sustentável, mesmo porque os processos de desenvolvimento compreendem dimensões maiores
quanto ao cenário político e econômico mundial que caberia somente a um Estado forte e ativo
colocar-se como interlocutor (FREY, 2001, p.141).
Guimarães (1997) recupera essas mesmas noções a partir da proposição da
sustentabilidade política. Esta se constitui em um processo que favorece a construção da
cidadania através da participação dos indivíduos nos projetos de desenvolvimento, da
democratização do Estado e de sua abertura ao controle cidadão, bem como de seu fortalecimento
como “[...] ator privilegiado para ordenar a luta de interesses, orientar o processo de
desenvolvimento e forjar um pacto social que ofereça alternativas de solução à crise de
sustentabilidade” (GUIMARÃES, 1997, p.39).
Na mesma direção do desenvolvimento sustentável, o desenvolvimento local é retomado
como resposta a um processo de profundas mudanças do sistema produtivo que se caracterizou,
entre outras coisas, pela reestruturação capitalista com a liberalização de fluxos e bens de capitais
e pela crise dos estados nacionais com a diminuição de sua participação na economia (JANUZZI,
P. M. et al, 2002, p.47).
Na prática, esse processo de mudança é descrito por fatos como a retração das políticas
sociais e desenvolvimentistas, a desvalorização das atividades industriais tradicionais, o aumento
da concorrência, do desemprego e das desigualdades sociais nos níveis regional e internacional.
Dessa forma, o desenvolvimento local ganha corpo ao se configurar como proposta que substitui
os modelos vindos de cima para baixo desde o Estado e fortalece aspectos próprios, baseados na
singularidade local para construir políticas de desenvolvimento (JANUZZI, P. M. et al, 2002,
p.48).
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Ainda que o desenvolvimento local esteja baseado em princípios como a promoção dos
sujeitos locais, a utilização de recursos próprios, a valorização da identidade local e a execução
de políticas voltadas às necessidades das comunidades locais, o nível local não pode se
desvincular dos demais – regional, nacional ou global – porque não está isolado no plano das
ações e intervenções. Dessa forma, os projetos dos quais uma comunidade, por exemplo, faz
parte, estão condicionados também a outros níveis de decisão em que a dimensão local é apenas
parte do processo no qual procura se afirmar (OTH, 1997).
“Num contexto em que as empresas, organizadas em redes, procuram localizações que
combinem vantagens comparativas e capacidades de inovação e organização dos meios
territoriais, o local está, portanto, longe de ser oposto ao global. Ao contrário, ele
constitui a “armadura social” e espacial de base. Desta concepção, resulta não mais
uma distribuição bipolar e linear do espaço, mas uma multiterritorialidade com
contornos variados, constituídos ao mesmo tempo por novas formas de concentração e
desconcentração” (OTH, 1997, p.96).
Para não restringir o conceito de desenvolvimento local a simples representação ou a um
“[...] conceito „fluido‟, fonte de incertezas práticas e teóricas [...]” (OTH, 1997, p.86), Oliveira
(2002) propõe uma discussão em que o desenvolvimento local, para não se conformar na
reprodução de uma forma estrutural, pode constituir-se em alternativa, baseada na dimensão da
cidadania. Esta por sua vez, deve se expressar pela ação do “[...] indivíduo autônomo, crítico e
reflexivo [...]” (OLIVEIRA, 2002, p.12), que possa atuar efetivamente na reforma do aparelho
administrativo do Estado e juntamente com ele, constituir um governo local que direcione as
políticas necessárias à obtenção do bem-estar social e da qualidade de vida.
Nesse sentido, o autor apresenta a luta pela cidadania como a forma contemporânea de
luta de classes, onde os direitos à fala e à política são instrumentos de transformação e resistência
a um modelo dominante de desenvolvimento que é concentrador e antidemocrático (OLIVEIRA,
2002, p.18). No entanto, Oliveira (2002) alerta que o desenvolvimento local sem o rompimento
com o processo dominante, agindo a partir de negociações pacificadoras e da inexistência do
conflito, pode substituir a cidadania e dar continuidade ao processo dominante, apenas sobre
outra configuração, o que seria uma forma de postergar o problema e não de combatê-lo.
Os exemplos aqui tratados – Prainha do Canto Verde, Reserva Mamirauá e Silves –
revelam a importância da escala local para a caracterização dos processos de desenvolvimento
relacionados a cada comunidade. Esses processos são resultados da mediação entre diferentes
ordens culturais que se relacionam historicamente por meio dos objetos e ações, normatizando o
espaço e, na escala local, conformando o território. A partir desta concepção de território, o
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conceito de desenvolvimento é apreendido, bem como outros discursos e idéias que estão nele
contidos, como no caso da sustentabilidade.
O turismo, bem como outras atividades produtivas, se realiza sobretudo na escala do
território e mesmo que sua ordem de comando tenha origem em uma escala diferente, é no
território que as relações entre as possíveis ordens culturais e de comando se formalizam e dão
seguimento à produção do espaço.
Santos (2004), ao descrever a trajetória e a natureza das ações na produção do espaço
mundializado diz:
“Ao mesmo tempo, a possibilidade atual de mundialização de um grande número de
ações, acarreta, para muitos lugares, o problema da superposição neles, de ações com
escalas diversas, portadoras de contextos com diversa abrangência geográfica e força
ativa (ou reativa) diversa” (SANTOS, 2004, p.225).
Entende-se, portanto, que são as ações em relação dialética com os objetos, que produzem
uma territorialidade carregada de formas e conteúdos específicos, expressos espacialmente por
meio do processo de produção social. Santos (2004) chama a atenção para o fato de que na
atualidade as ações assumem uma racionalidade instrumental, que intermediada pela técnica, se
sobrepõe à noção simbólica, relativa aos valores culturais e se difunde mundialmente como
norma social. Contudo, o autor abre espaço para a atuação da escala local, onde:
“Velhos objetos e ações menos informadas e menos racionais constroem paralelamente
um tecido em que a vida, inspirada em relações mais diretas e mais freqüentes e menos
pragmáticas, pode ser vivida na emoção e o intercâmbio entre os homens é criador de
cultura e de recursos econômicos” (SANTOS, 2004, p.232).
No caso da Prainha do Canto Verde, da Reserva Mamirauá e de Silves, o turismo não foi
fator estruturante da configuração territorial local, mas, por estar presente em todos, serve como
representação do processo social de produção de cada um. As comunidades tanto da Prainha,
quanto da Reserva e de Silves, têm em comum o fato de vincularem suas práticas culturais às
regulações naturais dos territórios que habitam. Dessa forma, o acesso ao uso e à ocupação
territorial é um fator fundamental para a sobrevivência e a reprodução de seus processos sociais
internos. A ameaça a esta condição – pelo processo de grilagem de terras na Prainha ou de
concorrência sobre a pesca na Reserva e em Silves – por ordens externas e contrárias à
racionalidade comunitária local, desencadeou reações das comunidades que foram determinantes
para a formação dos territórios e para a continuidade dos processos sociais de produção de cada
uma delas.
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Fundamentalmente nesse aspecto, reside a diferença entre a ordem local de cada
comunidade. No caso da Prainha do Canto Verde, a comunidade se articulou politicamente em
torno da luta pelo direito a terra e essa articulação resultou num processo mais abrangente de
gestão territorial, norteada pelos valores comunitários de uso e ocupação do espaço. No caso da
Reserva Mamirauá, as comunidades se desestruturaram frente às inúmeras intervenções sobre o
território, dividindo-se social e espacialmente em grupos com interesses diversos e sem unidade
para se apropriarem culturalmente do território. A falta de afirmação política comunitária abriu
espaço para a incorporação do território sob a lógica da institucionalidade conservacionista que
têm as comunidades locais como apoiadoras da proposta. No caso de Silves, a ameaça à
manutenção da pesca comunitária estimulou a organização política das comunidades em torno de
ações de controle e uso do território, com base em princípios de conservação ambiental
originados nesse movimento e formalizados pelos parceiros institucionais com os quais as
comunidades se relacionam.
Em relação ao turismo propriamente, na comunidade da Prainha, a atividade foi
organizada comunitariamente, favorecendo a inclusão e a participação da população, e
estruturada a partir dos limites e das possibilidades de atuação do turismo no território. Na
Reserva Mamirauá, as comunidades envolvidas com o turismo, estão a partir de um plano de
manejo do território que se tornou reserva administrada por instituições externas, segundo uma
política de desenvolvimento sustentável. E no caso de Silves, a atividade eleita como alternativa
econômica pelas comunidades, é estruturada através de uma rede de parcerias na qual as
comunidades assumem a gestão e a participação diretas.
Os processos de conformação territorial demonstram que não há linearidade no curso das
ações e das reações desencadeadas em cada comunidade. Isso fica claro a partir da relação de
similaridade histórica existente entre a Reserva Mamirauá e Silves, que habitam áreas de várzea e
sofreram ameaça às condições de subsistência pela pesca predatória, mas que apresentam
diferenças expressivas quanto à forma de organização política comunitária empreendida frente às
intervenções sobre o território e quanto às formas atuais de uso e ocupação territorial.
O encontro muitas vezes conflituoso das diferentes racionalidades dos grupos gera, por
conseguinte, novas territorialidades. As comunidades se relacionam com ordens culturais
externas e impõem de formas diferentes as próprias ordens culturais, assumindo ativa ou
passivamente a gestão do território (SANTOS, 2004).
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Não há tampouco homogeneidade no curso desses processos considerando-se o caráter
comunitário que lhes é inerente. Nas referências sobre os exemplos considerados, as iniciativas
de resistência e discordância dentro da própria ação comunitária é fator comum. Essas iniciativas,
segundo demonstram os exemplos, quando contidas, o são pela própria coesão existente entre as
comunidades que privilegiam a noção comunitária de uso da terra em detrimento da ação
particularizada. Isso não elimina a existência de interesses difusos ou predominantes dentro das
comunidades, mas as coloca como sujeitos determinantes sobre os desdobramentos derivados da
gestão territorial.
Contudo, as três referências demonstram a preponderância das formas de acesso a terra
para as comunidades. Esse aspecto remonta à questão de posse territorial, não necessariamente a
posse no seu estado jurídico legal, visto que as comunidades de Mamirauá e Silves habitam áreas
de várzea, que segundo legislação, são consideradas como sendo de posse da União, enquanto a
comunidade da Prainha do Canto Verde obteve a posse definitiva das terras após 30 anos de luta
judicial (FONSECA, 2006, p.4). A posse, entretanto, encerra a dimensão da apropriação
simbólica e material do território, estabelecida pelos laços de sociabilidade aí desenvolvidos e
pela prática das atividades produtivas, condição essencial para a reprodução da cultura
comunitária.
Estes exemplos sugerem que à medida que as condições de reprodução da cultura
comunitária são reforçadas pelas próprias comunidades, afirma-se um modelo de uso e ocupação
territorial e amplia-se o poder e a influência política de um grupo social e de uma escala de ação
na dinâmica espacial. Quando a ação comunitária encontra-se dispersa, o território conforma-se
sob normas de territorialização mais organizadas e articuladas politicamente, representativas de
outros grupos e sujeitos sociais.
A relação entre as distintas lógicas de territorialização é o que determina a natureza dos
processos de desenvolvimento de cada comunidade e se enquadra na noção de desenvolvimento
local de Oliveira (2002), ou de sustentabilidade proposta por Guimarães (1997), e mesmo de
ordem local de Santos (2004). Qualquer uma das denominações considera a expressão da
cidadania por meio da prática política, um instrumento de resistência e legitimidade que pode
garantir justiça social aos processos de desenvolvimento de grupos, populações e comunidades.
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Capítulo 3: O olhar do turista sobre o território
A relação entre distintas racionalidades, no caso da atividade turística, acontece
inicialmente ou mais expressivamente, a partir do contato entre população local e turistas. Os
reflexos dessa relação se materializam nas formas de apreensão e uso do território e são
representativos de determinados modos culturais de reprodução social. As comunidades do Vale
do Ribeira, tal qual as comunidades tratadas nos exemplos trabalhados anteriormente, apresentam
modos de reprodução social específicos, em geral, diferentes dos modos de reprodução social
praticados pelos turistas que as visitam. Dessa forma, buscamos identificar a natureza dessa
diferenciação que constitui a essência da relação mantida por esses sujeitos no processo de
construção do território.
No livro “O olhar do turista”, Urry (1996) inicia a discussão partindo da definição
pragmática do turismo como atividade de lazer, caracterizada pelo abandono momentâneo dos
indivíduos em relação aos seus respectivos locais de trabalho e moradia, destinado à visitação de
outros lugares, apreciados através do consumo de uma rede de bens e serviços específicos. O
autor, a princípio, sugere que esses bens e serviços não constituiriam uma necessidade humana
propriamente.
A partir deste ponto justamente, da ausência aparente de necessidade, o autor desenvolve
a discussão a respeito de quais seriam as motivações que levariam o viajante de outras épocas e o
turista contemporâneo a realizar a experiência da viagem. Essa diferenciação entre épocas e
contextos históricos nos quais a experiência da viagem vem acontecendo é realçada sob a
perspectiva do olhar do turista, na forma como ele se constrói culturalmente e nas implicações
sociais e espaciais derivadas de sua passagem pelos lugares e pelas populações (URRY, 1996).
Na associação entre a viagem de exploração realizada por Alexander von Humboldt à
América do Sul no século XVIII e sua visita aos pontos turísticos da cidade de Madri no século
XX, Botton (2003) compara o grau de liberdade com que os olhares do viajante e do turista se
orientam durante o reconhecimento dos lugares visitados. No ato da experiência, Humboldt,
segundo sua descrição, parece ter muito mais autonomia para direcionar seu olhar de acordo com
os interesses que livremente estabelecera, do que ele, que seguia um itinerário já proposto pelos
guias e agentes de turismo.
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A questão fundamental dessa comparação está situada no caráter de significação que é
atribuído aos objetos capturados pelo olhar, regido por uma “hierarquia de interesses subjetivos”
(BOTTON, 2003, p.125), relacionados às categorias de valor correspondentes. Na prática,
Humboldt seria o sujeito na eleição dos objetos e dos lugares significativos, de acordo com os
seus interesses e com o contexto histórico no qual estava inserido, ao passo que Botton (2003),
enquanto turista manobrado e condicionado por uma atividade turística estruturada, não
reconhecia valor nos objetos visitados já que não foram eleitos culturalmente por ele. A
experiência do turista ficaria dessa forma, marcada pela descontinuidade histórica e a valoração
dos objetos, ausente de significado.
Urry (1996) por sua vez, atesta que o olhar do turista, em qualquer época, é construído por
meio da diferença, o que não universaliza o caráter da experiência, e normalmente se estabelece a
partir de um relacionamento entre opostos.
“Esse olhar pressupõe, portanto, um sistema de atividades e signos sociais que
localizam determinadas práticas turísticas, não em termos de algumas características
intrínsecas, mas através dos contrastes implicados com práticas sociais não-turísticas,
sobretudo aquelas baseadas no lar e no trabalho remunerado” (URRY, 1996, p.16).
O rompimento com o caráter ordinário da vida social parece ser uma das mais importantes
motivações que leva o turista a viajar. De acordo com Krippendorf (2001), na sociedade
urbanoindustrial, houve uma forte separação entre o tempo do trabalho e do ócio, bem como entre
os espaços utilizados para ambos. Os conceitos de liberdade e dever, respectivamente ligados aos
de prazer e insatisfação, foram incorporados por esta sociedade de tal forma que o tempo e o
espaço se diferem mediante o uso para o trabalho e para o lazer. Nesse contexto, a viagem é
instituída como prática social necessária para a manutenção do processo em que o lazer exercido
fora do ambiente habitual recompõe o indivíduo para a volta ao trabalho e ao cotidiano.
O desejo de abstração e oposição ao cotidiano que marca as motivações do turista se
revela também na busca por experiências que manifestem a autenticidade dos ambientes
visitados, exercida através de códigos simbólicos que possam remeter o visitante a outros
contextos culturais, carregados de significados que se distanciem de sua vida cotidiana. Nesse
movimento, o turista, simbolicamente, institucionaliza determinados signos de culturas ou
práticas sociais distintas como representativas de autenticidade e de objetos desejados de sua
experiência, no entanto, ao estruturar a experiência a partir das suas prévias expectativas e
desejos, dá origem ao que Urry (1996) denomina de “pseudoacontecimentos”.
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As populações visitadas, integrantes do processo cultural tornado objeto do olhar do
turista, reagem a essa demanda estruturando-se por sua vez, de forma a oferecer uma
autenticidade encenada, como tentativa de defesa e de aproveitamento do retorno financeiro que a
curiosidade desse olhar pode proporcionar (URRY, 1996).
No caso das comunidades consideradas nesse estudo, constata-se, a princípio, uma
diferença fundamental quanto à forma com que elas e os turistas que as visitam interpretam os
mesmos recursos que conformam o território. O próprio território, enquanto constitui a base para
a prática do turismo, representa, para as comunidades, seu espaço de trabalho, convivência e
sociabilidade. Esses recursos por sua vez, podem vir a constituir atrativos turísticos e enquanto
são representativos do caráter cotidiano da vida das comunidades, tornam-se substrato da
experiência turística que se pretende extraordinária para os visitantes. Sem considerar, no
momento, a existência de algum conflito nessa relação, a inversão dos valores atribuídos a esses
recursos está claramente presente.
Estabelece-se a partir daí, uma relação de produção destinada a manter e recriar o olhar do
turista e a autenticidade dos eventos testemunhados por esse olhar reside sobretudo na inversão
da ordem social cotidiana. A experiência do extraordinário é ampliada pelo desejo do olhar que
pode abarcar qualquer objeto a partir da sua noção de significação, noção essa imbuída de um
caráter de “sacralização” (MACCANNELL apud URRY, 1996, p.26) e simbolismo, muitas
vezes avessa aos modos de vida que procura representar.
Urry (1996) sustenta que a origem e a motivação do olhar do turista não advêm de uma
relação materialista mediada pelo consumo, mas antes é gerada pela busca de satisfações que
“nascem da expectativa, da procura do prazer, que se situa na imaginação” (URRY, 1996,
p.29). No entanto, como a satisfação desses desejos está condicionada a um sistema de códigos
culturais real e imprevisível, não raras são as vezes em que as expectativas do olhar são frustradas
e geram novos desejos remetidos a uma próxima viagem.
Para incorporar a idéia do olhar do turista ao estudo da Geografia, é necessário
especializar essa referência de modo a visualizar e compreender a dinâmica da esfera cultural e
dos processos sociais que caracterizam a produção do espaço no caso da atividade turística.
O espaço na compreensão de Santos (2004) seria o lugar de realização dos processos de
produção, esses por sua vez, seriam “o resultado da relação entre homem e mundo, entre homem
e seu entorno” (SANTOS, 2004, p. 90). O que determina e ordena o processo de produção no
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espaço, segundo a concepção de Santos (2004), é o caráter de intencionalidade, que está presente
tanto na produção do conhecimento, como na produção material. A intencionalidade é o que
marca a noção de experiência, é o que rege e orienta a ação e no caso do espaço, é o que está
contido nele, bem como o que o contém.
Com base no processo de produção espacial, o autor demonstra através da noção de
intencionalidade, como a ação de produzir e o produto encontram-se imiscuídos, dissolvidos um
no outro. Essa relação de reciprocidade produtiva, contudo, se realiza por meio da experiência
vivida, da “empiricidade” (C. DIANO apud SANTOS, 2004, p.92), constitutiva da relação entre
sujeito e objeto. “A intencionalidade humana seria uma espécie de corredor entre o sujeito e o
objeto” (SANTOS, 2004, p.91).
O autor analisa o processo produtivo do espaço por meio da perspectiva histórica e afirma
que esse movimento de inter-relação entre sistemas de objetos e ações vai se reformulando
historicamente e reconfigurando a ordem espacial a partir de alterações na forma e na função dos
objetos, relativas a alterações também no campo da ação. Esse movimento contínuo de
interferência mútua é que renova e dá significado ao espaço, bem como determina sua atualidade.
É possível, portanto, identificar na composição do espaço o caráter simbólico da ação,
aquele que imprime significado ao objeto e o caráter funcional do objeto, que condiciona a ação,
ao passo que é determinado por ela. Assim, a categoria espaço se conforma em um híbrido de
conteúdos e funções inseparáveis que correspondem respectivamente às ações e aos objetos que
somente juntos e dialeticamente podem produzir um significado social representado
espacialmente (SANTOS, 2004).
A partir da análise da atividade turística, Luchiari (2000) chama a atenção para o processo
de segregação espacial ocorrido em torno da apropriação cultural de paisagens naturais, que são
destinadas ao consumo turístico de determinadas classes sociais. A autora inicia a discussão
partindo da idéia de que a razão simbólica projetada sobre a paisagem altera seu significado
natural enquanto elemento integrante de processos culturais específicos. Sendo assim, a paisagem
abrigaria na sua constituição não só a materialidade à espera da ação, mas significados concretos
de processos sociais já em curso (LUCHIARI, 2002).
A ilustração é feita com base, sobretudo, na análise das territorialidades produzidas pelo
turismo e que afetam estruturalmente sociedades consideradas tradicionais. A eleição e a
valorização de áreas de uso cultural de determinados grupos se dá por meio da escolha seletiva,
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que segundo a autora, é amparada por discursos de conservação ambiental e de desenvolvimento
local que preconizam a adoção de práticas de sustentabilidade. A atividade turística entraria nesse
rol de propostas alternativas, daí a possibilidade concreta de haver uma apropriação espacial das
áreas eleitas ao se tornarem objeto do olhar do turista que, social e culturalmente, busca
diferenciar-se em relação a outros olhares da sociedade. Os enclaves criados entre grupos
socialmente diversos e expressos espacialmente sob a forma de poder e diferenciação social, são
o que compõe a noção de territorialidade, correspondente à estrutura social vigente (LUCHIARI,
2002).
No caso de comunidades tradicionais, novas territorialidades são produzidas pelo embate
ocorrido entre sua antiga territorialidade, mantida por processos culturais vinculados a sua
própria base produtiva, e a territorialidade introduzida a partir da atividade turística,
culturalmente carregada de códigos significativos diferentes dos contidos em sua realidade social
anterior. Além disso, os objetos técnicos instaurados nessas áreas, para que elas possam atender à
função de paisagens apreensíveis ao olhar do turista, são determinantes em relação aos usos que
se farão nelas, bem como à população que poderá freqüentá-las, já que as relações aí instituídas
se darão por meio do consumo. Segundo Luchiari (2002), essas formas de manifestação da
atividade turística segregam a população local e não estimulam canais de comunicação entre as
distintas sociabilidades.
Contudo, o turismo, mesmo estruturado sob relações práticas de consumo, revela
conteúdos de significação e representação simbólica, manifestas no ato da experiência, que não
estão condicionados apenas a uma função utilitária ou à satisfação de alguma necessidade.
Sahlins (2003), ao descrever o materialismo histórico como a representação do conhecimento da
sociedade burguesa, diz:
“Ao tratar a produção como um processo natural-pragmático de satisfação de
necessidades, corre o risco de uma aliança com a economia burguesa no trabalho de
aumentar a alienação de pessoas e coisas para um poder cognitivo maior. Os dois de
uniriam para esconder o sistema significativo na práxis pela explicação prática do
sistema” (SAHLINS, 2003, p.166).
Sahlins (2003) demonstra que o caráter utilitário dos processos sociais de produção é
endossado pela noção de valor de troca. Essa, à medida que se realiza através da regulação do
mercado, ofusca o código cultural, originalmente determinante dos significados atribuídos aos
componentes do processo produtivo, ressaltando a economia como “conseqüência objetivizada
do comportamento prático, em vez de uma organização social das coisas, pelos meios
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institucionais do mercado, mas de acordo com um projeto cultural de pessoas e bens”
(SAHLINS, 2003, p.167).
Nesse sentido, o autor desvenda a razão cultural que está contida na organização do
sistema produtivo capitalista e na forma como ele se estrutura e tenta ignorar a presença desses
significados culturais, no intuito de manter o sistema produtivo – de criação e satisfação das
necessidades – a todo o vapor.
Na tentativa de romper com interpretações que dicotomizam cultura e economia, Peet
(1997) trabalha a “racionalidade econômica” como conceito capaz de interligar as duas
entidades. Nessa perspectiva, a racionalidade econômica é expressa pelo “conjunto de razões
pelas quais as pessoas, de certa forma, se comportam como agentes econômicos”. Essas razões
advêm de experiências sociais e culturais criadoras de identidades e de formas de manifestação
econômica, que reciprocamente se relacionam, se auto-reproduzem ou mesmo, se auto-sustentam
(PEET, 1997, p.118-119).
Com esta análise, reconhecemos que os códigos culturais são constitutivos do processo
social de produção e se manifestam na representação do olhar do turista, bem como nas
motivações que o direcionam. Ao perceber que mesmo o capitalismo, fundamentado na ordem
prática, revela sua dimensão cultural que justifica inclusive o discurso da “práxis aparentemente
objetiva” (SAHLINS, 2003, p.168), pode-se buscar o mesmo movimento original em relação ao
olhar do turista e à atividade que ele empenha.
O turismo, considerado como atividade de caráter lúdico, relativa à satisfação de desejos
marcados essencialmente pela representação simbólica, toma forma de atividade utilitarista,
destinada à recomposição da condição psicofísica do indivíduo e feita por intermédio do
consumo. Seu conteúdo simbólico se realiza no ato da experiência vivida, ou seja, no momento
em que turistas e população local se relacionam envolvidos por uma produção social específica,
definidora de determinado espaço. A atividade turística promove contatos íntimos entre os
conteúdos simbólicos e de significação social de diferentes populações, e através dessas trocas é
possível identificar a razão cultural que orienta as populações, bem como o processo produtivo
que integram.
Sahlins (2003) defende a idéia de que a produção constitui-se igualmente em uma
“intenção cultural” (SAHLINS, 2003, p.169). Comparando os conceitos de “valor de uso” e
“valor de troca”, o autor ressalta que, ao produzir, o homem imprime características aos objetos
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que sobrepassam a simples idéia de necessidade ou satisfação material. A escolha e a
determinação de tipos específicos de materiais para se compor um objeto representaria o valor de
uso, que por sua vez, “representa um processo contínuo de vida social na qual os homens
reciprocamente definem os objetos em termos de si mesmos e definem-se em termos dos objetos”
(SAHLINS, 2003, p.169).
Sendo assim, a produção pode ser vista como um canal de expressão cultural dos homens
em uma determinada época, ela atesta a existência histórica através de um sistema de ordem
material produzido socialmente pelos códigos significativos de uma sociedade. Nessa ordem de
raciocínio, as escolhas seriam culturais, enquanto as conseqüências seriam funcionais.
O consumo aparece então como uma dessas conseqüências funcionais, resultante de uma
ordem cultural e como mediador de trocas entre distintas sociedades através de seus respectivos
sistemas produtivos. A intermediação das trocas ganha caráter funcionalista, utilitário, mas o
princípio cultural, relativo aos significados sociais, mantém-se primariamente à ação.
Quanto ao olhar do turista, a relação de troca por meio do consumo está presente na base
da ação. Nos exemplos apresentados, as trocas mantidas entre turistas e população local se
estabelecem fundamentalmente em torno do modo de produção social local. A relação que as
comunidades mantêm com o ambiente, e que dá origem a um território culturalmente específico,
passa a ser um fim em si mesma, além de parte constituinte do modo de reprodução social dessa
população. Para os turistas, esse processo é a própria experiência turística, a representação do
extraordinário que se origina nas expectativas lançadas pelo seu olhar.
Urry (1996), ao definir o turismo contemporâneo como “pós-moderno”, apresenta
algumas características que, segundo o autor, dizem respeito a um “regime específico de
significações, no qual determinados objetos são produzidos, transmitidos e recebidos” (URRY,
1996, p.119).
Dentre as características do pós-modernismo que se refletem na atividade turística, o autor
destaca a de “desdiferenciação”. Ao passo que o modernismo se constituiu em um período
marcado pela noção de diferenciação, onde o valor era determinado dentro de esferas culturais
específicas, o pós-modernismo rompe as barreiras culturais para promover a imersão de uma
esfera na outra pelo artifício do “espetáculo” (URRY, 1996, p.120). O autor avança na discussão
ao dizer que na cultura pós-moderna o caráter de “contemplação” é substituído pelo de
“distração”, e isso faz com que as manifestações culturais identitárias de diferentes grupos
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possam circular livremente de uma esfera a outra. Diz também que esse movimento é bastante
impulsionado pelo mercado cultural que desenvolveu mecanismos de aproximação entre a esfera
artística e a comercial, de forma que o caráter de representação cultural se tornou mais expressivo
que a própria manifestação, construída social e significativamente.
Nesse contexto, a própria noção de significação passa a ser reconstruída; quando remetida
a uma representação, essencialmente manifestada pelo sentido visual, a realidade torna-se
também figurativa. O caráter identitário por sua vez, se conforma através de símbolos e a
realidade social é constituída em torno desse movimento entre representação e realidade. As
trocas culturais por fim, são mediadas pelo consumo dos símbolos e dos signos eleitos em uma
esfera de significação artificial.
O turismo parece caminhar bem no campo da representação cultural, considerando o
universo simbólico que envolve em torno da viagem e a forte sistematização da atividade,
organizada através de uma estrutura funcional de serviços. Urry (1996) diz que no turismo pós
moderno: “Aquilo que as pessoas “contemplam” são representações ideais da vista em questão
que elas internalizam a partir de cartões postais, dos guias de viagem, e cada vez mais, dos
programas de televisão” (URRY, 1996, p.122). Ao final, mesmo que a experiência não cumpra a
função esperada, os turistas acabam por reproduzir a imagem representativa como verdade
vivida.
Em contramão à “desdiferenciação” cultural que acontece no pós-modernismo, há
igualmente um processo de diferenciação social que é expressivo também nesse período. As
classes sociais se diferenciam através de um código classificatório de práticas culturais que
orientam sua reprodução social interna e, em relação umas às outras, disputam o posto de cultura
dominante. No caso do turismo, Urry (1996) analisa a diferenciação social através do “olhar
coletivo” e do “olhar romântico”; o primeiro refere-se ao turismo massivo, com demandas por
serviços e lugares mais ou menos padronizados, e o segundo busca fatores de diferenciação,
normalmente relacionados a conteúdos simbólicos e práticas contemplativas que exigem um nível
cultural mais desenvolvido.
No entanto, Urry (1996) chama a atenção para o fato de que com a expansão da mídia e a
ampla reprodução do mesmo sistema informacional a um número maior de grupos sociais, criou-
se a possibilidade de maior inserção dos grupos em outros universos culturais e essa relação
acontece através da representação.
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Sahlins (2003) por sua vez, reconhece os processos de segmentação social como sendo de
razão cultural e quando refletidos na produção capitalista, se manifestam por meio de
diferenciações objetivas, concretas, como objetos correspondentes a cada categoria social. Esta
lógica é contínua e valida códigos sociais emergentes, bem como mantém a produção de bens
distintivos e representativos de variados sistemas culturais.
Em relação ao turismo, nos interessa analisar a representação simbólica da natureza e sua
apreensão através da experiência da viagem. Diversas áreas que possuem reconhecido patrimônio
ambiental têm sido valorizadas como destinos turísticos. Muitas delas, como no caso do Vale do
Ribeira, mantêm populações cuja relação com o ambiente caracteriza sua cultura. O mesmo
ambiente contém a idéia de natureza genuína que os turistas constroem previamente a suas
visitas. Esse processo contínuo de desconstrução e reconstrução do território, a partir de códigos
culturais diferentes, determina muitas vezes a forma de uso e ocupação dessas áreas, quando
passam a exercer novas funções dentro de outros contextos sociais. O território por fim, passa a
abrigar formas de uso diversas, podendo ser, ao mesmo tempo, morada, paisagem e recurso para
a conservação ambiental.
Esse movimento é o que parece haver precedido a cultura de valorização de áreas naturais,
de costumes e códigos culturais tradicionais, significativos de uma ordem cultural genuína. Os
modelos de balneários, tão freqüentados anteriormente, se opõem à representação de natureza
original como “algo incivilizado, desprovido de gosto, animalesco, que deve ser contraposto à
civilização da cultura” (URRY, 1996, p.131).
O olhar do turista parece de fato se constituir de uma razão cultural livre de caráter
utilitarista, porém, na forma como ele se organiza, por trás de uma estrutura sistematizada de
serviços e de geração de desejos e fantasias, ele se tornou uma prática distintiva social e
culturalmente e, portanto, uma necessidade para determinados grupos sociais. Isso porque, como
foi visto, o processo de produção e de diferenciação social, sedimentado sobre o sistema
capitalista, mantém como ordem cultural a diferenciação social permanente. Ela é mantida pela
produção de signos culturais distintos, identitários de determinados grupos e representados
simbolicamente através de trocas culturais/comerciais.
Entre visitantes e visitados, essas trocas se dão através de seus respectivos sistemas
simbólicos, que correspondem, na análise de Bourdieu (1989), a instrumentos de conhecimento e
de comunicação estruturados que possibilitam o consenso sobre o sentido de mundo, mantendo
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através dele, a reprodução de ordens sociais específicas (BOURDIEU, 1989, p.9).
Esses sistemas, segundo o autor, contêm uma função política que é exercida à medida que
uma sociedade impõe determinada concepção de mundo social ou legitima outra, externa e
dominante à sua, de acordo com a predominância de interesses vigentes, que se materializam, por
sua vez, numa esfera de distintas categorias sociais (BOURDIEU, 1989, p.11).
O sistema simbólico construído revela o conteúdo cultural constituinte de determinada
sociedade e ainda que as relações em cada uma delas se desenvolvam em sistemas diferentes de
produção, a razão cultural permanece presente norteando as ações sobre os objetos. A despeito da
comparação entre sociedades burguesas e sociedades primitivas, Sahlins (2003) esclarece que as
duas ordens culturais se relacionam em uma dinâmica de poder e valoração, onde se conformam
culturas dominantes e dominadas, cada uma em seu contexto social ou mesmo dentro de uma
esfera comum.
A atividade turística promove o relacionamento entre diferentes sociedades e seus
respectivos contextos culturais dentro de uma esfera espacial comum. Já a dinâmica resultante do
poder de imposição que cada uma tem sobre a noção de mundo social compreende um campo de
luta simbólica pela afirmação e defesa de seus interesses próprios, e repercute na forma como o
turismo se estrutura territorialmente.
O que se nota, no entanto, é que a razão cultural presente em cada sociedade, constituinte
da produção social do espaço se diferencia, não só para manter o sistema produtivo – o capitalista
– ativo, mas, no caso de algumas populações, porque essa diferenciação constitui a própria base
do sistema produtivo. Ao mesmo tempo, é possível perceber que a razão cultural do sistema
capitalista é dominante na atualidade e que seu poder de alcance tem aumentado muito as
possibilidades de contato entre sociedades diferentes, bem como de troca e apropriação cultural
de novos códigos e novas práticas, representadas em contextos simbólicos e sociais.
No caso do turismo, o diálogo cultural se dá de forma especial, onde não somente a
cultura sofre intermediações, mas o espaço constituinte de uma produção social específica é
normalmente alterado. As conseqüências da apropriação cultural como representação social
podem ser sérias, à medida que transformam um modo cultural, existente significativa e
praticamente, em um modo de representação, deslocado do vínculo social local. O espaço, por
conseguinte, passa a abrigar funções que não respondem mais à ordem cultural local, sendo
transformado por uma razão cultural externa, privatizado ou tendo seu uso restrito e alterado.
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O exemplo das paisagens no caso do turismo é emblemático como referência de
apropriação do espaço e de apropriação cultural. Esses processos tendem a ser verticalizados e a
impor uma racionalidade externa à população diante da sua própria base produtiva. A questão
necessária nesses casos é avaliar não só a valorização de determinados símbolos dentro da
presente esfera cultural, reconhecendo e desmistificando seus códigos de significado e
representação, mas avaliar a existência destes mesmos códigos nas esferas em que originalmente
foram concebidos, a fim de que eles mantenham sua validade para a reprodução da ordem
cultural que compõem.
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PARTE II: O TERRITÓRIO CONSTRUÍDO: IDENTIDADE E CONCEPÇÕES DE USO
Capítulo 4: Definição política e cultural do território quilombola
As comunidades que compõem o tema deste estudo caracterizam-se por serem
remanescentes de quilombos e como tal, têm direito à propriedade e à titulação de suas terras,
emitida pelo Estado (SUNDFELD, 2002, p.15), segundo Artigo 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Brasileira de 19885.
Contudo, as formas de apropriação territorial mantidas pelas comunidades vão muito além
da oficialização que o título da terra lhes pode conferir. Historicamente, as comunidades vêm
estabelecendo vínculos territoriais a partir de sua própria base social, conformando um território
sob noções culturais específicas. Tais noções se atualizam a medida que dialogam com noções
culturais distintas e se afirmam como práticas de reprodução social. A partir do reconhecimento
legal das comunidades como remanescentes de quilombos, esta identidade cultural torna-se
componente do processo de afirmação política que as comunidades empreendem em relação à
apropriação do território.
Nesse sentido, interessa-nos analisar sob quais aspectos o conceito quilombola vem sendo
constituído, não só dentro da esfera jurídica de concessão de direito constitucional, mas
especialmente como conceito classificatório de populações e de suas formas de reprodução
social. Mais ainda, analisar como as comunidades em questão apreendem o conceito que as
define e como esse conceito se torna representativo da territorialidade construída por elas.
Parecendo generalizada em relação ao conceito, essa discussão baseia-se
fundamentalmente no contexto de reconhecimento das comunidades quilombolas de André Lopes
e de Sapatu, ambas situadas na zona rural do município de Eldorado, Vale do Ribeira, Estado de
São Paulo.
A princípio, quando da aplicação ou cumprimento dos termos dispostos pelo artigo 68 do
ADCT, a própria definição remanescentes de quilombos passou a ser discutida, considerando-se
os critérios que orientariam o reconhecimento das populações. O texto constitucional remete à
idéia de remanescentes como parte de uma estrutura organizacional em desaparecimento ou
5 Segundo artigo 68 do ADCT: “Aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas
terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos” (SUNDFELD,
2002, p.19).
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inexistente (LEITE, 2000, p.341), atrelado à idéia de quilombo como agrupamento étnico,
caracterizado pela autosuficiência, pelo isolamento geográfico e pela resistência ao sistema
escravista colonial (SUNDFELD, 2002, p.77).
O conceito de quilombo vem sendo definido, historicamente, por versões que vão desde a
apresentada pelo Conselho Ultramarino6 ao Rei de Portugal, em 1740, até outras mais atuais que
apresentam os quilombos como estruturas socialmente organizadas, abrangendo aspectos
culturais e políticos dentro de contextos históricos específicos. Alguns questionamentos relativos
ao conceito empregado pelo texto constitucional alegam que ele se norteia por uma idéia
cristalizada de quilombo (SUNDFELD, 2002, p.77; ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000,
p.51), justamente a proposta pelo Conselho Ultramarino. O conceito de remanescentes por sua
vez, expresso por parâmetros conceitualmente restritivos, tornou-se insuficiente para representar
a “diversidade de situações envolvendo afro-descendentes” (LEITE, 2000, p. 340) no processo
de formação histórica do país.
Em 1994, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), em atendimento à solicitação
do Ministério Público Federal, elaborou uma definição para quilombo, qual seja: “toda
comunidade negra rural que agrupe descendentes de escravos vivendo da cultura de subsistência
e onde as manifestações culturais têm forte vínculo com o passado7” (SUNDFELD, 2002, p.77).
Com essa definição, a associação pretendeu romper com o estereótipo fundamentado na idéia de
comunidades homogêneas, circunscritas a um contexto único de formação, e ressaltar a
atualidade do termo quilombo paralela à pluralidade de situações que deram origem a sua
existência. Nas palavras de Leite (2000, p.341): “(...) mais do que uma realidade inequívoca, o
quilombo deveria ser pensado como um conceito que abarca uma experiência historicamente
situada na formação social brasileira”.
6 O Conselho Utramarino definiu quilombo como sendo “Toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco,
em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles” (SUNDFELD, 2002,
p.77). 7 “O termo Remanescente de Quilombo, conforme deliberado pela ABA – Associação Brasileira de Antropologia,
em encontro realizado nos dias 17 e 18 de outubro de 1994, no Rio de Janeiro, embora tenha um conteúdo histórico,
designa hoje a situação presente dos segmentos negros em diferentes regiões e contextos e é utilizado para designar
um legado, uma herança cultural e material que lhe confere uma referência presencial no sentimento de ser e
pertencer a um lugar e a um grupo específico‟.” (GARCIA, 1995 apud ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000,
p.7)
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47
Os artigos 215 e 2168, associados à garantia de manifestação e defesa de direitos culturais,
inclusive dos afro-brasileiros, são parte das disposições permanentes da Constituição Federal,
enquanto o artigo 68 é parte do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (LEITE, 2000,
p.346). Nesse caso, a transitoriedade do dispositivo é também representativa de sua lógica
restritiva, quando condiciona o direito de reconhecimento à ocupação territorial pretérita e
presente, e não à dinâmica cultural constitutiva de um grupo social permanentemente em
formação na história brasileira.
O Decreto Federal nº. 3.912 de 10 de setembro de 20019, que trata do processo
administrativo para a concessão dos direitos garantidos pelo artigo 68, diz que a propriedade
sobre as terras será reconhecida somente nos casos em que houve ocupação por quilombos no ano
de 1888, ano de abolição da escravatura, e por remanescentes de quilombos em 05 de outubro de
1988, ano da promulgação da Constituição Federal (SUNDFELD, 2002, p.70). Nesse caso,
“A tarefa do Poder Público estaria circunscrita, tão somente, à outorga de títulos de
propriedade sobre posses prolongadas e incontestes”, visto que “Da posse prolongada e
pacífica (das comunidades), teria originado seu direito de propriedades sobre as terras,
que veio a ser simplesmente reconhecido pela Constituição de 1988 (SUNDFELD,
2002, p.31).
O decreto nº. 3.912/01 “centrou a discussão sobre as terras ocupadas pelos
remanescentes e, não sobre a relação dos remanescentes com a terra” (SUNDFELD, 2002,
p.80). O dispositivo é questionável pelo fato de que a dinâmica da produção social histórica
ultrapassa limites temporais definidos e a despeito da abolição da escravatura no ano de 1888, os
quilombos estariam em formação posteriormente a essa data. E ainda, pelo fato de que os
processos de ocupação territorial, fosse em 1888 ou em 1988, estariam sujeitos a situações outras,
8 Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura
nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. 1º. O Estado protegerá as
manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e de outros grupos participantes do processo
civilizatório nacional. 2º. A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os
diferentes segmentos étnicos nacionais.
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados
individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e
viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais
espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico,
paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico (CHAGAS, 2001, p. 2). 9 “Trata-se de decreto fundado nos dispositivos citados – art. 14, IV, c, da Lei n.º 9.649/98 e art. 2º, III e parágrafo
único da Lei n.º 7.668/88. Seu objetivo é, exatamente, regulamentar „as disposições relativas ao processo
administrativo para identificação dos remanescentes das comunidades dos quilombos e para o reconhecimento, a
delimitação, a demarcação, a titulação e o registro imobiliário das terras por eles ocupadas‟” (SUNDFELD, 2002,
p.31).
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como conflitos por domínios territoriais ou a própria necessidade de deslocamento das
comunidades, fazendo com que a territorialidade criada não obedecesse a limites fixamente
estabelecidos (SUNDFELD, 2002, p.71-73).
A revisão dos conceitos que orientam a concepção dos dispositivos constitucionais
objetiva elucidar a aplicabilidade dos mesmos a partir do pressuposto de que as formas pretéritas
de territorialização derivadas dos quilombos encerram lógicas culturais específicas, associadas à
etnicidade de uma população que, como qualquer outra, atualizou-se ao longo da história, mas
mantém, através dessa, uma linearidade temporal manifesta na produção contemporânea de novas
territorialidades.
Nesse sentido, prossegue a discussão pela busca dos sujeitos depositários dos direitos
garantidos pelo artigo 68. O texto constitucional destaca a comunidade como sujeito de direito, a
partir da qual “derivam os „remanescentes‟, denominados posteriormente quilombolas” (LEITE,
2000, p.344). Destaca-se aqui a idéia de que o processo de reconhecimento se norteia pela
identificação coletiva, representativa, no caso, de um modo de vida comunitário, onde os sujeitos
assumem sua condição como membros de um grupo.
Segundo Leite (2000), a terra é fator preponderante para a continuidade do grupo e da
manifestação de sua identidade coletiva, mas não é absolutamente, fator que determina essa
identidade.
“Quer dizer: a terra, base geográfica, está posta como condição de fixação, mas não
como condição exclusiva para a existência do grupo. A terra é o que propicia condições
de permanência, de continuidade das referências simbólicas importantes à consolidação
do imaginário coletivo, e os grupos chegam por vezes a projetar nela sua existência,
mas, inclusive, não têm com ela uma dependência exclusiva” (LEITE, 2000, p. 344-45).
A autora avança na discussão ao ressaltar a capacidade organizativa de sociedades em
torno de um projeto de vida coletivo como o critério a ser seguido para o reconhecimento das
comunidades. Essa capacidade organizativa incorpora por sua vez, aspectos relativos a
parentesco, a memória coletiva e a formas de reprodução social (LEITE, 2000, p.345).
Outro critério que se relaciona às formas de reprodução social dessas comunidades é a
autonomia sobre seus processos produtivos, critério destacadamente conferido a comunidades
negras rurais. A manutenção dessa autonomia, responsável inclusive por garantir a resistência
histórica das comunidades frente a grupos hegemônicos, como senhores de escravos e grandes
proprietários de terras, é uma característica que unifica as comunidades temporalmente,
estabelecendo um fio condutor entre a luta de outrora e a luta atual por elas empreendida
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49
(FILHO, 2006, p.17).
A despeito da diversidade de situações que caracterizam a formação de quilombos no
Brasil, Filho (2006) destaca a luta pela autonomia como “o operante mais importante para se
pensar um conceito moderno de quilombo” (FILHO, 2006, p.17) e ressalta que essa luta
permanece até hoje através das comunidades, que passando da condição de escravos a
camponeses, buscam atualmente conquistar a posse de suas terras.
A recuperação do conceito de quilombo se dá na esfera institucional, onde se busca
afirmar uma luta política por direitos civis. Essa luta simboliza as estratégias de afirmação de
grupos sociais, com demandas e pleitos específicos, significa o alcance da posição de cidadãos de
direito legitimamente reconhecidos.
Sendo assim, a identidade política ultrapassa os limites territoriais tradicionalmente
reconhecidos como quilombolas. Carril (2006, p.158) faz um estudo sobre a representação
quilombola expressa por comunidades rurais e urbanas, considerando aspectos de resistência e
segregação étnica na conformação de territórios. A autora relaciona a identidade produzida por
comunidades rurais do Vale do Ribeira com a identidade produzida no bairro de Capão Redondo,
periferia da zona sul de São Paulo.
As comunidades do Vale, segundo a autora, incorporam a identidade quilombola a partir
de uma retrospectiva histórica que leva em conta, essencialmente, as relações comunitárias
estabelecidas com o passar do tempo e as formas culturais de apropriação do território. As
comunidades caracterizam-se como quilombolas pelo manejo dos recursos naturais, pelo uso
coletivo da terra, pela reprodução social em núcleos familiares, pelas práticas de sociabilidade
relacionadas à moradia, ao trabalho, ao lazer e à religiosidade. No bairro de Capão Redondo, a
comunidade que se auto-identifica quilombola, incorpora o termo como símbolo de resistência
frente a processos de segregação sócio-espacial relacionados à etnia. A identidade quilombola
está associada a manifestações culturais como o rap e o hip hop, cujas letras relacionam as
práticas de escravidão do passado às formas atuais de discriminação social.
Em ambos os casos, o termo quilombo é incorporado como recurso político de grupos que
buscam firmar sua posição social. Ao passo que no Vale, as comunidades buscam legitimar seu
direito de posse visando a reprodução da própria territorialidade, em Capão Redondo, a
comunidade denuncia uma territorialidade socialmente marginalizada através de manifestações
culturais, revelando a continuidade de um processo histórico de segregação racial e difundindo
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50
sua própria cultura (CARRIL, 2006, p.168).
A identidade quilombola representa a possibilidade de afirmação político-cultural de
grupos sociais através do reconhecimento de seus direitos pela Constituição Brasileira. Nesse
aspecto, ela também serve como medida de aferição do quanto o reconhecimento constitucional
da existência de grupos culturalmente diferentes na sociedade brasileira se traduz em políticas
que legitimem e valorizem as formas de manifestação ligadas à etnia negra.
Arruti (2003), ao analisar a evolução da legislação e das políticas públicas dirigidas à
população negra, incluindo-se aí as comunidades remanescentes de quilombos, descreve uma
trajetória que se inicia por pressão dos movimentos negros urbanos e se fortalece com o
surgimento de uma “militância quilombola”, fruto da organização de comunidades negras rurais,
cujos membros eram classificados como posseiros ou trabalhadores rurais (ARRUTI, 2003, p.11).
Essa nova dimensão do movimento negro ampliou as exigências sobre os direitos da
população e no caso das comunidades remanescentes de quilombos, estimulou a criação de
instrumentos que visavam garantir o reconhecimento das comunidades e a respectiva emissão de
títulos. Esse processo, contudo, além de moroso, apresenta retrocessos, como no caso da
publicação do decreto 3.912/2001 que além das funções já citadas, também transferia as
atribuições de reconhecimento e titulação, antes a cargo do Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (INCRA), para o Ministério da Cultura, através da Fundação Cultural
Palmares (FCP).
O processo avançou particularmente no caso de algumas administrações estaduais, que
através de seus órgãos diretos, criaram políticas específicas para tratamento do tema. Os estados
de São Paulo e do Pará são os principais exemplos. Nesses estados, avançou-se no
estabelecimento dos critérios para o reconhecimento das comunidades, como se verá mais adiante
no caso das comunidades do Vale do Ribeira.
No Governo Federal, segundo Arruti (2003), as iniciativas ainda tardam a se viabilizar. O
ministério que tem mostrado maior comprometimento com a questão quilombola é o Ministério
do Desenvolvimento Agrário (MDA), demonstrando mais uma vez, o vínculo estabelecido entre a
causa quilombola e a questão agrária (ARRUTI, 2003, p.15). Por isso mesmo, muitas vezes, a
leitura feita através das políticas públicas sobre as comunidades é um tanto homogênea ao
considerá-lãs essencialmente como trabalhadores rurais.
Na prática, sobressaem ainda as dificuldades em torno do processo de regulamentação dos
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51
direitos constitucionais, seja quanto à definição conceitual do fenômeno, dos sujeitos de direito,
dos procedimentos e das competências institucionais para a execução e aplicabilidade do artigo
68.
“Cada um deles (procedimentos de titulação) enfrenta forte discordância dos diferentes
setores diretamente envolvidos, principalmente dos grupos interessados, e aponta a
direção dos conflitos, que vão desde a oposição às normas estabelecidas para as
titulações, às pressões das elites econômicas interessadas nas terras ocupadas pelas
comunidades negras, passando por disputas entre os órgãos do governo que teriam a
atribuição para conduzir o processo” (LEITE, 2000, p. 346).
Essa dificuldade decorre da ausência de uma “política regular de reconhecimento
massivo destas áreas conforme as disposições constitucionais” (ALMEIDA, 1997 apud
SUNDFELD, 2002, p.52), e ainda, da ausência de parâmetros que possam abranger a pluralidade
de estratégias e situações através das quais os processos de resistência territorial ao escravismo
(LEITE, 2000, p.346) se estabeleceram nas diversas regiões brasileiras.
O reconhecimento quilombola representa via de acesso à cidadania para comunidades
historicamente discriminadas no quadro da formação social brasileira. Sua capacidade de
organização e representação como grupo social é característica e condição para que os direitos
constitucionais que lhe são cabíveis se materializem.
A revisão conceitual de quilombo parece necessária para avalizar a qualidade e a
especificidade das demandas levantadas, sem contudo, se transformar num recurso restritivo ou
coercitivo de direitos constitucionais legítimos, podendo dessa forma operar como instrumento de
referência e mediação nos processos de reconhecimento. Por outro lado, tão necessário quanto,
parece a necessidade de se reforçar a disposição das instituições em proceder à concessão de tais
direitos. Essa disposição diz respeito à prática de sinergia e complementaridade por parte dos
órgãos cuja competência é garantir a manifestação da diversidade étnica-cultural brasileira por
meio da garantia das condições materiais de continuidade e sobrevivência cultural das
comunidades.
No caso do Vale do Ribeira, o processo de reconhecimento das comunidades demonstra a
variedade das formas de ocupação negra na região, abrangendo desde casos de escravos fugidos
ou libertos, até casos de pequenos produtores cujos grupos não manifestavam nenhum vínculo
com o regime escravista. Nesse contexto, formam-se as comunidades, agrupadas em torno da
possibilidade de ocupar e trabalhar a terra livremente.
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Concentração quilombola no Vale do Ribeira
O Vale do Ribeira localiza-se entre os estados de São Paulo e Paraná, num trecho de 520
km de comprimento, cuja maior parte situa-se em território paulista. A região ocupa 10% da área
do estado de São Paulo (Figura 2) e se divide em três sub-regiões: a Baixada do Ribeira com os
municípios de Eldorado, Jacupiranga, Pariquera-Açu, Registro e Sete Barras; a sub-litorânea com
os municípios de Iguape e Cananéia; e o Alto Ribeira, com os municípios de Iporanga, Apiaí e
Ribeira (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.111).
A região do Vale do Ribeira agrega a maior parte das comunidades remanescentes de
quilombos do Estado de São Paulo localizadas nos municípios de Eldorado e Iporanga; a região
também abriga as maiores áreas conservadas de Mata Atlântica do estado.
Em 1995, após apresentarem ação ordinária à Justiça Federal do Estado de São Paulo,
requerendo o reconhecimento e a titulação de suas terras, representantes da comunidade negra de
Ivaporunduva, buscavam apoio à causa através da Procuradoria da República e noticiavam a
existência de diversas outras comunidades negras no Vale do Ribeira (ANDRADE; PEREIRA;
ANDRADE, 2000, p.45). Esse processo deu início a uma série de trabalhos que seriam feitos, sob
a liderança do Ministério Público Federal, para a identificação das comunidades negras da
região, visando à garantia de seus direitos.
A iniciativa do ministério foi reforçada na época pelo fato de que os limites do recém
criado Parque Intervales, unidade de conservação estadual, coincidia com os limites de terras
ocupadas por cinco comunidades, a saber: Maria Rosa, Pedro Cubas, Pilões, São Pedro e a
própria Ivaporunduva (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.45).
Os trabalhos compreenderam visitas à região para a realização de levantamentos de
campo e pesquisas que fornecessem subsídios para a produção dos laudos antropológicos, que
por sua vez, subsidiariam as ações de garantia dos direitos das comunidades pleiteantes do Vale
do Ribeira. Nas visitas iniciais, confirmou-se a hipótese de que “as comunidades negras do Vale
do Ribeira de Iguape compunham um extenso e complexo campo de relações sociais, econômicas
e culturais (...)” (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.46) e essa constatação deu
origem a um grupo de trabalho responsável pela identificação das comunidades através de
levantamento etnográfico e pesquisa documental.
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Durante a realização das pesquisas, além das comunidades cuja ocupação territorial era
coincidente aos domínios conferidos ao Parque Intervales, foram incluídas as comunidades de
Nhunguara, Sapatu e André Lopes, cujos domínios territoriais coincidiam com a demarcação do
Parque Estadual do Jacupiranga (PEJ). Nota-se que a abrangência de diversas comunidades num
mesmo estudo refere-se à apresentação de um argumento antropológico comum, concernente às
formas de ocupação da região pelas comunidades.
Paralelamente, em 1996 no Estado de São Paulo, formava-se um Grupo de Trabalho10,
composto por diversas instituições de abrangência estadual, com o objetivo de conferir
aplicabilidade aos dispositivos constitucionais relacionados aos direitos das comunidades de
remanescentes de quilombos. Esse grupo surge em resposta do Governo do Estado às crescentes
solicitações das comunidades quilombolas, das organizações sociais do movimento negro e de
outras organizações da sociedade civil cujas causas mantinham afinidade entre si.
Através do grupo de trabalho, o Governo do Estado de São Paulo constituía um arcabouço
teórico-metodológico e favorecia a integração de diversos órgãos de sua administração a fim de
dar cumprimento ao artigo 68 do ADCT. A busca pelo cumprimento do dispositivo no estado
estimulou a criação de instrumentos jurídicos, incluindo sanção de lei e edição de decretos
estaduais, que são mais abrangentes frente à complexidade do processo de reconhecimento e
titulação das comunidades. Esses instrumentos estão voltados para além do cumprimento do
artigo 68, priorizando a regularização fundiária dos territórios ocupados pelas comunidades,
associada a um programa de desenvolvimento sócio-econômico das mesmas (ANDRADE;
PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.11).
Por meio da criação do Decreto nº. 42.839/98, o grupo de trabalho passou a incorporar os
critérios de auto-identificação e territorialidade para proceder ao reconhecimento das
comunidades. Enquanto a auto-identificação seria avaliada pelos estudos antropológicos, a
definição da territorialidade estaria condicionada à análise das formas de ocupação e exploração
dos recursos naturais, considerando-se as práticas produtivas tradicionais e o uso territorial para
as práticas de sociabilidade comunitária (SUNDFELD, 2002, p.63).
10
“O Grupo de Trabalho foi composto por membros da Secretaria da Justiça e da Cidadania, do Instituto de Terras,
da Secretaria de Meio Ambiente, da Procuradoria Geral do Estado, da Secretaria do Governo e Gestão Estratégica,
da Secretaria da Cultura, do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Antropológico, Artístico e Turístico do
Estado de São Paulo (Condephaat), do Conselho de Participação de Desenvolvimento da Comunidade Negra de São
Paulo, da Ordem dos Advogados do Brasil / Seção São Paulo – Subcomissão de Negros da Comissão dos Direitos
Humanos, e do Fórum Estadual de Entidades Negras do Estado de São Paulo” (SUNDFELD, 2002, p.59).
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Para proceder à delimitação dos territórios a serem titulados em favor das comunidades,
estabeleceu-se a elaboração de um Relatório Técnico-Científico (RTC) para cada comunidade, a
se realizar pelo Instituto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP). O RTC considera a
localização da comunidade; a identificação e a descrição da área de acordo com os limites por ela
indicada, incluindo as atividades econômicas, de utilização para a auto-sustentação e manejo, e as
construções existentes; os critérios de pertencimento territorial/espacial relacionados à auto-
definição e às formas tradicionais de ocupação; e as relações com a sociedade circundante
(ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.16-17). Além do relatório também foi feito o
diagnóstico jurídico do território auto-identificado, composto pelo levantamento da situação
dominial, jurídico-ambiental e jurídica da comunidade (SUNDFELD, 2002, p.64).
No Vale do Ribeira, o trabalho de reconhecimento das comunidades se iniciou por aquelas
que tinham parte ou todo o território localizado nos limites do Parque Estadual de Intervales e por
outras três que tinham o território situado nos domínios do Parque Estadual do Jacupiranga.
Dessas três, duas comunidades fazem parte do estudo aqui proposto, André Lopes e Sapatu.
Além da sobreposição de áreas e das normatizações ambientais decorrentes da instalação
de unidades de conservação na região, as comunidades do Vale estavam envolvidas em outros
conflitos relacionados à propriedade do território, sendo o principal deles, a possibilidade de
construção de hidrelétricas na região. As iniciativas para o aproveitamento do potencial
hidrelétrico da região datam da década de 1950 e vêm até hoje perdurando como freqüente
ameaça à ocupação da terra pelas comunidades.
A Usina Hidrelétrica de Tijuco Alto11 (UHE Tijuco Alto) é um empreendimento planejado
pela Companhia Brasileira de Alumínio (CBA), empresa do Grupo Votorantim, cujo objetivo é
aumentar a oferta de energia elétrica para seu complexo metalúrgico localizado na cidade de
Alumínio, no interior do Estado de São Paulo. A localização do empreendimento está prevista
para o alto curso do rio Ribeira de Iguape, na divisa dos Estados de São Paulo e Paraná, cerca de
10 quilômetros a montante da cidade de Ribeira (SP) e Adrianópolis (PR), e a aproximadamente
a 333 quilômetros de sua foz, no complexo Estuarino-Lagunar de Iguape-Cananéia-Paranaguá 11
O IBAMA concedeu, em fevereiro desse ano, licença favorável à construção da UHE de Tijuco Alto.
Imediatamente, as comunidades, juntamente com um grupo de instituições que são contrárias à instalação do projeto,
organizaram protesto e formaram acordo junto ao IBAMA, para a realização de reuniões com o objetivo de
esclarecer questionamentos sobre os aspectos técnicos e sociais do empreendimento, anteriormente à emissão de
qualquer tipo de posição final relacionada à execução da hidrelétrica. Atualmente, os movimentos sociais e as
instituições envolvidas estão pressionando o IBAMA para que o órgão cumpra os compromissos firmados (ISA,
2008).
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(ISA, 2008).
Ao lado da UHE Tijuco Alto, a Companhia Energética do Estado de São Paulo (CESP),
planeja construir mais três usinas hidrelétricas ao longo do rio – Funil, Itaóca e Batatal – a jusante
da UHE Tijuco Alto. A instalação desse complexo de hidrelétricas alagaria parte do território de
algumas comunidades, além de grandes porções de áreas de proteção ambiental (ANDRADE;
PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.112).
A organização de pleitos e reivindicações, que emergiram como demandas positivas
associadas ao movimento negro na região, foram estimuladas pela atuação da Igreja Católica
junto às comunidades e reforçadas pela atuação do Movimento dos Ameaçados por Barragens –
MOAB (CHAGAS, 2001, p.7). Essas demandas promoveram maior contato entre as
comunidades que consolidaram certa capacidade organizativa capaz de fazer frente às
intervenções que têm impactos nos territórios por elas ocupados. A identidade quilombola, como
um recurso de reconhecimento do caráter de ocupação histórica e cultural mantida pelas
comunidades, transfigura-se como um argumento a favor do domínio territorial comunitário e
contrário à instalação de quaisquer novas intervenções que possam desestruturar suas formas de
reprodução social. Nas palavras de Chagas (2001, p.7):
“Na cena dos direitos insurgentes a própria positividade histórica, que alçou o sentido
de resistência, veio a potencializar uma interlocução com o Estado em outros termos e
talvez num patamar que os possibilitasse um lugar socialmente reconhecido. Deste
modo, é especialmente necessário considerar o contexto em que tais buscas de
regularização de terras são produzidas e também são produto”.
No caso das comunidades do Vale do Ribeira, o reconhecimento da identidade está
estritamente relacionado aos conflitos fundiários existentes na região. Contudo, os argumentos
para a definição da identidade quilombola são variáveis segundo o contexto social em que cada
comunidade se constitui.
Carvalho (2006, p.7) diz que mesmo entre bairros negros vizinhos na região, as razões de
sua origem variam entre aqueles que reconhecem laços históricos ligados à escravidão, inclusive
com relatos de fuga e isolamento geográfico, e aqueles que não relacionam sua história a nenhum
mito fundador, advindo da condição de escravo. No caso específico de seu estudo, envolvendo as
comunidades de São Pedro e Galvão, a autora diz que a identidade remanescentes de quilombos
vem sendo positivamente construída, associando-se a aspectos de parentesco e territorialidade e
transformando aspectos negativos que influências coloniais atrelaram, no passado, à identidade
negra (CARVALHO, 2006, p.80).
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No processo de reconstrução histórica da identidade das comunidades do Vale do Ribeira,
destacam-se os aspectos de autonomia e territorialidade. A autonomia desenvolvida pelas
comunidades aparece associada à quebra de ciclos econômicos na região, que se apoiavam no uso
do trabalho escravo. Ao passo que os grandes produtores se enfraqueciam politicamente devido
ao declínio econômico de suas atividades, a população negra liberta ou mesmo em estado de
fuga, consolidava estruturas baseadas em unidades familiares que produziam tanto para a
subsistência, como para a pequena comercialização, estabelecendo localmente, vínculos políticos
e sociais (SUNDFELD, 2002, p.78).
A territorialidade, por sua vez, é representativa das formas de uso e ocupação territorial
mantidas por essas comunidades. Essa territorialidade se conforma pela passagem da condição de
escravo a camponês (CARRIL, 2006, p.160; CHAGAS, 2001, p.4); ela incorpora aspectos de um
modelo de reprodução social intrinsecamente associado às condições ambientais do território.
“No vale do Ribeira, a presença de remanescentes de Mata Atlântica propiciou a
prática do extrativismo, como a extração do palmito e a existência de terras abundantes
e livres forneceu as bases, seja para a auto-sobrevivência ou para a comercialização,
bem como para a reprodução física e cultural desses grupos e seus modos de vida”
(CARRIL, 2006, p.159).
A construção dessa territorialidade, nos moldes em que se deu, está diretamente
relacionada ao estado de conservação ambiental da região. Carril (2006, p.161) e Carvalho (2006,
p.15), ambas as autoras que trabalharam no Vale do Ribeira, defendem a idéia de que as formas
de manejo e uso dos recursos naturais empreendidas historicamente pelas comunidades
garantiram em parte, a conservação do ecossistema de mata atlântica nessa região do estado.
Contraditoriamente, o estado de conservação ambiental na região é, atualmente, um dos
fatores que imprime restrições sobre o acesso das comunidades ao território. Mais do que a
conservação das áreas, as comunidades exercem suas práticas como substrato de um modelo
cultural de reprodução social. Nesse modelo, a terra é recurso e base de conformação de uma
sociedade, em que as comunidades constroem cotidianamente as relações sociais que propiciam a
sua permanência histórica no território.
O reconhecimento quilombola com a conseqüente titulação das terras em favor das
comunidades representa a continuidade da reprodução de territorialidades específicas,
conformadas por sociedades culturalmente diferenciadas. Apoiadas no arcabouço institucional
que lhes possa garantir seus direitos de posse sobre o território, as comunidades se auto-
identificam como quilombolas e remetem sua identidade não só a uma condição histórica
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57
legítima, mas especialmente ao processo atual de uso do território, processo esse cuja
manutenção é ameaçada por outras concepções culturais de uso territorial.
“Quer dizer, a concepção da terra enquanto território socialmente ocupado é
evidentemente chave para a vida desse grupo. O modo como essas famílias "guardam"
sua memória nessas estruturas narrativas, inscritas sobre o território, está intimamente
relacionado com a sua capacidade de imaginar o futuro, a partir da sua própria
condição de existência. Neste sentido, de fato, é importante considerar que dispor deste
território representa apropriar-se da própria história do grupo, das relações de
lealdade e solidariedade, do parentesco, da religiosidade, da ritualidade festiva e das
expectativas futuras projetadas sobre ele” (CHAGAS, 2001, p.15).
Dessa forma, parece fundamental que as instituições responsáveis pelo processo de
reconhecimento e titulação das comunidades, ao percorrerem o trajeto de reconstrução
antropológica da identidade quilombola das comunidades pleiteantes, possam também reconhecer
a natureza e a legitimidade dos pleitos. Os aplicativos jurídicos que encerram visões enrijecidas,
baseadas em conceitos restritivos e descontextualizados, não apreendem a dinâmica social que
historicamente dá conformidade a uma cultura, cuja forma de manifestação se pretende
resguardar.
A garantia dos direitos, portanto, está sujeita à consideração da contemporaneidade da
identidade construída. No caso das comunidades do Vale do Ribeira, a identidade se manifesta
pela defesa do território e das condições materiais de propagação de uma cultura. As
comunidades de André Lopes e Sapatu, inseridas nesse contexto, tiveram seus RTC concluídos
no ano de 2000, a partir do que foram formalmente reconhecidas como remanescentes de
quilombos.
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Figura 2. Mapa de localização do município de Eldorado no estado de São Paulo
Elaboração: Danúbia Caporusso (2008).
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Capítulo 5 – Histórico da ocupação negra regional: origem dos bairros de André Lopes e
Sapatu
O processo histórico de formação das comunidades está especialmente vinculado à
seqüência de atividades econômicas desenvolvidas na região e às formas como as comunidades
se manifestaram frente a elas.
Ivaporunduva novamente tem papel central no entendimento da formação histórica das
comunidades do Vale do Ribeira; ela é considerada a comunidade negra mais antiga da região.
Sua origem está ligada à atividade mineradora praticada na região, mais expressivamente durante
os séculos XVII e XVIII. Segundo registros históricos que compõem o laudo antropológico do
Ministério Público Federal, Ivaporunduva foi o lugar que abrigou o maior contingente
populacional entre mineradores e seus escravos, antes mesmo da fundação de Xiririca, atual
município de Eldorado e primeiro povoado do interior da região (ANDRADE; PEREIRA;
ANDRADE, 2000, p.66).
Depois de quase dois séculos de exploração, a mineração entrou em declínio na região e
os mineradores, gradualmente, abandonaram Ivaporunduva. Esse abandono deu-se inclusive em
relação aos trabalhadores escravos que se instalaram no lugar, através de cessões de terras de seus
antigos senhores ou simplesmente pela ocupação da área.
Essa ocupação se deu pela manutenção de pequenas roças de subsistência, inicialmente
criadas para abastecer os trabalhadores da mineração, mas que com o tempo, adquiriu relativa
estabilidade, transformando ex-escravos em pequenos produtores. A estabilidade da atividade
agrícola foi responsável por garantir certo equilíbrio quanto à dimensão da ocupação territorial
pelas comunidades negras e pelas propriedades que se utilizavam do trabalho escravo
(ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.68).
À medida que a população branca saía da região, a população negra ampliava sua
ocupação em Ivaporunduva. Esse fato causou repercussão regional, tornando Ivaporunduva
conhecido como povoado habitado por negros. A maioria negra e a fundação da Capela Nossa
Senhora do Rosário dos Pretos passou a atrair populações de negros libertos e fugidos que se
instalavam ao redor da capela, nos interiores e no entorno do povoado.
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60
“Instalados nas margens tributárias do Ribeira, em parcelas livres de terra,
complementavam a atividade agrícola por meio da caça, pesca e coleta e isolaram-se
em núcleos familiares que compunham grupo mais extenso unido por laços de
solidariedade próprios das relações de parentesco, compadrio e vizinhança.
Construíram uma identidade própria baseada na origem comum, na cor da pele e
sobretudo, na devoção à Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos” (ANDRADE;
PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.68).
Destacam-se, no caso de Ivaporunduva, as relações sociais desenvolvidas pela população
negra durante o período minerador. A abrangência de sua presença, compondo ao mesmo tempo,
relações livres e escravistas favoreceu a consolidação dessa população como grupo social,
integrado à rede de relações sócio-econômicas da região. Os pequenos produtores negros faziam
parte da economia regional e alimentavam o sistema de trocas fornecendo produtos para o
consumo local, além disso, eram considerados reserva de mão-de-obra para o trabalho nas
fazendas da região. Com isso, adquiriram autonomia e certo reconhecimento como moradores da
região, tendo inclusive registros de terras em seu favor (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE,
2000, p.73).
A crescente estabilidade alcançada pela população negra, somada ao seu domínio sobre as
técnicas de navegação propiciaram sua expansão para além do povoado de Ivaporunduva. Essa
expansão se deu por meio da ocupação das áreas dispostas às margens dos recursos hídricos da
região, sendo esses os principais canais de contato e comunicação entre os povoados negros que
aí se instalaram (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.74).
Os povoados negros formados na região eram compostos não só por populações de ex-
escravos, mas por grupos de pequenos produtores em busca de terras e por pequenos grupos
familiares que buscavam sua inserção na atividade de cultivo do arroz, em ascensão na região já
no século XIX. A ocupação das áreas girava em torno da necessidade de terras para cultivo,
empreendida tanto por fazendeiros, como por negros sem vínculo com o sistema escravista.
Segundo informações do laudo antropológico apresentadas no RTC de André Lopes, houve
diminuição considerável dos proprietários de terras que se utilizavam do trabalho escravo na
passagem do ciclo minerador para o ciclo rizicultor (STUCCHI, 1998 apud ITESP, 2000, p.13).
A participação dos pequenos produtores negros também é importante durante o ciclo
rizicultor. Além da produção de gêneros variados destinados à subsistência e ao mercado
regional, através da produção de arroz, esses produtores estabeleciam relações comerciais com o
mercado mais amplo, visto que o arroz era destinado ao abastecimento de províncias brasileiras,
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entre elas a do Rio de Janeiro, capital nacional na época (STUCCHI, 1998 apud ITESP, 2000,
p.13).
De forma geral, o início da ocupação negra no Vale do Ribeira, destacadamente os
séculos XVIII e XIX, demonstra que a população negra não se manteve em estado permanente de
isolamento social, tendo em vista sua condição de escravos ou ex-escravos. Em certos momentos,
os núcleos e povoados negros instalados se consolidaram como grupo de referência dentro da
estrutura social regional, fosse pela pequena produção de excedentes agrícolas, pela
disponibilidade de mão- de-obra ou pelos conhecimentos de navegação dos quais eram
detentores. Além disso, a ocupação negra na região teve origens variadas, abrangendo grupos
relacionados ou não ao sistema escravista.
Especialmente quanto às formas de reprodução social das comunidades negras do Vale do
Ribeira, destaca-se a expansão e a fixação territorial das populações a partir da composição de
laços de parentesco entre membros dos primeiros povoados, como no caso de Ivaporunduva e
São Pedro, e negros que chegaram mais tarde à região. Essa dinâmica resultou na formação de
diversos bairros existentes atualmente, dentre eles, André Lopes e Sapatu.
Origem do bairro de André Lopes
Segundo dados do RTC de André Lopes, a formação desse bairro deve ser compreendida
a partir de duas perspectivas principais: “1. A expansão territorial dos grupos negros
estabelecidos no entorno, como Ivaporunduva, São Pedro (antiga Lavrinha) e Nhunguara; 2. As
fugas de recrutamento para a Guerra do Paraguai” (ITESP, 2000, p.22).
Considerando-se a primeira perspectiva, destaca-se a existência de estreitos laços de
parentesco e relações sociais mantidos entre as comunidades vizinhas de André Lopes e
Nhunguara, que remetem a formação de ambas a uma origem histórica comum. Os bairros são
territorialmente contíguos e quando se trata da ocupação de Nhunguara, esse processo acaba se
estendendo naturalmente às áreas de André Lopes. Contudo, ressalta-se a existência de limites
territoriais tácitos já estabelecidos visto que o povoado de André Lopes já era conhecido como tal
no século XVIII, antes das principais incursões realizadas na área por moradores advindos de
Nhunguara.
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No caso de Nhunguara, algumas famílias são destacadamente citadas como responsáveis
por sua formação e a ocupação empreendida por estas famílias abrangia terras de André Lopes a
partir do século XIX. Segundo relatos apresentados pelo laudo do Ministério Público Federal, os
antepassados de Tomé Pedroso de Moraes, descendente de uma família instalada na Barra de
Nhunguara, seriam os responsáveis pela “abertura dos lugares” em Nhunguara e André Lopes
(ITESP, 2000, p.83). Tomé Pedroso de Moraes teve duas mulheres, Joana Dias de Ivaporunduva
e Donária Arcângela Furquim de São Pedro, povoados de formação mais antiga na região.
Donária Arcângela Furquim teve antepassados com importante função para a expansão da
ocupação negra na região. Ela foi neta de Bernardo Furquim, responsável pela formação das
atuais comunidades de Galvão e São Pedro, e foi filha de João Vieira, procedente de Nhunguara,
cujos familiares são reconhecidos pela formação da comunidade de André Lopes.
O tronco dos Vieira, composto por inúmeros irmãos, residia em grande parte em áreas de
Nhunguara. Conta-se que a partir de 1830, os primeiros descendentes dos Vieira, deslocando-se
para o interior de Nhunguara, acabaram ocupando áreas de André Lopes. Essa ocupação está
diretamente relacionada ao recrutamento de combatentes para a Guerra do Paraguai, segunda
perspectiva a ser considerada no processo de formação do bairro (ITESP, 2000, p.28).
Com o advento da Guerra do Paraguai, aumenta a pressão pelo alistamento de
combatentes e muitos homens são recrutados à força pelo exército, que incluía menores de 10 a
17 anos entre os alistados. O primeiro registro de alistados de Xiririca apresentou sete voluntários
em 1965, com uma desistência posterior no mesmo ano. Já em 1966, o município apresentava 54
recrutados. O baixo número de recrutados, somado a uma epidemia de cólera que vitimou quase
300 pessoas na época, despertou a atenção para o recrutamento de homens dos povoados negros
da região.
Essa atenção voltou-se especialmente para homens solteiros e sem propriedades de terras,
negros e descendentes, livres ou libertos que não possuíssem nenhum vínculo empregatício. Esse
fato somava-se ainda às preocupações dos poderes locais com o crescimento da população negra
na região, alvo de constantes recriminações sociais, mesmo considerando sua contribuição para a
produção agrícola local (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.85). Diante da
possibilidade de recrutamento, muitos negros refugiaram-se em possíveis esconderijos na região.
Esse é o caso da ocupação da atual Caverna do Diabo. A própria abertura da caverna foi
resultado da busca por abrigos na época da Guerra do Paraguai. O feito é atribuído a Domingos
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Vieira Dias, irmão de João Vieira. De acordo com o RTC de André Lopes, há relatos de que os
irmãos Vieira chegaram a ir para a guerra, e conseguindo escapar, se instalaram nas imediações
da caverna; nessa ocasião teria se dado a descoberta da gruta (ITESP, 2000, p.28).
A partir daí, há relatos de ocupação da área para a construção de roças e a instalação de
famílias. Com o passar do tempo e o término da guerra, os foragidos se tornaram ocupantes e
passaram a utilizar a caverna como depósito para a produção de grãos (ITESP, 2000, p.28). O
episódio da guerra, contudo, teve forte influência na vida dos moradores desse povoado. Algumas
famílias passaram a se autodenominar Paraguaia, uma alusão ao evento que envolveu alguns de
seus membros como fugitivos ou como combatentes (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE,
2000, p.92).
“Ocupando a condição de nome de família, a menção transforma-se numa referência de
caráter social que agrega grupos familiares diferentes em torno de uma mesma origem
histórica e social. (...) Estabeleceu-se como marca social a partir de processos de fuga
bem situados no tempo, revelando que os negros ocupavam uma posição, de certa
maneira frágil ou tensa, na estrutura social, ainda que fossem reconhecidos como livres
ou libertos”(ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.92).
A comunidade continuou a se expandir a partir da instalação de outras famílias e de suas
respectivas áreas de produção. No RTC de André Lopes constam relatos sobre a forma como os
moradores procediam ao fazer suas roças. Os limites territoriais ocupados pelas famílias não
eram rigidamente fixados, mas giravam em torno das necessidades das mesmas. O critério de
ocupação essencial era a possibilidade de abertura das capuavas, as roças de subsistência das
famílias. Ocupando dois ou três alqueires de área, as famílias se estabeleciam e criavam
acampamentos (ITESP, 2000, p.30).
Esse processo, chamado acamponesamento no relatório, deu seqüência à formação dos
atuais bairros das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira (ITESP, 2000, p.31). Os
depoimentos dos moradores no relatório demonstram que a construção de uma roça dependia
mais da disponibilidade do sujeito do que da disponibilidade de áreas. As famílias tinham certa
autonomia para abrir suas roças em áreas desocupadas e esse processo se perpetuava com as
gerações seguintes; após trabalhar por alguns anos com os pais, o homem, mesmo solteiro,
construía e cuidava de sua própria roça.
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Origem do bairro de Sapatu
A formação do bairro de Sapatu é atribuída ao processo de expansão territorial das
comunidades negras em busca de terras agricultáveis. Essa necessidade aumentou com o declínio
da atividade mineradora e a ascensão da atividade rizicultora, consolidando o Vale como região
produtora e exportadora de cereais e as comunidades negras, como pequenos produtores rurais
(ITESP, 2000, p.31).
No processo de ocupação de Sapatu, as referências aos antepassados vinculam essa
comunidade a mesma rede de parentesco que envolvia as principais comunidades negras de seu
entorno. Destaca-se a instalação de Zeferino Furquim, filho de Bernardo Furquim da comunidade
de São Pedro. Zeferino teria se instalado em Sapatu ainda no século XVIII e se unido a duas
mulheres, Paula e Maria (ITESP, 2000, p.32). Um de seus filhos, chamado Júlio Furquim, teria
comprado terras de José Júlio da Silva, um comerciante negro, proprietário de terras adquiridas
oficialmente em doação pelos serviços prestados durante a Guerra do Paraguai e que vivia na
passagem para São Pedro (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.81; ITESP, 2000, p.32).
A guerra também repercutiu fortemente nessa comunidade, com a ida de moradores aos
campos de combate, seguida de voltas em fuga e busca por esconderijos na região. Dentre a
comunidade, também se apresentam famílias de sobrenome Paraguaia (ITESP, 2000, p.32). No
caso de Sapatu, ainda é feita menção sobre o trabalho escravo associado às fábricas de açúcar e
aguardente (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.81; ITESP, 2000, p.37)
A história de formação de Sapatu aparece muito mais breve nesse caso em vista do
contexto de formação regional traçado anteriormente, através das histórias de Ivaporunduva e
André Lopes. Esse fato é sintomático das raízes comuns que compõem o histórico de formação
da região, ademais das narrativas particulares de cada bairro. A atividade de mineração e seu
declínio, a seqüência do ciclo rizicultor, a Guerra do Paraguai foram fatores que influenciaram,
ao mesmo tempo, a dinâmica de formação de inúmeros povoados negros na região.
A tentativa de se encontrar uma origem exata, definida temporal e espacialmente nesse
processo, é infrutífera. Mas pode-se recorrer mais uma vez ao que é comum e que caracteriza de
modo geral, as formas de ocupação territorial dessas comunidades.
Como já destacado durante o histórico de André Lopes, o método de formação inicial dos
povoados estabeleceu-se em torno da possibilidade de construção de roças de subsistência que
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atendessem às necessidades materiais dos grupos. Esse processo aconteceu concomitante ao ciclo
minerador, visando a própria manutenção dos trabalhadores e mais especialmente a partir do
declínio da atividade e com a entrada do cultivo de arroz na região.
O cultivo de arroz por sua vez, parece ter imprimido certa dinâmica ao processo de
expansão da ocupação negra. Nesse caso, a itinerância da prática agrícola é estimulada pela
demanda por áreas promovida pela própria atividade e favorecida pela disponibilidade de terras
desocupadas na região. O caráter de itinerância se demonstra também pelas constantes idas e
vindas, entre povoados, de alguns dos principais antepassados das comunidades que se tornaram
lideranças no processo de formação dos bairros. Frequentemente, esses sujeitos aparecem
ocupando áreas em diversos bairros, desposando mulheres e deixando descendentes.
Esse é o caso, por exemplo, de Bernardo Furquim, escravo que teria chegado juntamente
com mais um grupo formado por mulheres e homens e que encontrou um grupo de ex-escravos já
instalados na atual comunidade de Pedro Cubas. Esse grupo teria indicado um lugar para o
acampamento do grupo recém-chegado, atual comunidade de São Pedro e mais tarde lhes
fornecido mudas e sementes para o cultivo de roças (CARVALHO, 2006, p.27).
Bernardo Furquim é tido como responsável pela formação de dois bairros na região, os
atuais São Pedro e Galvão. Consta que ele teve duas mulheres e vinte e quatro filhos; seus filhos
por sua vez, parecem ter dado seqüência à expansão territorial do tronco familiar, segundo o
relato: “(...) em Pilões tem Furquim, em Maria Rosa tem Furquim. Por causa dessa descendência
grande esparramou Furquim, vai indo, vai indo e vai esparramando um tanto para lá, um tanto
para cá. Em serra acima tem Furquim” (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.76).
Figuras como Bernardo Furquim deram importante contribuição para a expansão da rede
de parentesco na região; alguns de seus descendentes diretos aparecem na composição
genealógica das comunidades de André Lopes e Nhunguara. Uma das filhas de Bernardo
Furquim teria se casado com João Vieira, procedente de Nhunguara.
Essa dinâmica demonstra também que a disponibilidade de terras garantia relativa
liberdade para que os grupos se instalassem temporariamente e migrassem mais tarde em busca
de novas áreas. A itinerância somada às alianças de casamento estabelecidas entre os grupos
delineou um tipo de ocupação territorial característica na região que vincula o seu processo de
povoamento à expressiva presença da população negra.
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66
“Os levantamentos genealógicos permitem identificar padrões de fixação reiterados ao
longo do tempo que fundam uma sociabilidade que relaciona, de maneira específica, os
vários bairros negros do Vale do Ribeira formando uma continuidade sócio-histórica-
cultural” (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.76).
A expansão territorial dos grupos, apoiada na pequena produção agrícola, garantiu
estabilidade para a sua permanência na região. As roças particulares atendiam, em grande
medida, as necessidades familiares. A produção gerada, somada à criação de animais eram
suficientes para prover as famílias, inclusive quanto a outros produtos como sal, querosene e
tecidos que eram negociados em troca da produção familiar. Os mutirões para colheitas ou
plantio também são citados como muito comuns naquela época. Eles inclusive foram fonte de
integração entre moradores de povoados diferentes, como demonstra Carvalho (2006, p. 29) ao
descrever as estratégias de ocupação empreendidas por Bernardo Furquim na formação dos
bairros de Galvão e São Pedro.
A expansão dos grupos negros, sua participação na economia regional e sua inserção na
vida social da região, não passaram despercebidas às autoridades locais que desenvolveram
estratégias para conter esse movimento. A principal delas parece ter sido o recrutamento de
homens negros, vistos como população potencialmente apta para lutar na Guerra do Paraguai
(ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.89).
Contudo, a população negra desenvolveu, em resposta, estratégias de resistência que
conforme visto, ampliaram ainda mais sua ocupação pela região. A resistência aos processos de
perseguição e discriminação social aparece como laço que também unifica as comunidades
negras em torno de uma história coletiva. É notório que uma espécie de origem comum, fosse
pelo passado escravista ou mesmo pela etnia negra, facilitou em alguma medida, o adensamento e
as formas de relacionamento entre esses grupos.
As relações mantidas entre os grupos estavam fundamentadas em laços de parentesco e
solidariedade que conformaram uma cultura específica como fator de reprodução social na
região. Frente ao contexto da época, essa população consolida formas de relacionamento que a
define como grupo social, construtor de uma territorialidade específica em relação a outros
grupos sociais, já que como visto, os povoados negros mantiveram um regime de coexistência
com a sociedade regional. Com o passar do tempo, é possível identificar as formas de propagação
da construção histórica erigida por esses grupos, presente e manifesta nas formas atuais de
expressão cultural das chamadas Comunidades Remanescentes de Quilombos.
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67
Abaixo, segue a transcrição de parte das conclusões apresentadas no laudo antropológico
produzido para fins de reconhecimento de algumas comunidades do Vale do Ribeira:
“Concluímos portanto:
que as comunidades rurais negras de Ivaporunduva, São Pedro, Pedro Cubas, Sapatu,
Nhunguara, André Lopes, Maria Rosa e de Pilões são remanescentes de quilombo por
guardarem um vínculo histórico com comunidades de antigos quilombos; e que todas
elas fazem parte de uma „comunidade‟ em sentido mais amplo, formada pelos bairros
negros do vale do rio Ribeira do Iguape, que guardam igualmente, em seu conjunto, um
vínculo histórico com comunidades de antigos quilombos, uma vez que, tanto quanto as
anteriores, têm sua origem vinculada à emergência, nos séculos XVIII e XIX, de um
campo de relações sociais formado eminentemente por populações negras, inclusive
quilombolas, que se constituiu em conjunto com a ocupação territorial negra no vale,
possibilitando sua continuidade” (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.18).
Perguntado sobre o significado do reconhecimento da identidade quilombola, Sr. Pedro
Pereira, morador e liderança da Comunidade de Sapatu, conclui:
“(...) o reconhecimento já é um objetivo né, que dá mais uma firmeza pra gente como
comunidade, né, a gente brigar pra que seja respeitado esses direitos nossos de ter o documento
da terra pra comunidade, porque a gente tem sofrido tanto né, a gente até tem comentado que já
este ano já vai pra 507 anos de luta né, a gente vê que várias, vários tipos de posição que vem
pro Brasil, eles é respeitado o direito deles de sobreviver e até de conseguir patrimônio dentro
do Brasil e os negro até agora né, tá sendo difícil pra ser considerado e respeitado esse direito
que nós temo, agora garantido por lei né, que não foi o governo que colocou essa lei, foi o
próprio, a própria organização do povo negro né que fez valer essa lei (...)” (Entrevista em
03/01/2007).
Diante do histórico apresentado, buscamos identificar o significado e o teor social
construído em torno da identidade quilombola. O passado, como se verá, não está tão desconexo
com o presente, e a condição de resistência e afirmação política encampada pelas comunidades é
ainda hoje muito atual.
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Figura 3. Placa para visitantes na comunidade de André Lopes
Foto: Ivie Santana (2008)
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Capítulo 6 – Territorialidade como expressão material de uma identidade cultural
Quando se trata de analisar a territorialidade construída por uma população ou uma
comunidade, especialmente considerando-se que essa construção se dá em torno de um modo
específico de apropriação do espaço, é necessário identificar os componentes através dos quais a
materialização espacial ocorre.
A territorialidade, constituída por formas de produção e de sociabilidade, se torna
específica quando manifesta concepções diferenciadas, norteadas pela atribuição de outros
critérios de valor aos recursos territoriais, normalmente submetidos a um modelo hegemônico de
apropriação. Sua especificidade se dá à medida que essa diferenciação é apreendida na relação
dos sujeitos que atuam na construção do território. Sendo então contrária ou simplesmente
divergente quanto à natureza de conformação espacial, a territorialidade é classificada como
específica, diferenciada e torna-se assim, representativa de uma lógica cultural que se expressa
dialeticamente em relação a outras territorialidades existentes.
O Vale do Ribeira, caracterizado por um contexto regional que alia conservação ambiental
e estagnação sócio-econômica dentro do Estado de São Paulo, abriga territorialidades específicas,
classificadas inclusive segundo alguns indicadores de desenvolvimento; o Vale do Ribeira
paulista é considerada a região portadora de menor IDH do estado.
Por meio de outra perspectiva, buscamos analisar os fatores que compõem as
territorialidades construídas pelas comunidades remanescentes de quilombos de André Lopes e
Sapatu. Os critérios de análise são as formas de reprodução social dessas comunidades, situadas
frente ao contexto regional do qual fazem parte.
Os Relatórios Técnicos Científicos de André Lopes e Sapatu classificam as comunidades
negras do Vale do Ribeira como camponesas (ITESP, 2000, p.2; ITESP, 2000, p.4). Para
justificar tal conceito, se utilizam de referências advindas das Ciências Sociais que consideram
fundamentalmente o modo de apropriação espacial e de organização social das comunidades.
Nesse sentido, ressaltam a cultura de subsistência com baixo impacto ambiental, baseada no
trabalho familiar e com pouca participação no mercado através da produção de excedentes.
O caráter camponês, característico do compartilhamento do território e da expressão de
uma identidade (ITESP, 2000, p.9), está associado especialmente às formas como esses grupos
concebem o uso da terra e dos recursos dela provenientes. As relações, nesse caso, se baseiam no
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valor de uso atribuído a terra enquanto matéria-prima e meio de produção e não no valor de troca,
enquanto recurso para a comercialização (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.120).
Os estudos sobre comunidades camponesas sugerem que suas práticas de apropriação
territorial não se enquadram dentro dos conceitos e critérios da economia capitalista de mercado,
mas são conduzidas segundo prioridades outras como a satisfação das necessidades dos grupos
domésticos, unidade reprodutora essencial. Mesmo os excedentes comercializados como parte de
uma economia de mercado destinam-se a atender a esse princípio (ANDRADE; PEREIRA;
ANDRADE, 2000, p.123).
Essas economias são também fundamentadas nas relações de parentesco e solidariedade
mútua mantidas entre os núcleos familiares. Essa condição reitera a autonomia desenvolvida por
esses grupos e estabelece um regime comunal de uso da terra constituído através do trabalho, da
reprodução familiar, das festividades e de outros aspectos de sociabilidade. Destaca-se inclusive
que nessas sociedades não há dicotomização entre espaço e tempo de trabalho e lazer como nas
sociedades contemporâneas. Os espaços, além de comuns para ambas as práticas, abrigam a
continuidade do tempo de trabalho e de lazer como momentos intrinsecamente ligados na
experiência de vida dessas comunidades (ITESP, 2000, p.15).
Um exemplo dessa relação está na prática dos mutirões. Essa atividade, freqüentemente
praticada na região até algumas décadas atrás, caracterizava o exercício do lazer em decorrência
do exercício do trabalho. “O dono da roça não pagava os participantes do trabalho com
dinheiro, mas com refeições e baile no final do dia. Dessa forma, todas as famílias recebiam
ajuda dos demais e, em contrapartida, todos tinham a obrigação de ajudar sempre que alguém
convocava um mutirão” (ITESP, 2000, p.16).
O modelo comunitário de uso da terra dessas populações, inclusive denominado “terras
de preto” consiste na “existência de terras de uso comum, com parcelas indivisas que são
transmitidas de geração em geração ao conjunto de moradores de uma comunidade rural”
(ARRUTI, 2003, p.10). O uso comunal, contudo, admite a existência concomitante de usos
individualizados sobre a terra, correspondentes às áreas de domínio familiar. A prática do mutirão
expressa bem essa dinâmica entre uso individual e coletivo; ao passo que uma família em
particular reúne outras famílias para auxiliarem na colheita ou no plantio de sua produção, ela se
compromete em fornecer auxílio recíproco quando essas outras famílias necessitarem.
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A terra, o trabalho e o lazer, recursos não mercantilizáveis, definem-se como expressão de
existência dessas comunidades. Os relatos sobre a livre ocupação das terras, itinerante e
temporária, demonstram que os limites de fixação territorial mantidos pelas comunidades não se
estabeleceram rigidamente, mas a condição de acesso a terra para a sua reprodução social
constituiu-se como necessidade permanente.
“Esse modo de apropriação, por um lado, comporta a idéia de um direito
individualizado sobre a terra e, por outro, esse direito só se torna possível a partir da
existência de um território que contenha “áreas de reserva”, dada a plasticidade da
apropriação decorrente da mobilidade das casas e das roças. Trata-se de um contexto
rural de apropriação precária, uma vez que está apoiada na posse. São posses
individuais que fazem parte de um território maior e “comunal” referenciado a um
ancestral fundador” (ITESP, 2000, p.18).
A posse sobre o território é legitimada pelas formas de ocupação das famílias sobre a
terra. A terra é o elemento onde se fundamenta a construção da cultura camponesa (ITESP,
2000), já a cultura se constrói a partir da organização social que as comunidades imprimem ao
espaço, dando conformidade ao território, a própria territorialidade. Sendo assim, a posse
territorial constitui justamente a possibilidade de expressão material dessa cultura.
Em seu estudo sobre a comunidade de Ivaporunduva, Queiroz (1983) observa
inicialmente que não fosse pela marcada presença da etnia negra entre os habitantes da
comunidade, em termos de práticas culturais, ela se equiparava às comunidades dos bairros rurais
paulistas estudados anteriormente por outros autores12 (QUEIROZ, 1983, p.31). Adotando-se a
cultura caipira como referência, o autor destaca a relativa homogeneização da condição sócio-
econômica das famílias e a importância de determinadas práticas sociais para a reprodução de
cada núcleo em si. Descreve sobre eles: “São traços característicos dessas unidades de
povoamento e de seus componentes o seu acentuado isolamento, a posse e a disponibilidade de
terras, o trabalho doméstico, o auxílio vicinal e a ampla margem de lazer” (QUEIROZ, 1983,
p.47).
O autor atribui o isolamento identificado na comunidade de Ivaporunduva tanto às
condições sócio-econômicas da região, como a uma possível estratégia de constituição da
comunidade ao agregar o elemento negro e rural como essencial na sua formação (QUEIROZ,
1983, p.32).
12
Queiroz se refere aos estudos empreendidos por Cândido (1977) e Pereira de Queiroz (1967).
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72
Sobre a condição sócio-econômica das comunidades, a relativa homogeneização citada
compreende diferenciações entre os núcleos familiares, no entanto, essa condição as classifica, de
forma geral, como produtoras de economias marginais, subdesenvolvidas e primárias em termos
de tecnologia e produção de bens (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.126). Essa
análise, feita com base nos critérios de avaliação da economia capitalista, não leva em conta que
esse tipo de produção social abrange elementos simbólicos onde o sistema de trocas envolve
critérios mais amplos referentes à autonomia, ao parentesco, à solidariedade, à identidade coletiva
que conforma uma territorialidade específica, produto da base material combinada com a
organização social orientada por esses princípios.
“Aquilo que, do ponto de vista do Estado e da economia coloniais/nacionais, é um
processo de decomposição, representa, na verdade, para aqueles que vivenciam o
processo do ponto de vista das comunidades em si mesmas, a constituição de
especificidades sócio culturais, cuja mais evidente distinção em relação aos núcleos
populacionais da sociedade abrangente é o grau de autodeterminação na gestão de seus
próprios destinos, que segue a par com suas formas peculiares de ocupação territorial,
com sua organização social distintiva e com um conjunto de práticas econômicas
diferenciadas, por sua própria natureza de subsistência, daquelas da economia
colonial” (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.125-126).
Queiroz (1983, p.133) por sua vez, aponta duas perspectivas para o tratamento desta
questão. A primeira trata da hipótese de que essas economias, teoricamente primárias e carentes
de recursos, revelariam ao contrário, uma situação de abundância em vista da compatibilidade
entre a baixa produção e o baixo consumo. Por outro lado, a mesma situação encerraria, segundo
o autor, o risco de uma economia de poucos recursos se aproximar de uma situação de real
precariedade das condições de vida e de atendimento das necessidades básicas das comunidades.
O autor conclui, no caso de Ivaporunduva, que as práticas sociais comunitárias, tais como
os mutirões e as festividades operariam como mecanismos que visam garantir, através da
integração e da associação dos moradores em atividades coletivas, o acesso aos bens materiais de
forma eqüitativa a toda a comunidade (QUEIROZ, 1983, p.133).
As comunidades de André Lopes e Sapatu estão situadas nessa mesma condição de
classificação. Baseadas no trabalho familiar, as comunidades exercem práticas agrícolas voltadas
ao atendimento do próprio consumo, além de práticas extrativistas e outras atividades para a
complementação da renda doméstica, necessária para a aquisição de bens não produzidos por
elas.
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A produção agrícola é variada, abrangendo culturas temporárias tais como arroz, milho,
feijão, cana-de-açúcar, e culturas de frutas, tais como banana, abacaxi, maracujá, entre outras.
Também são cultivadas algumas hortaliças e vegetais silvestres, tais como coentro e gengibre. A
produção agrícola, especialmente a relacionada às culturas temporárias é praticada sob o regime
de coivara. Esse regime compreende um sistema de rodízio de culturas e espaçamentos de tempo
para o uso e aproveitamento da terra, compreende também técnicas tradicionais de preparo e
plantio.
“A roça era aberta antes do início das chuvas, em local de mata densa, onde o „cabeça‟
da família delimitava um trecho (entre 1 ha. e 6 ha., dificilmente maior) e fazia
derrubada da vegetação rasteira com o auxílio da força ativa de seu grupo doméstico,
normalmente os filhos maiores. A vegetação rasteira e de pequeno porte era então
empilhada em locais estratégicos do terreno e deixada por algum tempo até que secasse.
(...) Algum tempo depois, procedia-se à derrubada das árvores maiores, de acordo com
o planejamento logístico, para que a derrubada de umas pudesse auxiliar na queda das
outras. Os troncos maiores eram deixados no terreno, semi-queimados e o plantio era
feito imediatamente depois das queimadas das pilhas de vegetação derrubadas, agora
secas” (LA – MPF, 2000 apud ITESP, 2000, p.26).
Depois desse preparo, os produtos eram plantados, intercalando-se as culturas conforme o
tempo de colheita. As roças localizavam-se com certa distância das moradias, devido entre outros
fatores, à necessidade de deslocamento para a construção de novas roças, visto que as áreas
previamente utilizadas estariam em período de descanso.
“A terra era posta em período de descanso por períodos que chegavam a doze anos,
mas de forma nenhuma, inferiores a três para permitir a formação de uma cobertura
vegetal denominada, na região, capoeira ou capuava, que reconstitui os nutrientes do
solo, condição essencial para que ele possa ser novamente utilizado” (LA – MPF, 2000
apud ITESP, 2000, p.27).
A esse sistema de manejo agrícola se atribui justamente o caráter conservacionista das
técnicas comunitárias. O preparo da terra, tal como é feito garante a preservação dos nutrientes do
solo, fator essencial para o sucesso das plantações. O tempo de descanso por sua vez, é necessário
porque a terra utilizada já não garantiria uma boa plantação, além de se tornar inutilizável para a
função de plantio a partir de seu uso ininterrupto. Ressalta-se ainda, o fato de que a ocupação das
terras para uso agrícola das comunidades coibiu a expansão do uso agrícola dos grandes
produtores da região (GUANAES el alli, 2004, p.267), empreendida com técnicas mais
agressivas ao ambiente.
Nota-se que as práticas comunitárias não foram classificadas pelas próprias comunidades
como conservacionistas, mas são concebidas dentro da lógica de manutenção de reprodução
social das mesmas. Sendo assim, a conservação dos recursos naturais encerra a possibilidade de
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preservação de seu próprio modo de vida. Queiroz (1983, p.128) defende que, a despeito das
soluções técnicas dessas comunidades serem consideradas ineficientes, elas demonstram perfeita
adequação para a exploração dos recursos naturais disponíveis, especialmente porque se baseiam
no conhecimento empírico dos mecanismos ambientais.
É importante relativizar a perspectiva anterior, visto que o sistema de manejo comunitário
dos recursos naturais é considerado conservacionista dentro de determinada escala de uso; a
agricultura empreendida com a técnica das queimadas, como fazem as comunidades, não seria,
em uma escala de uso intenso, admitida como prática conservacionista. Além disso, a exemplo de
atividades extrativistas como a retirada do palmito juçara, as comunidades, dentro de
determinado contexto social, conforme se verá mais adiante, acabam empreendendo práticas
nocivas à conservação da espécie.
Além da prática agrícola, as comunidades possuem criações de pequeno porte, tais como
porcos, galinhas, patos, cabritos, entre outros. Essas criações destinam-se à complementação da
dieta alimentar das famílias e à comercialização, por troca ou venda, para a aquisição de outros
bens, pagamento de despesas externas, entre outros (LA – MPF, 2000 apud ITESP, 2000, p.24).
Destinada também à complementação da dieta alimentar das famílias, encontra-se a pesca,
praticada nos córregos e rios que banham os bairros (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000,
p.128).
Esse modelo de reprodução social que envolve toda a família (QUEIROZ, 1983, p.56-57)
é definido pela divisão de tarefas que incorpora o pai como chefe da unidade familiar e
responsável pela abertura e construção das roças juntamente com os filhos homens mais velhos; e
a mãe como responsável pelo plantio e pelos afazeres domésticos. Essa unidade se reproduz com
os filhos mais velhos construindo as próprias roças, sendo casados ou solteiros. Sendo casados,
parece mais comum que as unidades familiares se constituam em torno do núcleo familiar da
mulher, onde o genro auxilia o sogro e mantém suas próprias atividades (ANDRADE; PEREIRA;
ANDRADE, 2000, p.147).
O tempo de trabalho é regido segundo o ritmo imposto pelo calendário agrícola e as
etapas produtivas. Essa dinâmica garante às comunidades períodos seguros de ócio que estariam
relacionados à organização de festividades ou à execução de práticas produtivas complementares
à agrícola.
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75
Esse modelo de reprodução social, que rege a apropriação do território por meio do
estabelecimento subseqüente das unidades familiares, é característico destas comunidades no
período atual, contudo, algumas dessas práticas vêm sofrendo alterações a partir de alterações do
próprio contexto socioeconômico regional.
Queiroz (1983, p.56) chega mesmo a dizer que esse modelo prevaleceu do período em que
declina a atividade mineradora na região até a metade do século XX, confirmando temporalmente
a passagem das comunidades da condição de escravos a camponeses. A segunda metade do
século XX é especialmente marcada por iniciativas que tiveram como objetivo transformar o
contexto sócio-econômico da região em face de sua situação de atraso e isolamento frente ao
restante do Estado de São Paulo.
Essas iniciativas por sua vez, ao passo em que beneficiaram os núcleos urbanos da região,
impactaram especialmente a população rural, vítima de processos de especulação imobiliária,
promovida pela valorização das áreas através da construção de estradas e da instalação de
serviços de comunicação e abastecimento (QUEIROZ, 1983, p.36). Tais impactos serão
analisados mediante a alteração das condições de reprodução social mantidas pela comunidade.
Os impactos dizem respeito essencialmente a conflitos de ordem fundiária decorrentes da
instalação de infra-estrutura, de novas atividades econômicas e de unidades de conservação
estaduais. De forma geral, apreende-se dessas iniciativas a negligência em relação ao modo de
produção social que as comunidades vêm constituindo historicamente. Algumas das iniciativas
ou a hipótese delas, não apenas comprometem a reprodução das comunidades, como eliminam
sua chance de existência nos territórios que ocupam atualmente.
Nesse sentido, o reconhecimento quilombola é possuidor, fundamentalmente, do caráter
de resistência e afirmação de um grupo social, ademais da identidade histórica e das formas de
classificação cultural aqui identificadas. Ele é o recurso essencial que remete não só à expressão
da posse, mas à condição de propriedade territorial, garantia da livre manifestação de sua
territorialidade.
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Associações de Remanescentes de Quilombos das Comunidades de André Lopes e Sapatu
O bairro de André Lopes localiza-se na zona rural do município de Eldorado, distante
cerca de 50 km do perímetro urbano. Pelo bairro passa a rodovia SP-165 que liga o município de
Eldorado a Iporanga, a mesma estrada que dá acesso à Caverna do Diabo. O bairro foi assim
denominado em referência a uma lenda sobre o naufrágio de um sargento-mor da Ilha de São
Sebastião chamado André Lopes de Azevedo, residente da Freguesia de Tiririca e morto aos 15
de junho de 1764, com cem anos de idade (ITESP, 2000, p.83).
A Associação de Remanescentes de Quilombos da Comunidade de André Lopes iniciou
sua formação durante os anos de 1996 e 1997, mas foi oficialmente criada em 28/08/1998. A
criação foi motivada por uma ação judicial de despejo contra a comunidade, movida por um
senhor que se dizia proprietário de toda a área do bairro. Com o objetivo de se organizar em
defesa própria e com a perspectiva, na época, de ser reconhecida como remanescente de
quilombo, devido ao início dos estudos empreendidos pelo ITESP e pelo MPF, a comunidade
criou a associação.
Segundo o Sr. Adilson Oliveira, morador e liderança de André Lopes, a comunidade
possui cerca de 350 moradores e a associação de moradores possui em média 100 associados. As
formas de ocupação são variadas, abrangendo funcionários públicos, monitores ambientais,
artesãos, comerciantes, contudo, a principal atividade de seus moradores é a roça de subsistência,
com pequeno excedente para a comercialização (Entrevista em 18/07/2008).
A comunidade possui 1 escola estadual que atende alunos do ensino primário ao ensino
médio, a E.E. Maria Antonia Chules Princesa. Possui também 1 centro de artesanato, 1 quadra de
esportes, 1 posto de saúde, 1 centro comunitário que funciona como sede da associação de
moradores e como telecentro improvisado, 3 igrejas e 2 cabines de telefone público.
A área de atendimento à saúde é deficiente, especialmente em relação ao transporte de
pacientes. A cobertura de saneamento básica no bairro também é considerada precária, mais
quanto à destinação do esgoto que ao abastecimento de água. A comunidade é servida por
somente uma linha de transporte particular, que circula 2 vezes ao dia, fazendo o trecho da
comunidade até o município de Eldorado.
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Figura 4. Estrada de acesso à caverna na comunidade de André Lopes
Figura 5. E.E. Maria Antonia Chules Princesa
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Figura 6. Igreja e centro comunitário (ao fundo) de André Lopes
Figura 7. Bairro de André Lopes
Fotos: Ivie Santana (2008)
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O bairro de Sapatu também se localiza na zona rural do município de Eldorado, distante
cerca de 35 km do perímetro urbano e distribui-se ao longo das duas margens do rio Ribeira de
Iguape, por cerca de 5 km. O bairro também é cortado pela rodovia SP-165 (ITESP, 2000, p.31).
Dentro do bairro de Sapatu encontram-se “localidades contíguas distintas” (ITESP, 2000,
p.37), conhecidas como Indaiatuba, Cordas e Sapatu. Em conversa com o presidente da
associação de moradores, Sr. Josias Moreira, ele esclarece que essa divisão territorial é derivada
do fato de que o bairro é cortado por pequenos rios e foi inicialmente classificado segundo os
nomes desses rios. Ele também cita a existência de uma localidade com o nome Cafezal,
enquanto no RTC da comunidade, é citada uma localidade conhecida como Baixio Preto (ITESP,
2000, p.37), ambas pouco mencionadas atualmente. Todavia, essas antigas localidades
conformam um único bairro chamado Sapatu, reconhecido como tal pela administração
municipal de Eldorado e por pessoas de fora da comunidade (Entrevista em 17/07/2008).
O RTC da comunidade apresenta essa forma de classificação territorial, referindo-se à
existência de “sítios”, como espaço que agrega unidades nucleares, pertencentes a uma parentela
extensa, e de “bairros”, como espaço que agrega os diferentes sítios a partir das relações sociais
estabelecidas entre os moradores dos sítios, definidoras de limites territoriais (ITESP, 2000,
p.38). A despeito de qualquer iniciativa de cisão social que pudesse haver relacionada a essas
formas de classificação, o presidente da associação nega a possibilidade e afirma que todos se
reconhecem como moradores do bairro de Sapatu. Sobre a origem do nome do bairro, o
presidente relata:
“(...) Parece que tinha duas mulher quilombola lavando roupa no riacho, aí começaram a
brigar, uma xingou você é uma sapa, e a outra falou sapa é tu, aí ficou o nome Sapatu”.
O Sr. Pedro Pereira, morador da comunidade, conta que inicialmente formou-se uma
associação de pequenos produtores rurais em Sapatu, na época incentivada pela Igreja Católica,
com a finalidade de conter processos de grilagem de terras, inclusive com a existência de
conflitos. A associação foi pensada como alternativa para a comercialização da produção, mas
especialmente como recurso para proteger a comunidade nas disputas com grileiros (Entrevista
em 03/01/2007).
A partir da década de 1950, intensificaram-se os processos de grilagem empreendidos por
pessoas de fora da comunidade que usavam artifícios como a ocupação de terras com gado, troca
de terras por produtos ou dinheiro, até formas de coerção física e verbal. Algumas das terras
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80
ocupadas por grileiros passaram posteriormente a pertencer a terceiros, definidas como
propriedades particulares, inclusive com títulos expedidos (ITESP, 2000, p.42).
A primeira associação teve duração de 10 anos, quando no ano de 1997, por conta de uma
enchente que atingiu a comunidade, perdeu-se parte de seus documentos. Na mesma época, a
comunidade tomou conhecimento sobre os direitos garantidos a remanescentes de quilombos, e
previamente engajada na luta contra à construção das barragens na região, optou por cancelar o
registro da antiga associação e criar uma nova, como remanescente de quilombo (ITESP, 2000,
p.44). O objetivo da atual associação é garantir o título da terra, que deve ser emitido em seu
nome, como esclarece Sr. Pedro:
“(...) A prioridade é o documento da terra, porque a gente tendo o documento da terra em
mão, a gente tem mais força né pra lutar por outros direito, buscar os outros objetivo, e a gente
tá lutando pra isso né, acreditando né, apesar de que a gente sabe que encontra bastante
dificuldade né, até por exemplo na, assim na lentidão pelo processo de reconhecimento... o
reconhecimento teve das área, mas por exemplo conseguir o título da terra ainda tá achando que
tá muito lento demais...”.
A Associação de Remanescentes de Quilombos da Comunidade da Sapatu foi fundada em
08/08/199813; conta com cerca de 120 sócios, tendo em média 3 sócios por família. Existem
ainda, em média, 10 famílias que não são associadas.
Segundo o Sr. Josias Moreira, a principal ocupação dos moradores da comunidade de
Sapatu é a agricultura familiar, destacando-se a produção de banana voltada à pequena
comercialização, além da produção familiar para a subsistência. A comunidade possui 4
comerciantes, donos de pontos que funcionam como vendas e bares, 10 a 12 famílias que
trabalham com produção de artesanato, 15 famílias que trabalham na agroindústria comunitária e
10 monitores ambientais formados que guiam passeios turísticos. O presidente ainda cita a
presença de 2 a 3 funcionários públicos na comunidade.
13
Informação concedida pelo atual presidente da associação de moradores do bairro de Sapatu. No RTC da
comunidade, é citado o ano de 1997 como data de fundação da associação.
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Figura 8. Rodovia SP-165 na comunidade de Sapatu
Figura 9. E.E. do bairro de Sapatu
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Figura 10. Bairro de Sapatu
Fotos: Ivie Santana (2008)
Sapatu possui 1 escola estadual que atende alunos de 1ª a 4ª séries; para os cursos de 5ª a
8ª séries do ensino fundamental, de ensino médio ou técnicos-profissionalizantes, os alunos da
comunidade devem se dirigir às escolas de André Lopes ou de Itapeúna, distrito municipal, ou ao
próprio município de Eldorado. A comunidade ainda possui 1 posto de saúde, 2 galpões para uso
comunitário, 1 agroindústria, 2 igrejas, 2 cabines de telefone público e 2 veículos para uso
comunitário.
O atendimento municipal quanto aos serviços de saúde são considerados insuficientes,
com constante falta de medicamentos e atendimento médico. O transporte que serve a
comunidade é feito através da mesma linha de ônibus que serve André Lopes; transita 2 vezes ao
dia, fazendo o trecho da comunidade até o município de Eldorado.
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Figura 11. Rio Ribeira no trecho entre as comunidades de André Lopes e Sapatu
Foto: Ivie Santana (2008)
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Capítulo 7: Da agricultura ao turismo: o território normatizado por políticas
desenvolvimentistas e legislação ambiental
A região é caracterizada por um histórico de desenvolvimento diferente do restante do
Estado de São Paulo, marcada por baixos indicadores sociais aliados à concentração das maiores
reservas de Mata Atlântica e à forte presença de populações tradicionais indígenas, quilombolas,
caiçaras e de agricultores familiares (HOGAN et al, 2000).
A partir de meados do século XX, a região do Vale do Ribeira, sob a acusação de ser uma
região estagnada social e economicamente, sofreu inúmeras intervenções de ordem estruturante
que tinham por objetivo alterar essa condição. A esse objetivo somaram-se TAM bém as
iniciativas governamentais direcionadas à regularização fundiária e ao controle da ocupação das
terras devolutas (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.111).
Nas décadas de 1930 e 1940, inicia-se uma política de colonização da região,
empreendida pelo Governo do Estado, cuja estratégia era possibilitar a ocupação do grande
contingente de trabalhadores disponíveis devido ao declínio da atividade cafeeira em outras
regiões do estado. Esse projeto, encampado pela proposta de cultivo de banana, gerou graves
problemas fundiários na região, à medida que promoveu o estabelecimento dos colonos sobre as
terras ocupadas pelos pequenos posseiros (CARVALHO, 2006, p. 11).
Carvalho (2006, p.12) demonstra que essa iniciativa prejudicou os pequenos posseiros,
garantiu a ocupação dos grandes produtores de banana sobre as terras devolutas, enquanto aos
colonos foi disponibilizada a terra sem condições para cultivá-la, inviabilizando a continuidade
dessa cultura, pouco lembrada hoje em dia na região. A autora argumenta que a política de
colonização, não atendendo aos próprios fins, serviu para fortalecer os grandes produtores de
banana através da concentração de terras e recursos, garantindo sua hegemonia política na região.
Já por volta da década de 1950, introduz-se uma atividade extrativista com impactos e
importância proporcionais aos que a atividade mineradora e rizicultora, em suas respectivas
épocas, representaram para a região do Vale do Ribeira. A extração do palmito juçara tornou a
região reconhecida pelo fornecimento do produto nacionalmente; em sua função, foram
instaladas indústrias em vários municípios (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.111).
A atividade envolveu boa parte dos pequenos produtores rurais da região. A grande
procura pelo palmito estimulou o abandono das roças e das criações, gerando por conseqüência, o
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enfraquecimento do sistema de organização social baseado na prática agrícola comunitária
(QUEIROZ, 1983, p.70). As condições de trabalho de extração do palmito submetiam os
pequenos produtores a grandes dificuldades, dispersando-se mata adentro, dormindo em
habitações precárias, alimentando-se mal e enfrentando diversas intempéries. Além disso, a
coleta do palmito era vendida a atravessadores que detinham a maior parte do lucro sobre a venda
do produto.
Ao abastecer o mercado de palmito, as famílias negligenciavam a produção agrícola
passando a reverter a renda gerada pela atividade extrativista na aquisição de bens que antes eram
produzidos por elas. Junto à dependência do atravessador, os pequenos produtores tornaram-se
ainda mais vulneráveis; os relatos presentes no trabalho de Queiroz (1983, p.72) demonstram que
o próprio atravessador fornecia produtos para os “palmiteiros”, comprometendo-os com uma
dívida previamente à entrega da produção.
O incentivo à expansão das atividades econômicas na região favoreceu, nas décadas de
1960 e 1970, a instalação de outras iniciativas que pudessem atrair mais investimentos, como no
caso da construção da Rodovia Régis Bittencourt, que liga os estados de São Paulo e Paraná, e da
SP-165, estrada que liga os municípios de Eldorado e Iporanga. Em torno da construção das
estradas, intensificou-se o processo de especulação imobiliária na região, com a conseqüente
valorização das terras (CARVALHO, 2006, p.12).
No caso específico da SP-165, a estrada expôs as comunidades a contatos mais intensos
com grupos externos, rompendo o relativo isolamento em que se mantinham até então
(ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.111; QUEIROZ, 1983, p.53). A sua construção,
também se relaciona o início da exploração predatória do palmito. A estrada facilitou a circulação
de mercadorias na região e a incorporação de novos hábitos de consumo pelas comunidades. As
famílias passaram a prover boa parte de suas necessidades através de compras nos armazéns
instalados à beira da estrada, muitas vezes entregando toda a produção para saldar suas dívidas
(ITESP, 2000, p.35).
Outra forma de incentivo ao desenvolvimento regional foi a concessão de licenças de
desmatamento para atividades como produção de chá, de cacau, de seringueira, criação de
búfalos, entre outras (ITESP, 2000, p.38). De modo geral, as formas de incentivo estatal
promoveram a concentração das melhores terras agricultáveis em poder dos grandes
proprietários, enquanto a extração predatória do palmito deu origem ao processo de criação de
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unidades de conservação que pudessem coibir e regulamentar a atividade (ANDRADE;
PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.131).
“A extração da parte comestível do palmito implica na derrubada da madeira toda,
aproveitando-se apenas a ponta da árvore e desprezando-se todo o resto. Isso faz com
que o custo ambiental da atividade seja desproporcional ao volume da produção,
considerando-se o tempo de maturação relativamente alto da espécie, em torno de seis
anos. Além disso, as trilhas abertas na mata para facilitar o acesso a novas palmeiras e
o armazenamento do produto também provocam impacto sobre a floresta. A semente do
palmito juçara é alimento para certas espécies silvestres, cujo processo excretor
promove a aspersão das sementes, o que permite o replantio da palmeira; em áreas
altamente impactadas, onde a retirada do palmito não é manejada adequadamente, essa
cadeia é interrompida” (LA-MPF apud ITESP, 2000, p.28).
Estima-se que o Vale do Ribeira detenha 8.350 km2 dos 13.000 km2 de vegetação de
mata atlântica primária e em formação secundária existente no Brasil; dessa forma, cerca de 75%
do território que compõe a região é regulado por legislação ambiental (ITESP, 2000, 28). Dentre
as unidades de conservação que impactaram a vida das comunidades da região, a primeira a se
instalar foi o Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira em 1958; a motivação de sua instalação
esteve diretamente vinculada ao contexto de extração do palmito na região. Na seqüência,
instalaram-se o Parque Estadual de Jacupiranga em 1969, o Parque Carlos Botelho em 1982 e o
Parque Intervales em 1995 (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.114-115).
Paralelamente à instalação das unidades de conservação, a criação de outras áreas de
proteção ambiental e a regulamentação imposta pela legislação ambiental normatizaram
radicalmente os modos de vida e produção das comunidades. Juntamente com a APA Serra do
Mar, instalada em 1984, praticamente todas as comunidades negras do Vale do Ribeira foram
atingidas e impactadas pela transformação dessas áreas em reservas ambientais. A criação da
APA Serra do Mar intensificou o trabalho de fiscalização ambiental na região, coibindo a prática
agrícola e extrativista na região (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.115-116).
O corte do palmito tornou-se ilegal em 196514, a partir de uma lei que considerou como
contravenção penal a extração de produtos florestais; já, a prática de atividades agrícolas nessas
áreas ficou sujeita à concessão de licenças emitidas pelo órgão estadual licenciador em favor do
proprietário da terra a ser desmatada.
Essas imposições submeteram as comunidades a impasses legais e institucionais, fonte de
consideráveis conflitos e transformações de suas condições de reprodução social. Ao passo que a
principal atividade extrativista mantida pelas comunidades tornou-se ilegal, as licenças para a
14
Lei Nº. 4771 de 15/09/1965 do Código Florestal Brasileiro (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.116).
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prática agrícola eram concedidas mediante apresentação dos títulos de propriedade da terra, que
as comunidades, enquanto posseiras, não possuíam. Diante dessa situação, a extração do palmito
tornou-se a principal atividade econômica das comunidades por apresentar menores riscos de
autuação legal (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.116).
Apesar da diferença temporal entre meados do século XIX e a primeira década do século
XXI, a descrição das atividades de extração do palmito, referentes ao primeiro período ainda é
válida para o segundo. No contexto atual, mesmo tendo diminuído a importância da região para a
produção do palmito, essa atividade ainda representa uma das principais fontes de renda para as
comunidades. No entanto, as condições de sujeição a riscos relacionados à extração da espécie
expõem os moradores a situações ainda mais graves que as anteriores. Além dos riscos legais da
atividade, devido à escassez atual da espécie, os extratores permanecem durante maiores períodos
na mata, expostos aos próprios riscos do ambiente e das condições de trabalho.
Figura 12. Espécie de palmito Juçara
Foto: Ivie Santana (2008)
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As transformações alteraram especialmente a situação fundiária do Vale do Ribeira. A
valorização da terra enquanto recurso, atrelada às atividades econômicas, à construção de
estradas e infra-estrutura e à instalação de unidades de conservação ambiental demonstra a
confluência de diferentes interesses e intencionalidades regendo o uso e a ocupação do território.
Atualmente, as perspectivas de desenvolvimento da região giram em torno dos limites de
uso do potencial ecológico existente, controlado por uma série de restrições ambientais; muitos
dos recursos naturais já não estão disponíveis para a manutenção de atividades econômicas
extrativistas, inclusive as tradicionais, mantidas historicamente pelas populações locais. Por outro
lado, a necessidade de se criar mecanismos de desenvolvimento social que respondam às
demandas de geração de emprego e renda e melhoria no acesso a serviços de infra-estrutura como
possibilidades de diminuição da pobreza regional, submete o Vale do Ribeira a um conflito
permanente entre desenvolvimento e preservação (HOGAN, D. J. et al, 2000, p.389).
Tal conflito se inicia no Brasil, durante o período militar, entre 1964 e 1984
aproximadamente, quando extensas áreas foram arbitrariamente transformadas em unidades de
conservação, sem consulta prévia às populações locais, muitas vezes alvo de processos de
desapropriação, dos quais não foram minimamente ressarcidas (DIEGUES, 2000, p.16). Essas
políticas, além de transgredirem o direito das populações a terra, excluíam sua participação sobre
o uso do território, substituindo o conhecimento nativo, dado pelas práticas tradicionais de
produção, pelo conhecimento técnico-científico, representado pelos especialistas de ciências
naturais.
A permanência desse método de gestão dos recursos naturais, confinados em restritas
áreas de conservação, manipuladas por especialistas, gerou além de manifestações político-
sociais em favor dos direitos das populações envolvidas, a suspeita sobre a eficiência do próprio
método (DIEGUES, 2000, p.21). Assim, começam a surgir propostas que contemplam a
participação das populações locais na gestão dos recursos naturais, visto que anteriormente, elas
já mantinham essa função partindo de uma concepção complexa e integrada do manejo dos
ecossistemas e que vinha garantindo melhor manutenção dos recursos (PIMBERT, M. P.;
PRETTY, J. N., 2000, p.186).
Ferreira et al. (2001), ao analisar o contexto de instalação das unidades de conservação no
Brasil, diz:
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89
“O desafio enfrentado por órgãos governamentais e ONGs foi por longo tempo, definir
instrumentos institucionais adequados à criação de UCs, no âmbito dos perfis
socioambientais regionais, uma vez que a proposta parecia ser criar áreas legalmente
protegidas, sem que isso significasse abdicar do bem estar dos povos que nelas se
assentavam” (FERREIRA, L.C. et al, 2001, p.117).
A autora ainda ressalta que esse processo de constituição das unidades de conservação,
deu origem, em grande parte, aos conflitos vividos pela população local e pelos funcionários de
instituições públicas. Diz também que os planos de conservação, arquitetados externamente por
representantes nacionais e internacionais, demandaram a atuação de outros sujeitos no momento
de serem postas em prática, inclusive dos próprios moradores que receberam nova condição
política de participação em projetos com os quais não mantinham vínculos identitários.
Essa participação acaba sendo cerceada pelo Estado, que estabelece critérios de uso para
as unidades de conservação aos quais as populações locais devem se adaptar. Novos conflitos de
poder, relativos ao direito de uso da terra surgem a partir de então; as populações são tolhidas da
posse, da gestão da terra e da identidade que as vincula ao território, assim, acabam por vezes
perdendo o compromisso com o próprio sentimento de conservação, naturalmente manifestado
em suas antigas relações produtivas.
De forma geral, as populações sofrem não só pela perda da terra, mas pelo agravamento
de suas condições de vida, dado o deslocamento a que são submetidas ou a renovação forçada de
sua base produtiva. Sofrem também pela maior degradação ambiental decorrente do mau uso da
terra, pelos conflitos agrários e pelas restrições e punições da legislação ambiental (ARRUDA,
2000, p.280-281). Por fim, além de expropriadas territorial e culturalmente, as populações são
incorporadas a uma nova dinâmica social, onde têm suas funções pré-estabelecidas, como
responsáveis por protegerem os ecossistemas que habitam dentro de normas e princípios que
tampouco ajudaram a conceber.
“O manual da conservação normal é, portanto, muito mais que uma coleção de fatos
verdadeiros ou falsos. Pode ser melhor compreendido como um conjunto de escolhas
sobre visões de mundo e relações de poder. Essas escolhas não são entre áreas naturais
virgens e uso humano, mas entre diferentes tipos de uso e diferentes formas de controle
político. Ademais, a “objetividade” proclamada por este paradigma conservacionista é
por si mesma, uma forma de selecionar e modelar a natureza ou, neste contexto, as
áreas protegidas” (PIMBERT, M. P.; PRETTY, J. N., 2000, p.191).
A despeito da relação entre as políticas de desenvolvimento econômico e os parâmetros de
conservação ambiental, Rodrigues (1998) afirma que não se trata de questões divergentes, mas ao
contrário, complementares. Segundo a autora, a promoção do desenvolvimento norteado por
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90
condicionantes ambientais agrega uma variável social à relação e abre espaço para a consideração
de situações de desigualdade que encerram fatores políticos, econômicos e ambientais. No caso
de populações locais, residentes em áreas destinadas à conservação ambiental, a questão
fundamental gira em torno de sua manutenção nas áreas, considerando o direito à terra e a
garantia de suas condições de reprodução social (RODRIGUES, 1998, p.156-158).
Nesse contexto, surgem movimentos de resistência e luta política de populações que
buscam não só o reconhecimento do direito sobre o território, mas a autonomia para a gestão e
uso dos recursos disponíveis, mesmo dentro de políticas vigentes contrárias em certa medida, às
práticas tradicionais mantidas usualmente por elas (ARRUDA, 2000, p. 282).
De acordo com o estudo de Ferreira et al. (2001), onde é feita uma análise das relações
entre os grupos sociais no Vale do Ribeira e no litoral sul de São Paulo, estabelecidas em torno da
instalação de unidades de conservação e que envolviam moradores, instituições públicas e ONG,
esse processo foi constituído por diversas fases. Estas, por sua vez, vão desde os conflitos
gerados entre moradores e instituições, quando da instalação das unidades de conservação,
marcados por sentimentos de revolta e desconfiança das populações, passando pela constituição
de relações institucionais entre os diferentes atores em prol da gestão compartilhada do território,
até o fortalecimento da condição política de direito e representação das populações locais
(FERREIRA, L.C. et al., 2001, p.124-125).
Ainda nesse estudo, o conceito de tradição foi incorporado como referência de análise da
conformação política dos grupos e o que se observou foi que a própria noção de tradição se
tornou um argumento incorporado por eles para defenderem seu direito à terra, segundo uma
concepção já instalada pelos administradores das unidades de conservação. Muito mais que uma
identidade, a tradição se tornou um instrumento político que reforça as reivindicações da
população, mas que não as encerra, visto que suas aspirações já não estão mais restritas às
práticas de produção tradicionais (FERREIRA, L.C. et al., 2001, p.142).
Essas considerações sinalizam também para a heterogeneidade cultural presente entre a
própria população tida como tradicional, fator que se aglutina politicamente em torno das causas
sociais inerentes a todo grupo, como o direito à terra e aos recursos naturais. A heterogeneidade é
também um condicionante presente nas próprias relações que se estabeleceram a partir da
instituição das unidades de conservação à medida que se conformaram sob um mesmo espaço, as
noções de proteção ambiental, representativas de uma política internacional, e as noções da
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91
população, representativas de uma política local, atrelada à conquista de direitos sociais sobre o
uso do território.
As relações fruto desse contato promoveram, no caso do Vale, mudanças culturais que,
segundo os autores, a despeito de um processo de coerção social, iniciado com restrições
ambientais impostas ao território e representado pela possibilidade de rompimento da
tradicionalidade local, acabaram por gerar um rearranjo cultural, marcado por práticas políticas
emancipatórias da população (FERREIRA, L.C. et al., 2001, p.145).
O município de Eldorado conta com cerca de 70% de sua área total ocupada por
vegetação nativa e abrigava, há pouco tempo atrás, a sede do PEJ, uma das unidades de
conservação criadas no Vale do Ribeira. O parque foi considerado o segundo maior em extensão
territorial do Estado de São Paulo, comportando, em seus limites, moradores em situação
irregular, áreas de plantio, fazendas e parte do território das comunidades quilombolas de André
Lopes, Sapatu e Nhunguara (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.114).
Diante dessa conformação territorial, sua instalação foi fonte permanente de conflitos,
inclusive com as próprias comunidades. No final de 2007, através de sanção de lei15 instituiu-se o
Mosaico de Unidades de Conservação do Jacupiranga no Vale do Ribeira (Figura 13). Com essa
lei, o antigo PEJ passou a ser o maior parque estadual de São Paulo, com área de 154.872,17 ha,
subdividido em três outros parques: o Parque Estadual Caverna do Diabo envolvendo os
municípios de Eldorado, Iporanga, Barra do Turvo e Cajati; o Parque Estadual Rio Turvo,
envolvendo os municípios de Barra do Turvo, Cajati e Jacupiranga e o Parque Estadual Lagamar
de Cananéia, envolvendo os municípios de Cananéia e Jacupiranga. Além dos parques estaduais,
o mosaico congrega cinco Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS), quatro Áreas de
Proteção Ambiental (APA), duas Reservas Extrativistas (RESEX) e duas Reservas Particulares
do Patrimônio Natural (RPPN), integrando uma área de 243.885,15 ha (ISA, 2007).
A criação dessa lei se deu em resposta à necessidade de resolução dos conflitos fundiários
relacionados especialmente à sobreposição dos limites do antigo PEJ em relação aos territórios de
comunidades tradicionais da região. Os conflitos advindos desse contexto sinalizavam para a
necessidade de construção de estratégias que compatibilizassem o uso das comunidades com as
normas conservacionistas adotadas para a gestão do território.
15
Lei 12.810 do Governo do Estado de São Paulo que institui a criação do Mosaico de Unidades de Conservação no
Vale do Ribeira.
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92
Nesse sentido, foi criado um grupo de trabalho16, composto por representantes de
organizações governamentais e não-governamentais, municípios, universidades e comunidades
envolvidas, com o objetivo de redigir um novo projeto de lei, visto que em 2003 foi vetado
projeto anterior17 proposto com o mesmo objetivo. O grupo de trabalho formado apresentou o
projeto de lei à Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo em junho de 2007 e após
correções feitas em negociação entre algumas entidades do próprio grupo, o projeto foi aprovado
em 20 de dezembro de 2007.
O projeto que resultou na lei foi fundamentado em uma proposta participativa que propõe
um sistema de gestão também participativo para as áreas que fazem parte do mosaico. Essa
participação está estruturada na organização de conselhos, geral e em cada unidade, que passarão
a compor um sistema de gestão, responsável pela transmissão de informações entre os moradores
da região.
Os territórios das comunidades de André Lopes e Sapatu foram definidos como APA,
além dos territórios de outras comunidades quilombolas localizados nos municípios de Iporanga,
Barra do Turvo e Eldorado como Nhunguara, Ivaporunduva, Galvão, São Pedro, Pilões, Maria
Rosa, Pedro Cubas, Pedro Cubas de Cima e Praia Grande, totalizando área de 64.625,04 ha. A
APA corresponde a uma categoria de Unidade de Uso Sustentável segundo classificação dada
pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC)18. As regulações que operam e
definem os limites de uso dentro de uma APA estão expressas no artigo abaixo:
“Art. 15. A Área de Proteção Ambiental é uma área em geral extensa, com um certo
grau de ocupação humana, dotada de atributos abióticos, bióticos, estéticos ou culturais
especialmente importantes para a qualidade de vida e o bem-estar das populações
humanas, e tem como objetivos básicos proteger a diversidade biológica, disciplinar o
processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais.
§ 1o A Área de Proteção Ambiental é constituída por terras públicas ou privadas.
§ 2o Respeitados os limites constitucionais, podem ser estabelecidas normas e restrições
para a utilização de uma propriedade privada localizada em uma Área de Proteção
Ambiental.
§ 3o As condições para a realização de pesquisa científica e visitação pública nas áreas
sob domínio público serão estabelecidas pelo órgão gestor da unidade.
§ 4o Nas áreas sob propriedade privada, cabe ao proprietário estabelecer as condições
para pesquisa e visitação pelo público, observadas as exigências e restrições legais.
§ 5o A Área de Proteção Ambiental disporá de um Conselho presidido pelo órgão
responsável por sua administração e constituído por representantes dos órgãos
públicos, de organizações da sociedade civil e da população residente, conforme se
dispuser no regulamento desta Lei” (Lei Federal 9.985, 2000).
16
O grupo de trabalho foi coordenado por representante da Secretaria Estadual de Meio Ambiente de São Paulo. 17
Projeto de Lei 984 de 2003. 18
Criado pela Lei Federal 9.985 de 2000.
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93
Pela legislação, as atividades mantidas pelas comunidades devem obedecer a
determinados parâmetros e critérios de operação, definidos através de um conselho de gestão,
composto pelos moradores, entre outras representações. Ressaltam-se no texto legislativo a
pertinência das atividades de pesquisa científica e visitação pública como estratégias de
aproveitamento econômico da área.
Nesse contexto, o turismo ganha dimensão como atividade adaptada às condições de uso
do território, tanto por uma demanda social, referente à necessidade de geração de trabalho e
renda, como por uma norma externa, de cunho ambiental, mantida pela legislação referente às
áreas de proteção ambiental. A sua prática, tal como no caso das unidades de conservação,
compreende um processo de institucionalização territorial, em que diferentes sujeitos se
interpõem conectando noções e ações de uso culturalmente diferenciadas.
A identidade quilombola, como recurso político de acesso a terra se faz presente também
nas determinações e escolhas que as comunidades buscam materializar no território e o turismo,
fora do contexto tradicional de produção social, é mediado também por essa variável. Essa
condição lhes dá legitimidade para gerir seu próprio território, classificado como APA e mantido
sob administração do Estado, compondo os domínios do Mosaico do Jacupiranga.
Atualmente, as comunidades já se encontram envolvidas com a atividade turística através
da prestação de serviços relacionados às visitas turísticas realizadas no atual Parque Estadual
Caverna do Diabo e em outros atrativos localizados no entorno. Seu envolvimento, entretanto, já
não está restrito a condição de servidoras, mas endossadas pelo reconhecimento feito de seu
direito à terra, as comunidades se posicionam juridicamente como futuras administradoras de
recursos pertencentes ao seu território. Esse papel tem sido exercido frente aos poderes públicos,
instituições privadas, organizações não-governamentais, instituições científicas e outros possíveis
sujeitos envolvidos com o considerado território quilombola.
A aprovação do projeto de lei traz novo impasse que envolve diretamente as comunidades
de André Lopes e Sapatu, visto que cada uma possui, em suas respectivas áreas, importantes
recursos naturais que são considerados os principais atrativos turísticos do município de
Eldorado, a Caverna do Diabo, localizada em André Lopes e a cachoeira Queda do Meu Deus,
localizada em Sapatu. A caverna inclusive nomeia o então criado Parque Estadual Caverna do
Diabo.
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Figura 13. Mapa do Mosaico de Unidades de Conservação do Jacupiranga
Fonte: Instituto Socioambiental, 2008. Extraído de www.isa.org.br em 26/06/08.
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A respeito do processo de construção do projeto de criação do Mosaico do Jacupiranga, a
Sra. Maria Ignez Maricondi, funcionária do ITESP, conta que as comunidades estavam presentes
dentre os participantes do grupo de trabalho criado. Elas por sua vez, não se manifestaram
contrárias à proposta do mosaico que altera seus limites territoriais e propõe a administração das
áreas sob a forma de co-gestão. Um dos argumentos para a falta de manifestação comunitária,
segundo Maria Ignez, seria o fato delas ainda não serem tituladas em relação a essas áreas. Ao
falar sobre o novo formato do parque, envolvendo especialmente o uso da caverna, a Sra. Maria
Ignez diz:
“(...) Então o parque do norte, o Parque do Jacupiranga, a proposta chama Parque
Estadual Caverna do Diabo, eles (Secretaria de Estado de Meio Ambiente) não vão abrir mão da
Caverna do Diabo, você entendeu? O parque vai chamar Caverna... (...) A única coisa que deu
pra fazer foi colocar na lei que o parque tem que trabalhar com eles (as comunidades), que é
compartilhado (...) Então assim, quando publicar a lei, nós temos três meses pra sentar com as
comunidades e falar e aí, como é que nós vamos fazer essa gestão? Tá aqui na lei pra não ter
perigo de falhar (...)” (Entrevista em 04/04/07).
A entrevista foi realizada quando o Mosaico do Jacupiranga ainda era um projeto de lei.
As oficinas também foram realizadas antes da aprovação do projeto, nesse caso, as comunidades
trabalharam sob a perspectiva de gerirem, autonomamente, o uso dessas áreas.
Paralelamente, o município de Eldorado, considerado estância turística, teve seu plano
diretor elaborado durante o ano de 2006. O plano, intitulado “Plano Diretor de Desenvolvimento
Turístico e Agrícola” – PDDTA – é considerado “instrumento global e estratégico da política de
desenvolvimento Turístico e Agrícola, determinante para todos os agentes públicos e privados
que atuam no Município” (PREFEITURA MUNICIPAL DE ELDORADO, 2006, p.1).
Percebe-se portanto, que o turismo, além de atividade potencial para o aproveitamento
econômico das unidades de conservação da região, constitui-se em objeto de planejamento da
administração local, estratégico para o desenvolvimento do município de Eldorado. Os atrativos
em questão, a caverna localizada em André Lopes e a cachoeira em Sapatu, são considerados
recursos fundamentais para a realização dessa estratégia.
Baseado nesse contexto específico, analisamos os resultados das Oficinas de
Planejamento Comunitário do Turismo realizadas junto às Comunidades Remanescentes de
Quilombos de André Lopes e Sapatu, no período de abril a julho de 2006. A análise considera a
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96
proposta de planejamento comunitário do turismo frente ao contexto de construção do território
quilombola, exatamente esse, fonte de inúmeras expectativas públicas e privadas.
Considerando o caso das comunidades quilombolas do município de Eldorado no Vale da
Ribeira/SP, buscamos compreender se o planejamento do turismo, baseado em noções
comunitárias de gestão, pode fomentar um processo de legitimação cultural no espaço. As
comunidades em questão possuem um histórico de luta pela terra em que diferentes sujeitos –
poder público, iniciativa privada, organizações não-governamentais, instituições científicas – se
sobrepõem influenciando a forma de apropriação de uma porção do território que lhes foi
constitucionalmente outorgada e onde a atividade turística surge como alternativa de geração de
renda e desenvolvimento social para as comunidades.
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PARTE III: PLANEJAMENTO COMUNITÁRIO DO TURISMO: POSSIBILIDADES DE
INTERVENÇÃO TERRITORIAL
Capítulo 8: Relação entre universidade e comunidades: Oficinas de Planejamento
Comunitário do Turismo
A proposta de realização das Oficinas de Planejamento Comunitário do Turismo teve
início a partir de uma chamada realizada pelo Programa Comunidades Quilombolas (PCQ) em
29/09/2005. O PCQ é vinculado à Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários (PREAC)
da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e tem como objetivo trabalhar, em parceria
com as associações quilombolas do Médio Vale do Ribeira, pelo seu desenvolvimento sócio-
cultural. O programa, atuante desde 2003, envolve oito comunidades quilombolas, André Lopes,
Galvão, Ivaporunduva, Nhunguara, Pilões, Poça, São Pedro e Sapatu. E atualmente, realiza ações
e projetos nas áreas de cultura, informática, educação e sistemas de fabricação.
Na referida chamada, foi apresentado o histórico do programa, bem como o tipo de
relação que ele mantém com as comunidades, enfatizando-se nesse aspecto a metodologia
desenvolvida a partir de uma abordagem que considera a autonomia e a participação comunitária
como fundamentos para a construção de quaisquer projetos em parceria. Na ocasião, também
foram apresentados os trabalhos que vinham sendo executados e as demandas das comunidades
reportadas ao programa.
No caso das demandas, adotou-se a estratégia de subdividi-las em grupos de trabalho
temáticos, onde os interessados pudessem se enquadrar segundo a afinidade com o assunto. Havia
um grupo intitulado “Grupo de Trabalho de Turismo e Educação Ambiental”, onde constavam
demandas relacionadas a estruturação do turismo nas comunidades, baseadas desde já, na idéia de
uma atividade atrelada a princípios de educação ambiental.
O grupo inicialmente interessado contou com a participação de dois estudantes de pós-
graduação em Geografia, uma estudante de graduação em Geografia, uma estudante de graduação
em Biologia e uma estudante do Centro Superior de Educação Tecnológica (CESET). O grupo
formado deveria trabalhar na elaboração de uma proposta que seria apresentada em resposta às
comunidades, em reunião marcada entre elas e os responsáveis pelo grupo de trabalho.
A seguir, o quadro de demandas referentes ao GT de Turismo e Educação Ambiental.
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98
PROGRAMA COMUNIDADES QUILOMBOLAS – CHAMADA 2005 – Sistematização das demandas
GRUPO DE TRABALHO: Turismo e Educação Ambiental
Tipo de ação ou
atividade
Título Metas/resultados esperados Finalidade do plano de trabalho
Levantamento,
estudo, produção
material,
capacitação
Atrativos
Naturais
Inventário dos atrativos de seu território em registro em
base cartográfica;
Caracterização de pelo menos um atrativo selecionado em
cada comunidade;
Avaliação da capacidade de suporte e elaboração de plano
de manejo;
Levantamento e registro da história relativa aos atrativos;
Capacitação gerencial de moradores para uso dos atrativos
em educação ambiental e turismo;
Elaboração e edição de catálogo dos atrativos;
Operação de visitação.
1. Estabelecer os princípios, abordagens
e conteúdo do (s) projeto (s) e das
ações;
2. Aprovar a elaboração do trabalho em
assembléias e indicar representantes
para participar;
3. Construir equipe e definir agenda.
Projeto de
desenvolvimento,
implantação de
empreendimento e
capacitação
Turismo e
Educação
Ambiental
Implantação de pousadas, camping e outros equipamentos
e empreendimentos para turismo e visitação com gestão
pelos moradores;
Aquisição de equipamentos, ferramentas, etc;
Capacitação técnica, administrativa, gerencial e
empreendedora dos moradores;
Implementação de empreendimento(s) turístico(s);
Elaboração de material e implementação de estratégias para
comunicação e divulgação;
Implementação de programas e atividades de interesse
escolar ou turístico;
Acesso aos recursos do governo do Estado de São Paulo
para o turismo no Vale do Ribeira.
1. Estabelecer os princípios, abordagens
e conteúdo do (s) projetos (s) e das
ações;
2. Aprovar a elaboração do trabalho em
assembléias e indicar representantes
para participar;
3. Construir equipe e definir agenda.
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99
A partir da análise das demandas relacionadas ao tema “Turismo e Educação Ambiental”,
o grupo de trabalho optou por desenvolver uma metodologia baseada no planejamento do
turismo, visto que as demandas apresentavam grande diversidade entre si, compreendendo desde
levantamentos dos recursos disponíveis, como os atrativos, passando pela capacitação da
comunidade, até a instalação de equipamentos e empreendimentos turísticos. Essa proposta
conferia certa segurança ao grupo, considerando-se o seu desconhecimento inicial em relação ao
contexto sócio-cultural das comunidades e a sua responsabilidade sobre a concretização de
qualquer intervenção relacionada ao turismo, mesmo realizada em regime de parceria.
Dessa forma, as oficinas representavam uma proposta de formação reflexiva das
comunidades em torno da iniciativa de se desenvolver o turismo localmente. Partiu-se do
pressuposto de que o turismo empreendido espontaneamente, sem quaisquer formas de regulação
ou controle, poderia impactar negativamente as comunidades, considerando-se a influência que a
atividade exerce sobre a configuração do território. E ainda, pelo fato de as comunidades
pleitearem o título do território que ocupam, o planejamento figuraria, nesse contexto, como
importante instrumento para que elas pudessem definir, autonomamente, o uso turístico de seus
territórios.
Nesse caso, a proposta do grupo de trabalho consistia, na primeira fase, em suscitar
discussões comunitárias acerca da natureza da atividade turística que se desejava empreender nas
comunidades, e posteriormente, em trabalhar na elaboração de projetos que pudessem viabilizar a
idéia de turismo construída. Daí a definição “oficina”, por conter em toda a fase do trabalho, o
caráter de construção, fosse de idéias e propostas, até projetos propriamente.
A proposta elaborada foi inicialmente apresentada aos componentes do programa, e após a
incorporação de algumas correções sugeridas, foi finalizada para posterior apresentação às
comunidades. A apresentação feita às comunidades ocorreu durante reunião realizada em
12/11/2005 na escola de Sapatu. Nessa reunião, estavam presentes representantes das
comunidades de André Lopes, de Nhunguara e de Sapatu, além do Grupo de Apoio (GA) do PCQ
e dos representantes de cada grupo de trabalho que tivesse uma proposta a ser apresentada.
No início de dezembro de 2005, em reunião entre o GA do PCQ e os representantes dos
grupos de trabalho formados, foram anunciados os resultados da reunião com as comunidades.
No caso do GT de Turismo e Educação Ambiental, as comunidades de André Lopes e Sapatu
manifestaram interesse pela realização das Oficinas de Planejamento Comunitário do Turismo.
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A seguir, o formato da proposta apresentada às comunidades em 12/11/2005.
Programa Comunidades Quilombolas
Grupo de Trabalho Turismo e Educação Ambiental
A proposta de trabalho será dividida em duas etapas:
1) Oficina de discussão sobre o turismo:
Nesta etapa, vamos discutir como se faz o planejamento turístico com a participação da comunidade. Para
isso, vamos usar estudos de casos e com eles avaliar os pontos positivos e negativos do turismo. Vamos
ver como a comunidade participou do planejamento turístico e como a atividade turística foi
desenvolvida nesses casos.
-Qual é a infra-estrutura que a comunidade precisa para viabilizar o turismo (vias de acesso, posto de
informação, pousada, restaurante, acampamento, loja de artesanato...)? ;
-Quais os atrativos que a comunidade irá disponibilizar para a prática do turismo (cachoeiras, estrutura do
próprio bairro, trilhas, cavernas, rio...)?;
-Quais são os efeitos da presença de maior número de pessoas na comunidade durante a temporada
turística (consumo de água e energia, geração de lixo e esgoto...)?;
-Háverá um limite de turistas para a comunidade receber?;
-Haverá um limite de pessoas para visitar os atrativos?;
-Qual o tipo de turista que a comunidade que receber (crianças e jovens, adultos, famílias, escolas...)?;
-Quais são as funções necessárias para se trabalhar com turismo (guia, recepcionista, cozinheiro/a,
vendedor/a, fotógrafo/a...)?;
-Como a comunidade pensa em vender seus roteiros turísticos (agências de turismo, página na
internet...)?;
-Como a comunidade conseguirá financiamento para comprar equipamentos ou realizar alguma obra
(governos, empresas, cooperativas de crédito...)?;
-Como será feita a divulgação do turismo na comunidade (jornal, internet, agências de turismo, rádio,
tv...)?;
-Quais os parceiros possíveis para capacitação da comunidade (escolas técnicas, faculdades,
universidades...)?
-Quais serão os objetos de parceria entre as comunidades e outras organizações para viabilizar o turismo?
CALENDÁRIO: Essas oficinas acontecerão em um ou dois finais de semana a partir da segunda
quinzena de fevereiro de 2006.
2) Oficina de planejamento do turismo:
Na segunda etapa serão feitas novas oficinas para se definir quais são as demandas mais importantes para
a comunidade desenvolver o turismo. Com as demandas escolhidas, começaremos um projeto de
planejamento com a comunidade através de grupos de trabalho.
CALENDÁRIO: Essas oficinas acontecerão logo depois da primeira etapa e a duração delas será
definida junto à comunidade.
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Entre os dias 19 e 22/01/2006, foram realizadas as primeiras reuniões entre o grupo de
trabalho e as comunidades de André Lopes e de Sapatu para que se desse início à realização das
oficinas. A partir desse momento, a relação passou a ser entre os representantes da universidade e
os representantes das associações de moradores de cada bairro. Esse foi o momento de
reconhecimento das identidades para ambos os parceiros, tanto do grupo de trabalho, como das
comunidades, e com base nessa relação, o trabalho das oficinas seria desenvolvido daí em diante.
O objetivo dessas primeiras reuniões foi discutir uma proposta inicial com cronograma e
atividades para a realização das oficinas. Dessa forma, foi apresentada uma programação que
compreendia uma etapa para a discussão sobre o turismo, uma etapa para a constituição de uma
“comissão de turismo” nas comunidades e etapas posteriores, que contemplavam algumas
demandas comunitárias como temas a serem trabalhados pelo planejamento turístico.
A idéia de formação de uma “comissão de turismo” em cada comunidade consistia na
proposta de articular um grupo responsável pela coordenação e pela execução das atividades
relacionadas ao turismo. Essa comissão seria constituída após a etapa de discussão sobre o
turismo; dessa forma, esperava-se que a comissão formada já contasse com alguns fundamentos
para nortear sua atuação. Além disso, até a sua formação, a etapa de discussão seria aberta à
comunidade, podendo envolver maior número de moradores, o que seria interessante pelo fato
das repercussões derivadas do turismo envolverem a comunidade de forma geral.
A proposta foi apresentada as duas comunidades. Em Sapatu, em reunião especificamente
marcada para tanto, a proposta foi aceita e os moradores presentes se comprometeram em
discutir, entre si, a organização das oficinas, considerando participantes, dias, horário e local para
a realização das atividades. Com esta definição, os representantes da comunidade entrariam em
contato com os coordenadores do PCQ. Já em André Lopes, a proposta foi apresentada durante a
realização de uma assembléia comunitária; alguns representantes reforçaram o interesse pelo
trabalho, mas alegaram que precisavam discutir melhor como se organizariam para a realização
do trabalho.
A partir daí, o grupo aguardaria o retorno das comunidades para dar início ao trabalho. A
seguir, a proposta de programação inicial apresentada às comunidades. Nota-se que o período de
desenvolvimento das atividades é abrangente e não indica o tempo exato de duração de cada
oficina. Essa proposta por sua vez, deveria ser elaborada pelas próprias comunidades, de acordo
com a dinâmica de organização interna de cada uma delas.
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Programação inicial das atividades do Grupo de Trabalho Turismo e Ed. Ambiental
ETAPA 1: Realização de oficinas para apresentar e discutir a atividade turística, usando estudos
de caso sobre o turismo comunitário no Brasil.
Tempo previsto de duração da ETAPA 1: um a dois meses.
Sugestão de calendário: fevereiro e março de 2006.
ETAPA 2: Constituição de uma “comissão de turismo” na comunidade, composta por lideranças
envolvidas com a atividade turística e que vão representar as decisões comunitárias frente a
outras comunidades e demais instituições (universidade, ONG, empresas, órgãos públicos).
Tempo previsto de duração da ETAPA 2: um mês
Sugestão de calendário: abril de 2006
*** Nessa etapa, a comissão de turismo formada pela comunidade pode dar início à elaboração
de um documento com as normas que a comunidade estabelecer para a prática do turismo. Esse
documento poderá ser constantemente revisto e refeito e deve servir para regular os limites da
atividade turística e a conduta dos turistas.
ETAPA 3: Elaboração de roteiro prévio dos possíveis atrativos (naturais e culturais) e produtos
oferecidos pela comunidade que possam ser aproveitados para a prática do turismo.
ETAPA 4: Início dos trabalhos para a realização do inventário dos atrativos e dos produtos
turísticos da comunidades. Busca de parcerias e financiamento para as atividades de:
1 – Registro dos atrativos em base cartográfica;
2 – Levantamento e registro da história relativa aos atrativos;
3 – Avaliação da capacidade suporte e elaboração de plano de manejo dos atrativos naturais.
ETAPA 5: Avaliação do potencial turístico das comunidades após a fase de inventário para a
escolha dos atrativos que serão utilizados para a visitação turística. Levantamento das condições
preliminares dos atrativos para operacionalizar as visitas.
Tempo previsto de duração das ETAPAS 3, 4 e 5: oito meses.
Sugestão de calendário: maio a dezembro de 2006.
Ao final da ETAPA 5, iniciarão os trabalhos de elaboração de roteiro, catálogos,
operacionalização de visitas e capacitação dos moradores. Essa nova etapa deve ser definida a
partir do planejamento feito pelos próprios moradores e da busca de parceiros e financiadores
para a execução dos trabalhos.
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103
Passados mais de um mês desde as reuniões anteriores, as comunidades solicitaram a
retomada das atividades através do programa. Na ocasião, estava disponível um edital do
Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) para financiamento de projetos não agrícolas.
Dessa forma, ao retomarmos o contato com as comunidades, a idéia era também aproveitar a
oportunidade do edital para a elaboração de uma proposta de financiamento das atividades das
oficinas. A partir desse momento, o grupo de trabalho se desfez e as atividades relacionadas às
oficinas foram integralmente assumidas como objeto de estudo do curso de mestrado.
Como ponto de partida para a elaboração de uma proposta a ser submetida ao edital,
considerou-se a proposta anterior, apresentada às comunidades. No período de 08 a 12/03/2006,
realizamos reuniões com as duas comunidades para a consolidação de uma proposta comum. O
edital financiava apenas ações de custeio, o que não compreendia obras ou instalações; dessa
forma, a proposta baseou-se nas atividades das oficinas, tais como realização de inventários
turísticos, construção de projetos e alguns serviços específicos.
Com uma proposta preliminar, realizamos reunião com a presença de representantes das
duas comunidades no dia 16/03/2006. Nessa reunião, em vista do fato da proposta contemplar
apenas ações de custeio, representantes da comunidade de Sapatu propuseram a inclusão da
compra de mais equipamentos utilizados pelos monitores ambientais da comunidade durante as
visitas turísticas. Alguns equipamentos já haviam sido considerados e com a inclusão dos novos,
propostos por Sapatu, o orçamento seria inviabilizado. Nesse momento, a discussão tomou novo
rumo e a proposta comum de se realizar o planejamento turístico nas comunidades se diluiu
dentre os interesses de cada uma das comunidades.
Os representantes da comunidade de Sapatu justificaram que atividades como as oficinas
de planejamento se pareciam com processos de formação dos quais as comunidades já haviam
participado; por essa razão, os representantes privilegiavam ações relacionadas à
operacionalização e à infra-estrutura turística. Enquanto isso, os representantes da comunidade de
André Lopes manifestaram interesse pela realização das oficinas, justificando que desejavam
estruturar o turismo na comunidade de acordo com certos critérios, integrado a uma campanha de
educação ambiental e voltado a um público específico.
Na tentativa de conciliar os interesses de ambas as comunidades para a conclusão da
proposta a ser submetida ao edital, foi elaborada a proposta final que contemplava atividades de
planejamento do turismo e atividades para a estruturação de dois atrativos turísticos a serem
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escolhidos em cada comunidade, sendo uma ação decorrente da outra. Esta proposta foi então
aprovada em assembléia comunitária nas duas comunidades e enviada ao ministério em
25/03/2006.
A seguir, o quadro de avaliação da proposta enviada ao MDA.
Objetivo Específico Meta Indicadores de
Resultados Meios de Verificação
Fomentar o desenvolvimento do turismo a
partir de processos de planejamento turístico e
gestão comunitária nos Quilombos de Sapatu e
André Lopes em Eldorado – SP.
4 atrativos turísticos
organizados e 2 planos
de turismo com código
de conduta, normas de
organização, plano de
ações e projetos
executivos
fotografias e
documentos
6.1. Formar grupo de trabalho;
formar grupo de planejamento;
definir calendário e lugar de
realização das atividades do projeto
30 moradores
organizados em grupos
de trabalho e de
planejamento
ata de assembléia,
presença nos encontros
de trabalho e produção
efetiva de normas
explícitas
6.2. Realizar atividades de análise
sobre o turismo nas comunidades
30 moradores
capacitados em análise
de turismo com normas
de conduta definidas
comunitariamente
ata de assembléia e
documentos
6.3. Executar as primeiras ações de
planejamento turístico nas
comunidades
2 projeto de
financiamento para
infraestrutura turística
documento
6.4. Constituir grupo gestor de
turismo em cada comunidade
10 moradores
organizados em grupo
gestor de turismo
ata de assembléia e
regimento do grupo
6.5. Planejar e organizar a visitação
em quatro atrativos selecionados
4 atrativos turísticos
organizados e com
estrutura mínima
fotografia e documentos
6.6. Produzir relatórios de avaliação
do plano de ação dos atrativos 2 relatórios documento
6.7. Elaborar plano de ação
comunitário para o turismo
2 planos de ação em
turismo documento
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105
Essa proposta constituiu o Objetivo 6 do projeto intitulado “Assistência Técnica e
Extensão Rural para Agricultores Familiares dos Quilombos André Lopes, Galvão, Nhunguara e
Sapatu do Vale do Ribeira (SP)”. O projeto não foi contemplado pelo ministério.
O processo de elaboração da proposta para submissão ao edital do MDA é representativo
da dinâmica de trabalho que se estabeleceria com cada uma das comunidades durante a realização
das oficinas de planejamento. As comunidades de André Lopes e Sapatu apresentaram, desde
esse momento, perspectivas e tratamentos diferenciados quanto ao desenvolvimento do turismo
comunitário. A partir da realização das oficinas, essa diferenciação se evidencia, demonstrando a
diferenciação existente entre as dinâmicas internas de cada comunidade, fruto de contextos
sociais específicos.
Após o envio da proposta ao MDA, retornamos às comunidades para definir o início das
oficinas de planejamento. Ainda durante as reuniões para a elaboração da proposta que seria
enviada ao MDA, informamos às comunidades que, por parte da universidade, as oficinas seriam
realizadas durante o período de seis meses, independente do financiamento do ministério. No
período de 05 a 10/04/2006, nos reunimos com representantes das duas comunidades para
discutir as formas de organização das oficinas, grupo responsável, participantes, local e tempo de
duração.
A princípio, a comunidade de Sapatu, optou por oficinas com duração de 4 horas,
realizadas 4 vezes durante a semana, a partir das 18hs, no centro comunitário da associação de
moradores. A comunidade de André Lopes por sua vez, optou por oficinas com duração de 3
horas, realizadas 5 vezes durante a semana, a partir das 19hs, no centro de artesanato da
associação de moradores. Dessa forma, as oficinas seriam realizadas em semanas diferentes em
cada comunidade.
As atividades realizadas em parceria com a universidade e com outros parceiros são
negociados através da associação de moradores de cada comunidade. A iniciativa de participar de
alguma atividade é definida durante assembléia comunitária, de acordo com o interesse dos
moradores e com o comprometimento deles. Em André Lopes inclusive, a comunidade tem o
hábito de delegar a responsabilidade sobre a organização das atividades a um ou mais
representantes específicos, pessoas que sejam referências para determinados assuntos dentro da
comunidade.
Com frequência, os responsáveis pela realização das atividades nas comunidades
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106
concentram-se em um grupo de lideranças que assumem tanto a coordenação dos trabalhos, como
a direção da própria associação de moradores. Para a realização das oficinas de planejamento do
turismo, os monitores ambientais das comunidades constituíam um grupo de participantes em
potencial, além dos jovens, que viam na prática do turismo, uma perspectiva de trabalho.
Com o passar do tempo, o público foi se delineando, bem como o comprometimento que
cada comunidade estabeleceu com o trabalho, a partir da função que as oficinas representavam
frente aos demais compromissos comunitários e pessoais. As oficinas de planejamento se
constituíram em uma atividade extra, com a qual as comunidades se envolviam de acordo com a
disponibilidade e o interesse pelo tema.
Os horários escolhidos para a realização das oficinas eram aqueles possíveis dentro do
cotidiano das comunidades. De forma geral, durante o dia, os participantes se ocupavam com as
atividades rotineiras, como a roça, a escola, o comércio, a monitoria no parque, as atividades
domésticas ou outro tipo de trabalho, e durante a noite, participavam de atividades como as
oficinas. Muitas vezes, participar de atividades como essas durante as noites ou no final de
semana, significava para os participantes, abdicar de horários livres, utilizados para o lazer e a
convivência familiar.
Esse é um fator preponderante para a organização de quaisquer iniciativas de projetos e
atividades junto às comunidades. A realização de reuniões e atividades de trabalho específicas,
bem como a participação dos moradores, estão condicionadas ao contexto cotidiano comunitário.
No caso das oficinas de planejamento, o horário definido pelos próprios participantes garantiu a
viabilidade do processo em alguma medida, mas em determinados momentos, a pouca
participação comunitária foi capaz de comprometer ou alterar o curso das atividades
programadas.
Ao todo, no período de abril a julho de 2006, foram realizadas 20 reuniões envolvendo 23
moradores na comunidade de André Lopes, no entanto, o grupo que manteve assiduidade durante
todo o período, teve em média 8 pessoas. Esse grupo era composto por 3 monitores ambientais, 2
comerciantes e 3 jovens, todos vinculados à associação de moradores, sendo 2 deles pertencentes
à diretoria da associação na época, incluindo-se o presidente.
No mesmo período, foram realizadas 15 reuniões envolvendo 21 moradores em Sapatu,
com um grupo assíduo de 10 pessoas. Esse grupo era composto por 3 monitores ambientais, 1
funcionário público, 1 aposentado, 1 artesã, 1 produtor rural e 3 estudantes, todos vinculados à
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associação de moradores, sendo 4 deles pertencentes à diretoria da associação na época,
incluindo-se o presidente.
De forma geral, os participantes das oficinas, em ambas as comunidades, mantinham
práticas agrícolas nas roças familiares.
Com as datas definidas, iniciamos a realização das oficinas de planejamento com as
comunidades de André Lopes e Sapatu. O conteúdo programático que orientou a dinâmica das
oficinas foi o mesmo para as duas comunidades, alterando-se o método de abordagem de acordo
com o retorno e o aproveitamento dos participantes em relação às atividades. Durante todo o
processo, a comunidade de Sapatu esteve adiantada quanto ao conteúdo programático, por ter
definido a data inicial para as oficinas anteriormente a André Lopes.
Alguns eventos, relativos à discussão sobre o turismo nas comunidades, organizadas pela
Prefeitura de Eldorado por exemplo, foram aproveitados como oportunidades de trabalho e
envolveram representantes das duas comunidades simultaneamente.
Os resultados das Oficinas de Planejamento Comunitário do Turismo e a análise deste
trabalho, produzida frente ao contexto sócio-cultural das comunidades de André Lopes e Sapatu,
compreendem o conteúdo do capítulo seguinte. Optamos por transcrever as idéias e os conceitos
elaborados durante as oficinas da forma mais fidedigna possível, adequando formas de
concordância gramatical ou algumas formulações que fossem estritamente necessárias para a
compreensão do conteúdo.
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Figura 14. Centro comunitário de Sapatu
Figura 15. Centro de artesanato de André Lopes
Fotos: Ivie Santana (2008)
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Capítulo 9: O caso das comunidades de André Lopes e Sapatu
A abordagem inicial para a realização das oficinas foi identificar as expectativas que cada
comunidade tinha em relação ao que seria produzido a partir do trabalho. Frente às expectativas,
a proposta das oficinas de planejamento foi explicada mais uma vez, na tentativa de esclarecer os
objetivos e compatibilizá-los com as expectativas comunitárias quando possível.
A comunidade de Sapatu apresentou como expectativas:
1. Entender o processo de planejamento como uma ferramenta comum para ser usada em
qualquer projeto da comunidade;
2. Preparar a comunidade de Sapatu para receber o turismo.
As expectativas da comunidade de André Lopes foram:
1. A comunidade espera entender como planejar e executar ações para desenvolver o turismo de
acordo com os seus princípios;
2. A comunidade pretende desenvolver o turismo aliado a projetos de educação ambiental;
3. A comunidade pretende trabalhar com públicos específicos.
A comunidade de Sapatu apresentou uma perspectiva mais abstrata em relação ao
planejamento comunitário do turismo, identificando o planejamento em si como ferramenta para
ser utilizada nos diversos projetos e atividades a serem empreendidos pela comunidade. O
objetivo de se preparar para receber o turismo não demonstra, nesse momento, nenhuma
expectativa específica em relação à própria preparação, a comunidade não qualifica inicialmente
a forma como o turismo deve se desenvolver.
A comunidade de André Lopes por sua vez, apresenta concepções já elaboradas em
relação à prática turística desejada e a noção de planejamento comunitário representa o
instrumental utilizado para a concretização da atividade, de acordo com os princípios já
estabelecidos.
Na sequência desta atividade, procuramos trabalhar a idéia de cada comunidade em
relação ao turismo. Buscamos aqui identificar a concepção da atividade enquanto prática social,
ademais das qualificações que as comunidades pudessem atribuir a um tipo desejado de turismo.
Para suscitar a discussão, utilizamos definições formais e citações de textos sobre o tema.
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“O turismo compreende as atividades que as pessoas realizam durante suas viagens e
estadias em lugares diferentes ao seu entorno habitual, por um período de tempo consecutivo,
inferior a um ano, para fins de descanso, negócios e outros” (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO
TURISMO, 1994).
A comunidade de Sapatu desenvolveu conceitos que definem o turismo basicamente como
uma possibilidade de troca de experiências, motivada pela curiosidade do turista em relação a um
lugar ou a uma cultura. Esse conceito por sua vez, ampliou a discussão para as repercussões
derivadas desse movimento de troca, mais especialmente para as preocupações em torno do
relacionamento entre turistas e comunidade. Algumas frases elaboradas expressam essas idéias:
Passar imagem da realidade para o turista;
O turista não pode ter medo da comunidade;
O turista não pode trazer sua cultura para a comunidade;
O turista não pode desrespeitar as normas da comunidade.
O turismo, visto pela comunidade como uma atividade cujas repercussões são
inicialmente preocupantes, é visto também como atividade econômica potencial. Nesse sentido,
avançamos na discussão a partir do que a comunidade esperava do próprio turismo. As
expectativas da comunidade de Sapatu sobre o turismo consistiam na possibilidade de geração de
renda e outros benefícios para as famílias, na divulgação da causa quilombola para os turistas, na
transmissão de conhecimentos sobre a comunidade e na própria troca de experiências com
pessoas de fora. Destaca-se aqui a expectativa de um participante da oficina:
Mudar a idéia dos turistas que imaginam que os quilombos não podem se atualizar.
O participante justificou a consideração com base no fato de que os turistas que visitam as
comunidades interessados na cultura quilombola, querem encontrar famílias vivendo em casas de
pau-a-pique e desempenhando atividades artesanais, como se elas estivessem destinadas a viver
para sempre dessa forma. O participante questionava essa visão como equivocada e considerava
importante esclarecer os turistas quanto a essa situação.
De forma geral, a comunidade demonstrou que se considera diferente do turista, não só
pela condição de moradora, mas por sua cultura, ou mais propriamente, pelo seu modo de
reprodução social. Esse modo admite atualizações, mas permanece distinto quando a comunidade
afirma que o turista não deve impor sua cultura a cultura comunitária.
Além disso, a comunidade avançou na identificação de algumas situações já
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experimentadas, relatadas durante as oficinas pelos monitores ambientais e por participantes que
não trabalhavam diretamente com o turismo. Ela definiu casos onde o turista demonstra ter medo
da comunidade e onde a comunidade demonstra ter medo do turista.
A primeira perspectiva se apresenta:
Quando o monitor está guiando um passeio e os turistas desconfiam de para onde ele os está
levando;
Quando turistas pedem informação, mas mal abaixam os vidros do carro;
Quando a comunidade oferece produtos para os turistas e eles ficam desconfiados ou
inseguros
Quando as crianças pedem dinheiro na estrada.
A segunda perspectiva se apresenta:
Quando turistas homens abordam mulheres da comunidade na estrada;
Quando turistas consomem drogas entre a comunidade e algumas vezes chegam a oferecer
para seus moradores;
Quando turistas entram nos sítios e nas casas da comunidade sem se apresentar.
Com base nesse contexto, a comunidade elaborou algumas conclusões e algumas
estratégias de atuação a partir das conclusões. Quanto às conclusões, ela considerou que:
O turista deve estar conscientizado para visitar a comunidade;
A comunidade deve dar exemplo de comportamento para o turista;
A estrutura do turismo deve ser preparada de acordo com o que a comunidade tem para
oferecer e não de acordo com o que o turista quer consumir;
É importante definir normas para se desenvolver o turismo na comunidade.
Para o tratamento dessas conclusões, a comunidade elaborou como estratégias:
Conscientizar a comunidade sobre o turismo;
Formar um grupo de trabalho dentro da comunidade para cuidar das questões relacionadas
ao turismo;
Fazer uma cartilha com normas da comunidade para os turistas.
O grupo de trabalho de turismo seria responsável tanto pela conscientização da
comunidade sobre o turismo, como pela conscientização do turista sobre a comunidade. Os
participantes consideraram o turismo como atividade cuja responsabilidade envolve toda a
comunidade, especialmente no caso de situações geradas pela diferença de comportamento entre
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turistas e comunidade. Nesse sentido, a comunidade propôs que o turismo comunitário tenha
caráter educativo e que se privilegie a visitação de grupos escolares. A criação de uma cartilha,
com normas de conduta para o turista dentro da comunidade, figurou como estratégia para se
evitar possíveis conflitos como os citados anteriormente.
Além disso, o grupo de trabalho teria a responsabilidade de organizar o turismo na
comunidade, incluindo-se aí a realização de ações para melhorar a infra-estrutura de recepção do
turista. Essa infra-estrutura, para a comunidade, compreendia desde pequenas iniciativas como a
venda dos produtos comunitários, até outras mais abrangentes como a construção de pousadas e a
divulgação turística da comunidade.
A comunidade de André Lopes concebeu o turismo de forma parecida a Sapatu,
fundamentalmente como oportunidade para se adquirir e trocar conhecimentos e experiências nos
lugares visitados. A partir da definição contudo, a discussão que evoluiu entre o grupo foi a de
como promover a permanência do turista na comunidade.
Tal discussão não ignorou as possíveis repercussões da atividade sobre a vida
comunitária, mas ficou concentrada na responsabilidade da comunidade em conduzir esse
processo, diante da sua convivência prévia com uma atividade turística não planejada.
Destacamos algumas considerações:
Olhar do turista voltado para a Caverna do Diabo;
O turista pode conhecer a comunidade, além da caverna;
A comunidade e os moradores podem se preparar para superar as expectativas do turista;
Organizar a estrutura de hoje para o turista não sair frustrado e organizar a de amanhã
para que o turista venha preparado para a comunidade;
Através do turismo, o visitante pode experimentar a forma como se vive no quilombo;
Há diferenças entre a estrutura que se encontra no parque e a que se espera encontrar na
comunidade.
As considerações remetem claramente à situação do turismo de visitação à Caverna do
Diabo, localizada no antigo Parque Estadual do Jacupiranga (PEJ), que faz divisa com a
comunidade. A comunidade demonstrou a intenção de expandir o turismo para além da caverna,
incluindo-se como uma opção de visitação.
Em conversa com o Sr. André Luiz P. de Moraes, uma das principais lideranças de André
Lopes, a relação da comunidade com o modelo turístico inicialmente empreendido no bairro é
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esclarecida. Após a criação do PEJ, uma das alternativas desenvolvidas pela administração da
unidade de conservação foi disponibilizar a caverna para a visitação turística. Esse processo foi
instalado sem nenhuma consulta à comunidade e o turismo praticado, mesmo envolvendo o
bairro como área de passagem, não gerou benefícios aos moradores; ao contrário, a presença do
parque restringiu o acesso da comunidade ao uso da caverna, além do exercício de outras práticas
comunitárias.
“(...) A partir do momento em que o Estado tomou, é, aquele espaço lá como modelo
turístico, começou a desenvolver o turismo né, então a partir a comunidade foi assim meio que
obrigada a sair de lá e deixar aquele espaço pro Estado tá administrando e aí começa, começou
essa questão, a relação que até então com a caverna, a relação, a relação boa né, o pessoal
utilizava a caverna pra abrigo, pra guardar alimentos, pra uma série de coisas, começaram a
não poder mais fazer isso e aí então eles tiveram que (...) gerou um conflito na verdade, porque
ali criou um parque, o Estado viu que ali tem um potencial, criou um parque, uma unidade de
conservação, né e começou a criar uma série de regras que muitas delas vão contra a forma né
que a comunidade utiliza a natureza né, planejou um turismo é, única e exclusivamente pro
Estado ser beneficiado né, não vendo, não vendo a comunidade, não incluindo a comunidade
dentro desse processo (...)” (Entrevista em 13/11/2006).
O processo de exclusão da comunidade frente à instalação do turismo de visitação à caverna é
uma das referências que norteia a concepção de uma nova atividade turística a ser desenvolvida
na comunidade, de acordo com as considerações:
O planejamento deve ser feito agora com base em um processo histórico que foi imposto sem
consulta à comunidade;
O direito de posse do território é uma forma de se proteger contra os interesses privados.
É interessante notar que as primeiras discussões com a comunidade de André Lopes
revelaram a principal questão referente ao desenvolvimento do turismo na comunidade. A
caverna, ao passo que foi razão da instalação de uma atividade que trouxe prejuízos à
comunidade, representa ao mesmo tempo, a possibilidade de estruturação de um novo modelo de
turismo, que inclui a comunidade como condutora de um processo que possa, dessa vez, gerar
benefícios sociais em seu favor. Além disso, a discussão revela o impasse que envolve a
comunidade em torno do direito de uso sobre caverna, por ser um bem público localizado em
terras reconhecidas como pertencentes à comunidade, nesse caso, terras particulares.
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Figura 16. Parque Estadual do Jacupiranga
Foto: Ivie Santana (2008)
A próxima atividade teve por objetivo trabalhar a idéia de planejamento, dando ênfase ao
processo e aos recursos que o compõe. Para isso, utilizamos um texto que apresentava o processo
de planejamento estruturado nas seguintes etapas:
SITUAÇÃO INICIAL INFORMAÇÃO DECISÃO
AÇÃO SITUAÇÃO FINAL
“Os iguanas são lagartos que vivem no continente americano. Seu habitat era a terra
firme e eles alimentavam-se de vegetais terrestres.
Os iguanas dependiam de grama para sobreviver, um alimento que é escasso ou
inexistente em Galápagos.
Em uma larga escala de tempo, os iguanas de Galápagos foram progressivamente
alterando seus hábitos.
Os iguanas de Galápagos alteraram seu comportamento enfrentando as águas do mar,
aprendendo a mergulhar e a comer as abundantes algas da ilha.
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Os iguanas de Galápagos simplesmente mergulhavam no mar e comiam as algas
abundantes existentes nos ecossistemas marinhos da ilha” (PETROCCHI, 1998).
Cada frase correspondia a uma etapa do processo de planejamento e a forma como as
comunidades identificavam cada fase e constituíam a seqüência da história, representava uma
situação diferente. Dessa forma, optamos por dividir cada grupo em subgrupos para que eles
pudessem, através dos próprios resultados, discutir as formas de construção do processo de
planejamento.
A partir da atividade, a comunidade de Sapatu desenvolveu algumas considerações a
respeito do planejamento:
Informações que ajudam para o planejamento: idéia que já se viu ou situação que já se
viveu;
A informação diminui o risco de se arrepender;
Planejar inclui riscos também;
A roça é um bom exemplo de planejamento na comunidade;
O planejamento não pode ser feito na correria;
Quando houver divisão do grupo sobre as opiniões, é preciso mais tempo para se discutir;
As pessoas devem estar informadas sobre o que se está discutindo;
A falta de concordância entre a comunidade leva à falta de ação;
A comunidade deve ser mais participativa, independente do interesse individual de cada
morador.
Tais considerações demonstram a importância que o grupo atribui à informação, tanto a
sua disponibilização, como a reflexão sobre ela. Essa discussão levantou situações relacionadas à
dinâmica de funcionamento da associação de moradores da comunidade. Durante a oficina,
discutiu-se o fato de que a informação é restrita a algumas pessoas dentro da associação, bem
como a responsabilidade sobre a realização de projetos. Dessa forma, a ampliação da informação
e da discussão a respeito de determinados assuntos poderia se tornar um fator complicador para a
viabilização de ações. Por outro lado, ações como o desenvolvimento do turismo, que envolviam
toda a comunidade, não poderiam deixar de ser discutidas em âmbito comunitário.
As decisões comunitárias são tomadas durante assembléia geral, convocada pela diretoria
da associação de moradores. Durante as assembléias, os assuntos são expostos e caso haja
necessidade, são votados; a aprovação de quaisquer ações é obtida por meio de consenso
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comunitário. Esse foi o caso, por exemplo, da realização das oficinas de planejamento
comunitário do turismo. Todavia, as decisões, mesmo tomadas em assembléia geral, partem de
representantes e grupos específicos dentro da comunidade que tem maior envolvimento com
determinado assunto. Esses grupos, não raro, são formados por pessoas que compõem o corpo da
diretoria da associação.
Os moradores que não tem um bom conhecimento sobre determinadas ações que ocorrem
na comunidade, tornam-se de certa forma, inaptos para opinar contrária ou favoravelmente. A
concentração da informação e do próprio poder de decisão dentro da comunidade permanece
assim, ciclicamente concentrada. Por outro lado, quando o assunto passa a ser abertamente
discutido, ele pode se tornar fonte de impasses que inviabilizam a execução de ações e projetos e
estimulam iniciativas particulares dentro da comunidade.
Com base na mesma atividade, a comunidade de André Lopes avançou nas seguintes
considerações:
Qualquer inversão na ordem do planejamento pode significar a extinção da espécie;
A morte de alguns lagartos foi necessária para a fase de adaptação da espécie e a conquista
de um novo habitat.
O grupo participante da oficina se ateve especialmente à ordem estabelecida pelo processo
de planejamento, dando maior atenção às conseqüências que a má composição dessa ordem
pudesse gerar. Nesse sentido, o grupo propôs que fosse feita uma simulação de determinada
situação, envolvendo a Caverna do Diabo, onde a comunidade tivesse que elaborar uma ação
planejada, em resposta a uma demanda.
O próprio grupo imaginou o contexto situacional e a partir daí, estruturou o planejamento.
De acordo com a situação, a hipótese era a de que a comunidade assumisse a gestão do núcleo e
se estruturasse para manter a visitação da caverna, coordenando os serviços normalmente
prestados no parque. A ausência das três principais lideranças representava um fator motivador
para a organização da comunidade. Esse detalhe expressa a situação de concentração de
informações e responsabilidades em torno de alguns membros específicos da comunidade e a
necessidade, imposta pela situação, de preparação de outros membros que se comprometam com
as questões comunitárias.
O grupo ainda trabalhou na elaboração do planejamento para uma situação de gestão
permanente da caverna. Nessa situação, cada uma das etapas do planejamento foi caracterizada,
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considerando-se a estrutura proposta no início da atividade. Após esse exercício, o grupo fez uma
avaliação das duas propostas de planejamento, considerando a situação emergencial e a situação
permanente.
Como se observa a seguir, o planejamento turístico, voltado especialmente para o caso da
Caverna do Diabo, vai se conformando como a questão fundamental a ser trabalhada nas oficinas
com a comunidade de André Lopes.
“Situação Emergencial na Caverna do Diabo”
SITUAÇÃO INICIAL: o núcleo da caverna é administrado pelo parque;
INFORMAÇÃO: o núcleo da caverna passa a ser administrado pela comunidade sem três das suas
principais lideranças;
DECISÃO: formar um grupo na comunidade para manter o núcleo da caverna em funcionamento
nos dias seguintes;
AÇÃO: funcionamento normal e provisório com divisão de funções:
Coordenação geral:
Supervisão de todos os serviços do núcleo;
Articulação de pessoas da comunidade para a prestação dos serviços;
Comunicação com as lideranças que estão fora;
Atendimento de situações emergenciais.
Coordenação da monitoria e da recepção:
Organização dos serviços de monitoria;
Controle dos serviços de recepção e venda de ingressos.
Coordenação do restaurante:
Organização dos serviços de cozinha e alimentação.
SITUAÇÃO FINAL: conseguir manter o núcleo da caverna aberto à visitação durante os primeiros
dias até que as lideranças da comunidade retornem da viagem.
A atividade seguinte baseou-se na idéia de que as comunidades pudessem identificar os
recursos necessários para a estruturação do turismo local, definindo inclusive quais seriam os
recursos que já estariam disponíveis para isso. Nesta atividade, utilizamos um texto que
apresentava a relação entre SISTEMA TURÍSTICO, MEIO EXTERNO e CLIENTE. Além disso,
trabalhamos alguns conceitos trazidos pelos casos de turismo comunitário no Brasil, como os
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analisados durante o Capítulo 2 deste trabalho. A comunidade de Sapatu avançou da identificação
dos componentes de cada um dos elementos trabalhados pelo texto, como a seguir:
SISTEMA TURÍSTICO:
Monitores;
Equipamentos;
Atrativos (cavernas, cachoeiras, rio, mirantes, trilhas, dança, culinária, etc);
Infra-estrutura da comunidade (igreja, escola, campo de futebol, fábrica de banana, centro
de artesanato, casas dos moradores, etc);
Comunidade.
MEIO EXTERNO:
Meios de comunicação;
Igrejas;
Universidades;
ONG;
Mercado do turismo;
Governos (programas de governo);
Serviços públicos.
CLIENTE:
Turistas (estrangeiros, de aventura, ecológico, cultural, terceira idade);
Grupos escolares;
Pesquisadores.
Com a definição elaborada pelo grupo, discutimos, utilizando os casos de turismo
comunitário como exemplos, qual seria a importância de cada um desses elementos para a
estruturação do turismo na comunidade de Sapatu. O grupo identificou a inter-relação existente
entre todos os elementos, mas concluiu que teria maior capacidade de intervenção quanto ao
SISTEMA TURÍSTICO.
O grupo também discutiu prioridades para se estruturar o turismo na comunidade, teve
dúvidas sobre se o melhor critério seria atender as expectativas do turista ou orientar o turismo de
acordo com os próprios recursos. Essa discussão tratou especialmente da questão da infra-
estrutura, não só a necessária para garantir condições de acesso e uso dos atrativos, mas a
relacionada à prestação de serviços, como recepção, hospedagem e alimentação. O grupo se
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dividiu entre aqueles que defendiam a instalação de obras e equipamentos na comunidade como
condição básica para a realização do turismo e aqueles que acreditavam ser possível estruturar a
atividade com o que já se possui.
Em André Lopes, as discussões permitiram que o grupo formulasse considerações
específicas a serem adotadas para a estruturação do turismo na comunidade. Essas considerações
referiam-se a relação de prestação de serviços estabelecida entre turistas e comunidade. São elas:
A boa impressão do turista pode ajudar na divulgação da comunidade;
A estrada mal conservada é um problema do ponto de vista do turista;
A avaliação do turista pode ajudar a melhorar a prestação de serviços na comunidade;
O turista precisa ser informado sobre a comunidade;
É preciso controlar o comportamento do turista;
Padronizar as informações sobre a caverna;
Padronizar os serviços e o trabalho dos monitores;
Cuidar da segurança do turista (convênio com a Santa Casa de Eldorado, adquirir
medicamentos e equipamentos de segurança, formular atestados de responsabilidade quando
o turista não quiser cumprir as normas de segurança).
Nota-se neste caso, que as considerações definidas para a prática do turismo estão mais
próximas da condição presente da comunidade na época de realização das oficinas. A atenção do
grupo se concentrou nas possibilidades de melhoria dos serviços já prestados pela comunidade ou
por outros sujeitos como o Estado, no caso da estrada e o município, no caso do atendimento à
saúde. O grupo se norteou pelo fato de que o investimento na relação com o turista, dentro dos
recursos e das possibilidades que a comunidade dispõe para atendê-lo, constitui em uma forma de
fortalecimento do turismo comunitário.
As atividades até aqui descritas foram trabalhadas nas primeiras oficinas realizadas em
cada comunidade; elas tiveram por objetivo fomentar discussões de natureza conceitual a respeito
do turismo e do planejamento. Essas discussões nos permitiram identificar dinâmicas existentes
nas comunidades que foram determinantes para o desenvolvimento das oficinas, imprimindo
características específicas, advindas do próprio contexto comunitário. Em Sapatu, destaca-se a
insegurança da comunidade a respeito do desenvolvimento de uma atividade pouco conhecida
por seus moradores; em André Lopes, destaca-se a necessidade de regulação sobre uma atividade
já presente na vida comunitária. A partir daí, demos início a atividades voltadas mais
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propriamente às demandas comunitárias.
Nas oficinas seguintes, a comunidade de Sapatu desenvolveu uma proposta de
planejamento para a área da Queda do Meu Deus.
A Queda do Meu Deus é o principal atrativo turístico do bairro; trata-se de uma cachoeira
localizada em terras reconhecidas como pertencentes à comunidade de Sapatu, e de acordo com
informações do ITESP, encontra-se atualmente sob a condição de terra devoluta do Estado.
Contudo, ao iniciarmos as oficinas, a informação transmitida pela própria comunidade foi a de
que essa área era considerada terra particular. O proprietário havia contratado um morador da
comunidade para cuidar da área e o morador por sua vez, alegava que o proprietário não se
comunicava com ele há mais de um ano.
ESTRUTURAÇÃO DO ATRATIVO QUEDA DO MEU DEUS
AÇÃO TIPO de AÇÃO PARCEIROS POSSÍVEIS
1 – Cascalhar a estrada de acesso à
Queda;
Infra-estrutura Prefeitura Municipal de Eldorado
2 – Terraplanagem e cascalho para
estacionamento;
Infra-estrutura Prefeitura Municipal de Eldorado
3 – Construção de quiosque com
banheiros e área para alimentação
(elaboração de projeto e busca de
financiamento para as obras);
Infra-estrutura e
Serviço
Prefeitura Municipal de Eldorado,
comércio local, UNICAMP
4 – Sinalização; Infra-estrutura Feita pela própria comunidade
com os materiais disponíveis
5 – Área para acampamento (serviços
de terraplanagem e cobertura do solo);
Serviço Prefeitura Municipal de Eldorado
e a própria comunidade
6 – Melhoramento das trilhas
(aquisição de materiais);
Infra-estrutura Prefeitura Municipal de Eldorado
e comércio local e financiadores
7 – Pesqueiro (terraplanagem e
cobertura do solo, plantio de mudas,
instalação de bancos e barracas.
Serviço Prefeitura Municipal de Eldorado,
comércio local, UNICAMP,
ITESP, DPRN, ISA, IF e BIRD
O atrativo recebia visitantes que na época pagavam R$2,00 para entrar e faziam o passeio
sempre acompanhados por um monitor ambiental. A visita à Queda do Meu Deus é uma das
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principais opções de visitação turística da região depois da Caverna do Diabo. O grupo trabalhou
o planejamento para o atrativo dentro deste contexto e sua idéia consistia em estruturá-lo para
aumentar o número de visitantes e sua divulgação na região.
No entanto, para dar prosseguimento a essas ações, a comunidade necessitava certificar-se
sobre a legalidade da iniciativa, em vista da condição considerada da área, como terra particular.
Para isso, definiu como primeira ação, ter uma conversa com um advogado a fim de sanar as
seguintes dúvidas:
As ações planejadas pela comunidade para a área da Queda são legais do ponto de vista de
jurídico, enquanto a comunidade não obtém o título das terras?
Quais os riscos que qualquer ação ou tipo de parceria para executar obras na área da
Queda oferece para a comunidade?
As parcerias são legais mesmo sem o título das terras?
É possível dar início aos trabalhos sem consultar o atual proprietário da área?
Se a comunidade realizar alguma benfeitoria na área, ela pode perdê-la?
É possível fazer projetos para conseguir financiamento para uso da área da Queda em nome
da Associação de Moradores de Sapatu?
Figura 17. Placa de anúncio da cachoeira Queda do Meu Deus
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122
Figura 18. Área de acesso à cachoeira Queda do Meu Deus
Figura 19. Trilha de acesso à cachoeira Queda do Meu Deus
Fotos: Ivie Santana (2008)
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123
A comunidade de Sapatu ainda avançou na elaboração de um texto inicial que pudesse
compor uma cartilha informativa a ser apresentada aos turistas que visitassem a comunidade. A
seguir, o texto elaborado:
“Considerando que hoje a área dos atrativos da comunidade está nas mãos de terceiros e
conseguindo indenizar esses terceiros, a comunidade já pode utilizar os atrativos livremente,
independente do título. A comunidade poderia utilizar esses atrativos para educação ambiental,
a importância de hoje é você ter uma relação com a natureza, dependendo dos atrativos.
A ameaça que se tem com as barragens é que se perde tudo, a moradia, a cultura e os
atrativos. A barragem, se saísse, ela estragaria todos esses recursos, animais, plantações,
atrativos, levando atualmente a cultura da comunidade. A maior parte da nossa cultura é gerada
através da terra, a cultura no campo é uma e na cidade é outra. Hoje não estamos preparados
para morar agrupados, normalmente moramos uns distantes dos outros e livremente, cada um
com seus costumes e com a cultura da comunidade.
A geração de renda está baseada atualmente nos próprios recursos. Planejar um órgão
para preparar a comunidade, mas com os recursos bem posicionados. Como aqui nós temos a
área muito grande, considerada pelo parque, os recursos não são possibilitados pela
comunidade. Hoje, o cumprimento agrícola está mais posicionado pela banana, pelos recursos
das áreas apropriadas”.
O texto é revelador do contexto comunitário e da condição paralela do turismo dentro
desse contexto. Ele é expressivo quanto à forma como a comunidade concebe sua cultura,
baseada na apropriação dos recursos naturais, e quanto às ameaças à manutenção dessa cultura,
como no caso da presença dos chamados “terceiros”, proprietários particulares de terras, das
barragens e do parque. A possibilidade do turismo é levemente lembrada quando se trata do
aproveitamento dos atrativos para a prática da educação ambiental.
Durante o período de realização dessas atividades com a comunidade de Sapatu, a
Prefeitura do Município de Eldorado convocou uma reunião para tratar sobre o Conselho
Municipal de Turismo (COMTUR). Ambas as comunidades foram convidadas para a reunião.
Na reunião, ocorrida em 17/05/06, estavam presentes representantes do comércio turístico
de Eldorado, vereadores, representantes da prefeitura e das associações de moradores do bairro de
Sapatu e André Lopes. A reunião começou com manifestações contrariadas de participantes ao
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124
saberem que as reivindicações feitas ao prefeito sobre o COMTUR haviam sido negadas. O caso
é que o COMTUR permanecia como órgão consultivo do município e com diretoria nomeada
pelo prefeito. As novas reivindicações consideravam que o COMTUR passasse a ser um órgão
deliberativo, formado por representantes de diferentes grupos do município, com presidente
escolhido em eleição e com administração do repasse de 1% do ICMS do município.
O COMTUR é um órgão obrigatório para o município de Eldorado pelo fato deste ter sido
reconhecido como “estância turística” pelo Governo do Estado e por receber repasses
orçamentários específicos por essa condição. Esses repasses por sua vez, seriam de administração
do COMTUR, porém, no caso de Eldorado, a prefeitura detinha a administração sobre esses
recursos, definindo assim os limites de atuação do COMTUR, que se tornou um órgão sem
independência operacional e administrativa. As novas reivindicações eram uma tentativa de
alterar a estrutura do COMTUR, procurando torná-lo mais dinâmico e participativo.
Na reunião ficou decidido encaminhar as reivindicações através de uma proposta formal
ao prefeito de Eldorado e consultar a legislação atual que rege o COMTUR para saber como
legalizar essas reivindicações. Os representantes das comunidades de Sapatu e André Lopes que
participaram da reunião relataram que o COMTUR é assunto antigo no município e desde que
existe, em quase nada tem avançado.
Segundo o Sr. Lélis Ribeiro, empresário hoteleiro do município de Eldorado, o
COMTUR, durante 8 meses em que recebeu o repasse de cerca de 1% de ICMS (Imposto sobre
circulação de mercadorias e prestação de serviços) realizou algumas ações que repercutiram
positivamente para a promoção do turismo no município. A construção do posto de informações
turísticas do município foi uma dessas ações. Contudo, com a mudança da administração
municipal, o repasse do recurso foi suspenso e o conselho perdeu sua operacionalidade
(Entrevista em 09/04/2006).
O empresário traça um histórico do desenvolvimento do turismo no município. Conta que
a atividade teve início na década de 1970, com intensa visitação à Caverna do Diabo,
caracterizada pelas excursões de um de dia de duração. No entanto, com a promoção de outros
roteiros turísticos no Brasil, que envolviam cavernas e outros atrativos naturais, as visitas ao
parque diminuíram sensivelmente. Em meados da década de 1990, a administração municipal da
época adotou medidas de incentivo ao turismo e nesse período, foram elaborados novos roteiros
turísticos, com cavernas e cachoeiras ainda não visitadas; houve a formação dos primeiros
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125
monitores ambientais do município, sendo parte deles, moradores das comunidades quilombolas,
e a formação posterior da Associação dos Monitores Ambientais do Município de Eldorado
(AMAMEL). Esses fatores estimularam a permanência do turista por mais tempo no município e
em resposta a esse movimento, 3 pousadas e 2 agências de turismo foram abertas no município,
além da construção de um espaço público chamado Aldeia Cultural.
Todavia, com a mudança de administração, a política de apoio ao turismo não se manteve
e de lá pra cá, o número de turistas vem caindo consideravelmente, enquanto os
empreendimentos montados como pousadas, hotéis e restaurantes estão sendo fechados.
Em março de 2007, por iniciativa do Departamento Municipal de Turismo, houve uma
reunião para o restabelecimento do COMTUR. A idéia inicial foi compor o grupo para em
seguida, dar prosseguimento a algumas ações como a alteração da lei que rege o conselho.
Segundo o Sr. Lélis, o grupo pretendia ter acesso à gestão de recursos como o próprio ICMS e um
recurso específico, repassado aos municípios considerados estâncias turísticas, como é o caso de
Eldorado. Na época da conversa, em abril de 2007, esse recurso era administrado diretamente
pelo executivo do município.
A nova composição do conselho previa uma vaga para um representante do então PEJ e
uma vaga para monitores ambientais, considerando que eles são, em sua maioria, membros das
comunidades quilombolas.
A idéia de trabalhar atividades relacionadas à gestão do turismo municipal com as
comunidades consistia em uma forma de ampliar a noção do planejamento comunitário. Cientes
das iniciativas empreendidas pelo poder público, especialmente considerando o turismo como
atividade potencial para o desenvolvimento do município e a importância estratégica que os
atrativos localizados nos bairros de André Lopes e Sapatu representam para a prática da
atividade, as comunidades poderiam articular parceiros e recursos para viabilizar seus projetos,
como havia sido discutido nas oficinas já realizadas. Contudo, a manifestação dos representantes
das comunidades restringiu-se ao comentário feito ao final da reunião.
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126
Figura 20. Praça central do município de Eldorado
Figura 21. Praça em Eldorado
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Figura 22. Placa de informações turísticas em Eldorado
Figura 23. Espaço público Aldeia Cultural - Eldorado
Fotos: Ivie Santana (2008)
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Já em André Lopes, as próximas oficinas evoluíram quanto ao planejamento que o grupo
desejava fazer em duas perspectivas, uma voltada para o núcleo Caverna do Diabo e outra
voltada para a comunidade.
Após a elaboração das duas propostas de planejamento para a caverna, considerando a
condição emergencial e a condição permanente, o grupo trabalhou na revisão de suas propostas,
até chegar a uma final. Essa proposta segue abaixo:
PLANEJAMENTO PARA A CAVERNA DO DIABO
INFORMAÇÃO DECISÃO AÇÃO SITUAÇÃO FINAL
Tipo de
público;
Como
organizar as
ações dentro
do núcleo;
Trabalhar com públicos
mistos nos finais de
semana e feriados e
oferecer novos programas
e roteiros durante a
semana (pesquisa,
oficinas, eventos, outros
atrativos);
Fazer divulgação orientada
para cada público;
Orientar e capacitar a
comunidade;
Atualizar a versão de
descobrimento da caverna;
Integrar os grupos de
trabalho da comunidade ao
trabalho com turismo;
Escolher a forma de
administração do núcleo;
Fazer parcerias para
projetos;
Fazer planos de manejo
para os atrativos.
Organizar grupos de
trabalho para
visitação;
Buscar informações
para montar novos
roteiros e programas
de turismo;
Utilizar meios de
comunicação para
divulgar o turismo na
comunidade;
Buscar parcerias para
capacitar a
comunidade;
Organizar as
atividades em grupos
de trabalho;
Executar a forma de
administração
escolhida para o
núcleo;
Fazer projeto para
destinação de
resíduos.
Envolvimento da
comunidade;
Controle da visitação;
Melhor uso da caverna
e dos recursos;
Melhor retorno
financeiro;
Melhor qualidade de
vida;
Comunidade envolvida
e informada;
Melhor aproveitamento
do turismo;
Independência na
administração do
núcleo;
Funcionamento legal da
caverna;
Diminuição dos
conflitos com a
comunidade;
Melhor conservação da
área.
O grupo manteve a utilização das etapas de planejamento apresentadas e considerou a
SITUAÇÃO INICIAL, única etapa que não consta no quadro, como o contexto já mencionado,
de instalação de uma atividade turística excludente em relação à comunidade, concentradora de
renda e geradora de conflitos pelos impactos causados à vida comunitária.
Voltada para a comunidade, a proposta de planejamento construída consistiu em:
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129
Construir o PIT (Posto de Informação Turística) para informar o turista sobre a vida em
André Lopes, a cultura quilombola e o turismo na comunidade no momento de sua chegada;
Inserir a comunidade na atividade turística através da formação de guardas-mirins;
Educar a comunidade para romper com as barreiras criadas pelo turismo;
Produzir fichas de avaliação para o turista expressar sua opinião sobre o turismo na
comunidade;
Estimular o retorno do turista e tentar causar boa impressão para que ele divulgue a
comunidade;
Capacitar monitores para atender a públicos diferenciados (crianças, idosos, deficientes,
homossexuais, etc.);
Diversificar os roteiros com visitas a caverna e a outros atrativos;
Promover reciclagem dos monitores: cursos de primeiros socorros, cursos de astronomia e
outros;
Divulgar as visitas à comunidade em escolas da região para garantir a freqüência de
visitação durante o ano inteiro;
Adquirir equipamentos de segurança e estabelecer regras de segurança para os passeios;
Fazer planos de manejo para os atrativos;
Formular cartilha de regras sobre comportamento e visitação para o turista que visita a
comunidade;
Padronizar os serviços e as informações no núcleo da caverna;
Estabelecer regras para as visitas ao núcleo;
Tentar minimizar os pontos negativos das visitas (falta de infra-estrutura por exemplo)
através do bom tratamento ao turista;
Tornar a comunidade responsável pelo turismo e pelo bom tratamento do visitante, e também
pelo controle do seu comportamento, caso seja necessário;
Construir o PCC (Ponto de Comunicação Comunitária) para articular a comunicação entre
os diferentes pontos da comunidade e poder agir com mais rapidez no caso de alguma
emergência.
Ao elaborar as duas propostas de planejamento, o grupo buscou integrar a prática do
turismo na comunidade, empreendida inicialmente de forma fragmentada. A Caverna do Diabo,
como principal atrativo para aproveitamento turístico, constituía também a principal demanda
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130
para o planejamento comunitário. A perspectiva de gerir a área da caverna exigia que a
comunidade se preparasse tecnicamente para administrar um recurso, cuja forma de apropriação
foi modificada com o passar do tempo, considerando o uso da caverna feito por seus
antepassados. Além da caverna, mas especialmente por conta de sua presença no território, a
comunidade deveria estar igualmente preparada para administrar as repercussões advindas do uso
turístico desse recurso.
Um caso que simboliza essa situação em que a comunidade busca afirmar seu direito de
uso e gestão sobre a caverna está na história contada sobre sua descoberta. O Sr. Carlos Roberto
da Silva Moraes, morador de André Lopes e monitor ambiental, apresenta a versão comunitária:
“(...) o pessoal aqui, que vivia próximo da caverna, eles viviam da plantação, né, devido
as lenda, eles né, plantavam suas coisas e armazenavam dentro da caverna. Outro dia
amanhecia alguns do lado de fora, alguns comido, alguns bagunçado e como eles acreditavam
muito em fantasma e assombração, eles acreditavam que algum tipo de espírito mal tinha feito
aquilo com os alimento deles né, sendo que eram os próprios bichos, paca, catete, esses bichos
que comiam né os alimentos deles, mas como a maioria deles eram afro-descendente né, tinha
muito aquela coisa de acreditar em candomblé né, essas coisas, então mexe muito com espírito,
então eles acreditavam que eram esses espírito mau que tinha feito aquilo com os alimento dele
né e a maior parte das roça deles onde eles faziam seus plantio, era próximo da entrada da
caverna, então na hora do almoço que eles tavam descansando né, do almoço, imaginavam ouvir
gritos, vozes dentro da caverna pelo barulho que a água do rio faz dentro da caverna, então eles
passaram a ter uma crença, que se não fosse o inferno, seria uma entrada para o inferno né, os
gritos, vozes que eles escutavam terem sido das alma que o diabo tinha carregado pra dentro da
caverna... mas o nome real mesmo, que bem antes de surgir o nome Caverna do Diabo, bem
antes disso, tinha um nome que o pessoal aqui que vivia aqui né, eles deram Gruta da Tapagem
né, porque gruta, caverna né, tapagem em Tupi- Guarani significa lugar misterioso ou lugar
obscuro né, então aí surgiu esse nome Caverna do Diabo mais pra chamar atenção da mídia na
época, isso tudo acaso, por causa de um alemão que foi o primeiro explorador da caverna né,
falam que ele foi o primeiro descobridor, mas foi o primeiro explorador que aqui já vivia gente,
então esse primeiro explorador, foi no, isso aconteceu no ano de 1891 né, ele veio aqui perdido
na mata, que na verdade ele não era pesquisador de caverna, ele era pesquisador de erva
medicinais, tinha se perdido na mata e o pessoal que vivia aqui informou pra ele desse lugar
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misterioso e ele como curioso, como todo mundo é né, então ele foi até esse lugar que eles
falaram, acendeu a tocha né, na época era aquelas tocha de bambu, entrou dentro da caverna,
ele achou impressionante né, aquele lugar de tanta beleza e começou a andar, tinha vez que ele
ficava dias, horas dentro da caverna, o pessoal muitas vezes acreditavam até que ele tinha sido
carregado pelo diabo né, que tava muito demorando, então foi assim que esse homem levou essa,
essa notícia pra São Paulo e na época foi negado por ele, ele pediu uma ordem pra exploração,
mas foi negado né, e aí começaram vim outros pessoal mandado pelo, pelo governo né, até que
chegou o coronel Rodolfo Petená né, que veio aqui que tem hoje como um dos primeiros assim
explorador da caverna né, então ele veio, fez a travessia da caverna né, no ano de 1965, não, é,
1965, ele fez a primeira travessia, demoraram 24 horas, tal e veio vários outros grupo, o grupo
de Michel Lebret né e assim por diante...”. (Entrevista em 09/04/2007).
Figura 24. Núcleo Caverna do Diabo – PEJ
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Figura 25. Acesso à Caverna do Diabo
Figura 26. Restaurante do núcleo Caverna do Diabo
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Figura 27. Espaço para exposição de artesanato comunitário no núcleo
Figura 28. Entrada para a caverna
Fotos: Ivie Santana (2008)
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134
Na sequência, outra atividade empreendida pela administração municipal, motivou a
reunião das duas comunidades, dessa vez para tratar da elaboração do Plano Diretor de Eldorado.
A reunião contou com a presença de representantes das comunidades de André Lopes,
Galvão, Nhunguara, São Pedro e Sapatu e de representantes da prefeitura de Eldorado,
responsáveis pela elaboração do plano diretor.
A reunião, realizada em 12/06/06, começou com a apresentação de um representante da
prefeitura explicando que o município de Eldorado, por ser considerado estância turística, era
obrigado a ter um plano diretor. O prazo de elaboração desse plano era outubro de 2006 e o
período de aplicação previsto para a execução do plano seria de 15 a 20 anos, a contar do início
de 2007. Caso o plano diretor não fosse feito dentro do prazo, o município perderia o repasse de
recursos específicos que são concedidos a municípios considerados estâncias turísticas.
A apresentação da proposta do plano diretor de Eldorado para as comunidades rurais era
uma das etapas de elaboração do plano e a partir de um texto base, foram marcadas audiências
públicas para discussão e aprovação do texto. Após a fase das audiências, o texto deveria ser
refeito para incorporar as alterações aprovadas e esse espaço seria aberto à participação da
população. A versão final do texto por sua vez, passaria pela aprovação da Câmara dos
Vereadores, realizada em sessão aberta.
Dentre as propostas do plano, havia uma sobre o zoneamento municipal com base nas
atividades de agricultura e turismo para a zona rural. Segundo o técnico da prefeitura, os recursos
municipais seriam aplicados de acordo com o zoneamento municipal e com a articulação das
comunidades de bairro e associação de moradores. Um desses recursos é justamente o Fundo
Estadual para Estâncias Turísticas, concedido pelo Departamento de Apoio ao Desenvolvimento
das Estâncias (DADE), que a princípio é destinado ao desenvolvimento turístico do município,
mas que pode ser usado para outras funções desde que acompanhado de justificativa relacionada
à atividade turística.
As comunidades questionaram a aplicação desses recursos pela prefeitura, pediram para
incluir a prestação de contas municipal como norma do plano diretor, solicitaram que o texto base
do plano fosse entregue a elas antes das audiências públicas e solicitaram ainda, maior
participação nas decisões políticas do município, através de mais atenção, mais acesso às
informações e mais espaço para participação.
O plano diretor para o município de Eldorado foi aprovado no final de 2006. O texto o
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define como instrumento estratégico para o planejamento e a gestão municipal, baseado na
política de desenvolvimento agrícola e turístico, condicionante para a atuação de agentes públicos
e privados no município.
Dentre os princípios e objetivos gerais do plano, destaca-se: “III – Desenvolvimento
socioeconômico do município tendo como base o respeito ao meio ambiente e as tradições
culturais, principalmente no que se refere às ações Turísticas e Agrícolas no município”.
O plano foi construído em função do município de Eldorado ser considerado “estância
turística”; essa característica garante um repasse importante ao município, advindo do Fundo
Estadual para Estâncias Turísticas. Além disso, por abrigar unidades de conservação em sua área,
o município também recebe repasse do ICMS do Estado. Esses dois condicionantes, um referente
à conservação ambiental e outro, referente ao desenvolvimento turístico, impõem a adoção de
critérios específicos para a o planejamento do município e para o aproveitamento de seus
recursos.
Da seção que trata especificamente do turismo, destaca-se o seguinte parágrafo do artigo
35:
“XIX - elaborar projetos específicos visando melhorias nos seguintes pontos turísticos do
município:
a) Quanto aos Roteiros:
Caverna do Diabo;
Queda do Meu Deus;
Vale das Ostras;
Trilha do Bugio e Complexo do Rolado;
Caverna do Frias;
Trilha do Lamarca;
Rio Batatal;
Trilha da Ressurgência e Gruta das Ostras;
Mirante do Angico.
E outros que vierem a ser diagnosticados e implantados.
Para a implantação de um plano de manejo e utilização racional desses roteiros poderá
estabelecer uma parceria entre a Prefeitura Municipal e o legítimo possuidor das áreas em
questão”.
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Grande parte desses atrativos localiza-se nas áreas reconhecidas como pertencentes às
comunidades André Lopes e Sapatu. Ambas são alvos diretos da política proposta pela
administração municipal, visto que dividem seus territórios com as unidades de conservação e
tentam garantir a gestão dos principais atrativos turísticos de Eldorado. Contudo, pelo histórico
de intervenções apresentado, o principal interlocutor com quem as comunidades têm discutido o
uso dessas áreas é o Governo Estadual, inclusive em relação à política de reconhecimento
quilombola. Nesse contexto, a administração municipal, a partir da aprovação do plano diretor,
assume maiores responsabilidades na condução do planejamento para o município.
A atividade seguinte, realizada com as duas comunidades, consistiu na proposta de
elaboração de pequenos projetos comunitários a serem submetidos a um edital disponibilizado
pelo Instituto para o Desenvolvimento Sustentável e Cidadania do Vale do Ribeira (IDESC), uma
organização não-governamental atuante na região.
A começar pela comunidade de Sapatu, a proposta do edital foi apresentada durante
oficina que tinha por objetivo inicial instrumentalizar o grupo para a elaboração de projetos
comunitários, visto que essa é atualmente, uma das principais formas de financiamento para as
ações e os projetos empreendidos pelas comunidades.
O grupo foi dividido em dois subgrupos que elaboraram, cada qual, uma proposta de
projeto:
1 – “Projeto de desenvolvimento do ECOTURISMO em Sapatu”;
Turismo direcionado a grupos escolares;
Formação de roteiro turístico incluindo a área da Queda do Meu Deus, a fábrica de banana,
o centro de artesanato e um projeto de criação de mudas nativas;
Construção de quiosque;
Melhoramento das trilhas;
Capacitação da comunidade.
O projeto é uma importante forma de geração de renda na comunidade através do
aproveitamento dos recursos naturais protegidos até hoje. Ele apresenta como benefícios:
Sociais: divulgação e valorização da comunidade;
Ambientais: conservação ambiental dos recursos através do turismo;
Econômicos: geração de renda e integração de outras atividades econômicas.
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137
2 – “Projeto de viveiro de plantas nativas para reflorestamento e comercialização”;
Viveiro de mudas para reflorestamento, comercialização e visitação turística;
Criação de mudas de ervas medicinais e espécies em extinção.
O projeto é importante porque tem diferentes funções: uso turístico, reflorestamento de
áreas degradadas, fornecimento de ervas medicinais para a comunidade e comercialização de
mudas. Ele apresenta como benefícios:
Sociais: divulgação da comunidade através do trabalho com mudas e do turismo;
Ambientais: repovoamento de espécies, reflorestamento e recuperação da natureza;
Econômicos: geração de renda através da venda de mudas e do turismo.
Com as duas propostas, o grupo reunido novamente, avaliou a viabilidade de ambas para a
comunidade. A avaliação das propostas teve como resultados:
Proposta 1
Bom aproveitamento da área da Queda do Meu Deus;
Alto custo do projeto;
Boa justificativa;
Poucas ações de conservação ambiental.
Proposta 2
Pouca geração de renda para a comunidade;
Boa idéia e boa justificativa;
Importante para a conservação ambiental;
Falta de dimensão e localização da área do viveiro;
Pouco interesse para o turismo.
A partir da avaliação das propostas, o grupo, em sua maioria, julgou a “Proposta 2” como
melhor. Essa proposta, de forma geral, mantinha mais afinidade com o grupo e com a própria
comunidade, que caso tivesse a proposta aprovada pela ONG, assumiria pela primeira vez, a
gestão integral de um projeto. Contudo, a maioria do grupo foi questionada pelo fato da proposta
não ter importância turística; os questionamentos partiram especialmente de alguns monitores
ambientais que tinham interesse em melhorar a estrutura de recepção na área da Queda do Meu
Deus.
Como não havia consenso entre o grupo, optamos, em conjunto, por discutir melhor o
assunto e definir uma proposta. Foram marcados mais cinco encontros com a comunidade de
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138
Sapatu para que entre as duas propostas elaboradas, fosse escolhida aquela que seria submetida
ao IDESC.
Os encontros seguintes tiveram pouca participação da comunidade, fato que prejudicou o
andamento do trabalho, pois em pequeno número, os representantes não se sentiam seguros para
optar por uma proposta, elaborá-la e organizar a documentação necessária para enviá-la dentro do
prazo, no caso, final do mês de junho de 2006. Além disso, nos encontros que reuniram mais
representantes, não se chegou a um consenso sobre a melhor proposta, o grupo permaneceu
dividido entre a proposta de ecoturismo na Queda do Meu Deus e a proposta do viveiro
medicinal.
Sendo assim, no dia 21/06/2006, no último encontro relacionado à discussão das
propostas, ficou decidido que a comunidade amadureceria suas decisões e esperaria pela abertura
de um novo edital.
Em André Lopes, o processo foi o mesmo e o grupo elaborou as seguintes propostas:
1 – “Projeto de Educação Ambiental na comunidade de André Lopes”;
Compra de equipamentos audiovisuais;
Contratação de palestrantes e monitores;
Busca de parceria para a produção de vídeo sobre a cultura quilombola;
Agendar visitas de grupos escolares à comunidade;
Produzir novos vídeos com os grupos.
O projeto tem importância social e ambiental por trabalhar com práticas de conservação
ambiental.
2 – “Projeto de conservação de espécie para fins de geração de renda a médio e longo prazo
na comunidade de André Lopes”;
Construção de viveiro de palmito juçara;
Repovoamento da espécie em extinção em áreas degradadas;
Comercialização de mudas e formação de espaço para visitação e educação ambiental;
Envolvimento da comunidade nas atividades relacionadas ao viveiro;
Registro das atividades e das etapas de crescimento do palmito através de documentos
digitais.
O projeto é importante porque integra um outro projeto atualmente em desenvolvimento
na comunidade (projeto de repovoamento da espécie juçara em parceria com o Instituto Sócio-
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Ambiental – ISA) e assim, ganha força para envolver a comunidade. Ele apresenta como
benefícios:
Sociais: conscientização da comunidade e de visitantes sobre o manejo da espécie;
Ambientais: recuperação de espécie em extinção e de áreas degradadas;
Econômicos: geração de renda para a comunidade através da comercialização de mudas
e da visitação turística.
Após a apresentação das propostas, os grupos partiram para a fase de avaliação:
Proposta 1:
Orçamento acima do limite permitido;
A proposta não especificou número de participantes;
A proposta não especificou como pode gerar renda para a comunidade.
Proposta 2:
Como pensam em fazer o registro digital das comunidades sem ter equipamentos?;
Quanto significa médio e longo prazo?;
Existiriam visitantes interessados no projeto?;
O orçamento seria suficiente para todas essas ações?;
A comunidade se envolveria pelo preço estipulado das diárias?;
As pessoas da comunidade trabalhariam voluntariamente pelo projeto?.
O tipo de avaliação feita em relação à “Proposta 2” sinalizava para a viabilidade do
projeto. O grupo reunido se propôs a discutir melhor a proposta a fim de melhorá-la e submetê-la
ao edital. Não houve nesse caso, nenhum questionamento sobre a natureza do projeto e sua
relação com o turismo.
Foram marcados mais sete encontros com a comunidade de André Lopes para definir a
proposta de construção de viveiro da espécie juçara na comunidade. Nesses encontros foram
trabalhadas todas as exigências do edital quanto a: APRESENTAÇÃO, JUSTIFICATIVA,
METAS, ATIVIDADES, METODOLOGIA e MONITORAMENTO, MEMÓRIA de
CÁLCULO e PLANILHAS ORÇAMENTÁRIAS, documentos que se referem aos materiais,
equipamentos e serviços utilizados para a execução do projeto.
A proposta foi concebida como uma parceria entre a Associação dos Remanescentes de
Quilombo do Bairro de André Lopes e o Instituto Sócio-Ambiental (ISA), com a colaboração da
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) através das Oficinas de Planejamento
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Comunitário do Turismo. O projeto representa uma das demandas da comunidade, o que
favoreceu o envolvimento e a participação dos representantes na sua criação.
A proposta intitulada “Conservação da espécie do palmito juçara em extinção para fins
de geração de renda a médio e longo prazo no Quilombo André Lopes” foi enviada ao Instituto
para o Desenvolvimento Sustentável e Cidadania do Vale do Ribeira (IDESC) em 30/06/2006
com os respectivos documentos do proponente, a Associação dos Remanescentes de Quilombo do
Bairro de André Lopes, e foi aprovada em agosto de 2006.
A última atividade realizada com as comunidades como parte da programação das
oficinas teve por objetivo avaliar o andamento das oficinas. A princípio, a idéia era que a
avaliação servisse para orientar as próximas atividades, contudo, por falta de condições de ambas
as comunidades em dar seguimento às atividades, as oficinas foram encerradas com essa
avaliação.
A avaliação de ambas as comunidades foi feita com base nas seguintes atividades:
Diagnóstico da situação do turismo atual nas comunidades;
Levantamento de demandas para o desenvolvimento do turismo local;
Participação na discussão sobre o plano diretor municipal e o conselho municipal de turismo
de Eldorado;
Elaboração de planos para atrativos turísticos já em utilização;
Elaboração de projetos para apresentação a editais.
Avaliação em Sapatu:
Um resultado das oficinas é a organização de informações para o planejamento do turismo
na comunidade;
A comunidade não conseguiu se articular para formar um grupo de trabalho responsável
pelo turismo;
Houve muita discussão e discordância na hora de elaborar propostas de turismo para a
comunidade;
A discussão sobre temas paralelos tomou muito tempo e tirou o foco da discussão sobre o
turismo;
Houve desinteresse do grupo quando assuntos paralelos foram discutidos, por exemplo, como
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141
no caso da titulação de terras;
Faltou entendimento entre a comunidade e havia imposição de idéias contrárias entre alguns
membros;
Faltou comprometimento da comunidade em relação às oficinas, às vezes o grupo estava
forte, às vezes estava fraco;
As oficinas não atenderam às expectativas da comunidade.
Avaliação em André Lopes:
Ótima avaliação das oficinas;
Dificuldade de entendimento de termos técnicos;
Bom desempenho da professora;
Uso de materiais adequados;
Boa participação do grupo de turismo da comunidade;
Pouco número de participantes da comunidade;
Boas propostas formuladas;
Falta de ação para realizar as propostas formuladas;
O coordenador do grupo de turismo não conseguiu articular os participantes;
Os participantes do grupo não mantiveram a frequência nas oficinas;
Falta de concentração, brincadeiras e atrasos do grupo fizeram com que se perdesse tempo
nas oficinas;
As regras do café, do horário e de ouvir quando um está falando não foram sempre
cumpridas;
O planejamento para a Caverna do Diabo teve bom andamento;
Para haver a consolidação do plano para a caverna, precisa haver maior participação da
comunidade;
A comunidade se saiu bem na elaboração de projetos, principalmente por ter sido o
primeiro;
O objetivo da oficina de elaboração de projeto foi cumprido;
O tempo foi suficiente, a comunidade foi organizada, os materiais foram bons e professora
teve uma boa relação com o grupo.
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142
As atividades de avaliação das oficinas aconteceram no dia 08/08/2006 em Sapatu e no
dia 10/08/2006 em André Lopes. Entre os meses de agosto e outubro de 2006, prazo final
estipulado para a realização das oficinas, as comunidades não se organizaram para retomar as
atividades das oficinas.
Os grupos que participaram das Oficinas de Planejamento Comunitário do Turismo,
tratado por vezes como “comunidade”, são os representantes da Associação de Remanescentes de
Quilombo do Bairro de Sapatu e da Associação de Remanescentes de Quilombo do Bairro de
André Lopes, que com maior ou menor freqüência, fizeram parte das atividades propostas pelas
oficinas e são como tal, realizadores, no plano das idéias e das ações, de uma proposta de turismo
para a comunidade.
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143
Capítulo 10: O planejamento comunitário do turismo como instrumento de legitimação
cultural em território quilombola
De forma geral, as expectativas das comunidades a respeito da proposta de planejamento
do turismo estavam, inicialmente, relacionadas a processos operacionais como a estruturação de
atrativos ou a aquisição de equipamentos. As oficinas por sua vez, tinham como objetivo
fomentar um processo de reflexão sobre a forma como o turismo poderia ser desenvolvido nos
territórios das comunidades; nesse sentido, sua realização parece ter cumprido o proposto.
As comunidades se dispuseram a fazer as reflexões propostas durante as atividades e tais
reflexões desencadearam determinadas respostas e iniciativas nos grupos. No caso de Sapatu,
destaca-se a expressiva resistência que, parte do grupo que compôs as oficinas, manifestou em
relação à estruturação do turismo na comunidade. A resistência, representada pela falta de
consenso comunitário para a construção de um projeto, remete à necessidade que o grupo, como
parte da comunidade, teve em discutir melhor a gestão do território.
Segundo o presidente da associação de Sapatu, Sr. Josias Moreira, o turismo a ser
desenvolvido na comunidade, de acordo com os atrativos que possuem, seria o turismo ecológico.
Ele destaca a presença de cavernas e cachoeiras em território comunitário e afirma que para
melhor aproveitamento desses atrativos, é necessário investir em infra-estrutura. Fala ainda que o
uso desses atrativos não gera benefícios diretos à comunidade, posto que são administrados de
forma particular, mas deverão gerar a partir da titulação das terras. Esse é o caso do principal
atrativo localizado no bairro, a Queda do Meu Deus.
A Queda está sob os cuidados de um morador associado, que recebe um valor
determinado pela entrada de visitantes. Para a visitação da Queda é necessário que um monitor
ambiental acompanhe o percurso. O grupo, durante as oficinas, teve a possibilidade de construir
um projeto para o aproveitamento da área da Queda, no entanto, o grupo demonstrou maior
interesse pela viabilização de um projeto de viveiro de mudas medicinais. Ao final, a falta de
consenso entre o grupo não permitiu que nenhuma iniciativa se materializasse.
A comunidade de Sapatu não apresentou um histórico negativo em relação ao turismo,
entretanto, fez repetidas ressalvas à instalação da atividade, especialmente considerando-se a
construção de infra-estrutura turística. Essa discussão diz respeito fundamentalmente ao uso que a
comunidade concebe para seu território. A despeito de o turismo ser considerado como atividade
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potencial para o desenvolvimento da comunidade, seus representantes, pela falta de consenso,
demonstraram que a atividade não é uma prioridade comunitária. Por outro lado, ao passo que a
falta de consenso se afirmava como decisão comunitária, sobressaíam iniciativas paralelas, de
caráter individual, como no caso do uso da Queda do Meu Deus.
As iniciativas de construção de obras e equipamentos turísticos representaram fator de
insegurança para a comunidade devido ao fato dela não ser ainda titulada. Dessa forma, até que
se titulem as terras reconhecidas, atribuindo à comunidade o direito de uso e gestão sobre o
território, os moradores demonstraram respeitar as condições e os limites de uso praticados uns
pelos outros.
Alguns moradores, por estabelecerem uma relação específica com o turismo, como no
caso dos monitores ambientais, apoiaram o desenvolvimento turístico da comunidade, contudo,
mesmo para esses moradores, o turismo ainda representa atividade complementar de geração de
renda, paralela às atividades de agricultura, subsistência ou comércio. O presidente da associação
atesta, por sua vez, que o turismo se constitui em alternativa para a comunidade frente às
imposições da legislação ambiental, ao substituir as práticas de produção de roças comunitárias
por exemplo.
Entretanto, as formulações do grupo sinalizaram justamente para a manutenção de
práticas através das quais a comunidade define sua cultura, inclusive em relação à cultura do
turista, visto como alguém muito diferente dos moradores. As comunidades desenvolveram
constantes formulações a respeito do relacionamento com os turistas, ressaltando as diferenças
entre o comportamento e as práticas sociais de ambos. Essa diferença representava, a princípio,
possibilidades de conflitos sociais que a comunidade trabalhou formas de evitar.
A defesa da maioria do grupo por uma proposta de viveiro de ervas medicinais, mesmo
não representando nenhum avanço do ponto de vista turístico, é expressiva sobre as escolhas que
o grupo, enquanto representantes da comunidade, definiu para o aproveitamento do território. A
construção de um viveiro implicaria na possibilidade de geração de renda, objetivo primordial do
turismo, porém baseada em conhecimentos, recursos e capacidades que a comunidade já dispõe e
sem as possíveis intervenções, advindas da atividade turística.
A representatividade comunitária, auferida nas oficinas, pela participação e forma de
intervenção dos moradores, foi notoriamente restrita ao considerarmos toda a população do
bairro. Contudo, simbolizou a dinâmica de articulação política da própria comunidade, contexto
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em que as responsabilidades pela gestão das ações sobre o território são também assumidas por
um grupo restrito dentro da associação de moradores. Além disso, a composição do grupo
garantiu certa heterogeneidade de opiniões.
Todavia, mesmo demonstrando receio e insegurança quanto à estruturação da atividade
turística, o grupo não manifestou discordâncias radicais sobre essa perspectiva. A comunidade,
com cerca de 10 monitores ambientais formados, está envolvida com o turismo, dependente
principalmente, do fluxo dirigido a Caverna do Diabo. Outra forma com que a comunidade se
aproxima do turismo é através da venda de produtos comunitários como o mel e o artesanato.
Ao que parece, a possibilidade de desenvolvimento turístico da comunidade de Sapatu,
incluindo a estruturação dos próprios atrativos, está condicionada a um processo de
amadurecimento político da própria comunidade em relação à gestão do território. Esse processo
avança à medida que sucessivas propostas de intervenção territorial, tais como o turismo, são
apresentadas às comunidades como possibilidades a serem discutidas e ou como circunstâncias a
serem trabalhadas.
A comunidade de André Lopes, vizinha à comunidade de Sapatu, apresentou reações
diferenciadas em relação à proposta de desenvolvimento comunitário do turismo, a despeito de
ambas estarem sujeitas a um mesmo contexto sócio-espacial. André Lopes destacou o início de
seu envolvimento com o turismo através das iniciativas de visitação à Caverna do Diabo
empreendidas pela administração do PEJ na década de 1970.
Esse envolvimento inicial foi expressivo para a comunidade, diante dos reflexos causados
à dinâmica comunitária pela alteração na forma de conceber o aproveitamento de um recurso de
uso comunitário. Além da alteração que implicou no rearranjo cultural e espacial de práticas
comunitárias, a comunidade se sentiu depositária dos efeitos gerados por uma atividade sobre a
qual não exercia qualquer influência ou controle.
A Caverna do Diabo é o principal atrativo turístico do município de Eldorado. Para se
chegar à caverna, os visitantes têm de passar, necessariamente, pela comunidade de André Lopes,
bairro que mantém maior proximidade física com o atrativo. A caverna inclusive localiza-se em
território reconhecido como pertencente à comunidade, contudo, por se tratar de um patrimônio
público da União, sua gestão e manejo são feitos pelo Estado, em âmbito estadual e federal.
Dessa forma, a comunidade não considerou o turismo como potencial a ser desenvolvido,
mas como atividade já presente no território. Suas estratégias de atuação frente a essa situação
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146
consistiram em trabalhar formas de regulação sobre a atividade, controlando seus impactos
negativos e potencializando seus efeitos positivos como a geração de renda.
Nesse sentido, durante as oficinas, o grupo trabalhou em duas frentes, considerando-se o
planejamento do turismo para a comunidade e para a Caverna do Diabo. Essa perspectiva encerra
a noção de que o turismo de visitação da caverna, como já experimentado, repercute na
organização territorial das práticas comunitárias. As formulações desenvolvidas para o
planejamento do turismo na comunidade caracterizaram-se pelas formas de controle dos impactos
sócio-culturais decorrentes da presença dos turistas na comunidade. O planejamento do turismo
na caverna representou por sua vez, a possibilidade do exercício de um direito, relativo à
participação na gestão de um recurso que compõe historicamente o território comunitário.
As estratégias, contudo, foram simples, não se basearam diretamente na construção de
obras e equipamentos turísticos, mas em processos de capacitação para a prestação de serviços e
de controle sobre o uso e a disposição dos recursos comunitários, naturais e sociais, para
finalidade turística. O grupo concebeu o turismo comunitário como prática educativa, voltada à
difusão da cultura quilombola e dessa forma, privilegiou ações que não alterassem as formas de
uso territorial já estabelecidas pela comunidade.
O projeto de viveiro de juçara simbolizou essa idéia de forma especial. A concepção do
projeto buscou garantir, sob normas legais, a prática de uma atividade comunitária que se tornou
proibida pela legislação ambiental. O extrativismo do palmito, mesmo ilegal, representa
importante fonte de renda para famílias da comunidade, nesse caso, o projeto consiste em
alternativa para a manutenção da atividade dentro de parâmetros ambientalmente permitidos.
Além disso, como o projeto foi construído em um espaço proposto para se pensar o
desenvolvimento turístico da comunidade, o grupo incorporou a realização de visitas com grupos
de escolas ao viveiro, como atividade turística associada à educação ambiental.
O grupo demonstrou coesão nas suas decisões, inclusive quanto à definição do projeto.
Pela finalidade do projeto, percebe-se que entre o grupo de trabalho, a noção comunitária estava
fortalecida, o que influenciou diretamente a construção do projeto, bem como os demais
resultados produzidos durante as oficinas. Essa noção garante em alguma medida a
representatividade comunitária, mesmo que as atribuições e responsabilidades em relação à
associação de moradores fossem restritas a determinados moradores de André Lopes.
O Mosaico de Unidades de Conservação do Jacupiranga, instituído via publicação de lei,
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147
apresenta níveis de importância diferenciados para os diferentes sujeitos que estão envolvidos
com o uso dos recursos que compõem as unidades de conservação. A proposta do Estado, com a
criação do mosaico, é tentar solucionar os conflitos gerados pela criação do antigo PEJ em áreas
habitadas por comunidades tradicionais. Além disso, o fato de se redimensionar a área ocupada
pelo extinto parque, dividindo-a em unidades de conservação menores, deve favorecer o controle
e a fiscalização ambiental sobre áreas que freqüentemente sofrem processos de invasão.
Em conversa no dia 09/04/2006 com o Sr. Rodrigo Aguiar, diretor do Departamento de
Meio Ambiente de Eldorado, o projeto era considerado interessante, visto que o novo Parque
Estadual Caverna do Diabo se localiza quase integralmente nas imediações do município. Com
esse nome, o parque se consolida como referência para a visitação turística, por conta do
conhecimento já existente sobre a caverna, o que estimularia o desenvolvimento da política
municipal de turismo. Além disso, a gestão das áreas seria facilitada pela proximidade da
administração do parque com o município e as comunidades, co-gestoras das áreas.
O presidente da associação de Sapatu, na época da realização das oficinas, considerava
interessante a aprovação de um projeto que pudesse resolver os conflitos sobre o uso das áreas,
especialmente em relação à Queda do Meu Deus e da Caverna do Diabo. Todavia, manifestava
dúvidas sobre os termos da gestão em parceria proposta pelo Estado; dizia que até que essas
condições estivessem claras, não era possível emitir uma opinião favorável ou não ao projeto.
Durante o mesmo período, o representante da comunidade de André Lopes que fazia parte
do Conselho Gestor do antigo PEJ, Sr. André Luiz P. de Moraes, relatou como a participação das
comunidades auxiliava o processo de gestão das áreas, considerando os diversos usos que lhe são
destinados. Nesse caso, ele apresentava o argumento das práticas comunitárias concebidas sob a
ótica conservacionista como um modelo diferenciado de apropriação territorial, que deveria ser
tratado dentro de uma perspectiva também diferenciada pela legislação ambiental e pelos órgãos
responsáveis por seu cumprimento.
O diálogo em torno dessas questões que se referem às formas práticas como as
comunidades exercem sua cultura, tais como a roça ou a extração de espécies para alimentação e
construção de moradias, é fundamental para garantir seu direito de uso e acesso ao território. A
negociação com base no reconhecimento das ações e intenções dos diversos sujeitos que atuam
sobre um mesmo espaço, parece uma alternativa interessante para que as estratégias adotadas
permitam a coexistência de racionalidades e culturas diferentes.
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A luta pelo reconhecimento do território representa para as comunidades, a esperança e o
direito de manifestarem sua cultura livremente, seja simbólica e materialmente. Em um processo
de intervenção histórica, as comunidades resistem, acolhem e se adaptam a essas intervenções e
com o direito que lhes foi outorgado, atualmente possuem maior poder para atuar sobre elas.
As comunidades de André Lopes e Sapatu estão inseridas no mesmo contexto de
intervenção territorial gerada pela construção da SP-165, pela criação do PEJ e pelas
conseqüentes normatizações trazidas pela legislação ambiental, onde o turismo surge como
alternativa para o uso e aproveitamento territorial. Nota-se que da condição de populações que
historicamente resistiram a processos de intervenção sócio-espacial, sem que sua participação
fosse considerada como critério para a definição do uso e da gestão territorial, as comunidades
vêm agora, por meio do reconhecimento de um direito cultural, afirmando um posicionamento
político no processo de construção dos territórios que ocupam.
O trabalho demonstra que a tentativa de integrar a institucionalização de políticas
fundiárias e ambientais a projetos de desenvolvimento territorial passa muitas vezes ao largo da
dinâmica de produção social que populações locais já vinham consolidando no território. A falta
de articulação e diálogo na sobreposição dessas políticas tem gerado senão conflitos, processos
morosos de resolução e concessão de direitos civis adquiridos que não incorporam contextos
sócio-culturais já instituídos espacialmente. No caso de populações quilombolas, o caráter
cultural se torna um recurso de representação política, usado como canal de afirmação de outros
modelos que não aqueles sugeridos ou propostos como normas de uso territorial. Já no caso do
turismo, esse fato foi especialmente constatado, dada a insegurança e a resistência das
comunidades envolvidas no trabalho em relação a própria atividade.
Enquanto não obtém a titulação em seu favor, as comunidades negociam formas de
intervenção que são pensadas para o uso de seus territórios. No espaço de reflexão aberto pela
realização das oficinas, as comunidades notadamente conduziram um processo de visualização do
próprio território, indo além do objetivo aparentemente proposto, qual seja, o de realizar o
planejamento do turismo. Elas trabalharam norteando-se fundamentalmente pela dinâmica
comunitária, determinando prioridades e escolhas concretas para a conformação do território.
Essa dinâmica, composta por idéias que tanto divergem quanto se aproximam, define a própria
política comunitária; a falta de ação é sintomática de um posicionamento político onde se negam
propostas em detrimento da propagação de um modelo já estabelecido.
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149
Os resultados das oficinas são muito menos expressivos quanto à possibilidade de
desenvolvimento do turismo, do que quanto à possibilidade de se reconhecer no planejamento
territorial, uma proposta de desenvolvimento comunitário, apoiado em bases culturais
historicamente construídas. Nesse sentido, o planejamento identificado como recurso para a
projeção de uma determinada concepção sobre o território, constitui-se num instrumento de
reflexão e intervenção para a materialização plena ou a legitimação de uma cultura específica.
É também em torno dessa possibilidade que residem as condições de sustentabilidade do
processo de produção territorial. Essas condições estão diretamente vinculadas à manutenção da
própria população no território, considerando-se a manifestação de suas práticas sócio-culturais
como recursos para a subsistência e a reprodução das comunidades. Orientada inicialmente pela
perspectiva comunitária, a noção de sustentabilidade se expande ao relacionar diferentes
sujeitos na condução do processo de produção territorial. As respectivas intenções, muitas vezes
com a capacidade política que manifestam, devem estar integradas à dimensão comunitária, não
só pelo reconhecimento do direito civil, mas fundamentalmente pelo reconhecimento civil do
direito que essas populações possuem sobre a gestão do território que habitam historicamente.
O planejamento territorial comunitário dá voz a esse direito, posto que instrumentaliza
as intenções comunitárias para a negociação sobre o futuro do território e especialmente sobre a
vida no território. Um instrumento que pode ser usado para institucionalizar a representação
comunitária, por vezes negligenciada justamente pela falta de um instrumental técnico.
A trajetória de desenvolvimento da região, em especial a referente ao contexto das
comunidades de André Lopes e Sapatu demonstra que tal negligência vigorou na instalação de
planos e políticas públicas dirigidas aos territórios atualmente reconhecidos como quilombolas.
Com a perspectiva de alterar esse quadro de relações institucionais, as comunidades podem
lançar mão do recurso do planejamento comunitário para manifestar suas propostas no processo
de negociação, com demais sujeitos, sobre o uso e a apropriação do território.
Tal planejamento por sua vez, conforme se observou através da experiência das oficinas,
é depositário de um sentido de mundo, de conhecimentos e práticas construídos historicamente
e que caracterizam uma forma de expressão cultural contemporânea. Nesse caso, o
planejamento territorial, como ferramenta utilizada pelas comunidades, demonstra a
possibilidade de fusão da técnica com o sentido para a manifestação e propagação de um
modelo de sociedade.
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