5/16/2018 NiloBatista-IntroduoCrticaaoDireitoPenalBrasileiro-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/nilo-batista-introducao-critica-ao-direito-penal-brasileiro-55ab580be15f7 1/69 Introduciio Crltica ao Direito l ei t or a s c ha ve s nec cssa ri as para . urn direito penal corn enfase . fom ec endo a Nilo Batista ,..", INTRODU(;AO ~ CRITICAAO DIREITO PENAL BRASILEIRO .. . ., 341.5 833312007 . . ... ntrodll1l8ocrltlc8.8odlraltci p en81 br8slle!li . . NUo .. .......... • ..... •... 1111111111111111111Ililii
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Nilo Batista - Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro
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5/16/2018 Nilo Batista - Introdu o Cr tica ao Direito Penal Brasileiro - slidepdf.com
a matriz da realidade, a historia do direito seria autonoma e
destacada com respeito ao contexto hister ico em que tal direito
fora produzido, passando a compor urn conjunto de nocoes
universal mente validas,
Sem pretender resgatar a surrada imagem da "base e
superestrutura", desacreditada pela voz autorizada de
Poulantzas", e decisivo advertir-se para a "essencia
economica" que subjaz as definicoes jurfdicas abstratas",
coinpreendendo 0 verdadeiro processo social de criacao do
direito.
Urna passagem de Tobias Barreto, escrita ha mais de urn
seculo , auxiliara nessa cornpreensao: "nao existe urn direi to
natural, mas ha uma lei natural do direito " g. Acrescentava
Tobias Barreto que, da mesma forma, nao existem linguagem,
industria ou arte naturais, embora exista aquilo que chama de
lei natural da linguagem, da industria e da arte: 0 homem nao
fala "lingua alguma, nao exerce industria nem cultiva arte de
qualquer especie que a natureza Ihe houvesse ensinado; tudo e
produto dele mesmo, do seu trabalho, da sua atividade"9. Aoconceber 0 direito como algo nao revelado ao homem (a
exemplo de uma nocao religiosa) nem descoberto por sua
razao (a exemplo de uma regra de logica formal), mas sim
produzido pelo grupamento humano e pelas condicoes concre-
tas em que esse grupamento se estrutura e se reproduz; ao
ridicularizar a concepcao do direito como "uma lei suprema,
preexistente a humanidade e ao planeta que ela habita", To-
tJ Poulantzas, Nicos, 0 estado, opoder e osacial ismo; t ra d. R . Lima , R io , 1 980 , cd,
Graal , p. 19.
7 Losano, op. ci t., p. 17. As r el acoes econcmicas, por seu tumo, nao se constituern
estru tu ra lmente apenas como relacoes soc ia ls , mas tarnbern como relacoes rna rca-
damen te pol ft ic as e ju ridi c as : d. Boa ventura d e Sou za Santos , P ara uma so ciolo-
g ia da d is tincao estado/sociedade c iv il , inDesordem eprocesso , P. A leg re , 1 986,
p.73.
8 Int roduca o ao e studo do di re it o, i n Estudos de direito; Rio , 1892, ed. Laernrnert,
p.36.
9 Ibidem.
18
bias Barreto se antecipava extraordinariamente as concepcoes
juridicas correntes no Brasil de sua ~pocaIO,
o direito penal vern ao mundo (ou seja , e legislado) para
cumprir funcdes concretas dentro de e para uma sociedade que
concretamente se organizou de determinada maneira.
o estudo aprofundado das funcoes que 0 direito cumpre
dentro de uma sociedade pertence a sociologia juridica, mas 0
jurista iniciante deve ser advertido da importancia de tal es-
tudo para a cornpreensao do proprio direito ,
Quem quiser compreender, por exemplo, 0direito assirio ,
o direito romano, ou 0 direito brasileiro do seculo XIX, pro-
cure saber como assirios, rornanos e brasileiros do seculo XIX
viviam, como se dividiam e se organizavam para a producao e
distribuicao de bens e mercadorias; no marco da protecao e da
continuidade dessa engrenagem economica, dessa "Ordem
Politica e Social" (nao por acaso, designacao dos departamen-
tos de policia polftica entre nos - DOPS) estara a contribui-
c;:aodo respectivo direi to . Mesmo os penalis tas chamados de
"classicos " , Hio proximos de urn processo historico no qualfoi oportuno extrair da raziio contei idos juridicos "natu-
rais ' II, percebiam as vezes esse carater "pratico". Carrara,
desenvolvendo os elementos de sua famosa definicao de cri-
ao deter-se no "dano polftico", assinalava que 0direito
(em sentido subjetivo) e atr ibuido ao estado "como meio
mera defesa da ordem externa, nao para 0 fim de aperfei-
cit., p. 39. Hermes Lima percebeu que a posicno de Tobias Barreto
"signlflcava repelir a crenca numa essencia i de al d e justica, que moveria as
mA"jU1lun;u., e substitut-la pela concepcao defurores social s e culturais que,
esfera da hurnana a tividade , apa reclam e se renovavarn" (Obros completas deTobias Barreto, Introducao Geral, S. Paulo, 1963, ed. INL, v. I, p. 160),
JUSna~ural:is[Jlofoi 11 teo ria jurid ic a da burgues ia revoluc lona ria, que procurava
:c :c :c c "_c .~_ ' os privilegios e distincoes do mundo (e . portanto, do direito) medieval,
como inserir 0monarca den tro da esfera de novas relacoes jurid icus , a traves
p rinc [p io s " rm tu ra ls " d a igu alda de forma l e d a un iv er sal ld ad e dod ir ei to , C f.
c c : i : : c c : c c c c . : : . · . . ' . : - : - : .- - . c ~ , La re if ic az io ne n el la sc ie nza g iu ridi ca , t ra d, R . Gua st in i, i nMarxismo e
del diritta, Bolonha, 1980, ed, II Mulino, p. 90. Cf. tambem Paulo
Bonavides, Do estado l iberal 00 estado social, Ri o, 1980, ed, Forense, p, 4.
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coamento interno' '12. E a esse vies que se reporta a observa-
c ; a o , recorrente em trabalhos introdut6rios, da caracterfstica
finalistica do direito penal. a direito penal existe para cumprir
finalidades, para que alga se realizec-tiiss para a simples
celebracao de valores eternos ou glorificacao de paradigmas .
morais.
Resulta claro que conhecer essas finalidades e impartantepara conhecer 0direito penal. Quaisquer que sejam tais finali-
dades - inclusive a de evitar que "prorrompa a guerra de
todos contra todos", como dizia von Liszt" -, constituem
elas obviamente materia que nao pode ser estranha as preocu-
pacoes do jurista. Atribuindo-se 11figura de von Liszt conota-
C;6esque certamente nao possuia, 0jurista nao pode deixar de
farmular algumas indagacoes, a saber: existira de fato uma
guerra de todos contra todos, ou, pelo contrario, uma guerra
de alguns contra outros'l Que guerra e essa? Por que alguns
desejam guerrear contra outros? Se 0 direito nao cai do ceu,
mas e elaborado por homens, qual a posicao dos homens que 0
editam nessa guerra? S6 0direito penal evita que se prorrompatal guerra? Nao prorrornpera ela apesar do direito penal?
Evitada a guerra, quem ganha e quem perde com essa "paz"
que 0 direito penal assegurou? Essas e outras perguntas po-
derao aproximar-nos, ate sem que 0 percebamos, de certas
chaves centrais no afazer juridico: jusnaturalisrno e positi-
vismo jurfdico, interpretacao da lei, fins da pena, politic a
criminal, etc.
Afirmamos, portanto, que 0 direito penal e disposto pelo
estado para a concreta realizacao de fins; toca-Ihe, portanto,
12 Programma, § 13.
13 Tratado de direi to penal allemiio , tr aducao 1 .Hyg ino, Rio , 1899 , ed, B ri gu iet , v .
I,p. 95. A expr ess ao "guer ra de todos con tr a todos" r emont a a Hobbes; Mont es -
qui eu f al ar ia de "e st ado de gue rra ", eRouss eau do' ' dir ci todo mnis fo rte ". Como
registrudo por Marx, no seculo XVIII a fic!;ao segundo a qual 0 "estado de
natureza e 0 verdadei ro e stado du nat ureza hurnana" al cancou 0 apogeu ( II
manifesto filasofico della scuola storica del dirit to, in Marx/Engels, Opere: Roma,
1980 , ed. Riunit i, v . I, p . 206) .
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uma missao politica, que os autores costumam identificar, de
modo arnplo , na garantia das "condic;6es de vida da
soc. iedade", como Mestieri'" , ou na "finalidade de combater 0
crime" , como Damasio", ou na "preservacao dos interesses do
indivfduo ou do cOfPo social", como Heleno Fragoso". Tais
formulas nao devem ser aceitas com resignacao pelo iniciante,
o direito penal nazista garantia as "condicoes de vida da
sociedade" alerna subjugada pelo estado nazista, ou era apedra de toque do terrorismo desse mesmo estado, garantindo
em verdade as condicces de morte da sociedade? Sem adentrar
a fascinante questao de que 0 estado primeiro inventa para
depois combater 0 crime, esse combate nao sera algo misera-
velmente reduzido ao crime acontecido e registrado?", au
seja: 0 comb ate que 0 direito penal pode oferecer ao crime
praticamente se reduz - desde que a pesquisa empirica de-
monstrou 0 precario desempenho do chamado "efeito
intimidador" da pena, sob cuja egide sistemas inteiros foram
construfdos - ao crime acontecido (sendo minima sua atua-
gao preventivai e registrado (a chamada criminalidadeaparente, que, como tambern a pesquisa empiric a revelou, emuito inferior- em alguns casos, escandalosamente inferior:
pense-se par exemplo no abortamento - a criminalidade real
sendo a diferenca denominada cifra oculta). Por ultimo, que
significarao "interesses do corpo social" numa sociedade
dividida em classes, na qual os interesses de uma classe sao
estrutural e logicamente antagonicos aos da outra?
A funcao do dire ito de estruturar e garantir determinada
ordem econ6mica e social, a qual estamos nos referindo, e
habitualmente chamada de funcao "conservadora" ou de
"controle social". a controle social, como assinala Lola
14 Teoria elementar do direi to criminal, Rio , 1971 , p . 3.
150p. cit., p. 3.
16 Liciies de direi to penal , P.G., Rio, 1985, ed. Forense, p. 2.
17 Welzel hnvia percebido que, quando 0direi to penal "entra cfetivamente em a~ao,
jJi e, em geral, multo tarde" (Derecho penal aleman, trad. Bustos Ramirez e Y.Perez,
Santiago, 1970, p. 13) .
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Aniyar de Castro, "nao passa da predisposicao de taticas,
estrategias e forcas para a construcao da hegemonia, ou seja,
para a busca da legitirnacao ou para assegurar 0consenso; em
sua falta, para a submissao forcada daqueles que nao se inte-
gram a ideologia dominante" 18. 3 . facil perceber 0 importante
papel que a direito penal desempenha no controle social. Sob
certas condicoes, pode 0 direito desempenhar outras funcoes
(como, por exempJo, a "educativa" e mesmo a "transforma-dora" - esta, oposta a "conservadora"). A preponderancia
da funcao de controle social e, contudo, inquestionavel,
Determinadas, assim, pela necessidade do poder que con-
fere garantia e continuidade as relacoes materiais de producao
prevalecentes numa dada sociedade, estariam as normas juri-
dieo-penais alijadas de qualquer influencia ativa sobre essa
mesma sociedade? A resposta de Anfbal Bruno merece
transcricao: "sabemos como as sociedades humanas se encon-
tram ligadas ao Direito, fazendo-o nascer de suas necessidades
fundamentais e, em seguida, deixando-se disciplinar par ele,
dele recebendo a estabilidade e a propria possibilidade de
sobrevivencia"19. Ou seja, embora 0 direito penal seja mo-
delado pela soeiedade - e, em ultima instancia, hao de pre-
valecer sempre as variaveis economicas que determinam suas
linhas fundamentais - ele tambem interage com essa mesma
sociedade. Como ensina Miranda Rosa, "se 0direito e condi-
cionado pelas realidades do meio em que se manifesta, entre-
tanto, age tambern como elemento condicionante' '20
Ha marc ante congruencia entre os fins do estado e os fins
do direito penal, de tal sorte que 0 conhecimento dos primei-
18 Criminologla de la iiberacion, Maracaibo, 1987, ed. Un: del ZUIi.a"p, 119.Informucao sobre 0desenvolvimento da ideia decontrole social e~ ZahideMacha-
do Neto Direito penal e e.rtruturasocial, S. Paulo, 1977, ed. Saraiva, p. 4 58. PIU'a
Juarez Tavares , a finalidade normative-material da cria~iiojurfdica de delitos estd OIl
"pro~iio aos interesses dominantes na estrutura social esttatificoda" (Teorias do
delito, S. Paulo, 1980, ed. RT, p. 4).
19 Direito penal, P.G . • Rio, 1959. ed. Forense, v. I.t. I?, p. 11.
20 Soclologia do direita, Rio, 1970, ed, Zahar , p. 57.
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ros, nao atraves de formulas vagas e ilusorias, como soi f~-
gurar nos livros j~ridi~o~~I: mas atra~es .doexame. d~s~as rears
e concretas funcoes historicas, econormcas e SOCIalS,e funda-
mental para a compreensao dos iiltimos.
Conhecer as finalidades do direito penal, que e conhecer os
objetivos da criminalizacao de determinadas condutas pratica-
das por determinadas pessoas, e os objetivos das penas e
outras medidas juridicas de reacao ao crime, nfio e tarefa queultrapasse a area do jurista, como as vezes se insinua. Com
toda razfio, assinala Cirino dos Santos que "a definicao dos
objetivos do Direito Penal permite clarificar 0 seu significado
polit ico, como tecnica de controle so~iaI"lZ. Alias, a in?aga-
~ao sobre fins, que comparece em van os momentos particula-
res (na interpretacao da lei, na teoria do bern juridico , no
debate sobre a pena, etc), nao poderia deixar de dirigir-se ao
direito penal como urn todo.
j.: ,
iIri
21 "Los f ines del Estado son dif tcilcs de deterrninar , de modo absoluto y omni-
comprensivo" - Sunguineui, Curso de derecho politico. B. Aires, 1986. p. 297.
22 Diretto penal, Rio, 1985, p. 23.
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brasileiro", Ievando-o a urn desprezo olimpico pela realidade,
a urn intencionaI isolarnento". Na verdade, ser e dever-ser
relacionarn-se como fato e valor, nurna relacao de totalidade
.~
5 Op. clt., p. 43.
6 Nao por aca so, BasiI eu Gar cia cara cte ri za a s d is ci pl inas cr imi nol 6gi ca s como
aque la s "que se p reocupam com a deli nquenc la comoJato natural. procurando
apontnr-lhe as causus, com 0 emprego do metoda posith'o, de observacao e
cxpertmcntacao" -irwilllit;oes dedireito penal, S. Paulo, s/d, v. 1, t. I, p. 25.
Bergulli menciona 0 " se rv ice que 0 positivisrno criminologico; cspeciulmentc
aquele de cunho lornbrosiano, preston a aflrmacfio do sistema social implantado
pela burguesia t riunfante no processo de uni flcaci lo da l ta lfa" , ucrescentando que
ta l s erv ic e teve " el ti to so e r upi do t ru st udo pa ra a Ameri ca do Sul " (cf, Pavarini,
Massimo, Control y dominacion, trad. I.Mufiagorri, Mexico, 1983, epi logo, p,
200).7 Las necesi dades del s aber pena l In tinoameric ano, i n r ev . IUSIO, Bogota, 1987,
n? 9, p. 135.B Veja-sc, por exernplo, 0 Hel eno Fragoso de Conduta punivel (S. Paulo, 1961).
9 Rel ernbre -s e Nel son Hungri a concl ar nando pro fes so res e es tudant es de d ir e i to ,
ndvognd05 e mugi st rados , pa ra uma "dou tri na de Monroe": "0di re it o penal e
para cs juristas, exclusivarnente para os juristas, A qualquer lndehita lntromlssao
em nosso Lebensraum, f acamos re ssnar , em toque de r ebate , nos sos tambore s e
clarins!' (Novas questiies jurtdico-penais, Rio, 1945, p. 15) .
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dialetica, como registra Poulantzas III, e par essa perspectiva 0
saber crimino16gico e 0 saber juridico-penal se comunicam
permanentemente, . .
Releia-se 0 conceito de criminologia de Lola Aniyar de
Castro, com 0qual foi aberto este paragrafo, cornparando-o ao
conceito absolutamente predominante nos autores
brasileirosl1• Devemos fugir a tentacao de supor que a di-
ferenca esteja apenas na amplitude. Para a professora vene-
zuelana, a criminologia englobaria os seguintes aspectos: 1. a
sociologia do direito penal e do comportamento desviante; 2. a
etiologia do comportamento delitivo e do comportamento
desviante; 3. a reacao social, compreendendo a psicologia
social correspondente, as penas e outras medidas, bern como a
analise das instituicoes que as executarn". Para a criminologia
positivista,o alcance se limitaria a metade do segundo aspecto
(etiologia do cornportamento delitivo). Nao e essa, contudo, adiferenca importante.
Quando a criminologia positivista nao questiona a constru-
c;:aopolitica do direito penal (como, por que e para que seameacam penalmente determinadas condutas, e nao outras,
que atingem determinados interesses, e nao outros , com a
resultado pratico , estatisticarnente dernonstravel , de se alcan-
c;:arsempre pessoas de determinada c1asse, e nfio de outra),
10 "A relaceo dos sistemas normativos da superestrutura, que pertencern ao de-
ver-ser social, com a base, comprcendendo a relu9iio de significante a significado,
ou de l inguagcm a reali dade , e determinante e s igni fi cativa enquanto relm; iio de
dever-ser e ser , de valor efato, cnncebidus esscs terrnos niioja em sua jrredutibili-
dade idealista essencial, mas sim em sua relacao de rotulidude dluletica" (EI
examen marxism del estudo y del derecho uctuales y l acuest ion de lualrernntlva , in
Marx - el derecho y el estado; t rad. J .R . Capel la . Barcelona, 1979, p. 81).
II 0Helene Fragoso du mutur idade , que ja huvia percebido "0completo frncasso"
dn criminologia pcsitivista (c)(pressfio empregada no prefdcio a traduciio braslleiruda Criminologic do reacao Jacial, de Lola Aniyur deCast ro. c it ., p .Xlll), adotou,
nas t il ti rnas cdicoes de suas Licoes, a scguinte def inicao: "a cienciu que estuda 0
crime como futo social, 0 deli nqi iente e a del inqucnc ia , be rn como , em gerul , 0
surgimento das normas de comportamcnto socia l e a condutu que as viola ou delas
se desvia e 0 prucesso de rencao social" (op. clt., p. 18).
12Op. cit ., p .52.
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Zaffaroni questiona a distint;i io entre criminolcgia e politica criminal, porquanto
"todo saber criminolugico esta previamente dclimitado por urna intencionaJidade
politica " (En busca de las penas perdidas , B. Aires, 1989, p. 177).
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a politic a criminal nada tern a ver com compromissos teoricos
de urn certo movimento, Iiderado por von Liszt no final do
seculo XIX, que chegou a ser chamado de "escola da polftica
criminal' '2.
Ocampo da politica criminal tern hoje uma amplitude
enorme. Nao cabe mais reduzi-Ia ao papel de "conselheira da
sancao penal", que selimitaria a indicar ao legislador onde equando criminalizar condutas'. Nern se pode aceitar a primitiva
formula lisztiana de sua relacao com a polftica social: esta se
ocuparia de suprimir au limitar as condicoes sociais do crime,
enquanto a polf t ica criminal so teria por objeto 0 delinqiiente
individual mente considerado', Em ambos os casos, estao sendo
pagas elevadas taxas a criminologia positivista: taxa polftica no
primeiro caso (a aceitacao legitimante da ordem legal nao per-
mite que a politica criminal visite 0outro lado, circunscrevendo-
a as funcoes de "conselheira da sancao penal"), taxa te6rica no
segundo caso (a segregacao arbitraria do individuo delinquente
das condicoes sociais do crime sugere 0 reconhecimento de
processos causais distintos - ainda que ao genero "fatorialista"
- de ordem social e individual, tendo como sequela que a
politica criminal tambern deve distinguir-se da polftica social). A
politica criminal sera, como diz Szabo, a prima pobre da politica
2 Sobr e as ca racte ri st lc as de sse s compromis sos teor icos: Bergal li, op . ci t., p . 90;
Fragoso, Lieoes, p. 48; A. Bruno, op. cit., p. II I.
3 Para A. Bruno , a pclltica criminal e "um conjunto de princfpios de orientaci io do
Estado na luta contra a criminalldude , atraves de rnedidas aplicavcis aos
criminosos" (op. cit ., p . 33) . Para Basileu Garcia, "u pnl it ica criminal exam ina 0
direl to em vigor . upreciando II sua idoneidade na protecfio social, contra os
criminosos e, em resul tado dessa cri ti ca , sugere as reformas necessnrias . Ver if l-cado se a legis la~i io vigente alcanca sua f inal idade, t ra ta de aperfeiconr a defesa
ju rid ico-pennl con tra a delinqii encia " ( op. ci t. , p . 37). Pa ra Mar c Ancel, "todo
mundo purece concordat com que u pol lt ic a cr imi nal t er n de i nfc io por obje to ,
indlscutivelmente , a repressao do crime. pelos meios e procedimcntos do direi to
penal (au, rnais arnplarnente, do sistema penal) em vigor" (Pour une etude
systemat ique des pr obl ernes de pol it ique cr ir rii nel le , in Archives de politique
criminelle, n~ 1, Paris, 1975, p. 16).
4 von Lis zt, Tratado, p. 112.
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social' , mas esta indissoluvelmente ligada a ela. Por isso mesmo,
muito mais do que a hist6rica tensao entre a politica criminal
(concebida como aquela "conselheira".que procura aprimorar a
funcianalidade repressiva do sistema penal) e 0 direito penal
(concebido pela perspectiva garantfstico-liberal), tao lapid~-
mente expressa par von Liszt ("0 direito penal e a barreira
infranqueavel da polit ica criminal"), os grandes debates se tra-yam entre finalidades politic as divers as que pretend ammodelar 0
instrumento jurfdico", au seja, entre polfticas criminais diversas.
E ilustrativo perceber a influencia do fracasso da pena priva-
tiva de liberdade ern concretas propostas de polftica criminal. Ha
urn seculo, von Liszt preconizava a suspensao condicional, subs-
titutivos de carater pedag6gico para criminosos jovens, e se
insurgia contra as pen as curtas, que "nao corrigem, nao
intimidam" e, "muitas vezes, encaminham definitivamente para
o crime 0 delinqiiente novel"7. A constatacao, pela pesquisa
empfrica nos ultimos cinqiienta anos, do fracasso da pena priva-
tiva da liberdade com respeito a seus objetivos proclamados,
levou a uma autentica inversiio de sinal: uma polftica criminal
que postula a permanente reducao do ambito de incidencia do
sistema penal. Assirn se entende Fragoso: "uma politica criminal
maderna orienta-se no sentido da descriminalizacao e da desjudi-
cializacao, ou seja, no sentido de contrair ao maximo 0 sistema
punitivo do Estado, dele retirando todas as condutas anti-sociais
que podem ser reprimidas e controladas sem 0 emprego de
sancces criminais"8, isto e, no sentido de uma "conselheira da
sancao nao-penal" .Baratta prop6e quatro indicacoes "estrategicas" para uma
polftica criminal das classes dorninadas", das quais apresentare-
, i
, ,
~, .i' ,II I
,I
,
I :,
II
:1 I .IIit ~
I :I:II
I I III II. ,
I'
5 "par ient e pobre " - Criminologiay poltt ica enma ter ia cr imi nal , trud. F. Blanco,
Mexico, 1980, p. 169.
6 Pulitano, op. cit., p. 9: "In tensione pastil in evidenza non e t an to fr a d ir it tn e
politica criminale, quanto fra finalita pelitiche diverse, tutte confiuenti a modellu-
re 10 s trumento giuridico" .
7 Tratado , p. 113 e 114.
8 Li'7oes, p. 17.
9 Op. cit., p. 213 55.
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mas a seguir urn resumo. Ern primeirodugar, numa sociedade de
classes a polftica criminal nao pode reduzir-se a uma "polftica
penal" , l imitada ao ambito da funcao punitiva do estado, nem a
uma "polftica de substitutivos penais ' , vagamente reformista e
humanitaria, mas deve estruturar-se como polftica de transformacao
social e institucional, para a construcao da igualdade, da democracia
e de modos de vida comunitaria e civil mais humanos. Emse-
gundo lugar, a partir da consideracao do direito penal como direitodesigual, deve-se empreender dois movimentos: 1~)insti tuir a
tutela penal em campos que afetem interesses essenciais para a
vida, a saiide e 0 bem-estar da comunidade (0 cliamado "uso
altemativo do direito"): criminalidade economica e financeira,
crimes contra a saude publica, 0meio ambiente, aseguran!ra do
trabalho, etc; 2~) contrair ao maximo a sistema punitivo, obser-
vando-se que muitos dos c6digos penais vigentes foram elabora-
dos sob 0 signa de uma concepcao autoritaria e etica do estado
(para 0 Brasil, basta ler a Exposicao de Motives do vigente
C6digo Penal), descriminalizando pura e simplesmente ou subs-
tituindo por formas de controle legal nao estigmatizantes
(sancoes administrativas au civis)". A esses objetivos correspon-
deria uma profunda transformacao no processo e na organizacao
judiciaria, bern como na instituicao policial". Em terceiro lugar,
10 Sobre descr iminal izaedo, cf. The decriminalization. Mil iio, 1975 (que contern as
atas do colcquio de Bellagio de 1973 sobre 0 tema; 0 relator lo Hulsman Ioi
t ruduzido e publicado na Revis ta de Direi to Penal (RDP) n~9-10, p. 7 55); Report
on decriminalization, Council of Europe, Estrasburgo, J 980; Per is Riera , J .M. , El
proceso despenaltzador, Valencia. 1983; Migue IReale Jr. , Descr iminal lzncao, in
Rev. do lns tl tuto dos Advogados Brasi le iros (lAB), ana VI I, n~ 29, p. 189 ss:
Ivette Senise Ferreira, Politlca criminal e descriminalizacfio. inRev. lAB , ano VII,
R~29, p. 19655; Nilo Batista, Algumas palavras sobre descriminalizacac, inRDP
n? 13, p . 28 55. Como acentuou F igueir edo Di as, " uma Pol ft ic a Crl rn inul que s e
queira valida para a presente e 0 f utu ro pr oximo e pa ra u rn Es tudo de D ire it omaterial, de cariz social e dcruocratico, deve exigir do direito penal que s ointervenha com os seus ins trumentos propr ios de atuacao ali onde se ver if iquern
lesoes insuportave is dRS condicoes comunitdr ias essenciai s de l ivre renlizacao e
desenvolvimento da personalidade de cada homem" (Os novos rumos da pol it ico
criminal e 0 direito penal porlUglles do futuro, Lisbon , 1983, p , 11).
11 A esse proposi to, merecern lei tura e ref lexao asrecomenducoes concretas formula-
das por Zaffaroni, em seu estudo sobre 0 que denominou , udequadnmente , de
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e tendo como prernissa 0 fracasso hist6r ico da prisao, em suas
funcoes de controlar a criminalidade e promover a reinsercao
social do condenado, bern como os verdadeiros fins que tern
exercido, pugnar pela aboli~o da pena privativa de l iberdade";
para aproximar-se desse objetivo, sugerem-se as seguintes
taticas: a) irnplantacao de "substitutivos penais"; b) ampliacao
de formas de suspensao condicional de execucao e livramento
condicional; c) introducao de formas de execucao em regime de
semiliberdade; d) reavaliacao do trabalho carcerario; e) abertura
da prisao para a sociedade, mediante a colaboracao de orgaos
locais. Por essa linha, a altemativa oferecida ao mito da reeduca-
~ao consistiria na criacao de condicoes que levassem 0 conde-
nado a compreender as contradicoes sociais que 0 conduziram a
uma reacao individual e egofstica (0 cometimento do crime),
que, desenvolvida nele a consciencia de c1asse, se transformaria
em participacao no movimento coletivo. Em quarto e ultimo
lugar, preocupado com os processos ideologicos e psicologicos
que se desenvolvem em tomo da opiniao publica, ao escopo de
legitirnacao do direito penal desigual (com referencia especialaos processos de inducao de alarma social, que seapresentam em
"campanhas de lei e ordem" manipuladas par forcas polit ic as ,
produzindo a falsa representacao de uma solidariedade social
geral contra um comum "inimigo interno' '), prop6e Baratta uma
"batalha cultural e ideol6gica em favor do desenvolvimento de
uma consciencia altemativa no campo das condutas desviantes e
da crirninalidade" , tentando-se inverter as "relacoes da hegemo-
nia cultural com urn trabalho de decidida cri tica ideologica, de
producao cientffica e de informacao" 13.
Urn pequeno, mas decisivo, capftulo dessa batalha pode ser
travado nos l ivros dedicados ao ensino do direito penal .
: '
, '
,
I'1 1; ,
"nova defesa individual" (Politico criminal latinoamericana, B. A ires, 1982 ,
pp. 28 II 30).
12 0 abolicion is rno penal , carac te rizado por Scheere r como uma • 'teoria sensibi liza -
dom", na acepcao que Scheff atr ibui u ao interacioni smo, ou sej a, como uma
" te or ia " que . di spondo d a ca pa cida de de s up erar de a lg uma forma as cl as si fi cu-
~6es, p ressupos tos e modelos tradicionais, n fio consegue , entre tanto, p roporc io -
nar, com seus pr6prios ins trumentos metodoldg icos e conce itua ls , Ll adequadu
v er if ica cao d as nov as ide ius produz id as (Sc he erer , S eb as ti an, L a a bo li cion d el
s is tema penal: una perspec tive en la c rlmino logln con temporanea , inRev. DerechoPenal y Crlminologia, v. VIII. n? 26. Bogota, 1985. p. 205), tern seu mais
mil itan te profe ta em Louk Hulsman , para quem 0 sistema de ren~iio social formal
penal e algo c omplet amen te iml ti l e p ro bl emat ic o em s i rnesmo, podendo , il
mlngua de qualquer funcao, ser deixndo de l ado (Sistema penal y seguridad
ciudadana: hacia una altemativa, tr ad , S . Pol it of f, Barce lo na , 1 984) . Pa ra
outros, como Nils Chris tie. so apes aueracoes estru tu ru is nas soc iedudes pos -in-
dus tr ia is , corn a reorgan lzacao dos processes de con trole soc ia l. s era possive l II
aboli;;:ao (Umils to pain, 0510. 1983).
13 Op. cit. , p. 219. Far to material sobre pol iti ca crimi nal pude ser encont rado na
Revue lnternationale de Droit Penal, n ?1 ,1978. c on te ndo a s a la s do c o loquio de
Madri sobre PoHtica Crimina l e Direi to Penal.
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quando se op6e a uma norma jurfdica ou indevidarnente pro-
duz efeitos que a ela se op6em. A oposicao 16gica entre a
conduta e a norma (cuja consideracao analitica da origem a urn
objeto de estudo chamado ilfcito) estipula uma relacao, de
carater deontico - denominada relacao de imputacao' -, que
traz como segundo termo a sanciio correspondente. Quando
esta sancao e uma pena, especie particularmente grave de
sancao", 0 ilicito e chamado crime.
1 C f. Ra ff o, 1.• Introduciio 00 conhecimento juridico, Rio, 1983, p. 16.
2 As sancoes jur fdicas tern geralmente caniter reintegrative (vi sando, real ou sirn-
bol icamente , a res tabelecer a s ituacao jur fdica anter ior ao i ll ci to) ou compensa·
Iorio (v is ando, na imposs ibi li dade da re int eg racao do s ta to quo ante , a urna
repnracao). A penn tern carater retributive: ela irnplica infligir ao responsnvel pelo
crime, sob a forma de perdu ou res tr ic iio de bens jur fdicos ou direi tos subjetivos.
u rn ma l que excede a s impl es pos sivel r ein tegracao ou a compensacao devi da s.
Sobre 0 lema, cf. Soler, Conceito e objeto do direito penal, in RD P 4130 S5;
Fragoso, Licoes, p. 292. Para Hart, 0 prime ir o e le rnent o da def in ic ao de pena
res ide na implicacao de "dor ou out ras consequencias normalmente consideradas
desagradaveis" (Punishment and responsabil it y ; Londre s, 1973, p. 4 ). Cf . ai nda
Ross, On guilt, responsability; and punishment, Londres, 1975, p. 36. DizJescheck que' 'negar 0carater de mal 11pena equivaleria a negaro proprio conceito
de penn" (Tratado de derecho penal, t rad. Puig-Conde , Barcelona, 1981, v . I. p.
91) . Diz nosso Anfbal Bruno: "e de sua essencia 0 carater aflitivo e retributivo"
(op. cit ., t. 3~, p. 23) . E impor tante ter presente que 0caniter retributive, ernbora
of ereca u rn cr it er io r cla ti vamente s eguro para d is tingu ir a pena dus demal s s an -
~oes, nem, par urn lado, esgora ou l imita a discussao sobre objet ivos e Juncoes da
pena, nem, por outr o, ci rcunsc reve- a com exc lus iv idade ao campo do di re ito
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Vernos, portanto, que 0elernentoque transforma 0ilicito
em crime e , a decisao politic a - 0 ato legislativo - que 0
vincula a umapena. Esse eo substrato das definicoes formais
de crime", e ele nos revela que a pena nao e simples
"consequencia juridica" do crime, mas sirn, antes disso, sua
propria condiciio de existencia juridica', Se nos dermos conta
de que, no momento da aplicacao da norma penal, atraves de
penal , Sancoes de natureza retribu tive existern no direi to privado , como a indign i-
dade par a a sucessiio do art. 1. 595 CC ("a indignidade consti tui pena civi l" -
Burros Monteiro, Curs o d e d ire it o ci vi l, S. Paulo, 1962, p. 63), no direito
p roc es sua l, como a mul tu pa ra quem indevidumente rec eb e c us tas do a r t. 30 CPC
(chamada de "penalidade" por Pontes de Miranda , Comenuirlos 00 cod igo de
processo c iv il , Rio , 1974,1. I, p. 434) au algumas dus sancoes do si stema de
responsab il idade das parte s por dana processua l (das qua tro cspec ies de sancoes
"de vari a nat ureza" apr eendidas por Barbosa Moreira, as tres prime iras tern
caniter retri butive, sendo a terceira ver dadei ra e propria penn - cf. Temas d e
direito processual, S. P aulo, 1977, p . 1 8 e 19 ), e n o di rei to admini st rat ive . como
as suncocs disciplinares que atingem 0 funcicndr]o publico fnltoso, ou as corninu-
~6es do Cdd igo Nac ion al de Trdns it o c on tr a 0motoris ta infra to r (hipo tcses que
pndem ser adequadamente chamadas, respect ivumente , de penas disciplinares epenas govemativasi. Fal a-se hoje num "direito admini str ati ve penal", que se
aproxima do di rei to penal exa tamente pelo usa de san~fies retribu tivas, e ao qua l,
par isso mesmo, devem aplicar-se as princ ip ios bds icos dodire ito penal (cf ' , Revue
Interna tionale de Dro it Penal , Toulouse, 1988, v . 59, n ?s 1 -2, p. 520) . Comple-
menta -se a d is tincao observando que a pcna, a le rn do curater retribu tive , e comi-nadu pela lei como pena criminal, ou seja, den tro doquadro const ituc iona l ou lega l
da s p enns admi ti das , subordinad a su a apl ica ca o as cond ico es c on st it uc ic nn is e
legais correspondentes , a primetra das quais e a jurisdicao penal. Ao
"proce dimento jur isd lcionnl " como di st in ti vo c omplemen ta r t ambem reco rre
Boscarelli (Compendia di diriuo penale, P.G. , Milii o, 1980. p. 2) . Veja-se 0
quinto e lemento da defin i!(i io de penn ofe recida por Hart (op . cit., p, 5). Fragoso
menciona 11 "conotacao processual" que asexpressoes crimen e delictum tiverarn
duran te certa fuse do direi to romano (Lir; :oes, ci t. , p . 25 ).
3 "Cr ime e todo nquele comportamento humano que 0ordenamento jurldico castiga
com uma penn' t' (J eschcck, op. c it ., p . 70); "crime e toda condutu que o legisludorsanciona com urna pena" (MunoZ Conde , Introduccion al derecho penal, Barcelo-
n a, 1 975, p. 28 ); " cr ime e toda a !(iioou omissao pro ib ida pela lei , sob ameaca de
penn" (Fragoso, Lir;oes, p. 1 47 ); e tc.
4 Iii 0 intuira Tobias Barreto: "0conce ito de penn nfio e um conce ito jurid ico, mas
urn conceito politico. 0 de fei to da s t eor ias co rr ent es em tal mater ia cons ist e
[ustament e no er rc de considerar a pena como uma consequencia de dir eit o,
log icamente fundada" (o()_ .ci t. , p . 177).
44
uma decisao judiciaria - que e tambem urn ato poli tico -, 0
crime se poe como condicao de existencia juridica da pena",
compreenderemos a relacao dialet ica que continuamente as-
socia edistingue esses conceitos opostos, que se fundamentam
e se negam reciprocamente.
Assim vistas as coisas, 0debate sobre a designacao direito
"penal" ou direito "criminal" poderia sugerir 0debate sobreo ovo ou a galinha, ndo fosse 0concurso de tres variaveis, que
exarninaremos a seguir.
A expressao "direito criminal" e mais antiga, e historica-mente se observa uma gradual prevalencia da expressao
"direito penal", que teria sido empregada pela prime ira vez,
segundo Mezger", por Regnerus Engelhard, em 1756, popula-
rizando-se, segundo Bustos, apes a promulgacao do codigo
penal frances de 18101•
A primeira variavel que se deve considerar e a influenciada opcao do legislador . Entre nos, no Imperio, a Constituicao
recornendou que se elaborasse urn c6digo criminal': no que foiobedecida com 0 Codigo Criminal de 1830. Ja 0 primeiro
c6digo da republica, de 1890, se chamou C6digo PenaL, ainda
que a Constituicao republicana de 1891 viesse a referir-se a
"direi to criminal"~. As demais const ituicoes adotaram a de-
signacao direi to penal"; e ocodigo de 1940 se chamou Codigo
5 Navarrete fala em "cnusa": "0 crime e a cau sa jur fd ic a d a p ena , e mai s ex at a-
mente 0 seu fundamento " (Dereclro penal, P .G ., Barce lon a. 1 984, p. 28).
6 Tr atado d e de re cho p enal , t rud . R . Munoz , Madr i, v . I, p. 27.
7 lntroducc ion a l derecho penal . Bogota, 1986, p. 3.
8 Consti tui !(i io de 1824, art. 169, inc. XVII I: "or ganizer- se-d quanto antes ur n
c6digo civil, e cr iminal, fundado nus solidus bases da Jusdea e Eqiiidnde".
9 No inciso 23 do arti go 34, que previa a comperencia do Congresso Nacional:
"legislar sobre 0dire i toc ivi l, comercial e criminal da Republica e 0processual da
justica federal".
10 1934-art. 5~, inc. XIX, al, a; 1937-ar t. 16 , i nc. XVI ; 1 946' :_ nr t. 5 ?, i nc . XV,
Ill. a; 1967 - art. 8~ , inc . XVI I, al , b (muntido na Ernenda n~I de 1969); 1988-
art. 22, inc . 1. Entre nos , foi - Roberto Lyra quem chamou a aten~ao para a
importllncia do tex to const ituc lonn l, num Iivro que , por influencia do pos it iv ismo
, ferriano, se chamava lntroduciio ao estudo do direito criminal, Rio , 1 946, p. 47 .
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Penal. Tal influencia e perceptive Iern Damasio", Mayrink da
Costa", Basileu Garcia", Mirabete" e Magalhaes Noronha".
A segunda variavel diz respeito a paradigmas doutrinarios
que impliquem nomear 0 direito penal des sa ou daquela ma-
neira. No processo historico de prevalencia da expressao direi-
to penal, Bustos vi! certa intencao de "acentuar 0 carater
sancionador deste direito como seu trace mais distintivo e
definit6rio"16. Partilha dessa linha, entre nos, Brito Alves,
que privilegia a locucao direito penal por ver na punibilidade a
"nota especifica do crime, a sua consequencia juridica mais
natural ou Iogica, como a circunstancia predominante, como a
caracteristica maior" 11. E sempre lembrada a designacao C6-
digo de Defesa Social , introduzida (1936) em Cuba 18. 0 uso da
expressao direito criminal, ern 1946, por Roberto Lyra, expri-
me a influencia que sobre ele exercia 0pensamento de Ferri 19 •
I I "N6s possufrnos urn c6digo penal , razao pela qual preferimos a expressao Direi to
Penal , aceimndo a predil ecao do legis lador " ( op . ci t. , p. 4 ).12 ... ' 'IIpartir de 1890 nossa legislat;iio pas sou a denominar-se C6digo Penal. Seguinios
II tmdi lf ao" ( op . c it. , p . 5 ).
13 "Pos su fr nos u rn C6digo Pena l, nao u rn C6d igo Crim inal . Deve ser ace it o, pcis ,
para t itulo da mater ia , 0 sugerido pela lei positiva" (op, cit., p. 8).
14 .. . " em consonft nc ia com a legis la t; iio pa tria " ( op. c it. , p. 14 ).
IS "Optamos, ent re tanto , pela de direi to penal , em consonancia com 0Ccdigu" (op,
cit., p. 3).
16 lntroduccion, cit., p . 4 . A mudanca ir nport an te , r egi st ra Busto s, e st ava no aban -
dono da ideia de expiacf io, subst itufda pela depena, associadn historicamente v' a
concepcao de es tado de d ire it o e ao pr incfp io nul lum cr imen nul la poena s ine
lege".
17 Direito penal. P.G. , Reci fe , 1977 , p . I II . A enfa se na pena n ji o s ign if ic a que e st e
autor atr ibua ao direi to penal f llnt ;oes est ri tamente sancionadoras (cf . p. 115).
18 Fortement e in fl uenci ado pel o pos it iv ismo e , " segundo os pr6pr io s auto re s, in s-
pirado nil ideia ferriana de defesa social" (Martinez Rincones, Sociedad yderechopena l en Cuba , Bogota, 1986, p. 62), tal c6digo, ao contnirio do que possa
pensar-se , nao conferiuvigencia aoa postulados da primeira defesa socia l; dlsso se
queixava Gramatica tPr tnctpios de defensa social, t rad. P rado e Apa ri cio , Ma-
00 , 1974 , p. 209).
19 Introduri lo ao estudo do direi to criminal, cit. Em 1953, Lyra publica sua Expres-
s ilo mais s imples do direi to penal (Rio, ed. 1. Konf ino). Sua peculia r fo rma de
o rgan ize r a s dl sc ip linas c ri rn inais con templa ri a, doravnnt e, u rn d ire it o penal
normativo e urn direitopenal cientffico (cf. Novo dire ito penal, Rio, 1980, p . I ).
46
Outras designacoes de regencia doutrinaria costumam ser
evocadas2U.
A variavel mais importante, contudo, diz respeito ao al-
cance descrit ivo da designacao proposta, isto e, a sua capaci-dade de compreender determinados conteiidos. Mestieri, por
exemplo, opta por Direito Criminal porque deseja abranger
tambem 0 direito processual penal e respectiva organizacao
judiciaria". Aqui, a principal objecao a designacao direito
penal foi oposta pelo advento, no final do seculo XIX, das
medidas de seguranca". Como diz Mir Puig, "0direito penal
20 Tais des ignacces nernsempre s igni ficam nomeaf', seniio orientar 0 direi to, ao
cont rd rio do que pode supor 0 iniciante. Derecho protector de los criminates,
sempre lembrado em textos brasi le iros de iniciacao, nao e 0nome de urn antepro-j et o de c6d igo c labo rado por Dor ado Monte ro, e s im 0 nome da segunda edicf io
revis ta e aumentada, em dois volumes ( 1915 ), de s eus Estudios de derecho penal
preventivo, Atras dessa designa"i io estava a mais humunis tica e generosa ver tente
que 0posit ivismo consent iu - por i sso rnesmo, rumpida com ele na vulgaridade
determinlst ica do homem del lnquente - , capaz de pretender da adminis tracdo da
ju st ic a uma func iio de medi cine soc ia l, f ra te rna lmen te comprome ti da com 0
crimincso-paciente. com quem deve repar ti r, enquunto agente socia l, a responsa-
bilidade - solidnria e coletiva - pelo crime-doenca (Bases para um nuevo
derecho penal, B. Aires , 1973, pp. 65 ss) , Do mesmo modo, "di re ito repress lvo"
e apenas titulo de urn livro publicudo, em 1883, em Turim, pelo positivists
Ferdinando Puglia iProlegomeni alia studio del dirit to repressivo),
21 Op. ci t. , p . 4 . F rosuli r eunlu numa s6 obra 0estudo do direi to e do processo penal
sern renunciar a esta des ignacdo, porem atr ibuiu a obra 0 t itulo geral de Sistema
penal italiano , e designou os tres primeiros volumes, de "direito penal
subst anc ia l" eo u ltimo de "di re it o pr oce ssual penal" (Frosa li , R.A. , Sistema
penale italiano, Tur im, 1958) .
22 Da veri fi cagfi o do f ra ca sso pn itico da pena ( expre sso n il mul ti -r einci dencia e na
ascensi io da criminalidade) e do determinismo posit ivism, que lhe quest lonava os
fundnmentos , surgi ram as medidas de seguranca como segunda ordern de reuci io
jur fdica ao crime, apl lcaveis no prcssuposto da per igosldade e nao, como a pena,da culpabi lidade do individuo. Ao lade das penas , autonomamente apl icaveis, as
medidas de seguranca comporiam urn regime binario (pena e medida). Recebidas
no di re it o b ra si le ir o pelo C6di go Penal de 1940 , po r di re ta in fl uenci a do C6digo
Rocco, com desernpenho inteiramente ineflcaz, foram consideravelmente reduzi-
das em 1984 , suprimindo- se seu aspec to ma is pole rn icn ( rnedi da de segu ranca
detentiva para imputaveis) . Hoje, subsi stern somente a internacuo em hospi ta l de
custodia e t ra tamento psiquiatr icc e 0 tratamento ambulatorial para inimputdveis
ou, sob regimevicariante (pena ou medida), pam semi-imputaveis,
47
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mente urn ramo do direito publico intemo"2. Em seu texto de
iniciacao, Miguel Reale, caracterizando uma relacao de direito
publico pelo • 'fato de atender , de maneira imediata e prevale-
cente, a urn interesse de carater geral" , afirma que a criminal i-
zacao da apropriacao indebita nao atende apenas ao interesse da
vft ima, e sim ao interesse social, e "por essemotivo, 0 direito
penal e urn direito publico, uma vez que visa a assegurar bensessenciais a sociedade toda"J. Filiando-se a ambas as perspec-
1 Op, cit., p. 4.
2 Op, cit., p. 12.
3 Lif ii es preliminares de direi to , S. Paul o, 1973, p. 385: " quando um n norma
p ro fbe que algu em se upropr ie d e u rn b ern a lh eio, n ii o es ta cu id undo upenus do
int er es se d a v it ima, mas, lmcd ia ta e prev al ece nt ernen te , d o int er es se s oc ia l" .
52
tivas, Fragoso fundamenta a incIusiio do.direito penal no direito
publico nao soporque sua protecao "refere-se sempre a interes-
ses da colet ividade" como tambern porque "0 estado detem 0
monop6lio do magisterio punitivo, mesmo quando a acusacao epromovida pelo ofendido ' '4
Uma revisao dessas perspect ivas fundamentadoras supoe a
intervenc;:ao de tres l inhas crf ticas: 1~crft ica da dist incao a-
hist6rica entre dire ito publico e direito privado; 2~ crftica do
estado como abstracao a-hist6r iea; 3~cri tica do posit ivismo
jurfdieo-penaL
Em primeiro lugar, portanto, cumpre verificar que a distin-
c;:aodirei to privado-direi to publico era completamente des-
conhecida das praticas penais primitivas, nem faria sentido
perante elas", aparecendo pela primeira vez no direito romano,
na famosa passagem de Ulpiano", Sabemos como se deu, em
Roma, a superacao do regime gentf lico pelo ineoercfvel movi-
mento da plebe afluente, que conduziu a "destruicao da antiga
ordem social fundamentada nos vinculos de sangue ' '1, substi-
4 Lifiies, c it ., p . 2 . S ab re 0aspec tc , Anfba l Bruno: "se em certos cases a a (uas -i io do
di re it o pun it iv o f ica d ep end ente d e que ix a do o fend id o e 56 es te pod e p rovo car 0
rnovirnen to da just ica, isso e rne ra condicao do processo, que nao a ltern 0 caniter
publi co du def inicao e cornlnacao penal c da aplicacdo e execucan da sancuo
punitiva" (op. cit., v. I, I. I~' , p . 25).
5 Max Webe r, Economia y sociedad, trad. 1. Echavarria et 01., Bogota, 1 977 , v . 1.
p. 5 03; Mach ado Neto, Compendia de introductio £i ciencla do direito, S. Paulo,
1975, p. 241; Losano, op. cit., p. 140.
6 Digesto; liv. I : ', ti l. I , I, § 2 :': "E direi to publico aquele que se re fe re ao estado da
coisa Romuna (ad s tatum rei Romanae spectan; privado , aquele (que se refere) ii
utilidade de cada individuo (quod ad singulorum utili tatemv; pois umus coisus sao
i it ei s p ub li ca e ou tr as pr iv ad amen te . G d ir ei to pub li co c ons is te na s co is as sa gra-
da s, a s d os sa ce rd ot es e as do s mag ist rad os (in sacerdotibus, in magistratlbus
consistiti, a direito privado e tripartido, pais esta cornposto dos preceitos naturals,
ou des das gentes, ou dos civis ( ex natu ra li bus praecep ti s, aut gentium, our
civilibusv', Como observa Bonfante, a expressao respublica romano corresponde
a o termo "es ta dc '" , em sent id o po li ti co , enqua nto stows corrcsponde ao mesmo
termo em sen tido ontol6g ico au natural Unstituciones de derecho romano, trad. L.
Brad e t al . • Madri , 1965, p. 13) .
7 Engel s, F. , A origem dafamfiia. da propriedade privada e do estado, trad, L. Kender,
in Obras escolhidas, Rio, 1963, v. 3, p. 104. a termo "destruido" tdistruttoi etambern empregndo porGuarino (La rivoluzione della plebe, Napoles, 1975, p. 256).
53
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maus-tratos, violencia arbitraria, par exemplo) do exercicio
abusivo dos controles psiquiatricos e disciplinares nos dizem
respeito, e nao a urdidura normativa subterranea que articula
sua aplicacao intensiva contra grupos minoritarios ou
dissidentes? 0 estudo do direito penal que inclua este contra-
ponto, atraves do qual as normas e praticas penais de determi-
nada sociedade podem ser entrevistas em sua globalidade, sem
circunscrever-se ao discurso legal do estado, nao deve sacrifi-
car a qualidade tecnica da reconstrucao do direito positivo,
perdendo-se no labirinto ilus6rio da polaridade jusnaturalis-
mo-positivismo. Com rara precisao, sentenciou Marilena
Chaui: "Abstracoes gerneas, 0 positivismo juridico torna 0
direito como urn fato, enquanto 0 jusnaturalismo 0 apreende
como ideia. Ancorado na positividade imediata da Ordem, 0
positivista dissimula a significacao social de seu conceito-cha-ve, isto e, que em sociedades divididas em classes a 'ordern' eapenas 0 que a c1asse dominante ordena. Apoiado na ideali-
dade imediata da Justica, 0jusnaturalista mantern a genese do
justo fora do movimento social que 0 constitui ou que 0
dissimula. A crenca na positividade do 'dado' e a confianca na
irnobilidade da 'ideia' fazem com que 0 positivista e 0jusna-
turalista percam 0movimento hist6rico pelo qual os dados se
cristalizam em conceitos e as ideias se petrificam em institui-
9oes, perda que deixa a ambos na impossibilidade de compre-
ender como a ordem 'dada' se converte em ordem necessaria e
como a justica 'pensada' se converte em legalidadeinstitufda "29. Aquela "lei natural do direito" a que se referia
Tobias Barreto (cf. § I?) res tara melhor esclarecida se nos
28 Cf. Zaffaroni, Manual, c it. , p . 32.
29 Mar ilena Chaul , Rober to Lyra Filho ou du dignidade pol lt lca do direi to, in Araujo
Lyra (org.) Desordem e processo, cit., p. 18.
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logo duas linhas. A prime ira esta nos atributos de todo 0
ordename'nto juridico, como, por exemplo, seu carater
"finalista"12. Como diz Zaffaroni, "0direito penal, por ser
direito, participa de todos os caracteres do direito em geral: ecultural, e normativo, e valorativo, etc"13; por isso mesmo,
tais atributos nao nos interessam aqui, A segunda linha a
descartar-se e aquela que se detern diante da propria sancaocom a qual opera 0 direito penal- a pena -, para toma-la
como sua caracte'ffstica essencial", nao porque nao 0seja, mas
porque ficaremos perigosamente imobilizados numa redun-
dancia.Em nossa opiniao , sao cinco os princfpios basicos do
direito penal: 1. principio da legalidade (ou da reserva legal,
ou da intervencao legalizada); 2. principio da intervencao
minima; 3. principio da lesividade; 4. principio da
hurnanidade; 5. princfpio da culpabilidade. Nos proximos
paragrafos, fomeceremos algumas indicacoes sobre cada urn
deles, em nivel generico que corresponde a seu tratamento no
ambito de urna introducao ao direito penal.
12 Mirnbete, op. cit., p. 15; Magalhfies Noronha, op. cit., p. 5; Asiia, 'Trarado de
derecho penal. B. Aires , 1964, v. I ,p . 35. Advir ta-seque 0 t ermo "finali sta" e aqui
empregado no senti do de que a di re it o penal s e o rienta te lcologic arnent e - como,
entre outras, a teoria dos bens jurfdicos dcmonstruria - e persegue, atruves da
cominacao, apl ica~iio e execucao da pena, f ins; von Liszt , que rnais consequente-
mente t rouxe, inspi rando-se em Ihering, a iddia de f im para 0 direito penal, fulava
numa "pena de f im", ern oposicao a uma pena que se esgotasse nn rel ributividade.
Tal empr ego do te rmo fi nal is ta nuda t er n a ver com as tr uns for rnacoe s na t eo ria doc rime , el nbo radas na me tade dest e s ecu lo, p rincipalmen te par Hans Wel zel , que
receberam 0nome de " teor ia da a~i io f inal" , au " teor iu f inal is ta" , ouainda simples-
mente "finalismo".13 Manual. c it ., p . 55. Ta rnbem a "cout lv idude" e um a tr ibuto ger al do di re i to
(Navarrete, op. c it ., p . 106):14 Registra Zaffaroni que a enracteristica que distingue 0 direito penal de outros ramos
nso estd senao "no meio mediante a qual prove a segurnnca jur idica: a pena"
(Manual, cit., p. 55).
64
B ib l io te c a C e n t r a l - P U C ~ R
§ 9?
o principio da legalidade
o principio da legalidade, tambern conhecido por
"principio da reserva legal" 1 e divulgado pela formula
"nullum crimen nulla poena sine lege" , surge historicamente
com a revolucao burguesa e exprime, em nosso campo, 0mais
importante estagio do movimento entao ocorrido na direcao da
positividade jurfdica e da publicizacao da reacao penal. Por
urn lado resposta pendular aos abusos do absolutismo e, por
outro, afirmacao da nova ordem, 0 principio da legaJidade a
urn s6 tempo garantia 0 individuo perante 0 poder estatal e
demarcava este mesmo poder como 0 espac;o exc1usivo da
coercao penal. Sua significacao e alcance polit icos transcen-
dem 0condicionamento historico que 0produziu, eo principio
da legalidade constitui a chave mestra de qualquer sistema
penal que se pretenda racional e justo.
Devemos abandonar a tarefa, mais propria de antiquario
que de historiador, como diria Marc Bloch', de respigar em
textos romanos alguma afinidade - ainda que sonora - com
o principio, ou de cismar sobre a passagem do artigo 39 da
Magna Charta - que continha, segundo opiniao dominante,
I Ess a [Ipreferencia de Fragoso, Lipjes, c it ., p . 84. Munoz Conde usa a des ignncao
"pr inclpio da intervencao legal izada" , 0que lhe perrnite ernparelhd-lo no principia
da intervencao minima num quadro geral de I imitac;i io do poder punit ivoeslatal
(lnrrodllccicin, cit., p. 58).2 Introduciio dHisuiria, t rod. M. Manuel eR. Gracia, ed. Europa-America, 4~ed., sId,
p.43.
65
5/16/2018 Nilo Batista - Introdu o Cr tica ao Direito Penal Brasileiro - slidepdf.com
Segundo: proibir a criacao de crimes e penas pelc costume
(nullum crimen nulla poena sine lege scripta). .,
S6 a lei escrita, isto e, promulgada de acordo com as
previsoes constitucionais, pode criar crimes e penas: nao 0
costume. "Destacar a exclusao do costume como fonte de
crimes e penas", frisa Mir Puig, e exigencia do principio da
legal idade". Isso nao signif ica , por certo, que os costumes ndoparticipem da experiencia jurfdico-penal: Assis Toledo assi-
nala tratar-se de "equfvoco a suposicao de que 0direito costu-
meiro esteja totalmente abolido do ambito penal"17. De fato, e
indiscutfvel que os costumes desempenham uma funcao inte-
grativa, que provem principal mente de sua influencia no direi-
to privado". Tal funcao integrat iva se apresenta na elucidacao
de elementos de alguns tipos penais (par exemplo, "mulher
honesta" no tipo do rap to - art. 219 CP -, ou "ato, objeto
au recitacao obscenos ", nos tipos de ultraje publico ao pudor
- arts. 233 e 234 CP)l9. Apresenta-se ela igualmente no
conceito central (dever objet ivo de cuidado) dos t ipos culpo-
SOS,sempre que a atividade dentro da qual ocorreu 0 fato nao
16 Introduccion, cit., p. 145.
17 Principles basicos de direito pella I , S . P aulo, 1 986, p. 24.
18 CosHI e Silva, Comelltariosao codigo penai brasileiro, S. Paulo , 1967, p . 17; Anfba l
Bruno, op. ci t. , p. 189.
19 Hung ri a a f lrma que, no ultraje publico ao pudor, "a lei penal s e r eport a a urn costume
social, isto e , a moral id ade c ol et iv a e rn . t omo do s fatos d a v id a s oc ia l, f ica ndo
subordinada, pard 0 seu entendirnento e aplicaciio, a vuriabi lidade , no tempo e no
espaco, desse costume" (Comelltarios ao codigo penal, Rio, 1958, v. I, t , I , p. 94).
Advirta -se para os riscos de uce itar-se, acrit icamente , 0 conceito de "morulidude
colet ivu' numa soc iedade dec las ses. Ens ina Adolfo Sandez Vasquez ser ' ' evidente anatureza particu la r da moral nus soc icdades c lass is ta s, em face da pre tensao de uma
moral universulmente vdlida" (Erica, trud. J. Dell'Anna, Rio, 1970, p. 199).
"Dificilmente as classes dominantes conseguern impor IImoral por elas elaboruda atotal idade dasociedade" (Cesa re Luporin i, As ra fzes da v ida moral , inDella Volpe e t
1 1 1 . , Moral e sociedade, t rad . N . R is sone, R io , 1 969, p . 65 ); e nt ret an to , a tr av es de
conce itos como' 'mora lidade colet iva' , 0direito pode transformer acoercao penal no
mais terrfve l ins trurnento de SUIl imposicdo,
70
. • 20
esteja positivamente regulamentada de modo ~x~UStIVO,
como tambem em justificativas (pense-se no exercicro regular
do direito - art. 23, inc. III CP - enquanto aplicacao de
castigos ffsicos na correcao educacional de menores). Nega-
se, geralmente, uma funcao derrogatoria aos cos~u~es
idesuetudo penal) ; Oscar Stevenson a reconheceu ern hipote-
ses que tratariamos hoje como "adequacao social da acao"
(perfuracao de orelhas para usa de brincos, circun~isao): dele
dissentindo Hungria". A verdade e que a adequacao SOCIalda
acao, seja enquanta justi ficativa de carater c?nsuetud~mirio
(assim a concebeu Welzel durante Iongo penod~), seja e~-
quanto princfpio de interpretacao que reinsere as tipos penais
numa sociedade histor icamente determinada (como a conce-
beu a ultimo Welzel) , esta indissoluvelmente ligada aos
costumes". Podemos, assim, concluir que a principio da Ie-
gal idade proibe a intervencao dos costumes apenas -:: -P?re_m
incondicional e total izanternente - no que concerne a cnacao
(definicao au agravamento) de crimes e penas.
Inscreve-se aqui a questao das fontes. Fonte de producao(ou material) do direito penal e a Congresso Nacional, ao qual ,
com exclusividade, a Const ituicao da Republica defere 0po-
der de legislar em materia penal (art. 22, inc. Ie 48). Segundo
Anfbal Bruno, em passagem de matiz historicista, muito aco-
lhida, pOI tras dos orgaos estatais que ditam 0 direito estaria
20 Muii oz Conde ve 1l intcrvencao integra tlva dos cos tumes noconceito de "diligen-
cia devida" nil conducao de automovels (lntroduccion, cit . p. 89). Entre nos, a
existencia de ur n C6digo Nacional de Transit e (lei n~ 5.108, de 21.set . 1966)
e xt en sumen te regul amen ta do (de creto n. "62 .1 27 , de 16. ja n.1968, e imime ro s
outros- cf. Legislaciio de trtinsito, Brasflia, 1984, ed. Min is te rio da Jus tica , p.
50 5S ). t orna es tr it amente supl ernen ta r a int erven ci io dos c os tume s il hipotese.
Jua rez Tavares reconhece no desatendimentoaccuidado objet ivo exigfve l aoautor
do crime culposo uma "caracterfstica normativa uberta" (Teoria do delito, S.
Paulo, 1980, p. 68). Assi nala Heitor Costa Jr . II impossibilidnde de descricdo
exaus tiva da conduta puntvel nos c rimes culposos tTeoria dos crimes culposos,
Ri o, 1988, p. 55) .
21 Hungri a, op. cit. , p. 95.
22 Wclze1, op. cit., p. 83 55.
71
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"a consciencia do povo em dado momento do seu desenvolvi-
mento historico, consciencia onde se fazem sentir as necessi-
dades sociais e as aspiracoes da cultura, da qual urna das
express6es e 0 fenorneno jurfdico ' '23. Essa linha de especula-
~ao, que substitui a modesta verificacao da producao objetiva
do direito pela mfstica inconsistente de urn "espfrito nacio-
nal", ou cumpre, se desenvolvida, uma funcao ideol6gica
de fazer passar por vontade do conjunto do corpo social avontade de uma. classe, ou estimula, se contraditada, uma
simplificacao mecanicista que - com muito maiores razoes
- pode situar no modo de producao as verdadeiras fontes do
direito". Fonte direta de conhecimento (ou formal) de normas
que definem crimes e cominam ou agravam penas e apenas e
tao-somente a lei; muito adequadamente frisa Mestieri ser a lei
penal ' 'a fonte ou forma de expressao unica do direito criminal
quando se trata de definir infracoes penais e cominar penas' '25.
Alem desse campo - porem rnuitas vezes, indireta ou suple-
mentarmente, neste mesmo campo, como virnos acima -
temos os costumes e os princfpios gerais do direito penal, urn
dos quais estamos exatamente estudando neste momento. Es-
pecial importancia tern os princfpios constantes de documen-
tos intemacionais de direitos humanos, como a Declaracao
Universal dos Direitos Humanos, resolucao da Organizacao das
Nacoes Unidas, de 10 de dezernbro de 1948, e a Declaracao
Americana dos Direitos e Deveres do Homem, recomendacao
da IX Conferencia Interamericana. de 2 de maio de 1948. Em
novembro de 1969 foi firmada, em San Jose, Costa Rica, a
Convencao Americana sobre Direitos Humanos, conhecida
como' 'Pacta de San Jose da Costa Rica" , que eo documento
23 Op. cit ., p . 187; endossam-lhe as palavras Darnasio (op. cit ., p . 8) e Mirabetc (op.
cit ., p . 29) , ent re out ros.
24 Cir ino dos Santos, Direito penal, cit., p. 24. Cf. ainda Konstantin Stoyanovitch, La
pensee marxista et le droit , Vendome, 1974, p . 45, pam quem a von tade da c la ss e
dorninante is fonteJormal do direito.
25 Op. cit., p. 81. Afi rrna Bustos que ulei e a unica fonte ' 'pam 0pnder punitivo estatal"
(lntrodllcci6n, cit., p. 35).
72
fundamental da protecao internacional dos direitos humanos
no ambito americana"; 0Brasil a subscreveu em 1986, ja lhe
havendo concedido 0 Congresso Nacional a aprovacao
constitucional",
Fala-se em "reserva absoluta" e "reserva relativa" de lei
para aprofundar 0 entendimento de dispositivos constitucio-
nais concernentes it reserva legal. A concepcao de "reserva
absoluta" postula que a lei penal resulte sempre do debatedernocratico parlamentar, cujos procedimentos Iegislativos, e
so.eles, teriam idoneidade para ponderar e garantir os interes-
ses da Iiberdade individual e da seguranca publica, cumprindo
a lei proceder a uma "integral forrnulacao do tipo n2H; dessa
forma, s6 a lei em sentido formal poderia criar crimes e
cominar penas, com "a obrigacao de disciplinar de modo
direto a materia reservada"?", A concepcao de reserva relativa
nega 0monop6lio do poder legislativo em assuntos penais'" e
admite que a materia de proibicao possa ser parcialmente
definida por outras fontes de producao normativa, cabivel que
o legislador estabeleca estruturas gerais e diretrizes, a serem
complementadas, as primeiras com observancia das segundas,
pelo regulamento". A constitucionalidade das normas penais
em branco de cornplernentacao heterologa" seria discutivel a
26 Cf. Fragoso, Direito penal e direitos humanos, cit ., p. 119 ss: Zaffaronl, Manual,
cit., p. 94 ss; Lyra Filho, op. cit., p. 11 e 109.
27 Decre to Leg is lu tlvo n: ' 5/89, D.C.N. de 2.jun.89.
28 Br icola , F ranco , L 'a rt. 25 , cor nmi 2~ ' e 3 :' del la Cost it uz ione r ev isi ta to a lia fine
degli anni '70, in La questione criminate, n:' 2/3, Bolonha, 1980, p. 210; do
mesrno autor, La discrezionalita nel diriuo penale, Mil ao , 1965 , p . 233 ,
29 Siniscalco, Marco, I rret roat iv ita del le /eggi in mater ia penale, Mi li io , 1969 , p .
85.
30 Para uma concepcfio absoluta da reserva legal , nao pode 0Prcsidente da Republicaedi tu r medida p rov isori a ( ar t. 59, i nc . VCR) sob re ma te ri a penal.
31 Nilo Bat is ta , Bases const itucionnis do princ!pio da reserva legal , in RD P n~ 35, p.
57.
32 Chamarn-se normas penais em branco aquclas nas quais aconduta incriminada nao
es td i nt eg ralment e desc ri ta , neces si tando de uma compl emcn tacdo que se apre -
senta em out ro disposi tive de lei (cornplemcmacao hom6Ioga) , seja du propr ia lei
penal (cornplernentacao homologa homovite linn) , seju de lei diversu
73
5/16/2018 Nilo Batista - Introdu o Cr tica ao Direito Penal Brasileiro - slidepdf.com
luz da reserva absoluta da lei. Em todo caso, como ensina
Petrocelli, 0qomplemento administrative que passa a integrar
uma norma penal esta sujeito a todas as exigencies que deri-
yam do principio da legalidade: 0contrario significa violacao
do proprio princfpio "
Terceira: proibir 0 emprego de analogia para criar crimes,
fundamentar au agravar penas (nul/urn crimen nulla poenasine lege stricta).
Chama-se analogia 0 procedimento Iogico pelo qual a
espirito passa de uma enunciacao singular a outra enunciacao
singular (tendo, pais, carater de uma inducao imperfeita au
parcial), inferindo a segunda em virtude de sua sernelhanca
com a primeira"; no direito , terfamos analogi a quando 0
jurista atribuisse a urn caso que nao dispoe de expressa regula-
mentacao legal a(s) regra(s) prevista(s) para urn caso seme-
lhante. A formula basica da analogia, extrafda de Atienza
Rodriguez", vai a seguir grafada; nela, para nossos fms, "M"
(complernentacf io homdloga heterovitel inu) , ou em fnntes legis la tivas de hierar-
quia const itucional infer ior, como 0 a to ndmini st ra tl vo. vou a l ei e stadua l ou
municipal (complernentncao hetcrologa) . Foi 0 penal is ta alemao Kar l Binding
quem, dentro de seu projeto teorico de rerneter a lei penal a urn conjunto denormas
dis tintas do propr io ordenamento jur fdico-penal, crnpreendeu a primeira teoriza-
"ao import an te a r espei to de t ais nonna s, cunhando- lhes a de signacao que, leve-
mente ulteradu, a inda perdura tBlankeitstrafgesetz), e ainda formulando a seu
re spe ito uma f amosa expr es sao : d izi a el e que, s cm a pro ib icao do complet ive da
norma , a l ei penal par eceri a ur n co rpo e rr nn te que buscu sua a lma tein irrender
Kiirper seine Seele suchts, cr. Binding, Die Normen und i hr e Uberlr elUng,
Utrecht , 1965, v. 1,p. 162; Thompson, Augusto, Lei penal em branco e ret roat ivi-
dade benefica, in Rv, Dir . Procuradoria Geral E. Guanabara, Rio, 1968, v. 19, p.223; Nil o Ba ti st a, Obse rvacoe s sabre a norma penal e sua interpreta!i=iio, RD P n?
I7 ! 18, p. 87. 0 e st udo da s nonnas pena is embranco per tence a teoriu da lei penal.33 Norma penal e e r ego lamento , i n Saggi di diriuo penale, 2~se ri e, Padua , 1965, p .
161.
34 Maritain, Logica menor, trad. I.Neves, Rio, i972, p. 30B; Puigarnau fala de
induciio reconstrutiva (L6gica para juristas, Bar cel ona, 1969, p . 127 ).
35 Sobre fa ana!og{aen el derecho, Madri, 1986 , p . 48.
74
e "S" representarao condutas humanas e "P" representara
nao apenas proibido, mas proibido sob cominaciio de pena:
(1) M e P
(2) S e semelhante a M
(3) S e P
Salta aos olhos a total inaplicabiJidade da analogia, peranteo princlpio da legalidade, a toda e qualquer norma que defina
crimes e comine ou agrave penas, cuja expansao Iogica, por
qualquer processo, e term inante mente vedada, havendo neste
ponto unanimidade na doutrina brasileira.
Como vimos, 0 direito penal nazista util izava-se larga-
mente da analogia. 0 artigo I? do c6digo penal dinamarques
de 1930 estipula que "ninguern pode ser punido com pena
senao par atos cujo carater criminoso esteja consignado em
lei, au que sejam inteiramente assimilaveis a tais atos"; mas
parece que a clausula anal6gica e reconstruida peJa doutrina
sem lesao ao princfpio da legalidade". Na Uniao Sovietica,
desde 0codigo de 1960, que se seguiu as "bases" de 1958, a
analogi a e uma "Institulcao abolida ":". Na China, mesmo
ap6s 0 codigo de 1979, a predorninancia de urn conceito
material de crime, definido como urn ato que ofenda a sobera-
nia do estado, a integridade do terri torio, 0 regime da ditadura
do proletariado, a revolucao e a edificacao socialistas, a ordem
36 Zaffaroni, Manual, c it ., p . 136 .
37 Zdravomfslnv el al, Derecho penal sovie ti co, trad. N. Mora e J. Guerrero,
Bogota, 1970, p. 52. Em 25 de dczernbro de 1958,0 Soviete Supremo da Uniao
p romulgou pri nc ipl es f undamcn tai s que dever iam const lt ui r as bas es dos novos
codigos das republicus federadus ("Bases"). Em 27 de outubro de 1960, aRepublica Sociali sm Federut iva Sovietica da Russia, cer tarnente a mais i rnpor-
tante e inf luente das 15republ icas fcderadas , prornulgou seu novo codigo penal (e
tambern urn novo codigo de processo penal e uma lei de organizacao judiciaria) .
Quer em seu art igo 3~(fundumcntos da responsabil ldadc penal ), quer em seu art igo
7~ (conceito de crime), 0 cornponente mater ia l da "a~iio socia lmente per igosa"
esta condicionado a "previsuo legal", podendo, no contrario, a defeccao da
p rime ir a supr imi r a ef ic aci a da s cgunda ( ar t. 7 :', segunda parte ).
75
5/16/2018 Nilo Batista - Introdu o Cr tica ao Direito Penal Brasileiro - slidepdf.com
publica, os bens publicos, os bens coletivos das massas traba-
Ibadoras e os bens pessoais dos cidadaos, as direitos indivi-
duais e democraticos dos cidadaos e ainda todo ato social-
mente nocivo, deixa as portas abertas ao indiscriminado em-
prego da analogia".
No Brasil, muitas vezes admitiu-se e praticou-se a analo-
gia vedada. Rememora Fragoso urn decreto-lei do Estado
Novo (n:' 4.166, de II.mar.42) que "expressamente autori-
zava 0 recurso a . analogia'?", A punicao do apoderarnento
ilfcito de aeronaves (entao fato atipico entre n6s) a titulo de
seqiiestro , pelos tribunais, durante a ditadura militar, impli-
cou analogia, Em seu importante trabalbo, Rosa Cardoso de-
monstra como a admissao de pessoas juridicas na posicao de
sujeito passivo do crime de difamacao previsto no C6digo
Penal (art. 139, entre os "crimes contra a pessoa'", e usando a
vox "alguem", caracterizadora de pessoa humana) represen-
tou emprego de analogia '".
Vedado 0 acesso da analogia naquilo que Anfbal Bruno
chamava de "direito penal estrito ", ou seja, 0 direito penal
criador de crimes e cominador de penas, tern ela as portas
abertas para cumprir suas funcoes integrativas em todo 0
restante ordenamento jurfdico-penal; e como este se estrutura
numa dualidade tensiva (opondo as normas que definem cri-
mes e cominam ou agravam penas outras que, sob as mais
divers as circunstancias, excluem ou reduzem a punibilidade,
na mais ampla acepcao deste termo), segue-se que e possivelformular urn criterio pratico e constatavel para essa analogia
38 Tsien Tche-Hao , Le droit cltin~is, Vendome , 1982, p. 112; cf, tarnbem
Dell'Aquila, f/ diritto cinese , Padua, 1981, p. 193. Na Inglaterra, com seu
peculiar sistema jurldico,0
poder judicial' de declarar ou ampliur analoglcarnenteum crime "parece niio haver desaparccido intei ramente " (Curzon, Criminal law,
Londres , 1973, p. 9), ernbora nos t il ti rnos tempos fosse exercido rara e l irni tada-
men te, e , is clare, "with the greatest reluctance" (op, cit., p. 7). Zaffaroni,
ent re tanto, menciona urn ato de 1972 que ter iu posto termo aquele poder (Manual,
cit ., p . 135), tomando indispensiivel a base estututar ia .
39 Lit;oes, cit., p. 95.
40 0carti ter reuir ico do princlpio da legal idade, P. Alegre, 1979, p. 104.
76
admitida: e aquela que favorece 0 acusado, e a analogia in
bonam partem. Ha quase unanirnidade nos autores brasileiros
quanta ao acolhimento da analogi a in hallam partem"; com
excecao , que resulta de irnperativo logico , de normas
excepcionais". Ninguern estabeleceu a regra da analogia in
bonam partem de maneira mais formosa e exata do que
Carrara: "Per analogia non si puo estendere la pena da caso a
caso: per analogia si deve estendere da caso a caso la scusa' '4].o artigo 4?da Lei de Introducao ao C6digo Civil recomenda
que, na ornissao da lei, 0 juiz decida "de acordo com a
analogia, os costumes e os principios gerais de direito ".
Temos, no direito penal, limites a tal recomendacao, deriva-
dos do principio da reserva legal, limites esses que incidem
sobre as normas que definem crimes e cominam ou agravarn
penas, Alern desses limites, 0 desenvolvimento do direito pe-
nal, pela colmatagem de suas lacunas, s6 encontra a fronteira
polftico-criminal da intervencao minima, tambem expressa em
seu carater fragrnentario - que sera mais tarde examinado.
Observe-se, por firn, que alguns autores questionam a real
vigencia logica e Iingiiistica da proibicao da analogia, mesmo
dentro dos limites assinalados. Kaufmann cbegou a dizer que
• 'nao M urn s6 fato criminoso cujos contornos estejam fixados
em lei: par todos os lados os lindes estao abertos"44.
Quarta: proibir incriminacoes vagas e indeterminadas (nullum
crimen nulla poena sine lege certa).
41 Cf. Toledo, op. cit., p . 25; A. B runo, op. cit., p. 209; Fragoso, Li,oes, cit., p, 83;
Mlr nbe te, op . c it ., p. 30; Damas io , op, c it ., p . 48 . Di ss ent ia do entendi rnen to ,
is oladamcnte , Ne lson Hungri a ( op , c it . ,p . 91).
42 A norma exccpcionu l i nst au ra u rn r egime d is ti nt o e e speci al par a det erminad~hip6tese: regula a excecao, subtrai 0 cas e ao qual se dest ina da d is ci plina geru l. E
obv io que adrnit ir , aqu i, a ana lcgia , e destruir 0 propr io conce ito de norma
excepcional . Convem regis trar que as causas gerai s de exclusao da ant ijur idic i-
dade e da culpabi lidade niio sao norm asexcepclonals , como supunhu Hungr in, a te
por serem gerais: adrnitern, portanto, 0 exercicio analogico.
43 Op. cit., p. 368 (§ 890, nota I.infine).
44 Op. cit., p. 42.
77
5/16/2018 Nilo Batista - Introdu o Cr tica ao Direito Penal Brasileiro - slidepdf.com
A funcao de garantia individual exercida pelo principio da
legalidade estaria seriamente comprometida se as normas que
definem os crimes nao dispusessem de elareza denotativa na
significacao de seus elementos, inteligivel por todos as cida-
daos. Formular tipos penais "genericos au vazios ", valen-
do-se de "clausulas gerais" ou "conceitos indeterminados"
au "ambigucs":", equivale teoricamente a nada formular, mas
e pratica e politicamente muito mais nefasto e perigoso. Naopor acaso, em epocas e pafses diversos, legislacoes penais
votadas a repressao e controle de dissidentes politicos escolhe-
ram precisamente esse caminho para a perseguicao judicial de
opositores do governo. Soler registrou que se recorre com
frequencia a esse expediente em caso de delitos criados deli-
beradamente com intencao polftica". No Brasil , as famigera-
das leis de seguranca nacional compunham autentico florile-
gio de tipos penais violadores, pela construcao de crimes
vagos, do principio da legaJidade, e coube especialmente a
Fragoso, em imimeros trabalhos, profligar-Ihes tal vicio". A
vigente lei de seguranca nacional (lei n:'7.170, de 14.dez.83),
45 Toledo, op. cit., p. 28; Mir Puig, op. cit., p. [46; Munoz Conde, lntroducclon,
cit., p. 96; Roque de Brito Alves, op. cit., p. 226. Em sua origem historica, U
clureza do texto legal estava associada ao principio l iberal da autodeterminacf io du
conduta a par ti r do conhecimento da lei ( lntimidaeao) ; Marat preconiznva "qu'i l
n 'y ai t r ien d 'obscu r, d incertn in, d' arb it ra ir e" em t cma dec rimes epenas, por s er
necessario "que chacun entende parfa itemcnt Ies loix, e t sache ii. quol il s'expose
en les violant" (Plan de legislation criminelle, Par is , 1974, p . 68 ).
46 La formulacidn actual del princlpio nul lum crimen, in Fe en el derecho, B. Aires,
1956, p. 284.
47 Em diversos artlgos, relatorios da DAB e defesas de presos politicos, Heleno
Fragoso se deteve na deminciu da violacuo do princfpio da legal idade pcla criacuo
de t ipos penais vagos e i nde te rminados; c f. Lei de seguranr;a nacional - lim aexperiencia antidemocratica, P. Alegre, 1980; Terrorismo e criminalidade polio
tica, Rio , 1981; Direito penal e direitos humanos, Rio, 1977; Advocacia da
liberdade, Rio, 1984 . Sobre a legis lucf lo de s egu ran~a naci onal, no Bra sil , c r.ai nda Eva ri st o de Morais F il ho , A., Lei de seguranr;a nacional -11m atentado a
liberdade, Rio, 1982; Roberto Martins, Seguranca nacional, S. Paulo, 1986; Nilo
Bat is ta , Lei de seguranca nacional: 0 direito da tortura e da morte, in Temas de
direito penal, Rio, 1984, p. 11 55.
78
considerada por muitas como palatavel forma evolutiva das
anteriores, incrimina, em seu artigo 15, "praticar sabotagem
contra instalacoes militares, meios de cornunicacao, meios e
vias de transporte, estaleiros, portos, aeroportos, fabricas,
usinas, barragens, depositos e outras instalacoes con gene-
res" ,estabelecendo seu §.2? a punicao dos ' atos preparatorios
de sabotagem" . Se "praticar sabotagem" configura, ja por si,
urn micleo bastante indeterminado para 0 tipo, seus atos pre-
paratorios sao infinitamente multiformes; por outro lado,
quem, em estado de sanidade mental, sera capaz de definir
"instala~6es congeneres"; a urn so tempo, de uma estrada,
uma fabrica, uma usina e urn deposito?"
Alguns autores deslocam a enfase para a subjetivizacao da
imprecisao do preceito, isto e, para 0aspecto de que 0preceito
deve ser ' 'determinado e especificado de modo tal a fazer ver
claramente ao cidadao a conduta a seguir, e os limites do
proprio livre comportamento "49Tal aspecto, importante sem
diivida, era predominante nas teorias preventivo-gerais, mais
ou menc.- remontaveis a Feuerbach, que se construam a partir
da ideia de' intim ida riio penal; sua crftica devera considerar os
problemas da ineficacia motivadora da norma penal (que per-
tence a criminologia) e da ficcao da presuncao do conheci-
48 Essas e out ras observacoes constarn de urn art igo publicado quando 0anteprojeto
governamental foi rernetido ao Congresso Nucional, Escrevia-se , a li : "0illcito
deve estar per feitarnente dernarcado, a te para adver tencia do cidndao, mas princi-
pnlmente para evi tar sua manipulacno ins idiosa quando dnuplicacf io da lei . Dizer
'punem-se os atos preparatorios da sabotagern' e nao dizer nada, porque cientifi-
c ll r~se do pre . .o de componentes de urn explosivo e urn ato preparat6rio, tanto
quanta cornprar uma f ila udesiva . Quando atos preparutorios de dererminado delito
apresentam suficiente nocividade, 0 Iegislador do estado de direito democnitico
constitui novas delitos (geralmente, de perigo), perfeita e claramente
demarcados' (Ni lo Bat is ta , Para que serve essa boca tao grande? - observacoes
sobre 0anteprojeto guvernarnental da lei de segurant;1I do estndo, in Temas de
direito penal. cit., p. 34 55).
49 Petrocelli, Appunti Sill principia di legal it« nel dir it to penale, in Saggi 2~serie,
cit., p. 193. A urna "fun~iio pedngogicu de mot lvar 0 comportamento" se refere
Toledo (op. cit., p. 28).
79
5/16/2018 Nilo Batista - Introdu o Cr tica ao Direito Penal Brasileiro - slidepdf.com
mento da lei (que e estudado na teoria do crime, ao tratar-se do
erro). De qualquer modo, 15correto extrair-se, do texto consti-
tucional bnisileiro ("lei anterior que 0 defina"), urn direito
subjetivo publico de conhecer 0 crime, correlacionando-o a
urn dever do Congresso Nacional de legislar em materia crimi-
nal sem contornos sernanticos difusos. Com toda a proceden-
cia se observa, diante das graves medidas restritivas que se
abatem sobre0
acusado num processo criminal, que a criacaode incriminacoes vagas e indeterminadas transcende a viola-
cao do princfpio da legalidade para ofender divers os direitos
humanos fundamentais".
Nao 15permitido, igualmente, tratando-se de penas gradua-
veis, que 0 legislador nao estabeleca uma escala de mereci-
mento penal, com p610s minima e maximo, ou a estabeleca
corn extensao tao ampla que instaure na pratica a inseguranca
jurldica, diante de solucoes radicalmente diferentes para fatos
pelo menos tipicamente assimilaveis, favorecendo urn peri-
goso arbitrio judicial. A individualizacao legal da pena, atra-
ves da criteriosa cominacao - 0 que sup6e uma distribuicao
ponderada de penas (mantendo correspondencia com a maior
ou menor gravidade dos crimes), Iimites (minimo e maximo)
claramente fixados para cada crime, e urn nftido sistema de
atenuacao/agravacao -, abre perspectivas para a fertil mo-
bilidade da individualizacao judicial, com a consideracao da-
que/a conduta humana na aplicaco da pena, e garante em tese
os limites e 0 sentido da individualizacao administrativa,
quando deveri a ocorrer, na execucao da pena, a mais pr6xima
e frutuosa consideracao daquele homem. A individualizacao
da pena tern, no Brasil , 0status de garantia individual expres-
samente contemplada (art. 5?, inc. XLVI CR). A clareza na
.cominacao da pena, desse modo, expande os efeitos do princi-pio da legalidade, impedindo sua violacao no nlvel da aplica-
50 Zaffaroni, Si st emas penale s y derechos humanos en Ameri ca Lat ina - in fo rme
final, B. Aires, 1986, p. 16.
80
r,;ao e da execucao, sem negar - antes, reafirmando, pela
positividade juridica - a ideia de individualizacao. .
'E possivel distinguir, como fez Zaffaroni", algumas mo-
dalidades mais freqiientes de violacao do principio da Jegali-
dade pela criacao de incriminacoes vagas e indeterminadas, tal
como se segue.
a) Ocultaciio do nticleo do tipo, 0 verbo que exprime a
acao, nos crimes comissivos dolosos, pode ser chamado demicleo do tipo penal correspondente. Esse verba pode estar
oculto par completo, como no art. 110 do decreto-Iei n?73, de
21.nov .6652, ou pode ocultar-se arras de outro verbo que de-
note tao-somente urn agir vago e indeterminado, como no
artigo 240 CpS3 . Quase sempre, tais vfeios sao devidos ao
equivoco observado por Soler: ter sido a tipo "construfdo
sobre a consequencia"'" e nao sobre a acao. Veja-se, par
exemplo, 0 artigo 149 CpS\ inteiramente construfdo sobre 0
resuItado lesivo da Iiberdade individual que pretende tutelar.
b) Emprego de elementos do tipo sem precisi io semiintica.
o que sera exatamente 0 estado de "perigo mora!" do artigo
245 CP, a u a "casa mal-afamada" a qual nao se deve permitiro acesso do menor de 18 anos, que nela podera conviver com
"pessoa viciosa ou de rna vida", e talvez assistir a urn
"espetacul0 capaz de perverte-lo " (art. 247, inc. 1e lI CP)?
51 S is temas . .. - i nf orme f inal, cit., p. 17.
52 "Const it ui cr ime contr a a economi a popu la r, pun ivel de acordo com a legi slucao
rcspectivu, a l ll ,' aO OU ornissilo, pessoal ou coletiva, de que decorra a insuficiencia
das reservas e de sua cober turu, vinculadas it guruntia das obrigucoes das sociedu-
des s cgu rudorus. " Ess a norma v io la 0 princlpio da lcgul idude tarnbem quanto it
pena, j;l que a Iegls lacao de econornia popular (lei n~'1.521, de 26.dez.51) preve
e scal as penais d ife rente s para d ife rcnte s cr imes. nao se podendo prccis ar a qua ldelas quis referir-se 0 rcdator do texto aci rna t ranscr ito (que consegue , em auten-
t ico recordc, violar tarnbern 0 principlo da culpubilidude).
53 "Cometer adu l terio " .
54 Op. cit., p. 285. Ensina Bustos que "as normas s o pudern proibir (ou ordenar ou
permi ti r) acocs e mio resul tados" (Bases crhicas de 11111IlIIEIO derecho penal,
Bogo ta, 1982, p . 75) .
55 "Reduz ir al guem a cond icao aruilogu ii de escruvo " ,
81
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56 Zaffaroni, Sistemas . .. - in forme f il ial , cit., p. lB. Fragoso admite que as
elementos normativos "enfraqueccm a fun~ao de guruntiu da lei penal", ernbora
niio violern 0principia da legalidade (Lip'ies. c it ., p. 97).
57 Cunha Luna, Capltulos, cit., p. 33; Zaffaroni, Sistemas ... - informefinal, cit., p.
is.
58 Art. 147: "Ameacar alguern, par palavra, escrito au gesto, au qualquer outro
meio simbolico de causur-lhe mal injusto e grave." Art. 226: "A peon e uurnen-tada de quar ta pa rte : ( .. . ) Il- se 0 agente e ascendente, pai adotivo, padrasto,
i rmiio, tutor au curudor , preceptor ou empregador da vit ima au por qualquer outro
titulo t ern autor idade sabre ela ." Dnrnasio reuniu todos as casas que seaprescntam
no codigo pena l br asi le ir o ( op, c it ., p . 39 ).
82
Partindo de elementos da Iinguistica, particularmente de
Saussure, Rosa Cardoso questiona ~alinguagem juridica a
pretensao de estabelecer sentidos originarios e unfvocos para
as expressoes legais, com 0 que a proibicao de incriminacoes
vagas e indeterrninadas tornar-se-ia inviavel, "pela dependen-
cia que a significacao juridica possui de termos que integrarn
campos associativos ausentes em seu discurso "59. 0 exame
dessa atraente contribuicao deve situar-se no campo da inter-pretacao da lei, que integra a teoria da lei penal.
59 Op. cit., pp, 105, B6, 97 55. Cf. Kaufman , op. c it ., p . 40
83
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o principio da intervencao minima foi tambern produzido
por ocasiao do grande movimento social de ascens~o da bur-
guesia, reagindo contra 0 sistema penal do absolutIsmo,.que
manti vera 0 espiri to minuciosamente abrangente das legis la-
c:;6esmedievais. Montesquieu tornava urn episodic da hist6ri~
do direito romano para assentar que "quando urn povo e
virtuoso, bast am poucas penas"; Beccaria advertia que
"proibir uma enorme quantidade de acoes indiferentes nao eprevenir os crimes que del as possam resultar, mas criar outros
novas' 'I; e a Declaracao dos Direitos do Homem e do Cidadao
prescrevia que a lei nao estabelecesse senao penas "estrita e
evidentemente necessarias ' (art . VIII).Tobias Barreto percebera que' 'a pena e urn meio extrema,
como tal e tambern a guerra"2. E, de fato, par constituir ela,
como diz Roxin, a "interven~ao mais radical na liberdade do
indivfduo que a ordenamento juridico permite ao estado"\
entende-se que 0estado nao deva "recorrer ao direito penal e
sua gravfssima sancao se existir a possibilidade de garantir
uma protecao suficiente com outros instrumentos jurfdicos
I Montesquieu, Do espl ri to das le is , trad. F.H. Cardoso e L.M. Rodriguez. S.
Paulo, 1962, p. 109; Beccaria, op. cit., p. 307.
2 Op. cit., p. 56.
3 Iniciacioll, cit., p. 23.
84
nao-penais'", como leciona Quintero Olivares". 0 conheci-
mento de. que a pena e , nas palavras deste ultimo autor, uma
"soluc:, :3.oimperfeita" - conhecimento que, de Howard' ate a
mais recente pesquisa empfrica, a instituicao penitenciaria s ologrou fortalecer - firmou a concepcao da pena como ultima
ratio: 0 "direito penal s6 deve intervir nos casos de ataques
muito graves aos bens jurfdicos mais importantes, e as pertur-
bacoes mais leves da ordem juridica sao objeto de outros
rarnos do direito"6. 0 principio da intervencao minima naoesta expressamente? inscrito no texto constitucional (de onde
permitiria 0 contrale judicial das iniciativas legislati vas
penais) nem no c6digo penal, integrando a politica criminal;
nao obstante, impoe-se ele ao legislador e ao interprete da lei,
como urn daqueles principios imanerites a que se referia Cunha
Luna", por sua compatibilidade e conexoes Iogicas com outros
principios juridico-penais, dotados de positividade, e com
pressupostos polit icos do estado de direito dernocratico",
Ao principio da intervencao minima se relacionam duas
caracteristicas do direito penal: ufragmentaricdade e a subsi-
diariedade ..Esta ultima, por seu turno, introduz 0debate sobrea autonomia do direito penal, sobre sua natureza constitutiva
ou sancionadora.
4 ln troducc ion al der echo penal, Barcelona, 1981, p. 49.
S John Howard (1726·1790) , sensibi ll zado pela SiIU3~ j j_O das pri soes inglcsas, em-
precndeu uma viagem por i nu m er os p ar se s ( H ul un d u, B e lg ic a, F ra nc a, A l c rn an ha ,
Itallu, Portugal, E sp an hu e Russia), p u bl ic u n do , e rn 1776, urn livro- Tile state of
prisons - que provccou, na Ingla ter ra , a uprovacao de l ei s humanizado ras
(chamadas Howard's act s) , e in spir an do ern iruirneros outros p a rs e s r n cd i da s
semelhantes; alguns autores 0 consideram 0 pa l do "penitenciarisrno".
6 Munoz Conde. lntroduccion, cit., p, 59.
7 Uma republica que tenha como fundamento "a dignidude da pessoa hurnana"
(ar t. I?, inc . ur CR) e como objct ivos a const rucao de "uma sociedade l ivre , jus tae solidaria" e a prornocfio do "bern de todos" (an. 2:', incs, I e IV CR) dcve
cant er, pe lo menos, a i nfl ucuo penal.
8 Op. cit., p . 30.
9"0 principio da intervencao minima Sf! converte, assnn, nu m principia politl-
co -cr imi nal limit ador do pode r pun iti vo do es tndo : - Munoz Condc.lmroduc-
c i o ? , cit., p. 71.
85
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rica "inflacionaria", como a denominou Bricola, pede questio-
nar 0princfpio cia intervencao mfnima".
As relacoes que 0 direito penal mantem com outros ramos
do direito sao na verdade relacoes das normas jurfdico-penaiscom
outras normas, da perspectiva de sua validade (par exemplo, a
inc. XLV do artigo 51CR em confronto com tipificacoes que pro-
poem uma responsabilidade penal coletiva, como par exemplo 0§
2!!do artigo 73 da lei 4.728, de 14. jul . 65)29 ou da perspectiva de
sua interpretacao (por exemplo, a conceito privatistico de posseindireta - art. 486 CC - e 0 t ipo da apropriacao indebita - art .
16 8 CP - au do peculate - art. 312 CP). Devem par isso, em
nossa opiniiio, ser estudadas na teoria da lei penal. Conviria ape-
nas remarcar que, alem de suas fungoes de fundamento e contra-
le, 0 texto constitucional seleciona situacoes a serern necessaria-
mente tratudus pelo legislador penal, naqueles cases de bens es-
senciais a vida, a saude e ao bern-estar do povo: chama-se a isso
"imposicao constitucional de tutela penal". Entre nos, a Consti-
tuicao de 1946 empregara em vao 0 termo "repressao" para 0
abuso do poder economico: jamais a legislador ordinario atendeu
it"imposicao constitucional da tutela penal"?". a carater classistada legislacao penal se manifesta tambern na ornissao ou pachorra
da elaboracao legislativa de crimes que podem ser praticados pe-
los membros da classe dominante.
§11
o principia da lesividade
Este principio transporta para o. terreno penal a questao
geral da exterioridade e alteridade (ou bilateralidadei do
direito: ao contrario da moral- e sem embargo da relevancia
juridica que possam ter ati tudes interiores, associadas, como
motivo ou fim de agir, a urn sucesso externo -, a direito
"coloca face-a-face, pelo menos, dois sujeitos" I.No direito
penal, a conduta do sujeito autor do crime deve relacionar-se,
como signa do outro sujeito, 0bemjurfdico (que era objeto da
protecao penal e foi of endido pelo crime - por isso chamado
de objeto juridico do crime). Como ensina Roxin, "so pode
ser castigado aquele comportamento que lesione direitos de
outras pessoas e que nao e simples mente urn comportamentopecaminoso ou imoral; ( .. . ) 0direito penal sopode assegurar a
ordem pacifica extema da sociedade, e alern desse limite nem
esta legitimado nem e adequado para a educacao moral dos
cidadaos' '2. A conduta puramente interna, ou puramente indi-
vidual- seja pecaminosa, imoral, escandalosa ou diferente
- falta a lesividade que pode legitimar a intervencao penal.
No campo dos crimes polfticos, qualquer lei inspirada na
doutrina de seguran~a nacional contern dispositivos viola-dores do princfpio da lesividade, porque perante aquela doutri-
!~e c nic ll e d i n i ve la p e nale , cit., p. 3; cf. Baratta, Integracion - prevencidn: una
"nueva" furulnmentacion de lapenadcntro de la teoria sistcml ca, inDoc t t i na pena l ,
1 3. Ri rc s, 1 9 85 , n " 2 9 , p, n .lJ A l t. 5 ", inc. XLV CR: "Ncnhurna pena passara da pessoa do condenado", Alt.
73, § 2", lei 4 .728 , de 14. jut 65: "A violacao de qualquer dos d isposi tivosconstituini crime de a~ao p ub li ca , p un id o c om penn de I a 3 anos de dctenciio,
r cc ai ud o a r es po ns ah il id ad e, q ua nd o s e t ra ta r d e p e ss oa j ur id ic a, e m t od os a s
seus dire/ores."
. 1 1 1 Nita Batista, Repressao no abuse do poder econorni co" , in Ten ia s de direito
penal, cir., p. 243 SS.Para os "obblighi costituzionali di tutela pcnalc", cf. Bricola,
Tecniche di rille/a penale, cit., p. 9.
J Del Vecchio, op. cit., p. 371; Radbruch, Filosofia do direitn, cit., v. I, p. 115;
Machado Netto, op. ci t., p. 91.
2 Iniciacion, clt., p. 25 e 28.
9 0 91
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na a dissidencia politica toma as cores de i 'inimigo interne" e
provoca "urn processo de criminalizacao " 3 •
Podemos admitir quatro principais funcoes do princfpio da
lesividade.
Primeira: proibir a incriminaciio de lima atitude interna.
As ideias e conviccoes, os desejos, aspiracoes e sentimentos
dos homens nao podem constituir 0 fundamento de urn tipo
penal, nem mesmo quando se orientem para a pratica de urn
crime: 0 projeto mental do cometimento de urn crime
(cogitacao) nao e punfvel (cogitationis poenam nemopatitur}.
Isso nao significa absolutamente que 0 direito penal se desin-
teresse da atitude interna do homem, como ja se vera ao
tratarmos do princfpio da culpabilidade, Antes da perspectiva
da culpabilidade, encontraremos esse interesse no dolo (isto e ,na consciencia e vontade do autor acerca da conduta objetiva
proibida), bern como em intencoes, motivos e certos estados
especiais de animo. Em qualquer hipotese, todavia, e impres-cindfvel que a atitude interna esteja nitidamente associada a
uma conduta externa.
Segunda: proibir a incriminaciio de lima conduta que ndo
exceda 0ambito do proprio autor, Os atos preparat6rios para 0
cometimento de urn crime cuja execucao, entretanto, nao einiciada (art. 14, inc. II CP) nao sao punidos. Da mesma
forma, 0 simples conluio entre duas ou mais pessoas para a
pratica de urn crime nao sera punido, se sua execucao nao far
iniciada (art. 31 CP). Temos ai aplicacoes legislativas dessa
funcao do princfpio da lesividade, que tambern comparece
como fundamento parcial da impunibilidade do chamado cri-
me impossfvel (art. 17 CP). 0 mesmo fundamento veda a
punibilidade da autolesiio ; ou seja, a conduta extema que,
" embara vulnerando farmalmente urn bern juridico, nao ultra-passa 0ambito' do proprio autor, como por exemplo 0suicfdio,
a automutilacao e 0uso de drogas. No Brasil, 0artigo 16da lei
n?6.368, de 21.out.76, incrimina 0usa de drogas, em franca
oposicao ao principio da lesividade e as mais atuais recomen-
dacoes polftico-criminais",
Terceira: proibir a incriminaciio de simples estados all
condicoes existen cia is. Como diz Zaffaroni, "urn direito que
reconheca e ao mesmo tempo .respeite a autonomia moral da
pessoa jamais pode apenar 0 set,' senao 0[azer dessa pessoa,
ja que 0proprio direito e uma ardem reguladora de conduta"5.o direito penal so pode ser urn direito penal da aciio, e nao urn
dire ito penal do autor, como eventualmente se pretendeu. "0
homem responde pelo que faz e nao pelo que e " , frisa CunhaLuna", Com exatidao lembra Mayrink da Costa que "0direito
penal do autar e incompatfvel com as exigencias de certeza e
seguranca juridicas proprias do estado de direito' '1 Isso nfio
significa que 0 sujeito determinado nao interesse de nenhuma
forma. Ao contrario , 0homem e sua existencia social concreta
devern estar no centro da experiencia jurfdico-penal, parti-
cularmente nas areas da culpabilidade e da aplicacao e execu-
c;:aoda pena. 0 que e vedado pelo princfpio da lesividade e airnposicao de pena (isto e, a constituicao de urn crime) a urn
simples estado ou condicao desse homern, refutando-se, pois,
as propostas de urn direito penal de autar e suas derivacoes
mais ou menos dissimuladas (tipos penais de autor, culpabili-
dade pela conduta ao longo da vida, etc). Levada as ultimas
conseqiiencias, essa funcao do principio da lesividade implica
excluir do campo do direito penal as medidas de seguranca,
4 Sobr e e ste u lt imo aspec tc , a inda pol emico ent re nos, d. Hobbing, Peter. Straf-
wiirdigkelt der Selbstverletzung: Der Drogenkonsum ill deutschen und brasilianis-chen Recht, Frankfu rt am Main, 1982; Nil o Ba ti sta , 0prazcr e a lei penal. in
Temas, cit ., p . 304 5S. Cf. ainda Garcfa-Pablos , Antonio. Bases para una pol ft ica
c riminal de la dmga, in La problemdt ica de la droga en Espai ia, Madri , 1986, p.
377 S5.
5 Manual, cit.. p. 73.
6 Op. cit., p . 34.
7 Op. cit., p. 158.Ga rc ia Mendez , E. , Autoritarismo y control social, B. Aires, 1987, p. 106.
92 93
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juridicos imutaveis a espera do legislador, mas ha relacoes
sociais cornplexas que 0legislador se interessa em preservar e
reproduzir. Sao multiples e irredutiveis os aspectos dessas
relacoes sociais, aos quais pode 0 legislador outorgar protecao
penal, convertendo-os em bens juridicos. 0 bern juridico,
portanto, resulta da criacao politica do crime (mediante a
imposicao de pena a determinada conduta), e sua substancia
guarda a mais estrita dependencia daquilo que0
t ipo ou tipospenais criados possam informar sobre os objetivos do legisla-
dor. Em qualquer caso, 0bern jurfdico nao pode formalmente
opor-se a disciplina que a texto constitucional, explfcita ou
implicitamente, defere ao aspecto da relacao social questio-
nada, funcionando a Constituicao particularmente como urn
controle negativo (urn aspecto valorado negativamente pela
Constituicao nao pode ser erigido bern juridico pelo
legislador). Numa sociedade de classes, os bens juridicos hao
de expressar, de modo mais ou menos explicito , porern inevi-
tavelmente, os interesses da c1asse dominante, e 0 senti do
geral de sua selecao sera 0de garantir a reproducao das rela-
~6es de dominacao vigentes, muito especialmente das relacoes
econ6micas estruturais.
o bern juridico cumpre, no direito penal, cinco funcoes: 1~
axiologica (indicadora das valoracoes que presidirarn a sele-
cao do legislador); 2~ sistematico-classificatoria (como im-
portante princfpio fundamentador da construcao de urn sis-
tema para a ciencia do direito penal e como 0mais prestigiado
criterio para 0 agrupamento de crimes, adotado par nosso
c6digo penal); 3~exegetica (ainda que nao circunscrito a eta, einegavel que 0bern juridico , como disse Anfbal Bruno, e "0e1emento central do preceito" , constituindo-se em importante
instrurnento metodologico na interpretacao das normas jurfdi-co-penais); 4~ dogmatica (em imirneros momentos, 0 bern
jurfdico se oferece como uma cunha episternologica para a
teoria do crime: pense-se nos conceitos de resultado, tenta-
tiva, dano/perigo, etc); 5~critica (a indicacao dos bens juridi-
cos permite , para alem das generalizacoes legais, verificar as
I concretas opcoes e finalidades do legislador, criando, nas
palavras de Bustos, oportunidade para" a participacao crftica
~os cidadaos em sua fixacao e revisao")".
12 Anibal Bruno, op. cit ., v. I, t. I, p. 16; Bustos,/nrroduccion, cit., p. 31;Angioni,
Francesco, Contenuto efunzioni del concerto di bene giuridico, Miliio, 1983, pp.
6, 11,14, 195; Gregori, Giorgio, Saggio sul l' oggeuo giuridico del recto, Padua,
1978, p. 41; Navarrete , M. Pcluino, El bienjuridico en elderecho penal , Sevilha,
1974, pp. 270, 286 55.
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consciente, seja de uma relevante negligencia (como os arti-
gos 18 e 19 CP), devemos compreender que urn longo proces-
so, certamente inconcluso, transformou radicalmente as bases
da responsabilidade penal. ° ponto mais importante desse
processo e a producao historica do princfpio da culpabilidade .
.0 principio da culpabilidade deve ser entendido, em pri-
metro lugar, como repiidio a qualquer especie de responsabili-
dade pelo resultado, ou responsabilidade objetiva. Mas deve
igualmente ser entendido como exigencia de que a pena nao
seja infligida senao quando a conduta do sujeito, mesmo asso-
ciada causalmente a urn resultado, the seja reprovavel, Vol-
tando ao exemplo do pedreiro, isso representaria que 0desaba-
men to so funcionaria como urn limite exterior preliminar e que
seria indispensavel verificar se 0 pedreiro reprovavelmente
quis a morte do morador e seu filho, predispondo nesse sentido
sua construcao, ou quis 0 desabamento - tambern predis-
pondo nesse sentido a sua construcao - ainda que nao quises-
se diretamente a morte provavel do morador e seu filho ou
construiu a casa com imperfcia inescusavel. Para alern de
simples laces subjetivos entre a autor e a resultado objetivo desua conduta, assinala-se a reprovabilidade da conduta como
micleo da ideia de culpabilidade, que passa a funcionar como
fundamento e limite da pena. As relacoes entre culpabilidade e
pena constituem materia polernica, que integra a teoria do
crime, onde a estrutura e as funcoes dogrnaticas da culpabili-
dade, seja na economia do crime, seja na fundamentacao da
pena, sao minuciosamente examinadas'.
§ 13
o principio da culpabilidade
Numa antiga legislacao da Babi16nia, editada pelo rei
Hammurabi (1728-1686 a.C,), encontramos que, se urn pe-
dreiro construfsse uma cas a sern fortifica-la e a mesma desa-
banda, matasse 0 morador, 0 pedreiro seria morto; mas se
tambern morresse 0 filho do morador tambern 0 filho do
pedreiro seria morto. Imaginemos umjulg~ento "rnodernizado"
desse pedreiro: de nada lhe adiantaria ter observado as regras usuais
nas consr rucoes de uma casa, ou pretender associar 0desabamento a
urn fen6meno sfsrnico natural (uma acomodacao do terreno, par
exemplo) fortuito e imprevisivel, A casa desabou e matou 0
morador: segue-se sua responsabilidade penal. .Nao deixemos de
imaginar, igualmente, 0julgamento do filho do pedreiro. A casa
construfda por seu pai desabou e matou 0morador e seu mho:
segue-se sua responsabilidade penal. A responsabilidade penal,
pois, estava associada tao-so aurn fato objetivo enao seconcentrava
sequer em quem houvesse determinado ta l fato objetivo. Era, pois,
uma responsabilidade objetiva e difusa.
Quando lemos hoje, na Convencao Americana sobre Direi-
tos Humanos (artigo 5, 1, 3) ou em nossa Constituicao (artigo5?, inciso XLV), proibicoes de que a pen a ultrapasse a pessoa
do delinqilente, au quando encontramos no C6digo Penal
regras que nao so, relacionando-se aquelas proibicoes, cir-
cunscrevem a imputacao objetiva de resultados (como 0art. 13
CP), mas tambern exigem a intervencao seja de uma vontade
I Urna quesuic , ent re tanto, rnerece ser refer ida desde logo, por vincular-se 11pol it ica
criminal. Que tuda pena correspondu a uma previa culpabi lidade, niio hii duvida:
que, reconhecida a culpabi lidadc, devu inexoruvelmente scgui r-se a pena, e hojcquest ionado. Fala-se , a respeito, em concepcocs bilateral e uni la tera l deculpabil i-
dade . Roxin , que s e incl inu pela concepcao unila ter al , a cr cdi ta que 0 caminho
consistiria em remeter IIculpabilidade (responsubilidade) a urn conceito superior
de "r esponsabi li dade", que se ria in tegrudo pelo s " pr cssuposto s p reven tives de
necessidade da pena" (Culpabil idad y prevencion en derecho penal , tmd. Munoz
Conde, Madri , 1981, p. 193). Corn rescrvas acercn de urna pena infer ior u medida
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E m p rim eiro lu ga r, p ois , a p rin cfp io d a c ulp ab ilid ad e impoe a·
subjetividade da resp on sa bilid ade p en al. N ao c abe, em direito pe-
n al, u rn a re sp on sa bi lid ad e o bj etiv a, d eri va da ta o-s o d e u ma a ss oc ia -
~ ao c aus al en tr~ a c on du ta e u rn resu lta do d e les ao o u p erig o p ara urn
b em ju rf di co . E in di sp en sa ve l a c ulp ab ili da de. N o n iv el d o p ro ce ss o
penal, a exigenc ia de provas quan to a esse aspec to conduz ao
afo rism a "a culpabilidade nao se presum e", que, no terreno dos
c ri me s c ulp os os ( ne glig en tes ), n os q ua is a s r is co s d e u ma c on si de ra -~ ao puram ente causal en tre a con duta e a resultado sao m aio res,
fi gu ra c om o c on sta nte e stri bilh o e m d ec is 6e s j u d ic ia is ;.' 'a c ulp a n ao
se p resum e" . A res po nsa bilida de pen al e sempre subjetiva.
Em segundo lugar, tem os a personalidade da responsabilidade
penal, da qual derivam duas conseqiienc ias: a intranscenden-
cia e a individualizactio da pena. A intranscendencia im pede q ue a
p en a u ltra pa ss e a p es so a d o a uta r d o c ri me ( au , m a is a na li ti ca me nte ,
do s autares e partic ipes do crim e) . A responsabilidade penal e
sempre pessoal. Na o ha , n o d ir ei to p en a l, r es po n sa bi li da de c o le ti va ,
subsidiaria, solidaria ou sucessiva', Nada pode, ho je, evocar a
i nf am ia d o re u q ue s e t ra ns mi ti a a s eu s s uc es so re s. A i ntr an sc en de n-
c ia d a pen a c olo ca a q uesta o d a fa milia d o c on den ad o p ob re (art. 5~ ,
in c. X LV C R) , e fu nd am en ta a existen cia , n o s is tem a d e s eg urida de
s oc ia l, d e urn " aux flio -rec lu sa o" , P ar individuolizadio s e e n te n de
a qu i e sp ec ia lm en te a i nd iv id ua li za ca o j ud ic ia l, o u s ej a, a e xi ge nc ia
da eulpabi lidade, ernbora udmit indo que 0 cariiter bil~teral irnpositivo da relaciio
tern 0 s abo r de i ndemonst ravel p rof is sao de f e, J escheck, op . cit., p. 32.
2 0 art, 73, § 2~da le l 4 .728 , de 14.j u1. 65 , t ransc rit o na no ta 29do § 12, e urn bornexernplo de norma penal que viola 0princfpio da culpabi lidade e e inconstitucio-nal, A re sponsab ili dade "sucess lvn" da I ei de imprensa (a rt . 37s s da le i 5 .250 , de
9 .fev.67) , t radic iona l em nosso d ire it o, f oi h is to ri camen te c riada e rn favor da
l iberdade de imprensa, subtraindo- lhe a mater ia da discipl lna extensiva doconcur- .so de agentes do direito penal cornum. Ao inves de respondercm todos os
"causantes", ainda que "culpaveis" ~ autor, instigador, tipografo, do·no da
t ipografla, edi tor, diretor dojornal , t ransportador , vendedor, e tc . - s6 urn deles
responderia (em princlpio, 0autor), e, ern sua defeccao, s6 out ro, e ass lm, dentro
das regras legais, sucessivamente. Mas e claro que 0principle da culpabilidade
nao prescinde de que 0 •responsiivel" pela ordern de sucessao legal seja tnmbern
subjetivamente responsiivel.
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d e q ue a p en a a plic ad a c on sid ere a qu ela pes so a c on creta a q ua l s e
destin a, N este cam po, a tem a m ais atual e a cham ada co-culpabili-
dade. Trata-se de con siderar, no jufzo de reprovabilidade q ue e a
e ss en ci a d a c ulp ab ili da de , a c on cre ta e xp er ien ci a s oc ia l d os re us , a s
opo rtun idades q ue se lhes deparararn e a assisten cia q ue lhes fo i
m in istrad a, c orrela cio na nd o su a p r6p ria resp on sa bilid ad e a u ma
re sp on sa bi lid ad e g era l d o e sta do q ue v ai i mp or -lh es a p en a; e m c erta
m ed id a, a c o-c ulp ab ilid ad e fa z sen ta r n o ba nc o do s reu s, a o l ad o do s
m esm os reus, a soc iedade que os produziu, com o queria Ern st
B lo c h] . C omo diz Z affa ro ni, " rep ro va r c om a m esm a in ten sida de a
pess oa s q ue o cup am s itu ac oes d e p rivileg io e a o utra s q ue se a ch am
e m s itu ac ao d e e xtr em a p em ir ia e u ma c la ra v io la ca o a o p ri nc ip ia d a
igu alda de c orreta men te en ten did o:" . " 0 direito rea Im en te ig ua l"
- anota Cirino ' - "e a que considera desigualm ente individuos
c on creta men te d esig ua is" . 0 a rtig o 5 ?, in ciso 1 d o c odig o p en al d a
R epu blic a D ern oc ra tic a d a A lem an ha , de 1 968 , a bre a s p orta s a ess a
o rien ta ca o: " um a a !;a O e c om etida de fo rm a rep ro va vel q ua nd o seu
a uto r, n ao o bsta nte a s p os sibilid ad es d e u ma c on du ta so cia lm en te
a da pta da q ue lh e te nh am s id o o fe re cid as , r ea li za , p ar a to s ir re sp on -
s av ei s.o s e lem en to s le ga lm en te c on sti tu tiv os d e u rn d eli to a u d e u rncr ime".
3 Op. cit., p, 261.
4 Sistemas penales ... - informe final. ci t. , p. 58 ; c f. ta rnbem Politica criminal
latinoamericana, cit., p. 161 SS.
5 Dlrei to penal , c it ., p . 219 .
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de dire i to objetivo postas ( ... ) pelo mesmo estado, e por ele
s6" 10 De fato, atribuir a auto-obrigacao jurfdica, que carac-
teriza 0 estado 'de direito, os matizes de faculdade e inquietan-temente metaf6rico. Por outro lado, 0 dever (indisponivel e
inalienavel por urn lado, e limitado e vinculado por outro) da
persecucao penal que cabe ao estado, enquanto agente histori-
co do que Weber chamaria de monop6lio do poder punitivo
legftimo, e algo extremamente distinto de umafaculdade de
agir, ainda que se a designasse por dever de agir,
Nao e menos problematic a a elaboracao te6rica da
"obrigacao jurfdica". Descarte-se, desde logo, a ideia bin-
dinguiana de urn vago dever generico, sem conteudo fixado,
de obediencia a lei penal, hoje inaceitavel, como lembra
Bettiol". Nao obstante, 0mesmo Bettiol admite uma obriga-
c;;aodo indivfduo de abster-se da pratica do crime", 0que vern
a ser rigorosamente a mesma coisa. Essas contradicoes Ie-
varam a que se tentasse elaborar a "obrigacao jurfdica' como
"obrigacao de sofrer a pena", 0que em verdade levou a uma
agravacao das dificuldades. Como disse Antolisei, "0 reu nao
tern 0dever de submeter-se a pena, e sim e a ela submetido' '13.
A nenhuma intervencao da vontade do reu (au seja, 0 carater
juridicarnente necessaria da pena) e a inexistencia de sancao
para a "inadimplencia" question am igualmente uma
"obrigaC;;ao de sofrer a pena"14. Apropriadamente dizia Ani-
bal Bruno que" se 0poder do estado de assegurar as condicoes
de vida social nao pode ser equiparado a urn direito subjetivo,
menos ainda a submissao do reu a pena pode ser tom ada comocumprimento de uma obrigacao jurfdica' '15.
Lembra Vernengo que "a nocao de direito subjetivo e iitilquando podemos identificar urn credor frente a urn devedor de
uma obrigacac' 16,0que, de resto, e perfeitamente compatfvel
com sua aparicao historica enquanto "rnanifestacao da tecnica
juridica do sistema capitalista moderno que tern por fim permi-
tir urn certo tipo de troca" 17. De fato, confundido no dire ito
objetivo (se base ado nas teorias da vontade ou da garantia), e
simples mente absurdo, como Kelsen IH ressaltou (se baseado na
teoria do interesse), 0 direito penal subjetivo acaba par resul-
tar tecnicamente imitil" e politicamente perigoso".
15 Op. cit., v. I, I. I, p. 21.
16 Curso de teoria gene ra l de l der echo, B. Aires, 1976, p. 230.
17 Miaill e, op. c it., p. 144.
18 "No casu de urna san~[io penal, nuo pode ser um interesse nem, portanto, um
direi to dougente aquilo que e protegido pelo dever de 0punir que impende sobre 0
orgiio apl icadordo direi to" - escreve Kelsen, levando as i il ti rnas conscqi iencius
o canit er r ef lexo do d ire it o subj etivo como in te res se ju rid ic ament e p ro tegido
tTeor ia pll ra do direito, t rud. 1 .B. Machado, Co imbr a, 1962 , p. 258} .
19 A ele serefere Tercio Sumpaio Ferraz Jr, como "Imprecisa meuiforu" ilntroduciio
ao estudo do dlrei to , S. Paulo, 1988, cd. At la s, p . 143) .
20 A ide ia deju s puniendi, particulurmcnte quando referida ao momenta legislative
(e sobrevive assirn em inumeros trabalhos brasileiros, como vimos), trunsforma-se
no eixo de uma concepcao nutor itar ia do estado, 0 estado realiza uma "prodigiosa
acumulacflo de meios de coa~iio corporal" (Poulantzus, a estado . .. , cit ., p . 90) ,expressa na "centralizacllo excludente de seu aparato politico de poder c
violenciu" (Bustos, Introduccion, cit ., p . 25) . Ncgar urn direi to penal subjetivo,
a inda que pela s f ormu las do imperium ou "poder de dominaeao do estado" {A.
Bruno, op. cit., v. I, t. I, p. 22}, ou do "utributo da soberania" (Manzini,
Trattato, ci t. , v . I , p . 81), ou deu rn "poder j ur fd ico" (An tol is ei , op. c it., p . 38) , echamar a ulen.yiio para a lndeclinabilidade da regulacao juridico-ohjetivn do poder
penal estntal , bern como abr ir asperspectivas para 0cxame das relacoes socia ls em
cuja preservaclio e reproducdo estd comprometido 0 estudo, Bern ao contrar io de
urn direito penal subjetivo (direito publico subjetivo do estado), os direitos subjeti-
vos publicos dos indivfduos, que vieram a inscrever -se nos documentos internu-
cionais como direi tos hurnanos fundamental s e nas const ituicoes como garantias
lOOp . ci t. , p. 115.
11 "A doutr ina e agora concorde em considerar que nao existe uma obrigucao de
observur as normas penais, de obedece-las, obrigu.yiio iIqual deveria corresponder
u rn d ire ito do es tado iI obediencia" - Bettiol, op. cit., p. 194. "Urn direito
gener ico de obed ienc ia, s cm conteudo , n fio ex ist e" - F ragoso, Ob je to do c rime ,
in Direi to penal e direi tos humanos , cit., p. 54. Em Licoez, cit ., p . 276, Fragoso
nao obs tan te ad ini te e ss e "deve r de obser vii nc i a do comando" .
12 Op, cit., p. 201.
13Manuele di diriuo penale, P.G., Milao, 1969, p. 37.
14 Est e u lt imo a rgumento , u sado por An tol is ei ( op. ci t. , p . 38) , deve se r r ecebi do
entre nos com reservas, porque embora a simples fuga iI execucao da pena
p ri va tivu de li be rdade nao cons ti tua c rime , a v io lncao da penn de in te rd lcao de
d ir ei to s const it ui u rn c rime cont ra a udmin ist ra ciio da ju sti ca (a rt . 359 CPl.
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