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NIETzSchE E ESPINOSA: fUNdAMENTOS PARA UMA TERAPUTIcA dOS
AfETOS
adriana belmonte moreira*
Resumo: Neste artigo, partindo de uma anlise dos conceitos de
corpo e potncia presentes nas filosofias de Nietzsche e Espinosa,
objetivamos mostrar que ambos os
filsofos, alm de fazerem uma crtica aos valores transcendentes,
afirmam a necessidade
de criao de novos valores e mostram que para que uma tica
afirmativa da vida seja
possvel h, antes de tudo, a necessidade do aumento de potncia da
totalidade corpo/mente, obtido atravs de uma teraputica fundada na
dinmica afetiva. Considerando que tanto Nietzsche quanto Espinosa
recorrem ao mesmo afeto, o da alegria, para a cura da impotncia e
apresentam uma teraputica de carter estritamente pessoal, recusando
a criao de uma tica normativa, conclumos que uma teraputica que
objetiva realmente promover sade deve ser um processo
essencialmente afetivo, pautado em escolhas e aes salutares
prprias, e no uma moralizao dos atos da vida cotidiana, operada
pelos manuais de psicologia do comportamento e de higiene
coletiva.Palavras-chave: corpo sade - potncia - teraputica
afetividade
Neste artigo realizaremos uma anlise dos conceitos de corpo e
potncia presentes nas filosofias de Nietzsche e Espinosa, de modo
a
desenvolver a ideia de uma teraputica fundada na dinmica
afetiva, porque acreditamos que ambos os filsofos, alm de fazerem
uma crtica aos valores
transcendentes e afirmarem a necessidade de criao de novos
valores1, tambm mostram que para que outra tica seja possvel h,
antes de tudo, a necessidade do aumento de potncia da totalidade
corpo/mente, obtido
* Doutoranda em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e
Cincias Humanas da Universidade de So Paulo (FFLCH/USP).
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atravs de uma teraputica dos afetos. Em nosso percurso,
apresentaremos alguns pontos de convergncia e de divergncia
existentes entre os filsofos2, sem deixar de supor a significativa
influncia do pensamento de Espinosa na
filosofia nietzschiana. Recorreremos fundamentalmente tica de
Espinosa e aos textos de Nietzsche do chamado ltimo perodo de sua
produo filosfica (1883-1888), includos os fragmentos pstumos3. Isto
porque nesses escritos Nietzsche apresenta o corpo como uma
estrutura social de impulsos e afetos que lutam incessantemente
para aumentar sua potncia, subjugando outros conjuntos afetivos. A
seu ver, mesmo a alma deve ser remetida a este registro, j que no
se distingue substancialmente do corpo. J Espinosa, na tica,
apresenta o corpo como uma estrutura complexa composta de outros
corpos, e a mente como idia do corpo e idia da idia do corpo. Mente
e corpo definidos como modos finitos dos atributos
de uma nica substncia, Deus. Modos estes que, em sua essncia,
tambm podem alcanar diferentes graus de potncia. Assim, embora um
aposte num monismo da substncia, em seus atributos e modos, e o
outro recuse qualquer perspectiva substancialista (seja monista ou
dualista), tanto Espinosa quanto Nietzsche apresentam o corpo e a
alma ou mente como uma totalidade afetiva, entendida como uma
multiplicidade compondo um todo, e nos fazem pensar a sade como um
processo contnuo de busca por aumento da potncia de ao deste
conjunto, que pode ser facilitado por uma teraputica fundada na
forma como se processa a dinmica de nossos afetos.
Com efeito, segundo a metafsica espinosana, o corpo uma
modificao, um modo, do atributo divino extenso, que, com a
mente,
modo do atributo pensamento, compe a natureza humana. Na tica,
Espinosa apresenta o corpo como uma coisa singular, um indivduo
complexo, porque composto de outros corpos, que juntos concorrem
para uma mesma ao. Cito: se vrios indivduos contribuem para uma
nica ao, de maneira tal que sejam todos, em conjunto, a causa
de
um nico efeito, considero-os todos, sob este aspecto, como uma
nica coisa singular (Espinosa 15, EII Def.7). Ou seja, o que
garante que este composto constitua uma singularidade , primeiro,
que o conjunto das partes seja a causa nica de um efeito; e,
segundo, que haja um equilbrio
interno na proporo de movimento e repouso das partes que o
compe, j que sua conservao depende desta proporcionalidade. J a
mente, Espinosa a define como idia do corpo e idia da idia do
corpo, isto
, ela conscincia das afeces do corpo, das alteraes pelas quais
ele passa para conservar seu equilbrio, alm de ser conscincia de si
mesma. E, embora no haja uma relao causal entre mente e corpo, j
que nem o corpo pode determinar a mente a pensar, nem a mente
determinar o corpo ao movimento ou ao repouso (Cf. Espinosa 15,
EIII P2), h uma
simultaneidade (ou paralelismo) do que ocorre em ambos, de modo
que a ordem ou encadeamento do que ocorre no corpo simultnea ordem
do que ocorre na mente, no significando com isto que haja uma
relao
causal a posta (Cf. Espinosa 15, EIII SP2). Assim, na medida em
que o
corpo se esfora para conservar a proporo de movimento e repouso
de seus constituintes, a mente tambm procura perseverar em seu ser,
atravs das idias que produz (Cf. Espinosa 15, EIII SP9). O conatus,
presente tanto na mente quanto no corpo (seja como vontade, apetite
ou desejo), seria justamente este esforo pelo qual cada coisa
procura perseverar na existncia. E esta potncia de persistncia no
ser, como parte da potncia infinita de Deus, no seria seno a
essncia atual da prpria coisa (Cf.
Espinosa 15, EIII DP7).Com isso, atravs da noo de conatus,
Espinosa identifica
essncia e potncia de existir, agir e pensar; definindo tambm a
potncia
do modo como um certo poder de afetar e ser afetado. Enquanto a
essncia permanece a mesma, a potncia varia negativa ou
positivamente, pois modulada pelas afeces das quais sofre o corpo
no encontro com outros
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corpos e pela conscincia destas afeces na mente, ou seja, pelas
idias que produz. O afeto seria ento, simultaneamente, afeco e idia
desta afeco: Por afeto compreendo as afeces do corpo, pelas quais
sua potncia de agir aumentada ou diminuda, estimulada ou refreada,
e, ao mesmo tempo, as idias dessas afeces (Espinosa 15, EIII
Def.3). Se as afeces produzem alegria, nossa potncia de agir
aumentada, caso contrrio, se so causa de tristeza, ela diminui.
Isto , a alegria e a tristeza so afetos passivos ou paixes pelas
quais a potncia de cada indivduo, ou o esforo de perseverar em seu
ser, aumentado ou diminudo. Portanto, a alegria e a tristeza so o
prprio desejo ou apetite, enquanto ele aumentado ou diminudo,
favorecido ou reduzido por causas exteriores (Espinosa 15, EIII
DP57). Ento, podemos dizer que Espinosa apresenta a totalidade
corpo/mente como esta potncia imanente (ou conatus), capaz de
variao positiva e negativa, aumento ou diminuio, traduzida pelos
afetos alegres ou tristes. A alegria, ento, seria o sentimento que
experimentamos quando nossa potncia de agir aumenta, e a tristeza o
efeito de um encontro com outros corpos, indivduos ou coisas, que
diminui nossa potncia de agir. Em resumo, para Espinosa, todos ns
somos dotados de uma potncia de agir, sendo que na interao que
temos com o mundo encontramos coisas que favorecem ou criam
obstculos ao pleno exerccio dela. Se o que nos afeta causa de
alegria, fazemos um bom encontro (occursus), e isto satisfaz nosso
desejo (no como desejo de alguma coisa, como se esta ao tivesse uma
finalidade determinada, mas como a afirmao da prpria
potncia ou fora de existir), caso contrrio, fazemos um mau
encontro, se o que nos afeta nos entristece e frustra o nosso
desejo ou nossa potncia de agir ou fora de existir (Cf. Espinosa
15, EIII SP39).
Em Nietzsche, como em Espinosa, o corpo definido como
uma multiplicidade, mas, para o filsofo alemo, uma
multiplicidade
disposta hierarquicamente, em constante luta por intensificao
de
potncia, e no por conservao como equilbrio esttico de suas
partes constituintes. Em oposio conservao, Nietzsche prope a
superao como o carter prprio da vida, ela mesma identificada
vontade de
potncia4. Da, sua crtica idia espinosana de esforo do vivente
para autoconservao: Antes de tudo, o vivente quer dar vazo a sua
fora - a prpria vida vontade de potncia -: a autoconservao somente
uma das conseqncias indiretas e mais freqentes disso. - Em suma:
aqui, como por toda parte, cuidado com princpios teleolgicos
suprfluos! - tais como
o impulso de autoconservao (que se deve inconseqncia de Espinosa
-). Assim, com efeito, o ordena o mtodo, que tem de ser
essencialmente parcimnia de princpios (Nietzsche 8, JGB/BM, 13).
Com efeito, por ser essencialmente caracterizado por relaes de
domnio, o corpo pode ser visto sob o prisma da vontade de potncia,
j que cada elemento que o constitui luta indefinidamente com os
demais para ganhar fora e
subjugar os outros que, igualmente, querendo vir-a-ser mais
fortes, lhe opem resistncia. Mas, alm da noo de vontade de potncia,
Nietzsche tambm usa os termos impulso (Trieb), afeto (Affekt) e,
por vezes, instinto (Instinkt), de modo intercambivel, quando quer
tratar dos elementos que compem a totalidade corpo/alma. Em Para
Alm de Bem e Mal, ele define a alma como uma estrutura social de
impulsos e afetos (Cf. Nietzsche 10, JGB/BM 12), e o corpo como uma
estrutura social de muitas almas
(Nietzsche 10, JGB/BM 19). Com isso, ele evidencia que todo
corpo quer, sente e pensa; e, a pequena razo, que chamamos alma ou
esprito,
teria apenas um carter instrumental, seria apenas um brinquedo
desta grande razo que o corpo: Todo eu sou corpo e nada mais; a
alma no
mais que uma palavra que designa uma parte do corpo (...) Essa
pequena razo que tu chamas de esprito, meu irmo, um pequeno
instrumento do teu corpo e um brinquedo da tua grande razo
(Nietzsche 7, Za/ZA, Dos desprezadores do corpo). Logo, o corpo,
assim com a alma que no
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seria mais do que uma parte dele, considerado uma estrutura
social de impulsos ou afetos que, longe de buscarem um equilbrio
interno, esto em luta constante por aumento de potncia, em analogia
a uma comunidade onde so estabelecidos processos de dominao, relaes
de mando e obedincia (Cf. Nietzsche 10, JGB/BM 19).
Ademais, na filosofia nietzschiana as idias de potncia,
superao,
criao, sade e alegria andam juntas. Se em Espinosa, a alegria
depende dos bons encontros e est relacionada ao aumento da nossa
potncia de agir, em Nietzsche, a felicidade tambm est relacionada
ao sentimento de uma potncia que se eleva devido a uma resistncia
superada: O que a felicidade? O sentimento de que uma potncia
cresce, de que uma resistncia foi vencida (Cf. Nietzsche 6, AC/AC
2). Relacionada alegria,
a elevao da potncia do corpo encontra-se associada ao simbolismo
da dana5, pois, metaforicamente, Nietzsche apresenta a luta entre
os afetos como um ensaio de novas coreografias prprio da vida. Se a
potncia
do corpo est elevada porque a dana dos afetos est caracterizada
pelo dinamismo e pela mudana de formas, se est diminuda, porque os
conjuntos afetivos encontram-se desorganizados, no conseguindo
compor um bailado harmonioso. No primeiro caso, quando o corpo est
mais ativo em sua dana, ele experimenta diferentes pensamentos,
sentimentos e quereres e se recria incessantemente; no segundo,
quando
a dana arrefece, ele tende estagnao de suas formas de querer,
sentir e pensar, o que diminui sua potncia criativa. Como este
conjunto afetivo est constantemente se alterando, a elevao de
potncia passa a ser uma condio que continuamente se procura, j que
os processos de diminuio de potncia ou descompasso so inevitveis.
Por este vis, a sade seria a capacidade de manter a dana dos afetos
sempre vivaz, atravs da criao de diferentes coreografias vitais.
Mesmo que a dana arrefea por um tempo,
que o bailado no seja harmonioso, o que importa que ela continue
ativa e supere os perodos de descompasso.
em vista disso que em A Gaia Cincia Nietzsche define a grande
sade como uma sade mais alegre que supera a doena, em oposio
pequena sade, que no a suporta. Entendida como uma sade que
incorpora perodos de declnio, de dcadence, a grande sade definida
como uma sade que constantemente se conquista e no se tem
permanentemente, por isso mesmo ela uma sade mais forte, mais
engenhosa, mais tenaz, mais temerria, mais alegre, do que todas as
sades que houve at agora (Nietzsche 8, FW/GC V 382). Ou seja, a
grande sade no uma sade perfeita, ideal, entendida como ausncia
de doena, mas como a capacidade que temos de enfrentar a experincia
do adoecimento, que a ns inevitvel, e super-la, fazendo dela uma
oportunidade de criao de diferentes modos de querer, sentir e
pensar. A verdadeira doena, para ele, seria o paralisar-se no
estado crtico, sem conseguir fazer do adoecimento uma experincia
potencializadora. Deste modo, atravs da idia de grande sade,
Nietzsche subverte a concepo corrente de sade, podendo, numa
autodiagnose tipolgica, se considerar um tipo saudvel, malgrado
seus constantes episdios de enfermidade. Tal subverso o que d
sentido ao relato que faz na autobiografia Ecce Homo de seus
episdios de doena, de seus momentos de declnio vital (as dores de
cabea lancinantes, a doena dos olhos, a fraqueza do sistema
gstrico...), mostrando que foi apenas por ser sadio no fundamento
(Cf. Nietzsche 8, EH/EH Porque sou to sbio, 2) que pde, atravs
da experincia da dcadence, olhar a vida atravs de diferentes
pticas, transtrocar perspectivas que, como ele mesmo diz, condio
sine qua non para sua maior tarefa, a de transvalorao dos valores
(Cf. Nietzsche 8, EH/EH Porque sou to sbio, 1).
Vemos tambm que na filosofia nietzschiana estreita a relao
entre vontade de potncia, grande sade e criao de valores, pois a
possibilidade de elevao de potncia a condio ou pr-requisito
para
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a tarefa de transvalorao dos valores, sendo vista como o
pressuposto fisiolgico do tipo saudvel: Para compreender esse tipo,
preciso primeiramente ganhar clareza sobre o seu pressuposto
fisiolgico: o que
denomino a grande sade (Cf. Nietzsche 11, EH/EH, Assim falou
Zaratustra, 2). Dado isto, podemos supor que quando Nietzsche,
no
relato autobiogrfico, diz mostrar como algum se torna o que se
,
ele se refere exatamente ao processo de uma estrutura afetiva ou
de uma configurao fisiopsicolgica saudvel aumentando o seu grau de
potncia,
e em decorrncia disto criando valores outros, que no os
judaico-cristos. Por este vis, at mesmo o tom demasiado
autoafirmativo que Nietzsche
imprime s sees do escrito se explicaria porque a vida nele, como
um tipo dotado de grande sade, pode transbordar. Destarte, podemos
dizer que atravs do relato de suas experincias de vida, Nietzsche
quer mostrar a trajetria de realizao daquilo que prprio ao corpo em
seu grau mximo ou timo (optimum) de potncia. Nas palavras de
Espinosa, da realizao total daquilo que pode o corpo (Cf. Espinosa
15, EIII SP2).
Portanto, analogamente a Espinosa, que considera que corpo e
mente no agem tendo em vista fins, mas operam segundo uma causa
eficiente
interna, isto , por decorrncia necessria de sua potncia, o
conatus; para Nietzsche, a possibilidade efetivada de criao de
distintos valores tambm seria o resultado necessrio do exerccio de
sua potncia elevando-se, como sintoma de sua sade corporal. E assim
como Espinosa no prope uma tica normativa6, transcendente, haja
vista que para ele os valores so criados de modo imanente tendo por
nico critrio o conatus singular, Nietzsche no pretende, na
autobiografia, apresentar um guia de conduta
ou uma nova tbua de valores a ser tomada por lei ou dogma, mas
sim atestar a possibilidade de criao de outras tantas morais por
tipos que, como ele, so dotados de grande sade.
Com efeito, segundo o filsofo alemo, cada um compe sua
prpria
tbua de bens, de acordo com suas necessidades vitais: As
valoraes de uma pessoa denunciam algo da estrutura de sua alma, e
aquilo em que ela v suas condies de vida, sua autntica necessidade
(Nietzsche 10, JGB/BM 268). Por isso, quando, no contexto
genealgico, ele se pe a fazer a anlise diagnstica dos tipos
saudveis ou doentios, so as morais que passam a ser vistas como uma
semitica dos afetos (Zeichensprache der Affekte) (Nietzsche 10,
JGB/BM, 187), e o processo de criao de valores como os sintomas da
sade ou doena dos tipos. Na Genealogia da Moral, ao tratar da
rebelio escrava na moral (Nietzsche 9, GM/GM, I, 10), Nietzsche
apresenta uma tipologia ou caracteriologia composta por tipos
fortes e fracos, representados pelos nobres e pelos escravos, e uma
sintomatologia pautada na atividade e na reatividade vitais. Nesse
contexto, ele fala do carter reativo e no ativo do processo de
criao de valores do tipo fraco, e do carter necessariamente ativo
do tipo forte, que valora a partir de uma atitude afirmativa (ns
nobres, ns bons, ns belos, ns
felizes!) e no sabe separar a felicidade do agir: o estar em
atividade por eles includo e computado, com necessidade, na
felicidade (Nietzsche 8, GM/GM. I, 10). O tipo fraco, reativo, ao
invs de criar valores a partir de um olhar afirmativo para si
prprio, precisa negar os valores j criados pelo
tipo forte: a moral dos escravos precisa sempre, para surgir, de
um mundo oposto e exterior, precisa, dito fisiologicamente, de
estmulos externos para
em geral agir - sua ao , desde o fundamento, por reao (Nietzsche
8, GM/GM. I, 10). , portanto, por reao e oposio aos valores dos
fortes que os fracos compem a sua tbua de valores, seu bom e seu
mau. Destarte, se as caractersticas do tipo forte so a atividade e
a felicidade, as marcas do tipo fraco, dos impotentes, oprimidos,
ulcerados de sentimentos venenosos e hostis, so a reatividade e uma
sensao artificial, fictcia
de felicidade, porque sempre atrelada condio de infelicidade
dos
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inimigos. Para este tipo, avaliado fisiopsicologicamente, a
felicidade no
se vincula ao, mas passividade, j que ela aparece essencialmente
como narcose, ensurdecimento, tranqilidade, paz, sabbat, distenso
da mente e extenso dos membros, em suma, passivamente (Nietzsche 8,
GM/GM. I, 10).
Ora, as noes de atividade e passividade nos remetem diretamente
filosofia de Espinosa. Isto , se em Nietzsche podemos dizer que h
uma
tipologia ou caracteriologia, composta por tipos doentios ou
saudveis, passivos ou ativos; em Espinosa, a tipologia7 se refere a
disposies atuais de corpo, estados de transio de momentos de maior
passividade para uma maior atividade da totalidade corpo/mente.
Lembremos que, segundo Espinosa, corpo e mente so potencializados e
despotencializados conjunta e simultaneamente, ao contrrio da
tradio que mostra uma alma ativa num corpo passivo e uma alma
passiva num corpo ativo. De outro modo, na filosofia espinosana,
atividade e passividade esto relacionadas,
respectivamente, com a adequao e inadequao das idias. Com
efeito, quando Espinosa trata especificamente da mente, esclarece
que ela tanto
mais passiva quanto mais idias confusas e inadequadas tem, e
ativa na medida em que tem maior nmero de idias adequadas ou claras
e distintas (Cf. Espinosa 15, EIII CP1). Alm da relao com a adequao
e a inadequao, para ele, a atividade da mente tem uma relao direta
com o afeto da alegria, pois quando a mente concebe a si prpria e
sua potncia de agir, ela se alegra (...). E a mente necessariamente
considera a si prpria quando concebe uma idia verdadeira, ou seja,
uma idia adequada (Espinosa 14, EIII DP58). Portanto, se a mente se
alegra
na medida em que concebe idias adequadas, isto , enquanto age
(Cf. Espinosa 15, EIII DP58), nenhum dos afetos tristes podem ser
referidos a ela enquanto ativa. E enquanto uma mente alegre tem sua
capacidade ou potncia de agir aumentada, uma mente triste tem sua
capacidade de
agir diminuda ou contrariada (Cf. Espinosa 15, EIII DP59).
Ademais, para a mente, a transio da passividade para a atividade
diz respeito sua capacidade de conhecer adequadamente seus afetos,
sendo esta capacidade mesma de conhec-los a maior causa de alegria,
pois quem compreende clara e distintamente a si prprio e os seus
afetos, alegra-se (Espinosa 15, EV DP15). Podemos dizer ento que
para Espinosa a mutao (mutatio) dos afetos passivos em ativos se d
quando o conhecer passa a ser o mais potente, o mais poderoso dos
afetos, pois o conhecer, ou a atividade intelectual, sempre alegre,
podendo mesmo nos conduzir a um estado de liberdade ou beatitude
(Cf. Espinosa 15, EV Praef.).
Alm disso, quando ele trata do aumento ou diminuio da potncia de
agir do corpo humano, diz que essa variao depende das maneiras como
o corpo afeta e afetado por outros corpos externos, pois desse modo
que ele encontra elementos que podem lhe ser teis sua conservao,
preservando as relaes de movimento e repouso que suas partes tm
entre si, evitando atravs disso que ele seja destrudo (Cf. Espinosa
15, EIV P39). Vale dizer que, para Espinosa, nenhuma coisa pode ser
destruda, dada sua positividade e indestrutibilidade intrnsecas, a
no ser por uma causa exterior (Cf. Espinosa 15, EIII P4). Isso
porque cada coisa, enquanto
est em suas foras, esfora-se para perseverar na existncia
opondo-se a tudo que possa vir a suprimi-la (Cf. Espinosa 15, EIII
P6). Esforo que, como vimos, traduzido pela noo de conatus. Mas,
apesar de cada coisa perseverar na existncia, sua fora limitada e
infinitamente superada
pela potncia de causas externas (Cf. Espinosa 15, EIV P3). Em
resumo, no encontramos, internamente ou essencialmente nas coisas,
nada que as possa destruir. Ora, quando Espinosa se refere aos
afetos da tristeza e da alegria tambm desta possibilidade de
destruio ou conservao que ele trata. Ao falar da aptido do corpo
para afetar e ser afetado, ele apresenta o contentamento
(hilaritatem) como uma alegria que concerne totalidade
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corpo/mente, em que a potncia de agir aumentada ou favorecida de
tal maneira que todas as suas partes conservam entre si a mesma
relao de movimento e repouso, e a melancolia (melancholiam) como
uma tristeza que, ao afetar a coisa em sua totalidade, diminui ou
entrava sua potncia de agir e, na mesma lgica, afeta o equilbrio
interno na proporo de movimento e repouso das partes que a compem
(Cf. Espinosa 15, EIII P11;
EIV P42). A melancolia ocorreria, ento, quando uma afeco
sentida,
experimentada como tristeza, e que toma conta da totalidade
corpo/mente, entravando seu esforo de preservao na existncia, o
conatus, podendo at mesmo conduzir o indivduo morte.
Ao ver de Espinosa, enquanto a melancolia sempre m, o
contentamento sempre bom e nunca excessivo, considerando que quanto
maior a alegria com que somos afetados, maior a perfeio para a qual
passamos.Vale dizer que o amor, embora seja uma alegria (laetitia),
uma alegria acompanhada de uma excitao, que pode essa sim ser m,
pois ocorre quando uma parte do corpo afetada mais do que as outras
e a potncia desse afeto supera as outras aes do corpo, impedindo
que ele seja afetado de outros modos (Cf. Espinosa 15, EIV DP43).
Isso porque
o corpo humano, por ser composto de muitas partes de natureza
diversa, carece continuamente de alimento novo e variado, para que
esteja apto para ser afetado de muitos modos e a mente tambm apta
para entender simultaneamente vrias coisas. Caso contrrio, se o
corpo for afetado por uma causa externa de potncia maior do que a
dele, ele fica impedido de
ser afetado de outros modos, o que retm a mente na contemplao de
um nico objeto, tornando-se obsessiva. Tanto a fora de um afeto
quanto do desejo que dele deriva podem, portanto, ser excessivos,
fazendo com que os homens, afetados de tal maneira por um nico
objeto (por exemplo, dinheiro, glria ou a pessoa amada), enlouqueam
ou delirem, passando a v-lo diante de si, embora este nem mesmo
esteja presente (Cf. Espinosa
15, EIV SP44). Portanto, tanto a preponderncia dos afetos
tristes na
totalidade corpo/mente, quanto a fixao em um nico e mesmo afeto,
e no
desejo excessivo que dele surge, podem ser contados entre as
doenas, pois ambos levam igualmente ao enfraquecimento do conatus,
na medida em que diminuem a capacidade do corpo de ser afetado de
diferentes modos. Alm da melancolia e da obsesso delirante, outro
alvo de Espinosa a flutuao
da alma (flutuatio animi), acontecimento que se d quando um nico
objeto causa de afetos contrrios, como o amor e o dio (por exemplo,
no cime, h o dio pela pessoa amada e a inveja do novo amante) (Cf.
Espinosa 15, EIII P35). Tomado pelo cime, o indivduo est refm da
exterioridade, pois aquilo que constitui a forma do amor ou do dio
a alegria ou tristeza acompanhada da idia de uma causa externa (Cf.
Espinosa 15, EIII SP13). Tanto o dio pela amada, quanto a inveja do
amante, que tambm dio pela felicidade de outrem, so afetos passivos
e tristes.
Assim, como que compondo uma sintomatologia e uma teraputica,
Espinosa considera as lgrimas, os soluos, os medos como sinais de
um nimo impotente, que podem e devem ser combatidos o quanto antes,
como forma de expulsar a melancolia (melancholiam expellere) (Cf.
Espinosa 15, EIV SP45). Como princpio de conduta ou norma de vida,
ele sugere a moderao (moderatio), isto , usar das coisas e
deleitar-se delas, mas no at a exausto, pois: prprio do homem sbio
recompor-se e reanimar-se moderadamente com bebidas e refeies
agradveis, assim como todos podem se servir, sem nenhum prejuzo
alheio, dos perfumes, do atrativo das plantas verdejantes, das
roupas, da msica, dos jogos esportivos, do teatro, e coisas do
gnero (Espinosa 15, EIV SP45). E
embora diga que na tica no teve a inteno de apresentar uma
medicina mentis (Cf. Espinosa 15, EV Praef.), de algum modo ele nos
oferece uma teraputica para a flutuao da alma, ao dizer que o
melhor remdio
contra os afetos passivos o verdadeiro conhecimento deles: um
afeto,
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que paixo, deixa de ser paixo no momento em que dele
formamos
uma idia clara e distinta (Espinosa 15, EV P3); e j que conhecer
ter
clareza das causas, na medida em que conhecemos as causas da
tristeza, nesta mesma medida ela deixa de ser paixo, isto , nessa
mesma medida
ela deixa de ser tristeza (Espinosa 15, EV SP18). Para Espinosa,
uma mente internamente disposta (interne disponitur), como aquela
que no se encontra refm da exterioridade, causa adequada de suas
idias, potente o suficiente para moderar seus afetos, j que os
conhece clara e
distintamente. Por isso, a mente tem potncia para suprimir afeto
passivo ou paixo, atravs de trs grandes poderes: poder formar um
conceito claro e distinto de todas as afeces do corpo; poder na
mente formar uma idia
clara e distinta dos afetos; poder desligar o afeto da causa
externa e lig-
lo a outros pensamentos, evitando a flutuao do nimo (flutuatio
animi). Dado isso, primeiramente, ele conclui que o melhor remdio
para os afetos o conhecimento deles, visto que a mente no tem outro
poder que no seja o de pensar e o de formar idias adequadas (Cf.
Espinosa 15, EV SP4),
e, em segundo lugar, que o agente da mudana (mutatio) de
qualidade dos afetos, de passivos para ativos, trata-se da potncia
da mente em considerar as coisas clara e distintamente, porque
causa adequada de suas idias, as quais seguem apenas de sua
natureza. Entendendo clara e distintamente todas as afeces do corpo
e seus afetos, a mente evita a flutuao do
nimo e o excesso dos desejos, provenientes de idias
inadequadas.E se uma teraputica, elaborada a partir do pensamento
de
Espinosa, nos d elementos para fazer frente melancolia, obsesso
delirante e flutuao do nimo, a teraputica nietzschiana nos
mostra
como podemos combater o pior dos males, o ressentimento, visto
que nenhuma chama nos devora to rapidamente quanto os afetos do
ressentimento (Nietzsche 8, EH/EH, Porque sou to esperto, 6).
Embora Nietzsche, como vimos, no queira nos escritos
autobiogrficos
oferecer um guia de conduta, ele pretende sim mostrar como
possvel, atravs dos remdios adequados a cada constituio
fisiopsicolgica,
curar-se do ressentimento. Assim como o melanclico espinosano
reativo, j que todas as suas foras esto voltadas para a supresso da
causa geradora da tristeza8, para Nietzsche as principais
caractersticas do tipo ressentido so, tambm, a reatividade e o
superdesenvolvimento mnsico. Por isso, em Ecce Homo, ele diz que
sempre procurou ter cautela para no reagir imediatamente a um
estmulo nocivo (tcnica que ele chama de fatalismo russo) e esquecer
rapidamente o que lhe afetou, de modo que uma m lembrana no se
tornasse para ele uma ferida supurante. Com efeito, a seu ver, numa
situao adversa melhor no reagir, quando uma reao produziria um
rpido consumo de energia nervosa e o aumento de secrees
prejudiciais, por exemplo, de blis no estmago (Cf. Nietzsche 11,
EH/EH, Porque sou to esperto, 6). Nesses casos, a soluo reagir com
a menor freqncia possvel, em situaes e relaes em que teramos que
suspender nossa iniciativa e nos tornarmos apenas reagentes (Cf.
Nietzsche 11, EH/EH, Porque sou to esperto, 8). Tambm, na
Genealogia da Moral, quando Nietzsche analisa os modos de valorao
dos tipos, ele defende a inevitabilidade do ressentimento no tipo
fraco, enquanto o ressentimento do homem nobre, quando nele
aparece, se consome e se exaure numa reao imediata, por isso no
envenena: por outro lado, nem sequer aparece, em inmeros casos em
que inevitvel nos impotentes e fracos (GM/GM 8, I, 10). Em sua
diagnose tipolgica, ele reconhece um tipo saudvel, uma ndole bem
lograda, como aquele que sabe esquecer (Cf. Nietzsche 8, EH/EH,
Porque sou to sbio, 2). Por esse critrio, o ressentido seria um
dispptico, pois tendo a
capacidade de esquecimento comprometida, no conseguiria digerir
suas vivncias, no sendo capaz de dar conta de nada (Cf. Nietzsche
9, GM/GM, II, 1). Segundo Nietzsche, a soluo encontrada para isso
no
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levar a srio por muito tempo os inimigos, as desventuras,
recorrendo para isso fora plstica, modeladora, regeneradora,
propiciadora do esquecimento (Nietzsche 8, GM/GM, I, 10). O que ele
chamar mais adiante de fora inibidora, ativa, positiva do
esquecimento que, sem a qual no poderia haver felicidade,
jovialidade, esperana, orgulho, presente (Nietzsche 9, GM/GM , II,
1).
Esquecimento e fatalismo russo foram, ento, os medicamentos que
Nietzsche encontrou para evitar o ressentimento, que, infelizmente,
a mais natural inclinao do enfermo. No prefcio a Humano demasiado
humano, ele conta que ao se colocar como mdico e doente em uma
pessoa, elaborou uma diettica e disciplina para, em momentos de
sofrimento, vencer a luta contra o ressentimento, o pessimismo do
cansao de viver (Cf. Nietzsche 8, VM/OS, prefcio, 5). Assim, se a
psicologia de Nietzsche visa identificar os afetos do
ressentimento, e combat-los, sua medicina
consiste em saber escolher os remdios mais apropriados contra
eles, o que exige uma postura ativa daquele que est disposto a
tomar-se nas mos e curar-se a si prprio (Cf. Nietzsche 8, EH/EH,
Porque sou to sbio, 2). Mdico, ajuda a ti prprio, diz ele em Assim
falava Zaratustra, assim ajudas tambm a teu doente. Seja esta tua
melhor ajuda, que ele veja com seus olhos aquele que cura a si
prprio (Nietzsche 8, Za/ZA. Da virtude que d, 2). Em Ecce Homo,
Nietzsche explica que enquanto os tipos doentios escolhem sempre os
remdios errados, o tipo sadio, instintivamente, sempre escolhe os
remdios certos, pois age segundo um princpio seletivo, que lhe
permite escolher o que lhe mais apropriado e deixar de lado o que
lhe pernicioso, em questes de alimentao, moradia, clima, amigos,
recreaes etc. Ou seja, ele nunca foi um tipo doentio, dcadent, pois
em momentos de enfermidade e baixa vitalidade, instintivamente,
sempre escolheu os remdios certos sua cura, evitando sucumbir ao
pessimismo e aos afetos do ressentimento. Na autodiagnose
tipolgica, ele se reconhece como um tipo saudvel, caracterizando
uma ndole bem lograda como aquela que s encontra sabor naquilo que
lhe compatvel; seu agrado, seu prazer cessa, onde a medida do
compatvel
ultrapassada. Adivinha meios de cura contra danos, utiliza
acasos ruins em sua vantagem: o que no o derruba, torna-o mais
forte (Nietzsche 8, EH/EH, Porque sou to sbio, 2). Isso porque ele
acredita que cada
um tem a sua medida9; tanto de assimilao fisiolgica (alimentar)
quanto de assimilao psicolgica (vivencial), que no devem ser
excedidas. Em resumo, para o filsofo, caberia ento a cada um
diagnosticar em si mesmo
os sintomas da decadnce e procurar encontrar os remdios certos
para combat-la, selecionando aquilo que mais est de acordo com sua
configurao fisiopsicolgica singular, de modo a potencializ-la e
no
esgot-la, respeitando a sua medida prpria.J no contexto da
crtica genealgica, Nietzsche associa os afetos
do ressentimento s idias fixas, que sendo inextinguveis,
onipresentes e
inesquecveis no concorreriam com outras idias e hipnotizariam o
sistema nervoso (Cf. Nietzsche 8, GM/GM, II, 3). Aqui, a idia de
que a vida no vale a pena ser vivida, associada aos sentimentos de
vingana e rancor, tomada como o sintoma mais evidente do tipo
fraco, dcadent. Com efeito, tal tipo, ante a experincia do
sofrimento, recai no dio ao corpo, desejante, impuro e perecvel, e
na revolta contra a vida, considerada, pela dor que lhe inerente,
cruel e injusta. Destarte, os tipos fracos, dcadents, apregoando
uma m-vontade contra a vida, expressando um dio contra o humano,
mais ainda contra o animal, mais ainda contra a matria, essa
repulsa aos sentidos, razo mesma, o medo da felicidade e da beleza,
esse anseio por afastar-se de toda aparncia, mudana, vir-a-ser,
morte, desejo, anseio mesmo (Nietzsche 8, GM/GM, III, 28), promovem
uma
rebelio contra os mais fundamentais pressupostos da vida e
vem-se assim s voltas com um niilismo suicida. Em sua crtica
psicologia
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do cristianismo, Nietzsche fala que o cristo um ressentido, que
odeia o corpo, a vida e no v sentido algum em viver, e s no se
suicida por conta da morte auto-infligida ser um tabu religioso.
Encontrando alento apenas
na idia de imortalidade da alma e em sua ida para um alm-mundo,
o cristo precisa necessariamente opor corpo e alma, separar este
mundo do outro mundo, ideal, para o qual a alma se encaminharia aps
a morte do corpo. Por outra perspectiva, Nietzsche acredita que uma
cultura no deve comear pelo cuidado com a alma, mas pelo lugar
correto, e: o lugar correto o corpo, os gestos, a dieta, a
fisiologia, o resto segue da...
(Nietzsche 8, GD/CI. Incurses de um extemporneo, 47).
Por isso, em oposio rebelio contra os mais fundamentais
pressupostos da vida, em sua teraputica, Nietzsche se interessa
pelas disposies fundamentais da prpria vida, pelas pequenas coisas
do cotidiano, consideradas insignificantes: alimentao, lugar,
clima, a inteira casustica do amor-prprio (Nietzsche, EH/EH, Porque
sou to esperto, 10). Quanto a elas, ele acredita ser necessrio
reaprender a no mais desprez-las, mas tom-las por fundamentos de um
cuidado de si10, entendido no s como um processo de escolha de
modos de vida mais saudveis, mas tambm de reviso de valores e de
adoo de uma tica afirmativa da vida. Em vista disso, ele enceta uma
empreitada
mais ampla, a de elaborao de uma medicina para a civilizao, j
que v o ressentimento, ou seja, a condenao da vida, a revolta
contra ela, no s como o mal do seu sculo, mas como um mal que j
domina os pensadores h sculos, pois nasce com o platonismo e
atravessa toda a histria do pensamento ocidental, com a idia de um
mundo verdadeiro, em oposio a este mundo, o efetivo (Nietzsche 8,
GD/CI. Histria de um erro. Como o verdadeiro mundo acabou por se
tornar uma fbula). Assim, em contraposio a estes pensadores
doentios, que at ento defenderam valores que alimentam o dio
efetividade, Nietzsche aspira
a um esprito criador que seja capaz de, em um tempo vindouro,
fazer diferentes ensaios, experimentar outras formas de valorar e
criar novas tbuas de valores, que no mais expressem um profundo
mal-estar com os processos efetivos11. Espera a vinda de homens
dotados de grande sade que possam livrar a efetividade da maldio
deposta sobre ela (Cf. Nietzsche 8, GM/GM, II, 24). At chegar esse
momento, ele
mesmo, como um tipo da grande sade, quer a partir da exposio de
sua trajetria de vida abrir caminhos para outras e inmeras
possibilidades de criao de valores que sejam afirmativos em relao
aos processos
dinmicos da efetividade.Assim, se na teraputica nietzschiana h a
necessidade de realizar
o diagnstico de como se processa a nossa dinmica afetiva, como
forma de fazer o combate aos afetos do ressentimento, sendo central
a idia de seleo daquilo que nos potencializa, igualmente, para
Espinosa, necessrio conhecer adequadamente como se d nosso
funcionamento afetivo e realizar encontros que aumentem nossa
potncia de agir, selecionando aqueles que so teis ao fortalecimento
do conatus, como uma forma de expulsar a melancolia, evitar a
flutuao do nimo e as obsesses de toda ordem. E se
considerarmos que para ambos os filsofos o aumento da potncia de
agir
est diretamente relacionado criao de novos valores; na medida em
que
eles procuram fazer frente tristeza e impotncia, ou seja, aos
afetos que limitam nosso agir no mundo, abrem caminho para uma tica
de afirmao
da vida, para a qual at mesmo a doena, como momento crtico, no
resvala necessariamente no ressentimento e na melancolia, mas pode
ser vivida como oportunidade de descoberta de potencialidades, pelo
ensaio e experimentao de outras maneiras de querer, sentir e pensar
e pela reviso de valores que ela comumente impe. Com isso,
Espinosa12 e Nietzsche13 nos levam a pensar que uma teraputica que
objetiva de fato promover sade deve ser entendida como uma arte de
despertar potencialidades e de criao
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de novas formas ou modos de agir no mundo, um processo
essencialmente afetivo, que visa a tomada de conscincia de quais
afetos esto em jogo na realizao de toda e qualquer atividade
cotidiana, o que tambm implica escolhas e aes salutares prprias, e
no uma moralizao dos atos da vida diria, encontrada nos manuais de
psicologia do comportamento e de higiene coletiva. Afinal,
considerando que cada indivduo singular,
a teraputica ser estritamente pessoal, pois no h nenhuma frmula
ou receita que seja universal, prescritivo-normativa para a
conquista da sade, pois o que est em jogo, no caso de Nietzsche, a
elevao da potncia que prpria a cada corpo, ou, de acordo com
Espinosa, o que se almeja o fortalecimento do conatus de cada
indivduo, como coisa singular.
NIETzSCHE AND SPINozA: FUNDAmENTS FoR A
THERAPEUTICS oF AFFECTIoNS
Abstract: In this article, from the analysis of the concepts of
body and power present in Spinozas and Nietzsches philosophies, we
aim to show that both philosophers criticize transcendent values,
affirming the necessity of creating new values. They
show that, in order to make possible an affirmative ethical
life, one has, above all, to
increase the potency of the whole body/mind, obtained through a
therapeutics based on the affective dynamics. Considering that
both, Nietzsche and Spinoza, had used the same affection, the joy,
to cure powerlessness and that both offer a strictly personal
therapy, refusing the creation of a normative ethics, we conclude
that a therapy which truly proposes to bring health should be an
essentially affective process, based on healthy choices and acts
that people should take of their own, instead of a moralization of
everyday acts, operated by behavioral psychology manuals and
collective hygiene. keywords: body health power therapeutics
affectivity
REFERNCIAS BIBLIogRFICAS
1. DELEUZE, G. Espinosa: filosofia prtica (trad: Daniel Lins e
Fabien Pascal Lins). So Paulo, Escuta, 2002.
2. FOUCAULT, M. Les techniques de soi. In: Dits et crits. Paris,
Gallimard, 1994, Vol. IV, pp. 783-813.
3. GADAMER, H-G. O mistrio da sade: o cuidado da sade e a arte
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e o conhecimento intuitivo. O Que nos Faz Pensar, Rio de
Janeiro, v. 14, p. 183-198, 2000.
5. MARTON, S. Extravagncias: ensaios sobre a filosofia de
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Madrid, Alianza Editorial, 1974.
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Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1998.
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Souza). So Paulo, Companhia das Letras, 1999.
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Souza). So Paulo, Companhia das Letras, 2000.
11. ______________ Ecce Homo (trad. Paulo Csar de Souza). So
Paulo, Companhia das Letras, 2000.
12. . ______________ A Gaia Cincia (trad. Paulo Csar de Souza).
So Paulo, Companhia das Letras, 2001.
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Trans/Form/Ao, So Paulo, 30(1): 127-149, 2007.
14. SANTIAGO GUERVS, L.E. Nos limites da linguagem: Nietzsche e
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vital da dana (trad: Alexandre Filordi de Carvalho). Cadernos
Nietzsche 14, So Paulo, 2003. pp.83-30.
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Horizonte, Autntica Editora, 2007 [edio bilnge latim/portugus].
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16. ZATERKA, L. Conatus e vontade de potncia: semelhanas e
dessemelhanas. Cadernos Espinosanos II (I), So Paulo, 1997,
pp.07-31.
NoTAS
1. Concordamos integralmente com Santiago quando defende que
Nietzsche e Espinosa no compartilham somente a crtica aos valores
transcendentes, atravs do questionamento da moral vigente, mas
tambm a ideia de que os filsofos tm a tarefa
de criar novos valores. Ou seja, ele acredita que aps a anlise
crtica dos preconceitos e da moral, Espinosa chega a dar um passo
semelhante ao de Nietzsche, que advogar a necessidade de criao de
novos valores que favoream a vida, isto , favoream os encontros
alegres e firmem-nos na busca da felicidade, que proporcionem o
aumento
de nossa potncia de agir (Cf. Santiago 13, p.133).2. Estamos
tambm de acordo com Martins quando afirma que, num primeiro
momento, podemos pensar que no h proximidade entre as filosofias
espinosana e
nietzschiana, por Espinosa ser um racionalista que prope a
moderao dos afetos e das paixes e a minimizao do acaso, e Nietzsche
um crtico da razo, que os aceita integralmente. Ao contrrio, o
comentador acredita que o maior incmodo de Nietzsche em relao ao
racionalismo de Espinosa, mais a seu mtodo do que a suas ideias.
Ademais, atravs de uma anlise mais detida, possvel ver que nem
Espinosa pretende estabelecer um domnio total sobre os afetos, nem
Nietzsche advogar o poder absoluto dos afetos e do acaso sobre ns
(Cf. Martins 4). Portanto, como tambm
julgamos, quando estudamos as filosofias de Espinosa e
Nietzsche, encontramos mais
pontos em comum do que divergncias.3. Para as citaes das obras
de Nietzsche, adotamos a conveno proposta pela edio Colli/Montinari
das Obras completas do filsofo. Para facilitar a leitura das
referncias, as siglas em alemo so acompanhadas das siglas em
portugus: FW/GC - Die frhliche Wissenschaft (A Gaia Cincia); Za/ZA
- Also sprach Zarathustra (Assim falava Zaratustra); JGB/BM -
Jenseits Von Gut und Bse (Para Alm de Bem e Mal); GM/GM - Zur
Genealogie der Moral (Genealogia da Moral); GD/CI - Gtzen- Dmmerung
(Crepsculo dos dolos); AC/AC - Der Antichrist (O Anticristo); EH/EH
- Ecce Homo. Na citao, o algarismo arbico indicar o pargrafo (ex:
AC/AC, 12). Na citao de GM/GM e de FW/GC, o algarismo romano
anterior ao arbico remeter parte do livro (ex: GM/GM, II, 16). Em
Za/ZA, o algarismo romano remeter
parte do livro e a ele seguir o ttulo do discurso (ex: Za/ZA, I,
Dos desprezadores do corpo). No caso de GD/CI e EH/EH, o algarismo
arbico que se seguir ao ttulo do captulo indicar o pargrafo (ex:
EH/EH, Porque sou to esperto, 10).4. O conceito vontade de potncia
(Wille zur Macht) aparece na obra publicada e, em grande parte, em
fragmentos pstumos. Neste contexto, Nietzsche tambm usa o termo
fora (Kraft), sendo a vontade de potncia o carter intrnseco dela.
Caracterstica do mundo efetivo, a vontade de potncia tambm o que
constitui o homem: - Esse mundo a vontade de potncia - e nada alm
disso! E tambm vs prprios sois essa vontade de potncia e nada alm
disso! (Nietzsche 8, NF/FP, 1067).5. As leituras de Santiago
Guervs, em seu artigo Nos limites da linguagem: Nietzsche e a
expresso vital da dana, e de Scarlett Marton em A dana desenfreada
da vida caminham nesta direo, mostrando as relaes entre vida, dana,
alegria e grande sade. Guervs defende que a insistncia do filsofo
em utilizar o simbolismo da
dana em seus escritos outra maneira de exaltar e reivindicar o
valor do corpo, e a alegria seria a expresso da liberdade bailarina
do pensamento, prpria do tipo saudvel. Por isso, Zaratustra sempre
apresentado como um danarino: Afinal, quem aquele que expressa
melhor a alegria e a grande sade, quem aquele que
melhor sabe rir e o que melhor festeja a vida, a no ser o
danarino? (Santiago Guervs 14, p.97). J Marton mostra como
Nietzsche associa o movimento da dana
ao movimento mesmo da vida, no sendo por acaso que Zaratustra,
seu alter ego, faa dela sua principal aliada. Personagem que possui
o pressuposto fisiolgico da grande
sade, Zaratustra entoa seus cantos de dana para expressar no s a
mutabilidade da vida, mas tambm a alegria que a caracteriza: Igual
vida, dana movimento (...) Movimento, cadncia e leveza, a dana
ainda alegria (Marton 5, p. 57-65).6. Sobre a impossibilidade de
uma tica normativa em Espinosa e em Nietzsche, so relevantes os
comentrios de Zaterka. Para a autora, ambos os filsofos operam
uma naturalizao dos valores, mostrando sua origem humana,
demasiado humana, e rompendo com a idia de qualquer transcendncia
moral: Espinosa mostra que os homens so essencialmente apetites e
desejos. Portanto, o filsofo
da tica rompe com qualquer transcendncia moral ou se
preferirmos, os valores
esto para alm de bem e mal. (...). A filosofia nietzschiana,
sabemos, tem como
fio condutor esta mesma impossibilidade. Nietzsche, atravs do
procedimento
genealgico, mostra a origem humana, demasiado humana de todos os
nossos
valores (Zaterka 16, p.44-45).
7. Deleuze considera Espinosa um imoralista, assim como
Nietzsche se considerava
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um. Isso porque, assim como Nietzsche se coloca para alm do Bem
e do Mal, Espinosa considera que no existe o Bem e o Mal, mas o bom
e o mau, como aquilo que convm ou no convm a nossa natureza. A
oposio de valores (Bem e Mal) substituda pela diferena qualitativa
dos modos de existncia (bom e mau). Assim, segundo o comentador, a
tica uma tipologia dos modos de existncia imanente, que substitui a
Moral, porque esta se relaciona sempre com a existncia de valores
transcendentes. O bom ou livre, razovel ou forte, aquele que se
esfora tanto quanto pode para organizar os encontros, para se unir
a o que convm a sua natureza, e desta forma aumentar a sua potncia.
O mau, escravo ou insensato aquele que vive ao acaso dos encontros,
que se contenta em sofrer as conseqncias dos eventos fortuitos, em
gemer e acusar toda vez que o efeito sofrido se mostra contrrio ao
que desejava, o que lhe revela sua prpria impotncia (Cf. Deleuze,
1).8. Enquanto na alegria a potncia de agir est em expanso, na
melancolia nossa potncia de agir est como que imobilizada e
direcionada apenas para o afastamento ou supresso da causa geradora
de tristeza, e pode esgotar-se no reagir (Cf. Deleuze 1).9. Podemos
dizer que Nietzsche retoma a diferena existente entre os gregos
entre dois tipos de medida: a que se aplica a um objeto a partir de
fora (mtron), atravs de um aparelho de medio, e aquela que reside
na prpria coisa (mtrion), como o apropriado a ela. Com efeito, para
Gadamer, parte essencial da sade manter-se a si mesma em sua medida
prpria, no permitindo que lhe sejam impostos valores padronizados,
pois tal imposio seria inadequada para o caso individual: Ali se
afirma que h uma medida que no se aplica a partir de fora, mas que
algo em si
mesmo tem. Se quisssemos express-lo em vernculo, poderamos
dizer: no h apenas o medido (Gemessene) por meio de um instrumento
de medio, mas tambm o conveniente ou apropriado (Angemessene)
(Gadamer 3, p.126).10. Nietzsche fala em cuidado de si, amor de si,
cultivo de si, defesa de si em oposio idia crist de renncia de si.
Foucault (1994) considera que para
os gregos o preceito do cuidado de si uma das grandes regras de
conduta da vida social e pessoal, um dos fundamentos da arte de
viver. No obstante, ele foi eclipsado pelo Conhece-te a ti mesmo,
porque nossa moral, uma moral do ascetismo, no parou de dizer que o
si a instncia que se deve rejeitar. Foucault, ainda, ao analisar a
idia de cuidado de si no mundo grego, afirma ser o cuidado mdico
permanente um
de seus traos essenciais, devendo cada um tornar-se mdico de si
mesmo (Foucault 2). Em vista disso, podemos dizer que Nietzsche
retoma as ideias de cuidado de si e
medicina de si, para fazer frente ao ascetismo cristo, tal como
foi se configurando
historicamente, como renncia ou abdicao de si: A moral da
renncia de si a moral de declnio par excellence (...) Essa nica
moral que at aqui foi ensinada, a moral da renncia de si, traz uma
vontade de fim, nega em seus fundamentos a vida (EH/EH, Por que sou
um destino, 7).11. Por este critrio, Espinosa no contaria entre
tais pensadores doentios, afinal, como
explica Deleuze, em Espinosa h uma filosofia da vida, que
consiste precisamente
em denunciar tudo o que nos separa da vida, todos esses valores
transcendentes que se orientam contra ela: Antes de Nietzsche, ele
denuncia todas as falsificaes da vida, todos os valores em nome dos
quais ns depreciamos a vida: ns no vivemos, mantemos apenas uma
aparncia de vida, pensamos apenas em evitar a morte e toda a nossa
vida um culto morte (Deleuze 1, p.32).
12. De acordo com Deleuze, a tica de Espinosa traa o retrato do
homem do ressentimento para quem qualquer tipo de felicidade uma
ofensa, e que faz da misria ou da impotncia sua nica paixo. Por
isso, ela necessariamente uma tica da alegria: somente a alegria
vlida, s a alegria permanece e nos aproxima da ao e da beatitude da
ao (Deleuze 1, p.34).
13. A esta outra tica que d Sim vida, Nietzsche d o nome de amor
fati: Minha frmula para a grandeza no homem amor fati: no querer
nada de outro modo, nem para diante, nem para trs, nem em toda
eternidade (EH/EH, Por que sou to esperto, 10).