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A Tradição Oral no Romance Terra Sonâmbula... Avelino, Santos & Luna Revista Diálogos – n.° 18 – Set. / Out. – 2017 25 A TRADIÇÃO ORAL NO ROMANCE TERRA SONÂMBULA, DE MIA COUTO d.o.i. 10.13115/2236-1499v2n18p25 Fabiana Avelino UPE 1 Deividy Ferreira dos Santos UPE 2 Jairo Nogueira Luna - UPE 3 Resumo: O presente trabalho pretende analisar a tradição oral no romance Terra Sonâmbula, de Mia Couto. A tradição oral se apresenta no romance como método fundamental para adentrar a herança de conhecimento de toda uma sociedade, pacientemente transmitida de boca 1 Graduada em Letras habilitação em Língua Portuguesa e suas Literaturas (UPE). Desde a graduação, vem desenvolvendo estudos voltados para a obra do escritor moçambicano Mia Couto, em especial atenção as seguintes temáticas: construção de identidade(s), Literatura e Memória, Literatura e Sociedade, Tradição oral e as interfaces entre Brasil e África. Participou, no ano de 2016, do grupo de estudo “DISCENS”, na Universidade de Pernambuco, campus Garanhuns. Atualmente, é Professora de Língua Portuguesa, na Escola Municipal Vereador Eliel Peixoto de Melo, no município de Vila Neves Jucati/PE. Endereço eletrônico: [email protected] 2 Graduado em Letras habilitação em Língua Portuguesa e suas Literaturas (UPE). Foi bolsista do PIBIC/CNPq, PIBID/CAPES e Monitoria/PFAUPE. Atualmente, é Tutor, no Departamento de Letras do Núcleo de Ensino à Distância, no curso de pós-graduação em Ensino de Língua Portuguesa e suas Literaturas, pela Universidade de Pernambuco (NEAD/UPE/UAB) Bolsista CAPES; é Professor Mediador de Língua Portuguesa, no Programa Novo Mais Educação, no município de Jucati/PE; integra, também, a Equipe Técnica da Revista de Estudos Linguísticos, Literários, Culturais e da Contemporaneidade (UPE/Garanhuns) e presta consultoria à Itinerários: Revista de Literatura (UNESP/São Paulo). Endereço eletrônico: [email protected] 3 Prof. Dr. Em Letras (USP, 2003), pós-doutorado em Literatura Brasileira (USP,2011). Professor Adjunto da Universidade de Pernambuco, campus Garanhuns.
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Apr 17, 2021

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A Tradição Oral no Romance Terra Sonâmbula... – Avelino, Santos & Luna

Revista Diálogos – n.° 18 – Set. / Out. – 2017 25

A TRADIÇÃO ORAL NO ROMANCE TERRA SONÂMBULA, DE

MIA COUTO

d.o.i. 10.13115/2236-1499v2n18p25

Fabiana Avelino – UPE1

Deividy Ferreira dos Santos – UPE2

Jairo Nogueira Luna - UPE3

Resumo: O presente trabalho pretende analisar a tradição oral no

romance Terra Sonâmbula, de Mia Couto. A tradição oral se apresenta

no romance como método fundamental para adentrar a herança de

conhecimento de toda uma sociedade, pacientemente transmitida de boca

1 Graduada em Letras – habilitação em Língua Portuguesa e suas Literaturas (UPE).

Desde a graduação, vem desenvolvendo estudos voltados para a obra do escritor

moçambicano Mia Couto, em especial atenção as seguintes temáticas: construção de

identidade(s), Literatura e Memória, Literatura e Sociedade, Tradição oral e as

interfaces entre Brasil e África. Participou, no ano de 2016, do grupo de estudo

“DISCENS”, na Universidade de Pernambuco, campus Garanhuns. Atualmente, é

Professora de Língua Portuguesa, na Escola Municipal Vereador Eliel Peixoto de Melo,

no município de Vila Neves – Jucati/PE. Endereço eletrônico:

[email protected]

2 Graduado em Letras – habilitação em Língua Portuguesa e suas Literaturas (UPE). Foi

bolsista do PIBIC/CNPq, PIBID/CAPES e Monitoria/PFAUPE. Atualmente, é Tutor,

no Departamento de Letras do Núcleo de Ensino à Distância, no curso de pós-graduação

em Ensino de Língua Portuguesa e suas Literaturas, pela Universidade de Pernambuco

(NEAD/UPE/UAB) – Bolsista CAPES; é Professor Mediador de Língua Portuguesa, no

Programa Novo Mais Educação, no município de Jucati/PE; integra, também, a Equipe

Técnica da Revista de Estudos Linguísticos, Literários, Culturais e da

Contemporaneidade (UPE/Garanhuns) e presta consultoria à Itinerários: Revista de

Literatura (UNESP/São Paulo). Endereço eletrônico: [email protected]

3 Prof. Dr. Em Letras (USP, 2003), pós-doutorado em Literatura Brasileira (USP,2011).

Professor Adjunto da Universidade de Pernambuco, campus Garanhuns.

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e ouvido, de mestre a discípulo, ao longo dos séculos. Assim, buscamos,

neste estudo, compreender a maneira como o escritor Mia Couto trata a

questão da tradição oral na narrativa, e consequentemente a importância

da oralidade para a cultura moçambicana, como também o estilo de

escrita do escritor. Para atingir esse objetivo, no que concerne ao aporte

teórico-metodológico, nosso trabalho conta com estudos de

pesquisadores brasileiros que são referências no Brasil em estudar a obra

coutiniana, o que mostra a importância e a necessidade de se estudar a

obra do autor moçambicano, até pelas plurissignificações existentes em

suas narrativas.

Palavras-chave: Tradição Oral. Mia Couto. Romance. Terra

Sonâmbula.

Abstract: The present work intends to analyze the oral tradition in the

novel Terra Sonâmbula, by Mia Couto. The oral tradition presents itself

in the novel as a fundamental method to enter the heritage of knowledge

of an entire society, patiently transmitted from mouth to ear, from teacher

to pupil, throughout the centuries. Thus, we seek in this study to

understand the way in which the writer Mia Couto deals with oral

tradition in the narrative, and consequently the importance of orality to

Mozambican culture, as well as the writing style of the writer. In order to

reach this objective, as far as the theoretical-methodological contribution

is concerned, our work counts on studies of Brazilian researchers who

are references in Brazil to study the Coutinho work, which shows the

importance and necessity of studying the work of the Mozambican

author, Even by the plurissignifications existing in their narratives.

Keywords: Oral Tradition. Mia Couto. Romance. Terra Sonâmbula.

Introdução

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No referido trabalho, analisaremos a questão da Tradição Oral na

obra de Mia Couto, em particular no romance Terra Sonâmbula. Nesse

sentido, fizemos uma análise sob o que concerne a tradição oral, como

ela é vivenciada em Moçambique e consequentemente como Mia Couto,

adotando o romance, gênero de origem europeia, consegue fazer dele

uma expressão africana, pondo em xeque a preponderância dos saberes

centrais em meio aos conflitos que dominavam Moçambique.

O conceito de literatura oral surge, pela primeira vez, na obra

“Littératura orale de la Haute Bretagne”, publicado em 1881, por Paul

Sébillot. Seu uso vem exatamente sublinhar essas “obras” que passaram

de geração em geração pelo exercício da repetição e pelo esforço da arte

e da memória. A oralidade permaneceu durante séculos, valendo-se de

veículo para a transmissão dos conhecimentos e das informações de uma

comunidade, formando-se, assim, um corpus que Rosa chama de

“tradição cultural dinâmica” (ROSA, 1994, p. 140), para expressar a

memória coletiva e individual.

A oralidade é também uma herança que se desenvolve na

“consciência dos povos”, que, gradativamente, descobre outros recursos

para manter mais informações e ampliar cada vez mais a memória.

Notamos aqui a forte ligação entre oralidade e memória. Segundo Rosa,

estudioso português, a memória é quem comanda tudo, sendo ao mesmo

tempo “repositório e veículo” da cultura (ROSA, 1994, p. 140). Sua

contribuição, no seio de uma comunidade cultural, garante a

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comunicação e a continuidade, por serem transmitidos de gerações para

gerações. Rupturas e perdas também fazem parte do mecanismo da

memória. Há uma predominância daquilo que é mais forte; daquilo que

é mais importante, necessário, validado, usual, na medida em que tantas

outras contribuições podem cair no esquecimento. Esse é um

procedimento normal da memória. E a escrita, de algum modo,

complementa essa operação. A coexistência das duas formas – oral e

escrita – vai criar uma ação de interlocução, de influência, de

comunicação entre as formas. Os pressupostos são diferentes, as estéticas

são diversas, mas as trocas são constantes.

Mia Couto: um ser de fronteira

Filho de portugueses que emigraram para Moçambique em

meados do século XX, Antônio Emílio Leite Couto – mais conhecido por

Mia Couto – nasceu em 05 de julho de 1955, na cidade da Beira, segunda

cidade mais populosa de Moçambique. Filho de poeta, suas narrativas

unem a prosa e a poesia. Desde cedo apresentou o gosto pela escrita,

vindo a publicar seus primeiros poemas no Jornal Notícias da Beira, aos

14 anos. Iniciou seus estudos no curso de Medicina, abandonando-o três

anos depois para se tornar um dos membros da Frente de Libertação de

Moçambique (FRELIMO). A partir de 1974, enveredou pelo jornalismo,

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passando após a independência (1975), a exercer a carreira jornalística,

período que durou cerca de 10 anos.

Em seguida, abandonou o jornalismo e passou a cursar Biologia.

Mia Couto exerce a profissão de biólogo, situação que lhe proporcionou

o contato com diferentes povos e experiências que influenciaram em

certa medida seu modelo de escrita. Atualmente, além de professor

universitário, também dedica tempo a pesquisas acerca de impactos

ambientais de seu país. Além de ser considerado um dos escritores mais

importantes de Moçambique, é o escritor moçambicano mais traduzido e

divulgado no exterior, e um dos autores estrangeiros mais vendidos em

Portugal. É possuidor de uma literatura com sinais de resistência cultural

e sentimento nacional. As suas obras são traduzidas e publicadas em 24

países. Poeta, contista e romancista, Mia Couto tem mais de meio milhão

de exemplares vendidos e traduzidos em diversas línguas, como alemão,

castelhano, francês, inglês, italiano, neerlandês, norueguês e sueco, fato

que lhe proporciona um lugar de destaque na literatura moçambicana.

Acerca dessas questões levantadas, vejamos o que Oliveira (2009)

destaca no que concerne à obra de Mia Couto:

[...] [a] sua obra, além de ser traduzida para diversos

idiomas é, ela própria, tradutora da história e da cultura

moçambicana para o mundo. A obra de Mia Couto, em seu

conjunto, é uma constante viagem pelas paisagens e lugares

de Moçambique, atravessando também os múltiplos

tempos de que eles são feitos. A viagem é uma metáfora

rica e possível para captar e compor literariamente os nós

dos encontros e desencontros desses espaços e tempos, bem

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como as insondáveis identidades moçambicanas que nesses

nós vivem. Autor de muitas histórias abensonhadas, de

várias brincriações com a língua portuguesa e outras

interinvenções, Mia Couto modela a língua portuguesa

expandindo-a em toda a sua plasticidade verbal. A escrita

de Mia Couto forma imagens em tamanha profusão que

reproduz a movência oral (OLIVEIRA, 2009, p. 1).

Alguns de seus livros foram adaptados para o cinema, caso de O

último voo do flamingo, Terra sonâmbula e Um rio chamado tempo, uma

casa chamada terra. Além disso, o autor moçambicano tem recebido

vários prêmios nacionais e internacionais, por vários dos seus livros e

pelo conjunto da sua obra literária, sendo assim, é, também, Membro da

Academia Brasileira de Letras, e sua escrita é comparada a de Gabriel

Garcia Márquez, Guimarães Rosa e Jorge Amado.

Terra Sonâmbula (1992), objeto de análise neste trabalho, é seu

primeiro romance e lhe concebeu várias premiações. A obra foi

considerada pela crítica um dos doze melhores livros africanos do século

XX. E é, ainda hoje, o mais conhecido, talvez por ter revelado ao mundo

literário a alta qualidade de sua escrita. Em 1999, o autor recebeu o

prêmio Vergílio Ferreira pelo conjunto de sua obra e, em 2007 o Prêmio

União Latina, por júri internacional que distinguiu Mia Couto, primeiro

africano a receber tal prêmio.

[...] pela originalidade e o poder criativo de uma escrita

marcada por uma euforia vocabular que parte da realidade

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de seu país – e em particular do rico imaginário das

populações rurais – para exaltar o poder da vida e a alegria

de viver, mesmo se por vezes, nas condições extremamente

dramáticas (JORNAL DE LETRAS, 2007, p. 4).

Como se percebe a partir da referida citação, adotando o

romance, gênero originalmente europeu, Mia Couto consegue fazer dele,

em suas obras literárias, uma expressão africana sem perder sua

característica de ser uma forma literária nacional. Assim como muitos

escritores africanos, Mia Couto utiliza-se da língua do colonizador

apoiado numa visão local, para produzir uma literatura que comtemple

um lugar híbrido de intelectual, ou seja: “Vive a contradição inevitável,

expressa nos seus textos, de ocupar um lugar híbrido de intelectual,

publicando numa língua originalmente do colonizador, mas assumida,

por razões políticas, como a língua oficial do colonizado e da literatura”

(FONSECA; CURY, 2008, p. 14).

Desse modo, podemos localizar a escrita literária de Mia Couto

em um lugar de fronteira entre a tradição europeia e o saber local. O

escritor parece corroborar com isso em sua afirmação: “escolhemos uma

escrita de fronteira, uma nação feita de mestiçagens e sínteses” (COUTO

apud ANGIUS, 1998, p. 17). Em seu depoimento referente a essa

condição de “ser de fronteira”, Mia Couto deixa claro a necessidade de

se produzir uma escrita que misture o seu lado português com a sua

individualidade africana.

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Sou um escritor africano de raça branca. Este seria o

primeiro traço de uma apresentação de mim mesmo.

Escolho estas condições – a de africano e a de descendente

de europeus – para definir logo à partida a condição de

potencial conflito de culturas que transporto. Que se vai

“resolvendo” por mestiçagens sucessivas, assimilações,

trocas permanentes. Como outros brancos nascidos e

criados em África, sou um ser de fronteira. [...] Para

melhor sublinhar minha condição periférica, eu deveria

acrescentar: sou um escritor branco, africano e de língua

portuguesa. Porque o idioma estabelece o meu território

preferencial de mestiçagem, o lugar de reinvenção de mim.

Necessito inscrever na língua do meu lado português a

marca da minha individualidade africana (COUTO apud

SECCO, 2002, p. 264).

Nesse sentido, Mia Couto utiliza-se da língua do colonizador para

recriar através da sua literatura, uma cultura local. Literatura essa, rica

em neologismos, provérbios, mitos e sonhos que figuravam em um

universo híbrido permeado pela tradição do povo moçambicano e dos

povos que para ali emigraram. Tendo em vista que Moçambique

caracterizava-se por um cenário permeado por guerras e devastações,

onde a miséria e a fome eram uma constante no país, a literatura

coutiniana emprega-se da imaginação, da metáfora do sonho e da ficção

não só para quebrar a visão estereotipada de Moçambique, mas para

promover aos leitores de suas obras uma nova perspectiva, onde o sonho

e a esperança se mantivessem vivos.

Tradição Oral em Moçambique

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Tendo em vista que a população moçambicana, até meados da

década de 80, era de origem predominantemente ágrafa e com índices de

analfabetismo crescente, a tradição oral assume-se como principal meio

de comunicação e perpetuação dos valores ancestrais moçambicanos.

Segundo Chagas (2011), recorrer à tradição sempre foi uma das temáticas

de maior relevância para a “construção” da literatura de Moçambique. A

tradição é a base para a construção da história de uma nação. Mitos e

ritos, crenças e lendas se incorporam à vida de um povo, criando suas leis

e regendo seus costumes.

Em Moçambique, política e literatura eram interligadas, uma vez

que se tratava de uma literatura revolucionária e de caráter nacionalista

tendo em vista a independência proclamada recentemente (1975) e a

guerra que assolava o país. Surge a partir de então Mia Couto, com uma

escrita de cunho surrealista e considerada “pouco crítica” ao que confere

à realidade Moçambicana. A obra singular de Mia Couto manifesta “uma

conflitualidade dialógica na tematização das tradições e seu confronto

com a modernidade” (LEITE, 2003, p. 45). No entanto, “apesar de

parecer mais preocupada com “valores ancestrais”, a narrativa do escritor

também remete a história política do país, uma vez que contempla a

dizimação da cultura por meio do colonizador, bem como da guerra civil,

posteriormente” (CHAGAS, 2011, p. 96).

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Nesse périplo, adota-se então, a língua do colonizador, ou seja, a

língua portuguesa para difundir sua literatura. Como o próprio Mia Couto

afirmou sobre José Craveirinha: “O poeta escreve Moçambique através

da língua portuguesa”. Por esse motivo, o escritor sente a necessidade de

produzir uma narrativa que situe o leitor, em sua maioria não-africano,

do lugar da literatura numa sociedade com alto índice de analfabetismo.

Todavia, fugindo da estética atual da literatura Moçambicana, Mia Couto

incorpora em suas obras a tradição oral, onde presente e passado estão

em constante transição, valendo-se da memória para articular seus textos.

A oralidade diz respeito à cultura ágrafa, tem a ver com o

passado que se apresenta no presente, por meio de

experiências vividas pelos ancestrais, ou de experiências

passadas que podem ser revividas a partir do encontro de

gerações, do contato afetivo, sensorial. As histórias, por

exemplo, são contadas em rodas, em família, em reuniões

coletivas. Elas também, mais que diversão, tem a finalidade

de transmitir os valores e conhecimentos acumulados para

as futuras gerações (MIRANDA; AMBRÓSIO, 2014, p.

127).

O ato de contar, em Moçambique, encontra-se embutido na

tradição oral. Assim, reitera o escritor que, segundo a tradição, os

contadores têm formas de abertura e fechamento dos rituais de contação.

De acordo com Fonseca e Cury (2008), as estórias estariam numa caixa,

num outro espaço, de onde só poderiam ser retiradas e socializadas por

alguém que soubesse cumprir tais rituais. Uma vez compartilhadas, as

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estórias teriam de voltar para o lugar de origem. “Quando não se fecha

uma história, a multidão fica contaminada pela doença de sonhar”

(FONSECA; CURY, 2008, p. 17). Porém, na escrita de Mia Couto

também ele mistura seu locus de enunciação, a palavra escrita, ao

contador, só que nunca fechando suas narrativas, assumindo

radicalmente o lugar da fronteira e da força do sonhar de sua literatura.

Ou seja, o ato de contar assume nas narrativas de Couto um espaço no

qual as possibilidades de reinvenção da memória são variadas e o sonho

é o mentor capaz de dá vazão a uma série de outras estórias, ou seja, não

se limita.

Abordar a realidade africana no momento atual é um grande

desafio, tendo em vista a complexidade de culturas, tradições e tempos

diferentes que ora se cruzam, ora se chocam em Moçambique. Esse

processo de reconhecimento cultural é repetitivo e demorado, uma vez

que “nenhuma tentativa de penetrar a história e o espírito dos povos

africanos terá validade, a menos que se apoie nessa herança de

conhecimentos de toda a espécie, pacientemente transmitidos de boca e

ouvido, de mestre a discípulo, ao longo dos séculos” (HAMPATÉ BÂ,

1982, p. 181), que é a tradição oral.

Estudos apontam que ainda hoje, a oralidade é um elemento

cultural fundamental para o povo moçambicano. Tal afirmativa tem

fundamentação não só pelo fato de haver ainda um grande número de

pessoas sem acesso à escola, mas, sobretudo como uma forma histórica

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de resistência, uma maneira de preservar e reafirmar a cultura ancestral

desvalorizada pelo colonizador. Observamos, então, na ficção desse

autor, a rememoração do passado como ferramenta de reconstrução da

história vivida, através de uma literatura que funciona como artefato de

denúncia e insatisfação do presente.

Tendo em vista à situação atual de Moçambique, a insatisfação da

sociedade africana talvez fosse pelo fato de não poder expressar-se ao

mundo com uma língua nativa, uma língua que viesse a contribuir, nas

palavras de Cavacas (2006, p. 45) “para a memória em construção,

memória comum que respeite o chão dos antepassados, o solo sagrado da

pátria moçambicana” Observamos nas narrativas de Mia Couto, que

esses elementos da realidade social moçambicana, são transformados

dentro de sua literatura em componentes estéticos, enaltecendo, assim, a

persistência na preservação dos valores da tradição cultural.

Segundo Fonseca e Cury (2008), a oralidade é vista por Mia

Couto, como um sistema de pensamento fornecedor de conhecimento e

saberes rearticuláveis, isto é, utiliza-se da sua experiência como escritor

de teatro, jornalista e também sua profissão como biólogo, para conhecer

a singularidade de diferentes regiões do seu país, principalmente as áreas

não-urbanizadas, que lhe abrem um leque de oportunidades de entrar em

contato com as parcelas rurais, aquelas que aderem aos costumes, crenças

e ritos antigos, advindos da época anterior a colonização, viés que

corroborou para o aprimoramento do saber comunicar-se com os de sua

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terra. Nessa mesma direção, Inocência Mata (2011) menciona que a

artesania de Mia Couto recria, dentre outros, os embates entre a língua

portuguesa, o idioma hegemônico do passado colonial e do presente, e as

diversas línguas autóctones moçambicanas, tendo em vista a “fundação

de uma nova geografia linguística, uma nova ideologia para pensar e

dizer o país” (MATA, apud DAVERNI, 2011, p. 14).

Traços da tradição oral no romance Terra Sonâmbula, de Mia Couto

Primeiro romance escrito por Mia Couto, Terra Sonâmbula,

publicado em 1992, é um livro errante, que conta duas histórias

simultâneas. A primeira, narrada por Muidinga e Tuahir, retirantes que

seguem viajem em uma “estrada morta” em busca de refúgio. E a

segunda, protagonizada por Kindzu, narrativa que se inicia quando as

personagens encontram ao lado de um dos corpos vítima dos bandos, uma

mala com cadernos e começam a leitura.

É pela voz do narrador que o leitor toma conhecimento da

interação entre dois mundos aparentemente distintos: o mundo real e o

mundo mítico. O narrador relata os efeitos da guerra e da destruição do

país, mas também enfatiza a capacidade de as personagens sonharem e

desejarem que Moçambique volte a ser aquele do passado de seus

ancestrais, onde a paz e a harmonia reverberavam. Por exemplo, a fala de

Tuahir para o jovem Muidinga indica o cenário de destroços causados

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pela guerra, mas também acena com a esperança de que novos tempos

virão: “– Vamos, com a certeza. E essa guerra vai acabar. A estrada já

vai-se encher de gente, caminhões. Como no tempo de antigamente”

(COUTO, 2007, p. 130).

Notamos nesta citação, a presença da sabedoria do velho ao

repassar seu conhecimento sobre as tradições para o mais jovem.

Analisando o contexto histórico da tradição moçambicana, podemos

associá-la a tradição oral, e, consequentemente, a figura do “velho”, cuja

principal função é transmitir oralmente, as demais gerações, a cultura e a

sabedoria popular vividas no seio de cada comunidade. O papel social e

identitário da tradição é constantemente apresentado no romance através

das personagens de velhos: Tuahir, Taímo e o conselho dos anciães da

terra de Kindzu. Inicialmente, os mais velhos detêm o papel de guias de

toda a comunidade que conseguem explicar o inexplicável e asseverar a

ordem do mundo em que vivem.

De fato, no primeiro caderno, intitulado “O tempo em que o

mundo tinha a nossa idade” (um título significativo que aponta para um

tempo mítico, um tempo de origens), Kindzu relata como o seu pai,

Taímo, costumava sonhar e depois contar essas visões noturnas a toda a

família. O jovem rapaz às vezes tinha dúvidas “sobre a verdade daquelas

visões do velho, estorinhador como ele era” (COUTO, 2008, p. 18), mas

apesar de tudo este ritual doméstico de escutar as “notícias do futuro por

via dos antepassados”, metonimicamente representava o processo de

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transmissão de sabedoria popular ao longo das gerações. Como afirma

Kindzu: “Nesses anos ainda tudo tinha sentido: a razão deste mundo

estava num outro mundo inexplicável. Os mais velhos faziam a ponte

entre esses dois mundos” (p. 18).

Entretanto, já na primeira narrativa do livro, esses papéis se

invertem. Ao encontrar a mala com os ditos cadernos de Kindzu, o jovem

Muidinga compartilha através da leitura, as aventuras narradas pelo

personagem/narrador Kindzu, para o velho Tuahir, seu companheiro de

viagem. Fonseca e Cury (2007) chamam atenção para um fato curioso a

respeito da prática dessas leituras e da relação entre o leitor e o seu

ouvinte. A tradição reza que os mais velhos detêm a sabedoria e a

transmitem para os mais novos. Há, nesse caso, uma inversão de papéis,

pois é o jovem que ler para o velho, tendo em vista que Tuahir não

aprendera a ler. O velho que a princípio não dera importância àqueles

escritos, e por vezes até se chateia com a leitura do miúdo, acaba sendo

conquistado pelas aventuras de Kindzu, tornando-se um ávido leitor-

ouvinte.

-Sabe, miúdo, o que vamos fazer? Você me ler mais desses

escritos.

-Mas ler agora, com esse escuro?

-Acendes o fogo lá fora.

-Mas, com a chuva, a lenha toda se molhou.

-Então vamos acender o fogo dentro do

machimbombo.Juntamos coisa de arder lá mesmo.

-Podemos, tio? Não Há problema?

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-Problema é deixar este escuro entrar na cabeça da gente.

Não podemos dançar nem rir. Então vamos para dentro

desses cadernos. Lá podemos cantar, divertir (COUTO,

1992, p. 136).

A figura de Muidinga representa a aspiração de uma identidade

que a nação moçambicana vivencia no período irrompido pela guerra e

que, no romance, o caminho trilhado pelas personagens propõe que esse

problema só poderá ser resolvido no respeito ao passado, à memória. Não

significa uma volta ao passado, mas remete ao que foi feito da cultura

original em meio ao caos instaurado em decorrência da colonização e da

guerra.

Na história de Kindzu, também ocorre uma busca de

esclarecimento dos acontecimentos desambientes que o rodeiam. Quando

Kindzu consulta os sábios antes de partir de sua aldeia, em busca de se

tornar um Naparama – espécie de guerrilheiro mágico, que lutava contra

os fazedores de guerra – ele percebe quão desequilibrada a guerra e o

período de colonização tornaram a vida em Moçambique. A guerra civil

virtualmente aniquila o universo de sabedoria dos mais velhos. As

histórias que iam aprendendo com os antepassados já não servem de

resposta neste cenário de morte e destruição. Kindzu os compara com um

bando de crianças desorientadas, invertendo os valores hierárquicos

atribuídos à velhice e à juventude: “Palavraram muita coisa sobre o

estado de saúde do falecido, mas eu já não lhes prestava atenção. Aquele

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grupo de idosos, de repente, me pareceu estar perdido também. Já não

eram sábios, mas crianças desorientadas” (p. 30).

Nesse sentido, os mais velhos da terra não conseguem ajudar

Kindzu, não porque a tradição em si mesma tenha perdido o seu valor na

realidade contemporânea, mas porque esses velhos sábios são incapazes

de procurar novas coordenadas num mundo onde a guerra destruiu as

bússolas. Nesse sentido, a guerra e os conflitos culturais embutidos na

desordem que a colonização instalara, abalou os alicerces das tradições e

a sabedoria dos antigos. Em uma entrevista concedida ao jornal O Estado

de São Paulo, em 2007, Mia Couto discorre sobre essa realidade pouco

vista:

Numa sociedade oral, os mais velhos são guardiães de

valores, de saberes. Mas é preciso não mistificar. Existem

culturas africanas diversas e, em cada uma, o lugar e o

papel dos velhos é diverso. O continente africano é

facilmente entendido por via de mistificações e

estereótipos. Um deles é a romantização da natural

generosidade e do respeito que as comunidades nutrem

pelos idosos. Isso nem sempre sucede e a miséria está

desnaturando essa solidariedade onde ela existia antes (p.

27).

Mesmo em meio a tanta indefinição e incerteza, Kindzu revela-

se um incansável sonhador em busca de um lugar onde ainda imperem a

paz e a esperança: “Eu ouvia os anciãos e ainda duvidava: não restaria,

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ao menos, um lugarzinho onde eu me encontrasse em privado sossego?

Um sítio que a guerra tivesse esquecido?...” (COUTO, 1992, p. 32). Esse

embate entre as tradições, os costumes, o novo, e o estrangeiro é expresso

no choque entre as línguas, como percebemos na fala de Kindzu: “Esses

fantasmas nos falavam em nossas línguas indígenas. Mas nós já só

sabíamos sonhar em português” (COUTO, 1992, p. 103). Essa

confluência de línguas, modos de vida diversos faz nascer em Kindzu o

anseio de reencontrar um lugar que substitua as suas origens “Farida

queria sair da África, eu queria encontrar outro continente dentro de

África” (COUTO, 1992, p. 103).

Portanto, Marquêa (2007) discorre sobre esse sentimento de

estranhamento vivenciado por Kindzu:

As culturas africanas, na maioria ágrafas, eram e

continuam sendo ainda o canal veículo de costumes e

valores da sua tradição. A grande quantidade de línguas

existentes em Moçambique, que ultrapassa vinte, se

transformava num momento em que os próprios

moçambicanos se sentiam estrangeiros em sua própria

casa, agora abrigados sob o nome do Estadomoçambicano

e sob a língua oficial portuguesa (p. 167).

Toda a narrativa coutiniana desenrola-se nessa perspectiva,

repleta de personagens errantes, que perambulam à procura dos seus, de

si, enfim do seu país, logo que, como sentenciara o feiticeiro no último

capítulo a Kindzu, “esta guerra não foi feita para vos tirar do país, mas

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para tirar o país de dentro de vós”; “roubaram-vos tanto que nem sequer

os sonhos são vossos, nada de vossa terra vos pertence, e até o céu e o

mar serão propriedades de estranhos” (COUTO, 1992, p. 200). Nesse

seguimento, os cadernos de Kindzu representam ao longo da viajem de

Muidinga e Tuahir, uma incursão ao conhecimento ancestral e também

uma fonte de esperança em meio aos destroços causados pela guerra.

Percebemos essa intenção na fala de Kindzu ao dialogar com o fantasma

do pai:

-O que andas a fazer com um caderno, escreves o

quê?

-Nem sei, pai. Escrevo conforme vou sonhando.

-É bom assim: ensinar alguém a sonhar.

-Mas pai, o que passa com esta nossa terra?

-Você não sabe, filho. Mas enquanto os homens

dormem, a terra anda procurar.

-A procurar o quê, pai?

-É que a vida não gosta sofrer. A terra anda

procurar dentro de cada pessoa, anda juntar

sonhos. Sim, faz conta ela é uma costureira dos

sonhos (COUTO, 1992, p. 95).

Nesse sentido, ao analisar a questão da Tradição Oral no romance

Terra Sonâmbula, podemos observar que a proposta de Mia Couto ao

escrever essa narrativa, por meio de uma estória dentro de outra estória,

a de Muidinga e Kindzu, nos apresenta uma trama que aparentemente

parece fragmentária e com estórias desconexas, mas que no decorrer do

livro se completam e se explicam. O autor, por sua escrita, revela o seu

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desejo de reconstrução do homem moçambicano, não pela volta ao

passado, mas por remeter a ele produzindo um confronto entre passado e

presente, e consequentemente um caminho para o futuro. Tomando as

palavras de Marquêa (2007, p. 51): “Nesse sentido, a literatura de Mia

Couto não seria o resgate do passado, nem o lamento de suas soluções,

mas o passado seria um motivo que faria da memória de Moçambique

uma edificação poética que não distanciada da guerra e da destruição

pode propor seu reverso”.

Em meio a uma sociedade destruída por guerras e devastações,

caracterizada por uma ruptura com os saberes ancestrais e uma

desintegração identitária constante, a literatura de Mia Couto representa-

se como um espaço de refúgio, onde a idealização de um mundo novo

possa ser instaurado. Utilizando-se de artefatos poéticos, para dar vazão

a indivíduos marginalizados e denunciar o descaso e abandono

vivenciado em Moçambique, é possível perceber a predominância de

aspectos que buscam abordar a riqueza que a tradição oral constitui na

história do povo moçambicano – temática presente não só em Terra

Sonâmbula, mas em todas as obras de Mia Couto.

Referências

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte, Editora

UFMG, 1998.

COUTO, Mia. Terra sonâmbula. Lisboa: Caminho, 1992.

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Couto, Espaços Ficcionais. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

MACÊDO, Tânia; MARQUÊA, Vera; SANTILLI, Maria Aparecida;

FLORY, Suely Fadul Villibor. Literaturas de língua portuguesa:

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