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Revista Brasileira de Cincia Poltica, n16. Braslia, janeiro -
abril de 2015, pp. 273-292. DOI:
http://dx.doi.org/10.1590/0103-335220151611
Paulo Csar Nascimento* e Mateus Braga Fernandes**
A phrnesis, o heri e a plis:os paradoxos de Hannah Arendt como
leitora dos Antigos
The phronesis, the hero and the polis: paradoxes of Hannah
Arendt as a reader of the Ancient
* professor adjunto do Instituto de Cincia Poltica da
Universidade de Braslia (UnB). E-mail: .
** doutorando em Cincia Poltica na UnB. E-mail: .
Dar razo aos antigos no pode significar um retorno a eles nem
sua imitao.Hans-Georg Gadamer
Hannah Arendt procura resgatar uma particularidade da poltica
uma certa dignidade que no somente parece ter escapado de nosso
entendimen-to e de nossas prticas como, de algum modo, parece ter
sido mais do que esgarada ao longo dos sculos, chegando a ser
eclipsada desde o incio de sua fundao. Para compreender o
pensamento da autora, o primeiro passo deve ser o de resgatar o
sentido original da poltica. No porque carea de algum sentido que
nos indagamos sobre o sentido da poltica, mas porque parece no
haver mais nenhum sentido para acreditarmos no sentido original da
poltica, o qual, para Hannah Arendt, a liberdade.
Para fundamentar sua teoria poltica, Arendt faz uma articulao
entre aspectos filosficos, literrios e histricos da tradio iniciada
por Homero e Aristteles. Dessa forma, para compreender essa
abordagem, necessrio verificar quais so as implicaes dessas
leituras sobre suas definies do ethos e do logos do homem poltico e
sobre suas ideias de restaurao do espao poltico a partir das
divergentes configuraes da plis grega.
Assim, para diz-lo de modo mais especfico, este artigo surge da
perplexi-dade dos autores ao tentarem articular a constelao formada
por duas ideias
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estudadas por Hannah Arendt, sob o pano de fundo que separa
radicalmente a violncia do poder poltico: (i) a relao da phrnesis
aristotlica com a exaltao da coragem como virtude poltica e sua
exemplificao por meio da figura de Aquiles, de Homero; e (ii) as
configuraes agonsticas da plis grega em relao estabilidade poltica
alcanada com as instituies polticas romanas. Dessas ideias surgem
dois paradoxos1. O primeiro paradoxo trata da vinculao do ethos do
heri homrico, caracterizado pela coragem, virtude poltica
aristotlica da phrnesis. Portanto, diz respeito necessidade de
Hannah Arendt articular seu entendimento histrico-literrio de
Homero com sua leitura filosfica de Aristteles. J o segundo
paradoxo aparece na descrio do espao pblico como locus de revelao
do agente por meio da ao e do discurso, ao mesmo tempo que fonte do
surgimento de instituies e locus de discusses sobre elas.
Apresenta-se, assim, a tenso entre a imagem de fundao da plis
advinda de um acampamento militar permanente e a imagem de
organizao da plis enquanto criao e manuteno de institui-es civis e
polticas. Para isso, abordaremos tambm os aspectos histricos
relacionados aos desenvolvimentos filosficos propostos pela
autora2.
Mais alm da imediata aparncia de uma recapitulao nostlgica ou de
uma comparao anacrnica, o que se v a autora alem debruando-se, por
um lado, sobre a difcil relao entre poltica e violncia, entre a
pala-vra e a fora, entre a persuaso e a coao; e, por outro, sobre a
complicada hierarquizao tica entre pensamento e prtica, quando
situada ao lado da equivalncia poltica entre discurso e ao.
O paradoxo da autonomia heroica: o heri entre a imprudncia da
coragem e o exerccio da phrnesis
O pensamento poltico de Hannah Arendt situa-se entre a viso que
a autora tem do heri homrico que enfatiza a poltica como instncia
de
1 Querendo afirmar que algumas das ideias apresentadas por
Hannah Arendt so paradoxais, temos de reafirmar que, no entanto,
elas no so necessariamente ideias contrrias opinio comum como
sugere a etimologia da associao entre o prefixo para (contrrio a,
alterado ou oposto de) e o sufixo doxa (opinio ou fama) na palavra
paradoxo. Isto , as ideias que iremos investigar nos levam a
possibilidades aparentemente divergentes, embora consigam sustentar
seu sentido no contexto da obra da autora e, at mesmo, apoiado nas
leituras de Hannah Arendt que podem ter dado origem a tais ideias.
Em outras palavras, estamos sugerindo que as ideias que vamos
abordar no deveriam ser facilmente descartadas como meras
contradies quando se diz o contrrio do que se havia sido dito
anteriormente, procurando sustentar duas afirmaes opostas em valor
e em sentido.
2 No entanto, Arendt frisa que essa parte de seu argumento
terico e metafrico, no histrico.
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revelao do agente no (e por meio do) discurso e ao, na
pluralidade do espao pblico e outra que se preocupa com a poltica
enquanto atividade coletiva voltada para a criao de instituies,
cujas funes seriam a de mediar as relaes entre classes e as
contradies entre Estado e economia, bem como a de assegurar a
universalidade dos direitos dos cidados e as possibilidades
concretas da atividade poltica.
Nossa primeira tarefa ser compreender que a viso homrica da
poltica arendtiana, que ressalta a glria dos grandes feitos e dos
grandes discursos dos heris (cf. Arendt, 2001, p. 210-11)3,
apresenta-se como a marca da rup-tura provocada pela ao em seu
incio, como um acontecimento indito, carregado de possibilidades e
gerador de milagres e da novidade alcan-ada com a pluralidade na
continuidade da ao. A pluralidade, segundo Arendt, a condio pela
qual se sustenta a poltica e, consequentemente, a liberdade. Vale a
ressalva, portanto, de que a palavra heri, ela mesma guarda em sua
significao somente a ideia de homem livre4 e, embora implicasse
originalmente certa distino, essa distino estava ao alcance de
quaisquer desses homens (cf. Arendt, 2001, p. 199, nota 10) que
ousassem conviver e agir em conjunto com outros homens e que
tivessem condies para tanto.
Para Arendt no importar, contudo, o objetivo nem o contedo dessa
ao poltica, se comparada usual categoria de meios-fins, que precisa
tanto de um contedo quanto de uma finalidade para fundamentar e dar
seguimento ao. O foco na revelao de si e do acontecimento, que a ao
permite, nos obriga a aceitar que o importante a atuao e a
concertao, o lanar-se ao espao em que a ao possa ser iniciada e
ento continuada por outros, e no que o ator tenha conseguido ou
venha a conseguir, com sua ao individual, aquele objetivo prvia e
intimamente determinado.
Para compreendermos melhor a proposta de ao poltica arendtiana,
precisamos igualmente nos aproximar da ideia de phrnesis, tal como
con-cebida por Aristteles. No difcil ver que no cerne do pensamento
moral aristotlico, exposto em sua tica a Nicmaco, est a importncia
de se viver plenamente uma vida para que sejamos felizes. Essa
plenitude, que julgamos, em princpio, como um modo extremado de se
viver uma vida, porquanto
3 Arendt (2001, p. 34) vai dizer que a estatura do Aquiles
homrico s pode ser compreendida quando se o v como autor de grandes
feitos e pronunciador de grandes palavras.
4 O heri revelado pela histria no precisa ter qualidades
heroicas; originalmente, isto , em Homero, a palavra heri era
apenas um modo de designar qualquer homem livre que houvesse
participado da aventura troiana e do qual se podia contar uma
histria (Arendt, 2001, p. 199).
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elevaria sua potncia ao mximo, paradoxalmente o termo mdio que
de-ver balizar nosso entendimento sobre a phrnesis. O que
Aristteles busca a harmonizao entre a boa ao (eupraxia) e o
desejvel de ser feito em cada situao. A partir disso, vemos que,
se, para Aristteles, a phrnesis a virtude poltica por excelncia, em
Homero, a coragem o que promove a distino do guerreiro.
Hannah Arendt, por sua vez, vincula a poltica ao ethos homrico
em diversas obras, e explicitamente na coletnea O que poltica?. O
heri homrico e o homem poltico parecem confundir-se na busca por
glria e imortalidade. Ambos circulam por espaos no privados, em
convivncia com pares, que so seus iguais em liberdade. A coragem,
atributo exemplar do heri homrico, para a pensadora alem a maior
das virtudes (aretai) polticas (cf. Arendt, 1999, p. 53; 2001, p.
45-6). Assim, podemos argumentar que, para a autora, a phrnesis
deveria estar articulada coragem. No en-tanto, preciso antes saber
se a phrnesis segue a ideia de moderao, como expresso em prudentia,
ou o seu contrrio, no exerccio ativo (energeia) da excelncia
(aret), que um tipo de imoderao. A tradio escolstica, ao traduzir o
termo grego para o latim, optou por associar a phrnesis ideia de
prudentia. Em nosso argumento, no entanto, destacamos o fato de que
Arendt caminha na direo contrria ao exaltar a coragem como virtude
po-ltica, pretendendo resgatar o sentido original aristotlico e
compatibiliz-lo com o de Homero. Neste ponto, portanto, devemos
buscar a interpretao arendtiana do Aristteles da tica a Nicmaco,
para confront-la leitura que a autora faz do heri homrico, de onde
ela extrai as caractersticas que lhe servem de analogia poltica. Ao
percorrermos esse caminho, preten-demos buscar respostas seguinte
questo: se a poltica enquanto forma de embate discursivo (agn) no
significa um apelo violncia, o paradoxo entre a nfase arendtiana na
no violncia da ao poltica e o carter trgico e agonista daqueles que
agem na plis desapareceria?
De incio, poderamos adotar, como recomendam vrios comentadores,
a traduo de phrnesis por sabedoria, inteligncia ou por
discernimento5. No entanto, um aspecto importante dessa virtude sua
conexo intrnseca
5 Assim fazem Ren Antoine Gauthier e Jean Yves Jolif, tradutores
e comentadores para a lngua francesa da tica a Nicmaco; William
David Ross, tradutor para o ingls; alm de Julia Annas (em The
morality of happiness), que segue o tradutor ingls Terence Irwin.
Comentadores como Carlo Natali (em The wisdom of Aristotle) e John
Burnet (em The ethics of Aristotle) utilizam-se da palavra em grego
ou transliterada. Ver outros aspectos sobre essa questo em Spinelli
(2005, p. 6).
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ao e prxis ainda permaneceria oculto nessas definies6. Assim,
preferimos traduzir por sagacidade, para podermos evidenciar que a
base da noo de phrnesis no um tipo moderado de atitude ou uma vida
cau-telosa e comedida, mas sim a capacidade de ter atitudes
sagazes, realizando escolhas sbias, diante dos desafios
apresentados pelo cotidiano sempre com vistas eudaimonia, ou seja,
vida plena7. Isso pode exigir por vezes atitudes imoderadas
(hbris), quando um problema profundo pede uma soluo radical como a
melhor alternativa.
Se vemos que a phrnesis no pode estar desligada de uma prtica
cotidia-na e singular, como um exerccio ativo (energeia) e no como
mera repetio (kinesis), devemos agora tentar compreender os motivos
que levam Arendt a exaltar a coragem como a virtude poltica por
excelncia8.
No nos parece que haja, por parte da autora alem, escolha da
cora-gem em detrimento da phrnesis, ou ainda de outras virtudes
morais, mas a simples percepo de que a coragem aquela disposio do
carter que est ntima e diretamente ligada iniciativa e novidade. E
tal ligao, no contexto arendtiano, visa recuperao da importncia da
ao enquanto possibilidade de mudana e enquanto atividade na qual, e
por meio da qual, se revela o quem do agente, no somente o que ele
ou faz.
A coragem, portanto, parece ser o elemento ausente nas condies
polticas atuais para que se possa, efetivamente, retomar a phrnesis
como virtude poltica. Isto , parece ser o melhor exerccio para
estimular a ao coletiva e concertada dos indivduos e para restaurar
a conexo entre gover-nar (archein) e realizar (prattein)9 ou, em
outras palavras, para superarmos
6 E isso porque, como relembra Spinelli (2005, p. 6, nota 3;
grifo da autora), que escreveu sua dissertao sobre a phrnesis na
tica a Nicmaco, a phrnesis uma virtude do intelecto prtico, isto ,
que no se limita apenas a julgar ou discernir, mas est
intrinsecamente relacionada ao.
7 Ver comentrios de Arendt (2001, p. 205-06) sobre sua utilizao
da noo grega de eudaimonia.8 A meno coragem est espalhada em
diversos pontos da obra arendtiana. Mas se pode ver
explicitamente essa exaltao em Arendt (1999, p. 53; 2001, p.
45-6 e 199). Em Sobre a violncia, por exemplo, existe uma sntese do
que seria a virtude da coragem em movimentos polticos atualmente:
essa gerao parece caracterizar-se em qualquer lugar pela pura
coragem, por uma surpreendente disposio para a ao e por uma
confiana no menos surpreendente na possibilidade de mudana (Arendt,
2009, p. 31). A coragem descrita por Aristteles na tica a Nicmaco
no captulo 6 do livro III (cf. Aristteles, 2001, p. 60-5, 1115
a6-1117b 29). Ele tambm adverte que h cinco outras espcies da mesma
disposio moral que no devem ser confundidas com a coragem, a saber:
a coragem do cidado-soldado; a coragem como experincia prvia e
conhecimento; o arrebatamento; a confiana que gera ousadia; e a
ignorncia do perigo (cf. Aristteles, 2001, p. 62-5, 1116 a8-1117
b8).
9 Tanto no Fragmento 3a de O que poltica?, como em A condio
humana, Arendt (1999, p. 44; 2001, p. 202) relembra que as palavras
gregas e latinas para designar o incio de uma ao, o comeo de um
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o paradigma do que Holloway (2003, p. 43-51) denomina como a
fratura instaurada pelo poder-sobre, e realizarmos aquilo
caracterizado como poder--para. Em resumo, a coragem pode fazer do
poder um poder-fazer.
Diante da ideia de que, retirada a coragem do carter humano no
se pode realizar a poltica em uma vida plena, poderamos finalmente
concluir que o discernimento prtico e contnuo entre o que necessrio
e o que no necessrio para a eudaimonia que parece estar em jogo. Em
tempos em que a poltica converte-se em mera estratgia, a coragem de
lanar-se ao concertada precisa associar-se novamente sagacidade da
phrnesis, para que o poder-fazer no seja distinto do
queremos-e-podemos, do qual fala Arendt (2009, p. 107) na concluso
de seu livro Sobre a violncia.
Mesmo com isso posto, talvez ainda seja difcil compreender a
escolha arbitrria de Arendt por exaltar a coragem como virtude
poltica, pois uma vez que a coragem esteja associada imagem de
Aquiles, heri homrico pico e guerreiro (Arendt, 2005, p. 307),
estaremos, paradoxalmente, diante de uma ideia belicista o que
seria aparentemente contrrio noo da poltica como o oposto da
violncia10. Mas ela crucial para que se chegue ousada afirmao da
correspondncia entre ao e pluralidade. Nas palavras de Arendt
(2001, p. 15; grifo da autora), a ao, nica atividade que se exerce
diretamente entre os homens e sem a mediao das coisas ou da matria,
corresponde condio humana da pluralidade, que especificamente a
condio [] de toda vida poltica. Vejamos em que aspectos a coragem o
que permite essa correspondncia.
A origem latina da palavra coragem deixa clara a associao entre
as palavras corao (que tambm possua a conotao de esprito [como
em
processo, eram respectivamente archein e agere. Essas palavras
tm especial importncia, pois regis-tram o fato de que parte da
experincia humana, desde tempos antigos, a possibilidade mesmo que
individual, em princpio de desencadear um processo (Arendt, 1999,
p. 44.). Mas no livro de 1958, A condio humana, ela apresenta ainda
outros dois verbos, um grego e um latino prattein e gerere,
respectivamente, para indicar o duplo aspecto de toda ao: o comeo
(archein/agere) e a realizao (prattein/gerere). E ressalta que, em
ambos os idiomas, as palavras que originalmente des-ignavam apenas
a segunda parte da ao, ou seja, sua realizao, passaram a ser os
termos aceitos para designar a ao em geral, enquanto as palavras
que designavam o comeo da ao ganharam significado especial, pelo
menos na linguagem poltica: archein passou a significar
principalmente governar, quando empregada de maneira especfica, e
agere passou a significar liderar, em vez de pr em movimento (cf.
Arendt, 1999, p. 57; 2001, p. 202). Essa mudana explicita,
sobremaneira, a separao entre o governo que prope e o agente que
executa.
10 Isto , se tomarmos a poltica de que se trata nesse texto como
sinnimo de poder (cf. Arendt, 2009, p. 73-4).
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ingls mind, soul]) e ao. Fazer do corao ou do esprito um verbo,
torn-lo aparente no ato de quem o possui: essa talvez fosse a ideia
presente nos primeiros que formularam tal conceito; a coragem
seria, portanto, a ao do corao, a autntica e espontnea atitude do
esprito ativo.
A prtica da coragem, dessa maneira, diz respeito
fundamentalmente ao modo como se enfrentam os desafios. O corajoso
age, resiste ou desiste por uma finalidade nobilitante; em qualquer
dos casos, mantm-se confiante e com uma disposio esperanosa. Ele no
sustenta um apego demasiado vida e no foge do que lhe aflitivo11.
Mas, no exerccio ativo de sua ex-celncia, no dispensa a companhia
de outras pessoas, de modo que sua atividade ser mais contnua e ser
mais agradvel em si (Aristteles, 2001, p. 186, 1170 a 23) se
realizada com outras pessoas boas. Assim, se no for continuamente
reafirmada12 e reconhecida in concert, a virtude poltica da coragem
ser ainda pr-poltica, como o a liberdade da espontaneidade,
enfatiza Arendt (1999, p. 59).
A despeito de toda essa descrio, temos de concordar que, de
fato, o homem corajoso parece temerrio em relao ao covarde, e
covarde em re-lao ao temerrio (Aristteles, 2001, p. 45, 1109a).
Isso nos indica que a situao intermediria deve ser louvada em todas
as circunstncias, embora o ponto central do argumento seja notar
que s vezes devemos inclinar-nos no sentido do excesso, e s vezes
no sentido da falta, pois assim atingiremos mais facilmente o meio
termo que certo (Aristteles, 2001, p. 47, 1109b 33). Mais ainda,
como afirma Spinelli (2005, p. 78) sobre a phrnesis na tica a
Nicmaco, devemos ter em mente que, embora em si mesma a virtude
consista em uma mediania, com relao ao que bom e reta razo, ela um
extremo, pois a nica disposio que est de acordo com eles e capaz de
alcan-los. O exerccio da coragem, portanto, expandido pela razo e
limitado pelas circunstncias, e no o contrrio.
11 Vale recordar que, para Aristteles, na interpretao de Arendt
(2001, p. 25, nota 15), a imortalidade daqueles que permanecem na
histria por seus feitos e palavras dependia, tambm, de algum desdm
em relao s necessidades da vida, e que, como ela reafirma, o preo
da eudaimonia a prpria vida (Arendt, 2001, p. 206). No nos parece
que tal ideia esteja to distante da revitalizao que Nietzsche
(2009, p. 30) prope, para quem os espritos nobres tm uma atitude de
indiferena, demonstrando seu desprezo por segurana, corpo, vida,
bem-estar.
12 Aristteles (2001, p. 25, 1098a) diz que tal exerccio ativo
[da excelncia] deve estender-se por toda a vida. Tambm o que se v
descrito nos relatos etnogrficos de Pierre Clastres (2004, p. 299),
quando ele diz que a vida guerreira um combate perptuo.
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Sobre as contradies da plis e do heriDe todo modo, preciso
compreender essa busca pela glria dos grandes
feitos e dos grandes discursos dentro de seu registro histrico.
Vale recordar que Aristteles deixa claro que a eudaimonia uma
conquista reafirmada, ainda que seja feita naturalmente. Com isso,
o espao dessa reafirmao justamente a causa e a consequncia da criao
e da manuteno da plis, como um lugar duradouro e palpvel que possa
sobreviver tanto aos feitos memorveis quantos aos nomes dos
memorveis autores, e possa ser trans-mitido posteridade na sequncia
das geraes (Arendt, 1999, p. 54). Mas a plis no pode sobreviver
como um espao poltico de liberdade e pluralidade quando surge um
heri que age e fala por todos. Portanto, parece que so justamente
os aspectos trgicos e lricos do heri que mantm a contradio13 que
faz viver a plis a contradio de ser um espao de iguais ao mesmo
tempo que transforma em virtude a coragem de falar e de agir qua
indivduo, como uma revelao de si e de seu mundo.
No entanto, notvel que um excessivo arrebatamento, possvel
causa-dor de violncia, ajuda os homens corajosos a empreenderem
suas aes. E se possvel supor que Aristteles concordaria com a
afirmao, tambm podemos dizer que Arendt no a negaria14.
Arendt afirma que a ao (prxis) e o discurso (lexis), alm de
terem a afinidade de serem da mesma categoria e da mesma espcie e
de serem as mais altas de todas as capacidade humanas, tambm
figuram desde os tempos pr-plis como fundamentais para o surgimento
da esfera pblico-poltica, a esfera dos negcios humanos. E assim,
como o autor de grandes feitos e o pronunciador de grandes palavras
(Homero, Ilada, apud Arendt, 2001, p. 34, nota 6) que essa autora
apresenta tanto Aquiles, dos tempos picos de Ho-mero, quanto
Antgona, dos tempos trgicos de Sfocles. Com o surgimento e a
reconfigurao da plis, entretanto, a ao e o discurso separaram-se e
tornaram-se atividades cada vez mais independentes. A nfase passou
da ao
13 Vale mencionar a explicitao que Rachel Gazolla (2001, p. 62)
faz sobre essa contradio presente no heri: o heri aquele que tem a
fora de estar em hbris, isso o que lhe d a estatura do heri. S a
ele cabe a hbris no sentido trgico. Ao homem comum compete
amedrontar-se com tal pos-sibilidade e consequncias.
14 Para Aristteles (2001, p. 63, 1117a), os homens corajosos
agem por causa da honra, mas o arrebata-mento os ajuda. E Arendt
(2009, p. 85) vai dizer que a violncia s tem sentido quando uma
re-ao e tem medida, como na defesa prpria. Mas torna-se irracional
no momento em que racionalizada e se converte em princpio de
ao.
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para o discurso, e para o discurso como meio de persuaso
(Arendt, 2001, p. 35). Com isso, se o espao de ao tivesse se
reconfigurado a ser limitado por uma lgica da escassez (Urrutia,
2001, p. 185), em que a luta travada de modo a fazer do vencedor
aquele que conseguiu angariar mais recursos para continuar sua ao,
ento o heri homrico teria de se afastar da poltica e se reaproximar
da guerra entendida como a guerra da necessidade pelos recursos
escassos, aqueles com os quais ele pode levar suas aes a cabo. A
plis, caracterizada pela palavra, pela publicidade e pela
igualdade, como apresentada por Vernant (2004, p. 53-72), cria
essas instituies justamente na tentativa de evitar tal guerra.
Assim, mesmo estando coragem e violncia separadas por princpio,
os traos marcadamente belicosos e violentos de heris como Aquiles
deixaram de ser relevantes para o que realmente acontecia na gora
conforme a plis foi se reconfigurando. Ou seja, a violncia dos
heris homricos ainda uma atitude pr-poltica. O que era passvel de
ser observado e vivenciado nos palcos das tragdias e nos tempos da
criao da plis eram as discusses e as conflitivas aes humanas, e no
mais os relatos picos.
Na plis, no havia mais espao para as grandiosas aes de guerra
nem para as pequenas violncias pr-polticas15. Portanto, se a
discusso sobre o destino comum passava a lidar com leis e
instituies, a coragem precisava se adaptar a essa nova dimenso: o
tipo de coragem que era exercida com a violncia pica transformou-se
na coragem que s possvel ser exercitada autonomamente no trato com
outros e cuja excelncia s experienciada na autolimitao da
phrnesis.
Sobre as mudanas na plis e no heri: da pica lrica J que
afirmamos a validade conceitual da phrnesis para compreender a
exaltao da coragem por Arendt, justamente essa viragem decisiva
na hist-ria da plis (cf. Vernant, 2004, p. 68) tambm uma
transformao no conceito de coragem, isto , de sua associao violncia
pica para uma aproximao phrnesis aquilo que precisa ser considerado
para que saibamos porque ainda precisaramos nos posicionar
historicamente entre estes dois momentos:
15 Em diversas pontos de sua obra, Arendt deixa clara a ideia de
que, em seu resgate da poltica grega da plis, ela pretende afirmar
que a guerra est fora dos limites do poltico, assim como a violncia
e a ordem (que no visa persuaso, e se mantm por meio da fora ou
outro tipo de coero), que so atitudes pr-polticas ou despticas (cf.
Arendt, 1999, p. 59-61; 2001, p. 35-6).
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entre a plis fundada sobre a base aristocrtica da eunomia (de
Slon) e a plis refundada sobre uma nova base, democrtica, da
isonomia (de Clstenes).
Assim, nos fins do sculo VII a.C., com as primeiras configuraes
da plis grega, o que vemos o surgimento da poesia lrica em oposio
pica. Mais tarde, j no sculo V a.C., veremos que a tragdia, numa
combinao de elementos picos e lricos, que passa a ser a expresso
tico-esttica que melhor apresenta a relao conflituosa entre os
valores cvicos e pessoais; ou seja, a tragdia pretende expressar os
valores de um conjunto cvico e seus feitos, como o faz a pica;
tambm pessoal [a palavra pessoa exprime aquele que se sabe
diferente entre diferentes] como a lrica (Gazolla, 2001, p.
36).
No sentido homrico, a poltica se desvia da ideia de liberdade
porque o heri homrico poderia agir sozinho. Um heri homrico, como
Hrcules, pode realizar grandes faanhas mesmo sozinho e precisava
dos homens apenas para receber a notcia sobre elas (Arendt, 1999,
p. 59). E ento vemos que, para Arendt (1999, p. 102), o indivduo em
seu isolamento jamais livre; s pode s-lo quando adentra o solo da
plis e age nele. Com isso em mente, a sada para a discusso sobre o
tema do heri sobre qual aspecto iremos abord-lo pico ou lrico? ,
uma vez que a palavra heri, ela mesma, significava homem livre,
como vimos.
H, portanto, que se resgatar a simbiose original entre o agir e
o falar, reconhecendo-se que a liberdade do falar, em especial,
aquela atividade que s possvel no trato com outros, como relembra
Arendt (1999, p. 59). Para diz-lo de outro modo, pretendemos que
essa liberdade de falar seja como aquela performance que revela o
agente no, e atravs do, ato, fazen-do aparecer, com ele, a
estrutura do mundo que o constitui e, portanto, diferente da
performance individualizante16. Ento, a opo pela lrica nos abriria
alternativas de expor e de explorar a excelncia do heri em meio a
suas marcantes fragilidades, e a partir das condies particulares do
mundo que seu discurso performativo projeta. Portanto, se o campo
de escolhas parece estar aberto, devemos confrontar os traos
marcantes tanto da pica quanto da lrica, para que possamos, ao
final, olhar novamente para a figura do heri e saber qual o tipo de
poesia que se far dele.
A figura de um heri pico, que encarna em si as paixes de um
povo, uma imagem autocrtica que deve estar fora do que se quer
entender por
16 Para saber mais sobre a grande diferena entre ato performtico
e ato performativo, ver Butler (2003, p. 205).
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283A phrnesis, o heri e a plis
poltica cujo sentido a liberdade e, consequentemente, por
democra-cia. Contrariamente a isso, o heri lrico expressa sua paixo
pessoal, em comunho s paixes que tm os demais e no em substituio ou
por generalizao universalizante.
A tragdia convida partilha das emoes vivenciadas pelo heri, pois
expe os extremos das situaes, dos erros, das escolhas. O foco da
tragdia no o ator, o seu personagem, mas a ao e a intriga, o
acontecimento. por isso que a cidade reaparece nas cenas
dramatizadas pela tragdia, e que cada cidado tem a oportunidade de
experimentar seus prprios conflitos e os conflitos que ele tem com
a coletividade17. Assim, como no desdobra-mento da lrica, mas
distintamente dela, na tragdia a cidade encontrou uma forma de
purificar a hbris, as desmedidas ou certa imoderao nas palavras e
atitudes, que, como vimos, paradoxalmente surgiam e mantinham a
cidade em sua dynmeis18, em seu movimento de restaurao.
A tragdia, portanto, apresenta-se como a primeira experincia
poltica de pluralidade humana porque desenvolve-se: (i) a partir
dos conflitos vividos cotidianamente pelos cidados da plis e no
choque entre a manuteno do ethos tradicional, que reverencia os
heris antigos e seus feitos memorveis; e (ii) no questionamento
desse mesmo ethos, por conta da descoberta de novas
institucionalidades, afirmadoras tanto do singular lrico quanto do
coletivo pico, com uma interioridade que no se aparta totalmente do
pblico-poltico.
O paradoxo apontado na leitura que Hannah Arendt faz do heri
hom-rico e da virtude aristotlica da phrnesis , dessa forma,
atenuado ao rein-terpretarmos o significado dos conceitos de
coragem e da prpria phrnesis como sagacidade. Alm disso, as mudanas
ocorridas na plis grega com a passagem da violncia pica para a
hegemonia da palavra no espao pbli-co fenmeno este que tambm se
manifesta no surgimento da tragdia , somente reforam essa
convico.
17 Como enfatiza Gazolla (2001, p. 49), o trgico recua ao pico e
ao lrico na medida em que, quanto ao primeiro, alm da narrao e dos
personagens do coro, quer representar os mitos heroicos, e quanto
ao segundo, alm da musicalidade e dos gestos, deixa as falas
atravessadas pelas emoes e pelas dificuldades em viv-las.
18 Essa dinmica poltica um sinnimo da potncia do poder na plis e
revela claramente a relao dos gregos com o poder, com o seu poder:
ao mesmo tempo que ele estabelece a dinmica que move a cidade e que
traz consigo as possibilidades de superao para os problemas
coletivos, carrega junto o efeito catico de ter de resolver as
injustias pelas reparaes ou restauraes da ordem. Alm das referncias
em Vernant (2004, p. 115-25; 129-35), Castoriadis (1987, p. 301-13)
e Arendt (2001, p. 204, 212), ver tambm Duarte (2009, p. 144).
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284 Paulo Csar Nascimento e Mateus Braga Fernandes
Ainda assim, tanto em sua anlise do heri homrico que realiza
grandes feitos, como em sua interpretao da poltica realizada atravs
do discurso, Arendt privilegia a revelao do agente no espao pblico,
dando pouca ateno ligao entre poltica e instituies, apesar de ser
historicamente observvel que as mudanas que levaram criao da plis
dos sculos V e IV a.C., ao surgimento da tragdia e expanso da
democracia foram todas elas acompanhadas do fortalecimento das leis
e das instituies em Atenas sem contar o pice do desenvolvimento
poltico romano: a legislao e a funda-o (Arendt, 2001, p. 208). Como
importantes estudiosos da Grcia clssica assinalaram, a poltica no
espao pblico passa a ser em larga medida uma discusso sobre
instituies19. Estamos aqui, portanto, diante de outro apa-rente
paradoxo no pensamento de Hannah Arendt, o qual trataremos a
seguir.
O paradoxo da autolimitao institucional: a revelao do agente e a
instncia de criao de instituies
Este segundo paradoxo que identificamos no pensamento de Hannah
Arendt entre um heri homrico que se revela na pluralidade do espao
pblico e a poltica enquanto atividade coletiva voltada para a criao
e ma-nuteno de instituies envolve ainda outro aspecto da poltica
que muito caro a Arendt: a imprevisibilidade da ao humana. Isso
porque a revelao do agente no espao pblico depende da originalidade
e da criatividade de sua ao, e as leis e instituies tendem a
padronizar o comportamento poltico. Na obra Sobre a Revoluo, ao
analisar a contradio entre a estabilidade de uma repblica e a
continuidade do esprito revolucionrio, Arendt mostra visvel
preocupao com o declnio do agir poltico que o fortalecimento das
leis acarreta20. Previsvel e padronizado, o agir poltico pode
transfigurar-se em uma relao meios-fins semelhante fabricao
(piesis). Radicalizando essa preocupao, Arendt (1999, p. 60-1;
2001, p. 207-209) chega a relembrar que at mesmo o ato de legislar,
para os gregos, era pr-poltico, j que a feitura
19 Ver, a esse respeito, os textos de Castoriadis, A polis grega
e a criao da democracia; e Antropogonia em squilo e autocriao do
homem em Sfocles (1987, p. 277-323; 2004, p. 19-46
respectivamente); e tambm Vernant (2004).
20 Arendt descreve a perplexidade que tomou conta de Thomas
Jefferson quando este sentiu que a Constituio norte-americana
estabilizava a Repblica ao preo da castrao da ao poltica e do
esprito de rebeldia, que eram ento a prpria garantia da liberdade.
Da que a autora cite o desabafo de Jefferson: a rvore da liberdade
deve ser regada de tempos em tempos com o sangue dos patri-otas e
tiranos. o seu fertilizante natural (Arendt, 1990, p. 186-87).
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de leis assemelhar-se-ia fabricao e antecederia o espao
pblico-poltico. Mais ainda, vai dizer Arendt (2001, p. 207), o
trabalho do legislador devia ser executado e terminado antes que a
atividade poltica pudesse comear.
Para entendermos melhor a viso de Hannah Arendt a respeito da
rela-o entre leis e poltica, e o paradoxo que estamos analisando,
necessrio recapitular alguns pontos centrais do pensamento da
autora.
Uma das principais preocupaes tericas de Arendt, como
assinalamos no incio deste artigo, e como do conhecimento de
qualquer estudioso de sua obra, a tentativa de resgatar a dignidade
da poltica, que teria sido perdida, segundo ela, na tradio do
pensamento ocidental21. A pensadora alem faz uma crtica da era
moderna justamente nesse sentido: as sociedades modernas so o
corolrio do definhamento da poltica e de sua substituio pela
administrao das coisas e pelas atividades econmicas. Quando ela usa
o conceitual grego para analisar a era moderna, Arendt no est
sofrendo de nostalgia helnica, pois sabe que uma volta ao passado
impossvel. Ape-nas est tentando repensar a poltica no intuito de
elevar sua importncia, mas sem sugerir caminhos concretos para
resgatar a poltica de seu oprbrio, j que isso depende de aes
humanas e no de frmulas tericas.
Arendt identifica a perda da dignidade da poltica j no incio do
pen-samento ocidental, ou seja, na filosofia poltica de Plato,
desenvolvida no contexto da decadncia da plis ateniense, e
interpreta a morte de Scrates como um momento de inflexo que no
meramente simblico, mas re-velador de um processo de rompimento
entre filosofia e poltica. a partir do estranhamento entre estes
dois modos de vida que Plato elabora uma teoria das ideias voltada
a subordinar os assuntos humanos aos ditames do pensar filosfico. O
que incomodava Plato na atividade poltica porque concorria para
colocar a vida do filsofo em perigo era a imprevisibilida-de da ao
poltica, provavelmente acentuada pelo carter agonstico grego e pela
contingncia inerente aos assuntos humanos22. Domar a poltica,
submetendo os assuntos humanos a uma ordem baseada seja no poder do
rei-filsofo, seja em leis feitas por sbios, caracterizou o esforo
terico de Plato, como os textos de sua velhice indicam23.
21 A dignidade da poltica, alis, tema de interessante coletnea
de textos de Hannah Arendt (1999), cuja preocupao justamente
resgatar o domnio da poltica do oprbrio a que foi condenada pela
tradio ocidental de pensamento.
22 Sobre a empresa da escola socrtica em relao imprevisibilidade
da ao, ver Arendt (2001, p. 208).23 Em trs dilogos importantes A
Repblica, O estadista e As leis , Plato elimina a autonomia da
poltica
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Assim, na tradio do pensamento ocidental inaugurada por Plato, a
poltica passa a ser submetida filosofia e teoria, ou, como diramos
mais modernamente, ideologia. Hannah Arendt viu muito bem que o
pensa-mento de Plato passa a conceber a prxis poltica como fabricao
isto , como piesis, porque assim como a fabricao permite a
previsibilidade da atividade do arteso e d a ela utilidade e valor
de troca (o carpinteiro, por exemplo, s tem de seguir a ideia da
mesa que est em sua mente para poder fabric-la, dar-lhe uso e
vend-la), o pensar filosfico, ao indicar regras e normas para a
conduta poltica, eliminaria a imprevisibilidade presente nos
assuntos humanos e garantiria ao fabricante ser senhor de si mesmo
e de seus atos (Arendt, 2001, p. 157). Esse rei-filsofo, portanto,
quando visto como um poltico-fabricante, se contraporia ao homem de
ao, que sempre depende de seus semelhantes (Arendt, 2001, p.
157).
Foi o antiplatonismo de Hannah Arendt, e sua luta para valorizar
justa-mente os aspectos que Plato gostaria de eliminar das
atividades humanas como a imprevisibilidade da ao, a autonomia dos
cidados e a validade da doxa, da opinio comum que a fez privilegiar
o carter agonstico do ethos poltico grego. Na interpretao
marcadamente homrica de Arendt, a originalidade dos grandes feitos
e a revelao do heri no espao pblico s podem acontecer se o agir
humano estiver livre dos entraves intelectuais platnicos. Contudo,
essa crtica a Plato levou Arendt diversas vezes a minimizar o papel
das leis e das instituies, j que elas tambm poderiam dificultar a
criatividade da ao poltica ao reificarem limites e
fronteiras24.
Como muitos de seus crticos assinalaram, essa concepo arendtiana
reduz a poltica essencialmente a uma forma de estar-no-mundo.
Pode-se indagar, como fez Dana Villa (1996), sobre a possibilidade
de que, quando uma ao poltica no possui telos (finalidade) e,
portanto, no remete a uma relao meios-fins, ela passa a carregar
fortes tintas estticas, reduzindo-se a mera performance25; ou como
observou George Kateb (1983), poderamos
ao elaborar sua plis ideal. Embora com importantes variaes em A
Repblica, o poder poltico consignado ao rei-filsofo, em O
estadista, o dirigente ideal varia do pastor humano ao tecelo rgio,
enquanto em As leis, seu ltimo dilogo, so as prprias leis, sob a
gide de um conselho noturno de filsofos, que regem a plis as solues
platnicas so sempre autoritrias, no deixando margem para a
autonomia poltica dos cidados. A esse respeito, ver interpretao
semelhante de Arendt (2001, p. 239; em especial, nota 69).
24 Interessante ponderao sobre isso o elogio de Arendt (2001, p.
203, nota 17) ao modo como Montesquieu redefine a noo de leis.
25 Interessante assinalar que o professor Villa (1992) admite
que a teoria da ao poltica de Hannah
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afirmar que a ao para Arendt parece ser um jogo em que o mais
impor-tante jogar, independentemente do resultado do jogo; ou
ainda, como criticou Habermas, ao analisar o conceito de poder em
Hannah Arendt, poderamos mostrar como a autora, ao reinterpretar o
conceito aristotlico de prxis, acaba chegando ao paradoxo de
conceber uma poltica despida de preocupaes socioeconmicas, que
dificilmente ilumina a situao das sociedades modernas26.
Mas, se em sua anlise da poltica, Arendt privilegia o aspecto
ontolgico da ao o ator revelando-se no espao pblico ao agir em
concerto , em obras de cunho mais histrico e sociolgico, como
Origens do totalitarismo, Da Revoluo, e O que autoridade (Arendt,
1989, 1990, 2002 respecti-vamente), ela desenvolve um sentido
diferente do que pode ser a atividade poltica27. A autora, nesses
momentos, descreve o mbito da poltica no tanto como o espao da
revelao do ator, mas como o locus de ao para a criao e discusso de
instituies, aproximando-se do Aristteles da Poltica, que desenvolve
uma engenharia poltica destinada a elaborar a forma de governo mais
estvel, que pudesse melhor perseguir e garantir o bem-comum.
No seria exagero dizer que essa concepo da poltica que estamos
denominando de institucional tem recebido relativamente menos
aten-o pelos estudiosos do pensamento arendtiano do que a que
explora sua dimenso ontolgica28. Isso se d no somente pelo fato de
Hannah Arendt ter definido a poltica privilegiando essa dimenso,
como j assinalamos, mas tambm porque a relevncia das instituies s
aparece nos textos da autora de forma oblqua, quando ela analisa
situaes histricas particula-res onde a presena ou ausncia de
instituies e de uma forma de governo baseada em leis fazem toda a
diferena para a estabilidade poltica e para a preservao da
liberdade.
No caso de sua anlise sobre as revolues do sculo XVIII, Arendt
ar-gumenta, por exemplo, que a revoluo norte-americana,
diferentemente da
Arendt, discutida durante longo tempo por partidrios de um
modelo dialgico de poltica (como Habermas), passou recentemente a
ser analisada em sua dimenso virtuosa, agonstica e teatral, ou
seja, como performance. Em nosso argumento, no entanto,
diferenciamos performatividade de performance teatral; esta ltima
como emulao de cdigos e comportamentos predeterminados ou
roteirizados.
26 O conceito arendtiano de ao poltica analisado em Kateb
(1983). Habermas (1980), por sua vez, discute Arendt no artigo O
conceito de poder de Hannah Arendt.
27 Para essas e outras referncias, ver Canovan (1978, p. 8, nota
6). 28 Isso visvel em alguns importantes estudos sobre poltica e
teoria da ao em Hannah Arendt, tais
como: Villa (1996; 1999); Pirro (2000) e Taminiaux (1997).
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francesa, deveu sua estabilidade em larga medida constitutio
libertatis, ou seja, a instituies como a Constituio
norte-americana, que implantou o regime da lei e que garantiu as
liberdades democrticas. Certo que outros fatores so por ela
apontados, como a relativa ausncia de uma questo social nas colnias
norte-americanas. Mas na falha em construir um arcabouo
institucional capaz de assegurar as conquistas da revoluo que
Hannah Arendt detecta os problemas no somente da revoluo francesa,
como tambm de diversos movimentos revolucionrios do sculo XX29. A
nfase aqui no no carter imprevisvel da ao poltica, nem em grandes
feitos que tornem seus autores imortais, mas em uma estrutura
poltica estvel que impea o definhamento do espao pblico.
Esta preocupao, como sabemos, j afligia os prprios gregos.
Segundo Hannah Arendt, a desesperada busca de Plato por algum tipo
de instncia que pudesse gerar obedincia dos cidados e pudesse
manter, ao mesmo tem-po, a liberdade do espao pblico, terminou em
propostas de visvel cunho autoritrio, pois os gregos,
diferentemente dos romanos, desconheciam o conceito e a experincia
da autoridade.
A elucidao do conceito de autoridade foi uma das maiores
contribuies de Hannah Arendt para a filosofia e a teoria poltica.
Sem a experincia da autoridade que Theodor Mommsen iria definir
como mais que um conse-lho, menos que uma ordem (apud Arendt, 2005,
p. 165) , o corpo poltico ateniense permaneceu instvel. A
autoridade, para Arendt, exige somente re-conhecimento, de modo que
nem a coero nem a persuaso so necessrias, uma vez que sua
legitimidade, quando desafiada, ampara-se a si mesma em um apelo ao
passado (Arendt, 2009, p. 62, 58 respectivamente), e confere, pelo
resgate da memria do estar-junto-inicial, a condio de possibilidade
ao poder constitudo. Os romanos desenvolveram a noo de autoridade
poltica encarnada em uma poderosa instituio surgida na Roma antiga
o Senado. instituio do Senado, que extraa sua autoridade da prpria
fundao da cidade eterna, que Hannah Arendt atribuiu uma das causas
da longevidade poltica de Roma. Novamente, a anlise de Arendt sobre
o que autoridade enfatiza instituies como o Senado, responsvel pelo
mesmo ato de legislar que ela em outros momentos negligenciou ao
enfatizar a soluo grega.
29 A falha das revolues em se institucionalizarem, a
burocratizao e a perda do esprito revolucionrio so alvo de anlise
no captulo 6 em Da revoluo, intitulado A tradio revolucionria e seu
tesouro perdido (cf. Arendt, 1990, p. 172-224). Sobre a tenso, na
obra arendtiana, entre a ao e instituciona-lizao, vale conferir
tambm Avritzer (2006).
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Mas em seu estudo sobre o colonialismo e a expanso imperialista
ocorrida em fins do sculo XIX, contudo, que Hannah Arendt mais
ressalta a importncia das instituies para a poltica. Reconstituindo
a gnese do im-perialismo, Arendt primeiramente mostra como, na
Europa, o Estado-nao e a burguesia desenvolveram-se juntos, e esta
ltima passou paulatinamente a dominar a sociedade, sem ainda impor
seu domnio ao nvel estatal. O fortalecimento da classe burguesa na
sociedade significou igualmente a possibilidade de expanso
ilimitada das foras produtivas, colocando a lgica da atividade
econmica, que, na Antiguidade, limitava-se oikia domsti-ca, aos
espaos privados, no centro das aspiraes societrias. A crescente
complexidade da economia capitalista, contudo, exigiu que a
burguesia colocasse tambm o Estado a servio da expanso econmica,
tornando-se classe dominante no s na sociedade, mas tambm no
aparelho estatal.
No entanto, escreve Arendt (1999, p. 154), foram as prprias
instituies nacional-estatais que resistiram brutalidade e
megalomania das aspira-es imperialistas dos burgueses, de modo que
as tentativas burguesas de usar o Estado e os seus instrumentos de
violncia para seus prprios fins eco-nmicos tiveram apenas sucesso
parcial. E justamente porque o sucesso em domar o Estado no foi
total que Arendt define a expanso burguesa apenas como
pr-totalitria, no sentido de que foi um espao preparatrio para a
experincia totalitria que viria a seguir na Alemanha nazista e na
Rssia estalinista. A anlise que Arendt faz do fenmeno totalitrio
tambm revela a importncia das instituies. Como ela percebeu muito
bem, em regimes totalitrios como o nazismo ou o estalinismo, as
leis positivas so substitudas por leis transcendentais, como a lei
do materialismo histrico, no caso do estalinismo, ou da luta entre
as raas, no caso do nazismo. As instituies polticas so eliminadas
ou esvaziadas de qualquer significado, o que deixa a populao merc
do Estado, do partido oficial e da polcia secreta.
Outras situaes contemporneas indicam igualmente a relevncia das
instituies para a preservao da democracia. Na Amrica Latina, em
pases como a Venezuela ou o Equador, lideranas carismticas aladas
ao poder pelo voto tentam subverter as j dbeis instituies
democrticas de seus pases, de forma a perpetuarem-se no poder.
Tambm no Leste Europeu, o vcuo institucional que se seguiu ao
colapso do socialismo naquela regio desencadeou uma srie de guerras
tnicas, incentivadas por lderes que usaram o fervor nacionalista
para conseguir apoio popular. Soma-se a isso,
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como que para confirmar o diagnstico pessimista com que Hannah
Arendt aborda os rumos tomados pela poltica na era moderna, o
crescente desinte-resse e desconfiana da poltica institucionalizada
nos pases de democracia representativa consolidada, sintoma inegvel
de uma crise da poltica.
ConclusoSeria possvel atenuar os dois paradoxos apontados no
pensamento de
Hannah Arendt, entre o heri homrico que se revela no espao
pblico atravs de grandes feitos e a poltica enquanto geradora de
instituies? Apesar de a prpria autora sugerir algumas vezes que no,
pensamos que seja possvel, pelo menos conceitualmente, imaginarmos
uma acomodao, j que as instituies democrticas, ao fortalecerem
padres de comporta-mento poltico legitimados e democrticos,
estabilizam o espao pblico e podem assegurar melhores condies para
que os cidados se destaquem como atores polticos, atuando em
associao com seus pares. E a atividade de legislar no reduzida
piesis se deliberada em um espao pblico institucionalizado que
fomente a discusso responsvel de propostas de leis.
No parece ento haver razes intrnsecas para que tenhamos de
separar ou excluir mutuamente os elementos agonsticos e
institucionais da ao poltica. Ainda que no controle o resultado de
suas aes e que tenha de agir diante da imprevisibilidade, ao
encontrar-se sob a proteo de instituies, o cidado tem mais
garantias de que no se tornar a eterna vtima trgica de
acontecimentos que no controla. E, no menos importante, instituies
democrticas podem ao menos restringir a violncia, essa indesejvel
com-panheira da poltica.
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ResumoEste artigo analisa as leituras de Homero e de Aristteles
feitas por Hannah Arendt. Partin-do das reinterpretaes do conceito
de coragem, phrnesis e poltica feitas pela filsofa, apontamos
naquelas leituras indcios das definies arendtianas do ethos do
homem poltico e do surgimento do espao pblico. O artigo tambm
discute dois paradoxos no pensamento de Arendt: o paralelo entre a
coragem guerreira do heri homrico e a virtude sagaz da phrnesis
aristotlica, por um lado, e, por outro, a ao poltica enquanto
reveladora do agente no espao pblico e atividade coletiva voltada
para a criao e manuteno de instituies. Sustentamos, como concluso,
que a releitura de Homero e Aristteles, por mais paradoxal que
seja, constitui a fonte terica para a separao radical entre
violncia e poltica, realizada por Arendt.Palavras-chave: phrnesis,
coragem, plis, instituies, Hannah Arendt.
AbstractThis article analyses the readings of Homer and
Aristotle by Hannah Arendt. Starting from her reinterpretation of
the concepts of courage, phronesis and politics, we point out in
those readings elements of her definition of the ethos of the
political man as well as the rise of the public space. The article
further discusses two paradoxes in Arendts thought: on the one
hand, the parallel between the warrior courage of the Homeric hero
and the virtue of the Aristotelic phronesis and, on the other hand,
political action as a tool to reveal the agent in the public space
and as a collective activity aiming at the creation of
institutions. As a conclusion, the article points out that Arendts
readings of Homer and Aristotle, paradoxical as they can be, form
the theoretical basis for the radical separation between politics
and violence that she sustains.Keywords: phronesis, courage, polis,
institutions, Hannah Arendt.
Recebido em 30 de janeiro de 2014.Aprovado em 29 de agosto de
2014.
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