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FACULDADES INTEGRADAS SÃO PEDRO - FAESA FACULDADE DE EDUCAÇÃO E COMUNICAÇÃO SOCIAL CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL FERNANDO MACIEIRA NAUMANN Narrativas de Ingmar Bergman VITÓRIA 2006
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Narrativas de Ingmar Bergman

Apr 02, 2023

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Page 1: Narrativas de Ingmar Bergman

FACULDADES INTEGRADAS SÃO PEDRO - FAESA

FACULDADE DE EDUCAÇÃO E COMUNICAÇÃO SOCIAL

CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

FERNANDO MACIEIRA NAUMANN

Narrativas de Ingmar Bergman

VITÓRIA

2006

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FERNANDO MACIEIRA NAUMANN

Narrativas de Ingmar Bergman

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Comunicação Social, habilitação em Jornalismo. Orientador: Prof. João Barreto

VITÓRIA

2006

Page 3: Narrativas de Ingmar Bergman

FERNANDO MACIEIRA NAUMANN

Narrativas de Ingmar Bergman

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para a

obtenção do título de Bacharel em Comunicação Social, habilitação em Jornalismo.

Aprovado em 26 de junho de 2006.

COMISSÃO EXAMINADORA

_______________________________________

Prof. João Barreto Faculdade de Educação e Comunicação Social Orientador

_______________________________________

Prof. Marcelo Ferreira Faculdade de Educação e Comunicação Social

_______________________________________

Prof. Vanessa Maia

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Faculdade de Educação e Comunicação Social

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A Gustavo Macieira Naumann, um perene companheiro.

“A democracia [...] despertara grandes esperanças; mas descobriu-se que ela significa simplesmente o esmagamento do povo, pelo povo e para o povo. Devo dizer que essa descoberta não veio sem tempo, pois toda autoridade é degradante. Degrada aqueles que a exercem, como aqueles sobre quem é exercida. Quando usada de forma violenta, brutal e cruel, dá bom resultado, porque gera ou, de algum modo, faz aflorar o espírito de revolta e o Individualismo que lhe deve dar fim. Quando usada com certa dose de amabilidade e acompanhada de prêmios e recompensas, torna-se assustadoramente desmoralizante. Os indivíduos, neste caso, têm menos consciência da horrível pressão a que estão sujeitos. Assim, atravessam a vida numa espécie rude de conforto, como animais domesticados, sem jamais se darem conta de que estão pensando pensamentos alheios, vivendo segundo padrões alheios, vestindo praticamente o que se pode chamar de roupas usadas do alheio, sem nunca serem eles

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mesmos por um único momento. ‘Quem é livre’, diz arguto pensador, ‘não se conforma.’”

Oscar Wilde

RESUMO

O Sétimo Selo, Gritos e Sussurros e Sonata de Outono, três importantes obras do

cineasta sueco Ingmar Bergman, oferecem, respectivamente, a religião, a doença e

a família como objetos de estudo, uma vez que são os principais condutores da

narrativa de cada filme. Pretende-se vincular os acontecimentos de cada enredo a

seus elementos norteadores por meio de um estudo teórico e da desagregação e

remontagem de fragmentos técnicos (fotografia, cenário e roteiro) em cada obra. A

investigação do conhecimento acadêmico já produzido auxilia na contextualização

do universo de Bergman, enquanto a separação e a junção dos elementos técnicos

originam interpretações singulares que estendem o conhecimento sobre este recorte

do universo cinematográfico. Por ser uma pesquisa crítica, ela não visa a produzir

teorias que se aplicam a toda a extensão de uma área do conhecimento (como o

cinema), mas a desenvolver interpretações sobre uma delimitação de um tema

abrangente.

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Palavras-chave: Cinema. Suécia. Ingmar Bergman. O Sétimo Selo. Gritos e

Sussurros. Sonata de Outono. Religião. Doença. Família. Crítica.

ABSTRACT

The Seventh Seal, Cries and Whispers, and Autumn Sonata, masterpieces of

Swedish movie director Ingmar Bergman, respectively offer religion, illness and

family as elements that conduct their narratives. It is hereby intended to associate the

specific events in each movie’s plot with their respective guiding elements through

the systematic analysis of cinema theories and dissecting the works’ technical

fragments. The investigation of pre-established theories helps to contextualize

Bergman’s universe, while disassembling the movies will produce new interpretations

and, thus, extend knowledge about them. Because it is comprised of critical

analyses, this academic research aims not to contribute with new theories that could

be applied to the entire universe of cinema, but to elaborate unique interpretations

about the three movies.

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Keywords: Cinema. Movies. Sweden. Ingmar Bergman. The Seventh Seal. Cries and

Whispers. Autumn Sonata. Religion. Illness. Family. Critic.

SUMÁRIO

1. Considerações preliminares.......................................................... 8

2. Introdução........................................................................................ 10

3. O cineasta........................................................................................ 14

4. O Sétimo Selo.................................................................................. 17

4.1 Sinopse............................................................................................ 17

4.2 A religião conduz o enredo.............................................................. 17

5. Gritos e Sussurros.......................................................................... 25

5.1 Sinopse............................................................................................ 25

5.2 Assim como Agnes, o afeto se vai com a doença............................ 25

6. Sonata de Outono........................................................................... 30

6.1 Sinopse............................................................................................ 30

6.2 As possibilidades emocionais de uma família.................................. 30

7. Referências Bibliográficas............................................................. 34

8. Filmografia....................................................................................... 35

9. Sites consultados........................................................................... 36

Anexo A – O cinema de Ingmar Bergman....................................... 37

Page 9: Narrativas de Ingmar Bergman

Anexo B – O Sétimo Selo................................................................ 40

Anexo C – Gritos e Sussurros.......................................................... 44

Anexo D – Sonata de Outono.......................................................... 46

Page 10: Narrativas de Ingmar Bergman

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1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

Conceber e executar uma pesquisa acadêmica pressupõe delimitações do tema, do

objeto, dos objetivos e da metodologia. A última tem a mesma relevância para a

pesquisa quanto o conjunto de hábitos, costumes e crenças de uma personagem

para um enredo. Segundo Rudio, apud Santaella (2002, p. 133), o método de

pesquisa “é o caminho a ser percorrido, demarcado, do começo ao fim, por fases ou

etapas, [...] e serve de guia para o estudo sistemático do enunciado, compreensão e

busca de solução do referido problema”. A pesquisa científica se oferece como uma

solução para um problema e, por isso, depende desse itinerário metodológico para

solucioná-lo. Vale, portanto, informar o leitor sobre o recorte metodológico sob a

justificativa de apresentar-lhe as características principais desta pesquisa

acadêmica.

É fundamental compreender a diferença entre a teoria e a crítica cinematográficas.

Dudley Andrew (1989, p. 14) o faz sob a ótica do geral e do específico.

Enquanto cada filme é um sistema de significados que o crítico de cinema tenta desvendar, todos os filmes juntos formam um sistema (Cinema) com subsistemas (vários gêneros e outros tipos de grupos) suscetíveis de análise pelo teórico.

A teoria, portanto, vislumbra o cinema em sua universalidade, não se restringindo a

gêneros cinematográficos, obras individuais ou cineastas. Em contrapartida, a crítica

se debruça sobre um recorte do universo do cinema, aplicando teorias já elaboradas

para estender o conhecimento a respeito dele. Com efeito, a última fará análises de

dados para extrair suas conclusões. Assim, as teorias e idéias levantadas acerca

das obras de Ingmar Bergman serão base para uma pesquisa que

[...] aplicará conhecimentos disponíveis, mas das aplicações podem resultar não apenas a resolução do problema que a motivou, mas também a ampliação da compreensão que se tem do problema, ou ainda a sugestão de novas questões a serem investigadas (SANTAELLA, 2002, p.140).

Analisar um filme, segundo Vanoyse e Goliot-Lété,

[...] não é mais vê-lo, é revê-lo e, mais ainda, examiná-lo tecnicamente. Trata-se de uma outra atitude com relação ao objeto-filme, que, aliás, pode trazer prazeres específicos: desmontar um filme é, de fato, estender seu registro perceptivo e, com isso, se o filme for realmente rico, usufruí-lo

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melhor. [...] É decompô-lo em seus elementos constitutivos. É despedaçar, descosturar, desunir, extrair, separar, destacar e denominar materiais que não se percebem isoladamente “a olho nu”, pois se é tomado pela totalidade. Parte-se, portanto, do texto fílmico para “desconstruí-lo” e obter um conjunto de elementos distinto do próprio filme. Através dessa etapa, o analista adquire um certo distanciamento do filme (2002, p. 12).

O analista deve separar os elementos constitutivos do filme com o objetivo de se

distanciar da perspectiva do espectador comum, que o vê como um conjunto de

elementos indivisíveis e complementares. Em um segundo momento, é preciso

reconstruir a obra cinematográfica de modo a identificar o elo entre cada um dos

elementos previamente divididos. Pode-se comparar o trabalho de análise fílmica ao

de montar um quebra-cabeça: cada peça, individualmente sem sentido à primeira

vista, passa a relacionar-se com as outras por meio das imagens complementares

que lhe atribuem um sentido.

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2. INTRODUÇÃO

Deixando de lado a pretensão do conhecimento teórico, cabe aqui apenas uma

ponderação: é possível fazer de uma pintura um espetáculo? Seu conteúdo não se

relaciona com o espectador da mesma forma que outras formas artísticas; é uma

imagem plana, em que a reflexão é imprescindível para extrair dali um significado,

um sentido, um contexto. A comunicação silenciosa com aquele que a aprecia torna

difícil sua espetacularização.

O cinema, por sua vez, possui características que o aproxima intimamente da

produção seriada de cultura. As imagens permitem uma compreensão direta e

imediata, não necessariamente intermediada de reflexão. Estabelece-se, então, uma

empatia instantânea com o espectador. Mas o cinema não é obrigatoriamente um

produto do mercado do entretenimento. Em grande parte, sim. Mas existem e,

principalmente, existiram pessoas que entendiam o cinema como uma obra artística

completa, cujo conteúdo depende apenas do seu criador.

Na década de 40, um jovem sueco dava ao cinema uma cara que se afastava do

show business hollywoodiano. Ernst Ingmar Bergman, um dos maiores cineastas

que o mundo já conheceu, começava a criar.

Nascido em Uppsala, Suécia, em 14 de julho de 1918, Bergman teve uma infância

conturbada devido a alguns problemas de saúde, além de sentir-se isolado pela

mãe, que reservava toda a sua atenção ao irmão e à irmã. A educação religiosa e

severa dos pais também marcou duramente esse período.

Aos 20 anos, Bergman já escrevia e adaptava peças teatrais na Universidade de

Estocolmo. Um ano depois, aceitou ser assistente de produção do Royal Theater.

Abandonou a universidade em 1940 para se dedicar ao teatro. Três anos depois,

iniciou um trabalho no departamento de roteiros da Svensk Filmindustri. De 1945 a

1948, fez adaptações de quatro filmes e colaborou como roteirista de um outro filme.

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Nessa época, Bergman inicia realmente sua carreira como diretor. O casamento era

um tema recorrente nas criações do cineasta até 1955. No ano seguinte, faz um dos

filmes mais importantes de sua carreira. O Sétimo Selo o tornou conhecido

mundialmente e iniciou na sua obra uma fase obsessiva pela morte.

Através de um Espelho, de 1961, marcou o início do uso da fotografia em close, o

que joga a intensidade emocional do ator no foco central. O filme também foi o

primeiro de uma trilogia religiosa, seguido por Luz de Inverno e O Silêncio. A partir

daí, Bergman produziu várias obras-primas consagradas. Entre elas, Morangos

Silvestres, Persona, Cenas de um Casamento, Gritos e Sussurros, A Flauta Mágica,

Sonata de Outono e Fanny e Alexander.

Direcionado a uma linguagem intimista, o diretor se afasta dos temas de magnitudes

espaciais e tecnológicas. A busca pelas possibilidades emocionais do ser humano

norteia todo o seu conjunto de obras. É por meio do olhar curioso delimitado pela

fotografia marcante de seus filmes que o espectador imerge nas situações comuns,

mas reveladoras do poder da comunicabilidade humana.

Os desdobramentos da narrativa bergmaniana em O Sétimo Selo (1956), Gritos e

Sussurros (1973) e Sonata de Outono (1978) acontecem, respectivamente,

mediante três vertentes condutoras: a religião, a doença e a família. A primeira

pressupõe a relação das personagens com uma figura onipotente a fim de

transcender as desesperanças humanas. Em O Sétimo Selo, por exemplo, o

protagonista convive com a angústia do silêncio divino. Por ter lutado durante dez

anos nas Cruzadas e voltado para a Suécia medieval, assolada pela peste negra,

Antonius Block coloca a ausência de Deus como seu maior problema.

A família deve ser contemplada a partir da comunicabilidade ou incomunicabilidade

entre as personagens. As relações familiares são as origens das destruições e/ou

potencialidades emocionais do ser humano, visto que a unidade familiar ou se

desintegra com a inabilidade ou desinteresse dos membros de se comunicarem

bem, ou se fortalece com uma comunicação eficiente. Bergman é um produto de

problemas familiares e o tema é importante em Sonata de Outono. Charlotte é uma

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mãe ausente e suas filhas, Eva e Helena, são produtos desses problemas familiares

nessa obra.

A importância da enfermidade, por sua vez, se manifesta sob a ótica da debilidade e

fragilidade física e emocional das personagens. Em Gritos e Sussurros, o câncer de

Agnes funciona como um catalisador do conflito entre as três irmãs.

Os filmes de Bergman têm características diferentes dos filmes comerciais. Sem o

intuito de vendê-los em escalas astronômicas, o cineasta produz arte com início,

meio e fim deliberados. A obra artística do cineasta é completa, sem interferências

diretas de empresas ou organizações no conteúdo e na qualidade do filme. É a arte

como reflexão do artista e não um produto completamente absorvido pelas forças da

indústria do entretenimento.

Uma pesquisa crítica sobre um recorte do universo de Bergman pode ser legitimada

não somente pelo conteúdo, mas pela maneira como nasceu. O mundo acadêmico,

além do emaranhado de informações, conceitos e teorias, perpetua-se por meio da

experiência. É a vivência e o envolvimento com aquilo que se estuda que fortalecem

o olhar crítico, aquele mais treinado a enxergar além do óbvio e do superficial. É

notável, então, a importância de um trabalho acadêmico de cunho crítico para o

exercício do jornalismo.

Durante a vivência na academia, o engajamento com o teatro evocou sensações,

questionamentos, possibilidades e curiosidades, das quais surgiu o interesse pelo

cinema de Ingmar Bergman. O despertar para a relevância de sua obra aconteceu

com o primeiro contato com Sonata de Outono, de 1978. Considerando o

impressionante grau de influência do mercado do entretenimento no conteúdo

disponível como informação, o estilo “antigo” e diferente de se fazer cinema

arrebatou como se fosse uma novidade. Para os que não buscam vias alternativas

de informação, submetendo o intelecto apenas às regras implacáveis da indústria do

entretenimento, filmes como os de Bergman, assim como sua linguagem,

simplesmente inexistem.

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É necessário explorar esses filmes e essa perspectiva cinematográfica como um

contraponto ao cinema comercial e de megaproduções. Restringir-se a uma

linguagem cinematográfica é ignorar as outras saídas e alternativas de se produzir e

conceber uma obra de cinema. Para estudantes e pesquisadores, Ingmar Bergman

se torna então uma importante referência de utilização da linguagem

cinematográfica para uma abordagem profunda de temas relacionados ao indivíduo.

Afinal, a temática do diretor foge do senso comum mercadológico e segue no

sentido de uma análise crítica do ser humano, das tradições e dos fenômenos que o

norteiam. Estudá-lo é embrenhar-se no universo de um subversor, cuja dedicação

em explorar a psicologia humana e sua complexidade desconstrói o conjunto de

normas de conduta da vida social do Ocidente. Essas convenções comportamentais

e ideológicas aprisionam o indivíduo, enclausurando sua individualidade e

autenticidade.

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3. O CINEASTA

Oscar Wilde (2003, p. 45), espírito rebelde para o século XIX, vislumbrava a

influência da indústria na obra artística. Em ensaio sobre a sociedade moderna, em

que a ideologia do mercado e da produção já vigorava, ele reflete sobre a

substituição da obra artística pela utilidade. A produção voltava-se para um bem que

satisfizesse a necessidade alheia em detrimento da arte.

A obra de arte é o resultado singular de um temperamento singular. Sua beleza provém de ser o autor o que é, e nada tem a ver com as outras pessoas quererem o que querem. Com efeito, no momento em que um artista descobre o que estas pessoas querem e procura atender a demanda, ele deixa de ser um artista e torna-se um artesão maçante e divertido, um negociante honesto ou desonesto. Perde o direito de ser considerado um artista.

A partir da década de 40, surgia com mais vigor na França e nos Estados Unidos o

autorismo. Corrente de pensamento de críticos e teóricos divulgada e amplamente

debatida em revistas de cinema, a teoria dos autores reconhecia os cineastas como

idealizadores e condutores vigentes de suas obras, não como reprodutores de

roteiros literários lineares. Atribuiu-se aos diretores uma autoridade sobre seus

filmes, a mesma que detinham os escritores sobre seus romances. “O cineasta,

afirmava [Alexandre] Astruc, deveria ser capaz de dizer ‘eu’ como o romancista ou o

poeta” (STAM, 2003, p. 103). Bazin (apud STAM, 2003, p. 104) tratou de La Politique

des auteurs, em artigo de 1957, no qual a define como “a escolha, na criação

artística, do fator pessoal como um critério de referência, e a conseqüente

postulação de sua permanência e mesmo de seu progresso de uma obra a outra”.

Através da repetição, em seus filmes, de um tema e/ou qualquer peculiaridade

estética, o cineasta estabelece o seu estilo. Nas obras de Bergman, é evidente a

reutilização dos enquadramentos em primeiro plano, a presença de temas

existenciais norteando suas narrativas, bem como a atuação teatral do elenco. Aliás,

essa é outra marca do diretor sueco, porque ele faz um revezamento deliberado de

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atores. Max von Sydow, por exemplo, atuou em dezesseis filmes de Ingmar

Bergman, enquanto Harriet Andersson participou de treze. Pode-se falar ainda de Liv

Ullman, Bibi Andersson, Ingrid Thulin, entre outros (cf. Anexo A).

A assinatura de escritores e artistas plásticos em relação às suas obras já era há

muito reconhecida quando, no final dos anos 50 e início dos 60, a crítica e a teoria

do cinema passaram a dar importância à figura do diretor. Antes visto como um

profissional que meramente traduzia em imagens roteiros pré-estabelecidos, o

cineasta passaria a definir esse novo cinema com seu estilo. “Os diretores

intrinsecamente vigorosos [...] exibirão no decorrer dos anos uma personalidade

estilística e tematicamente reconhecível [...]” (STAM, 2003, p. 103-104).

Ao trabalhar com o diretor de fotografia Sven Nykvist, Bergman criou uma marca de

qualidade fotográfica e, por que não, estética. A fotografia recorta a realidade num

segmento único. O cuidado com a mesma é intencional, desde a seleção do local

até os famosos primeiros planos do diretor. A utilização dos closes de câmera

concede ao espectador uma marcante intimidade com as personagens, cuja

intensidade era ausente nos filmes anteriores aos de Bergman.

Devo confessar que, de vez em quando, sinto pena de ter deixado de filmar, um sentimento que me parece bem natural. [...] Do que sinto mais falta é de não trabalhar com Sven Nykvist. É possível que isto se explique pelo fato de ambos nos sentirmos fascinados pela problemática da luz, seja ela branda, perigosa, onírica, viva, morta, clara, turva, quente, violenta, gélida, repentina, sombria, primaveril, interior, exterior, direta, oblíqua, sensual, submetedora, limitativa, venenosa, tranqüilizante—enfim, por tudo que se relacione com ela, a luz (BERGMAN, 1988, p. 231).

Ele se insere num contexto histórico que permitiu o desenvolvimento da estética

racional e ao mesmo tempo emotiva. É estabelecido, portanto, um paradoxo

altamente eficiente entre a alta técnica da fotografia, do cenário e do figurino e a

emoção evocada pelo elenco nos primeiros planos.

Devido ao seu longo envolvimento com o teatro, o estilo do cineasta é definido

também pela interpretação teatral. Bergman utiliza seqüências em que o ator não se

comunica verbalmente, mas por meio das nuanças da expressão facial, do

enrijecimento dos músculos, da movimentação dos olhos, dos braços e das pernas.

Page 18: Narrativas de Ingmar Bergman

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A maioria dos atores que dirigiu adveio do tempo em que trabalharam juntos na

Ópera de Estocolmo, na Suécia. No teatro, esses detalhes não são facilmente

percebidos por parte da platéia. Já no cinema, o cineasta potencializa a emoção do

ator através do close-up. É no auge da emoção no palco que o espectador de teatro recorre aos binóculos para captar a sutil emoção dos lábios, a paixão ou o terror expressos no olhar, o tremor das faces. Na tela, a ampliação por meio do close-up acentua ao máximo a ação emocional do rosto, podendo também destacar o movimento das mãos, onde a raiva e a fúria, o amor ou o ciúme, falam em linguagem inconfundível (XAVIER, 2003, p. 47).

Outra vertente de uma análise estética se configura no cenário, nas cores, nos

contrastes e no figurino. Na composição das cenas (personagens e figurinos), cada

detalhe tem uma função. A cor da roupa de uma personagem revela traços de sua

personalidade, por exemplo. Os detalhes podem passar despercebidos num primeiro

momento, mas são fundamentais para a compreensão total da obra. Os símbolos e

signos da linguagem não-verbal empregados pelo diretor também se manifestam na

estética cinematográfica como instrumentos latentes para a contextualização de uma

mensagem, assim como a linguagem verbal, evidenciada no roteiro pelo texto e pela

mensagem apresentados.

Com a autoridade sobre sua obra, o cineasta exercita não só uma forma de

resistência contra uma linguagem pré-estabelecida, mas também a simples

necessidade de se expressar. Sua complexa subjetividade permite a concepção e

execução de um código único de estética e conteúdo, particular àquele artista.

Ingmar Bergman, portanto, contribui para o cinema com uma linguagem

cinematográfica que se associa diretamente a ele devido ao conjunto de marcadores

que afluem para o reconhecimento de sua “assinatura” em suas obras.

Page 19: Narrativas de Ingmar Bergman

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4. O SÉTIMO SELO

Ocorreu-me a idéia de filmar O Sétimo Selo ao contemplar os motivos dos quadros das igrejas medievais: os saltimbancos, a peste, os flagelados, a Morte jogando xadrez, as fogueiras onde queimavam as bruxas, e as Cruzadas. Este filme não pretende dar uma idéia realista da vida na Suécia na Idade Média. É um ensaio de poesia moderna, traduzindo a experiência da vida de um homem moderno, mas elaborado de uma maneira muito livre sobre temas medievais. No meu filme, o Cavaleiro regressa de uma Cruzada, tal como, nos nossos dias, um soldado regressa da guerra (BERGMAN, 1958, apud SICLIER, 1963, p. 124).

4.1 Sinopse

Ao retornar à Suécia após dez anos nas Cruzadas, Antonius Block depara com a

peste negra e as mazelas sociais da Idade Média. Abalado pelas intensas lutas e

perseguições religiosas, o cavaleiro vivencia um profundo conflito interno. Questiona

a presença de Deus e o significado da fé em meio a tanta desilusão. Além disso,

desafia a Morte numa partida de xadrez que decidirá o seu destino.

4.2 A religião conduz o enredo

Filmado em 1956, O Sétimo Selo tem uma importante relação embrionária com o

pós-guerra. O fim da Segunda Guerra Mundial, seu saldo de destruição e o início da

Guerra Fria, que bipolarizou o mundo, ocasionaram a paranóia atômica, que

representava o limite em que vivia a humanidade: entre o medo da morte iminente e

a possibilidade de viver em paz. Uma obra cinematográfica de Bergman é um

produto dessa época: “É por estas razões que [O Sétimo Selo] foi feito e ele trata do

medo da mor te . Pessoa lmente , e le me permi t iu l i v ra r -me des ta

angústia” (BERGMAN, apud SIMA, 1977, p. 97). O filme é alegórico porque o

cineasta utiliza o contexto social da Idade Média e a relação do homem com as

forças avassaladoras da época a fim de exorcizar sua obsessão com a morte.

Page 20: Narrativas de Ingmar Bergman

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Em contrapartida, ao deixar de lado a motivação de Bergman e considerar o filme

como uma obra artística completa, a religião torna-se protagonista e norteia os

desdobramentos de O Sétimo Selo.

A abertura da obra é feita com o hino medieval de Tomás de Celano, Dies Irae.

Escrito no século XIII, anuncia o dia de ira que será instaurado na Terra, como

profetizado pelo Apóstolo São João nas escrituras do Apocalipse. Logo depois,

surge uma águia, altaneira e observadora.

Nessa hora vi e ouvi uma Águia voando no meio do céu, e gritando em voz alta: “Ai! Ai! Ai dos que vivem na Terra! Ainda faltam três toques de trombeta. E os Anjos estão prontos para tocar” (BÍBLIA, 1991, p. 1598).

São João, assim como a ave, é onisciente, observando tudo sob uma perspectiva

abrangente e privilegiada. “Quando o cordeiro abriu o sétimo selo, houve no céu um

silêncio de meia hora. Eu vi sete anjos diante de Deus e a eles foram dadas sete

trombetas” (BÍBLIA, 1991, p. 1598). Com a abertura do sétimo selo (cf. Anexo B),

portanto, são desencadeados os eventos por meio dos quais

os fiéis de Deus [...] serão preservados, à espera de gozarem no céu, de seu triunfo. [...] Deus, que quer a salvação dos pecadores, não vai destruí-los imediatamente, mas lhes enviará uma série de pragas para adverti-los [...] (BÍBLIA, 1985, p. 2299).

O tom solene e denso da narrativa de O Sétimo Selo é anunciado já nas duas

primeiras cenas.

Bragg (1995, p. 78) identifica sutis detalhes que compõem significativamente as

cenas iniciais do filme que, juntamente com o céu nebuloso e a inquietude do mar,

prenunciam o vigor turbulento da narrativa (cf. Anexo B). “[...] O mar é frio e

insensível, a praia pedregosa, implacável. Quando acorda, o cavaleiro olha

desafiador, e até com raiva, para o céu. Quando reza, os lábios não se mexem;

talvez não saiba mais rezar”. A frieza e a insensibilidade caracterizam a Morte e a

peste bubônica, indiferentes às debilidades materiais, psicológicas e sociais do

homem medieval; a implacabilidade representa a perseguição inquisitória do

fanatismo católico e as Cruzadas, das quais retornam Block e seu escudeiro Jons; e

a reza silenciosa do cavaleiro antecipa sua profunda angústia com a ausência de

Page 21: Narrativas de Ingmar Bergman

19

Deus. Em seguida, a câmera coloca o tabuleiro de xadrez em primeiro plano e,

assim, dá um indício da dicotomia do desafio iminente.

A Morte, personificada no filme, aparece de maneira centralizada e solene (cf. Anexo

B), enquanto silenciosamente observa o cavaleiro. Seu rosto pálido contrasta

diretamente com sua longa vestimenta negra. Ao perceber a presença da Morte, que

veio buscá-lo, Block age com surpreendente naturalidade; diz saber que ela o tem

acompanhado. Ademais, propõe um desafio de xadrez a fim de—como mais tarde

revela—“fazer algo de bom com uma vida sem sentido”.

Não é só o problema da existência de Deus que atormenta o cavaleiro, quer também compreender o sentido da vida, conhecer a razão das coisas terrenas e penetrar no cerne do mistério que a morte envolve com o seu manto (SICLIER, 1963, p. 135).

Sob sol escaldante, rumo ao seu castelo, o cavaleiro e seu escudeiro têm o primeiro

contato com um ser humano depois de dez anos lutando nas Cruzadas. Encontram

o cadáver de um camponês morto pela peste negra. “[Ele foi] bem eloqüente, mas

seu discurso foi melancólico”, diz o escudeiro Jons. Ambos compreenderam a força

avassaladora da doença. Paradoxalmente, num dos raros momentos de singeleza

temática da obra, Block e Jons passam pelo acampamento idílico dos atores, fato

que profetiza o entrelace entre as estórias.

A carroça dos saltimbancos é adotada pela sombra dos galhos de uma árvore e

circundada por um extenso gramado. Além da tranqüilidade, o canto matinal dos

pássaros e as cambalhotas de Jof para espreguiçar-se concedem uma aura celestial

àquela manhã (cf. Anexo B). Nada mais poderia se opor ao amanhecer turbulento do

cavaleiro e seu escudeiro. Jof vê a Virgem Maria ensinando um bebê a caminhar e

acorda sua esposa, Mia, para contar-lhe, de maneira quase infantil, sobre a

aparição. Não há sinal de calor, frio e nem de inquietude. Mia acolhe o filho, Mikael,

e o leva para brincar fora da carroça. A dedicação da família com o teatro e o desejo

de que o filho herde o interesse pela arte—e consiga, segundo Jof, “fazer uma bola

parar no ar”—contrasta diretamente com a obsessão pela morte demonstrada pela

sociedade medieval. Jof ainda diz ao seu cavalo que “as pessoas por aqui não

parecem gostar da arte,” o que reforça o paradoxo entre a família de atores e os

outros personagens da obra, inclusive o tratante Skat, chefe da companhia. Jof

Page 22: Narrativas de Ingmar Bergman

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relembra uma canção sobre um pombo que canta sobre Jesus em um ramo de lírio.

Aqui se evidencia a religião de uma forma fraterna, singela e alegre.

De um lado, a maldade, a tristeza, a peste, a ignorância, o fanatismo, as cores negras, o instável modo de vida. De outro, a luminosidade, a alegria, a felicidade, o encantamento, o mundo mágico dos puros, dos poetas, dos artistas. A força da vida e de sua continuidade (BILHARINO, 1999, p. 24).

A viagem de Block e Jons continua na visita a uma igreja em um vilarejo. Um pintor

faz um retrato da Dança da Morte e do ritual de flagelação dos fiéis. A primeira tem a

ver com a peste negra, que se acreditava ser um castigo de Deus. O segundo é um

desesperado ato de reconciliação com Deus, pois por meio da autoflagelação as

pessoas se livrariam dos seus pecados. O fanatismo conduz a sociedade medieval a

cometer atos de intenso sacrifício físico. Além disso, é uma clara evidência da

fraqueza e submissão do homem medieval perante a religião e todos os seus

fenômenos.

No plano geral da entrada de Block na igreja, Jesus Cristo está no alto,

completamente centralizado e ao fundo. A centralização da figura representa a sua

importância na vida medieval, mas seu afastamento do primeiro plano indica sua

ausência nas questões inerentes àquela época. No primeiro plano estão imagens de

um ser alado e com chifres perseguindo um ser humano. Para Block, o triunfo do

mal se sobrepõe à onipresença de Deus. Os dez anos nas Cruzadas e o fato de

sentir-se vazio num mundo assolado pela morte e pelo desespero justificam isso. Já

o divino, ao fundo da igreja, tem um papel coadjuvante no mundo. E Block, abaixo

do bem e do mal, torna-se quase invisível em frente ao altar. A fotografia aqui tem

um papel fundamental para ilustrar a narrativa. Na dicotomia bem versus mal, o

indivíduo é insignificante (cf. Anexo B).

Em confissão na igreja, o cavaleiro se ajoelha e está cercado por grades, o que

representa o conflito no qual vive, enclausurado na própria falta de conhecimento da

verdade divina. Toda a estrutura social da Idade Média o aprisionou nas Cruzadas e

os horrores que lá presenciou causaram o conflito pelo qual passa. Ele tem dúvidas

sobre a força de sua fé, pois lhe é difícil aceitar tanto a onipresença quanto a

Page 23: Narrativas de Ingmar Bergman

21

existência de Deus sem uma prova e uma explicação do sentido da vida. A falta de

respostas aos seus anseios faz com que o cavaleiro se sinta vazio.

A dúvida terrível de Antonius Block é cruamente exposta, entrecortada com a face de Cristo na Cruz e a grade do confessionário, por trás da qual a Morte supera com astúcia o Cavaleiro (BRAGG, 1995, p. 80).

A cena é mais do que uma dúvida. É também um paradoxo emblemático para o

filme. O protagonista se posiciona entre a fé (que se propõe transcender a vida

mundana) e a jaula da Morte. E a tática usada pela última em se fazer passar por

um padre no confessionário faz da cena uma representação do embate entre viver e

morrer. É um indício do que acontecerá depois: a Morte vence a partida e aprisiona

Block na sua artimanha, fazendo-o agonizar lentamente com a possibilidade cada

vez mais real de ser aniquilado.

Ao sair da igreja, Block encontra a “feiticeira”, encarcerada sob a justificativa de ter

tido relações sexuais com o diabo. A ignorância da Idade Média, assim como o

fanatismo religioso, fez com que muitas pessoas fossem culpadas por heresia,

quando eram apenas loucas. No entanto, O Sétimo Selo não se importa em revelar

se a acusação da Igreja é infundada ou não, pois o objetivo de Bergman é o de

contextualizar os fenômenos inerentes à Idade Média. A insignificância daquela

personagem para o contexto social é notável. Bergman não lhe concede um nome, e

ninguém se interessa em perguntar-lhe, o que caracteriza a maneira impessoal e

desumana das pessoas em relação a ela. Em sua curiosidade e angústia, o

cavaleiro lhe pergunta se viu o diabo, talvez no afã de encontrar por meio dele

alguma verdade sobre Deus.

A procissão dos flagelados (cf. Anexo B) reafirma a religião como importante

condutora da narrativa de O Sétimo Selo. É a transposição ao real da pintura do

artista na igreja, assim como das imagens que inspiraram o cineasta a realizar o

filme. A fé tem um papel arruinador sobre a sociedade; a Inquisição protagoniza

massacres e ocasiona a morte da “feiticeira”; a elite teocrática dominante é corrupta

e hipócrita; e o homem medieval é cárcere da ignorância, da miséria e das privações

materiais, espirituais e morais. A peste bubônica explicita características

comportamentais do ser humano medieval: a reprodução do discurso clerical e

Page 24: Narrativas de Ingmar Bergman

22

persecutório de que a doença é um castigo divino, fruto de atos pecaminosos por

meio do contato com o diabo; o fanatismo religioso como a única maneira de

alcançar uma vida digna diante de tanta destruição; e o contraste flagrante entre a

jocosa encenação teatral dos atores e a paranóia do monge que prenuncia o fim dos

tempos, enquanto os flagelados se lamuriam jogados ao chão.

O ator Jof decide ir a uma taverna, que é suja e escura. Em meio a conversas sobre

o fim dos tempos, as pessoas se aprofundam no fanatismo. Em uma das mesas, o

ladrão Raval acusa Jof de fugir com a mulher do ferreiro Plog, sedento por vingança

contra aquele que lhe roubou Lisa. Na verdade, o ator Skat foi quem o fez. Mas

Plog, embriagado, crê em Raval. “Querem me machucar? Por quê? Fiz algo que

aborrecesse alguém? Posso ir embora e não voltar,” diz Jof, humildemente. O ator é

humilhado frente a todos da taverna, enquanto riem, bebem e o condenam sem

necessariamente saberem o motivo. Assim como na cena anterior, percebe-se a

oposição flagrante entre os artistas e os indivíduos do vilarejo. A humildade e

singeleza de Jof frente à ignorância do indivíduo medieval.

De volta ao acampamento pacífico e natural dos atores, Mia, Jof, Block e Jons têm

uma conversa agradável e bem-humorada. Quando algum assunto negativo é

mencionado, ele não carrega a mesma intensidade existente no outro núcleo da

narrativa do filme. Ao falar sobre a floresta, Mia diz, como se estivesse falando sobre

estórias infantis: “ouvi dizer que está cheia de fantasmas e demônios.” Os atores

oferecem morangos silvestres frescos e uma tigela de leite ao cavaleiro e seu

escudeiro. Eles se encantam com a hospitalidade do casal. Enquanto contempla

sobre sua vida, Block afirma: “a fé é uma aflição dolorosa. É como amar alguém que

está no escuro e não sai quando chama. Isto tudo me parece mentira quando vejo

você e seu marido.” O cavaleiro, portanto, compreende a diferença entre seu mundo

e o do casal de atores.

E a continuação do jogo de xadrez entre o cavaleiro Antonius Block e a Morte

“significa não só parábola da natureza humana (permanente disputa entre a vida e a

Morte, sempre vencida por esta no plano individual), como representa a

materialização de sua obsedante presença junto ao homem medieval” (BILHARINO,

Page 25: Narrativas de Ingmar Bergman

23

1999, p. 23). Block já se encontra cansado, sabendo que seu fim está próximo, e

ainda esbarra nas peças do tabuleiro, derrubando-as. O que poderia significar o fim

do jogo, pelo fato de ambos não se lembrarem das posições, transforma-se em mais

uma encurralada da Morte. Ela se lembra exatamente das posições e as organiza

novamente, inclusive deixando claro que o xeque-mate é na jogada seguinte. “E me

contará os segredos,” diz o cavaleiro à Morte. “Não escondo segredo algum. Não sei

de nada”, lhe responde ela. O cavaleiro demonstra o desespero da busca pelo

conhecimento, certo de que está aniquilado. O sentimento de ausência de verdades,

explicações e respostas se intensifica ainda mais. Se a Morte é uma extensão do

divino, para ele, ela é até mais acessível do que Deus.

Enquanto continuam pela floresta em direção ao castelo, Block, Jons, Plog e Jof

comentam sobre o silêncio no local, uma referência direta à meia hora de silêncio

mencionada na narração inicial da obra.

Jof: As árvores estão silenciosas. Jons: Porque não há vento. Plog: Ele quer que elas fiquem em silêncio. Jof: Não há um som sequer. Jons: Se pudéssemos ouvir uma raposa. Jof: Ou uma coruja. Jons: Ou uma voz humana... além das nossas.

De acordo com Corsini (1984, p. 175), esse silêncio de meia hora “corresponde [...] à

duração do intervalo entre a morte de Cristo e a sua ressurreição”. Porém, pode-se

afirmar que os trinta minutos de silêncio têm um papel mais abrangente. Significam o

intervalo entre o fim de um ciclo e o início de outro, que se encerra, portanto, quando

os pecadores forem destruídos e os fiéis salvos, iniciando o reino eterno de Deus. E

a cena é deliberadamente sucedida pela morte da “feiticeira” na fogueira da

Inquisição.

Ao descobrir que Block jogava xadrez com a Morte, o casal de atores resolve seguir

sozinho pela floresta. Uma grande tempestade se inicia. “Houve então trovões,

clamores, relâmpagos e grande terremoto” (BÍBLIA, 1991, p. 1598). O cavaleiro, seu

escudeiro e o restante chegam ao castelo onde mora Karin, a dama de Block. Eles

se reencontram depois de dez anos. A tempestade continua como uma alegoria para

a salvação de Jof, Mia e Mikael, o filho do casal. Enquanto isso, a Morte se aproxima

Page 26: Narrativas de Ingmar Bergman

24

para aniquilar os outros e assim o faz. No dia seguinte, o casal e seu filho

amanhecem num ambiente ensolarado e pacífico. E Jof vê uma última aparição (cf.

Anexo B):

Eu os vejo, Mia. Eu os vejo. Lá no céu tempestuoso. Todos eles! O ferreiro e Lisa, o cavaleiro, Raval, Jons e Skat. E a severa mestre Morte os convoca para dançar. Quer que todos dêem as mãos para formarem uma longa fila. A Morte vai na frente com a foice e a ampulheta, mas Skat vai atrás com sua lira. Eles vão dançando, se distanciando do sol em uma dança solene. Dançam rumo à escuridão, e a chuva cai nos seus rostos lavando as lágrimas salgadas da face.

É um contraponto interessante na narrativa, pois Bergman “salva” o jocoso, o infantil,

o artista, ao mesmo tempo em que “condena” o ignorante, o fanático, o cético e o

traidor. A arte, portanto, é a ligação entre o homem e o divino.

Page 27: Narrativas de Ingmar Bergman

25

5. GRITOS E SUSSURROS

[...] Fui perseguido, durante vários meses, por uma imagem. Para mim, um filme muitas vezes começa desta forma. Entretanto, era incapaz de captar exatamente essa imagem que reaparecia continuamente. Era um quarto vermelho—forrado de vermelho. Os móveis eram vermelhos. As cortinas duplas eram vermelhas. E neste aposento, havia três mulheres, todas vestidas de branco, que caminhavam numa espécie de iluminação crepuscular. [...] Era um fio saído do meu subconsciente—e comecei a fazer um novelo desse fio, e foi justamente o que deu essa história com quatro mulheres (BERGMAN, apud BJÖRKMAN; MANNS; SIMA, 1977, p. 230).

5.1 Sinopse

As irmãs Marie, Karin e Agnes e a servente Anna vivem juntas numa casa de campo,

no século XIX. Anna e duas das irmãs cuidam da debilitada Agnes, que se encontra

em estado terminal de câncer. Num ambiente sufocante, as tensões entre as

mulheres evocam lembranças e exteriorizam de maneira bombástica sentimentos

confinados.

5.2 Assim como Agnes, o afeto se vai com a doença

O bosque e os primeiros raios solares do novo dia já aparecem entre as árvores. A

vegetação ao fundo sofre influência da claridade solar e da neblina ao amanhecer. É

evidente a paz e a tranqüilidade do local, sem qualquer intervenção humana no que

diz respeito a sons e urbanização. O cenário interiorano é cercado por natureza e

está longe de edificações urbanas. O vento parece não ter acordado ainda, já que as

folhas das árvores se encontram estáticas. Alguns animais já emitem sons, como

pássaros e porcos, reforçando o isolamento da casa. A tomada se encerra com a

tonalidade vermelha, cujo significado explica Bergman:

Todos os meus filmes podem ser pensados em termos de preto e branco, exceto Gritos e Sussurros. No roteiro, eu digo que pensei na cor vermelha

Page 28: Narrativas de Ingmar Bergman

26

como o interior da alma. Quando eu era criança, eu vi a alma de um dragão sombreado, azul como fumaça, pairando como uma enorme criatura alada, metade pássaro, metade peixe. Mas dentro do dragão, tudo era vermelho (apud LANZAGORTA, 2003, tradução nossa).

Inicia-se uma seqüência agonizante com relógios e o tique-taque que eles

produzem, evocando agonia por meio da lentidão das horas. A sucessão galopante

dos segundos também prenuncia a condição de Agnes: moribunda e altamente

debilitada física e emocionalmente, ela aguarda a sua morte inevitável, enquanto as

duas irmãs, Marie e Karin, e a empregada Anna cuidam da enferma.

A primeira imagem de Agnes é durante o seu despertar. A testa está franzida e a

região ao redor dos olhos está vermelha, o que reforça a idéia de que a personagem

teve uma noite inquieta. Num choro reprimido, ela enrijece os músculos da face por

causa da dor (cf. Anexo C). Quando se levanta, percebe que Marie dorme no recinto

ao lado. E logo chegam Anna e Karin. Esta mal se aproxima do quarto da enferma,

reservando apenas um olhar distante para Agnes. Marie se levanta e toca a irmã,

que reprova sua atitude com o olhar. Além disso, as irmãs não conversam entre si. A

casa é suntuosa, os objetos refinados e os movimentos das personagens são lentos,

produzindo pouquíssimo barulho. É uma referência direta à imagem que perseguia

Bergman: Anna, Karin e Marie em trajes brancos num aposento dominado por um

vermelho brilhante.

De maneira sutil, o cineasta introduz os temas centrais da obra. A distância afetiva

entre as três irmãs é explorada quando Karin e Marie não se importam em verificar

de perto o estado de Agnes. A enfermidade e sua morte iminente congregam as

quatro mulheres, tornando-se pontos de partida essenciais para uma narrativa que

se embrenha profundamente nas personagens e em seus distúrbios psicológicos.

Nessa cena, a predominância do vermelho, do branco e do preto é flagrante. O forte

contraste entre as cores se equipara à objetividade com a qual Bergman apresenta

suas personagens, pois a diferença entre as personalidades das mulheres é muito

clara (cf. Anexo C). O vermelho representa a investigação minuciosa da alma, por

meio da qual Gritos e Sussurros explora as angústias, as decepções, os amores, os

desamores, as turbulências e o ódio das personagens. O branco indica a virgindade

Page 29: Narrativas de Ingmar Bergman

27

de Agnes e a pureza de Anna, assim como sinaliza a repressão sexual de Marie e

Karin. A cor negra é o sofrimento pelo qual cada personagem passa.

Portanto, é a enfermidade de Agnes que estabelece o conflito principal no enredo da

obra: a reunião de quatro personagens diferentes e conflitantes. Esse conflito

justifica o título do filme. No contexto da narrativa, gritos pressupõem dor, angústia,

impotência, solidão e culpa. Por outro lado, sussurros associam-se à ternura, à

tolerância, ao amor e à compaixão. As personagens parecem estar sugadas numa

complexa rede de sentimentos, na qual um se sobrepõe aos outros, obrigando-as a

gritar ou sussurrar.

Outro importante aspecto do câncer de Agnes é que, além de congregar as quatro

mulheres, evoca suas memórias, suas lembranças e seus sonhos. São esses

flashbacks que passam a traçar o perfil de cada personagem da estória.

Agnes é contemplativa e serena. Enquanto caminha por um aposento, parece

valorizar cada detalhe, como as flores às quais se dedica a sentir o aroma. Ela é

tragada por lembranças da sua infância dolorosa. Representada por uma menina de

aparência desproporcional, ela observa a atenção da mãe com Karin e Marie

durante uma das apresentações de teatro de marionetes que presenciou quando

criança. Esses encontros de família eram comuns na infância do diretor. Pode-se

inferir, portanto, que Bergman e Agnes se confundem (cf. Anexo C).

Há no filme uma pequena cena autobiográfica. Uma menininha [Agnes] está atrás da cortina branca e olha sua mãe, escondida. Quando sua mãe a descobre, ela pensa que vai ser repreendida. Mas acontece o contrário: sua mãe a beija. “Sou eu que estou atrás da cortina!”, revela Bergman (SIMAS, 1978, p. 227).

Em sua autobiografia, Ingmar Bergman descreve o momento em que viu sua mãe

minutos depois de sua morte. A cena é claramente reproduzida em Gritos e

Sussurros, quando Agnes finalmente falece após muito sofrimento.

Estava deitada na cama, vestia uma camisola branca, de flanela, e um casaquinho de malha azul. Tinha a cabeça ligeiramente inclinada para um lado, os lábios levemente entreabertos. Estava pálida, com olheiras, o cabelo preto bem penteado. [...] As mãos pousadas sobre o peito. [...] De repente o quarto foi invadido por uma intensa luminosidade que prenunciava

Page 30: Narrativas de Ingmar Bergman

28

a primavera, e da mesinha-de-cabeceira ouvia-se o impaciente tique-taque de um pequeno despertador (1988, p. 12).

É um importante traço biográfico do autor em sua obra. A figura materna é associada

à fraternidade e à tenuidade. E Agnes é singela, característica comprovada em seus

passeios no parque e seu apreço pela simplicidade.

O câncer uniu Anna a Agnes. Aquela concede a esta um amor e uma dedicação

ímpares. Anna trata Agnes como filha. Em uma cena emblemática, Anna acolhe

Agnes assim como Maria acolheu Jesus depois de que foi retirado da cruz. O pintor

Michelangelo esculpiu a cena sob o título Pietà (cf. Anexo C).

Mas para mim, o lado importante da personagem da doméstica [...] é o fato de que ela ama de uma forma totalmente natural. Ela dá instintivamente aos outros, o amor e a ternura. Ela o faz sem refletir, deliberadamente. Ela não pede nada em troca (BERGMAN, apud BJÖRKMAN; MANNS; SIMA, 1977, p. 238).

A câmera capta uma casa de bonecas e depois o rosto de Marie. Não se sabe se as

bonecas são parte de uma recordação de Marie ou se, compondo o cenário, evocam

lembranças na personagem. Porém, vale constatar apenas que Marie se recorda de

sua infância. As imagens da casa de bonecas, as cores claras e levemente rosadas

de seu quarto, assim como as lembranças de Agnes, caracterizam Marie como

infantil, egoísta e mimada. A irmã enferma remete-se ao passado, especificamente à

sua relação com a mãe, de quem Karin e Marie dividiam atenção privilegiada.

Agnes, por sua vez, era a irmã rejeitada, com relacionamento difícil com a mãe.

Casada, Marie sente falta do sexo e do afeto do marido, depositando no médico de

Agnes as esperanças de ver-se satisfeita afetivamente. O caso iniciou-se depois que

Agnes foi diagnosticada com o câncer. Seu próprio marido tentou suicidar-se ao

saber do relacionamento extraconjugal de sua mulher. Além disso, Marie é capaz de

demonstrar carinho quando essa ação lhe rende algo positivo, mas pode ser cruel e

fria quando rejeita algo que abomina.

Karin, possivelmente a irmã mais velha, é fria e solene. Sua expressão facial é tensa

e nada convidativa. Seu casamento é um fracasso, com um homem muito mais

velho e gélido. Karin veste-se até o pescoço, apesar de Bergman apresentar-nos

sua nudez de maneira natural enquanto Anna a ajuda a vestir-se para dormir.

Page 31: Narrativas de Ingmar Bergman

29

Paradoxalmente, o que serviria para mostrar algo positivo em relação à

personagem, torna-se uma das cenas mais perturbadoras da obra de Bergman.

Karin usa um pedaço de vidro para mutilar-se, ferindo seu órgão sexual, a fim de

escandalizar o marido frio e insensível.

A partir da morte de Agnes, um padre faz uma oração na qual revela ter tido longas

conversas com a falecida. Ele suplica, em prantos, por uma resposta de Deus sobre

a existência humana. O pedido ecoava em Agnes, pois, segundo ele, esse parecia

ser também um questionamento da enferma. Seu estado de saúde motivou,

portanto, questionamentos em relação à presença de Deus. A aproximação rápida e

gradativa da morte causou-lhe grande preocupação quanto ao sentido da vida e os

motivos pelos quais ela merecia sofrer tanto.

Reze por nós que fomos deixados na escuridão, deixados para trás nesta Terra miserável com o céu acima de nós, impiedoso e vazio. Deposite seu fardo aos pés de Deus, todo o seu sofrimento, e peça a Ele que nos perdoe. Peça a Ele que nos liberte da nossa ansiedade e do nosso cansaço, das nossas apreensões e medos. Peça que Ele dê significado às nossas vidas.

A incomunicabilidade afetiva entre Karin e Marie se intensifica. Marie questiona a

irmã sobre a falta de carinho e conversas profundas entre elas. Karin reage de forma

agressiva e odiosa, mas logo se arrepende e as duas irmãs gozam de uma longa

conversa carinhosa e sincera. No entanto, Bergman não permite um final feliz. Gritos

e Sussurros não aborda a maturação, e sim a estagnação. Karin e Marie, durante a

obra, tentam mudar, mas voltam a demonstrar as características com as quais foram

apresentadas na narrativa: frias, indiferentes, amargas e insensíveis.

Page 32: Narrativas de Ingmar Bergman

30

6. SONATA DE OUTONO

O mundo das mulheres é o meu universo. Nele evoluo, pode ser que mal, mas nenhum homem se pode gabar de saber desembaraçar-se nele completamente. (BERGMAN, 1958, apud SICLIER, 1963, p. 62).

6.1 Sinopse

Charlotte é uma reconhecida pianista que abandonou as duas filhas por sete anos

para dedicar-se à sua carreira. Eva, a primogênita, cuida de Helena, a irmã mais

nova, que sofre de uma grave doença que debilita sua fala e atrofia seus músculos.

Ao receber um convite de Eva e seu marido, Charlotte decide visitá-los no interior da

Suécia. O que parecia ser um reencontro pacífico revela-se um acerto de contas

pleno de lembranças e decepções.

6.2 As possibilidades emocionais de uma família

A abertura de Sonata de Outono consiste numa pequena declaração de Viktor a

respeito de sua vida com a esposa, Eva, enquanto ele a observa escrever uma carta

à mãe em convite para passar uns dias em sua casa. Ele destaca a vida “calma e

feliz” do casal. Apesar da sutileza, as cenas iniciais contêm importantes fatos que

norteiam o enredo: a ausência de Charlotte na vida da filha; a devoção de Viktor à

esposa; e a importância da estabilidade familiar para as personagens.

No momento em que Charlotte chega para a visita, ela apresenta os primeiros traços

de sua personalidade. Antes de perguntar à filha sobre sua vida, delonga-se ao falar

sobre a dor de ter recentemente perdido um grande amigo. E liga a mesma conversa

a outra sobre seu cabelo tingido, sua roupa nova comprada em Zurique, e seu rosto

supostamente inalterado com o tempo. Eva demonstra uma decepção com a mãe,

mas disfarça dizendo que só está feliz em vê-la. Nesse fragmento do filme, percebe-

Page 33: Narrativas de Ingmar Bergman

31

se claramente a diferença entre a mãe e a filha. A primeira demonstra o interesse em

estar sempre em evidência, ofuscando a presença de outras pessoas. Além disso,

vangloria-se pela beleza e pelo alto poder aquisitivo. A filha, no entanto, é carente,

humilde e afetiva. Mulher de grandes espetáculos de piano mundo afora, Charlotte

contrasta diretamente com o caráter interiorano e tranqüilo de Eva. O egoísmo

demonstrado pela mãe é a fonte das perturbações da filha.

No reencontro com Helena, sua filha mais nova, Charlotte apresenta um extremo

desconforto com a debilidade física e o distúrbio na fala da mesma. Ela conversa

com um tom alegre, mas não conhece a filha o bastante ao ponto de conduzir uma

conversa sem o auxílio de Eva. Quando se prepara para o jantar com Eva e Viktor,

Charlotte começa a refletir sobre o fato de sua consciência estar pesada por causa

da presença de Helena. Enquanto isso, Eva comenta sobre a “interpretação” da mãe

ao ver Helena. Ao mesmo tempo, mão e filha refletem sobre a mesma situação. A

primeira tem a consciência pesada e a outra mágoas e rancores.

Já no jantar, Charlotte coloca um vestido vermelho para contrariar Eva, que pensava

que ela usaria um preto devido à morte de Leonardo. Charlotte fala sobre “desfile de

moda” quando Eva elogia seu vestido. E logo depois de um brinde, a mãe recebe a

ligação de seu empresário, que lhe fala sobre a oportunidade de fazer um concerto

por um bom cachê. Ela fala em inglês com ele. Depois da ligação, arremata: “agora

estou realmente feliz,” ao dedilhar uma música alegre no piano. Parece que não

estava feliz antes. O mero contato com o seu mundo, mesmo que vago e distante,

fez da mãe uma pessoa feliz.

Eva toca para a mãe, que a analisa de maneira pedante, como se olhasse para uma

criança. Ao pedir a opinião de Charlotte, ela se omite. E quando finalmente concorda

em fazê-lo, ela é novamente pedante. Uma das cenas mais impressionantes do filme

é quando Eva fita a mãe enquanto esta toca por completo o prelúdio de Chopin,

observando-a atentamente, assim como o faria a um desconhecido (cf. Anexo D).

Page 34: Narrativas de Ingmar Bergman

32

No quarto de Erik, o filho de Eva que faleceu com quatro anos, Charlotte é

indiferente. Eva faz uma profunda reflexão sobre o ser humano e a morte do filho,

enquanto Charlotte quer passear. Ela não dá atenção às preocupações da filha.

Ao conversar com Viktor, Charlotte revela sua preocupação com o fato de Eva sentir

constantemente a presença de seu filho. É a história dela às avessas: o que sua

mãe teve de negligente, Eva teve de atenciosa e amável com Erik.

Ao preparar-se para dormir, Charlotte menciona as coisas de que precisa ao lado da

cama para dormir; parece uma estrela de cinema. E ainda menciona que Eva era

louca por chocolate na infância, quando na realidade era Helena quem gostava de

chocolates. E Charlotte teve um sonho: enquanto dorme, Helena calmamente

acaricia sua mão e deita sobre ela, que demonstra profunda repulsa e a empurra

para longe, despertando-se profundamente angustiada.

Na relação familiar, Bergman explora a incomunicabilidade humana. Em Sonata de

Outono, Charlotte visita suas filhas Eva e Helena e depara com as angústias da

primeira. A barreira imposta pela mãe no passado deixa profundas marcas

psicológicas nas filhas. A decepção que Eva teve com Charlotte adveio do profundo

amor e da grande admiração em relação à mãe, que não foram correspondidos, pois

Charlotte dedicou-se exclusivamente à carreira de pianista.

Quando adolescente, pelo corpo ainda desfigurado, Eva sentia-se feia e

amplamente hostilizada por Charlotte. Já no acerto de contas entre mãe e filha,

durante a madrugada do dia em que se viram pela primeira vez em sete anos, Eva

expõe suas frustrações com a mãe. É uma das cenas mais impressionantes dos

filmes de Bergman.

Eu era meio corcunda, por ter crescido rápido demais. Logo você recomendou a ginástica. Evidentemente, fazíamos os exercícios juntas, em atenção ao fato de que você sentia dores nas costas. Eu tinha borbulhas, estava na puberdade, logo veio um médico de pele, um amigo da família, que receitou salvas e tinturas que me causavam o maior enjôo e faziam que minha pele ficasse ainda mais vermelha. Você achava que eu perdia muito tempo com o meu cabelo longo que, eu, ainda por cima, não sabia tratar como devia ser. Por isso mandou cortar curto. Foi terrível, fazia me sentir grotesca. O pior de tudo, porém, foi quando você achou que os meus dentes tinham crescido mal e mandou botar aparelho. Parecia uma doida.

Page 35: Narrativas de Ingmar Bergman

33

[...] Foi horrível, mamãe, e ainda hoje meu corpo inteiro estremece só de falar naqueles anos (BERGMAN, 1978, p. 91-92).

Eva encurrala sua mãe com argumentos em relação às suas atitudes. Em primeiro

plano está o rosto de Charlotte, fitando diretamente o espectador. Eva se encontra

atrás, disparando argumentos próximo aos ouvidos da mãe. As expressões faciais

são pesadas, exaustas, o que reflete toda a carga emocional liberada no acerto de

contas. Frágil, a mãe escuta, saturada de acusações e enormemente abalada por

elas (cf. Anexo D).

Eu a amei, mas você me considerava repugnante, burra e um fracasso. Você conseguiu me prejudicar pelo resto da vida, assim como você foi prejudicada. Você atacou tudo que era sensível e frágil. Tudo que tinha vida, você tentou sufocar. Você fala do meu ódio. O seu não era menor. O seu não é menor. [...] Tudo foi feito em nome do amor. [...] E você era perita nas entonações e nos gestos de amor. Pessoas como você são uma ameaça. Deviam ser internadas e tornadas inócuas. Uma mãe e uma filha. Que terrível combinação de sentimentos, confusões e destruições. Tudo é possível e é feito em nome do amor e da solicitude. As injúrias da mãe são passadas à filha. As falhas da mãe são pagas pela filha. A infelicidade da mãe é a infelicidade da filha. É como se o cordão umbilical nunca tivesse sido cortado.

Sonata de Outono é inteiramente conduzido pela relação familiar entre a mãe e as

filhas. A negligência de Charlotte se reflete diretamente nas filhas, deixando nelas

marcas permanentes da falta de amor, compreensão e carinho. E no final, Eva

caminha pelo cemitério onde se encontra seu filho Erik, depois de Charlotte ter ido

embora por não aceitar as verdades expostas pela filha. Eva está deprimida, certa

de que nunca mais verá sua mãe. Pensa em suicídio, mas conversa com seu filho, a

única coisa que lhe prende à vida. Enquanto isso, durante a viagem de volta,

Charlotte tenta justificar a Paul, seu empresário, o fato de ter fugido da realidade que

criou. E Helena, ao saber que sua mãe havia partido, fica profundamente abalada e

exterioriza sua frustração aos gritos. Seu estado de saúde piora ainda mais.

Eva resolve enviar outra carta a Charlotte, desculpando-se por ter cobrado muito da

mãe e pedindo outra chance de permanecerem em contato. Aqui, Eva explicita a

importância da manutenção da família. Apesar de todas as acusações e problemas,

a unidade familiar deve ser mantida.

Page 36: Narrativas de Ingmar Bergman

34

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDREW, J. Dudley. As principais teorias do cinema – uma introdução. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1989.

BERGMAN, Ingmar. Lanterna mágica. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988.

BERGMAN, Ingmar. Sonata de outono. Rio de Janeiro: Nórdica, 1978.

BÍBLIA. Português. A Bíblia de Jerusalém. Tradução da Sociedade Bíblica Católica

Internacional e Paulus. ed. rev. São Paulo: Paulus, 1985.

BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução da Sociedade Bíblica Católica

Internacional e Paulus. Ed. pastoral. São Paulo: Paulus, 1991.

BILHARINO, Guido. O cinema de Bergman, Fellini e Hitchcock. Uberaba: Instituto

Triangulino de Cultura, 1999.

BRAGG, Melvyn. O sétimo selo. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.

CAREY, Frances. The Apocalypse and the shape of things to come. Toronto:

University of Toronto Press, 1999.

CORSINI, Eugênio. O Apocalipse de São João. São Paulo: Ed. Paulinas, 1984.

SANTAELLA, Lucia. Comunicação e pesquisa. São Paulo: Hacker, 2002.

SICLIER, Jacques. Ingmar Bergman. Lisboa: Editorial Presença, 1963.

SIMA, Jonas.; BJÖRKMAN, S.; M.T. O cinema segundo Bergman. Rio de Janeiro:

Paz e Terra, 1977.

STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Campinas: Papirus, 2003.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO. Biblioteca Central. Guia para normalização de referências: NBR 6023:2002. 3. ed. Vitória: A Biblioteca, 2005.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO. Biblioteca Central.

Normalização e apresentação de trabalhos científicos e acadêmicos: guia para alunos, professores e pesquisadores da UFES. 7. ed. Vitória: A Biblioteca, 2005.

VANOYE, Francis e GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica.

Campinas: Papirus, 2002.

WILDE, Oscar. A alma do homem sob o socialismo. Porto Alegre: L&PM, 2003.

Page 37: Narrativas de Ingmar Bergman

35

XAVIER, Ismail. A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal, 2003.

8. FILMOGRAFIA

GRITOS E SUSSURROS. Direção: Ingmar Bergman. Produção: Lars-Owe Carlberg.

Intérpretes: Liv Ullman; Ingrid Thulin; Harriet Andresson; Kari Sylwan; Erland

Josephson. Suécia: Svensk Filmindustri, c1972. 1 DVD (106 min), widescreen.

O SÉTIMO SELO. Direção: Ingmar Bergman. Produção: Allan Ekelund. Intérpretes:

Max von Sydow; Bibi Andersson; Gunnar Björnstrand e outros. Roteiro: Ingmar

Bergman. Música: Erik Nordgren. Suécia: Svensk Filmindustri. c1956. 1 DVD (95

min), fullscreen.

SONATA DE OUTONO. Direção: Ingmar Bergman. Produção: Katinka Faragó.

Intérpretes: Ingrid Bergman; Liv Ullmann; Lena Nyman; Halvar Björk. Suécia:

Personafilm, c1978. 1 DVD (92 min), fullscreen.

Page 38: Narrativas de Ingmar Bergman

36

9. SITES CONSULTADOS

LANZAGORTA, Marco. Gritos e Sussurros. Senses of Cinema, Oxford, 2003.

Disponível em: <http:/ /www.sensesofcinema.com/contents/cteq/03/25/

cries_and_whispers.html>. Acesso em: 8 set. 2005.

Page 39: Narrativas de Ingmar Bergman

37

ANEXO A – O CINEMA DE INGMAR BERGMAN

Figura 1 – Ingmar Bergman de padre em O Rito Fonte: O cinema segundo Bergman (1977, p. 200)

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Figura 2 – Bergman nos bastidores de O Sétimo Selo Fonte: O cinema segundo Bergman (1977, p. 95)

Figura 3 – Bergman nos bastidores de filmagem Fonte: O cinema segundo Bergman (1977, p. 204)

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Page 41: Narrativas de Ingmar Bergman

39

Figura 4 – Max von Sydow Fonte: O cinema segundo Bergman (1977, p. 50)

Figura 5 – Harriet Andersson Fonte: O cinema segundo Bergman (1977, p. 50)

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Page 42: Narrativas de Ingmar Bergman

40

Figura 6 – Ingrid Thulin Fonte: O cinema segundo Bergman (1977, p. 50)

Figura 7 – Bibi Andersson Fonte: O cinema segundo Bergman (1977, p. 50)

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Page 43: Narrativas de Ingmar Bergman

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ANEXO B – O SÉTIMO SELO

Figura 8 – Liv Ullmann Fonte: O cinema segundo Bergman (1977, p. 50)

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Figura 1 – Gravura do pintor alemão Albrecht Dürer - A abertura do Sétimo Selo. Fonte: The Apocalypse and the shape of things to come (1999)

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Page 44: Narrativas de Ingmar Bergman

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Figura 2 – Praia pedregosa Fonte: O Sétimo Selo (1956)

Figura 3 – Reza silenciosa Fonte: O Sétimo Selo (1956)

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Page 45: Narrativas de Ingmar Bergman

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Figura 4 – A Morte Fonte: O Sétimo Selo (1956)

Figura 5 – Acampamento Idílico Fonte: O Sétimo Selo (1956)

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Page 46: Narrativas de Ingmar Bergman

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Figura 6 – A visita à igreja Fonte: O Sétimo Selo (1956)

Figura 7 – Procissão dos flagelados Fonte: O Sétimo Selo (1956)

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ANEXO C – GRITOS E SUSSURROS

Figura 8 – Dança da Morte Fonte: O Sétimo Selo (1956)

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Figura 1 – Dor Fonte: Gritos e Sussurros (1973)

Figura 2 – As três cores Fonte: Gritos e Sussurros (1973)

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Figura 3 – Observação atrás da cortina Fonte: Gritos e Sussurros (1973)

Figura 4 – Nos braços de Anna Fonte: Gritos e Sussurros (1973)

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ANEXO D – SONATA DE OUTONO

Figura 1 – Observando a mãe Fonte: Sonata de Outono (1978)

Figura 2 – Acerto de contas Fonte: Sonata de Outono (1978)

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