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CAPITULO 1 - ALEMANHA: IDENTIDADE E NAO
1.1 - Estado-nao e nacionalismo
Para Habermas (2000), o Estado moderno uma personalidade
jurdica,
delimitada territorialmente, com soberania interna e externa, o
qual monopoliza a
segurana de suas fronteiras, onde abriga seus cidados, por meio
da lei e da
ordem. A nao, para o filsofo, tem como origem em uma forma
particular de vida,
mais ou menos agrupadas em um espao - mas ainda no integradas
numa
entidade poltica. Trata-se, portanto, de uma comunidade baseada
por uma cultura,
histria e lngua similares, de origem comum. Como explica o
pensador, o Estado
moderno se constitui a partir do final do sculo XVIII, e produto
histrico de seu
desenvolvimento e da relao interior e gradual de determinada
comunidade. Em
sntese, quando o Estado e uma comunidade se integram, nasce o
conceito de
Volksnation, o Estado-nao.
No entanto, para que diferentes arranjos culturas, tnicos e
religiosos coexistam e interajam numa mesma comunidade poltica, a
cultura majoritria tem que abrir mo de sua prerrogativa histrica de
definir os termos oficiais dessa cultura poltica generalizada, a
ser compartilhada por todos os cidados, independente do seu local
de origem e do modo como vivem. A cultura majoritria tem que se
desvincular de uma cultura poltica na qual se possa esperar que
todos se unam. (HABERMAS, 2000, p. 305, grifo do autor).
Bauer (2000) assinala a ausncia de uma teoria slida e universal
para definir o
conceito de nao, sob a perspectiva da cincia, sem consideraes de
ordem
subjetivas. Para o autor, a definio de nao complexa e apresenta
vrios
inequvocos. Um deles a forma de conceituar a nao como produto de
uma
comunidade de povos descendentes de uma mesma origem, por
exemplo, dos
alemes, que descendem dos teutnicos, dos celtas e dos eslavos
(BAUER, 2000,
p. 45). Nesse mesmo sentido, explica o autor, a lngua no fator
determinante na
construo de uma nao, os ingleses e irlandeses, os dinamarqueses
e
noruegueses os srvios e croatas falam, em cada um dos casos, a
mesma lngua, e
nem por isso so nico povo (BAUER, 2000, p. 45). O autor entende
que a
caracterstica comportamental de um povo mutvel e, para
compreender a nao
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alem do sculo XX, no necessrio percorrer milnios na histria e se
aprofundar
na gnese dos traos culturais para entender a atualidade de seu
carter.
A nao, definida como comunho relativa de carter , para Bauer, a
sua
caracterstica central. Mesmo considerando as assimetrias
individuais, prevalece o
carter nacional, que a difere de outras naes. Esse carter
nacional surge quando
h uma relativa semelhana de comportamento dos compatriotas num
perodo de
tempo definido (BAUER, 2000, p. 48). Isto , os indivduos de uma
nao - o povo -
possuem caractersticas mentais e fsicas que, mais ou menos, os
vinculam entre
sim. Portanto, para Bauer, a comunho de carter surge na esteira
do
comportamento relativo e semelhante entre os indivduos no
interior de uma
comunidade e forma o Volksgeist, esprito do povo.
Esse carter nacional, segundo Bauer, determinado pela
historicidade
cultural transmitida por geraes passadas. O autor admite que a
herana
hereditria fundada nas caractersticas das propriedades fsicas
hiptese
insustentvel.10 na transmisso aos descendentes atravs da criao,
do costume
e da lei, como efeito da comunicao entre os povos (BAUER, 2000,
p. 56), que
apresenta uma hiptese mais slida na explicao da formao do carter
nacional
moderno de uma nao. Todavia, na perspectiva de Bauer, o
capitalismo moderno
a estrutura determinante da produo de uma cultura nacional, o
qual impe
obstculos ao inibir a constituio de uma real comunho de carter
nacional. Para
esse autor, a presena do capitalismo na produo e transmisso da
historicidade
cultural determina a cultura nacional. Nesse sentido, os
burgueses representam, por
meio de sua classe social, uma comunidade nacional a parte.
Bauer assinala que
somente possvel a inaugurao de um esprito nacional quando os
povos dessa
nao tiverem uma riqueza em comum, sem explorao e diferenas na
distribuio
de riquezas.
Portanto, na anlise de Bauer, uma verdadeira cultura nacional,
representada
pela mentalidade unida de um povo, num contexto histrico
denominado de
capitalismo moderno, s seria possvel no dia em que a abundncia
da riqueza fosse 10 Como tambm ensinou Max Weber, no h indcios
sociolgicos que a hereditariedade biolgica influencia no
desenvolvimento de uma cultura. Durante o desenvolvimento desse
trabalho, no ser aprofundado esse objeto de investigao
antropolgica, portanto as caractersticas hereditrias, como possvel
componente objetivo na construo de uma nao, no sero tratadas.
(WEBER, 2001, p. 11).
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de propriedade comum a todos os membros da nao. Somado a estes
fatores,
Bauer acredita que a transformao do carter nacional - e na
Alemanha no
ocorreu de modo diferente - o resultado de aes individuais e
inconscientes. Isto
, de uma ao particular restrita a cada indivduo, sem o
sentimento de coletividade
nacional, que pode provocar uma mudana na existncia global da
nao (BAUER,
p. 2000, 54), mas que no se constitui na nao imaginada por
Bauer. Uma nao
sem distino de classes. Para a realizao de uma real nao, sem
classes,
imperativo que as vontades individuais sejam subordinadas a um
movimento
consciente e organizado, num contexto histrico de alto grau de
coletivizao. E
somente por meio desse sistema social que Bauer acredita ser
fundamental para
construir, de forma consciente, o carter social de uma nao
autodeterminada e
no alienada. Uma nao na qual:
Novas ideias s conseguiro conquistar uma sociedade socialista se
conquistarem cada indivduo, que ter sido criado pela educao
nacional socialista como uma personalidade altamente desenvolvida,
em plena posse da cultura nacional. Isso significa, porm, que uma
nova ideia no poder $ !adaptada e incorporada conscincia total de
milhes de indivduos. (BAUER, 2000, p. 56).
Socialismo, conforme assinala Bauer, a integrao do povo inteiro
numa
comunidade cultural nacional (2000, p. 56). A reproduo comunista
dos antigos
cls. a superao de uma era e da histria de um conflito de
classes, como Marx e
Engels nos ensinaram, A histria de todas as sociedades at hoje
existentes a
histria das lutas de classes. %&'()*+),-!.!$/40).
Todavia, para definir nao, Bauer apresenta outros conceitos. O
autor explica
que cada grupo, ou comunidade, recepciona a histria de forma
distinta, dadas s
experincias de sofrimento comum11. Ora, as foras capitalistas
foram as mesmas
que atuaram na Inglaterra e na Alemanha do sculo XIX, todavia,
esses dois pases
no constituem uma nao. O que determina uma nao de fato, o que
ele define
como Comunho de Destino, que a experincia comum do mesmo
destino, em
11 Veremos isso quando tratarmos da posio geracional e conexo
geracional em Karl Mannheim e do atrito entre geraes, na
perspectiva de Norbert Elias.
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constante comunicao12 e em interao contnua um com os outros
(2000, p. 57).
Ainda, para Bauer (2000), mesmo que determinadas condies
histricas sejam as
mesmas para naes separadas, na Alemanha, resultou em um produto
histrico
singular, distinto do que foi percebido pela Inglaterra. No so
somente as aes
impostas pelo capitalismo moderno que do origem a uma Comunho de
Carter,
mas tambm as experincias comuns e os sofrimentos, particulares
de cada nao.
Nesse sentido, Bauman (2006) compartilha desse mesmo
entendimento, para
o socilogo, a Europa ocidental, com o objetivo de legitimar -
exceto em alguns
locais remotos de difcil penetrao difundiu o seu padro de
pensamento para o
resto do planeta, com seu projeto sonhador de fundar e organizar
a modernidade e a
substituio dos modos antigos de produo, em prol do discurso do
progresso
econmico. Por mais que as regies do mundo tenham sido
influenciadas por
impulsos e tradies ocidentais por mais que desde o sculo XVI os
valores e
padres europeus fossem reconhecidos globalmente, as naes no se
tornaram e
no se consideraram europeias, graas autodeterminao dos povos e
ao
multiculturalismo.
Bauer procura justificar que as aes propulsoras de certos
eventos, como as
foras do capital, por si s, no produzem a mesma nao. O carter
nacional, na
perspectiva de Bauer no eterno e no se forma sobre suas
prprias
caractersticas, ele constante e mutvel em funo de fatos
histricos pretritos.13
Compreendemos agora que a eficcia histrica, aparentemente
autnoma, do carter nacional no oculta nada alm do fato de que a
histria das geraes passadas, e as condies de sua luta pela vida, as
foras produtivas que elas dominaram e as relaes de produo que
estabeleceram, tudo isso continua a determinar o comportamento de
sua progenitura natural e cultural. Desse modo, contudo, o prprio
carter nacional tambm perde seu carter substancial. (BAUER, 2000,
p. 63).
A anlise terica de Bauer sobre o problema do carter nacional
importante
para compreender a importncia da transmisso da identidade
cultural de uma
12 Apesar de Bauer argumentar de maneira muito clara que o que
distingue as naes no a lngua, em algumas passagens de seu artigo
reconhece a importncia de uma lngua comum para uma nao, pois
estreita os laos de comunicao. 13 Ao que me parece, Bauer
sofisticou o que Marx assinalou: Os homens fazem a sua prpria
histria; contudo, no a fazem de livre e espontnea vontade, pois no
so eles quem escolhem as circunstncias sob as quais ela feita, mas
estas lhes foram transmitidas assim como se encontram. (MARX, 2011,
p.25).
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gerao a outra mais nova, a qual incorporar a conscincia nacional
da precedente.
Todavia, sua hiptese insiste que a ordem capitalista o motor
absoluto e
determinante da produo cultural de uma e que uma nao de fato
s
surgiria com o desaparecimento da luta de classes. Hiptese
insuficiente e
incompatvel para explicar o conceito de nao e de nacionalismo
que quero
desenvolver. Como veremos, na concepo de Elias, o
desenvolvimento do
nacionalismo alemo no se reduz a uma luta que se encerra no
interior da
dimenso econmica, trata-se de um conflito que parte de outras
determinaes, por
exemplo, pelo poder entre estratos da aristocracia poltica e a
alta classe mdia
alems.
Antes de apresentar a perspectiva de Norbert Elias, segundo
Anderson (2000),
o nacionalismo moderno um fenmeno poltico intrigante, com
variadas
interpretaes incertas e contrastantes. A investigao desse tema,
segundo o
pesquisador, permeia os mais diversos ramos das cincias humanas
e foi objeto de
investigao por grandes pensadores que dedicaram seus esforos no
sentido do
compreend-lo14.
De fato, a produo vasta e rica em contradies, e no o propsito
dessa
pesquisa resgatar e interpretar os escritos desses notrios
homens que registram
seus nomes em nossa histria. Para Anderson, o nacionalismo
decorre da
construo da cultura nacional e que posteriormente ser
incorporada por uma
conscincia nacional nos planos polticos e ideolgicos, para
entend-lo, temos de
considerar, com cuidado, suas origens histricas, de que maneiras
seus significados
se transformaram ao longo do tempo, e por que dispem, nos dias
de hoje, de uma
legitimidade emocional to profunda (2008, p. 30). Portanto,
nacionalismo e nao
no se confundem.
A nao refere-se a um territrio com fronteiras definidas, qual
seja sua
extenso, que integra um dado nmero de membros que esto cientes
das
diferenas de classes, e dos limites de sua expanso geogrfica.
Nesse sentido,
Anderson a define: uma comunidade poltica imaginada - e
imaginada como sendo
intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana (2008,
p.32). imaginada
14 O autor se refere a Marx, Nietzsche, Weber, Durkheim,
Benjamin, Freud, Lvi-Strauss, Keynes, Gramsci e Foucault.
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porque expressa um espao moderno cujos participantes tm uma
integrao muito
prxima no sentido de comunho, isto , os membros de determinada
comunidade
no necessariamente se conhecem entre si, mas esto vinculados em
certo grau de
semelhana que prevalece o mtuo respeito e os laos de
fraternidade, mesmo com
distines entre as classes ou estratos sociais. Neste ponto que
Anderson diverge
com Bauer. H, no interior da comunidade imaginada, uma afinidade
relativa entre
os membros que fornece as condies para a constituio e permanncia
de uma
nao, apesar da variedade cultural e de classes. uma comunidade
porque,
independentemente da desigualdade e da explorao efetivas que
possam existir
dentro dela, a nao sempre concebida como uma profunda
camaradagem
horizontal (ANDERSON, 2008, p.34).15
Quanto anlise do nacionalismo, empresto a ponderao de Elias
(1997).
Para o autor, o adjetivo nacionalista, equivocadamente,
aproxima-se do termo patrio-
tismo e so comumente confundidas, portanto, inapropriadas para
fundamentar a
sua investigao sociolgica. O termo nacionalismo, na perspectiva
de Elias, surge
como uma forte crena nacional a partir dos sculos XIX e XX e
peculiar s socie-
dades industrializadas. Nacionalismo designa um conjunto de
sentimentos coletivi-
zados de valores e crenas que emerge no interior das sociedades
modernas as
quais os indivduos esto integrados.
Em outros termos, um substantivo para designar o sentimento de
um grupo
comum com estruturas de personalidade mais ou menos semelhantes
e que repre-
sentam a nao - a sociedade-Estado soberana - a qual incorpora e
subordina, nos
limites de seu territrio, os valores e sentimentos de seu povo.
Por mais heterog-
neas e polarizadas as crenas dos membros que convivem no
interior do Estado, o
que prepondera o sentimento nacional mtuo sobre as
peculiaridades particulares
de cada indivduo. Portanto, nesta forma de sociedade moderna, no
deixa de existir
a polarizao das atitudes de cada membro, todavia, ela limitada e
no suficiente
para descaracterizar os termos que quero desenvolver: nao e
nacionalismo. Se-
15 Para Borneman, foi a comunidade poltica imaginada - quando
incorporadas pelas Alemanhas Ocidental e Oriental - que antecipou a
queda do muro de Berlim. O muro tambm no criou as estruturas
polticas antagnicas. Como assinala o autor: A diviso da cidade pelo
muro, em 1961, foi, em princpio, resultado e consequncia de uma
nacional ideologia e disputas familiares crescentes na estrutura
dual dos Estados. No foi o muro que as criou. (BORNEMAN, 1992, p.
19, traduo nossa).
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gundo a preciso explicativa de Elias, o sentido do termo
nacionalismo est relacio-
nado com as crenas nacionais e:
mais flexvel; com sua ajuda, podem formar-se derivativos
compreensveis com um carter de processo tal como nacionalizao de
sentimentos e pensamentos. nesse sentido, livre de implicaes de
aprovao ou repro-vao, que o termo est sendo aqui usado. (ELIAS,
1997, p.145).
Elias tambm adverte que se deve distinguir o nacionalismo de
outras crenas
ou ideologias modernas, como o comunismo, liberalismo e
socialismo. O socialismo,
como ele ensina, produzido a partir do atrito de foras endgenas
a uma determi-
nada sociedade-Estado e posteriormente emerge externamente para
as relaes
com outros Estados soberanos. O nacionalismo, de modo contrrio,
adquire seu
impulso primrio em virtude da mudana no equilbrio de foras entre
diferentes so-
ciedades-Estados e s secundariamente irradia as tenses e os
conflitos entre dife-
rentes estratos sociais dentro delas (ELIAS, 1997, p. 145).
O nacionalismo, na viso de Elias, um termo utilizado para fins
sociolgicos
para investigar e registrar as propriedades estruturais comuns
desse tipo de ligao
emocional, crena e organizao da personalidade que mais cedo ou
mais tarde se
apresenta, no apenas em uma ou outra, mas em todas as
naes-Estados no nvel
de desenvolvimento dos sculos XIX e XX (1997, p. 145). O
socilogo tambm
argumenta a hiptese que o impulso primordial do nacionalismo
pode decorrer do
interior dos Estados desenvolvidos a partir de ideias j
concebidas, como
instrumento no s de manter a integridade e os valores imutveis
da nao, por
$0 mas tambm como um meio de
dominao de um grupo sobre outros, comum no interior dos Estados
modernos nos
sculos XX e XIX. Em alguns casos, portanto, o nacionalismo um
termo para
identificar um ideal nacionalista orientado para energizar
outras espcies de conflitos
- no de geraes da forma que ser discutido - mas de conflitos de
classe.
Em suma, o carter de idias nacionalistas dificilmente pode ser
entendido se for deduzido to-somente do estudo daquelas idias
apresentadas em li-vros por filsofos ou outros escritores
proeminentes, em outras palavras, se so estudadas de acordo com as
tradies da "histria das idias". Idias e ideais nacionalistas no
formam uma seqncia autnoma do tipo que freqentemente atribudo s
seqncias de idias filosficas. Sua sucesso no tempo no se deve
simplesmente ao fato de que autores de uma gera-
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o lem, na verdade, livros escritos por autores de geraes prvias
e de-senvolvem ainda mais, para aprovao ou para crtica, as idias de
autores antecedentes sem referncia ao desenvolvimento e s
peculiaridades estru-turais das sociedades onde esses livros so
escritos e lidos. Tampouco as idias nacionalistas de eminentes
escritores so a causa do "nacionalis-mo". Numa forma latente ou
manifesta, o nacionalismo constitui uma das mais poderosas, talvez
a mais poderosa das crenas sociais dos sculos XIX e XX. (ELIAS,
1997, p,141-142, grifo do autor).
Para elucidar, imperativo compreender o modo que a Alemanha, de
forma
particular, edificou e incorporou seu nacionalismo. Para Elias
(1997), a formao do
Estado alemo moderno um processo que se desenvolveu ao longo dos
sculos.
O termo processo frequentemente utilizado pelo autor, em
substituio histria,
para dar um sentido mais distante no tempo e no restringir a
investigao de uma
determinada sociedade, em curto prazo. Como enfatiza Fausto,
necessrio
ampliar o foco cronolgico da longa durao, recuando-se
consideravelmente no
tempo.16
Como socilogo, estou acostumado a examinar e a pr a descoberto
as conexes mais amplas entre eventos sociais. Talvez ajude se elas
ficarem visveis para muitas pessoas que, sob a presso de seu prprio
trabalho especializado, observam os acontecimentos cotidianos numa
escala de tempo mais curta. Entretanto, se no me sentisse obrigado
como socilogo, no me aventuraria na arena dos acontecimentos
dirios, pois quando se sondam e exploram as conexes entre os mais
recentes eventos sociais, ento muitas das explicaes a curto prazo
resultam inadequadas. (1997, p. 360).
Nesse sentido, a formao do habitus 17 alemo composta por uma
combinao de processos pretritos que culminaram no perodo
hitlerlista, quando
surge o Nacional-socialismo, abordado mais adiante. Em sua
anlise da sociedade
alem, Elias se sustenta por uma investigao scio-histrica para
explicar, mesmo
16 No mesmo ensaio, Boris Fausto assinala que a maioria dos
autores concorda na tese de que a investigao histrica de longo
prazo indispensvel para compreender o nazismo. A interpretao do
nazismo, na viso de Norbert Elias. Mana vol.4. n.1. Rio de Janeiro.
Apr. 1998, p.141-152. 17 O termo habitus, popularizado
posterirormente por Pierre Bordieu, significa basicamente segunda
natureza, ou saber social incorporado, usado em grande parte para
superar os problemas da antiga noo de carter nacional, como algo
fixo e esttico. Prefcio de Eric Dunning e Stephen Mennell . In: Os
Alemes: A luta pelo poder e a evoluo do habitus nos sculos XIX e
XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1997, p.9. Para melhor compreender a
distino entre carter nacional e habitus, empresto a explicao do
historiador Boris Fausto, uma clara distino consiste no fato de que
o conceito de carter nacional tende a corresponder a um dado
estrutural abrangente e pouco permevel a mutaes de uma formao
social, quaisquer que sejam os elementos privilegiados na
constituio do 'carter nacional', tanto em uma viso racial quanto em
uma viso historicista. O conceito de habitus implica maior
flexibilidade, o que se compatibiliza com os cortes e as
descontinuidades da histria alem. (FAUSTO, 1998, p.141-152).
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que parcialmente, os possveis fatos e as circunstncias que
produziram o
sentimento nazista na dcada de 30. Retroceder na histria alem,
at 1930,
insuficiente para analisar o desenvolvimento de sua sociedade.
Por isso, o
pesquisador privilegia a histria de sua nao e dedica sua
investigao numa
anlise de longa durao, para que possa justificar sua sustentao
terica a partir
de um processo histrico singular, inclusive no sentido de
compreender, mesmo que
seja uma parte da realidade, as causas do
Nacional-socialismo.
Como Elias observa ainda est por empreender a tarefa de
investigar
sistematicamente que fatores, no desenvolvimento em longo prazo
da Alemanha e
do chamado carter nacional alemo, contriburam para a ascenso dos
nazistas
(ELIAS, 1997, p.283). Em entrevista realizada em 1984, o prprio
Elias assinalou
que seu modo de pensar nos processos de longa durao, no era
aceito pela
maioria conservadora dos ingleses - nos anos 50 - quando j
lecionava em Leicester.
Elias, na ocasio da entrevista, respondeu que nunca fizera um
plano para seguir a
carreira de professor de sociologia, segundo ele:
Eu no tinha nenhuma chance [...] considero-me um inovador em
sociologia, e todas essas inovaes, no fundo, no eram aceitveis na
poca. Cada vez que eu exprimia uma idia inusitada ao longo de uma
das minhas intervenes numa reunio de colaboradores, isso provocada
uma discusso muito agressiva com as geraes mais jovens. (ELIAS,
2001, p.75).
Em outros termos, faz-se imperativo investigar alm das primeiras
dcadas do
sculo XX, marcadas por duas grandes guerras mundiais. Elias
(1997) discorda que
uma investigao unilateral da sociedade pode explicar a sociedade
alem entre
1871 e 1914. A anlise de Marx de que a estrutura econmica,
representada pelos
proprietrios e no-proprietrios, determina todas as demais
instncias da vida,
insuficiente para explicar a estrutura dos estratos sociais na
Alemanha antes da
Primeira Guerra. Se assim o fosse, o estrato socialmente mais
poderoso seria a
burguesia empresarial, e no era esse o estrato que comandava o
Imprio alemo
naqueles anos. De uma forma geral, os capitalistas eram os menos
poderosos no
sentido de participar das atividades e decises polticas. As
condies determinantes
dos antagonismos de poder vo mais alm e o determinismo de Marx
no capaz
de explica-las. Quem ocupava os altos cargos - na estrutura de
poder - das esferas
-
administrativa e militar eram outras categorias sociais, no
necessariamente com
poder econmico.
Em relao ao aspecto scio histrico, h outro autor que parece
convergir
com Elias da importncia da histria no estudo de uma nao, embora
com outras
consideraes. Para Hobsbawm (2000), no h nao sem passado. A
investigao
que reconstruda a partir dos historiadores pode mostrar uma
histria diferente
daquilo que os nacionalistas gostariam que fosse, isto , preciso
de uma
neutralidade sociolgica na pesquisa histrica. Sentimentos
nacionalistas podem
distorcer a interpretao de um evento e ocultar os aspectos
importantes de uma
comunidade, ou gerao, que no existe mais.
Em sua argumentao, o historiador entende que o nacionalismo uma
esfera
poltica, pertencente a um territrio com fronteiras delimitadas e
soberanas, a qual
integra em seu solo um nico povo. Nesse sentido, podemos
entender que o
nacionalismo um ideal personalizado do ente estatal, o Estado
nacional ou Estado-
nao. Como observa o historiador, um dos fundamentos que se
acreditava inerente
constituio de uma nao o tnico - que se expressa no s nas
suas
caractersticas fsicas - mas inclui o critrio etnolingustico.
Todavia, como observa o
pesquisador, apenas algumas naes do mundo, incorporam esse
critrio.
Os costumes comportamentais de um grupo, ou nao, existem
paralelamente
ao Estado nacional, sem necessariamente provar sua simetria ou
afinidade com a
construo do ideal poltico que o Estado deseja impor. A nao,
algumas vezes
parece ser uma constante luta no sentido de manter a diversidade
cultural. Uma
nao pode possuir uma identidade coletiva real, quase
independente, e pode
preencher os espaos vazios do nacionalismo (HOBSBAWM, 2000,
p.274). Em
complemento, Hobsbawm, assinala:
A etnia, seja qual for sua base, um modo prontamente definvel de
expressar um sentimento real de identidade grupal que liga os
membros do ns, por enfatizar suas diferenas em relao a eles. O que
eles de fato tm em comum, alm de no serem eles, no muito claro,
especialmente hoje em dia [...] (HOBSBAWM, 2000, p.274, grifo do
autor).
Ainda, para Hobsbawm (2013) os componentes como etnia, lngua,
territrio,
histria comum ou qualquer combinao entre tais critrios objetivos
falharam, pois
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no se mostraram, devido a vrias excees, fatores nicos na
construo de uma
nao. Tais critrios so mutveis e inteis. A investigao de critrios
subjetivos
poderia ser a alternativa para explicar a questo da nao? Na
explicao de
Hobsbawm, no. O autor entende que os critrios subjetivos no so
suficientes ou
determinantes para compreender a nao. A perspectiva subjetiva,
em sua anlise,
no passa de uma tentao de combinar elementos objetivos e como
esses
poderiam coexistir, de forma consciente, no interior de um
territrio. Portanto, a
seleo de critrios objetivos ou subjetivos de uma nao,
so tentativas evidentes de se escapar da compulso do objetivismo
a priori, adaptando, de forma diferente em ambos os casos, a
definio de nao a territrios nos quais pessoas com diferentes lnguas
ou outros critrios objetivos coexistem, como na Frana e no Imprio
Habsburgo. (HOBSBAWM, 2013, p.16, grifo do autor).
Em sntese, qual a relao entre nacionalismo e nao? Em primeiro
lugar,
no h uma nao, a priori, sem nacionalismo. Em segundo, a nao no
uma
entidade original e imutvel. Que a nao surge no contexto do
Estado moderno, isto
s faz sentido quando relacionada no interior de um territrio
moderno. Para
elucidar, a sntese de Hobsbawm digna de transcrio: em uma
palavra, para os
propsitos da anlise, o nacionalismo vem antes das naes. As naes
no formam
os Estados e os nacionalismos, mas sim o oposto (HOBSBAWM, 2013,
p.19).
Embora Hobsbawm tenha criticado o critrio da subjetividade
como
componente para constituio de uma nao, ele admite que para sua
investigao
deve ser considerada outras mltiplas variveis, como as
econmicas,
administrativas, tcnicas, polticas e outras exigncias. (2013, p.
19). De um lado, a
influncia do Estado moderno sobre as pessoas comuns que
constituem, ou tendem
a constituir, uma nao. Do outro lado - externo ao plano do
governo ou entidades
prximas a este - a importncia da subjetividade coletiva, as
esperanas e as
aspiraes em comum de seres mortais. Como assinala Hobsbawm:
felizmente os
historiadores sociais aprenderam como investigar a histria das
ideias no plano
subliterrio, de modo que hoje estamos mais seguros de no
confundir como os
-
historiadores faziam - os editoriais de jornais escolhidos com a
opinio pblica
(HOBSBAWM, 2013, p.20).18
Nessa mesma linha, Borneman (1992, p. 50-51) critica a
metodologia terica
de alguns pesquisadores que ignoram a diversidade quando buscam
um tipo
singular de tribo e cultura. O pesquisador define a condio
nacional19 como, uma
subjetividade no contingente em uma opinio ou atitude, mas
derivada das
experincias vividas no interior do Estado (1992, p. 338) e no
acata a hiptese de
que a estrutura poltica de uma nao independente e soberana
cultura, como
defende alguns pesquisadores, na qual o Estado seria o meio
legitimador 20 na
formao de uma cultura nacional.
Para Borneman, o Estado uma inveno cultural, iniciada h dois
sculos, e
sua autonomia constrangida pela particularidade da cultura que a
integra. Como
assinala o antroplogo, os Estados so limitados em sua soberania,
em vrios
aspectos de sua sociedade, inclusive em relao s identidades
tnicas: Para o
antroplogo, Estados so e permanecero partes de ordens culturais
e, portanto,
capazes de serem compreendidos utilizando-se das mesmas
ferramentas analticas
utilizadas para outros artefatos culturais (BORNEMAN, 1992, p.5,
traduo nossa).
Condio nacional, como pertencimento nao, no sentido que usado
por
Borneman, nem sempre significa o mesmo que nacionalismo, pois
esse envolve uma
devoo subjetiva nao. Esses termos, como ele esclarece, so
frequentemente
confundidos:
18 Hobsbawm faz uma crtica ao trabalho de Ernest Gellner, que
prefere a nao vista pelo Governo, dificultando a viso das pessoas
comuns que no compem os governos, porta-vozes ou movimentos
nacionalistas. (HOBSBAWM, 2013). 19 O termo condio nacional
refere-se a nationness, o qual no possui traduo especfica em lngua
portuguesa. Nation-ness utilizado por Benedict Anderson na introduo
de sua obra Imagined communities: My point of departure is that
nationality, or, as one might prefer to put it in view of that
word's multiple significations, nation-ness, as well as
nationalism, are cultural artefacts of a particular kind. Nesse
sentido, utilizei a traduo da verso brasileira onde o termo condio
nacional foi includo pela tradutora para enfatizar ou dar sentido
ao termo nationness, ou nation-ness. O meu ponto de partida que
tanto a nacionalidade ou, como talvez se prefira dizer, devido aos
mltiplos significados desse termo, a condio nacional [nation-ness]
quanto ao nacionalismo so produtos culturais especficos. (ANDERSON,
2008, p.30). 20 Nesse sentido ver Gilberto Dupas, legitimao o ato
de legitimar, de tornar legitimo para a sociedade ou para a opinio
pblica. Legitimo algo considerado autntico, genuno, fundado na
razo, no direito ou na justia. (DUPAS, 2005, p.42).
-
Estados geralmente voltam-se a polticas para fomentar o
nacionalismo, manipulando as opinies de seus cidados em tempos de
crise e para reforar a legitimidade do governo, mas este tipo de
devoo, que frequentemente manifestado igualitariamente aos membros
recm-chegados e aos estabelecidos a longo tempo, to instvel como so
todas as opinies subjetivas. (BORNEMAN, 1992, p.351, traduo
nossa).
Em sntese, o Estado-nao surge a partir do sculo XVIII,
constitudo na sua
formao por um territrio com fronteiras delimitadas e soberania
interna e externa.
Externa no sentido de impor sua fronteira jurisdicional em caso
de invaso
estrangeira. Soberania interna no sentido de estabelecer e
legitimar seu poder de
Estado sobre o subjetividade de seu povo, o qual possui
caractersticas e histria
mais ou menos semelhantes. Todavia, Estados no produzem cultura.
Esses entes
polticos podem estabelecer metas e ideias nacionalistas, mas
para a real
constituio do Estado-nao, em sua plenitude, temos primeiro de
considerar
compreender a importncia do papel subjetivo dos homens, no
interior de dado
espao, na produo do conhecimento histrico e como se d a
transmisso desse
legado cultural, de gerao a gerao.
Esse ponto fundamental e no pode ser esquecido. Critrios
objetivos como
territrio, lngua e etnias em comum, parecem insuficientes,
portanto, para explicar
como se constitui uma nao. Nesse sentido, preciso enfatizar essa
questo: O
que de fato forma uma nao? Empresto a definio de Borneman:
Construir uma nao envolve recriar padres de pertencimento que
formam a base para que se sinta em casa, no mesmo lugar, em no em
outro; se sentir em parte de um grupo que vivenciou um conjunto
particular de acontecimentos em suas vidas suficientes para que
sejam demarcadas de outros grupos. O Estado tem sucesso na construo
de uma nao somente quando pode se autolegitimar como realizador da
recriao desse grupo, cujos membros iro, por reciprocidade, recontar
suas historias categorias e perodos em coerncia com aquelas que o
Estado utiliza como relato. (BORNEMAN, 1992, p. 286-287, traduo
nossa).
O projeto de uma nao, de uma comunho de carter relativa e
imaginada -
para arriscar uma definio entre Bauer e Anderson -, uma questo
complexa, que
parece proceder ao nacionalismo. Mas quais os elementos
determinantes do
nacionalismo alemo? Uma complexidade histrica que envolve vrias
dimenses,
abordadas a seguir.
-
1.2 O nacionalismo alemo e suas dimenses
Segundo Fiori (2012)21, o nacionalismo se apresenta em mltiplos
contextos e
abrange vrias dimenses, que se estendem ao longo da histria e
com variantes,
dependendo da variedade de territrios observados. Face amplitude
de tema, que
se desloca no tempo e no espao, este captulo aborda o
particularismo do
nacionalismo alemo, o qual dar sustentao para o restante da
dissertao.
Entendo que o sentimento; a ideologia; a poltica; a economia e o
poder militar so
conotaes no exaustivas para tentar explicar a natureza do
nacionalismo. Como
explica Fiori (2012), a Alemanha foi uma das naes que conquistou
tardiamente, na
segunda metade do sculo XIX, em comparao aos demais Estados
europeus,
Inglaterra e Frana, seu processo de industrializao. Mesmo aps a
primeira
unificao Alem, em 1871:
A Alemanha sempre se sentiu um pas cercado e pressionado,
carregando um enorme atraso poltico e econmico e um profundo
ressentimento com relao s grandes potncias [...], como no caso da
Alemanha, a Rssia e o Japo so pases que sempre tiveram um forte
sentimento nacional de cerco, vulnerabilidade e atraso [...]. E no
cabe dvida que este sentimento de insegurana coletiva teve um papel
decisivo na formulao do projeto e na trajetria nacionalista e
militarizada do seu desenvolvimento econmico. (FIORI, 2012).
Em complemento ao registro do autor, considero que o
nacionalismo alemo,
preliminarmente, se edificou em duas grandes dimenses ao longo
de sua histria: a
sentimental e a econmica. Todavia, no o meu propsito desenvolver
uma inves-
tigao histrica da conscincia nacional alem desde o Sacro Imprio
Romano
Germnico o I Reich. Esta tarefa escapa infinitamente do escopo
desta pesquisa.
O socilogo alemo Norbert Elias dedicou dcadas aos estudos de sua
nao, sem
esgotar o tema.
Como assinala o pesquisador, seria, penso eu, uma bela tarefa
escrever a bi-
ografia de uma sociedade-Estado, por exemplo, a Alemanha (ELIAS,
1997, p. 165).
21 FIORI, Jos Lus. Nacionalismo e desenvolvimento econmico.
Artigo escrito em duas partes, a primeira em 3 de julho 2012 e a
segunda em 26 de julho do mesmo ano. Disponvel em duas partes em e
. Acesso em 8 mar.2014.
-
esse sentido, para compreender a argumentao dos prximos
captulos, faz-se ne-
cessrio algumas consideraes sobre as bases histricas da
identidade nacional
alem, no contexto dos sculos XIX e XX.
O nacionalismo na Alemanha uma complexa contingncia histrica que
en-
volve, ao menos, uma combinao das dimenses citadas, sem
importncia de hie-
rarquia ou ordem temporal entre elas. Em outros termos, isolar o
nacionalismo sen-
timental alemo, como dimenso determinante, singular e absoluta,
que prepondera
sobre as demais, tese neutra, todavia, indispensvel
compreend-lo, pois faz
parte do carter dos alemes. O sentimento nacional decorre a
partir da segunda
metade do sculo XIX, em funo do atraso econmico da Alemanha
perante as
demais potncias da Europa, e, mais tarde, de um ciclo de penria
econmica, que
atingiu o auge aps a derrota na Primeira Guerra mundial, em
1918, pela imposio
do Tratado de Versalhes e pela crise de 1929.
Esse ressentimento, decorrente e combinado com a penria
econmica, princi-
palmente no perodo entre guerras (1918-1939), certamente no so
os nicos na
construo particular do nacionalismo germnico, seria uma
argumentao fadada
ao fracasso afirmar com veemncia essa hiptese. As variantes que
produziram o
nacionalismo na Alemanha certamente vo alm e uma construo
complexa de
se analisar. O tema adquire mais tenso quando trazemos discusso
a questo da
identidade nacional alem aps a derrota na Segunda Guerra, quando
ocorre a ci-
so da Alemanha em dois Estados antagnicos, em 1949, e a construo
do Muro
de Berlim, em 1961, isolando o setor ocidental, espao que
incorporou duas gera-
es que entraram em contraste social.
Entretanto, para sustentar esta pesquisa, partiremos de uma
breve anlise da
natureza do comportamento e do sentimento alemo, na transio do
sculo XIX
para o sculo XX, como condio indispensvel para compreenso da
formao do
Nacional-socialismo e como esse no foi recepcionado pelas geraes
subsequen-
tes, aps o fim de Segunda Guerra, em 1945. Esses temas sero
abordados nos
captulos seguintes.
1.3 Nao e identidade nacional
Para que se possa analisar a relao entre as geraes
contrastantes
-
necessrio compreender como os estudiosos abordam o tema
identidade.
Proponho os argumentos de dois autores, Stuart Hall e Zygmunt
Bauman.
Bauman no o primeiro, nem o nico, intelectual a se preocupar com
a com-
plexidade da definio de identidade. Segundo o pensador e
socilogo, a identidade
o papo do momento, um assunto de extrema importncia e em
evidncia
(BAUMAN, 2005, p. 23). Para o pensador, o tema realmente um
desafio, um dile-
ma sociolgico dos mais intrigantes da modernidade; um problema
inconclusivo ain-
da a ser revelado e a ser discutido nos meios intelectuais.
Identidade, portanto,
uma discusso moderna, que no fora refletida pelos fundadores da
Sociologia:
Durkheim, Weber e Simmel, homens preocupados com os problemas
daquele tempo
(BAUMAN, 2005, p. 21-22).
Em entrevista a Benedetto Vecchi, Bauman (2005) sugere uma
definio
inacabada de identidade como um objetivo a ser inventado, e no
descoberto
como alvo de um esforo, uma tarefa que ainda se precisa
construir a partir do
zero. Como o pensador observa . se voc lembrar que, h apenas
algumas
dcadas, a identidade no estava nem perto do centro do nosso
debate,
permanecendo unicamente um objeto de meditao filosfica. (BAUMAN,
2005,
p.22-23). O autor ainda refora o conceito altamente ambguo e
contestado da
identidade:
o campo de batalha o lar natural da identidade. Ela s vem luz no
tumulto da batalha, e dorme e silencia no momento em que
desaparecem os rudos da refrega [] mas no pode ser eliminada do
pensamento, muito menos afastada da experincia humana. A identidade
uma luta simultnea contra a dissoluo e a fragmentao, uma inteno de
devorar e ao mesmo tempo uma recusa resoluta a ser devorado [...]
(BAUMAN, 2005, p.83-84, grifo do autor).
] Hall (2011) define a identidade em trs concepes: a primeira o
sujeito do
iluminismo. O sujeito sociolgico e o sujeito ps-moderno aparecem
como as outras
duas concepes, como forma de destronar o homem iluminista de sua
conscincia
egosta e inseri-lo na complexidade do mundo moderno, isto , na
sociedade. Nesta
interao, a identidade do individuo influenciada pelos valores
das culturas exterio-
res num contnuo dilogo, o sujeito passa a ser parte de uma
estrutura pblica mais
ampla, incorporando-se a uma cultura coletiva de uma nao. Em
outros termos, o
-
sujeito abre mo do monoplio de uma identidade individualizada e
se sintoniza a
uma identidade nacional. Como Bauman, o autor engrossa o coro
dos que reconhe-
cem a complexidade do tema e no se arrisca em formular um
conceito determinista.
Hall discute a fragmentao da identidade do sujeito e sua relao
com a estrutura
na ps-modernidade, e a introduz como produto o sujeito
ps-moderno, expresso
de uma identidade voltil e mutvel.
A opinio dentro da comunidade sociolgica est ainda profundamente
divi-dida quanto a esses assuntos. As tendncias so demasiadamente
recen-tes e ambguas. O prprio conceito com o qual estamos lidando,
identida-de, demasiadamente complexo, muito pouco desenvolvido e
muito pouco compreendido na cincia social contempornea para ser
definitivamente posto prova. Como ocorre com muitos outros fenmenos
sociais impos-svel oferecer afirmaes conclusivas ou fazer
julgamentos seguros sobre as alegaes e proposies tericas que esto
sendo apresentadas. (HALL, 2011, p. 8).
Para Hall, a globalizao impacta sobre identidade cultural, seus
efeitos contra-
riam o que os socilogos pensavam sobre as mudanas evolucionrias
de uma so-
ciedade a partir de si mesma. Ela est constantemente sendo
descentrada ou des-
locada (HALL, 2011, p. 17). A indagao em relao a sua preocupao
com a
forma que a identidade cultural, mais especificamente, como a
identidade nacional
se comporta na modernidade tardia. Segundo sua anlise, a nao, na
modernida-
de, ao contrrio das sociedades mais tradicionais, so construdas
a partir da cultura
nacional.
O discurso da cultura nacional, no , assim, to moderno como
aparenta ser. Ele constri identidades que so colocadas, de modo
ambguo, entre o passado e o futuro. Ele se equilibra entre a tentao
por retornar a glrias passadas e o impulso por avanar ainda mais em
direo modernidade. As culturas nacionais so tentadas, algumas
vezes, a se voltar para o passado, a recuar defensivamente para
aquele tempo perdido, quando a nao era gr so tentadas a restaurar
as identidades passadas. (HALL, 2011, p. 56-57).
Nesse sentido, a nao, para Hall, um conjunto de significados que
no est
somente restrito na entidade poltica, mas algo que produz
sentidos um sistema
de representao cultural. (HALL, 2011, p. 49), fazendo que as
pessoas participem
e se identifiquem da ideia imaginada de nao. Hall acredita que a
identidade nacio-
-
nal na modernidade no esttica. Assim como a nao para Benedict
Anderson,
imaginada, o mesmo ocorre relao identidade nacional, ela
produzida. Imagi-
nada.
As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre a nao,
sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem
identidades. Esses sentidos esto contidos nas histrias que so
contadas sobre a nao, memrias que se conectam seu presente com seu
passado e imagens que dela so cons-trudas. (HALL, 2011, p. 51,
grifo do autor).
A Identidade na modernidade tardia se inicia na segunda metade
do sculo
XX, e tem seu pice no histrico ano de 1968, alicerado no
feminismo e outros
movimentos sociais e revolucionrios dos anos 60. Hall (2011, p.
44) observa
alguns elementos que refletem esse cenrio, como exemplo
movimentos que se
opunham a polticas capitalistas ou socialistas ou movimentos que
eram
sustentados por identidades especficas, negros e lutas raciais,
gays e poltica
sexual.
As questes que Hall coloca em seu trabalho so importantes, pois
sero re-
tomadas mais adiante, se as identidades nacionais so realmente
to unificadas e
to homogneas como representam ser (HALL, 2011, p, 51). Em
primeiro lugar, a
partir dos cinco elementos propostos por Hall, arrisco uma noo
abrangente de
identidade nacional.22 Ela construda a partir de narrativas de
experincias, signifi-
cados histricos e mitos, no sentido de comunicar e perpetuar s
geraes futuras,
os valores comportamentais, as tradies culturais e as memrias
produzidas no
passado.
Mas h uma unificao entre cultura nacional produzida e as
identidades naci-
onais que eles constroem? As diferenas em termos de classe,
gnero ou raa, en-
tre os membros de uma mesma comunidade teriam como propsito a
formao de
uma nica nao, para represent-los todos como pertencendo mesma e
grande
famlia nacional (HALL, 2011, p. 60), o que poderia suprir ou
anular as diferenas
culturais em prol de uma unidade nacional. Ao citar o povo
britnico, como exemplo,
22 Hall aborda estes cinco aspectos que constroem a noo de
identidade cultural, a partir da cultura nacional, citando muitas
vezes Ernest Gellner, Eric Hobsbawm e Terence Ranger. (HALL, 2011,
p. 52-58).
-
inicialmente formado por culturas separadas por um longo
processo de conquistas,
cada qual lutou para impor sua hegemonia cultural, sendo que os
componentes de
origem devem ser esquecidos, pois ao longo da histria, seriam
absorvidos para
formar um pertencimento comum famlia da nao (HALL, 2011, p.
61).
Mas para Hall (2011), a ideia da cultura nacional unificada com
a identidade
nacional, em toda sua plenitude posta em dvida. O problema no
est no seu
ponto de chegada. Ocorre que no interior da estrutura cultural,
isto , nas tradies,
valores nacionais e nos comportamentos pretritos, nunca se
encontrou uma homo-
gneidade no sentido como imaginado no romntico discurso de
Ernest Renan, so-
bre a Nao 23. Um dos grandes problemas a variedade de classes,
no s no m-
bito econmico, mas tambm em relao s classes tnicas e de
gnero.
A imaginada unificao plena da identidade nacional para com sua
nao ,
portanto, refutada por Hall. Isto no significa, de modo algum,
que membros no inte-
rior de um determinado Estado-nao refutam totalmente a
diversidade de classes e
etnias a sua volta, pode naturalmente permanecer uma relativa
sensao de respeito
mtuo entre eles.
Hall nos traz um breve dilogo entre cultura, identidade e
modernidade.
J que a diversidade cultural cada vez mais, o destino do mundo
moderno, e o absolutismo tnico, uma caracterstica regressiva da
modernidade tardia, o maior perigo agora se origina das formas de
identidade nacional e cultural novas e antigas que tentam assegurar
a sua identidade adotando verses fechadas da cultura e da
comunidade e recusando o engajamento... nos difceis problemas que
surgem quando se tenta viver com a diferena. (apud BAUMAN, 2005, p.
105) 24.
23 Uma nao uma alma, um princpio espiritual. Duas coisas que
para dizer a verdade no formam mais que uma constituem esta alma,
este princpio espiritual. Uma est no passado, a outra no
$/12$2atual, o desejo de viver em conjunto, a vontade continuar a
fazer valer a herana que receberam esses indivduos [...]nao, como o
indivduo, o resultado de um longo processo de esforos, de
34///56$!$ter feito grandes coisas conjuntamente, querer fazer
ainda, eis as condies essenciais para ser um povo. Amamos na
proporo dos sacrifcios que consentimos, dos males que sofremos.
Amamos a casa que construmos e que transmitimos [...]"Ns somos o
que vocs f vocs so. RENAN, Ernest. O que uma nao? Conferncia
realizada na Sorbonne, em 11 de maro de 1882." Revista Aulas .
Dossi Subjetividades. Org. Adilton Lus Martins. vol. 1. n 2. 24
HALL. Stuart. Culture, Commnity, Nation. Cultural Studies, 3, 1993,
p. 349-363.
-
Ao estudar a identidade nacional de uma cultura, sociedade ou
nao perce-
be-se que o tema, complexo, e certamente, no pretendo nesta
pesquisa esgotar
sua definio. O caso da raa e sua contribuio para a identidade
nacional, por
exemplo, outra discusso, sobretudo antropolgica.25 Raa um termo
imprprio
se utilizado para determinar uma caracterstica biolgica, uma
categoria discursiva,
organizadora das formas de falar, daqueles sistemas de
representao e prticas
sociais que utilizam um conjunto frouxo, frequentemente pouco
especifico, de dife-
renas em termos de caractersticas fsicas cor da pele, textura do
cabelo [...] co-
mo marcas simblicas, a fim de diferenciar socialmente um grupo
de outro. (HALL,
2011, p. 63-64).
Trazemos, mais uma vez, a contribuio de Elias (1997). Para
compreender
a cultura ou a identidade de uma civilizao, imperativo analisar
sua estrutura
social e o legado histrico produzido pelas geraes passadas.
Nesse sentido, Elias
converge com Hall em relao importncia do papel da histria
cultural. A teoria
elisiana no despreza a herana da estrutura social e da produo
cultural
construda por geraes passadas. Os sentimentos de uma nao e
sua
conscincia de que pertencem a um povo so as razes que formam a
identidade de
uma cultura. Como Elias argumenta (1990, p. 30), Os problemas
contemporneos
de um grupo so crucialmente influenciados por seus xitos e
fracassos anteriores,
pelas origens ignotas de seu desenvolvimento.
O sentimento de inferioridade alem identificado no sculo XIX; a
humilhao
sofrida na Primeira Guerra, principalmente com a imposio do
Tratado de Versa-
lhes; o sentimento de grandeza com a ascenso e a consolidao do
Nacional-
socialismo, em plena crise do sistema capitalista; o sentimento
de culpa coletiva
aps Auschwitz; o conflito social entre geraes ps Segunda Guerra;
a diviso da
Alemanha em dois Estados antagnicos; a construo e a queda do
Muro de Berlim;
a reunificao das Alemanhas, em uma Nao alem, - se que possvel
usar esse
termo naquela ocasio, - retratam uma contingncia produzida pelas
relaes m-
tuas entre homens, ao longo do processo histrico, que
influenciaram a estrutura e a 25 Como ensina Lvi-Strauss. Mas o
pecado original da antropologia consiste na confuso entre a noo
puramente biolgica de raa (supondo, alis, que, mesmo neste terreno
limitado, esta noo pudesse pretender a objetividade, o que a
Gentica Moderna contesta) e as produes sociolgicas e psicolgicas
das culturas humanas. LVI-Strauss, Claude. Antropologia Estrutural
II. Raa e Histria. UNESCO, Paris, 1952, p 328.
-
identidade nacional alem das ltimas geraes, e que,
possivelmente, criaro as
condies determinantes para as prximas.
Nesse sentido, para compreender as causas que levaram ao
conflito entre as
duas geraes - que uma relao antagnica entre grupos sociais, ou
de um confli-
to de identidades -, em primeiro lugar, preciso entender os
critrios tericos para
inaugurar uma nova gerao. A combinao de experincias similares
vividas por
grupos de faixas etrias prximas pode ser um critrio que sugere
uma nova gera-
o, distinta, em sua forma de agir e pensar para com a gerao que
a precedeu.
Em outras palavras, trata-se de uma identidade coletiva
singular, e utilizo esse con-
ceito para designar a unidade de gerao, esse ltimo termo cunhado
por Karl Man-
nheim no seu ensaio sobre o problema geracional, a ser tratado
no captulo 3.
Em segundo lugar, essa unidade de gerao no imutvel, est sujeita
a
ao da histria e ao encontro de novas geraes que surgiro. Em
outros termos, e
isso ser abordado mais adiante, discutir sobre os problemas de
uma dada gerao
somente possvel compreendendo que ela no dada a priori, em maior
ou menor
grau, ela (a gerao observada) constantemente influenciada por
eventos presen-
tes e imprevistos, mas no menos pelo legado de experincias e
sentimentos trans-
mitidos pela gerao anterior. Isolar uma gerao, portanto, em
determinado territ-
rio e tempo, vivel apenas em algumas circunstncias, onde o
pesquisador, em
funo do seu objeto limitado de pesquisa e do tempo que tem para
a publicao de
sua tese, est preocupado com as prticas e as aes singulares
presenciais, dando
as costas ao passado.26
Como abordo mais adiante, a gerao produto histrico e sua
constituio
depende da forma com que cada grupo coletivo se identifica e
reage para com as
26 Essa forma de ocultar um contexto histrico mais amplo foi
acreditada pelo antroplogo Bronislaw Malinowsky (1884-1942), como
explica Laplantine, Mallinowsky considera que uma sociedade deve
ser estudada enquanto uma totalidade, tal como funciona no momento
em que a observamos. (LAPLANTINE 2012, p. 80). Para Eriksen e
Nielsen, essa forma foi considerada, na ocasio, um mtodo
revolucionrio de pesquisa, conhecido como observao participante, no
sentido de viver com as pessoas que estavam sendo estudadas e em
aprender o participar o mximo possvel de 7/ )'89-)* *8),-)*! :;:!
$/
-
circunstncias histricas que lhe so impostas. Quanto aos
conflitos, essa pesquisa
no tem como propsito analisar os atritos no interior de cada
gerao, mas do atrito
intergeracional. Ora, se h conflitos de identidades geracionais
no interior de um Es-
tado-nao, estamos lidando com contradies em relao s maneiras de
pensar,
reagir e sentir, que podem, ou no, levar a um alto grau de
intransigncia a ponto de
descontinuar com a condio nacional - nation-ness (Anderson,
2008. p. 30) pre-
cedente. Mas, como vimos, o conceito de nao parece inacabado e
meu propsito
acadmico, nem de longe, pretende superar os autores citados
nesta pesquisa.