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REVISTA CHILENA dE LITERATuRAdiciembre 2014, Nmero 88, 37-62
MuTISMO ANCESTRAL: A SORTE dOS NdIOS
Lus Adriano de Souza Cezaruniversidade Federal do Rio Grande do
Sul
[email protected]
RESuMEN / RESUMO / ABSTRACT
Milton Hatoum es uno de los autores ms relevantes de la
literatura brasilea contempornea. En 1989, realiz su debut en el
universo literario con la aclamada novela Relato de um certo
Oriente. Resultado de una alta sofisticacin esttica y de una
intrincada disposicin narrativa, esa obra se distingue no solo por
la fuerza de su enredo, sino tambin, sobre todo, porque incorpora,
como elemento constituyente de los personajes y sus conflictos, el
discurso histrico de una Manaus en crisis econmica y cultural,
despus del decaimiento del Ciclo da Borracha. De tal manera, este
trabajo presenta un anlisis del romance, cuya referencia es la
sociedad amaznica (y brasilea) a lo largo del siglo XX.
palabras clave: Milton Hatoum, Manaus, Ciclo da Borracha,
decaimiento.
Milton Hatoum um dos autores mais relevantes da literatura
brasileira contempornea. Em 1989, realizou sua estreia no universo
literrio com o aclamado romance Relato de um certo Oriente.
Resultado de um alto refinamento esttico e de um intricado arranjo
narrativo, essa obra se distingue no s pela fora de seu enredo,
mas, sobretudo, porque incorpora, como elemento constituinte das
personagens e seus conflitos, o discurso histrico de uma Manaus em
crise econmica e cultural, aps a decadncia do Ciclo da Borracha.
Dessa maneira, este trabalho apresenta uma anlise do romance, cuja
referncia a sociedade amaznica (e brasileira) ao longo do sculo
XX.
palavras-chave: Milton Hatoum, Manaus, Ciclo da Borracha,
decadncia.
Milton Hatoum is one of the most important authors of
contemporary Brazilian literature. He made his debut in the
literary world in 1989 with the acclaimed novel Relato de um Certo
Oriente. This work, the result of high aesthetic refinement and an
intricate narrative arrangement, is distinguished not only by the
strength of its plot, but above all because it incorporates, as a
constituent element of the characters and their conflicts, the
historic discourse of Manaus
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during an economic and cultural crisis subsequent to the decline
in the Rubber Boom. This paper therefore presents an analysis of
the novel, whose frame of reference is Amazon (and Brazilian)
society throughout the twentieth century.
Keywords: Milton Hatoum, Manaus, Rubber Boom, decadence.
dA PARIS dOS TRPICOS CIdAdE FLuTuANTE
De reduzida aldia em fins do sculo XIX, Manaus, j no primeiro
decnio do sculo XX, passou a um importante centro comercial do
negcio da borracha. A Paris dos Trpicos, entretanto, teve vida
curta; em 1920, o Governo Federal suspendeu os incentivos que,
desde o incio da Primeira Guerra Mundial, tentavam debalde salvar a
produo brasileira de um fracasso perante a concorrncia asitica. De
qualquer modo, ainda que os portos tenham esvaziado e os
investimentos estrangeiros escasseado, a modernizao empreendida
pelo surto da borracha em toda a regio amaznica, especialmente na
capital amazonense, deixou marcas profundas no s no traado urbano e
nos hbitos de consumo de Manaus, mas, sobretudo, na mentalidade da
pequena burguesia que se favorecera com os anos de Eldorado. A
partir da crise do Ciclo da Borracha, perderam espao (e fortuna,
evidentemente) os antigos bares; em seu lugar, restaram suas
manses, seus palacetes e o smbolo mximo do fausto manauara: o
Teatro Amazonas. As famlias abastadas que sobreviveram ao declnio
econmico partiram, em sua maioria, para a Europa ou para o Rio de
Janeiro, a fim de se afastarem do provincianismo a que estava
relegada, novamente, a antiga Paris das Selvas. Esta se afundou na
estagnao econmica e sua populao foi incrementada por uma legio de
miserveis oriundos dos seringais abandonados que se espalhavam pelo
interior amaznico.
A entrada do capital estrangeiro, alm da modernizao arquitetnica
e urbanstica, tambm favoreceu o fortalecimento do comrcio em
Manaus. A fim de suprir as necessidades de uma sociedade cada vez
mais dependente do estilo de vida europeu, ou melhor, parisiense,
esse setor, ao lado do setor responsvel pela exportao gomfera,
tornou-se fundamental para a economia manauara. Apesar da queda
brusca nas atividades exportadoras, o comrcio se manteve; afinal,
Manaus j no era mais um acanhado reduto de pequenas casas, e sim
uma cidade que fora rapidamente modernizada e invadida por
imigrantes das mais diversas origens. destes, um determinado grupo
foi de extrema importncia para as atividades comerciais: os
rabes.
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Atrados pelas riquezas da borracha, srios e libaneses
dedicaram-se s mais diversas modalidades do comrcio no espao
amaznico: desde a regatagem pela imensido dos rios at a administrao
de casas comerciais. Na Manaus ps-Ciclo da Borracha, escassearam os
grandes seringalistas e exportadores, mas se mantiveram os
integrantes de uma incipiente burguesia dependente de negcios
exclusivamente citadinos.
A exemplo do que acontecera em outras regies brasileiras, como
os italianos em So Paulo ou os judeus em Porto Alegre1, os
imigrantes rabes passaram a constituir um estrato de bastante
importncia econmica na sociedade manauara. Tal relevo social
abordado nos dois primeiros romances de Milton Hatoum, os quais
possuem suas narrativas centradas em ncleos familiares de origem
libanesa. Seja a famlia de Emilie, em Relato de um certo Oriente,
seja a de Zana, em Dois Irmos, ambas apresentam integrantes de uma
elite local atrelada s atividades comerciais. No primeiro caso, o
universo romanesco se concentra nos espaos da Parisiense, loja de
gneros que d esteio famlia, e ao casaro onde vivem os imigrantes e
seus filhos. Entretanto, ainda que os relatos organizados pela
narradora se refiram, majoritariamente, ao espao privado, no
movimento das personagens as quais circulam pelo sobrado dos
libaneses que se pode observar tenses sociais atinentes ao contexto
histrico-social de uma Manaus de meados do sculo XX. Dessa maneira,
a maior parte dos eventos narrados pelas diversas vozes que compem
o romance situam-se temporalmente em um perodo histrico posterior
ao fausto gomfero, episdio cujos ganhos e perdas so fundamentais
para compreender a constituio dessa Manaus moderna, dentro da qual
convivem o tradicional e o moderno, o nativo e o estrangeiro e,
sobretudo, as runas de um passado grandioso e a nsia por um futuro
que redirecione a capital amazonense para o caminho de continuidade
econmica com o restante do Brasil.
A formao da Paris dos Trpicos, assim como as principais cidades
ocidentais que se forjaram na virada do sculo XIX para o XX,
devedora da lgica urbanstica de Haussmann. Essa influncia europeia
no , de modo algum, exclusividade manauara ou tampouco brasileira,
mas no caso de Manaus as consequncias vo alm da segregao espacial
daqueles que excediam os j definidos lugares sociais de prestgio da
modernizao conservadora. O crescimento desse ncleo urbano beira do
rio Negro,
1 Capitais, respectivamente, de So Paulo e Rio Grande do Sul,
dois estados brasileiros.
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mais do que afastar os pobres para as cercanias da cidade,
tentou enterrar como uma chaga o que, at hoje, h de mais distintivo
da regio amaznica: a cultura indgena. Alijados pelos interesses do
mercado internacional e, principalmente, pela mentalidade em um
arremedo de europeia da elite manauense, os ndios no compartilharam
dos lucros da borracha, no se envolveram em atividades comerciais,
no habitaram os casares do centro da cidade, tampouco frequentaram
as peras do Teatro Amazonas. Dessa forma, o grupo tnico primevo da
regio foi de tal modo relegado que sua presena, alm de desprezada
socialmente, inexistente em quase absoluto no discurso oficial a
respeito dos tempos ureos de Manaus.
Antes de um percurso histrico mais aprofundado a respeito das
formas de espoliao a que, desde a chegada dos primeiros portugueses
Amaznia, sempre esteve submetido o indgena, preciso compreender a
maneira por que se representa, no primeiro romance de Milton
Hatoum, a estratificao social de Manaus. Este fenmeno recebeu
contornos bastante acentuados com o modelo de modernizao
empreendido na capital amazonense durante o pice da extrao gomfera.
Conservador, ele privilegiou as classes dirigentes e relegou os
desvalidos ao mais severo isolamento socioespacial. Esse fundamento
histrico formalizado no romance a partir da relao estabelecida
entre a famlia-ncleo da narrativa e as diversas personagens pobres
que circundam o sobrado dos libaneses. No centro, h a matriarca
Emilie, o marido e os filhos; ao redor, agregam-se as empregadas,
os indgenas e os moradores de bairros pobres, como a Cidade
Flutuante e os Educandos. dessa maneira, observa-se, ao longo da
narrativa, uma massa de miserveis desassistida por iniciativas do
Estado tornar-se dependente da generosidade de um grupo familiar
abastado.
Durante a construo da Manaus moderna, forjaram-se distncia do
centro, naturalmente bairros pobres para onde migraram os
excedentes da reforma social empreendida na cidade. Mas a partir de
1920, ano que registra a derrocada completa dos tempos dourados do
extrativismo gomfero, passa a se constituir uma surpreendente forma
de agrupamento humano: a Cidade Flutuante. Formada por casas de
madeira que flutuavam sobre troncos de rvores, essa aglomerao se
desenvolveu de 1920 at 1967 nas superfcies do Rio Negro e de
igaraps manauaras. Essa outra cidade chegou a possuir cerca de 12
mil habitantes durante a dcada de 1960 e contou com uma rede de
servios semelhante que havia em terra firme: bares, restaurantes,
oficinas, feiras, lojas, etc. Alm disso, preciso destacar que tal
fenmeno urbano est intimamente ligado aos dois maiores marcos de
entrada do capital estrangeiro
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na regio amaznica: a formao da Paris dos Trpicos (1890 a 1915) e
a inaugurao da Zona Franca de Manaus (1967). Assim, mais uma vez, a
fim de que se compreenda qualquer aspecto do processo de modernizao
da capital amazonense, deve-se apontar a lente de anlise para esses
dois polos fundamentais da histria econmico-social de Manaus.
Paris dos Trpicos ou Paris das Selvas so duas expresses cunhadas
durante a Belle poque amaznica para designar a pretensiosa Manaus
erigida com os excedentes financeiros da importao gomfera. Ao longo
desse perodo de euforia econmica, houve um intenso processo
migratrio voltado para as capitais Manaus e Belm e para o interior
amaznico, onde se situavam os seringais de extrao do ltex. As
cidades receberam, em sua maioria, imigrantes ligados aos negcios
exportadores e s empresas responsveis pelas reformas urbansticas.
Assim, pela capital amazonense, passaram a circular cidados
ingleses, espanhis, portugueses, alemes, srios, libaneses, etc. J
pelo interior, no alto dos rios, em um contato muito prximo com
diversas populaes indgenas, passou a viver e a trabalhar (em
condies absolutamente escorchantes) uma leva gigantesca de
migrantes nordestinos. Incentivados pelo Governo Federal e,
sobretudo, por promessas fantasiosas de enriquecimento rpido e
fcil, milhares de homens, mulheres e crianas incrementaram os
grupos de seringueiros da rstica indstria extrativa. Essa massa
iludida de trabalhadores nordestinos foi submetida, entre tantas
formas de explorao humana, ao perverso sistema de aviamento, por
conta do qual se tornavam verdadeiros escravos nas mos dos
administradores dos barraces. Dessa maneira, ainda que esses
trabalhadores tenham acompanhado o Ciclo da Borracha desde os
primeiros anos, a eles no coube parcela significativa dos
crescentes lucros da exportao gomfera; restou, isso sim, a
experincia da mais absoluta miserabilidade humana no interior dos
seringais espalhados pela selva.
Despojos de uma modernizao manca e aventureira, os seringueiros
foram os ltimos a receber as nefastas informaes a respeito da
bancarrota amaznica. O isolamento imposto pelos seringais e o
sistema de escravizao por dvidas infligiram a esses homens e
mulheres modos extremamente precrios de contato com a civilizao.
Enquanto os ingleses que haviam construdo o Manaus Harbour e se
divertido nos elegantes clubes familiares da capital amazonense
retornavam para a Europa, e os grandes seringalistas, aos quais
ainda restavam maneiras de escapar ao embarao econmico, mudavam-se
para o Rio de Janeiro, os trabalhadores do interior amaznico se
depararam com imensos seringais abandonados, sem qualquer
perspectiva de
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produtividade. Desamparados por essa nova configurao, para os
sobreviventes da extrao de ltex no houve outra alternativa, seno
recorrer a Manaus, a fim de encontrarem algum alento para sua
peregrinao iniciada no serto nordestino. Sendo assim, encetaram-se
os primeiros movimentos para a construo da Cidade Flutuante.
Diante de uma cidade cujo processo modernizador contribura de
modo decisivo para uma rgida disposio dos estratos sociais e suas
respectivas posies geogrficas no limite citadino, diversos
seringueiros e ribeirinhos recm-chegados principal cidade do
Amazonas passaram a construir suas habitaes s margens do Rio Negro.
Tal escolha no , de modo algum, aleatria, uma vez que esse grupo de
migrantes possua, no interior amaznico, formas de sobrevivncia
exclusivamente dependentes das guas dos rios. Deles, eram retirados
o alimento; por eles, havia a navegao e a comunicao com territrios
vizinhos. No surpreende, portanto, a manuteno desse estilo de vida
em Manaus, cuja formao histrico-social, apesar dos esforos
urbansticos e europeizadores da malograda Belle poque, tambm debita
de uma ntima relao com o rio. Desse modo, a Cidade Flutuante um
fenmeno urbano de tamanha complexidade que sua extenso e seu nvel
populacional so admirveis: quase 12 mil pessoas se aglomeraram em
uma rea que chegou a distar 150 metros da margem.
Embora no auge de sua existncia, entre as dcadas de 1940 e 1960,
a Cidade Flutuante tenha estabelecido um sistema de manuteno quase
autossuficiente em relao a Manaus, no se deve perder de vista que
esse bairro manauara guarda suas origens e seu desenvolvimento na
entrada macia de seringueiros, pescadores e ribeirinhos sem nenhuma
perspectiva de trabalho ou de uma sobrevivncia digna no interior
amaznico. Afirmar que essa cidade possua ferragens, oficinas
mecnicas, drogarias e at mesmo consultrios mdicos e dentrios no ,
de modo algum, realizar a defesa do seu xito enquanto aglomerado
humano. Pelo contrrio, apontar para o crescimento e para as
melhorias da Cidade Flutuante , na verdade, repisar em um tema caro
literatura de Milton Hatoum: a entrada de capital estrangeiro
durante o Ciclo da Borracha serviu para a construo de uma Manaus
moderna em p de igualdade com outras grandes capitais do Brasil e
do mundo; entretanto, o modo como foi gerido esse excedente
econmico deixou margem dos lucros e das melhorias tcnicas e
culturais uma imensa parcela da populao manauara. Assim, a Cidade
Flutuante, longe de ser enaltecida como um paradigma do
esquizofrnico jeitinho brasileiro, precisa ser compreendida como
uma forma de espoliao de trabalhadores desvalidos, os quais,
por
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conta do perverso descaso das polticas pblicas, obrigaram-se
construo de uma comunidade famlica, desprovida de saneamento bsico
e transformada, ao longo do tempo, em agente poluidor do rio sobre
o qual flutuava.
Em Relato de um certo Oriente, os moradores desse conglomerado
so representados na sua relao de dependncia com a matriarca da
famlia-ncleo do romance. Em torno da imigrante, a fim de obterem
alguma espcie de privilgio, renem-se alguns integrantes da Cidade
Flutuante. Hakim, o filho mais velho de Emilie e um dos narradores
do romance, relembra a prtica da me em homenagem a Emir. A
matriarca se deslocava anualmente at o igarap dos Educandos, onde
arremessava um retrato do jovem libans e um vaso de flores, com o
intento de exaltar a memria do irmo que se suicidara no fundo do
Rio Negro. Tal atitude, repetida durante vrios anos, chama a ateno
dos moradores daquele bairro que se formava beira do Negro e do
igarap; por isso, a prpria Emilie torna-se alvo no s de
curiosidade, mas tambm de idolatria pelos habitantes da Cidade
Flutuante:
As dezenas de fotos de Emir serviram para Emilie colocar em
prtica uma promessa cumprida risca durante boa parte de sua vida;
tu deves ter reparado que, infalivelmente, a cada manh do
aniversrio da morte de Emir tua av caminhava at a Matriz e,
ajoelhada, com o corpo voltado para o rio, orava os responsos de
Santo Antnio; depois seguia at o cais e pedia a um catraieiro para
que a conduzisse boca do igarap dos Educandos, onde jogava na gua
um vaso com flores e um retrato do irmo; esse gesto, repetido a
cada ano, despertou uma certa curiosidade nos moradores da Cidade
Flutuante. Alguns passaram a frequentar o sobrado para pedir
conselhos a Emilie e, eventualmente, esmolas e favores (76).
Neste pargrafo, interessante observar o movimento realizado pela
personagem em destaque. Emilie, para cumprir uma promessa de
verdadeiro louvor ao irmo, sai do sobrado da famlia e dirige-se at
a praa da Matriz, em frente da qual se organizaram as primeiras
habitaes da Cidade Flutuante. Antes de compreender a fora simblica
que esse deslocamento impele narrativa, deve-se destacar a descrio
da matriarca realizada pelo filho, narrador do fragmento:
Mas na manh seguinte Emilie se iluminava; vestia um tailleur
negro e usava o colar de prolas contornando o decote, mas em
contato com a pele. O rosto liso como o marfim era envolto pelos
cabelos ondulados, e por detrs da orelha brotava a flor de jambo,
de um vermelho vivo
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que repetia o vermelho dos lbios. Ao despontar assim, no vo da
escada, meu pai estremecia, mordendo os beios, talvez ressentido ou
enciumado, em todo caso irrequieto e certamente fascinado com
aquela viso matinal, que era a verso mais pura da beleza. Ele no
estranhava a sua atitude, pois Emilie se embelezava para
reverenciar um defunto, mas o fato que, naquele dia do ano, o negro
que lhe cobria o corpo era, mais que luto, luxo (89).
A ltima palavra, o termo que encerra esse trecho descritivo,
congrega em seu significado bem mais que uma apreciao acerca da
vestimenta da matriarca; revela, na verdade, o imenso contraste
social existente nessa Manaus do sculo XX, cuja mmese, alm do
percurso espacial realizado pela libanesa, a forma absolutamente
desproporcional com que Emilie se veste ao se dirigir a uma das
regies mais miserveis da cidade. De frente Cidade Flutuante, uma
mulher de postura esguia, com anel de safira e colar de prolas,
dona de uma casa de comrcio e moradora de um sobrado no centro,
atira flores e um retrato ao rio. Aps esse rito, ela ainda recebe
em sua casa mendigos, curumins e doentes (em uma fila, a cada ano
maior) para lhes oferecer guloseimas e mais importante ajuda e
proteo. Esse luxo, portanto, a que remete Hakim, a insgnia desse
grupo manauara que no apenas mora distante dos miserveis, mas,
sobretudo, veste-se e age de modo distinto aos habitantes dos
Educandos, da Cidade Flutuante e de tantos outros bairros que
proliferaram revelia dos projetos urbansticos do incio do
sculo.
Como prprio Hakim defende ao longo do romance, os presentes, as
esmolas, as eventuais ajudas e favores no significam, em essncia,
uma generosidade louvvel de Emilie. Ao passo que no universo pblico
a imigrante libanesa se empenhava para que nada faltasse aos
moradores da Cidade Flutuante (88), no privado, no interior do
sobrado comandado por ela, pouco havia da me de todos (89). No
preparo do festivo dia em que Emilie celebrava a memria do irmo,
ajudando aos miserveis de Manaus, colaboravam as amigas Hindi,
Mentaha e Yasmine, alm das empregadas e dos filhos e parentes
destas. Aqui, avulta a perversidade que impregna as relaes
estabelecidas entre o senhor e os seus fmulos na sociedade manauara
em realce. Nenhuma das empregadas que passaram pelo sobrado de
Emilie receberam honorrios; alm do mais, ainda foram vtimas dos
abusos dos gmeos da casa, os quais contavam com a conivncia
materna, mais interessada em proteger os filhos que dar ouvidos a
sirigaitas (77).
A forma de interao entre a matriarca libanesa e os desvalidos
manauaras que circundam o sobrado revela, apesar de ocultada por
uma singela e
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despretensiosa filantropia, a reiterao do poder de um estrato
social sobre outro. Ao presentear, Emilie no est propriamente se
doando leva de miserveis, e sim reafirmando a sua superioridade
econmica e social. Todos aqueles homens, mulheres e crianas,
constrangidos por um contexto de estagnao dos negcios
extrativistas, no possuem alternativa diferente, seno recorrer s
esmolas advindas de um membro da elite comercial que se formou
graas transformao da Manaus aldeia em Manaus moderna. Em um sistema
truncado, dentro do qual concorrem seringueiros recm-chegados dos
seringais abandonados do interior, caboclos, indgenas, mendigos,
crianas rfs, todos, evidentemente, relegados s posies e s moradias
mais desfavorecidas na geografia da cidade, passam a depender do
assistencialismo de algum que ocupa uma posio hierrquica,
impudentemente, acima. Em troca, como forma de agradecimento
bondade da libanesa, os mais variados presentes:
Eram objetos, animais e plantas originrios dos quatro cantos da
Amaznia: pssaros e rpteis vivos e empalhados, o precioso rouxinol
do rio Negro, mudas de trepadeiras, samambaias e palmeiras,
peixinhos fosforescentes, piranhas embalsamadas, e at mesmo a
rplica fiel de um remo sagrado que conta a histria de uma tribo
indgena (89).
Pelo que se v, todas as ofertas recebidas por Emilie so marcadas
seja pela cultura, seja pela natureza amaznicas. Em primeiro plano,
essa retribuio desnecessria, mas compreensvel se levada em
considerao a atitude de contornos paternalistas da imigrante
libanesa nada mais do que o pouco que essas pessoas podem oferecer:
frutas, plantas, caas, objetos pessoais, tudo carregado de uma nsia
por agradar me de todos. Observados, entretanto, com mais vagar,
esses presentes podem ser compreendidos como uma forma de entrega
simblica dos elementos constituintes da identidade desses
agraciados. o povo amaznico, o homem de sentimento arraigado aos
rios e selva, um dos ltimos resistentes urbanizao, realizando a
prpria amputao cultural no interior da cidade. Este espao, que se
imps de tal modo que exigiu a migrao para as suas fronteiras,
achata indgenas, caboclos, nordestinos em uma mesma massa de
miserveis sujeitos aos desmandos da classe abastada; e se tiverem
sorte, ganharo esmolas e at favores.
Os presentes foram tantos e to variados que Emilie necessitou de
um amanuense para organiz-los. Neste ponto do romance, deve-se
enfatizar o alcance da influncia da matriarca na rotina de Manaus.
A fila diante do sobrado enorme, a cada ano, ela incrementada por
mais homens e mulheres; e estes fazem de Emilie um verdadeiro dolo,
o qual recebe beijos
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na mo esquerda e oferta, com a direita, comida base de farinha
de trigo integral (90). No seria absurdo supor que fora a prpria
Emilie quem abriu os caminhos para que Expedito Socorro se tornasse
empregado no correio. Afinal, que chances de ascenso social o
sobrinho de uma ndia teria, seno protegido e favorecido por algum
do calibre da libanesa? Manaus, apesar da recente urbanizao a que
fora submetida, no havia se livrado dos ranos provinciais, e o
modelo da famlia patriarcal, constritiva e com um amplo crculo de
poder e privilgios, ainda dominava na mentalidade dos grupos mais
distintos da cidade. dessa maneira, Emilie encarna os sentidos mais
perversos das relaes de cordialidade2 impingidos por essa velha
ordem familiar.
ANASTCIA SOCORRO: TRISTE AGORA, LOGO dESESPERAdA, AMANH
RESIGNAdA
Alm dos moradores da Cidade Flutuante, dos mendigos e de tantos
outros miserveis que esperam alguma caridade de Emilie, outro
importante grupo social tambm est merc dessa mesma proteo: os
indgenas. Assim como os outros, os ndios citadinos pertencem a uma
faixa da esfera social eminentemente ligada aos desgnios dos
membros de uma faixa superior. Desse modo, na Manaus ps-Ciclo da
Borracha, submetida mais absoluta imobilidade econmica, a
estratificao social que se constitura e se fortalecera com os anos
de ouro da extrao gomfera solidificou algumas posies as quais so
representadas ao longo da narrativa.
Tal representao preserva os aspectos nefastos da interao entre
membros pertencentes a esferas opostas. Por exemplo, a famlia de
imigrantes libaneses, cujo posicionamento o de uma elite local
ligada aos negcios do comrcio, e ndios urbanizados (especialmente
mulheres, incorporadas ao trabalho domstico) que, a fim de no se
submeterem miserabilidade da mendicncia, sujeitam-se aos caprichos
e aos disparates desse grupo familiar. Assim sendo,
2 Neste passo, preciso esclarecer que a cordialidade a que se
refere neste trabalho est de acordo com a chave interpretativa
proposta por Srgio Buarque de Holanda, em Razes do Brasil. No
quinto captulo dessa obra, cujo ttulo O homem cordial, o autor
desenvolve um conceito fundamental para compreender a influncia do
modelo de famlia patriarcal na sociedade brasileira.
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embora tambm se formalize o vnculo dos moradores da Cidade
Flutuante com o sobrado dos libaneses, justamente na relao
estabelecida entre Emilie (e seus filhos) e Anastcia Socorro (alm
dos filhos e afilhados) em que se assiste a um dos captulos mais
cruis da narrativa, a qual guarda origens, naturalmente, na
realidade social de uma Manaus de meados do sculo XX.
A fim de realizar o dilogo desse relacionamento to marcado pela
perversidade com o conceito desenvolvido por Srgio Buarque de
Holanda, preciso equacionar as especificidades da ndia Anastcia
Socorro, enquanto pertencente a um grupo tnico espoliado e
perseguido desde o princpio da invaso portuguesa em terras
amaznicas. Portanto, compreender a crueldade a que est constrangida
a empregada domstica do sobrado dos libaneses exige um movimento de
anlise histrica, o qual situar Anastcia em uma linha sucessria de
mulheres indgenas que, desde a sociedade colonial, foram inseridas
no convvio com a civilizao como fora de trabalho ou potencial
reprodutivo.
Em um breve ensaio, intitulado Laos de parentesco: fico e
antropologia, Milton Hatoum comenta a constituio de domingas, uma
das personagens de seu segundo romance, Dois Irmos. Indgena, ela
incorporada famlia de Zana ainda jovem, aps a esposa de Halim doar
algumas mesas e cadeiras para as religiosas que tomavam conta dessa
e de outras crianas rfs e oriundas do interior amaznico.
Evidentemente, Domingas ingressa na vida dos imigrantes libaneses
para tomar conta do trabalho domstico; servial, destina-se a ela
uma extenuante rotina de afazeres no sobrado dos patres. Segundo o
autor, a gnese dessa personagem remonta, (alm de duas viagens
realizadas em sua juventude ao Alto Rio Negro, das quais retornou
deprimido por conta da condio de explorao a que os ndios da regio,
abandonados pelo poder pblico, estavam submetidos nas mos de
comerciantes, militares e religiosos), s experincias vividas na
prpria capital amazonense, onde testemunhou cenas de humilhao e
resignao em vrias casas; vidas de sofrimento de mulheres dedicadas
patroa e famlia. Desse modo, Hatoum justifica a construo de
Domingas por meio de uma adeso afetiva a pessoas desgarradas de
seus povoados, que moravam e trabalhavam em Manaus (Hatoum, Laos de
parentesco: fico e antropologia 84).
Em acrscimo a isso, o autor amazonense realiza o ponto de
contato de Domingas com Flicit, personagem de Flaubert, tambm uma
empregada domstica marcada pelo abuso e pela espoliao. Sob o ponto
de vista da literatura brasileira, a me de Nael inserida em uma
linha de personagens femininas pobres e humilhadas, na qual
antecedem a costureira de Memrias
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Pstumas de Brs Cubas, dona Plcida, e a migrante nordestina de A
hora da estrela, Macaba. Para Hatoum, essas mulheres comovem o
leitor e espelham mazelas ainda existentes na sociedade brasileira.
Assim sendo, lanando sua lente de anlise para regio amaznica, a
abordagem de Milton Hatoum uma tentativa de reparao a tantas
Domingas exaustas e mal pagas da minha infncia e juventude
amazonense, fonte primria da minha experincia, de que depende a
imaginao romanesca (Hatoum, Laos de parentesco: fico e antropologia
87).
Embora Milton Hatoum, no ensaio em destaque, enfatize apenas
Domingas, preciso inserir outra personagem nesse grupo de mulheres
pobres a empregada de Relato de um certo Oriente, Anastcia Socorro.
De modo semelhante servial do segundo romance, Anastcia tambm de
origem indgena e sofre os mesmos abusos fsicos e sexuais no
interior de um sobrado de imigrantes libaneses. Nessa srie, ainda
se podem juntar as empregadas Nai, de Cinzas do Norte, e Florita,
de rfos do Eldorado. dessa maneira, na obra romanesca de Hatoum,
evidencia-se a representao ao lado de outros naturalmente de um
grupo social determinado: ndias desgarradas de suas localidades de
origem e aculturadas na capital a fim de que se tornem empregadas
domsticas em casas de pessoas socialmente privilegiadas. A respeito
dessa sucesso de personagens, cuja constituio guarda procedncia em
um mesmo fundamento histrico-social, deve-se notar que, entre as
quatro, Anastcia Socorro a que menos circula entre os patres; sua
influncia na vida da famlia a que serve, se comparada, por exemplo,
de Nai, a qual aconselha e repreende a patroa Alcia, absolutamente
nula. Portanto, sobre a primeira servial representada incide uma
perversidade nas relaes com os empregadores muito mais aguda do que
a observada nos romances subsequentes.
A respeito de Memrias Pstumas de Brs Cubas, o crtico literrio
Roberto Schwarz afirma que os episdios envolvendo Eugnia e Dona
Plcida ganham realce em virtude da profundidade com que inventam
[...] as consequncias que a estrutura social brasileira trazia aos
desfavorecidos (111). Em sentido anlogo, as empregadas domsticas
construdas pela escrita de Milton Hatoum possuem correspondncia com
a sociedade manauara do sculo XX. Desamparada por iniciativas do
Estado, as quais, entretanto, subvencionam o patronato extrativista
(especialmente o ligado s atividades de extrao gomfera), a populao
da Amaznia submetida a condies de intensa misria, sem alternativas
de insero em formas satisfatrias de produo econmica. De acordo com
Darcy Ribeiro, essa situao se agrava
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Mutismo ancestral: a sorte dos ndios 49
em perodos letrgicos da economia amazonense, como o que se
sucedeu ao fracassado empreendimento do Ciclo da Borracha.
Constituem o grosso dessa populao miservel ndios, seringueiros,
caboclos e ribeirinhos que, desprovidos de perspectivas positivas
no interior amaznico, adensam os subrbios das principais capitais
do Norte, Belm e Manaus. Nesta, formaram-se diversas aglomeraes
humanas marcadas pelas mais torpes condies de vida, como a j citada
Cidade Flutuante. Alm desses bairros, outra consequncia do embarao
econmico a urbanizao de contingentes indgenas, aos quais no restam
opes de trabalho muito diversificadas: artesanato ou trabalho
domstico. Correspondem, portanto, a este grupo as personagens
domsticas dos romances de Milton Hatoum, as quais possuem
trajetrias de vida ao longo das narrativas bastante
semelhantes.
A insero compulsria do indgena amazonense civilizao remonta
chegada dos portugueses na regio por volta do sculo XVII. No delta
do Amazonas, a fim de expulsar franceses, ingleses e holandeses que
ameaavam sua soberania, a antiga Coroa construiu fortes de proteo.
Estes se tornaram ncleos de ocupao que rapidamente perceberam as
lucrativas possibilidades exportadoras das drogas da mata. Em um
ambiente absolutamente inspito ao conhecimento e ao modo de vida
portugus, a opo mais bvia foi recorrer mo de obra indgena. A
populao autctone foi incorporada de duas maneiras ao empreendimento
de busca por especiarias no interior amaznico: a primeira delas a
mais recorrente foi a escravizao de tribos inteiras; a segunda, por
sua vez, representa a incluso do indgena na lgica mercantilista em
troca de produtos trazidos da Europa pelos portugueses, os ndios,
transformados em consumidores, trabalhavam na floresta. Inicia,
dessa maneira, o extermnio de estilos primitivos de vida em tribos
que floresciam de forma grandiosa:
Toda a rea era ocupada, originalmente, por tribos indgenas de
adaptao especializada floresta tropical. A maioria delas dominava
as tcnicas de lavoura praticadas pelos grupos Tupi do litoral
atlntico, com que se depararam os descobridores. Em algumas vrzeas
e manchas de terra de excepcional fertilidade e de fcil provimento
alimentar, atravs da caa e da pesca, floresceram culturas indgenas
de mais alto nvel tecnolgico, como as de Maraj e de Tapajs, que
podiam manter aldeamentos com alguns milhares de habitantes
(Ribeiro 279).
Apesar do poderio portugus, os indgenas reagiram s tentativas de
escravizao, fugindo para o interior da mata. Por essa razo, surgem
as
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50 revista chilena de literatura N 88, 2014
tropas de resgate; soluo cara e precria, logo foi substituda
pela formao de ncleos missionrios, em que os ndios apresados
dedicavam-se ao servio com os padres, edificao de obras pblicas e
coleta de drogas da mata. Nesses aldeamentos, liderados por
jesutas, carmelitas ou franciscanos, ndios das mais diversas
matrizes eram reunidos em nico espao de convivncia. Do ponto de
vista cultural, essa homogeneizao foi devastadora, j que lnguas,
crenas e modos de vida distintos cederam ao enquadramento do
cativador. Dessa maneira, pode-se afirmar que houve a tupinizao dos
indgenas amaznicos a lngua e o estilo de vida dos Tupis, com quem
os portugueses interagiram de tal forma que sincretizaram mestios
chamados de mamelucos ou neobrasileiros, foram impostos pelo
colonizador cujo ponto de vista, quando chegou Amaznia, era duas
vezes influenciado: pela formao europia e pelo intenso contato com
o indgena litorneo.
O vulto das populaes, a fartura alimentar e a alegria de viver a
que remetem os primeiros cronistas da ocupao portuguesa logo foram
substitudos pelo trabalho forado, em que o ndigena, segundo as
expresses cunhadas por Ribeiro, tornou-se: ndio-remo, ndio-piloto,
ndio-bssola. Transmissor dos modos tradicionais de sobrevivncia, o
autctone transformou-se no saber, no nervo e no msculo do
colonizador; espantado, padre Antnio Vieira, no sculo XVII,
contabiliza 2 milhes de ndios dizimados em apenas uma dcada:
Essas condies de explorao provocaram o extermnio das populaes
aborgenes e criaram um ambiente de extrema tenso intertnica. Mas a
ordem social pde ser mantida graas implantao e atuao, ao longo de
sculos, do mais vasto aparelho de destribalizao e de conscrio
violenta de ndios ao trabalho (Ribeiro 287-288).
O vasto aparelho de destribalizao a que remete Darcy Ribeiro tem
a ver, sobretudo, com a homogeneizao ocorrida no interior dos
aldeamentos-redues. O tupi, lngua dos ndios litorneos, contribuiu
para a formao de uma lngua geral, denominada, na regio amaznica,
nhengatu falada por ndios genricos, sem cultura e identidade
especficas. Com a formao e o desenvolvimento das cidades na regio,
os indgenas tambm foram fazendo parte do contexto urbano, mas
sempre relegados a posies desfavorecidas socialmente; de tal modo
que no universo colonial, conforme recorda Arajo, os ndios eram
considerados sditos inferiores da Coroa. Alm do mais, nesse
contexto,
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Mutismo ancestral: a sorte dos ndios 51
uma inverso quanto aos papis tradicionalmente executados [nas
comunidades indgenas] se opera, quando os homens so lanados no
trabalho agrcola, tarefa social das mulheres, e estas so desviadas
para o servio domstico nas casas dos colonizadores, tornando-se
suas escravas e sendo submetidas aos seus caprichos sexuais
(Miranda 7).
Compulsoriamente utilizados como mo de obra na conquista da
Amaznia, homens, mulheres e crianas indgenas representam o alicerce
para a vida social desse perodo. s ndias, entretanto, no couberam
apenas os papis de amas de leite e farinheiras da Coroa (conforme
promulgado pelo Regimento das Misses de 1686), mas tambm foram
impelidos a elas casamentos forados com colonos. Estes, desde os
primeiros anos da ocupao portuguesa, exploraram indiscriminadamente
as mulheres indgenas, dando incio a uma prtica que criou profundas
razes na mentalidade e, sobretudo, nos hbitos masculinos. Durante o
auge do Ciclo da Borracha, por exemplo, intensificou-se o comrcio
de mulheres indgenas para os seringais; uma vez que estes eram
muitos e bastante povoados, a ndia se tornou objeto escasso.
Reificada, a mulher era mercadoria valiosa na perversa economia do
aviamento. Por conta disso, as indgenas passaram a ser capturadas a
fim de servir regies como a do Alto Juru, no Amazonas; caso
resistissem, eram amarradas e amordaadas em uma forma de tortura
conhecida por amansamento.
Alm de utilizadas como potencial reprodutivo, j que a Coroa,
pelo bem do povoamento, permitiu a reproduo dos colonos com
mulheres indgenas, estas tambm foram incorporadas sociedade
colonial como fora de trabalho domstico. Assim, desde os mais
remotos tempos da ocupao portuguesa em terras amaznicas, a ndia
sempre esteve muito prxima da rotina e da casa dos colonizadores,
prestando-lhes inumerveis favores (sexuais, mormente).
Solidificados os costumes, a instituio do compadrio passou a dar
suporte s relaes sociais da Amaznia. Essa forma especfica de
interao entre as classes, comum ao interior e s capitais, possua
como esteio o modelo de famlia patriarcal, cujos privilgios se
estendiam de forma ampla e abundante. Lderes polticos e membros do
patronato extrativista e comercial apadrinhavam meninos e meninas
pobres do interior (indgenas, em sua maioria) para faz-los
empregados de seus palacetes e sobrados nas capitais Belm e Manaus.
Crias da famlia, essas crianas assumiam uma posio ambgua: tanto
poderiam ser vistas como filhos de criao, quanto como serviais da
casa. Evidentemente, o segundo ponto de vista se sobrepunha, e,
para os filhos dessas famlias abastadas, as empregadas no passavam
de mulheres-escarradeiras: prestavam-se iniciao sexual e a abusos
das
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52 revista chilena de literatura N 88, 2014
mais diversas naturezas. Subjugadas ao capricho dos patres, a
culpa da gravidez geralmente lhes era atribuda; caso tivessem
sorte, poderiam criar os seus exclusivamente seus filhos malditos.
Constitui-se, desse modo, uma verdadeira ancestralidade de filhos
enjeitados, cuja marca o silncio da origem e da submisso.
Justamente desse fundamento histrico se vale a construo das
empregadas domsticas de Hatoum. Anastcia Socorro, Domingas, Nai,
Florita, todas carregam em sua gnese as marcas de desmando e
espoliao a que as mulheres indgenas, desde os tempos coloniais,
foram submetidas no interior de casas abastadas de Manaus. No
contexto da produo romanesca de Milton Hatoum, Relato de um certo
Oriente, alm de inaugurar essa linha sucessria de personagens
femininas pobres e humilhadas, tambm apresenta uma periferia de
agregados (Cerqueira e Rezende) que buscam alguma forma de
privilgio em torno da matriarca libanesa (como representantes desse
grupo, destacam-se, sobremaneira, os moradores da Cidade Flutuante
e de outros bairros miserveis da capital amazonense). Dessa
maneira, a relao de Emilie com os desvalidos que a circundam assume
um sentido autolegitimatrio: estes a veneram, porque necessitam de
sua proteo; aquela os acolhe, porque isso renova e expande seu
poder.
No alcance da influncia da matriarca libanesa, confundem-se os
limites do ambiente pblico e do privado. Em torno da me de todos,
agregam-se os desvalidos de uma cidade paralisada economicamente;
apesar desse epteto, sob o manto da atitude afetuosa conquistada
pelo convvio quase familiar entre Emilie e os agregados,
movimenta-se uma espcie de civilidade a qual, na esteira do
argumento de Holanda, pode exprimir-se em mandamentos e sentenas
(147). Sendo assim, a matriarca leva esfera da intimidade relaes
que, primeira vista, no deveriam se pautar dessa maneira e, com
isso, alarga o alcance da sua importncia na sociedade manauara
(lembrando que, mesmo na velhice, a libanesa continua influente,
afinal, por meio de bilhetes entregues polcia, solta pequenos
infratores da cadeia); todavia, o reverso dessa prtica to
acolhedora (da qual se favoreceu, em certa medida, a narradora do
romance e seu irmo) o tratamento dispensado, especialmente, a
Anastcia Socorro: submetida a uma cordialidade que a sufoca no
interior do sobrado sem o direito de experimentar uma comida digna
ou de receber um msero salrio.
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Mutismo ancestral: a sorte dos ndios 53
EMILIE: CORdIALMENTE PERVERSA
Nessa dialtica da cordialidade, a imigrante libanesa possui um
comportamento marcadamente ambguo. Na frente do sobrado, auxiliada
pelo amanuense Expedito Socorro, a matriarca realiza ofertas aos
pobres; por tal razo, chamada me de todos. No interior, entretanto,
esfora-se a fim de manter uma relao, no mnimo, afetuosa com a
empregada Anastcia Socorro, tia de Expedito. A dona de casa
respeitada por diversos moradores manauaras e reconhecidamente
generosa a mesma que resmungava porque Anastcia comia como uma anta
(76). Assim sendo, das prticas sociais empreendidas por Emilie
pode-se compreender as duas faces da convivncia com os agregados:
de um lado, a oferenda, como forma de garantir a dependncia; de
outro, o escrnio e a humilhao, modos de aoitar e de reiterar o
privilgio.
O sentido dessa convivncia cruel e absolutamente corriqueira no
contexto manauara aprofunda-se no relacionamento estabelecido entre
os membros da famlia libanesa (especialmente Emilie e seus filhos
inominveis) e as empregadas da casa (com maior nfase para Anastcia
Socorro). Dando continuidade a um costume j bastante difundido
entre os homens pertencentes a estratos privilegiados da sociedade
de Manaus, os gmeos, cujos nomes no so revelados ao longo da
narrativa, se prevalecem das domsticas do sobrado e, ao mesmo
tempo, beneficiam-se da proteo materna. Sobre esse ponto,
importante destacar a perspectiva de Hakim irmo mais velho, de modo
algum afeito a essas prticas:
[...] meus irmos abusavam como podiam das empregadas, que s
vezes entravam num dia e saam no outro, marcadas pela violncia
fsica e moral. A nica que durou foi Anastcia Socorro, porque
suportava tudo e fisicamente era pouco atraente. Quantas vezes ela
ouvia, resignada, as agresses de uns e de outros, s pelo fato de
reclamar, entre murmrios, que no tinha pacincia para preparar o
caf-da-manh cada vez que algum acordava, j no meio do dia. Vozes
rspidas, injrias e bofetadas tambm participavam desse teatro cruel
no interior do sobrado (76).
Voz crtica conduta dos gmeos, o primeiro filho de Emilie, alm de
trazer tona de modo genrico a forma com que os irmos tratavam as
mulheres de estrato inferior, ainda relata um evento pontual e
extremamente profcuo para compreender o alcance desses desmandos.
Embora sempre descrito como um homem silencioso, ponderado e de ao
restrita aos limites da Parisiense,
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certa feita, o marido de Emilie ingressa furiosamente no
interior do sobrado, de cinturo em punho, cobrando a
responsabilidade dos gmeos pelo filho de uma mulher desconhecida.
Encolerizado, gritou, entre pontaps e murros na porta, que um filho
seu no pode escarrar como um animal dentro do corpo de uma mulher
(77). Neste ponto, mostra-se importante destacar o uso do verbo
escarrar, j que este termo resume em seu significado o valor
atribudo s mulheres que apareciam na Parisiense exigindo a
paternidade de seus rebentos. Elas so de tal modo depreciadas que,
ao invocar o desrespeito dos gmeos a Deus, o marido de Emilie
recebe uma resposta definidora do carter das relaes sociais
constitudas entre homens abastados e mulheres pobres no contexto
manauara: Deus? contra-atacou Emilie. Tu achas que as caboclas
olham para o cu e pensam em Deus? So umas sirigaitas, umas
espevitadas que se esfregam no mato com qualquer um e correm aqui
para mendigar leite e uns trocados (77-78).
Este pequeno excerto revela de maneira incisiva o nefasto
tratamento a que esto subordinados os desvalidos de Manaus: ndios,
caboclos, ribeirinhos, seringueiros, enfim, toda uma sorte de
homens e mulheres que a modernizao da Belle poque intentou
dissimular. Entretanto, os mal fadados rumos econmicos da capital
amazonense obrigaram-na a acolher esse enorme excedente humano.
Desse grupo de miserveis, recebem destaque, por sua condio ainda
mais despojada de qualquer dignidade humana, as mulheres;
exploradas pela posio social rebaixada e, sobretudo, pelo gnero, a
elas restou o papel de escravas: seja domsticas, seja sexuais. A
indignao de Emilie possui um fundamento de classe manifesto: na
lgica da matriarca, representante do grupo dirigente, o sexo ndice
mais cortante da dominao masculina um pretexto utilizado por
mulheres interessadas em se valer das posses da famlia. A
responsabilidade dos filhos no se exime somente porque o amor dessa
me incondicional e cegamente devotado aos seus, mas, sobretudo,
porque as tais caboclas so sujeitos pertencentes a setores
desprestigiados socialmente. dessa maneira, em uma sociedade ainda
bastante enraizada em costumes herdados pelos ditames coloniais,
que desde os primeiros anos submeteram a mulher indgena (e tambm a
mestia) ao sentimento colonizador de pertena, no espanta que a
matriarca (ainda que mulher, mas mulher proprietria, estrangeira e
catlica fervorosa) julgue os filhos segundo os critrios do espao
privado a cordialidade das relaes enseja esse procedimento em tudo
injusto e perverso.
A crueldade se aprofunda ainda mais no relacionamento da ndia
Anastcia Socorro com Emilie e os filhos inominveis. A razo por que
a permanncia
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da empregada foi to longa no seio da famlia libanesa indigna na
mesma medida em que comove. Ela no foi abusada pelos gmeos, porque
era feia; no havia respeito ou considerao, e sim um desprezo de tal
modo demasiado que nem mesmo para o escarro sexual Anastcia servia.
A domstica no abandonou o convvio com os imigrantes, porque era
forte; provavelmente, aps uma vida pregressa de embaraos, j chegara
ao sobrado resistente a agresses fsicas. A feiura e o lombo curtido
no so atributos aos quais se deva dedicar louvores; ironicamente,
para a servial de Emilie, so eles que lhe deram amparo parece que a
humilhao consagrada a essa mulher nasce de todos os lados.
A ANCESTRALIdAdE dA SuBMISSO
Na fatura do romance, Anastcia Socorro uma personagem cuja
concepo corresponde estrutura social manauara. Em uma Manaus de
meados de sculo XX, submetida a uma severa estagnao econmica aps a
crise da borracha, os estratos da sociedade j no contam com os
poderosos bares da extrao gomfera; todavia, uma imensa leva de
miserveis, para os quais as alternativas de sobrevivncia no
interior eram as mais custosas, buscou a cidade mais importante da
regio a fim de melhores condies de vida. Desse movimento de
urbanizao catica, nasceu, conforme j observado, a Cidade Flutuante,
a qual representada no romance na forma de dependncia estabelecida
por alguns moradores com a matriarca libanesa. Percurso semelhante,
mas de origens bastante recuadas no tempo, o ingresso de indgenas
no convvio urbano. Incorporada civilizao compulsoriamente, quer
como presas das tropas de resgate, quer como catecmenos dos ncleos
missionrios, a populao de ndios amaznicos, desde os primeiros
tempos da ocupao portuguesa, sempre esteve embora alguns membros
mais arredios fugissem para a mata e para o alto dos rios muito
prxima dos colonizadores. Assim sendo, quando se trata desse grupo
de indgenas urbanizados, cujo aumento tambm est ligado ao auge do
Ciclo da Borracha, perodo em que se imps sobremaneira a lgica de
modernizao calcada na tecnologia e na urbanizao, pode-se afirmar
uma verdadeira ancestralidade na sujeio s famlias pertencentes a
esferas privilegiadas da sociedade manauara.
Tal linha de submisso formalizada na narrativa a partir dos
indgenas que circundam o sobrado dos libaneses. A matriarca no era
servida apenas por Anastcia, mas tambm pelos filhos, sobrinhos e
afilhados da ndia. Nessa
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conta, ainda podem ser considerados o tio de Anastcia, Lobato
Naturidade, responsvel pelo resgate de Emir; Expedito Socorro, o
jovem amanuense; e uma das filhas de Anastcia, empregada com quem a
narradora se depara ao acordar em frente casa da me na volta a
Manaus. Dessa maneira, a rvore genealgica indgena, a qual se mostra
dependente dos desgnios da libanesa e seus familiares, constitui-se
da seguinte forma: Lobato Naturidade o mais velho; este tio de
Anastcia Socorro, a qual me dos fmulos que, nos fins de semana,
ajudam nas tarefas domsticas do sobrado; alm disso, h Expedito e a
empregada que desperta a narradora essa ltima servial um dos
citados fmulos, j adulto, evidentemente.
O vnculo de Lobato Naturidade com a matriarca no , primeira
vista, pautado pela sujeio; afinal, Hakim categrico ao afirmar que
Emilie tratava-o com um respeito que aspirava venerao (83). Essa
deferncia foi moldada logo aps o suicdio de Emir; na confuso para
resgatar e identificar o cadver do jovem libans, o misterioso
indgena, de modo bastante rpido e eficaz, encontrou o corpo do
suicida e trouxe alvio irm. Da em diante, Emilie dedicou a ele uma
amizade [...] louvada por uns e tripudiada por outros (84). E
justamente nesse ponto em que residem os traos definidores da
superioridade hierrquica da libanesa. Sob o manto cordial da
lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade (Holanda 146), a
civilidade da matriarca venera o velho Lobato; entretanto, tambm
carrega consigo o inocultvel germe da dominao. Entre Hector Dorado,
Esmeralda, Amrico, dr. Royal, Shalom Benemou e a esposa (vizinhos e
amigos da famlia de Emilie), a circulao de Naturidade como um
curandeiro eficiente no depende da prpria competncia ou da fama que
o precede, e sim do prestgio que lhe conferido pela matriarca a
indicao e o endosso da libanesa so capazes de quebrar as barreiras
impostas a um sujeito marcado por injrias e notcias difamatrias
(85). Tal resistncia se origina do lugar social e, sobretudo, do
ambiente cultural a que pertence essa personagem indgena:
[...] o que mais irritava as pessoas era a vida errante de
Lobato, a inexistncia de uma moradia fixa. Cercado de urubus,
viam-no ingressar na carcaa de um barco meio soterrado no mar de
dejetos beira de um igarap; outros juravam que ele frequentava
srdidas palafitas, cujas paredes estavam cobertas de imagens de
santos estranhos, com olhares no se sabe de embriaguez ou loucura;
num recanto prximo ao casebre, um crculo de pontos luminosos
brotava do breu da noite e aclarava garrafas de cachaa e galinhas
mortas entre montculos de medalhas profanas (85-86).
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Mutismo ancestral: a sorte dos ndios 57
Neste passo, o que o narrador Hakim evidencia bem mais do que
temor medicina de Lobato ou s lendas originadas pelo mistrio em
torno do qual vive esse homem, e sim o preconceito de uma populao
que execra o conhecimento, a cultura e os modos de vida do grupo
tnico autctone. As personagens citadas, para quem Lobato prestou
algum servio medicinal ou de resgate a mortos e desaparecidos, so
todas elas estrangeiras por nascena ou ascendncia. Isto , embora
Manaus seja uma cidade cuja formao depende essencialmente da tradio
nativa (dentro da qual se insere a importncia dos rios, da floresta
e das formas de adaptao indgenas), h uma evidente sobreposio
simblica do contingente urbano constitudo de modo majoritrio por
valores alctones, especialmente os europeus. E o prprio Hakim, com
seu olhar de um apurado senso crtico, quem avizinha a condio
indgena segregao socioespacial:
Esses atributos infames, vituprios dirigidos a um homem pacato e
quase invisvel, eram lancetadas dirigidas tambm contra uma tradio
ainda viva, que pulsava no corao dos bairros da periferia, no
interior de habitaes suspensas, aoitadas pelas chuvas (86).
Este um momento capital da narrativa a fim de que se compreenda
a poro ocupada pelo ndio na geografia da cidade. Alm de um espao
simblico denegrido, somente digno de considerao, caso se manifeste
a influncia de algum como Emilie, por exemplo, tambm foi destinado
s populaes indgenas um lugar de absoluto desprestgio na organizao
citadina. Dessa maneira, geograficamente, as personagens do romance
podem ser discriminadas de modo simples, porm expressivo: na parte
central da cidade, os Benemou, o genro do Comendador, um mdico
formado pela London School of Tropical Medicine, a famlia da
matriarca libanesa, etc; margem, distantes, enfiados em palafitas,
contribuindo para a formao da Cidade Flutuante e de outros bairros
pauprrimos, os miserveis de Manaus os excedentes da modernizao de
carter conservador dos anos dourados da borracha.
Lobato Naturidade circula entre as personagens do centro e at
angaria certo prestgio, por conta da amizade com Emilie. Em
acrscimo a isso, h outro ponto a ser discutido capaz de evidenciar
o reverso desse vnculo entre o indgena e a libanesa. Por meio de um
compadrio s avessas, Lobato recomenda que a sobrinha busque emprego
no sobrado da matriarca. Esta, alm de agir como o esteio simblico
do curandeiro, dando-lhe a proteo necessria para percorrer
ambientes refratrios sua presena, ainda responsvel por acolher
Anastcia Socorro como empregada domstica. No interior dessa
intimidade
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to extrema, reside uma evidente distino do lugar social de cada
um: sem Emilie, Naturidade no passaria de um charlato ainda mais
execrado pela comunidade manauara; sem Emilie, Naturidade no
obteria uma colocao para a sobrinha. , portanto, a imigrante
libanesa quem d as cartas; partem da sua vontade e do seu empenho
os desgnios para ndios e pobres.
Seguindo a linha sucessria de dependncia famlia-ncleo do
romance, Anastcia Socorro ingressa como a empregada domstica do
sobrado. Vtima dos abusos e dos caprichos dos gmeos, Anastcia
apenas no tomou o mesmo caminho de outras empregadas, porque era
pouco atraente e bastante resistente. No entanto, nem por isso a
ndia deixou de experimentar um martrio sob as ordens de Emilie.
Entre essas duas personagens no havia uma relao marcada pela
impessoalidade ou pela racionalidade, pressupostos elementares para
um vnculo moderno entre empregador e empregado. Pelo contrrio,
correspondendo a costumes tpicos da Manaus do sculo XX, em vez de
um contato menos ntimo e, por conta disso, mais adequado a sistemas
de trabalho atuais, sobrepunha-se convivncia de ambas um modelo de
prtica social gerido e justificado pelo prprio ncleo familiar. Ou
seja, Socorro foi incorporada dinmica como se fosse um membro da
famlia; entretanto, reside nessa mistura de afeto e trabalho a face
mais violenta da cordialidade:
No meu ntimo [Hakim o narrador], creio que deixei a famlia e a
cidade tambm por no suportar a convivncia estpida com os serviais.
Lembro Dorner dizer que o privilgio aqui no norte no decorre apenas
da posse de riquezas. Aqui reina uma forma estranha de escravido
opinava Dorner. A humilhao e a ameaa so o aoite; a comida e a
integrao ilusria famlia do senhor so as correntes e golilhas
(78).
O fotgrafo alemo, nesse breve comentrio compartilhado com Hakim,
evidencia a crueldade sobre a qual se estruturam as relaes de
trabalho no Norte, mais especificamente em Manaus. A prtica a que
ele se refere bastante recorrente, e suas razes, entranhadas na
mentalidade dos grupos dirigentes, remontam aos tempos coloniais.
Mulheres indgenas de aldeias do interior ou pertencentes a
contingentes urbanizados possuem no trabalho domstico uma das
escassas alternativas de trabalho. Desgarradas de suas famlias,
essas empregadas ingressam no seio de grupos abastados ainda
adolescentes ou, at mesmo, crianas. A essas meninas, portanto,
correspondem as tantas caboclas que tentaram servir a famlia de
Emilie e tambm Anastcia Socorro, cujo amparo da matriarca se deu
graas indicao de Lobato Naturidade. Sob
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Mutismo ancestral: a sorte dos ndios 59
os desmandos e os caprichos dos patres e seus filhos, Anastcia
torna-se parte integrante do sobrado; como uma verdadeira coisa, a
qual no cansasse, no possusse desejos e desgostos, a indgena
submetida a uma rotina extenuante: trabalhos excessivos, agresses,
castigos e humilhaes das mais diversas naturezas. Contudo, nesse
vnculo assumido entre a empregada e a patroa, existe um elemento de
barganha: o privilgio. Por meio de um esforo (notado por Hakim), a
matriarca age de modo afetuoso com a domstica; alm disso, os filhos
da ndia so considerados afilhados da libanesa. Neste ponto,
observa-se o nervo de sustentao de uma relao empregatcia que , em
praticamente tudo, prejudicial parte subalterna. Assim, embora
perseguida pelos gmeos e humilhada por Emilie, Socorro, para quem
as chances de trabalho fora do sobrado no so variadas, tampouco em
condies muito diversas que as experimentadas entre os libaneses,
sente-se acolhida pela me de todos ao v-la oferecendo a ocupao de
amanuense para Expedito Socorro e o ttulo de afilhado aos
rebentos.
Em contrapartida, do outro lado dessa balana bastante
desfavorvel, situam-se as aes de Emilie. Para ela, o trabalho e o
alimento oferecidos empregada pertencem dimenso da caridade;
Anastcia Socorro, afilhados e sobrinhos, quando trabalham no
interior do sobrado, so verdadeiros privilegiados. O peso da famlia
nessa balana se intensifica e aprofunda a sua perversidade
justamente na comida ofertada empregada e a seus parentes: no lhes
permitida uma refeio semelhante do resto da casa; doces e
guloseimas so negados s domsticas. Concesses so feitas a Socorro,
somente sob a proteo de Hakim:
Eu presenciava tudo calado, modo de dor na conscincia, ao
perceber que os fmulos no comiam a mesma comida da famlia, e
escondiam-se nas edculas ao lado do galinheiro, nas horas da
refeio. A humilhao os transtornava at quando levavam a colher de
lato boca (76).As frutas e as guloseimas eram proibidas s
empregadas, e, cada vez que na minha presena Emilie flagrava
Anastcia engolindo s pressas uma tmara com caroo, ou mastigando um
bombom de goma, eu me interpunha entre ambas e mentia minha me,
dizendo-lhe: fui eu que lhe ofereci o que sobrou da caixa de tmaras
que comi; assim, evitava um escndalo, uma punio ou uma advertncia
[...] (76).
Na esfera pblica, Emilie conhecida e louvada como a me de todos:
comida e favores so ofertados aos moradores da Cidade Flutuante. J
na esfera privada, ela age de modo absolutamente diverso: as
empregadas e seus
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parentes so de tal forma abjetos que a eles no cabe alimento
semelhante ao dos patres. Nessa atitude, observa-se a incoerncia em
que recai a to pronunciada generosidade de Emilie; porm, tal
incongruncia se fundamenta justamente no embate entre pblico e
privado. Ora, da porta do sobrado para fora, a matriarca uma
respeitosa senhora pertencente elite local; por conta disso, a
bondade de seu interesse a esmola no s lhe dignifica a imagem
perante a cidade, como reitera a fora e o alcance da sua influncia;
aos pobres, por sua vez, importa essa assistncia da libanesa, pois
ela um dos poucos sujeitos em Manaus que lhes pode proporcionar
algum rumo positivo na vida. Ao lado disso, no interior do sobrado,
impera o costume da regio sob a condio de serviais, indgenas e
caboclos dedicam-se e submetem-se s extravagncias e aos caprichos
da famlia; em troca, apenas comida, e ruim.
O cimo da perfdia e da perversidade no relacionamento com a
empregada domstica se manifesta em um evento bastante peculiar
dessa histria. Quando a matriarca descobriu o parentesco entre
Lobato Naturidade e Anastcia Socorro, esta ficou mais ntima dos
frequentadores da casa, e logrou a proteo de Emilie (86), para ela
as tardes de cio multiplicaram-se e as tarefas domsticas passaram a
ser mais amenas (86). Gerando revolta nos gmeos, Anastcia, alm de
receber certo alvio em suas obrigaes, passa a realizar as refeies
na mesa da sala; um grande avano nos hbitos da famlia a ndia
dividia o mesmo espao dos patres e ainda experimentava da mesma
comida. Entretanto, os irmos inominveis nunca suportaram de bom
grado (86) essa inovao, e a regalia sbita foi efmera (86):
Aquela mulher, sentada e muda, com o rosto rastreado de rugas,
era capaz de tirar o sabor e o odor dos alimentos e de suprimir a
voz e o gesto como se o seu silncio ou a sua presena que era s
silncio impedisse o outro de viver. Sem que algum lhe dissesse
algo, Anastcia se esquivou dessa intimidade que causava repugnncia
nos meus irmos, aflio em Emilie e uma discrdia generalizada na hora
das refeies, um dos raros momentos em que a famlia hasteava a
bandeira da paz (86-87).
Neste passo, importante mostrar a maneira por que se formaliza o
constrangimento ao qual a empregada submetida ao redor da mesa dos
libaneses. De modo bastante expressivo, o silncio se interpe na
narrativa a fim de revelar o desprezo a que esto relegados os
ndigenas na sociedade manauara. Aos ndios cabe to somente o
silncio; diante de membros concernentes a estratos privilegiados,
os integrantes da etnia autctone reprimem
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Mutismo ancestral: a sorte dos ndios 61
a prpria voz. A atitude tomada por essa personagem mmese da
condio dos ndios amaznicos desde os mais tenros dias da ocupao
portuguesa, os indivduos desse contingente tnico foram perseguidos
e reprimidos em suas especificidades culturais sob o domnio do
colonizador e dos religiosos. Ainda mais escorchante a situao dos
ndios urbanizados, os quais, alm de viverem a terrvel mutilao
identitria de no serem silvcolas, tampouco sujeitos
reconhecidamente civilizados, so incorporados sociedade manauara
como empregados com quem se pode tudo: desde no remunerar pelo
trabalho, controlar a comida, at agresses e estupros; tudo isso
justificado pelas inconstncias e pelos deslizes daqueles que ocupam
posies distintas nessa relao vertical. No de modo algum
desmotivado, portanto, que no somente Anastcia Socorro seja
descrita por signos que remetem ao silncio, mas tambm o tio, Lobato
Naturidade, seja reconhecidamente um sujeito silencioso e fechado
para si mesmo; assim como eles, Expedito Socorro, o terceiro membro
dessa linha sucessria de submisso, apenas referido na narrativa,
sem que ao menos se saiba da prpria voz nada alm do trabalho
prestado matriarca; e o quarto e ltimo integrante dessa genealogia,
a empregada que acolhe a narradora quando esta chega a Manaus a
ndia se diz filha de Anastcia e afilhada de Emilie, aps isso,
conforme relata a irm adotiva de Hakim, confina-se no seu mutismo
ancestral (9).
Alm dos traos sanguneos, essas quatro personagens se ligam por
formas semelhantes de dependncia com a matriarca Emilie. Lobato
Naturidade resgata o jovem libans suicida; a partir da, angaria
proteo e prestgio da matriarca. Esse vnculo permite o ingresso de
Anastcia Socorro como empregada do sobrado; apesar de submetida a
uma condio cujas marcas so o desrespeito e a miserabilidade, a
domstica observa o sobrinho, Expedito Socorro, tornar-se o
amanuense da me de todos, experincia que o credencia aos trabalhos
no correio. Finalmente, a filha de Socorro tambm possui sua
trajetria associada ao prestgio de Emilie: quando criana ajuda nos
afazeres domsticos do sobrado; depois de adulta, permanece
empregada domstica e atrelada ao dia a dia da matriarca. Desse
modo, imprime-se, nas existncias desses quatro indgenas, o selo da
circularidade: do primeiro ao ltimo membro da genealogia, cada um
deles debitante do amparo da imigrante libanesa.
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