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Avanos e Perspectivas Na
Musicologia Histrica Brasileira1
Paulo Castagna2
Resumo: Apesar da existncia de trabalhos interessados no
conhecimento da msica brasileira j no sculo XIX, a musicologia
iniciou o seu desenvolvimento no Brasil enquanto uma atividade
intermediria entre literatura e cincia a partir da dcada de 1900,
mas comeando a ser praticada segundo concepes propriamente
cientficas somente a partir da dcada de 1960. Surgiu, ento, no
Brasil, uma disciplina que j podia ser denominada musicologia
histrica e que estava essencialmente preocupada com o estudo da
msica produzida e praticada no pas. At meados da dcada de 1990, no
entanto, a musicologia brasileira esteve essencialmente ligada s
suas razes positivistas, presa ideologia nacionalista e religiosa,
e principalmente voltada a atividades como a comprovao de uma
prtica musical brasileira em tempos remotos, a descoberta do que
ento se denominava a grande msica do passado, a construo da
biografia dos seus autores e a valorizao de sua produo musical, por
meio de informaes histricas, catlogos e anlises. Na dcada de 1990,
entretanto, iniciou-se o estabelecimento de uma musicologia mais
crtica e reflexiva, preocupada no somente com a interpretao dos
fenmenos estudados, mas tambm com a sistematizao de informaes que
no haviam passado por esse processo na curta fase positivista que
tal cincia teve no Brasil. Essa transformao, impulsionada pelo
desenvolvimento dos programas de ps-graduao e pela proliferao dos
eventos regulares e dos peridicos especializados, trouxe consigo
novas preocupaes, como a necessidade de princpios ticos no trabalho
musicolgico, do respeito aos fundos documentais, do rigor
metodolgico na pesquisa, da ampliao do nmero de pesquisadores e da
difuso da pesquisa em todo o pas. O presente trabalho visa
apresentar um rpido panorama do desenvolvimento da musicologia no
Brasil e abordar os resultados obtidos pela nova musicologia
estabelecida no pas a partir da dcada de 1990, bem como as
perspectivas de trabalho que se configuram para as prximas
dcadas.
Introduo: o estabelecimento da musicologia no Brasil
Surgida na Europa no sculo XIX, a musicologia teve objetivos que
foram
se modificando com o passar do tempo. Ricardo TACUCHIAN
(1994:98), por
exemplo, informa que a musicologia histrica, no sculo XIX,
foi
principalmente factual e positivista, lembrando que seu maior
objetivo foi o
levantamento de documentos musicais e sua edio crtica. Por outro
lado, se
1Este texto foi originalmente apresentado no Ciclo de Palestras
Musicologia e Patrimnio Musical, realizado na Biblioteca Central
Reitor Macedo Costa da Universidade Federal da Bahia entre os dias
22 e 24 de outubro de 2004, evento organizado pelo Prof. Dr. Pablo
Sotuyo Blanco (PPGMUS-UFBA), que autorizou sua publicao nesta
Revista. Em funo de estar sendo impresso quatro anos aps sua
apresentao em Salvador, o texto no cita eventos, publicaes e
discusses posteriores a essa data. 2Instituto de Artes da UNESP -
Universidade Estadual Paulista, So Paulo (SP).
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a musicologia histrica comeava a ser praticada na Europa no
sculo XIX, o
estudo de documentos e sua edio crtica, no caso brasileiro,
foram raros no
perodo anterior dcada de 1960.
Uma certa quantidade de textos sobre msica foi produzida no
Brasil
durante o sculo XIX, com destaque para os de Manuel de Arajo
Porto Alegre,
Afonso de Escragnolle Taunay (o Visconde de Taunay), Joo Barbosa
Rodrigues
e Slvio Romero, mas em geral estes tinham interesse quase
somente literrio,
estando ainda distantes do que se poderia denominar musicologia.
Jos
Cndido de Andrade MURICY (1934), por exemplo, afirma ter sido
Mario de
Andrade (1893-1945) o primeiro musiclogo brasileiro,
consequentemente
excluindo do conceito de musicologia a produo sobre msica que
antecedeu a
do pesquisador paulistano. Zlia e Isaac CHUECKE (2006) tambm
acreditam
que o incio da atividade musicolgica no Brasil situa-se na
primeira metade do
sculo XX.
Mesmo assim, foram raras as publicaes brasileiras destinadas a
refletir
sobre os significados da musicologia nesse perodo. Luiz LAVENRE
(1929)
parece ter sido o autor da primeira obra do gnero impressa no
pas, seguida
dos textos de Jos Cndido de Andrade MURICY (1952) e Renato
ALMEIDA
(1957), na dcada em que j era defendida a CRIAO de um Instituto
de
Musicologia no Brasil (1954). As reflexes sobre a atividade
musicolgica no
Brasil ou por brasileiros no foram muito freqentes a partir de
ento, mas
existe um certo nmero de trabalhos dispersos em peridicos e
anais de eventos
cientficos que at agora no foi suficientemente referido e cujo
estudo
fundamental para uma futura histria da musicologia no Brasil,
com destaque
para os de Francisco Curt LANGE (1970, 1977 e 1985), Olivier
TONI (1982),
Grard BHAGUE (1989), Antonio Alexandre BISPO (1990 e 1998),
Rafael Jos
de Menezes BASTOS (1991), Neide Rodrigues GOMES (1991), Roger
COTTE
(1991), Sandra Loureiro de Freitas REIS (1991), Conrado SILVA
(1991), Jos
Maria NEVES (1991 e 1995), Regis DUPRAT (1991a, 1992 e 1996),
Manuel
VEIGA (1993 e 1996), Regina Mrcia Simo SANTOS (1998), Joo
Baptista
SIQUEIRA (1988), Alberto DANTAS FILHO (2000), Dimitri CERVO
(2001) e
Maria Ins GUIMARES (2001). Longe de aqui pretender a construo de
uma
histria da musicologia no Brasil, este texto est destinado
apenas a uma
tentativa de identificar e compreender o significado das
principais mudanas
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pelas quais esta disciplina passou no pas, procurando deter-se
na ltima delas,
localizada na dcada de 1990.
Na primeira grande transformao da musicologia no Brasil, que
ocorreu
do incio do sculo XX at meados da dcada de 1960, observou-se a
transio
de uma fase literrio-musical para uma fase propriamente
musicolgica, na qual
os trabalhos passaram a se enquadrar em uma espcie de gnero
intermedirio
entre literatura e cincia, incluindo-se a as assim denominadas
histrias da
msica brasileira (ou no Brasil) e suas congneres, como as de
Guilherme de
MELLO (1908), Renato ALMEIDA (1926), Vincenzo CERNICHIARO
(1926),
Mrio de ANDRADE (1941), Renato ALMEIDA (1942), Maria Luiza de
Queirs
Amncio dos SANTOS (1942), Francisco ACQUARONE [c.1948] e
Lus-Heitor
Corra de AZEVEDO (1956), para citar apenas as mais
conhecidas.
Os autores dessas histrias, apesar de seus esforos, reconheciam
uma
tal carncia de informaes objetivas sobre a prtica e produo
musical
brasileira que acabava por limitar seus prprios trabalhos. Lus
Heitor Correia
de AZEVEDO (1956:377-386), em uma nota introdutria bibliografia
de seu
livro, intitulada A musicografia no Brasil, menciona as
principais
contribuies brasileiras da primeira metade do sculo XX, que
classifica em
cinco grupos: histria da msica brasileira, lexicografia musical,
estudos sobre
msica popular, crtica musical jornalstica e edio de revistas
musicais.
Afirmando ser a musicologia brasileira ainda nascente e
incipiente, destaca,
como uma das grandes contribuies musicolgicas daquele perodo, o
tomo 6
do Boletn Latino-Americano de Msica (1946), impresso no Rio de
Janeiro
pelo Instituto Interamericano de Musicologia.
De fato, esse sexto tomo do Boletn pode ser considerado um
importante
marco na musicologia brasileira, por ter reunido trabalhos que
procuravam sair
do enfoque meramente literrio-musical, para investigaes mais
profundas
sobre o patrimnio musical brasileiro. O Boletn contou com vinte
e dois
trabalhos impressos, destacando-se os de Francisco Curt Lange,
Mrio de
Andrade e Pedro Sinzig, mas tambm incluiria textos de Lus Heitor
Corra de
Azevedo, Jos Cndido de Andrade Muricy, Clvis de Oliveira e
outros autores
em um segundo volume desse tomo, que nunca chegou a ser
impresso, em
funo dos problemas econmicos acarretados pela Segunda Guerra
Mundial
(VIDAL, 2005:132-136).
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Ao lado dos pesquisadores que fizeram (ou teriam feito) parte do
tomo 6
do Boletn Latino-Americano de Msica, podemos destacar, na
musicologia
brasileira das dcadas de 1900 a 1950, a produo de autores como
Guilherme
de Melo, Jos Rodrigues Barbosa, Renato Almeida, Vincenzo
Cernicchiaro,
Serafim Leite, Carlos Penteado de Rezende, Joo da Cunha Caldeira
Filho,
Maria Luiza de Queirs Amncio dos Santos, Hebe Machado Brasil,
Geraldo
Dutra de Morais, Ayres de Andrade e Joo Batista Siqueira, que em
seus
trabalhos, em geral relacionados a diversos aspectos da histria
da msica no
Brasil, procuravam demonstrar a existncia de uma tradio musical
que
antecedia a msica erudita de sua poca. Tais autores eram movidos
pela
possibilidade de o Brasil ser reconhecido entre as naes que
cultivavam seu
passado musical, a exemplo dos pases europeus, mas
possibilitaram mais a
identificao e organizao cronolgica de objetos de estudo para a
musicologia,
do que efetivamente se propuseram a estud-los. No h dvida,
entretanto, do
papel de liderana que tiveram Mrio de Andrade em So Paulo e Lus
Heitor
Corra de Azevedo no Rio de Janeiro, com trabalhos pioneiros que
caminhavam
em direo a uma musicologia cada vez mais cientfica, alm de
suas
preocupaes em outras reas.
Apesar dos esforos brasileiros, Francisco Curt Lange foi o
primeiro
pesquisador que atravessou a fronteira da musicologia histrica
no pas, com
uma srie de trabalhos, iniciada pelo texto impresso no sexto
tomo do Boletn
Latino-Americano de Msica (LANGE: 1946), mas que se estendeu at
a dcada
de 1980, com dezenas de ttulos ainda no totalmente assimilados
pelos
pesquisadores brasileiros. Alemo residente no Uruguai e
interessado desde a
dcada de 1930 na pesquisa da prtica musical americana, dedicou a
maior
parte de seus trabalhos ao Brasil, realizando inmeras visitas ao
pas e residindo
no Rio de Janeiro entre 1944-1945 e 1958-1959. Seus mtodos
foram
principalmente ligados pesquisa arquivstica, arquivologia e edio
musical
e, at pelo menos o final da dcada de 1950, no houve no Brasil
outro
pesquisador que desenvolvesse trabalho semelhante. Jos de S
PORTO
(1962:36), em um dos raros textos reflexivos desse perodo sobre
os objetivos e
mtodos da musicologia, cita, em relao ao Brasil, apenas os
trabalhos de Curt
Lange, notadamente aquele impresso no tomo 6 do Boletn.
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Vale lembrar que Jos Cndido de Andrade MURICY (1952:110) j
citava
as palavras de Jacques Handschin, na abertura do Congresso
Internacional de
Musicologia da Basilia (Sua) em 1950, segundo o qual o
verdadeiro objeto
da musicologia no a msica considerada como um fato em si mesmo,
porm
o homem, na proporo em que se exprime musicalmente, constatao
que
estimulou a separao da etnomusicologia enquanto um ramo
independente da
musicologia e apresentou uma nova perspectiva aos musiclogos,
sobretudo no
campo da musicologia histrica. Curt Lange o primeiro autor
interessado no
passado musical brasileiro que se aproxima dessa tendncia, na
medida em que
deixa de olhar de uma maneira utilitria para a histria, como
manancial de
informaes e prticas para a estruturao de uma msica nacional, e
comea a
tentar compreender os fenmenos que regiam a produo musical no
Brasil
setecentista, especialmente em Minas Gerais, desvendando o
sistema de
contratao da msica pelas cmaras, irmandades e ordens
terceiras.
Em termos de produtividade, o maior interesse do trabalho de
Curt
Lange para o Brasil est, sem dvida, no levantamento, transcrio e
estudo da
documentao cartorial e religiosa de interesse musical,
principalmente em
Minas Gerais, no primeiro grande esforo da pesquisa arquivstica
com
finalidades musicolgicas no pas. Curt Lange publicou, nas dcadas
de 1960 a
1980, as primeiras coletneas de informaes histricas referentes
prtica
musical brasileira acompanhada de suas anlises, que planejava
organizar em
dez volumes. Alguns deles foram impressos em forma de livros e
outros em
forma de artigos, porm vrios desses volumes no chegaram a ser
publicados
(somente os ttulos sublinhados foram impressos, um deles
parcialmente) e a
pesquisa de alguns deles nem chegou a ser concluda (Jos da Veiga
OLIVEIRA,
1979:9-10):
I - Histria da msica nas Irmandades de Vila Rica: Freguesia de
Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto
II - Irmandade de So Jos dos Homens Pardos ou Bem Casados III -
Irmandade de Santa Ceclia IV - Senado da Cmara [de Vila Rica no
sculo XVIII] e os servios
de msica religiosa V - Histria da msica nas Irmandades de Vila
Rica: Freguesia de
Nossa Senhora da Conceio de Antnio Dias VI - A pera em Vila
Rica, a msica militar, a msica nos festejos
reais e procisses, documentao musical avulsa VII - A msica nos
arredores de Vila Rica: Mariana, Cachoeira do
Campo, Congonhas do Campo, Casa Branca, Sabar e
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Caet; a msica nas vilas mais distantes: Pitangui, Campanha,
Serro; As danas pblicas coletivas e as danas dramticas das
corporaes de ofcios em Minas Gerais; Os vissungos
VIII - Histria da msica na Vila do Prncipe do Serro do Frio e no
Arraial do Tejuco.
IX - Os compositores durante o perodo colonial em Minas Gerais;
estudos analticos das composies de autores mineiros
X - ndices e referncias biogrficas dos Professores da Arte da
Msica, assinaturas de compositores, histrias das bandas, atividade
musical no sculo XIX
Todo esse trabalho teve como objetivo principal comprovar a
existncia
de uma prtica musical erudita no Brasil anterior a Jos Maurcio
Nunes
Garcia (1767-1830), ou seja, antes do perodo no qual as histrias
da msica
no Brasil - como as de Renato Almeida e Lus Heitor Corra de
Azevedo -
comeavam a mencionar tambm a msica e no apenas as informaes
biogrficas ou literrias sobre seus autores ou suas pocas. Apesar
da enorme
contribuio de Curt Lange na expanso da musicologia enquanto
atividade
cientfica no Brasil, bem como na ampliao dos horizontes da
histria da
prtica musical brasileira, seus trabalhos foram essencialmente
orientados por
uma historiografia positivista, evolucionista e eurocntrica, com
manuteno do
interesse biogrfico e muito mais nfase nos compositores do que
em sua
msica. Seus comentrios eram fortemente impregnados pelo desejo
de
demonstrar o nvel ou a qualidade da msica atingida na Capitania
de Minas
Gerais e em outras regies brasileiras, mais especificamente a
msica por ele
descoberta, o que limitava sua compreenso do significado de
vrios
fenmenos com os quais se deparou.
Curt Lange estudou a msica religiosa com as mesmas ferramentas
da
msica instrumental, fixando-se em aspectos muito particulares
desse
repertrio, o que lhe impediu o estabelecimento de relaes mais
amplas. A
desconsiderao de aspectos ligados ao poder religioso e temporal,
liturgia, s
condies scio-econmicas e s limitaes tcnicas envolvidas no
processo de
recepo, ensino, composio, execuo e transmisso da msica deram
produo de Curt Lange um carter bem mais descritivo que
reflexivo, com
nfase no impacto de suas descobertas e na organizao das
incontveis
informaes sobre a antiga prtica musical brasileira,
especialmente mineira.
Curt Lange tambm recolheu, desde a dcada de 1940, uma grande
quantidade de manuscritos musicais principalmente em cidades
paulistas e
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mineiras, constituindo a coleo hoje preservada no Museu da
Inconfidncia de
Ouro Preto (MG). Sua voraz atividade colecionista no foi,
entretanto,
acompanhada de um mesmo interesse arquivstico, editorial ou
analtico. A
pequena quantidade de obras que editou, das quais a maioria
nunca chegou a
ser impressa, preocupou-se muito pouco com questes metodolgicas
e foi
quase somente destinada a subsidiar apresentaes ao vivo e
gravaes.
Paralelamente, isso permitiu, a partir de 1958, a audio de
composies
mineiras do final do sculo XVIII, o que causou um impacto sem
precedentes no
meio musical brasileiro. A falta de transparncia (ou seja, de um
mtodo
cientfico) na elaborao de suas edies acabou contribuindo para
que o
musiclogo alemo sofresse uma grande quantidade de ataques a
partir de
ento, mas a maior parte da polmica ocorreu pelo fato de Curt
Lange transferir
para sua residncia, no Rio de Janeiro e depois em Montevidu
(Uruguai),
muitos manuscritos ou mesmo arquivos musicais inteiros, cuja
origem nem
sempre se preocupou em registrar.
A herana de Curt Lange e a msica como centro das atenes
Curt Lange catalizou, no Brasil, a transio de uma musicologia
literria
para uma musicologia cientfica, porm foram somente seus
seguidores
imediatos que lograram aplicar uma metodologia na qual a
msica
propriamente dita passava a ser o principal objeto de estudo. A
contribuio de
Curt Lange desencadeou, a partir da dcada de 1960, uma nova fase
na
musicologia brasileira, na qual os pesquisadores passavam a
utilizar mtodos
propriamente musicolgicos e no apenas histricos ou literrios.
Pela primeira
vez no pas, a msica brasileira comeava a ser estudada a partir
das obras e no
apenas de seus compositores ou da histria poltica do pas.
Entre os autores dessa poca, pode-se destacar a atuao de
musiclogos
como Cleofe Person de Mattos, Jaime Diniz, Rgis Duprat, Antonio
Alexandre
Bispo, Jos de Almeida Penalva, Jos Maria Neves, Adhemar Campos
Filho e
Aluzio Jos Viegas. Tais pesquisadores, ao mesmo tempo em que
herdaram,
direta ou indiretamente as contribuies de Francisco Curt Lange,
deram
msica preservada em manuscritos antigos um destaque enquanto
objeto de
pesquisa que esta jamais havia recebido no Brasil, antes da
dcada de 1960.
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A dvida dessa gerao para com Francisco Curt Lange, entretanto,
era
no s evidente, como boa parte das concepes do musiclogo alemo
foram
para ela transmitidas. Rgis DUPRAT (1972, 1981, 1991b e 2002),
por exemplo,
em uma serie de quatro artigos que, embora reeditados em dcadas
diferentes
guardam entre si um ncleo comum, apresenta importantes elementos
de sua
viso musicolgica, que d grande nfase na descoberta,
catalogao,
restaurao e gravao de obras, mas no necessariamente na publicao
de
suas partituras. Herdando de Curt Lange o conceito de descoberta
das
composies musicais antigas, Duprat procurou firm-lo enquanto um
dos mais
importantes distintivos do trabalho musicolgico, tentando
estabelecer tambm
a nfase no perodo colonial enquanto principal objetivo da
musicologia
histrica, tal como o fazia o musiclogo alemo. Rgis Duprat
defende a
centralizao dos acervos musicais, aderindo atividade
colecionista tambm
herdada de Curt Lange, defendendo ainda a preservao do patrimnio
cultural
enquanto fator destinado dignificao do Homem (DUPRAT,
1991b:81).
De acordo com Duprat, seria necessrio incorporar a msica que
ento se
denominava colonial cultura brasileira, assim como os europeus o
fizeram
com Machaut, Vivaldi, Haendel e outros. Atravs do trabalho
musicolgico que,
segundo esse autor, possui natureza trplice - envolvendo a
pesquisa de campo,
a pesquisa de arquivo e a restaurao aliada ao trabalho de
gabinete - Duprat
defende a incorporao de obras de verdadeira importncia
histrico-
artstica, destinada, portanto, formao de repertrio. Dando
menor
importncia impresso das partituras como parte das atividades
destinadas a
essa incorporao, o que pode ser compreendido como a centralizao
desse
processo na figura do musiclogo que detm as fontes, esse autor
percebe a
necessidade de metodologia especfica, mas tambm reconhece a
inexistncia de
pesquisadores especializados para esse tipo de atividade
(DUPRAT, 1972:102):
Por contingncia histrica, o estado atual da distribuio desses
manuscritos exige um trabalho insano, digno de geraes de equipes,
para descobri-los, centraliza-los, inventari-los, cataloga-los,
restaura-los e grava-los para que tenham vida sonora. Insistimos em
que cada uma dessas etapas requer uma metodologia prpria,
rigorosamente cientfica, para o que preciso formar quadros tcnicos
especializados.
Na terceira verso de seu texto (DUPRAT, 1991b:84), o
pesquisador
carioca afirma que o propsito da musicologia histrica
manipular
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partituras e ouvir gravaes de praticamente todos os sculos que
nos
antecederam, acreditando, ainda, ser o seu objetivo a
redescoberta da grande
msica do passado. A importncia histrico-artstica das obras
foi
frequentemente enfatizada por tal autor: J que vivemos os
primrdios da
construo de um acervo musical de nosso pas, nossa tarefa
garantir, tanto
quanto possvel, que venham a pblico obras de verdadeira
importncia
histrico-artstica (DUPRAT, 1991b:88). O grande problema, nesse
caso,
saber qual seria essa grande msica do passado e como reconhecer
as obras
de verdadeira importncia histrico-artstica, ou seja, quais
seriam os
critrios para se decidir se as composies descobertas estariam ou
no nessa
categoria.
Como no existem solues objetivas para essas questes, possvel
deduzir que, na prtica, caberia aos musiclogos, de acordo com
tal concepo,
decidir quais obras deveriam ser levadas a pblico e convencer a
sociedade de
que estas possuam a importncia e o interesse que alegavam.
Assim, a pesquisa
de campo, a pesquisa de arquivo e a restaurao aliada ao trabalho
de gabinete
visavam essencialmente o estabelecimento de um repertrio de
obras
exumadas do passado, cuja importncia deveria ser demonstrada
pelo
pesquisador.
Percebe-se, ento, que essa vertente da musicologia foi pouco
crtica,
interpretativa ou reflexiva, e mais voltada a questes tcnicas
referentes
divulgao ou exumao do passado, como refere Duprat. De fato, esse
autor
propunha uma certa tecnificao do setor cultural, defendendo o
que
chamava de tecnocratismo esclarecido (DUPRAT, 1991b:81), ou
seja, uma
abordagem na qual as questes tcnicas teriam prioridade, ficando
em segundo
plano sua interpretao.
Embora houvesse muitas diferenas entre os musiclogos brasileiros
que
atuaram entre as dcadas de 1960 a 1980, foi comum a nfase no
perodo
colonial, nas obras-primas e em autores que tivessem condies de
serem
associados aos seus contemporneos europeus de destaque, mesmo
que essas
tendncias j estivessem sendo abandonadas na musicologia europia,
que
visava no mais estudar a grandeza prpria de um artista, mas sim
as
modificaes da msica no tempo (PORTO, 1962:28). Surgia, no
Brasil, dessa
maneira, a tendncia que podemos denominar de exclusivismo
autoral, ou
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seja, uma ntima relao entre compositor e musiclogo, segundo a
qual um
pesquisador estudava preferencialmente as obras de um
determinado
compositor, ao mesmo tempo em que as obras desse compositor
deveriam ser
preferencialmente estudadas pelo mesmo musiclogo. E isso nem
foi
exclusividade brasileira. Leonardo WAISMAN (1998) j identificava
essa
tendncia na Amrica Latina, enfatizando a relao que distintos
musiclogos
havia estabelecido com a msica do compositor italiano Domenico
Zpoli (1688-
1726), radicado desde 1717 em Crdoba (hoje Argentina, mas ento
pertencente
ao Paraguai) e cujas obras foram principalmente preservadas na
Bolvia: surgia,
assim, um Zpoli italiano, um Zpoli boliviano, um Zpoli paraguaio
e Waisman
preconizava o possvel surgimento de um Zpoli argentino.
Manifestando essa tendncia no Brasil, Francisco Curt Lange
concentrou-
se preferencialmente nas obras de Jos Joaquim Emerico Lobo de
Mesquita
(1746?-1805), Cleofe Person de Mattos nas composies de Jos
Maurcio
Nunes Garcia (1767-1830), Rgis Duprat na msica de Andr da Silva
Gomes
(1752-1844) e Jaime Diniz na produo de Lus lvares Pinto
(c.1719-c.1789) e
Damio Barbosa Arajo (1778-1856), para citar os exemplos mais
notrios. Na
dcada de 1990 outros compositores chegaram a ser disputados
por
pesquisadores que seguiam a mesma trilha, porm no foi mais
possvel
sustentar o exclusivismo autoral a partir dessa poca.
Por outro lado, alm do colecionismo e do exclusivismo autoral,
essa
gerao teve uma concepo centralizadora da musicologia histrica.
Antonio
Alexandre BISPO (1983), por exemplo, afirma ter sido a fundao da
Sociedade
Brasileira de Musicologia (SBM) em 1981 um marco no
desenvolvimento da
musicologia no Brasil, considerando-a o primeiro passo para
a
institucionalizao desse tipo de atividade no pas, como teria
ocorrido em
outros pases. O autor defende o apoio oficial para a musicologia
e sua prtica
centralizada em torno da SBM, evitando o contato com o meio
universitrio e
preferindo a ligao com organismos governamentais. Mas essa
perspectiva
acabou ficando para trs, na medida em que a musicologia foi se
tornando uma
atividade relacionada s universidades, especialmente a partir da
dcada de
1990, deixando a SBM com poucas funes reais a partir de ento.
Conclui-se,
portanto, que o verdadeiro marco da institucionalizao da
musicologia no
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Brasil no foi a fundao da SBM, mas a incluso da musicologia
enquanto linha
de pesquisa universitria nas dcadas de 1980 e 1990.
Obviamente, houve tendncias paralelas, destacando-se a
contribuio de
Mozart de Arajo, Mercedes de Moura Reis Pequeno, Jaime Diniz,
Gerard
Bhague, Robert Stevenson, Vicente Salles, Bruno Kieffer, Arnaldo
Daraya
Contier, Jos Maria Neves, Adhemar Campos Filho, Aluzio Jos
Viegas, Slvio
Augusto Crespo Filho, Jorge Hirt Preiss e outros, preocupados
com a construo
de panoramas da prtica musical no Brasil ou em regies
especficas, em lugar
de uma abordagem focada exclusivamente no repertrio. Autores
como Harry
Lamott Crowl Jr., Srgio Dias, Heitor Geraldo Magella Combat,
Arnaldo Jos
Senize e outros prosseguiram no trabalho com as fontes musicais,
porm
preocupados com maior difuso do repertrio a partir das ento
denominadas
transcries ou restauraes.
No campo das histrias da msica brasileira, no caso
associadas
msica erudita, os trabalhos de Jos Maria NEVES (1977), Vasco
MARIZ (1981),
Bruno KIEFER (1982) e David APPLEBY (1983) beneficiaram-se de
um
levantamento de informaes e um conhecimento de repertrio que
ainda no
existia na gerao anterior dcada de 1960, surgindo tambm as
primeiras
histrias da msica popular, como as de Ary VASCONCELOS (1977) e
Jos
Ramos TINHORO (1981, 1986 e 1990).
No se pode negar a enorme contribuio dessa fase para a
musicologia
brasileira, especialmente no que se refere ao seu
desenvolvimento
metodolgico. Se Curt Lange proporcionou o contato com a prtica
musical
brasileira anterior ao sculo XIX, a gerao que atuou a partir da
dcada de
1960 teve o mrito de levar a pblico alguns de seus autores e de
suas obras, ao
mesmo tempo em que propunha o conhecimento do passado musical
brasileiro
luz do repertrio, o que no havia ocorrido com freqncia, at
ento.
Por outro lado, a musicologia dessa gerao foi
predominantemente
positivista e teve uma forte conotao nacionalista, s vezes
unindo a esses
aspectos o interesse religioso. Salvo excees, a pesquisa era uma
atividade
quase exclusivamente individual e desvinculada do meio
universitrio, sendo
raros os debates entre os pesquisadores, que normalmente elegiam
focos de
interesse bastante distintos entre si, com a finalidade de
evitar o choque de
interesses. O aperfeioamento dos mtodos para a construo do
conhecimento
-
43
sobre o passado musical brasileiro dificilmente estavam em pauta
e os trabalhos
em geral adotavam o estilo descritivo. A publicao de uma
quantidade limitada
de trabalhos e o protecionismo aos acervos ou s obras de
determinados autores
foi bastante comum, o que dificultou o desenvolvimento da
pesquisa e permitiu
o estabelecimento de vises monolticas a respeito dos assuntos
estudados. A
formao de novos pesquisadores era muito pequena e os intercmbios
com a
musicologia internacional eram mais tericos do que prticos. Esse
panorama
predominou at incios da dcada de 1990, quando comeou a sofrer
algumas
modificaes, mesmo que lentas.
Em direo a uma nova musicologia brasileira
As particularidades da musicologia das dcadas de 1960 a 1980 e
o
esgotamento de sua eficcia, aliadas a um maior contato com a
musicologia
internacional, motivaram, a partir da dcada de 1990, o
surgimento de uma
nova musicologia no Brasil, que herdava as conquistas da gerao
anterior, mas
que tambm procurava superar suas limitaes. O aspecto
inicialmente mais
questionado foi o acesso dos pesquisadores s obras ou aos
acervos de
manuscritos musicais. Um dos primeiros textos a abordar a questo
foi a
reportagem de Lus Antnio GIRON (1989), que denunciava a prtica
do
protecionismo s fontes musicais, mesmo em acervos pblicos:
Nos ltimos 45 anos, os pesquisadores da chamada msica barroca
mineira mais criaram problemas do que resolveram os que se
propuseram a enfrentar. Em vez de levantar a documentao para
pass-la aos msicos e da estabelecer uma circulao interpretativa
atravs de edies, mantiveram as fontes sob seu poder,
transformando-as em fonte de lucro pessoal.
Alguns anos mais tarde, manifestei opinio semelhante, porm
referindo-
me tambm a alguns problemas ligados formao dos
pesquisadores,
organizao dos acervos, realizao de eventos e circulao de
informaes
referentes produo musicolgica (CASTAGNA, 1995):
[...] Foroso dizer que o sentimento de posse com relao a
assuntos culturais, manuscritos e obras musicais ainda feudal; a
formao de novos musiclogos pouco ultrapassou os limites do
auto-didatismo; a maior parte dos acervos de manuscritos
particular, ou tratada como tal; as bibliotecas pblicas, com raras
excees, so mal aparatadas e as publicaes em nmero
-
44
insignificante, para no se falar nos problemas sociais, polticos
e econmicos, que mantiveram o pas, por mais de trs dcadas, alheio
ao desenvolvimento mundial neste setor. O prprio ensino da msica
erudita insuficiente para a formao de grupos musicais de projeo
internacional, capazes de reverter a averso do pblico tradicional
com relao msica brasileira de concerto, via de regra, julgada mais
pela execuo que pela qualidade e significado histrico das
composies. As relaes entre os musiclogos brasileiros ainda no so
satisfatrias e no existem mecanismos eficazes, no Brasil, para se
saber, com rapidez, o que vem sendo atualmente produzido em
musicologia, nas diversas partes do pas, exceo dos espordicos
simpsios, encontros e congressos, nos quais, com raras excees, as
participaes no tm resultado na criao de metas comuns. As
bibliografias da msica erudita brasileira esto longe de reunir os
trabalhos publicados nessa rea. Ainda que vrias tentativas de
sistematizao j tenham sido levadas a cabo, o tempo as torna
obsoletas, sem que novos trabalhos venham atualiz-las.
Em outro texto especificamente destinado a esse assunto
(CASTAGNA,
1998), questionei a aplicao dos conceitos de descoberta e
restaurao,
analisando vrios aspectos ticos envolvendo a relao entre os
pesquisadores e
os acervos musicais, bem como a relao entre os prprios
pesquisadores,
assunto que at ento era considerado um certo tabu.
Essa fase teve uma inegvel efervescncia, principalmente nos
eventos
especficos em musicologia, no que se refere discusso de
certos
procedimentos adotados na musicologia brasileira. E foi em um
desses eventos
que Maurcio MONTEIRO (1998:104) apresentou sua opinio sobre tal
assunto,
afirmando que, ao mesmo tempo em que no existe nem um rgo
que
realmente represente a musicologia, no existe tambm uma poltica
de
pesquisa cientfica que permita sem restries o acesso s fontes
documentais,
informando, ainda, serem estes os principais empecilhos
pesquisa
musicolgica no Brasil. Em relao ao acesso s fontes, o autor
claro e
incisivo:
Quanto ao primeiro problema - o do acesso s fontes, necessrio
ressaltar que alguns grupos tm a pretenso de se tornarem guardies
da fonte histrica, no colocando em prtica a poltica da pesquisa. Ou
seja, alguns pesquisadores-arquivistas ignoram a Constituio e
impedem o acesso e o estudo das informaes. A fonte textual ou
iconogrfica, manuscrita ou impressa um documento histrico e por
isso deve ser preservada; entretanto, as informaes contidas nele
devem ser estudadas em busca de uma compreenso da atividade musical
- seja ela do passado ou da contemporaneidade.
Posteriormente, Andr Guerra COTTA (2000a) estudou o direito
de
acesso aos acervos musicais brasileiros e a seu contedo,
demonstrando que, no
-
45
caso de acervos pblicos, no existia nenhum dispositivo legal que
pudesse
impedir a consulta de um documento antigo, a no ser em caso de
precrio
estado de conservao, mas nesse caso, a instituio custodiadora
teria a
obrigao de informar quais eram os documentos impedidos consulta,
alm de
disponibilizar ao consulente algum tipo de imagem dos mesmos.
Esse e outros
trabalhos deram respaldo terico ao combate da prtica de alguns
musiclogos e
arquivistas de impedir o acesso a determinados documentos
musicais ou mesmo
a um acervo inteiro e, juntamente com outras aes, participaram
do incio da
reverso do protecionismo aos manuscritos musicais.
Toda essa discusso motivou a primeira manifestao coletiva sobre
o
assunto nas Concluses do III Simpsio Latino-Americano de
Musicologia
(Curitiba, 1999), documento em quatorze itens redigido e
assinado por
musiclogos majoritariamente brasileiros, ao lado de colegas da
Argentina,
Santiago do Chile, Venezuela, Cuba, Mxico, Estados Unidos e
Espanha
(CONCLUSES, 2000:12). De maneira geral, o documento
manifestou-se por
uma poltica de acesso dos pesquisadores aos acervos musicais e
por um
desenvolvimento democrtico da musicologia histrica. O segundo
pargrafo
apresentou a opinio dos participantes do evento para as mesmas
questes
expostas pelos autores anteriormente citados:
2. O pesquisador deve respeitar a integridade dos acervos,
contribuir para sua preservao e valorizar o acesso dos demais
interessados, mesmo aos acervos com os quais trabalha ou trabalhou,
visando democratizao da pesquisa, pluralidade de abordagens dos
objetos de estudo e expanso das investigaes musicolgicas.
Paralelamente, iniciou-se o desenvolvimento de uma reflexo
crtica
sobre a atividade musicolgica, que incluiu mesmo os autores que
no a
praticavam como sua principal atividade. o caso de Alberto T.
IKEDA (1998),
que discutia as diferenas entre a prtica da cincia e a prtica
artstica,
criticando o interesse apenas no conhecimento dos fenmenos em
si, sem
indagaes sobre suas causas. O mesmo autor, em outro trabalho
(IKEDA,
2001), reconhecia o enfoque analtico descontextualizado como uma
das mais
tpicas heranas positivistas. Manuel VEIGA (1998:80), por sua
vez,
questionava o etnocentrismo musicolgico e a pretensa
universalidade da
msica europia geralmente adotada pelos musiclogos, rejeitando a
nfase
nos produtos, em vez dos procedimentos, redundando num repertrio
de
-
46
msica oficial. Ricardo TACUCHIAN (1994) percebia que a reflexo
ou
interpretao do fato musical histrico - para ele o maior objetivo
da
musicologia histrica - ainda era uma atividade incipiente no
Brasil, mas
Jamary OLIVEIRA (1992:8), autor de um dos textos mais crticos da
dcada
sobre o assunto, reconhecia que o estudo da msica brasileira sob
o ponto de
vista interpretativo est apenas comeando e questionava a
abordagem mais
interessada na vida dos compositores que em suas obras,
opondo-se tambm
musicologia voltada exumao de obras-primas (Jamary OLIVEIRA,
1992:6), identificando com muita clareza sua principal
finalidade (e,
obviamente, dela discordando):
Queremos antes de tudo mostrar ao mundo que o Brasil produziu no
passado e continua a produzir no presente obras-primas da tradio
europia, o que certamente nos colocaria entre as naes de primeiro
mundo.
interessante considerar que o prprio conceito de obra-prima no
leva
em conta o significado da obra no contexto de sua produo, mas
sobretudo sua
relao com o presente. Por essa razo, Rgis DUPRAT (1991b)
defendia a
exumao do passado em funo das necessidades do presente e das
perspectivas do futuro, a partir do mesmo tipo de critrio de
qualidade que
Giulio ARGAN (1993) relacionou esttica idealista e que motivou a
destruio
de inmeras construes antigas que no eram reconhecidas como
obras-
primas. A grande questo, novamente, definir quais so as
necessidades do
presente e as perspectivas do futuro que determinaram essa
exumao, pois
nenhuma obra do passado realmente ter lugar aqui e agora se no
tiver uma
nova funo: seriam elas necessidades pessoais, coletivas,
institucionais ou de
um determinado sistema? Qual passado deveria ser exumado e qual
no
deveria? Quem tomaria essa deciso e por quais motivos? Nesse
sentido, Jos
Maria NEVES (1999) chamava a ateno para o preconceito do
musiclogo
histrico, que no aceitava que a msica para banda, por exemplo,
pudesse ser
digna de uma abordagem acadmica, uma vez que no se enquadrava
nos
critrios a priori definidos pela esttica idealista.
A discusso estendeu-se ao visvel isolamento da pesquisa
musicolgica
no Brasil em relao ao desenvolvimento desse campo cientfico em
outras
regies do mundo. A esse respeito, Maria Elisabeth LUCAS (1990) e
tambm eu
-
47
(CASTAGNA, 1995) propnhamos um maior contato e troca de
experincias
entre a musicologia brasileira e portuguesa, aliadas a um maior
intercmbio
entre a pesquisa musicolgica brasileira e a dos pases
hispano-americanos. Tal
contato comeou a se fortalecer a partir da segunda metade dessa
dcada, mas
preciso reconhecer que h um longo caminho a ser trilhado nessa
direo.
No campo da histria da msica, Arnaldo CONTIER (1985) e
Henrique
Emanuel Gomes PEDROSA (1988) esto entre os poucos anteriores
dcada de
1990 que refletiram sobre os trabalhos brasileiros do gnero.
Mais
recentemente, Avelino Romero Simes PEREIRA (1995) props a
construo de
uma histria da msica brasileira (ou no Brasil) a partir de
mtodos e
concepes originrios da histria, procurando reverter a tendncia
ensastica,
empirista e, sobretudo, positivista que predominava nesse tipo
de atividade no
Brasil. Maria Elisabeth LUCAS (1998:69), que tambm se dedicou a
esse tema,
criticou, nas histrias da msica brasileira, as narrativas mticas
sobre
determinado perodo, gnero musical ou grupo de compositores, que
acabam
institucionalizadas como paradigma de conhecimento. A autora
identifica o
modelo positivista dessas histrias e, apesar de sua necessidade,
acusa a
cristalizao de concepes que so transmitidas ao estudante e que
acabam
condicionando novas pesquisas.
Raras, entretanto, so as reflexes tericas brasileiras sobre a
histria da
msica, como a de Vanda Lima Bellard FREIRE (1994), sendo porm
urgentes
novos trabalhos sobre o passado e o futuro dessa disciplina no
pas. Desde a
dcada de 1970 a produo de novas histrias gerais da msica
brasileira
encontra-se estagnada, vigorando a separao entre a msica erudita
e a
popular (apesar da enorme dificuldade em sua conceituao), para a
qual
nenhum autor at o momento ousou propor uma abordagem conjunta,
depois
dos livros de Guilherme de Mello e Renato Almeida, que davam
ateno
msica erudita e ao folclore musical. Acredito, ainda, que
publicaes de grande
porte, como novas histrias da msica brasileira, devam ser
futuramente
projetadas como obras coletivas, contendo textos de vrios
especialistas sobre os
aspectos abordados, de modo a evitar as concepes monolticas,
individualistas
e nem sempre fundamentadas em fontes histricas que predominam
nos livros
do gnero at ento publicados no pas.
-
48
Torna-se claro, portanto, que a musicologia que comeou a se
estabelecer
no Brasil na dcada de 1990 teve como metas a superao do modelo
positivista
e a procura de novas teorias que pudessem explicar o significado
dos fenmenos
estudados. Paralelamente, surgia um dos maiores dilemas na
musicologia
brasileira dessa poca: sem uma produo resultante da concepo
positivista
que orientou a musicologia europia na segunda metade do sculo
XIX e
primeira metade do sculo XX, no haveria suficiente material para
abordagens
mais reflexivas ou interpretativas. Assim, a nova gerao de
musiclogos
brasileiros comeou a se preocupar com o aspecto crtico e
reflexivo, mas
tambm procurou retomar o trabalho tcnico, de forma mais intensa
e com
maior conscincia metodolgica, o que ampliou consideravelmente
suas
responsabilidades e deixou claro que a musicologia no poderia
mais ser, no
Brasil, uma atividade exclusiva de um pequeno crculo de
especialistas. A partir
de ento, em uma tentativa de ampliar rapidamente o material
disponvel,
dezenas de obras comearam a ser impressas, dezenas de acervos
comearam a
ser estudados e catalogados, novos eventos foram realizados e
muitos textos
foram publicados.
No obstante, a falta de trabalhos sistemticos era e continua
sendo
muito grande no panorama musicolgico brasileiro. Jos Maria NEVES
(1998),
em pleno final do sculo XX, acusava o desinteresse pela elaborao
de
catlogos de fontes primrias no pas, demonstrando que ainda era
pequeno o
conhecimento a respeito dos acervos brasileiros de manuscritos
musicais. A
musicologia herdeira de Curt Lange preocupava-se muito com
autores e suas
composies, mas legava a um segundo plano os acervos, seu
contedo, a
relao entre eles e outros aspectos relacionados arquivologia
musical. Foi
somente a partir da dcada de 1990 que comearam a ser realizados
trabalhos
de maior flego no que se refere organizao e catalogao de
acervos, cujos
resultados vm permitindo o surgimento de pesquisas destinadas a
uma
compreenso global da msica preservada no pas e no apenas de
alguns
autores e suas obras, embora ainda haja um longo caminho a ser
trilhado nessa
direo.
As preocupaes arquivsticas, a partir dessa fase, foram tanto
tericas
quanto prticas. No que se refere primeira vertente, estudei
alguns catlogos
de acervos brasileiros de manuscritos musicais, detectando a
utilizao de
-
49
critrios diferentes para a catalogao de obras e documentos em um
mesmo
projeto, alm da impreciso ou inadequao de alguns desses
critrios
(CASTAGNA, 2000). A partir desse estudo e da prpria experincia
com esse
tipo de atividade, propus algumas diretrizes e solues para um
conhecimento
mais amplo do contedo dos acervos brasileiros. Andr Guerra COTTA
(2000b),
em sua dissertao de mestrado, como em outros artigos e
comunicaes,
realizou trabalho terico sobre o tratamento da informao em
acervos
brasileiros de manuscritos musicais, a partir de uma crtica dos
instrumentos de
busca at ento publicados e de um estudo da metodologia utilizada
no
Rpertoire International des Sources Musicales (RISM), em uma
tentativa de
fornecer novos subsdios para o desenvolvimento da arquivologia
musical no
Brasil.
Outros autores, ainda, preocuparam-se com aspectos tericos
da
arquivologia musical, como Fernando Binder e Modesto Fonseca,
mas os
esforos nesse sentido concentraram-se na organizao, catalogao e
estudo de
acervos, principalmente a partir do trabalho de pesquisadores
como Mercedes
Reis Pequeno, Mrcio Miranda Pontes, Andr Guerra Cotta, Vanda
Freire,
Lorenzo Mammi, Pablo Sotuyo Blanco, Modesto Fonseca, Andr
Cardoso,
Maurcio Monteiro, Rosngela Pereira de Tugny, Aluzio Jos Viegas,
Mary
ngela Biason e Lenita Nogueira, incluindo-me tambm entre os
interessados
nesse tipo de atividade. Autores como Maria Ins Guimares,
Srgio
Nepomuceno Alvim Corra, Elisabeth Seraphim Prosser e outros
dedicaram-se
tambm a este campo, porm concentrando-se na catalogao de obras
de
autores especficos.
Em perodo anterior dcada de 1990 eram raros os acervos
musicais
brasileiros organizados, catalogados e abertos aos
pesquisadores, destacando-se
o caso pioneiro do Museu da Msica de Mariana, cujo tratamento,
ainda que
incompleto e baseado em metodologia essencialmente emprica, fora
realizado
principalmente na dcada de 1970 por Jos de Almeida Penalva e
Maria da
Conceio de Rezende e que acabou motivando boa parte das
iniciativas nesse
setor, incluindo sua reorganizao e nova catalogao entre
2001-2003.
Alguns trabalhos de Andr Cardoso, Marcelo Campos Hazan, Vtor
Gabriel, Aluzio Jos Viegas e tambm um de minha autoria podem
ser
enquadrados na recente tendncia que no VI Encontro de
Musicologia Histrica
-
50
de Juiz de Fora (2004) foi intitulada paleoarquivologia musical
e definida
enquanto o estudo das caractersticas e configuraes de antigos
acervos
musicais, independente de terem sido estes totalmente,
parcialmente ou
nulamente preservados.
Ao lado da arquivologia e da paleoarquivologia musical, tem
se
desenvolvido no pas, nos ltimos anos, a edio musical enquanto
atividade
acadmica. Carlos Alberto FIGUEIREDO (2000), em sua tese de
doutorado e
outros trabalhos, realizou os primeiros estudos tericos
brasileiros sobre edio
musical, aos quais somaram-se reflexes de Marcelo Campos Hazan e
Luiz
Guilherme Goldberg, que forneceram importantes subsdios para
esse tipo de
atividade e permitiram a superao da fase na qual as edies eram
realizadas
sem uma conscincia metodolgica.
Vrios autores tm se dedicado pesquisa da antiga prtica e
produo
musical em localidades ou fases especficas da histria do Brasil,
como Marcos
Jlio Sergl, Vtor Gabriel, Maurcio Dottori, Pablo Sotuyo Blanco,
Carlos Kater,
Mnica Vermes, Joo Berchmans, Daniela Miranda, Maurcio Monteiro,
Andr
Guerra Cotta e Carlos Eduardo Souza, ou a repertrios especficos,
como
Manuel Veiga, Rogrio Budasz, Celso Loureiro Chaves, Odette
Ernest Dias,
Maria Elizabeth Lucas, Marcos Pupo Nogueira, Fernando Binder,
Marcelo
Fagerlande, Adriano de Castro Meyer, Maria Lcia Roriz, Elisabeth
Seraphim
Prosser, Maria Augusta Calado, Maria de Ftima Tacuchian e
outros, incluindo-
me tambm nestes tipos de abordagem. Nos trabalhos desses autores
destaca-se
uma amplitude no levantamento de fontes e um interesse por uma
viso global
dos fenmenos estudados que contrasta com a produo musicolgica
brasileira
das dcadas de 1960 a 1980.
Entre os estudos referentes a compositores especficos,
destaca-se o caso
de Jos Maurcio Nunes Garcia, que tem recebido importantes e
recentes
contribuies de Carlos Alberto Figueiredo, Srgio Dias, Lucas
Robatto, Jetro
Meira de Oliveira, Ricardo Bernardes, Inez de Castro Martins,
Luiz Guilherme
Goldberg e outros. Tais estudos, que incluem aspectos
editoriais, analticos e
histricos, tm avanado no conhecimento do significado das obras
desse
compositor no panorama musical brasileiro, auxiliando-nos a
compreender suas
composies mais como produtos culturais de uma determinada
poca,
-
51
sociedade, local e circunstncia que apenas como fonte de
repertrio para
concertos e gravaes.
De maneira geral, pode-se dizer que passaram a constar entre
os
interesses da musicologia brasileira o debate sobre a funo da
musicologia na
sociedade e a razo da prtica desse tipo de cincia no Brasil da
atualidade, o
debate sobre a tica e a relao dos pesquisadores entre si e com
seus objetos de
estudo, a reflexo metodolgica e a viso crtica sobre a produo
musicolgica
antiga e atual, assim como comea a surgir o interesse pela
histria da
musicologia no Brasil. De fato, as reflexes sobre a atividade
musicolgica
tornaram-se to importantes que no ser mais possvel o
desenvolvimento da
musicologia brasileira sem uma histria da musicologia no pas,
destinada
compreenso dos valores, mtodos, concepes, interesses, resultados
e
impactos da musicologia, no como parmetros absolutos destinados
a uma
utilizao prtica, mas relativizados a partir de uma perspectiva
histrica
(CASTAGNA, 2004:70). Entre outros, j existem trabalhos do gnero
por
Antonio Alexandre Bispo, lvaro Carlini, Flvia Toni, Jorge Coli,
Carlos Kater,
Cludio Remio e Denis Vidal, que provavelmente sero ampliados na
medida
em que esse tipo de pesquisa for se estabelecendo no Brasil.
A nova musicologia tambm comeou a manifestar o fim do
discurso
centralizador e a procura de maior contato com a musicologia
internacional,
especialmente a portuguesa e a hispano-americana. O
desenvolvimento da
musicologia na ps-graduao contribuiu para o aumento do nmero
dos
eventos cientficos e o prprio aumento do nmero de musiclogos,
comeando
a surgir grupos de pesquisa entre os mesmos, praticamente
inexistentes em
perodo anterior dcada de 1990.
Mudanas na poltica de apoio aos projetos de pesquisa na rea
de
msica tm contribudo para acelerar a velocidade desses
avanos,
especialmente com a participao de empresas privadas ou estatais
e
destacando-se o caso da Petrobras, que vem apoiando dezenas de
projetos a
partir de 2001. Apesar das limitaes e at encerramento dos
programas de
apoio de algumas instituies, como a Fundao Vitae (que no atender
a
novos pedidos a partir de 2005), parece haver um aumento
significativo no
montante destinado ao financiamento de projetos e na prpria
quantidade de
projetos envolvendo a pesquisa musicolgica.
-
52
Consideraes finais
No h dvidas de que a musicologia brasileira vem manifestando
sensveis mudanas desde a dcada de 1990 e, se a nova posio ainda
no foi
solidificada, ao menos pode-se vislumbrar a transio de uma
musicologia
principalmente focada em obras e compositores, tpica das dcadas
de 1960 a
1980, para uma nova musicologia, caracterizada pela maior
amplitude na
seleo de objetos, mtodos, interesses, interrelaes,
responsabilidades,
abordagens, perodos histricos e regies geogrficas,
consequentemente
acompanhada de maior amplitude nos resultados obtidos. Mais
diversificada e
menos centralizada, a nova musicologia est surgindo no apenas
por influncia
externa, mas tambm pelo esgotamento das abordagens baseadas
quase
exclusivamente em obras e compositores, viso que, embora tenha
permitido o
aprofundamento da pesquisa musicolgica, enfatizou excessivamente
a
utilizao do repertrio no presente e produziu pequeno interesse
na
investigao do seu significado no passado.
Essa mudana est associada ao incio da superao do modelo
positivista que predominou na musicologia brasileira at meados
da dcada de
1990 e procura de novas teorias que possam explicar o
significado dos
fenmenos estudados. Isso no significa, entretanto, que a fase
positivista -
bastante preocupada com a organizao de informaes - tenha
produzido
suficiente material para subsidiar interpretaes e reflexes de
flego sobre o
passado musical brasileiro. Pelo contrrio, ainda resta muito
trabalho a ser feito
no que se refere catalogao de acervos, edio de obras, organizao
e
sistematizao de fontes, o que impe nova musicologia a
responsabilidade de
desenvolver trabalhos sistemticos e, ao mesmo tempo reflexivos.
Se a nova
musicologia possui maior amplitude de ao em relao s tendncias
que a
precederam, inegvel a enorme responsabilidade que acabou
sendo
transmitida aos musiclogos que vm atuando a partir da dcada de
1990,
sobretudo gerao que iniciou o seu trabalho a partir dessa
poca.
Como se trata de uma fase de transio, fundamental que se
trabalhe na
ampliao das perspectivas da nova musicologia, sobretudo no que
se refere s
abordagens mais crticas e interpretativas, ao desenvolvimento
metodolgico,
formao de um maior nmero de pesquisadores nos programas de
ps-
-
53
graduao, ao relacionamento internacional, ao debate sobre
aspectos ticos, ao
desenvolvimento dos eventos, ao aumento do nmero e da qualidade
dos
projetos de pesquisa e das publicaes, e ao maior significado
social da pesquisa
musicolgica. importante, ainda, que a histria da musicologia
torne-se uma
linha de pesquisa praticada em vrias regies do pas, com a
finalidade de se
conhecer melhor o que produzimos, compreender as relaes entre
a
musicologia brasileira e as tendncias internacionais dessa
cincia, e aplicar no
presente as reflexes sobre a produo musicolgica do passado.
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