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MURILO MENDES: ou a potica do visionrio
Jos Guilherme Merquior
a D. Dirce Crtes Riedel e a, Mrio Chamie
Murilo Mendes um poeta deslocado na tradio dominante da lrica de
lngua portuguesa. A audcia de suas imagens, o feitio irredutvel de
seu ritmo, a violenta freqentao do visionrio de onde brotam ambas
essas caractersticas, e a conjuno impassvel, de uma absurda
naturalidade, com que a plena fantasia e o mais vulgarmente
cotidiano se entrelaam em seu verso - tudo isso foge mdia de uma
tradio potica estabelecida no predomnio do
sentimental-convencional, sem arestas nem conflitos, sem asperezas
de expresso e sem sustos de comunicao.
Marginal de nossa corrente lrica, poeta sem precedentes, Murilo
no obteve compreenso substancial por parte da generalidade da
crtica. Ganhou mais admirao pelo assombro do que pelo entendimento;
e at bem recentemente, numa obra de objetivos analticos como A
Literatura no Brasil,1 Pricles Eugnio da Silva Ramos, encarregado
do captulo sobre a poesia modernista, pasmava diante do meteoro
Murilo sem conseguir enriquecer-lhe a compreenso. Semelhante
espanto a decorrncia natural do descarrilamento que a potica
muriliana provoca no leito da lrica tradicional. Numa das poucas
pginas que resgatam a crtica daquela censura, Alceu Amoroso Lima2
via muito bem, a propsito do primeiro livro de Murilo, que "este
livro marca, no, como a Paulicia, uma poca, mas um estado de
esprito". Quer dizer: Murilo no vinha apenas renovar uma tradio
artstica - a da nossa lrica - reaproximando-a das fontes e motivos
da vida moderna; vinha, para
1 A Literatura no Brasil, ed. sob a direo de Afrnio Coutinho,
Rio, 1959.
2 ALCEU AMOROSO LIMA, Estudos (5.a srie), Rio, 1933.
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alm de toda renovao, acrescentar aos nossos modos poticos algo
de novo, de impraticado anteriormente, e que sua obra traria para o
verso brasileiro como um verdadeiro alargamento psicolgico, uma
disposio de esprito adicionada pela literatura modernista.
Qual ento essa modalidade psicolgica? O que de melhor a crtica
escreveu sobre Murilo (o nico texto crtico realmente superador
daquela mudez espantada) j em 1931 a apontava e corretamente
designava. O texto, no caso, so dois artigos de Mrio de Andrade,
que foi, em suma, o melhor crtico de poesia do modernismo. O
primeiro deles, de que nos ocuparemos agora, est nos Aspectos da
Literatura Brasileira e se chama, significativamente, A Poesia em
1930. Significativamente porque o artigo se ocupa, alm do
Libertinagem que to bsico em Manuel Bandeira, de um poeta
recm-estreado, Augusto Frederico Schmidt, e de dois importantssimos
estreantes, Drummond e Murilo.
As observaes de Mrio sobre a poesia de Murilo podem ser
esquematizadas em nove. A primeira j o diagnstico do "estado de
esprito" pressentido por Tristo de Athayde: pois Mrio nota, sobre a
poesia de Murilo, que o "aproveitamento mais sedutor e convincente
da lio surrealista". A palavra essencial foi dita: surrealismo. O
que Murilo introduzia na literatura brasileira em 30 era a prtica
do surrealismo. O sintoma mais gritante de semelhante prtica era a
"integrao da vulgaridade da vida com a maior exasperao sonhadora ou
alucinada", integrao realizada com elasticidade e naturalidade bem
cariocas. Com esta terceira caracterstica, Mrio nos conduz posio
singular de Murilo no plano do projeto de abrasileiramento literrio
do modernismo, reconhecendo no poeta um brasileirismo todo natural,
no procurado; e, ao mesmo tempo, constatando que o resultado de sua
poesia no era nada de "regional" - sendo antes um produto genrico,
universalmente humano, despersonalizado e desindividualizado.
Praticante de surrealismo, Murilo , para Mrio, um "lrico" e no um
"artista"; sua obra estaria liberta de toda "inteligncia
superintendente"; e embora o poeta-crtico veja nessa fuso de planos
conseguida pelo surrealismo uma "inflexvel
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desapropriao da Arte em favor da integralidade do ser humano",
seu juzo sobre a viso do mundo por trs dos poemas murilianos acaba
denunciando neles um exemplo de no-meamolismo, ou seja, daquele
pasargdico evasionismo captvel igualmente em Bandeira e em
Drummond. A fuso dos planos do real indicaria tambm uma confuso de
valores; e esta ltima, a vontade niilista subjacente ao evasionismo
da nossa lrica em 1930.
Mas ser mesmo que o surrealismo, instrumento e estilo dessa
alegada evaso, consiste realmente numa fuga ao mundo concreto? A
interpretao do surrealismo nem sempre o sugere. Se, no livro de
Marcel Raymond (De Baudelaire au Surralisme, 1933), insiste-se no
seu carter de "poesia do Ser", de parente espiritual do romantismo
alemo e, por conseguinte, do esteticismo Novalis (de que o outro
crtico suo, Albert Bguin, j tentara a valorizao no famoso L'Ame
Romantique et le Rve), o que se tem sublinhado mais recentemente o
seu aspecto de poesia da ao. Yves Duplessis3 e Gaetan Picon4
concordam em acentu-la. Vista desse ngulo, a escola de Breton
permanece como neo-romantismo - mas agora a semelhana j com o
romantismo revolucionrio dos franceses, com a poesia social de
Victor Hugo. A poesia dos "videntes" se faz lirismo do gesto e da
praxis; como o prprio Murilo nos diz no poema A Marcha da Histria,
"se fundem verbo e ao". Porque se o romantismo, na definio de Hugo,
o liberalismo na literatura, igualmente a literatura do liberalismo
e para a liberdade. Ao assumir essa herana, o surrealismo se
destina a uma luta social, concretizando e materializando a
esperana do acesso ao Ser. Um dos livros de Murilo se intitula, a
propsito, Poesia Liberdade; e as duas palavras no esto justapostas
por acaso: para o surrealista, elas se definem uma outra, ambas
subentendendo a mesma tarefa e o mesmo ato essencial. Gaetan Picon
acerta ao considerar o surrealismo dentro de uma vertente em que a
literatura manifesta a ambio de ser algo mais do que puramente
literria; a
3 YVES DUPLESSIS, Le Surralisme, coleo "Que sais-je?", Presses
Universitaires de
France. 4 GAETAN PICON, Panorama de la Nouvelle Littrature
Franaise, 2.a ed., 1960.
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ambio de transformar o mundo que confere ao movimento a sua
designao de "otimismo romntico" e a sua qualidade de entusiasmo,
suficientes para separ-lo, irremediavelmente, da literatura da
angstia, cuja voga o sucedeu. Portanto, se Murilo efetivamente um
surre alista, no pode ser ao mesmo tempo um evasionista, um
no-meamolista, um fugitivo. Tambm ele dever revelar, em plena obra,
o impulso revolucionrio e crtico que, germinando desde o incio na
aventura de Breton e de seus companheiros, veio a cristalizar-se no
Segundo Manifesto, de 1930, - quando surrealismo e dialtica, o
imaginrio e a praxis, firmaram uma aliana perfeitamente lgica e
previsvel. Murilo no , de fato, um poeta de evaso. Visionrio, nem
por isso deixa de enfrentar o mundo. Seu onirismo apenas uma tcnica
de participao. A alucinao, uma forma exaltada de engajamento. Mrio
de Andrade, imbudo de alguns preconceitos contra o intelecto muito
em moda no Brasil de 30, desentende o lirismo muriliano como
superao englobante do intelectual; mas o certo que esse lirismo no
rejeita as funes intelectuais. Por estarem integradas, elas no esto
menos presentes. So elas, no fundo, que fazem, da poesia de Murilo,
no apenas um grito, uma interjeio, uma indignao contra a misria do
sculo - mas, ainda, uma compreenso crtica de sua poca. Murilo no
menos lcido, menos crtico, por ser visionrio; pois a poesia
visionria pode ser uma modalidade de realismo e de crtica. Murilo
percebe o mundo atravs de suas perturbadoras vises, lente de
aumento para aprend-lo melhor. Visionrio-observador, capaz de
desenvolver toda uma estratgia de ateno, de alerta e de alarma; e
smente a poesia - nunca o poeta, a rigor - quem, na sua obra, entra
em pnico. Porm se a poesia entra em pnico, por se ter aberto ao
mundo, e por se ter agitado com ele. S o parnasianismo
pseudomoderno dos neobizantinos, dos puristas mestres do
desinteresse, poder preservar a poesia das fortes vibraes a que a
submete, como a uma antena viva, a vria e dura realidade
contempornea.
O espectro dos temas da poesia muriliana mostra a presena do
senso da realidade atravs de um respeito bsico pela
complexidade
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do humano. Renunciando pretenso enciclopdica, a abordar todos os
temas, o realismo se evidencia na penetrao com que escava seus
objetos. Assim, a sensualidade simultaneamente uma expresso do cio
brasileiro (Carto Postal), que faz do namoro uma preguia
domingueira (Arte de Desamar), ou a revelao catastrfica e
apocalptica de um irresistvel poder do feminino (Jandira); no amor,
palco de contradies, a Igreja do poeta convertido pode disputar
amada o domnio mstico-ertico de seu cantor, na disputa apaixonada
entre Ecclesia e Berenice (Ecclesia, A Usurpadora, Igreja Mulher);
mas o mesmo amor se reconcilia com a religio, envolvendo em piedade
a mulher arquetpica encarnada em Tu; no religioso Murilo, a
convivncia consciente com o pecado (O Impenitente) e o
reconhecimento doloroso da trgica incongruncia entre o Criador e a
Criao (O Filho Prdigo) admitem a seu lado a nostalgia purificante
de um Cristo aqutico e lunar, que cega, barrocamente, em virtude da
prpria luminosidade (Emas), da sua escurecedora irradiao divina,
penumbra rembrandtiana onde o fascnio da sombra se faz constante
adivinhao da luz. preciso compreender a religiosidade muriliana em
seu rosto ambivalente e em seu corao dilacerado de contrrios -
religiosidade em que o pecado desempenha um papel de tanto relevo,
e em que o catolicismo, concebido como "grandeza de uma luta" (Lcio
Cardoso), confere uma "intensidade indita" (Alceu Amoroso Lima)
dostoievskiana, ao conflito maior entre o bem e o mal - para
atribuir, com certeira justia, a condio de grande poeta religioso a
Murilo Mendes. Cristo dialtico, religioso moderno, muito mais
teilhardiano que tomista, Murilo extrai de uma crena dramtica uma
concepo de vida sob o signo marcante do devir. Para ele, a situao
dos homens a de seres "exaustos entre o no ser e o vir-a-ser", da
mesma forma que a morte, cristamente entendida como passagem vida
superlativa, merece dele o sagrado apelido: morte, grande fmea.
Essa fidelidade ao carter complexo e mltiplo da existncia no
poderia deixar de abrir-se ao social em sentido estrito. Passada a
fase humorstica da Histria do Brasil, competir poesia de guerra de
Murilo oferecer a prova da vigilncia do poeta sobre a realidade
imediata e
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convulsionada do universo. No menos que Drummond, Murilo exerceu
para ns o lirismo da denncia humanista da guerra, freqentem ente
alcanando o cerne social da desgraa. suficiente reler poemas como
Lamentao ou como Os Pobres para verificar com que profundidade o
poeta foi tocado pela guerra, e com que humanidade lhe reagiu.
Uma vez aceita a idia de que a imaginao surrealista faz valer,
tanto ou mais do que o realismo "stricto sensu", seus direitos
firme apreenso da realidade, que potica haver, como atitude
estilstica de base, na poesia de Murilo Mendes? O ncleo do seu
lirismo uma potica do visionrio. Talvez nenhum de seus poemas
possua melhor chave, para a compreenso dessa atitude, do que o
prprio poema de As Metamorfoses que a leva por ttulo: Eu vi os
anjos nas cidades claras, Nas brancas praas do pas do sol. Eu vi os
anjos no meio-dia intenso, Na nuvem indecisa e na onda sensual.
meia-noite convoquei fantasmas, Corri igrejas de cidades mortas,
Esperei a dama de veludo negro, Esperei a sonmbula da viso da pera:
Na manh aberta que vi os fantasmas Arrastando espadas nos lajedos
frios: Ao microfone eles soltavam pragas. Vi o carrasco do faminto,
do rfo, Deslizando, soberbo, na; carruagem. O que renegou a Deus na
maldio, Vi o esprito mau solto nas ruas, Cortando os ares com seu
gldio em sangue.
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Vi o recm-nascido asfixiado Por seus irmos, luz crua do sol. Vi
atirarem ao mar sacos de trigo E no cais um homem a morrer de
inanio. luz do dia foi que eu vi fantasmas, Nas vastas praas do pas
do amor, E tambm anjos no meio-dia intenso, Que me consolam da viso
do mal.
O Visionrio, como tantos poemas de Murilo, apresenta uma variao
rtmica muito grande. Ainda assim, em vinte e quatro versos, onze so
decasslabos sficos (acentuados na 4.a, 8.a e 1O.a). Essa dominante
rtmica abre e fecha o poema; ela quem introduz, severamente
marcada, a imagem de um elemento visionrio meridiano: Eu vi os
anjos nas cidades claras, Nas brancas praas do pas do sol. (Praas,
no caso, indica clareza pelo adjetivo e pelo timbre). Em contraste
com a primeira estrofe, a segunda estabelece uma tentativa de
fantasia noturna, romntica, invocao do visionrio fnebre e
vampiresco contra a viso do meio-dia, meridianamente clara. A
imagem e a msica (fantasmas, espadas, pragas) da terceira estrofe
nos informam do fracasso dessa tentativa. Inalteravelmente, o
visionrio Murilo Mendes se afirma como diurno, solar, de alvura
aberta e luminosidade total. Porm na prpria estrofe I1I, a vitria
da viso diurna sobre a fantasia lunar se identifica com a denncia
da crise, da misria e do conflito modernos. A acusao se estende at
a penltima quadra; e na ltima, ao lado dos perversos fantasmas
solares, ressurgem os anjos no menos claros do comeo, viso
consoladora e promissora. Tanto o dinamismo latente (a dialtica
potencial) dessa polarizao, quanto o carter meridianssimo do
visionrio,
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distinguem a imaginao muriliana do lirismo romntico novalisiano
ou nervaliano, lirismo da noite, da morte e da fuga querida para o
nada. Ao contrrio do esteticismo romntico, o visionrio de Murilo
agarra-se a um mundo concreto, atento ao moderno (microfone, imagem
de hitleriana contemporaneidade) e matria (a nuvem indecisa, a onda
sensual). No escapismo - uma forma imaginria de realismo.
Depois que a crtica moderna descobriu, pela experincia de
Auschwitz e Dachau, o realismo premonitrio de Kafka, depois que foi
levada a revelar o visionrio como origem mal disfarada de muito
realista tido por exemplar - Hoffmann como fonte de Balzac - j no
parece haver dvida sobre a legitimidade do imaginrio enquanto
realismo. Resta apenas distinguir entre as modalidades realistas do
prprio imaginrio. Por que, com efeito, entre a linha de Kafka e a
potica muriliana existem tantas diferenas? Admitindo o fato de que
no advm do maior ou menor valor esttico nem da condio de poeta, por
oposio do prosador, qual o ncleo estilstico responsvel por essa
divergncia de caminhos, dentro da esfera geral do realismo
imaginrio?
Talvez seja preciso fundar uma distino entre duas vias do
realismo imaginrio: entre a literatura do fantstico, e a literatura
do visionrio. Do fantstico foi Sartre5 quem nos deu uma penetrante
fenomenologia. A descrio do mundo fantstico descobre-lhe as leis, a
primeira das quais a que exige, pata a sua realizao, que esse mundo
seja completo. Se no obedecer a esse carter de universo completo -
universo totalmente fantstico -, nenhum extraordinrio conseguir
assumir a condio fantstica. Sartre exemplifica com o caso das
fbulas, nas quais o inslito, dado entre tantas outras coisas
no-inslitas, no chega nunca a virar fantstico. Na fbula, um cavalo
pe-se a falar: um acontecimento extraordinrio. Mas ele fala em meio
a rvores, a rios, a seres e coisas que permanecem, da maneira
mais
5 JEAN-PAUL SARTRE, "Aminadab" ou du fantastique considr comme
un langage, in
Situations, I, 1947. Da considerao da narrativa de Maurice
Blanchot, Sartre extrai uma teoria do fantstico como conscincia e
viso-do-mundo.
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natural, obedecendo s leis do mundo em sua absoluta normalidade.
Por causa disso, percebe-se logo que o cavalo to somente mscara;
compreende-se que um homem disfarado - e reconduz-se o pseudo
fantstico ao sistema das leis do mundo. A fbula finge o fantstico;
no o cria verdadeiramente. Se o cavalo falante fosse realmente
fantstico, o universo inteiro tambm o seria, e cada coisa, cada ser
violaria, tanto quanto o cavalo, a legalidade da natureza. O
fantstico s se realiza quando o extraordinrio abrange um universo
completo. Porm desse universo, que rompe a norma do natural, qual a
lei suprema, a lei que autoriza a inverso das regras ordinrias? a
revolta dos meios contra os fins, responde Sartre. No mundo do
fantstico, os objetos-meios se esquivam ao nosso uso, rebelam-se
contra os fins que lhes so normalmente assinalados. No romance de
que Sartre partiu para teorizar sobre o fantstico, um personagem
tem um encontro no primeiro andar de um caf. Chegado a este, ele v
perfeitamente que o primeiro andar ,existe, v as mesas dos
fregueses l em cima - s no v, por mais que a procure, a escada, ou
elevador, que possa faz-lo chegar l. A escada um meio rebelde, cuja
rebelio adquire a forma da pura ausncia. A impotncia do heri diante
desse meio-fantasma nada tem a ver, observa Sartre, com a impotncia
humana diante do absurdo. Na literatura do absurdo (em seu modelo
perfeito, Ltranger de Camus), em lugar da rebelio dos meios,
acontece a pura ausncia de fim, de qualquer fim. "Les hommes aussi
scretent de l'inhumain", diz Camus em Le Mythe de Sisyphe, e o
inumano segregado a conscincia passiva, mecnica, que renunciou a
elaborar significaes e portanto a designar finalidades. O homem que
constata o absurdo renuncia a todos os projetos; no reconhece mais
nenhuma finalidade. O heri do mundo fantstico, entretanto, continua
perseguindo os fins num universo que a insolncia dos meios torna
hostil, torna cruel, torna indecifrvel - mas no absurdo. O mesmo
Sartre separa Kafka de Camus, sob a alegao de que, no primeiro, o
mundo no sem sentido; , isso sim, um mundo de sentido
angustiantemente oculto, universo de cifras intraduzveis. A cifra
indecifrvel, o texto ilegvel, so manifestaes da rebeldia dos
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meios naquilo que o meio por excelncia: a mensagem. As
mensagens, objeto cuja existncia se resume em comunicar, em
consumir-se como ponte, como contato entre plos, emissor e
receptor, esto sempre descumprindo sua funo, no plano do fantstico.
Nunca transmitem normalmente: ora desaparecem, ora transmitem em
falso, ora transmitem pessoa errada. Texto rebelde, as mensagens,
comunicao essencial entre os homens, correspondem no fantstico
sociedade burocrata, onde os prprios homens, num universo de meios
rebeldes, se fazem meios. Os burocratas de Kafka so simples
utenslios. Como utenslios, so os representantes de um mundo
invertido, onde o sujeito de todas as finalidades, o homem,
degrada-se em instrumento puro, enquanto os instrumentos recusam-se
a servir.
Se o fantstico um universo completo, vale dizer, onde tudo
homogeneamente extraordinrio, no plano do visionrio o mundo ,
diversamente, um universo misto. Misto ou hbrido, no universo
visionrio convivem o inslito e o natural o maravilhoso e o vulgar.
O plano do visionrio eminentemente transitivo: nele, o espantoso
irrompe e desaparece com a mesma naturalidade. Seu ingresso
abrupto, e sua no menos brusca reconverso ao natural, so fenmenos
freqentes numa esfera em permanente processo. Em oposio ao esttico
do fantstico, o mundo visionrio vivamente dinmico. Heterogneo, a se
chocam vrios elementos contraditrios, num procedimento dialtico
jamais reduzido imobilidade. Nenhuma situao fixa; nenhuma se exime
de ser envolvida pelo processo. Assim, se os meios s vezes se
rebelam, se os utenslios ameaam trair sua funo, nunca se pode
dizer, do homem desse universo, que tenha perdido sem apelao a
liberdade de sua conscincia. O habitante do visionrio no , como o
do fantstico, um burocrata medular. Ele perde-e-recupera,
perde-mas-recupera o seu status humano de detentor supremo de
finalidades. Tampouco habita um mundo sem significao (absurdo), ou
de significao irremediavelmente oculta (fantstico). Por mais que
vacile, por mais que se contradiga, atribui sempre ao mundo um
sentido inteligvel, de leitura parcial e no raro difcil, mas nunca
impossvel. A concepo do mundo do visionrio ,
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portanto, aberta ao entendimento de uma lgica do acontecer, de
uma razo histrica e de uma ordem temporal - embora no seja esta
simplesmente linear.
Se possvel estabelecer uma distino entre as tcnicas de
representao derivadas dessa diferena de viso global, dever ser dito
que a literatura do fantstico se funda no uso de um estilo
alegrico, ao passo que a literatura do visionrio se encarna num
estilo de natureza preferencialmente simblica. O uso potico da
alegoria foi definido, em grande profundidade, no ensaio de Walter
Benjamim sobre o drama barroco alemo (publicado em 1928; redigido,
como tese universitria, alguns anos antes). Suas concluses foram em
parte aproveitadas por Lukcs num ensaio do livro Die
Gegenwartsbedeutung des kritischen Realismus.6 Benjamim, embora
oficialmente estudando apenas a tragdia barroca, na realidade
desenvolveu uma teoria do estilo alegrico como fundamento da
literatura de vanguarda contempornea, com especial aplicao a Kafka,
autor a quem dedicou outro de seus ensaios. Para ele, a alegoria
fixa o sentido da temporalidade como certeza da morte e da
decadncia. No estilo alegrico, a significao de todo fluir est
ligada aos motivos do pessimismo e revelao do vazio da existncia.
"As alegorias so no reino das idias o que as runas so no reino das
coisas". No estilo alegrico, toda a significao do real se encontra
na caducidade, na "paixo do mundo" em que se transforma a Histria
como pura vocao para o nada; e por isso mesmo, toda singularidade,
toda coisa, pessoa ou relao pode vir a representar qualquer coisa:
pois o mundo profano, mundo sem sentido, embaralha as significaes
em virtude da sua completa privao de valores. As relaes da
literatura do fantstico com o estilo alegrico so patentes. Benjamim
cita as palavras do prprio Kafka: "A mais profunda das experincias
vividas a de um mundo rigorosamente sem sentido, queexc1ui toda"
esperana, e que o nosso mundo, o mundo do homem, do homem 6 Este
ensaio de abertura, para o leitor que, como eu, ainda no saiba
imperdoavelmente o alemo, pode ser lido no n 27 (julho-agosto de
1957) da revista "Nuovi Argomenti", sob o ttulo La Vision du Monde
Sousjacente l'Avant-garde Littraire.
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burgus contemporneo". Kafka concebe o universo como um
sem-sentido. Benjamim insiste numa interpretao antibrodiana de
Kafka. Segundo sua linha de anlise, Kafka um ateu, no do tipo
progressista, que afasta Deus do mundo para liberar este ltimo do
controle transcendente, mas sim - como nota Lukcs - do tipo
niilista que imagina um mundo abandonado por Deus para figur-lo
inteiramente despojado de significao, e sem nenhum vislumbre
consolador. O Deus de Kafka, os juzes supremos de O Processo, a
administrao de O Castelo, so "a transcendncia das alegorias
kafkianas: o nada" (Lukcs). Esse nada transcendente o fundamento
nico de todo existente; em conseqncia, mesmo sendo um observador,
um narrador de extraordinria vividez no detalhe, na mincia de cada
cena, Kafka no nega com isso a constatao da ausncia de sentido
deste mundo, a que um transcendente aniquilado e aniquilador
retirou para sempre qualquer significao. Tudo neste nosso mundo ,
para Kafka, fantasmagrico. A realidade concreta no passa de
espectro. Eis a razo porque mesmo a cena mais banal desperta tanta
ateno de Kafka - precisamente por seu carter de pesadelo, de sonho
absurdo, de histria do outro mundo, em suma: de episdio fantstico.
A transcendncia, sendo nada, aniquila o sentido deste mundo e dos
projetos humanos. A conscincia alegrica, que se representa esse
universo, prisioneira e passiva, conscincia congelada e melanclica,
privada de iniciativa e de liberdade. O surgimento do "mundo
invertido" o sintoma corrente da subtrao da finalidade (subtrao do
projeto humano) a que a transcendncia submeteu a terra. A
conscincia antropomrfica da angstia v isso como "rebelio dos
meios". O estilo fantstico ancora nessa viso, j descrita por
Sartre. A literatura do absurdo ultrapassa a conscincia do mundo
sem sentido em sua forma antropolgica, de modo que, em lugar de
representar uma rebelio dos utenslios, simplesmente se representa
esse universo na prpria razo da aparente revolta dos meios, ou
seja: na sua absoluta carncia de sentido. Mas, a partir da
apreenso, pela conscincia, do sintoma da rebelio dos utenslios e da
metamorfose do homem sem projeto em simples instrumento, tudo
aparece como
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inslito, ainda o mais banal e mais vulgar, porque o universo em
que essa "rebelio" se d, o mundo em que irrompe essa inverso da
legalidade natural, um mundo fechado, completo, homogeneamente
fantstico. Porque tudo parece estranho, cada cena e cada
singularidade provoca intensamente a ateno do narrador. A vividez
narrativa de Kafka - a lucidez minuciosa de seu estilo - no
portanto casual. Em relao alegoria, base da literatura do
fantstico, esse amor pelo detalhe no uma contingncia: tambm ele faz
parte da essncia da alegoria, e igualmente encontra razo no prprio
ncleo do fantstico.
A tcnica da representao simblica j pertence a uma outra viso. O
smbolo , goetheanamente, o universal no concreto. Em termos
hegelianos e lukacsianos, confunde-se com a manifestao no estilo da
categoria esttica da partlcularidade, que o ponto nodal do processo
dialtico e da passagem do singular ao universal (e vice-versa).
Particular, tpico ou simblico ser o personagem (ou a imagem lrica)
que, sem deixar de oferecer caractersticas concretas e presena
material, representa a concentrao, num exemplo, das tendncias
gerais do dinamismo histrico e da temporalidade objetiva. E porque
essas tendncias raramente esto isentas de contradio, o
tpico-simblico no sustenta a figurao de um mundo homogneo, mas sim
de um universo heterogneo, campo de contrrios, rea mista, terreno
onde coexistem diversos plos opostos em contnuo movimento e
variadas posies.
A distino entre uma literatura do fantstico e uma literatura do
visionrio est potencialmente confirmada pelos modernos estudos a
que, sob a influncia do processo de reviso do maneirismo como
estilo cultural, a crtica moderna submeteu o conceito de literatura
(e de arte) do grotesco. Exponencial, entre esses estudos, o livro
de Wolfgang Kayser, Das Groteske, de 1957.7 Kayser props a arte
grotesca como revelao de um mundo sem sentido, e da
7 Edio argentina em 1964. Entre ns, o tema do grotesco foi
tratado por Anatol
Rosenfeld em artigo breve porm altamente informativo: Sobre o
Grotesco, includo em Doze Estudos, So Paulo, 1959.
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desorientao humana frente a ele. As deformaes grotescas
indicariam a insignificao do mundo. Por isso mesmo, as distores
que, por mais aberrrantes, ainda possuam certa orientao satrica,
derivada do desejo de censurar os desvios de conduta e os vcios da
ao do homem, no seriam verdadeiramente grotescas. O universo
infernal de Bosch, por exemplo - que encontra sentido numa
interpretao crist do ser - no configura o grotesco autntico,
exatamente porque Bosch, por mais que pinte aberraes, ainda senhor
de uma compreenso e de uma inteligncia do mundo; ao passo que o
universo de Brueghel, j liberado de coordenadas explicativas,
denunciaria, no o infernal (que supe o celestial), mas sim o puro
sinistro (que s supe o absurdo). Em nossos termos, Bosch, pintor do
pecado, seria um visionrio; quanto a Brueghel, deformador solitrio,
intrprete sem chave conhecida da existncia, seria j um fantstico.
Bosch, sobrevivncia medieval, ainda detm a segurana da viso crist;
Brueghel, artista problemtico do estilo problemtico que foi o
maneirismo, j no conserva nem mesmo o refgio de uma tal certeza.
Aproveitando o exame de Kayser, possvel distinguir de forma
equivalente entre Hoffmann e Kafka, ou seja, entre as alucinaes do
romantismo e as fantasmagorias da literatura moderna.8
Seria fcil demonstrar que essa fronteira se d tambm na arte
contempornea. Depois do cortante estudo de Sartre sobre Wols (em
Situations IV, 1964, originalmente prefcio a um volume de desenhos
e aquarelas do pintor), seria tranqilo repetir, entre Wols e Klee,
o mesmo jogo diferenciador que se armou entre Brueghel9 e Bosch.
Com efeito: para Paul Klee, para alm da aparncia sensvel dos
objetos, o ato de criao artstica estabelece um comrcio vivo entre
pintor e modelo, de modo que um revela o outro, ambos participantes
de uma mesma totalidade dinmica. "Le Voyant est chose vue, la
Voyance s'enracine dans la visibilit", diz Sartre: o pintor supera
a aparncia sensvel imediata percebendo uma unio de essncia entre
ele prprio 8 v., neste mesmo volume, o ensaio Coppelius ou a
vontade alienada.
9 Sobre outro maneirista de gnio, Tintoretto, o mesmo Sartre
publicou, no mesmo
volume, um estudo verdadeiramente superior, pela riqueza
dialtica da interpretao. Desde logo, dos textos mais importantes
para a compreenso do maneirismo.
AlineRealce
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e seu modelo; e, simultaneamente, o mundo exterior lhe fornece
essa viso, em que objeto e sujeito devolvem um ao outro o seu
reflexo. As formas abstratas so para Klee o resultado de uma
contnua observao da natureza; mas a grande revelao do cosmos ao
artista a de que todos os seres podem servir de smbolo de um
processo, de signo do movimento do universo, que o pintor descobre
em si e prolonga por sua obra. Desse ngulo, o ser se define pela
praxis criadora. Parte de um tal todo, sua participao
funcionalmente ativada pelo artista. A arte de Klee, agudamente
denominada "realismo operatrio", uma disciplina onde se impe a
considerao da funo dinmica sobre a da forma acabada, onde "se
aprende a reconhecer as formas subjacentes, a pr-histria do visvel"
(Jean-Louis Perrier). Para Klee, o mundo um perptuo a fazer: viso
crist e fustica da realidade. A seu lado, Wols um nirvanista
oriental, um fugitivo de toda ao. Seus preceitos so a apologia da
passividade: "a cada instante, em cada coisa, existe a Eternidade";
"quando se v, no preciso nos encarniarmos sobre o que se poderia
fazer com o que se v, mas apenas ver o que ". O mundo de Wols no
uma totalidade que o artista contribui para unificar, uma unidade
incriada, "feita" de uma vez por todas. Klee age sobre o ser; Wols
padece os objetos. A teoria do conhecimento de Wols, de colorido
tico-oriental, precisamente a atitude epistemolgica de
Schopenhauer, de quem Cassirer disse genialmente que foi a primeira
a substituir a apreenso do real pelo padecimento do mundo. O
indivduo, o homem, a ordem reconhecida das coisas, tudo perde com
Wols a sua identidade originria; tudo se dana e se aniquila. O
visionrio Klee pinta o universo do mltiplo e dinmico; o fantstico
Wols, tornando todo objeto incaracterstico, indefine tudo para a
submerso final no Uno esttico, imovelmente existindo sobre a nossa
abdicao do gesto, do querer e do fazer. A diferena entre ambos sela
a sorte do abstracionismo contemporneo, que passou de fustico a
asctico, do construtivismo renncia "lrica".
Voltemos agora - e no sem tempo - ao nosso visionrio titular,
Murilo Mendes. Na construo do poema muriliano, o processo
AlineRealce
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AlineRealce
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simblico, trao do visionrio, conhece impulsos da violncia mais
inesperada. A "anulao de perspectivas psquicas" (Mrio de Andrade)
fere pelo modo abrupto da justaposio de imagens, sem o
desenvolvimento linear de um - digamos - Drummond, em quem, apesar
de marchas e contramarchas, o discursivo10 tende a impor sua lei. O
predomnio da imagem sobre a mensagem e do plstico sobre o
discursivo, a que aludiu Joo Cabral de Mello Neto, realmente
caracterstico da arte muriliana, muito embora a sua evoluo tenha
talvez atenuado essa tendncia (depois do "cultismo" da Contemplao
de Ouro Preto, o conceitismo se fortalece em Sonetos Brancos,
Parbolas, Siciliana e Tempo Espanhol, os ltimos livros do poeta). s
vezes, nessa obra desigual, surpreende-se um certo descuido pelo
artesanato, especialmente no ritmo, por que Mrio, no Empalhador de
Passarinho, responsabilizava o engano, de tradio romntica, que
induz "inflao do artista e esquecimento da obra". Inflao bem dito:
pois, no caso, o que acontece um excesso de inspirao sobre os meios
de comunicao potica, correspondente estrutural da demasia dos meios
de pagamento sobre os bens disponveis. O pecado foi, alis, comum a
todo o surrealismo. No entanto, sirva de resgate o fato de que, ao
passo que difcil citar, dentro de um estilo surrealista "puro",
mais de algumas bem poucas obras, em Murilo a realizao potica se
oferece numerosa e frtil, atravs de dezena de livros, ao longo de
um tempo considervel. Ficou para ns a glria de ter nele no s um
surre alista, como um surre alista realizado como tal. E o xito
artstico dessa poesia foi to notvel, que at se pode extrair-lhe um
corretivo a certos vcios literrios dos seus contemporneos. Talvez o
mais evidente antdoto seja o do prprio tom do lirismo muriliano. Em
Murilo, o mundo srio d origem a uma linguagem freqentemente solene;
mas, na sua solenidade sem forada imponncia, no seu grandloquo
sem
10
Emprego a palavra sem nenhum sentido pejorativo; estou hoje
convencido da
desvantagem de menosprezar o discurso como ingrediente potico. A
trama sinttico-lgica da frase tem lugar assegurado na lrica de tipo
ocidental, hoje como sempre. Se discurso sinnimo dessa estrutura de
pensamento e de frase, ento o discursivo no pode ser confundido com
o estilo derramado, frouxo ou falto de concentrao verdadeiramente
potica.
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bombasticidade, essa linguagem nos faz ver como mera caricatura
do solene a empostao lrica do profetismo neo-romntico de um, por
exemplo, Augusto Frederico Schmidt. A diferena, alis, no pra por a.
O que Murilo tem de sacro, tem de plstico; mas Schmidt, ao
contrrio, substitui ao plstico, no a expresso do fluido, do
verdadeiramente lquido, mas sim a do pura e simplesmente agudo, o
que bem diverso e bem condenvel. Entre a ascendncia romntica do
surrealista Murilo e o tradicionalismo antimodernista do
neo-romntico Schmidt, a distncia, tanto em atitude quanto em
resultado, a que existe entre a tradio autntica - que se renova
pela incorporao aberta do moderno - e a simples reao cultural,
desesperada ante a vitria das novas formas, e tristemente absorvida
pelo esforo intil de conden-las, em nome de uma descabida e lgubre
"seriedade".
A seguinte anlise de um poema de Murilo Mendes A Inicial, do
livro O Vu do Tempo, pertencente ao volume As Metamorfoses - tem
por objetivo insinuar a pesquisa sistemtica (e no em forma de notas
como estas) dos recursos de estilo de uma potica do visionrio. A
necessidade de fixar este ltimo conceito no plano da literatura do
imaginrio impediu-nos um exame mais minucioso da obra muriliana.
Mas o espao dedicado ao estabelecimento da distino
fantstico/visionrio , em si mesmo, tributo grandeza do poeta; pois
smente os autores verdadeiramente relevantes incitam a crtica a
tentar, alm da compreenso especfica da sua obra, a clarificao de
categorias estticas em plena generalidade. Quando o interesse
crtico se eleva ao nvel de reflexo esttica, porque o peso de uma
obra chegou a pr em questo os prprios fundamentos do gesto artstico
- e isso seguramente um sinal de grandeza.
A Inicial, como a maioria dos poemas de Murilo, uma breve pea
lrica: Os sons transportam o sino. Abro a gaiola do cu,
-
Dei a vida quela nuvem. As guas me bebem. As criaes orgnicas Que
eu levantei do caos Sobem comigo Sem o suporte da mquina, Deixam
este exlio composto De gua, terra, fogo e ar. A inicial da minha
amada Surge na blusa do vento. Refiz pensamentos, galeras...
Enquanto a tarde pousava O candelabro aos meus ps. Seus quinze
versos maravilham pela audcia das figuras, aspectos de um universo
invertido. brusquido das perturbaes da natureza corresponde o modo
fragmentrio com que se sucedem as "estrofes", cuja ilegalidade
mtrica total. Ao entrarmos no poema, deparamos com um jogo complexo
de inverses: os sons transportam o sino. De acordo com a considerao
"natural" das coisas, o sino, ao badalar, produz sons. O sino ,
portanto, a causa do efeito sons. O primeiro tempo metonmico do
verso , por conseguinte, aquele em que categoria de causa se
substitui a de continente: como se o sino, produtor de sons,
passasse a transportador (continente) deles. um caso "hertico" de
metonmia: pois no se substitui um plo por outro numa mesma relao
(por exemplo, a causa pelo efeito, ou vice-versa, na relao de
causalidade), e sim uma relao por outra (a de causa/efeito pela de
continente/contedo). Mas voltemos ao verso: no o sino que
transporta os sons, o contrrio - seria uma nova metonmia, desta vez
"ortodoxa" (contedo por continente), se a frase no fosse explcita.
No so os sons que, no lugar do sino, transportam
AlineRealce
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uma terceira coisa: eles transportam o prprio sino. Em vez de
metonmia (onde um termo sempre substitui outro, que fica, como na
metfora, implcito), temos inverso pura e simples. No que uma coisa
se substitua outra: as coisas se substituem em suas funes. Estamos
diante de um "impossvel"; diante de um topos (e no de um tropo)
chamado adynaton, pelo qual se exprime o "mundo s avessas", a ordem
invertida, o mudado funcionamento da natureza. Os versos 2 e 3
oferecem uma inverso da prosopopia em benefcio da afirmao da
onipotncia do poeta. Em vez de emprestar vida ao inanimado, o poeta
acentua seu carter inerte, mesmo ao declarar que deu "a vida quela
nuvem". O aquela tem valor comparativo: uma s nuvem foi animada, as
outras continuaram mortas. O adynaton retoma no quarto verso: as
guas me bebem. Mas a verdadeira significao desses "impossibilia" se
manifesta na prxima estrofe; seu fundamento , como na cano XVI de
Arnaut Daniel ou no soneto 177 de Petrarca, baseado no provenal, o
tema do poeta todo-poderoso.11 A exaltao dos poderes do poeta
ressalta dos versos 5, 6 e 7: a arte constri o orgnico a partir de
um primitivo caos. Porm os trs versos seguintes introduzem outro
motivo, o do "exlio do qualitativo". O poeta arrebanha o orgnico
para deixar este mundo. O que naturalmente qualidade, naturalmente
organicidade, abandona uma terra madrasta. A retirada do
qualitativo enfatizada pela aluso a concepes no-quantitativas (i.
e., anteriores viso da fsica moderna) do Universo: referncia teoria
dos quatro elementos. Por meio desse paradoxo (o qualitativo banido
de sua terra natal), dramatiza-se a sorte das criaes que prescindem
do suporte da mquina, ou seja, do domnio do mecnico-quantitativo.
Agora podemos reconhecer no problema da qualidade e da ameaa ao
orgnico a motivao do vigor com que o poeta afirma sua onipotncia.
Seus poderes de criao se opem ao mundo mecnico; rebelde, ele
preserva o dom da vida, que concede a uma natureza desanimada.
Assim, a blusa do vento corresponde gaiola do cu: a natureza
humanizada, mas antes domstica do que
11
ver, sobre o topos do mundo s avessas, a nota 5 ao ensaio Uma
Cano de
Cardozo, neste mesmo volume.
AlineRealce
AlineRealce
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viva, porque s viver (verso 3) quando o poeta quiser. O verso 13
uma felicssima ocorrncia de metfora por contigidade, por
imediatismo associativo, de rara beleza. Finalmente, nas duas
linhas finais, o poeta se v servido pela natureza, e por ela
reconhecido como criador. A imagem da hora crepuscular, que atribui
toda luz ao poeta, por meio da entrega, no de nenhuma lmpada fsica,
mas de um objeto humano, tem toda a fora de uma consagrao. O poeta
onipotente, senhor do amor e da fantasia, se entroniza como
soberano da criao. O pequeno poema cheio de metamorfoses repete,
desse modo, a vocao primeira da lrica de Murilo Mendes, que a de
assumir, pela via do visionrio, o sentido da plena
transformabilidade do real. Pois a mensagem sinttica de Murilo
esta: a de que a significao do mundo reside essencialmente em seu
dinamismo, e de que esse dinamismo, esse movimento, consiste em
nosso poder de alter-lo, ao arbtrio de nossa vontade criadora.
Santa Teresa, setembro-novembro de 1964.
(Fonte: Razo do poema; p. 51-68)
AlineRealce
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