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MUNDO Geografia e Política Internacional ANO 7 N º 6 OUTUBRO 1999 Tiragem: 38.000 exemplares D EZ ANOS SEM O M URO DE B ERLIM E mais ... Editorial – Aí vêm os vestibulares, essa porta estreita para as universidades e a vida profissional. Eles são um ponto final e um novo começo. Pág. 3 Há 70 anos, o crash da Bolsa de Nova Iorque encerrava brutalmente uma década gloriosa. De lá para cá, a economia mundial mudou. Mas a causas que o deflagraram continuam entre nós. Pág. 3 Na Venezuela, uma Assembléia Nacional Constituinte declara-se soberana e decreta a submissão do Legislativo e do Judiciário. Está em marcha a “revolução pacífica” de Hugo Chavez. Pág. 9 TEXTO & CULTURA Que fazer? O ano de 1989 foi um desses, raros, nos quais a história se acelera e um turbilhão de novidades desmancha tudo o que parecia sólido. Em poucos meses, os regimes comunistas do leste europeu desabaram, um a um, tragados pela revolução popular que já foi comparada, adequadamente, à “primavera dos povos” de 1848. O dia 9 de novembro de 1989, quando um comunicado confuso do governo da República Democrá- tica Alemã anunciou a abertura dos postos de controle de fronteira em Berlim, foi o auge do “ano dos mila- gres”. Com o Muro, desabava a Europa de Yalta e Potsdam, edificada por Stalin, Roosevelt e Churchill em 1945. José Arbex Jr., editor-geral de Mundo e Texto&Cultura, estava em Berlim no dia 9 de novembro de 1989, e conta como tudo aconteceu, na seção Diário de Viagem. Há dez anos, começou o pós-Guerra Fria. Nesse intervalo, brilharam e desvaneceram-se as esperan- ças de uma Europa livre de linhas de confrontação, na qual britânicos, franceses, alemães e russos pudessem compartilhar um mesmo espaço de cooperação política e econômica. Um ciclo paralelo de expectativa e frustração com as promessas da globalização percorreu uma trajetória mais abrangente, ritmando a vida de latino-americanos e asiáticos. O desenho do sistema internacional do novo século continua a ser uma incógnita. A única profecia segura é a que garante o fracasso, em curto prazo, de todas as profecias. O importante consiste em fazer as perguntas certas, não tentar respondê-las. Que tipo de cenário europeu está sendo montado pela expansão da OTAN, enquanto se consolida uma orientação nacionalista na Rússia? Qual será o lugar da China pós- socialista na Ásia e na Bacia do Pacífico? Quais serão os limites para a hegemonia dos Estados Unidos no mundo da globalização? Págs. 4 a 8 O desafio tecnológico Parece “louquinho”, pronuncia-se “lóc in”. “Lock- in”, em inglês, significa prender, trancar, mas no sentido de estar atrelado a um sistema tecnológico. Entenda esse novo conceito, decisivo para quem vai escolher uma profissão. E leia as dicas para enfrentar um desafio que é mui- to mais sério que o tão falado “bug” do milênio. Uraguay, Pombal e o mito da Pátria págs. 10 e 11 A comemoração dos 500 anos do Brasil estimula o debate sobre nossa história colonial e a identidade nacional brasileira. 4º CONCURSO NACIONAL DE REDAÇÃO DE MUNDO E T&C - 1999 Conheça os trabalhos vencedores pág.2 © Robert Walli/Sipa-Press-Keystone © Sipa-Press-Keystone
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Nov 30, 2018

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M U N D OGeografia e Política Internacional

ANO 7 • Nº 6 • OUTUBRO 1999Tiragem: 38.000 exemplares

DEZ ANOS SEM O MURO DE BERLIM

E mais ...■ Editorial – Aí vêm os vestibulares, essa porta estreita para as universidades e a vida profissional. Eles são um

ponto final e um novo começo. Pág. 3

■ Há 70 anos, o crash da Bolsa de Nova Iorque encerrava brutalmente uma década gloriosa. De lá para cá, aeconomia mundial mudou. Mas a causas que o deflagraram continuam entre nós. Pág. 3

■ Na Venezuela, uma Assembléia Nacional Constituinte declara-se soberana e decreta a submissão do Legislativo edo Judiciário. Está em marcha a “revolução pacífica” de Hugo Chavez. Pág. 9

TEXTO & CULTURA

Que fazer?

O ano de 1989 foi um desses, raros, nos quais a história se acelera e um turbilhão de novidadesdesmancha tudo o que parecia sólido. Em poucos meses, os regimes comunistas do leste europeu desabaram,um a um, tragados pela revolução popular que já foi comparada, adequadamente, à “primavera dos povos” de1848. O dia 9 de novembro de 1989, quando um comunicado confuso do governo da República Democrá-tica Alemã anunciou a abertura dos postos de controle de fronteira em Berlim, foi o auge do “ano dos mila-gres”. Com o Muro, desabava a Europa de Yalta e Potsdam, edificada por Stalin, Roosevelt e Churchill em1945. José Arbex Jr., editor-geral de Mundo e Texto&Cultura, estava em Berlim no dia 9 de novembro de1989, e conta como tudo aconteceu, na seção Diário de Viagem.

Há dez anos, começou o pós-Guerra Fria. Nesse intervalo, brilharam e desvaneceram-se as esperan-ças de uma Europa livre de linhas de confrontação, na qual britânicos, franceses, alemães e russos pudessemcompartilhar um mesmo espaço de cooperação política e econômica. Um ciclo paralelo de expectativa efrustração com as promessas da globalização percorreu uma trajetória mais abrangente, ritmando a vida delatino-americanos e asiáticos.

O desenho do sistema internacional do novo século continua a ser uma incógnita. A única profeciasegura é a que garante o fracasso, em curto prazo, de todas as profecias. O importante consiste em fazer asperguntas certas, não tentar respondê-las. Que tipo de cenário europeu está sendo montado pela expansão daOTAN, enquanto se consolida uma orientação nacionalista na Rússia? Qual será o lugar da China pós-socialista na Ásia e na Bacia do Pacífico? Quais serão os limites para a hegemonia dos Estados Unidos nomundo da globalização?

Págs. 4 a 8

O desafio tecnológico

Parece “louquinho”, pronuncia-se “lóc in”. “Lock-in”, em inglês, significa prender, trancar, mas no sentido deestar atrelado a um sistema tecnológico. Entenda esse novoconceito, decisivo para quem vai escolher uma profissão.

E leia as dicas para enfrentar um desafio que é mui-to mais sério que o tão falado “bug” do milênio.

Uraguay, Pombal e o mito da Pátria

págs. 10 e 11

A comemoração dos 500 anos do Brasil estimula odebate sobre nossa história coloniale a identidade nacional brasileira.

4º CONCURSO NACIONAL DE REDAÇÃO DE MUNDO E T&C - 1999

Conheça os trabalhos vencedores pág.2

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24º CONCURSO

NACIONAL DE REDAÇÃO DE MUNDO E T&C - 1999

Conheça agora os vencedores!

E X P E D I E N T E

Redação: Demétrio Magnoli (Mundo), Gilson Schwartz (Que Fa-zer?), Jayme Brener (Ulysses), José Arbex Jr. (Geral), Nelson BacicOlic (Cartografia), Paulo César de Carvalho (T&C),.Jornalista Responsável: José Arbex Jr. (MT 14.779)Revisão: Paulo César de CarvalhoDiretora Comercial: Vera Lúcia VieiraProjeto e editoração eletrônica: Wladimir SeniseEndereço: Rua Romeu Ferro, 501, São Paulo - SP.CEP 05591-000. Fone: (11) 2104069 - Fax: (11) 8701658E-mail: [email protected]:Rio Grande do Sul: Euler de Oliveira - Fone: (51) 245.1732Fax: (51) 343.4466 - Bahia: Alitônio Carlos Moreira -Fone: (71) 327.2088 - Fax: (71) 327.2240 - Mato Grossodo Sul: Gilda Cristina Falleiros - Fone e fax: (67) 382.9456- Pará: José Milton Costa Morais - Fone e fax: (91)222.6651, E-mail:[email protected].

Colaboradores: Newton Carlos, J. B. Natali, Nicolau Sevcenko,Rabino Henry I. Sobel, Hassan El Emleh (Fed. Palestina do Bra-sil) e as ONGs Anistia Internacional e Greenpeace.

Assinaturas: Por razões técnicas, não oferecemos assinaturas indi-viduais. Exemplares avulsos podem ser obtidos nos seguintes en-dereços, em SP:• Laboratório de Ensino e Material Didático (Lemad) - Prédio

do Depto. de Geografia e História - USP• Banca de jornais Paulista 900, à Av. Paulista, 900.

Homepage: http://www.uol.com.br/mundo

PANGEA - Edição e Comercializaçãode Material Didático LTDA.

O 4º Concurso de Redação foi um sucesso. Escolher as melhores entre as cerca de 120 redações, recebidas de quase 50escolas, foi uma árdua tarefa! Esse resultado atesta mais uma vez o elevado nível das escolas assinantes de Mundo. Reproduzimos,abaixo, o texto vencedor, de Danilo Assumpção, acompanhado de um comentário da profª Flora Christina Bender Garcia. Atodos os classificados, os nossos sinceros parabéns!

1º lugar: Danilo Assumpção – Colégio Notre Dame, Campinas (SP) – Profa. Laila Vanetti2º lugar: Rafael de Paiva Luciano – Colégio e Curso Progressão, Taubaté (SP)3º lugar: Sandy Leah de Lima – Colégio Notre Dame, Campinas (SP)4º lugar: Vinicius Corrêa da Conceição – Liceu Albert Sabin, Ribeirão Preto (SP)5º lugar: Walter Ferreira Tavares – Colégio Singular São Bernardo, São Bernardo do Campo (SP)6º lugar: Xênia Azarias Silva – Colégio Dom Cabral, Campo Belo (MG)7º lugar: Frederico Heimbeck de Faria e Souza – Colégio Dinâmico, Goiânia (GO)8º lugar: Paulo Henrique Faria Silva – Liceu Albert Sabin, Ribeirão Preto (SP)9º lugar: Polyana Peixoto Pinheiro – Instituto Presbiteriano de Educação, Goiânia (GO)10º lugar: Luciana Gonçalves Dias – Fundação Cave, Juiz de Fora (MG)

Comentário

É preciso mudar para que tudo continue igual. (Tomazo de Lampeduza)

Mudar o quê? Igual a quê? Usando a citação à guisa deepígrafe (embora no meio do primeiro parágrafo), Danilo en-controu seu mote. No Oitocentos italiano ou no Quinhentismobrasileiro, o problema do poder é o mesmo.

Tramando epígrafe e título, perguntamos: Caso se ti-vesse mudado o que não mudou, a identidade seria desvelada?Que véu não se tirou? Então esta terra ainda não cumpriu seuideal. Há-de? Tudo mudou mas nada mudou. Culpa de quem?

Muitos participantes do concurso culpam o portugu-ês. Padrasto, crêem. Não pai, como julgávamos nós, mais ve-lhos. Ingênuos. Conflito de geração ou descompasso histórico?O Brasil estaria muito melhor antes dos europeus, seria umparaíso tropical, socialista até: puro, como o Émile de Rousseau(1762).

Sabemos da nova linha do estudo de História, que se-gue o viés dos perdedores. Ao perder a terra, o índio teria per-dido a guerra. Mais do que um trocadilho – ainda não estamosem clima de José Simão – uma comprovação. Pelo menos deque é assim que nossos jovens estão aprendendo a história denossas raízes.

O nosso 1º lugar chamou a atenção, além de pela qua-lidade literária de seu texto, pelo seu equilíbrio em não procu-rar culpados. Simplesmente constata que nunca nos revoltamoscontra ninguém. Mito do brasileiro cordial ou falta de amor-próprio, como diz ele?

Não há expectativa ufanista nem amargor de cassandras.Somente madura lucidez: Tristes sinais de um povo que, depoisde quase 500 anos, não se encontrou ainda com sua alma.

IDENTIDADE OCULTA

Fruto de miscigenação, o Brasil é uma nação resultante da influência cultural de índios, negros e europeus, ao longo de 500anos de história. Entretanto, a posterior independência em relação à metrópole foi apenas uma transferência geográfica da sede doimpério – situação confirmada pelo italiano Tomazo de Lampeduza ao afirmar: É preciso mudar para que tudo continue igual. Osreflexos de um passado de dominação resultante da expansão colonialista são facilmente perceptíveis em tempos modernos.

Desde o início, não houve em nossa sociedade interesse na formação de uma verdadeira identidade nacional. Porisso, o caráter nacional se formou através da assimilação do passado colonial. Fomos um povo educado, como um rebanhoobediente, sob o chicote do poder absoluto. Povo flagelado por todas as extensões – nunca fomos, nem somos ainda umanação culta, livre e original. Somos um país pobre em sua generosidade, em que a distribuição do dinheiro é viciosa, e aposse das terras, anacrônica.

São improcedentes as teorias cujas idéias pressupõem que colonizadores de uma outra etnia trariam maior progressoà nação brasileira. Basta olhar para os países que tiveram esse tipo de exploração. A maioria amarga ainda hoje a pobreza, oatraso político e cultural, a falta de condições para competir. Veja-se o exemplo de muitos países de África, da AméricaCentral, da América Latina ou das pequenas nações sediadas em ilhas do Pacífico.

É uma tradição do brasileiro a involução histórica: no começo, exportávamos minério e recebíamos produtos acaba-dos, depois vendíamos produtos agrícolas e recebíamos bens industrializados ou capital, hoje exportamos sensibilidade eimportamos interesses de marketing.

Isso posto, percebe-se que nunca nos revoltamos contra ninguém, nunca tivemos uma ruptura histórica que permi-tisse a criação de nossa própria imagem, como aconteceu com a nação americana, que fundamentou o início de sua históriade país livre numa ruptura com o dominador, partindo em busca da construção de seus próprios caminhos.

Assim, esbarramos na falta de amor-próprio que dificultou a formação de uma autêntica consciência nacional etomamos emprestadas características alheias para com elas fantasiar nosso perfil. Tristes sinais de um povo que, depois dequase 500 anos, não se encontrou ainda com sua alma.

Índice Geral de Mundo – 99

Você encontra aqui o índice de tudo o que foi publicado noboletim Mundo – Geografia e Política Internacional em1999. Na primeira parte do índice, os assuntos são listadossegundo o número da edição em que aparecem. Nasegunda, que também contém os temas dessa edição deoutubro, o índice é organizado por região geopolítica Osnúmeros em negrito (fora dos parênteses) indicam onúmero da edição do boletim; dentro dos parênteses,indicam as páginas.

■ Número 1 – março 1999

• Finanças globalizadas provocam colapso do Plano Real• Panorama da crise financeira mundial• Liberalismo versus intervencionismo• Soberania e direitos humanos no processo contra

Pinochet• Editorial: Diretrizes Curriculares Nacionais do MEC• O Meio e o Homem: Enchentes e inundações• Diário de Viagem: Marrocos

■ Número 2 – abril 1999

• Desvalorização no Brasil ameaça o Mercosul• As moedas da globalização• O bombardeio ocidental na Iugoslávia e o “flanco sul”

da OTAN• Washington e a “guerra suja” na Colômbia• Os 25 anos da Revolução dos Cravos• Editorial: O futuro do Mercosul• O Meio e o Homem: Os climas e a história humana• Diário de Viagem: Timor Leste

■ Número 3 – maio 1999

• A guerra na Iugoslávia e a “nova ordem” mundial• Kosovo e a fragmentação étnica nos Bálcãs• Palestina: rumo a um Estado fragmentário?• Fratura no poder colorado no Paraguai• Editorial: Pinochet e o Tribunal Penal Internacional• O Meio e o Homem: Extinguindo espécies• Diário de Viagem: Índia setentrional

■ Número 4 – agosto 1999

• De Ptolomeu à Apolo 11, a descoberta da Terra• Na Caxemira, a guerra entre potências nucleares• A prisão de Ocalan e o sonho do Curdistão• A Anistia Internacional e a barbárie nas prisões do

Brasil• Editorial: A ONU, os Estados Unidos e os direitos

humanos• O Meio e o Homem: Organismos transgênicos• Diário de Viagem: Austrália

■ Número 5 – setembro 1999

• Rodada do Milênio: o grande jogo do comérciomundial

• Brasil, Mercosul e Alca no comércio mundial• As FARC e a implosão do Estado colombiano• Direitos humanos em Cuba• Editorial: O ENEM e os vestibulares• O Meio e o Homem: Os ameríndios da Amazônia

equatoriana• Diário de Viagem: Índia meridional

O Mapa de Mundo

Globalização – 1:(3-4-5) 2:(7) 4:(6-7) 5:(6-7) 6:(3) 6:(6)Europa Ocidental – 2:(4) 3:(6) 6:(7)Europa Oriental – 2:(5) 3:(5-7) 6:(4) 6:(7-8)América Latina – 2:(3-6) 3:(3) 5:(3-4-8) 6:(9)Brasil – 1:(6-7) 4:(3) 5:(5)Oriente e Pacífico – 4:(9) 6:(5)Ásia Meridional – 2:(9) 3:(9) 4:(4) 5:(9)Oriente Médio – 3:(4) 4:(5)África do Norte – 1:(9)Meio Ambiente – 1:(8) 2:(8) 3:(8) 4:(8)

Os prêmios■ 1º lugar: Aparelho completo de som; fim de semana em Foz do Iguaçu, com duas passagens e estadia paga para o mestre que

orientou o trabalho vencedor, prêmio cedido pela Ambiental Expedições (Av. Pedroso de Moraes 344 cj 45, São Paulo, Fone:0xx11-870-4600)

■ do 2º ao 5º: diskman■ do 6º ao 10º: livros oferecidos pela Editora Moderna

Os professores responsáveis pelos trabalhos classificados também receberam, como cortesia, livros de autoria dos editores doboletim Mundo.

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FANTASMA DE 1929 ASSOMBRA A GLOBALIZAÇÃO

E D I T O R I A L

U m mercado financeiro (por exemplo, uma Bol-sa de Valores) nada mais é que um sistema refletor de ex-pectativas sobre a evolução dos lucros das empresas. Afi-nal, cada ação é apenas um contrato que promete partici-pação nesses lucros. Quando as perspectivas da economiasão boas, os investidores querem ter alguma participaçãonos lucros crescentes. Compram ações e, assim, essas açõesse valorizam. Esse processo tem uma grande virtude: ofe-rece às empresas uma fonte de captação de recursos alter-nativa aos empréstimos bancários.

Num mercado otimista, as empresas podem “abrirseu capital”, ou seja, emitir certificados que garantem aoscompradores uma participação nos lucros. Com esses re-cursos, elas investem, tornam-se capazes de lucrar mais, eretribuem aos investidores que compraram suas ações.

O lado perverso é que os mercados de ações osci-lam ao sabor de notícias e condições que nada têm a vercom a maneira como cada uma das empresas é adminis-trada, usa tecnologia, expande seu mercado ou gerenciamão-de-obra. Os valores na Bolsa sobem e descem se umministro cai, se estoura um escândalo no governo, se apa-recem novos indicadores sobre a economia e, o que é fre-quente, se há manipulação do mercado por grandesespeculadores.

‘‘Esquizofrenia’’ capitalista

Entre o tamanho do mercado real e as expectati-vas do mercado financeiro infiltra-se um potencial desa-cordo, que alguns economistas descrevem com um termoda psicanálise: esquizofrenia. É como se o capitalismo fosseum sistema com duas personalidades que se reforçam, areal e a financeira, mas que também podem entrar emconflito, aproximando a sociedade de uma espécie de sui-cídio coletivo.

A grande expansão da Bolsa de Nova Iorque, noinício do século, foi motivada por causas semelhantes àsque se observa hoje em dia (quando novamente Wall Streetse valoriza aparentemente sem limite). Novas tecnologiase, principalmente, novos mercados abriam horizontes decrescimento sem precedentes para as empresas. Já naque-la época, havia uma internacionalização semelhante àglobalização atual. Desde meados do século XIX, a indus-trialização criava novos produtos e oportunidades de em-prego. Bélgica, França, Estados Unidos, Alemanha, Itália,Japão, Suécia e Rússia pareciam tornar universal o mode-lo de desenvolvimento que havia prosperado sobretudona Grã-Bretanha nas décadas anteriores.

O mercado mundial tornava-se uma espécie defronteira sem limites para a expansão de empresas e na-ções. Em 1854, a Grã-Bretanha já exportava mais de 20%de sua produção e detinha 40% do mercado mundial de

produtos manufaturados. Havia uma queda brutal noscustos de transporte, em especial desde a introdução dasferrovias, por volta de 1860, e do uso em larga escala denavios a vapor, depois de 1870. Na virada do século XX,a Grã-Bretanha já exportava 7% do PIB. Para se ter idéiada importância disso, hoje os Estados Unidos exportam11,4% do PIB.

O cenário era, portanto, favorável à expansão eco-nômica e as Bolsas, em especial a de Nova Iorque, refleti-am esse impulso. Depois da Primeira Guerra Mundial(1914-18), quando a Europa perdeu definitivamente acapacidade de liderança global, Wall Street foi ainda maisestimulada, pois o mundo inteiro passava a depender daexpansão dos Estados Unidos. A crise de 29, foi uma du-cha de água fria num mundo financeiro que parecia con-denado à euforia. Mostrou que se vivia aquela esquizofreniaentre o lado real e o lado financeiro.

O espelho partido

Fenômenos políticos como o nacionalismo, o na-zismo e o comunismo, as lutas sindicais, as greves e asrevoluções fazem parte da história econômica do séculoXX. A dinâmica da economia não é determinada apenaspor novas tecnologias, administração eficiente de fábri-cas, redução de custos de transporte e abertura de novosmercados. Ela é condicionada pela ação de Estados, pelaspressões da sociedade, pela cultura política e por interes-ses estratégicos. E as formas de organização do mercadode trabalho e da legislação social não são iguais em toda

parte. Dependem de processos de negociação que variamcom as condições políticas, sociais e culturais.

É como se, ao lado da esquizofrenia entre o real eo financeiro, existisse outro tipo de cisão, de fratura naorganização das nações: de um lado, o capital, de outro, osocial. De um lado, o impulso para acumular lucros,reinvesti-los na produção ou distribui-los para os acionis-tas, num movimento sem fim de valorização e expansãode empresas e mercados. De outro, tudo o que se podeimaginar sob o termo “social” e que foge ao controle decada empresa isoladamente. A história do século XX é ahistória da expansão e multiplicação dos mercados demassa. Ao mesmo tempo, é a história da organização dassociedades em que trabalhadores, consumidores, minori-as, setores e regiões se mobilizam para influenciar o modocomo os mercados funcionam.

As crises financeiras – como as bolhas especulativase as quebras de Bolsas – são episódios que funcionam comoespelhos dessa tensão entre duas histórias, a história do ca-pital e a história social. Quando os conflitos se tornaminadministráveis, não há tecnologia ou habilidade gerencialque resolva. Em geral, ocorrem processos conhecidos como“queima de capital”. Sonhos de enriquecimento, empresasque pareciam promissoras, regiões que se acreditava “emer-gentes” podem sucumbir repentinamente. Não é por acasoque a atividade de adivinhação da riqueza futura no merca-do financeiro seja conhecida como “especulação”, de espe-cular, ou seja, refletir como num espelho. Na crise, o espe-lho se quebra e ninguém sabe ao certo o que é real e o queé virtual. Em geral, seguem-se vários anos de azar.

O VESTIBULAR ESTÁ CHEGANDO - ALIÁS, JÁ COMEÇOU, COM A REALI-ZAÇÃO DO ENEM -, E COM ELE OS FANTASMAS DA REPROVAÇÃO E DA ESCOLHA

ERRADA DA PROFISSÃO. O MAIS CURIOSO É QUE ESSES FANTASMAS SÃO APENAS

ISSO: FORMAS SEM VIDA, MERAS PROJEÇÕES DE MEDOS E DESEJOS. SUA MATÉ-RIA É O AR, O MAIS TÊNUE AR, E COMO TAL SE DISSOLVEM SEM DEIXAR VESTÍ-GIOS - PARA UTILIZAR A FAMOSA METÁFORA DE PRÓSPERO.

REPROVAÇÃO: ISSO NÃO QUER DIZER NADA, SE PENSAMOS NA ESCALA

DE TODA UMA VIDA. É APENAS A INCAPACIDADE MOMENTÂNEA DE

CORRESPONDER ÀS EXPECTATIVAS DE UM RITUAL BUROCRÁTICO. NÃO SÃO OS

PONTOS COLETADOS EM UMA PROVA QUE DIZEM QUEM SOMOS NÓS OU DE

QUE SOMOS OU NÃO CAPAZES. O VESTIBULAR, EM NOSSA SOCIEDADE, É UMA

ESPÉCIE DE RITUAL DE INICIAÇÃO DO JOVEM NO “MUNDO ADULTO”, UM PAS-SO PARA CHEGAR AO MERCADO DE TRABALHO, E TEM POR ISSO UM CERTO

SIGNIFICADO SOCIAL - MAS NADA SIGNIFICA ALÉM DISSO. TODOS TÊM O DI-REITO DE TENTAR - E NÃO CONSEGUIR - UMA OU VÁRIAS VEZES. TÊM ATÉ ODIREITO DE NÃO PARTICIPAR DO RITUAL, OPTANDO POR NÃO SEGUIR UM CUR-SO UNIVERSITÁRIO.

ESCOLHA ERRADA DA PROFISSÃO: ISSO TAMBÉM NÃO QUER DIZER NADA,

SE PENSAMOS NA ESCALA DE TODA UMA VIDA. PRIMEIRO, PORQUE É NORMAL

QUE MUITA GENTE - TALVEZ A MAIORIA - ACABE ASSUMINDO PROFISSÕES QUE

NADA TÊM A VER COM A FORMAÇÃO ACADÊMICA (ENGENHEIRO VIRA DONO

DE BAR, ECONOMISTA VIRA FOTÓGRAFO E O ARQUITETO, CHEFE DE COZI-NHA). SEGUNDO, PORQUE AS PROFISSÕES MUDAM RAPIDAMENTE O SEU PER-FIL, NO MUNDO GLOBALIZADO E TRANSFORMADO PELO DESENVOLVIMENTO

DE NOVAS TECNOLOGIAS. TERCEIRO, PORQUE O SISTEMA EDUCACIONAL BRA-SILEIRO NÃO DÁ AOS JOVENS DO ENSINO SECUNDÁRIO QUALQUER CONDIÇÃO

DE CONSTRUIR UMA NOÇÃO REALISTA DO QUE SÃO AS PROFISSÕES.NINGUÉM PRETENDE AFIRMAR, COM ISSO, QUE O VESTIBULAR NÃO TEM

IMPORTÂNCIA ALGUMA. NÃO SE TRATA DE IGNORÁ-LO, MAS DE ATRIBUIR-LHE

O EXATO VALOR, DAR A SUA EXATA DIMENSÃO. NESSA PERSPECTIVA, A ÚNICA

OBRIGAÇÃO SÉRIA DE CADA CANDIDATO É PREPARAR-SE, DA MELHOR FORMA

POSSÍVEL, PARA ENFRENTAR O DESAFIO. É UMA OBRIGAÇÃO DE NATUREZA

ÉTICA, DO INDIVÍDUO PARA COM SUA PRÓPRIA CONSCIÊNCIA, SEM PASSAR PELA

APROVAÇÃO OU REPROVAÇÃO DE TERCEIROS. O ÊXITO OU FRACASSO NÃO SERÁ

MEDIDO PELA OBTENÇÃO OU NÃO DA VAGA PRETENDIDA, MAS PELO GRAU DE

SERIEDADE QUE CADA UM ATRIBUIU AOS SEUS PRÓPRIOS SONHOS E DESEJOS.

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O presidente FranklinDelano Roosevelt foio “pai” do New Deal,estratégico para arecuperação daeconomia americana,a partir de 1932

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UMA NOVA “DOUTRINA MONROE”?Quase dez anos após a morte da União Soviética, renasce das cinzas a GrandeRússia. Nas próximas eleições parlamentares e presidenciais, o nacionalismo

grão-russo dará as cartas.

Claudio CamargoEspecial para Mundo

Q uase dez anos depois da implosão da UniãoSoviética, a Rússia se encontra mergulhada numa das maisgraves crises econômicas de sua história. As eleições paraa renovação da Duma (Parlamento), em dezembro, deve-rão fortalecer ainda mais a oposição nacionalista e comu-nista, num avant-premiére do pleito presidencial do anoque vem. Parece lógico supor que, assim como o vírusseparatista destruiu a União Soviética quando o podercentral se enfraqueceu, ele paire, ameaçador, sobre os do-mínios da Federação Russa. Com as feridas da sangrentaguerra na Chechênia ainda por cicatrizar, Moscou enfrentaagora a fúria dos rebeldes fundamentalistas islâmicos narepública autônoma do Daguestão, apoiados porchechenos. A suspeita de que estes separatistas estariampor trás da recente onda de devastadores atentados terro-ristas em Moscou só fez aumentar a impressão de que aentropia russa é um fato irreversível.

Mas, contra as aparências, uma análise mais pro-funda revela que a Federação Russa não só não corre orisco de se esfacelar como está, paulatinamente, recons-truindo a sua hegemonia sobre a maior parte das antigasrepúblicas soviéticas. Isso vem ocorrendo desde 1993,quando Moscou se convenceu de que fizera concessõesdemais ao Ocidente em troca de quase nada e passou aadotar uma política externa mais afirmativa. Com exce-ção dos Estados Bálticos (Lituânia, Estônia e Letônia),países que não pertencem à Comunidade de Estados In-dependentes (CEI) e se acercam do duplo guarda-chuvaprotetor formado pela OTAN e pela União Européia, asantigas repúblicas soviéticas vêm descobrindo, às vezesamargamente, que não têm outra opção senão a esfera deinfluência russa. Quanto aos separatistas do Daguestão,ninguém acredita que eles tenham qualquer perspectivade vitória.

Belarus: uma tentativa fracassada de sedução

O caso mais flagrante de “reconversão” é o daBelarus. Independente desde 1991, tentou aproximar-sede Washington e do Ocidente para contrabalançar a in-fluência de Moscou. O governo de Minsk fez de tudo paraseduzir Wall Street. Aceitou até desmantelar seu arsenalnuclear em troca de assistência financeira americana. Aescassez da ajuda reverteu o quadro. Já em 1994 foi eleitopresidente Aleksandr Lukachenko, que defendia sem pa-pas na língua a unificação com a Rússia. No ano seguinte,um plebiscito aprovou com surpreendentes 84% dos vo-tos a integração econômica com a Rússia. O passo seguintefoi a fundação da Comunidade das Repúblicas Sobera-nas, eufemismo retórico para a adoção de políticas econô-mica e externa unificadas.

Na Ucrânia, a mais poderosa e rica república daCEI depois da Rússia, o ímpeto nacionalista perdeu mui-to de seu fôlego original. Primeiro, o país teve que devol-ver seu arsenal nuclear – que era o terceiro do mundo – aMoscou. É verdade que em troca de créditos ocidentais.Depois, Kiev engoliu goela abaixo a exigência de Moscoude entregar 70% dos navios da estratégica frota do marNegro, arrendando aos russos a base de Sebastopol, naCriméia.

Zbigniew Brzezinski foi assessor de Segurança Nacional no governo de Jimmy Carter (1977-80) e é um dosmaiores especialistas em problemas da Rússia nos Estados Unidos. Recentemente, Zbig, como é conhecido, pu-blicou na conceituada revista Foreign Affairs um ensaio sobre a Eurásia no equilíbrio mundial de poder. As idéiasque ele contém, a respeito do futuro da Rússia, expressam mais que um ponto de vista pessoal – refletem expec-tativas e revelam orientações estratégicas de parte ponderável da elite política americana.

O ensaio é acompanhado por um mapa que sintetiza tais expectativas. Nele, uma “Rússia confederal” apareceespremida entre uma “Europa Atlântica”, a ocidente, estrategicamente vinculada aos Estados Unidos e alargadapela inclusão de Estados do antigo bloco soviético, e uma “Grande China”, a oriente, cuja influência se difundepelo leste e sudeste asiáticos (veja o Mapa). A confederação russa de Brzezinski seria constituída por três entidadesgeopolíticas frouxamente associadas: uma Rússia européia, limitada a leste pelo rio Ob, uma República Siberiana,entre o Ob e o rio Lena, e uma República do Extremo Oriente, entre o Lena e o Oceano Pacífico.

No cenário previsto (ou desejado?), a prioridade da Rússia seria a sua modernização econômica, abandonan-do-se qualquer pretensão ao estatuto de grande potência. Essa Rússia “descentralizada” estaria mais apta paradesenvolver suas “vocações econômicas” (entenda-se: a exportação de recursos naturais como petróleo, diamante,ouro, minerais em geral, madeiras). Ao mesmo tempo, estaria menos disposta a aventuras imperiais.

Atrás do ensaio, é possível divisar a orientação proposta pelo autor. De acordo com ela, o Ocidente deveriaconsolidar uma parceria estratégica com a China e, ao mesmo tempo, favorecer as forças centrífugas que agem nointerior da CEI e da Rússia atual. Especificamente, caberia favorecer qualquer alternativa viável ao nacionalismogrão-russo e incrementar acordos de financiamento e cooperação econômica com as repúblicas periféricas da CEIe as autoridades regionais da Federação Russa. É um programa e tanto.

SERVIÇO:

· O fim de um sonho: as raízes do fracassoda União Soviética, Walter Laqueur, São

Paulo, Best Seller, 1994.

Rússia pós-Yeltsin

Humilhação na Geórgia

Na Geórgia, o caminho de volta beirou a humi-lhação. Engolfados por lutas intestinas pelo poder e porguerrilhas separatistas nas regiões da Ossétia do Sul eAbkházia, os georgianos foram obrigados a recorrer aosrussos para botar ordem na casa. O orgulhoso EduardShevardnadze, ex-chanceler de Gorbachev e atual presi-dente da Geórgia, teve que baixar a crista e aderir à CEIpara obter apoio do Kremlin. Em 1994, Shevardnadze eBoris Yeltsin assinaram um acordo de cooperação econô-mico-militar no qual a Rússia obteve o direito de manterbases na Geórgia. Já as repúblicas de maioria islâmica, naÁsia Central e no Cáucaso, que esperavam maior apoioda Turquia, agora parecem render-se à força centrípeta deMoscou.

‘‘E euforia durou muito pouco’’

“A euforia durou muito pouco”, explica o histori-ador Walter Laqueur, no seu O fim de um sonho. “As repú-

blicas que deixaram a União estão enfrentando dificulda-des ainda maiores que a Federação Russa. Em conseqüên-cia, os países do Cáucaso e da Ásia Central que insistiramna separação estão novamente tentando uma aproxima-ção com Moscou”.

Para Laqueur, “entre os dirigentes russos uma novapostura de afirmação emergiu com relação ao “exteriorpróximo” (as ex-repúblicas soviéticas). Entre os extremis-tas, ela se manifestou como a necessidade de reincorporaras repúblicas. Entre os moderados, evidenciou-se no de-sejo de proteger milhões de russos étnicos que vivem forada Rússia, ou de considerar o “exterior próximo” comouma esfera de influência russa, algo semelhante a umaDoutrina Monroe russa não-declarada”.

Esse consenso político abrangente tende a se ex-pressar, na próxima Duma, com força ainda maior que naatual. E o presidente a ser eleito em 2000, qualquer queseja, sairá das fileiras do nacionalismo, a orientação larga-mente dominante nas elites políticas russas.

Claudio Camargo é editor de Internacionalda revista IstoÉ.

Um sonho americano

OCEANOÍNDICO

GRANDECHINA

ÍNDIAÁFRICA

EUA/JAPÃO

1 2 3

EUROPAATLÂNTICA

C O N F E D E R A Ç Ã O R U S S A

A CAMINHO DE UMA RÚSSIA D IV ID IDA

1 2 3República da Rússia República da Sibéria República do Extremo Oriente

FONTE: Revista Foreign Affairs - vol. 76 - nº 5 - pág.60

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CHINA 2020, EPICENTRO DA ÁSIA ORIENTAL

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A decolagem do “leão”

Cenário hipotético projeta, no horizonte de duas décadas, a emergência de umasuperpotência capaz de reduzir até o Japão à condição de satélite geopolítico

João Batista NataliDa Equipe de Colaboradores

á pouco menos de 15 anos, economistase militares americanos e asiáticos reuniram-se na Coréiado Sul para esboçar um diagnóstico sobre o perfil que aÁsia apresentaria por volta de 2020. Desse exercício defuturologia saiu uma hipótese já naquele momento bas-tante ousada: o Japão, ainda hoje incontestável epicentroregional, se tornaria o mais domesticado de um conjuntode “tigres” que gravitariam em torno da China. A China,por sua vez, desfrutaria da condição de única e verdadeirapotência econômica e militar do Pacífico oriental.

Há muitas condicionantes para que essa previsãose concretize. Mas é certamente por conta da existênciadessa hipótese nos cálculos estratégicos dos Estados Uni-dos que as administrações Reagan, Bush e Clinton têmsido tão condescendentes para com aquele país gigantes-co. Essa condescendência de Washington vai muito alémdas conveniências do tempo da Guerra Fria, quando asrivalidades entre Pequim e Moscou eram estimuladas afim de reduzir as chances de reunificação do “mundo co-munista”.

1978: começa a ‘‘modernização’’

A chamada modernização da China se iniciou em1978, com a autorização da abertura de empresas priva-das. Mao Tsetung estava morto havia dois anos e o“neomaoísmo” de Hua Guofeng naufragara na ponta fi-nal de um processo que já havia vitimado o “Bando dosQuatro”. Esse grupo de dirigentes comunistas, reunidosem torno de Jiang Qing, viúva de Mao, tentou impor apreservação da ortodoxia marxista e do fechamento emcopas da economia e da diplomacia chinesas. Depois dascondenações contra os ortodoxos, o homem forte, reabi-litado entre as vítimas da Revolução Cultural (1966-1970),era Deng Xiaoping.

O novo “timoneiro” não perdeu tempo. Em 1978,reformulou o sistema de preços e salários, libertando-odo arbítrio da burocracia estatal e tornando-o dependen-te da aplicação interna da lei da oferta e da procura. Noano seguinte, deflagrou uma descoletivização maciça dapropriedade rural, estimulando o ressurgimento da pe-quena produção camponesa. Estavam lançadas as basespara que a chamada “economia socialista de mercado” setornasse política oficial, em 1992.

A China tem hoje 1,24 bilhão de habitantes. Secada chinês comprar um walkman, o país estará consu-mindo algo como o PIB da Bélgica. Se a compra for deuma geladeira, será algo como o PIB do Brasil. E se cadachinês comprar um terço de um Uno Mille, já se movi-mentará o equivalente ao PIB do Japão. Com uma escalademográfica dessa amplitude, faltariam à China apenascapital e tecnologia. São justamente os ingrediente quetêm sido injetados maciçamente em suas veias de dez anospara cá. Em média, o país recebeu 43 bilhões de dólaresanuais, nos três últimos anos. São investimentos canaliza-dos sobretudo para as províncias litorâneas próximas aHong Kong, que aliás concentram a metade dos “novosricos” chineses, assim chamados por terem uma rendaanual superior a 12.500 dólares (a média nacional é de3.300 dólares).

É claro que esse modelo de crescimento gera desi-gualdade social inédita durante as décadas de socialismoortodoxo. Há 160 milhões de camponeses desemprega-dos. Nas grandes cidades, estariam desempregadas algocomo 25 a 31 milhões de pessoas. Embora as estatísticasoficiais sejam bem pouco confiáveis, elas também demons-tram que, hoje, as 1,3% famílias mais ricas controlam 32%da riqueza, enquanto as 44% mais pobres possuem ape-nas 3% da renda nacional.

A manutenção de um modelo de iniqüidade tãogritante, inexistente há duas décadas, só seria viável sob

uma estrutura política absolutamente autoritária, capazde reprimir qualquer veleidade reivindicativa daqueles si-tuados na base da pirâmide de rendas. Essa gente devepermanecer desarticulada em nome da modernização eda paz social. Em países como a Malásia ou a Indonésia, arepressão a essa válvula social ocorreu pelas mãos de regi-mes ditatoriais de direita. Na Indonésia, o mecanismorepressivo entrou em colapso no ano passado. Na China,o modelo é similar, mas sob a ditadura de “esquerda” doPartido Comunista. É ele que gestiona o retorno explícitoao capitalismo, ritmando a falência em cascata de peque-nas e médias estatais ineficientes.

A China não tem pressa em privatizarsuas 119 mil estatais

A China contaria ainda com 118 mil estatais. Nãotem pressa em privatizar. Prefere não incorrer no mesmoerro que a Rússia, que desmontou o Estado sem que umaestrutura alternativa de capital pudesse assumir seu lugar,abrindo caminho para as máfias ocuparem o vácuo eco-

nômico e político, prosperando às custas do empobreci-mento da sociedade. O regime chinês quer empresas com-petitivas, com padrão de gestão ocidental, capazes de ope-rar agressivamente no mercado externo. É em parte pelosucesso desse modelo que o país acumula hoje reservascambiais de 141 bilhões de dólares. E é também por meiodele que surgiu uma nova classe de businessmen – os quetêm telefone celular, automóvel, uma residência confor-tável e roupas de grife – que tende a crescer e a comandar,sob a tutela do partido único, a decolagem da poderosafera asiática. Uma fera capaz teoricamente de, a longo pra-zo, domesticar o Japão, que possui apenas um décimo dapopulação chinesa e que este ano, mesmo assim, aindaserá capaz de produzir 3,4 vezes mais riquezas.

A poderosa China do futuro abrangeria Taiwan,talvez num sistema de autonomia semelhante ao concedi-do a Hong Kong. E aprofundaria ainda mais os laços coma próspera diáspora chinesa que controla vasta parcela daseconomias de Cingapura, da Malásia, da Tailândia e doVietnã. Vale a pena manter relações sólidas com uma feracomo essa.

Há 50 anos, Mao fundava a China vermelhaO ano de 1949 foi um dos mais “quentes” da Guerra Fria. Foi o ano em que a União Soviética testou sua

primeira bomba atômica e no qual nasceu a Alemanha Oriental, como reação ao estabelecimento da RepúblicaFederal Alemã. Foi também o ano em que os comunistas tomaram o poder na China.

Desde o fim dos anos 20, os comunistas eram uma das principais forças políticas no cenário chinês, atuandoem aliança com Chiang Kaishek, o líder do partido nacionalista Kuomintang. Mas um massacre de 5 miloperários pró-comunistas, em 1927, em Xangai, selou o fim da aliança. Com o ataque japonês à Manchúriachinesa, em 1931, a aliança foi reconstituída, para explodir outra vez no final da Segunda Guerra Mundial. Novácuo de poder deixado pela retirada das forças de ocupação japonesas, os comunistas avançaram para a vitória.No primeiro dia de outubro de 1949, há 50 anos, uma multidão saudava, em Pequim, o líder Mao Tsetung, queviria a se tornar o “Grande Timoneiro” da República Popular da China.

A vitória de Mao assustou o Ocidente. Era meio caminho andado para que os comunistas chineses ajudas-sem seus companheiros de ideologia a chegarem ao poder na Indochina, Indonésia e Filipinas, onde as estrutu-ras de poder também não haviam sido reconstruídas, após o fim da ocupação japonesa.

A chegada de Mao ao poder também daria o sinal para o início do conflito na Coréia, país dividido, desdea derrota dos japoneses, entre um regime comunista estabelecido na porção norte e o governo pró-americano dosul. Acima de tudo, o triunfo vermelho na China parecia inclinar o mundo, de vez, rumo ao confronto entrecapitalismo e comunismo.

Derrotado por Mao Tsetung, Chiang Kaishek liderou a migração de milhões de refugiados para a ilha deTaiwan, 170 quilômetros ao largo do litoral chinês. Na província, sob a proteção dos Estados Unidos, consti-tuiu o regime rebelde da República da China. Mao, por sua vez, construiu um regime comunista inspirado naUnião Soviética, com quem romperia em 1960. Hoje, sob o “capitalismo vermelho” dos sucessores de DengXiaoping, a imagem do “Grande Timoneiro” tornou-se adorno exótico de bonés, chaveiros e isqueiros vendidospara turistas do mundo todo.

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Portando fotos do “Grande Timoneiro” Mao Tsé Tung, chineses comemoram o aniversário da República Popular daChina, criada em 1º de outubro de 1949

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OUTUBRO99

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PRIMEIRA DÉCADA PÓS-MURO CORROEU AS ESPERANÇAS DE 1989O historiador Eric Hobsbawm não

deixou por menos: o seu Era dos Extremos,publicado em 1994, trazia como subtítulo“o breve século XX (1914-1991)”. Dessemodo, ao conhecido consenso historiográ-fico segundo o qual nosso século começouatrasado, no ano em que eclodia a Primei-ra Guerra Mundial, adicionava-se a con-clusão de que ele terminou adiantado, noano em que desaparecia a União Soviética.A torrente de transformações dos “três anosmágicos” – a queda do Muro de Berlim,em 1989, a reunificação alemã, em 1990,e a implosão do império vermelho, em1991 – era interpretada como a inaugura-ção de uma nova era.

Aqueles anos foram um tempo degrandiosas esperanças. A supressão da Cor-tina de Ferro pareceu abrir caminho paraa edificação de uma Europa livre de blo-cos estratégicos e militares. As visões dofrancês De Gaulle – a Europa unida “doAtlântico aos Urais” – e do russoGorbachov – a “Casa Comum Européia”– estariam a um passo de transitar da esfe-ra dos sonhos para a da geopolítica. ARússia poderia, finalmente, integrar-se à“grande família do Ocidente”, retomandouma velha tradição celebrada nos salões dacorte, em 1051, através do matrimônio deAna de Kiev com Henrique da França eno campo de batalha, em 1814, através docerco de Paris pela Santa Aliança anti-napoleônica.

FMI e nacionalismo na Rússia

O cenário europeu mudou radical-mente desde a queda do Muro de Berlim(v. matéria à pág. ao lado). Mas as espe-ranças dos “três anos mágicos” diluíram-senas cruas realidades da política de poder.O Ocidente perdeu a Rússia, nos sentidoseconômico e estratégico. No início de1992, quando a administração reformistae liberal de Yegor Gaidar contava com vas-ta simpatia popular, o FMI adiou a con-cessão de créditos novos, concentrando-seapenas em garantir a rolagem da dívidaexterna russa. Nos anos seguintes, os re-formistas foram sendo marginalizados,enquanto as máfias consolidavam seu con-trole sobre uma economia em ruínas.Quando o FMI forneceu, enfim, um pa-cote de empréstimos de 10 bilhões de dó-lares, na primavera de 1996, seu único pro-pósito consistia em garantir a reeleição deBoris Yeltsin.

Do ponto de vista estratégico, adecisão de expandir a Otan para a Europacentro-oriental – definida em meados dadécada e concretizada em 1998, com aadmissão da Polônia, República Tcheca e

Breve glossário econômico do fim do século

As palavras mudam mais que o mundo e algumas palavras mudam o próprio mundo.Conheça o significado de quatro das palavras mais usadas no debate econômico daúltima década:

Globalização: de longe, a palavra mais usada para fazer referência ao conjunto detransformações que, nos últimos dez anos, criaram a sensação generalizada de maiorimportância do comércio internacional, avanço tecnológico, influência de empresasmultinacionais, redefinição dos mercados de trabalho, explosão das tecnologias de in-formação e desprestígio do nacionalismo. Alguns preferem a palavra “mundialização”,outros ficam com a antiga “internacionalização” e os mais críticos acreditam que tudonão passa de uma fantasia para esconder o velho “imperialismo”. Atrás de cada umadessas variantes esgueiram-se ideologias políticas em conflito.

Na manhã do domingo, dia 12 de novembro, eu atravessei o Muro e aquela terra deninguém a pé, junto com uma multidão de berlinenses orientais (...). Espantados guardas de

fronteira faziam sinal para que passássemos (...). Segmentos verticais do Muro estavamespalhados por onde as gruas os haviam jogado, com os graffiti coloridos virados para o lestepela primeira vez. (...) “Vinte e oito anos e 91 dias”, diz um homem de trinta e muitos anos,voltando a pé pela Friedrichstrasse acima. Vinte e oito anos e 91 dias desde a construção do

Muro. Naquele dia, em agosto de 1961, os pais dele queriam ter ido ver um filme defaroeste em uma sessão tardia de cinema de Berlim Ocidental, mas o filho de onze anos

deles estava cansado demais. De madrugada, eles acordaram com o barulho dos tanques. Elenunca mais fora a Berlim Ocidental, desde aquele dia.

(Timothy Garton Ash, Nós, o povo, SP, Cia das Letras, 1990, p. 69-71)

SERVIÇO:· Leste europeu: a revolução democrática, Jayme Brener,

São Paulo, Atual, 1990.· O novo mapa do mundo, Demétrio Magnoli, São Paulo,

Moderna, 1993.· A desintegração do Leste: URSS, Iugoslávia e Europa Oriental,

Nelson Bacic Olic, São Paulo, Moderna, 1993.· Guerra Fria: terror de Estado, política e cultura, José Arbex Jr.,

São Paulo, Moderna, 1997.

Durante quase 45 anos, entre o fi-nal da Segunda Guerra Mundial (1939-45)e a queda do Muro de Berlim, em 1989, asfronteiras políticas européias pareceramimutáveis, entalhadas no aço dos atlas daGuerra Fria. Nessas décadas, o continenteeuropeu, bipartido estratégica, militar e ide-ologicamente em blocos antagônicos, foi oprincipal cenário do confronto global entreos Estados Unidos e a União Soviética.

A arquitetura geopolítica da Euro-pa da Guerra Fria originou-se nas conferên-cias de Yalta e Potsdam, em 1945. Na pri-meira, realizada pouco antes da rendição daAlemanha nazista, redefiniram-se as fron-teiras da União Soviética, que reincorporouos territórios perdidos na Primeira GuerraMundial. Lá, também, esboçou-se o queviria a ser, em poucos anos, o bloco soviéti-co na Europa Oriental, legitimando-se opoder dos partidos comunistas nos paísesque haviam sido libertados do jugo alemãopela ofensiva do Exército Vermelho.

A Conferência de Potsdam, realiza-da pouco depois do término das hostilida-des no teatro de guerra europeu, definiu ofuturo da Alemanha derrotada. Lá, organi-zaram-se as zonas de ocupação no territórioalemão e os setores de ocupação em Berlim.Desse modo, surgia o alicerce para a divi-são da Alemanha em dois Estados, concre-tizada em 1949, e assentava-se, simbolica-mente, o primeiro tijolo do Muro de Berlim,edificado em 1961.

Esses eventos históricos acabaram por produzir uma fronteira geopolítica na Euro-pa, separando os Estados alinhados com Washington dos que passaram a gravitar em tornode Moscou. Nos lados opostos da Cortina de Ferro, estabeleceram-se a Organização doTratado do Atlântico Norte (Otan), em 1949, e o Pacto de Varsóvia, em 1955. Nasciam, aomesmo tempo, a Europa Ocidental e a Europa Oriental (v. o mapa 1).

A Cortina de Ferro dissolveu-se entre com a queda do Muro de Berlim. A ondade choque gerada reverberou sobre as fronteiras políticas, redesenhando parte significati-va do mapa da Europa. Em 1990, a reunificação alemã desmantelou o eixo central dadivisão geopolítica do continente e produziu um novo território para o Estado unificadopor Bismarck.

Em dezembro de 1991, a implosão da União Soviética gerou 15 repúblicas for-malmente soberanas, das quais 12 pertencem à Comunidade de Estados Independentes(CEI). No mesmo ano, iniciou-se a decomposição da Iugoslávia. A tragédia balcânica,que ainda não terminou, foi a fonte de cinco novos Estados. Em 1992, o chamado “di-vórcio de veludo” vitimou mais uma das entidades surgidas da desagregação do impérioÁustro-Húngaro, partindo a Tchecoslováquia em duas entidades políticas (v. o mapa 2).

Dez anos depois da queda do Muro de Berlim, uma Otan ampliada representa,no mapa estratégico europeu, a principal herança da Guerra Fria. As fronteiras dessaorganização política e militar, os limites da União Européia e os da CEI formam ascicatrizes estratégicas mais profundas na face do continente. A mobilidade dessas linhas,cuja dinâmica contrasta com a estabilidade da antiga Cortina de Ferro, reflete a comple-xidade de uma Europa que não é mais a de Yalta e Potsdam.

Hungria – enterrou de uma vez as elitespolíticas pró-ocidentais na Rússia. O bom-bardeio da Iugoslávia, na primavera de1999, provavelmente entrará para a histó-ria como marco de encerramento de umciclo, no qual inflaram-se e destruíram-seas esperanças de uma integração russa aoconcerto do Ocidente.

Atualmente, sobre o pano de fun-do do colapso econômico e de uma crisesocial tão profunda quanto a que desatoua Revolução de 1917, os nacionalistas, nadireita e na esquerda do espectro político,reorganizam em bases imperiais as relaçõesentre a Rússia e a CEI (v. a matéria à pág.4). Uma nova cicatriz geopolítica começaa aparecer na Europa, separando a esferade influência de Moscou da maior partedo continente.

Euforia e pânico

A Guerra Fria não foi apenas o tem-po do conflito Leste-Oeste, mas tambémo da cisão Norte-Sul. A descolonizaçãoafro-asiática, derivada em grande medidada corrosão do poder das velhas potênciaseuropéias, evidenciou os fenômenos dapobreza e do subdesenvolvimento. Umacoalizão heterogênea de líderes nacionalis-tas – o comunista iugoslavo Tito, o pan-arabista egípcio Nasser, o neutralista indi-ano Nehru e o populista indonésioSukarno – edificou o Movimento dos Paí-ses Não-Alinhados, cuja identidade crista-lizava-se na oposição à dupla polaridadedas superpotências.

Os geógrafos, sempre propensos acriar rótulos abrangentes, sintetizaram es-sas linhas de ruptura através das expres-sões Primeiro Mundo, Segundo Mundo eTerceiro Mundo. O encerramento daGuerra Fria vitimou essas representaçõesgeopolíticas e as ideologias que elas sus-tentavam. Na última década, o socialismoe o nacionalismo econômico cederam lu-gar às estratégias de abertura dos merca-dos e atração de investimentos internacio-nais. O vocabulário da globalizaçãouniversalizou-se, expressando a hegemoniapolítica das idéias econômicas liberais (v.o box).

Os fluxos de investimentos exter-nos percorreram um ciclo de euforia e co-lapso, entre 1991 e 1998. Na primeira fasedesse ciclo, os investimentos externos fi-nanciaram o crescimento das economias doleste e sudeste da Ásia, América Latina eEuropa centro-oriental. A China tornou-se o segundo maior receptor de investimen-tos internacionais, atrás apenas dos Esta-dos Unidos. Poucos resistiram à tentaçãode profetizar a ascensão do “leão chinês”

ao posto de Grande Timoneiro do Orien-te (v. a matéria à pág. 5). Em KualaLumpur, a capital da Malásia, o início daconstrução da Petronas Tower, projetadacomo o mais alto arranha-céu do mundo,simbolizou os sonhos efêmeros de grande-za daqueles anos.

Na segunda, a reversão dos fluxosgolpeou devastadoramente os mercados fi-nanceiros e as moedas das chamadas “eco-nomias emergentes”. O primeiro sinal deperigo soou no México, em 1994. Em1997, os “Tigres asiáticos” sucumbiram natormenta. Depois, a Rússia e o Brasil. Hoje,a “exuberância irracional” da Bolsa de NovaIorque, na expressão de Alan Greenspan,o poderoso presidente do Fed, o BancoCentral americano, faz com que algunsrecordem os anos que precederam o crashde 1929 (v.a matéria à pág. 3).

A‘‘paz’’ de Bretton Woods

No pós-guerra, a economia capita-lista internacional estruturou-se em tornodo Sistema de Bretton Woods, que estabe-leceu paridades fixas entre o dólar e o ouro.Esse mecanismo garantiu um ambiente deestabilidade cambial, ao longo de quase trêsdécadas. No início dos anos 70, as parida-des fixas foram abandonadas, pois as re-servas de ouro dos Estados Unidos nãoeram mais capazes de fornecer lastro para

a imensa quantidade de dólares em circu-lação na economia mundial. O dólar, etodas as demais moedas, passaram a flutu-ar livremente.

A explosão dos fluxos de capitais,na década de 90, revelou a instabilidadeextrema do sistema de livre flutuação cam-bial. As crises no México, na Ásia, naRússia e no Brasil foram precipitadas eagravadas por terríveis colapsos cambiais,que refletiram a contradição entre aglobalização financeira e as moedas nacio-nais. Na União Européia, a unificaçãomonetária serviu como pára-raios contra atempestade dos fluxos financeiros. No restodo mundo, em particular nos países sub-desenvolvidos, não existem pára-raios. Atempestade continua e ameaça provocar onaufrágio do Mercosul.

“Nova ordem mundial” – essa ex-pressão foi cunhada por George Bush, opresidente americano durante a queda doMuro de Berlim e a implosão do impériovermelho. É uma profecia assentada sobreas percepções paralelas de um mundo or-denado e liderado pelos Estados Unidos.Dez anos depois, sobram razões para dú-vidas. No portal do novo século, talvez sejamelhor inscrever aquilo que disse um diaSam Goldwyn, o antigo magnata do cine-ma: “Nunca profetize, especialmente so-bre o futuro”.

A EUROPA EM DOIS TEMPOS

Mar Mediterrâneo

Mardo Norte DIN.

BÉL.

FRANÇA

ESPANHA

ITÁLIAROMÊNIA

BULGÁRIA

RÚSSIA

TURQUIA

NORUEGA

HOL..

ÁUSTRIA

GRÃBRETANHA

PORTUGAL

TURQUIAGRÉCIA

ALB

HUNGRIA

POLÔNIA

SUÍÇA

EIRE

SUÉCIA

FINLÂNDIA

Mar Negro

R Ú S S I A

OCEANOATLÂNTICO

ISLÂNDIA

Países pertencentes ao Pacto de Varsóvia

Países pertencentes à OTAN

Países não integrantes de pactos militares

A EUROPA DA GUERRA FRIA

Limites da “Cortina de Ferro”

IUGOSLÁVIA

CHECOSLOVÁQUIAAL.

OCIDENTAL

AL.ORIENTAL

Financeirização: alguns economistas usam esse termo para indicar o fenômeno de subordi-nação da vida econômica ao império das instituições financeiras que, atuando num merca-do globalizado e instantâneo, valorizam e desvalorizam moedas, produtos, tecnologias epaíses. Em geral, quanto mais se usa a palavra, menos se gosta do fenômeno.

Competitividade: é a capacidade de uma empresa competir com outras empresas, numpaís ou em escala internacional, medida não apenas em termos de produtividade (ouseja, redução do custo de produção e portanto possibilidade de produzir mais com me-nos recursos, aumentando o potencial de lucros), mas também em termos de qualidade,marca, domínio de mercados, poder financeiro e velocidade de inovação. Trata-se depalavra cultuada como um deus pagão por empresas e governos.

Neoliberalismo: virou uma espécie de expressão pejorativa para designar a defesa intran-sigente e extremada do liberalismo, ou seja, da supremacia dos interesses individuaissobre as necessidades coletivas, do mercado sobre o Estado, da liberdade empresarialsobre o controle social das atividades econômicas. Palavra usada por nacionalistas e es-querdistas, nunca por liberais.

Mapa 1

Mar Mediterrâneo

Mardo Norte DIN.

BÉL. ALEMANHA

FRANÇA

ESPANHA

ITÁLIACROÁCIA

IUGOSL.

ROMÊNIA

BULGÁRIA

RÚSSIA

TURQUIA

NORUEGA

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ÁUSTRIA

GRÃBRETANHA

PORTUGAL

TURQUIAGRÉCIA

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BÓSNIA

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REP. CHECA

POLÔNIA

SUÍÇA

EIRE

SUÉCIA EST.

LET.

LIT.

BELARUS

FINLÂNDIA

UCRÂNIA

MOLDOVA

Mar Negro

GEÓRGIAARM.

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OCEANOATLÂNTICO

ISLÂNDIA

Países da Comunidade de Estados Independentes (CEI)

Países pertencentes à OTAN

Países incorporados à OTAN em 1999

O CENÁRIO EUROPEU CONTEMPORÂNEO

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8 Diário de Viagem

“EU VI QUANDO O MURO CAIU...”

José Arbex Jr., 42 anos, é jornalista e estava naantiga Berlim Oriental, como enviado especial dojornal Folha de S. Paulo, em 9 de novembro de1989, a noite em que o Muro caiu.

9 de novembro de 1989, 18h45, Sala de Imprensado Departamento de Relações Exteriores da AlemanhaOriental. Gunter Schabowski, chefe do Comitê Munici-pal do Partido Comunista de Berlim Oriental declara en-cerrada uma entrevista coletiva a cerca de 300 correspon-dentes estrangeiros. Um dos jornalistas ainda encontrabrecha para fazer uma última pergunta: “O governo pre-tende tomar alguma atitude em relação aos milhares deberlinenses que querem passar para o lado ocidental?” Emtom casual, como quem faz uma declaração totalmentecorriqueira, Schabowski responde: “Como? Vocês não sa-biam? Está aberta a passagem para todos os que queiramse dirigir a Berlim Ocidental.” A tradução disso era: caiuo Muro de Berlim!

A primeira reação é de perplexidade, seguida deuma enxurrada de perguntas nervosas e incrédulas. Emseguida, todos os correspondentes se retiram da sala, ner-vosos, comunicam a grande notícia aos seus jornais, emis-soras de TV e rádio, e se dirigem rapidamente ao“Checkpoint Charlie”, o mais famoso posto fronteiriçodo muro (o nome Charlie corresponde à letra C no jargãode pilotos e rádio-amadores americanos). O inacreditávelacontece diante dos olhos de todos. É tudo verdade. Apassagem está livre, apesar de ainda haver fiscalização defronteira. O Muro de Berlim acaba de ruir.

Ainda incrédula, a multidão enfrenta o frio noturnoe se dirige ao Muro de Berlim

A notícia espalha-se por Berlim Oriental com es-pantosa rapidez. Em poucos minutos, as vias públicas queconduzem ao muro ficam abarrotadas por pequenos epoluidores automóveis Trabants (“trabi”, na gíria local)ou por pessoas a pé. Paira, ainda, um estranho silêncio nanoite fria (pouco acima de zero grau): todos temem quede um momento para o outro a situação volte à sua nor-malidade repressora. Um resto de incredulidade impede,ainda, que a euforia simplesmente aconteça. Uma velhi-nha desce de seu apartamento de chinelo, usando só umsobretudo de lã sobre a camisola, apesar do frio. Temeperder a chance de pisar no “outro lado”.

Berlim, nos dois lados, não dormirá esta noite. UmaBerlim contempla a outra, e o reconhecimento daalteridade, numa operação mágica de oposição de planos,destaca aquilo que há de idêntico nas duas. A festa na ruarecupera, momentaneamente, o clima frenético da antigacapital da Alemanha. Começa a ser superada a rupturageopolítica da cidade. Durante horas a fio, milhares e mi-lhares de alemães-orientais passam para o outro lado, ondecada um recebe do governo a quantia de 100 marcos (equi-valentes a US$ 55) como símbolo de boas-vindas. Essaquantia, cedida mediante a apresentação de passaportealemão-oriental, era tradicionalmente garantida a todosos alemães-orientais que conseguissem ultrapassar o antesquase intransponível muro.

O carnaval começa na Kurfurstendamm (avenidaprincipal de Berlim Ocidental, mais conhecida como

Ku’damm), feito de fogos de artifício, de beijos e abraçosde casais e famílias que se reencontram após anos de sepa-ração, ou de pura euforia coletiva. Não há como ficar in-diferente. Carnaval sim, mas carnaval germânico, bementendido. Basta dizer que ninguém, nem os mais bêba-dos, ultrapassa a faixa reservada aos ônibus, até que sejadada permissão para isso. Há uma incrível ordem no meioda euforia.

O ‘‘carnaval’’ na Ku’damm intensifica a estranheza, asensação onírica de que algo extraordinário estava

acontecendo naquela noite

Isso só faz aumentar a estranheza, a sensação oníricade que algo extraordinário acontece diante de nossos olhos.Os postos fronteiriços colocados ao longo do muro logose tornam insuficientes para dar vazão ao fluxo de pesso-as. Em comum acordo, as prefeituras das duas Berlim co-meçam a abrir passagens. O processo escapa ao controledas autoridades, e o muro começa a ser furiosamentedestruído. No início, há até incidentes com a polícia ale-mã-oriental. Mas nada pode conter a mistura de fúria eeuforia da multidão.

O cenário parece extraído de algum livro malucode ficção. Jovens armados de pás e picaretas arremetem,furiosos, contra o muro de cimento, estimulados por gri-tos de milhares de pessoas. Toda vez que uma laje cai, ofato é celebrado como num ritual bárbaro de luta e con-quista. É o poder do herói sobre a presa. Só que, destavez, o monstro não está dentro do labirinto - como oMinotauro de Creta -, mas é o próprio labirinto. Os jo-vens sentem-se investidos da aura coletiva de Teseus con-temporâneos.

Impessoais e implacáveis, as escavadeiras enviadaspelo governo alemão-ocidental para abrir oito novas pas-sagens são também saudadas como instrumentos de re-denção. São adoradas em sua missão heróica. As lajes quecaem do lado oriental estão todas pichadas, cada centí-metro quadrado. Milhões de turistas ao longo dos anosdeixam ali a impressão de suas memórias, os “baby I loveyou”’, os “I was here” e também as palavras de ordemcontra o muro e o regime.

Em algum momento, uma laje com a caricaturado odiado ex-dirigente Erich Honecker cae sob o impac-to de uma picareta. Os aplausos são tremendos, como sese tratasse de uma espécie de vudu político, com a propri-edade de destruir, ou, talvez, de causar dor ao próprioHonecker. Ao destruir o Muro de Berlim - metáfora da

dilaceração da alma de uma nação - os jovens buscam re-construir sua própria integridade psicológica. Nesse con-texto, mesmo os fatos mais prosaicos, os diálogos e gestosmais rotineiros parecem emanar de um sonho. As horaspassam muito rapidamente, e ainda muito devagar.

A precipitação de fatos históricos causa confusãona percepção normal da passagem do tempo. Éramospartícipes de um filme que narra, em algumas horas, ouminutos ou segundos a epopéia de uma nação, do planetano século XX. Em síntese, o tempo vivido adquire umadimensão mitológica.

Presenciei tudo isso, como correspondente do jor-nal “Folha de S. Paulo” – o próprio relato que acabo deexpor foi extraído de várias reportagens e crônicas por mimenviadas ao jornal, do local em que tudo acontecia. Lem-bro-me perfeitamente bem de que, à época, eu tinha ple-na consciência de que estava vivendo eventos de dimen-sões singulares, de importância crucial para os rumos detoda a humanidade. Como todos as outras pessoas quereceberam em cheio o impacto daqueles dias alucinantes,fiquei embriagado sem ter bebido uma única gota de ál-cool. Era simplesmente inacreditável, tudo aquilo, e noentanto a coisa toda acontecia.

Tornava-se impossível separar a percepção doseventos de ordem pessoal, estritamente vinculados à esfe-ra subjetiva, do grande significado histórico (isto é, pú-blico) que aqueles acontecimentos tinham para todos. Ou,para utilizar uma expressão de Eric Hobsbawn (A Era dosExtremos), acontecia ali um cruzamento entre o eventopúblico e a pequena história individual:

“(...) Os acontecimentos públicos são parte da textu-ra de nossas vidas. Eles não são apenas marcos em nossas vi-das privadas, mas aquilo que formou nossas vidas, tanto pri-vadas como públicas. Para este autor, o dia 30 de janeiro de1933 não é simplesmente a data, à parte isso arbitrária, emque Hitler se tornou chanceler da Alemanha, mas tambémuma tarde de inverno em Berlim, quando um jovem de quinzeanos e sua irmã mais nova voltavam para casa, em Halensee,de suas escolas vizinhas em Wilmersdorf, e em algum pontodo trajeto viram a manchete. Ainda posso vê-la, como numsonho.”

Como num sonho, eu vi e ainda posso ver quandoo Muro caiu. Mas aquela não foi nem a primeira e nemseria a última vez que algo assim acontecia em minha vida.

SERVIÇO:

• Revolução em 3 Tempos: URSS,Alemanha, China - José Arbex Jr., Ed.

Moderna, SP, 1994• Nós, o Povo (A Revolução de 1989 em

Varsóvia, Budapeste, Berlim e Praga),Timothy G. Ash, Cia. das Letras, SP,

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9GRANDEZA, DECADÊNCIA E COLAPSO DAVENEZUELA PETROLEIRA

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DESIGUALDADE E CORRUPÇÃO IMPLODIRAM INSTITUIÇÕES POLÍTICAS

O que foi a “continuidade democrática” daVenezuela, ao longo da qual o contingente de pobresultrapassou a metade dos 23 milhões de habitantes dopaís? O grande paradoxo venezuelano é o abismo entrea opulência do Estado, saqueado por uns poucos, e amiséria da maioria. Caracas é caso único: a massa demiseráveis amontoados em favelas ao seu redor é maiordo que a população da cidade e a violência urbana é amaior do mundo.

Entre 1976 e 1995, as exportações de petróleorenderam ao Estado US$ 270 bilhões. Mesmo assim,pouco se fez em matéria de infra-estrutura e se alarga-ram as escandalosas desigualdes sociais. Cerca de 70%dos venezuelanos sobrevive abaixo da linha de pobreza.O desemprego atinge 21% da população ativa. A eco-nomia informal é o refúgio de 48%. Dois milhões decrianças estão na miséria, 200 mil não tem outro recur-so senão a mendicância.

A Venezuela chegou ao topo de sua riqueza em1976, com o choque dos preços do petróleo. O presi-dente na época, Carlos Andrés Perez, da AD, naciona-lizou a indústria petrolífera e criou a “Petróleos deVenezuela”, que se tornou, com mais de três milhõesde barris diários, a segunda maior produtora mundial.Pouco foi investido em industrialização. O Estado pre-

enezuela, ou “pequena Veneza”, foi o nomedado à região do lago Maracaibo pelos primeiros explora-dores europeus. Seria um dos tesouros do universo, commontanhas de ouro e prata. Mas, passada essa primeirafantasia mineral, começou a exploração agrária e o resul-tado seria uma catástrofe demográfica entre índios dizi-mados pelo trabalho brutal e as doenças levadas pelos co-lonizadores. Numa segunda fase, sobretudo na partecaribenha, prevaleceu a mão-de-obra de negros escravos,submetidos ao poder de brancos fechados em círculosoligárquicos.

Em 1805 o “ayuntamiento” da cidade de Cara-cas aceitou criar uma escola, com a condição de que oprofessorado fosse todo branco “puro”. De 1810 a 1830,a Venezuela forneceu a maioria dos homens que comba-teram com Bolívar na Colômbia, Equador, Peru e Bolí-via. Perdeu um quarto de sua população e só em 1850voltou a ter população igual à de 1810. Depois das guer-ras, sucederam-se os caudilhos. O mais notório deles,José Vicente Gomez, o “tirano dos Andes”, governou de1908 a 1935. Em seu tempo surgiu a Venezuela do pe-tróleo, em associação com capitais britânicos, holande-ses e americanos. Cheio de dólares, Gomez martirizou opaís até morrer na cama.

Na primeira fase colonial, a riqueza foi a cana-de-açúcar. O petróleo apareceu na pauta de exportações em1917, mas café e cacau continuaram na cabeça. Em 1922os jornais venezuelanos anunciaram “verdadeira explosãode petróleo no campo de La Rosa”. Era o primeiro demuitos. A mudança foi tal que a Venezuela viria a impor-tar quase todos os alimentos que consome. Com as rique-zas do petróleo, e também de muito ferro, uma febreimigratória ajudou a impulsionar o processo de miscige-nação. Depois de sufocar a Venezuela agrária, o petróleofinanciou esperanças e perversidades na política.

Um partido dito moderno e de centro-esquerda,filiado à Internacional Socialista, a Ação Democrática(AD), entrou em cena na presidência de Medina Angarita,eleito em 1941 e derrubado em 1945, na onda anti-nazifascista. O criador da AD, Rômulo Bétancurt, assu-miu como presidente provisório e porta-voz de vagas idéiasanti-oligárquicas. Levou o país a eleições livres em 1947,vencidas pelo novelista Rômulo Gallegos. Caracas tornou-

A velha Venezuela, uma democracia elitista e corrupta assentada nas rendaspetrolíferas e no paternalismo estatal, não existe mais. Ainda não existe,contudo, uma nova Venezuela. O país vizinho, que compartilha extensa

fronteira com uma Colômbia em convulsão, atravessa experiência singular. Aeleição que conduziu Hugo Chavez à presidência e, logo depois, a vitória

esmagadora dos partidários de Chavez nas eleições para a Assembléia NacionalConstituinte assinalam o ocaso das velhas instituições de Estado. Segundo opresidente, começou uma “revolução pacífica”. Aqui, a história do colapso do

Estado venezuelano.

feriu assegurar a passividade do cidadão por meio de umaeconomia assistencial. Enquanto isso, os governos, da ADou do Copei, se serviam da imensa riqueza petrolíferapara corromper, por meio de subsídios, isenções fiscais eprivilégios.

Somas gigantescas foram dilapidadas na megalo-mania dos grandes projetos. Ao mesmo tempo, era con-traída enorme dívida externa, equivalente a 60% do PIB.Apesar das nacionalizações, o Estado continua contro-lando o ferro, alumínio, eletricidade, petróleo e numero-sas atividades industriais e agrícolas. A economia é umadas mais estatizadas do mundo. Com todo esse dinheiro,os três poderes do Estado se enfurnaram na corrupção,enquanto o peso da dívida impunha a adoção de políti-cas de “ajuste”do FMI. Foram essas políticas que detona-ram o “Caracazo”, a explosão popular em Caracas, repri-mida de modo sangrento, depois da posse, em 1988, demais um governo de Carlos Andrés Perez, destituído em1993 e condenado por corrupção.

Perez se elegera presidente pela primeira vez em1972, em plena euforia do petróleo. Dezesseis anos de-pois, no seu segundo governo, o barril de miséria come-çava a transbordar. Com o monopólio da dobradinha AD-Copei em crise, ganhou a presidência em 1993 o “inde-pendente” Rafael Caldera, um dos fundadores do Copei,

com o qual rompera. Os dois grandes partidos, há mui-to, tinham deixado de lado as diferenças ideológicas.Estabeleceu-se entre eles um sistema de colaboração re-cíproca. Perder eleições não significava perder privilé-gios. Caldera representou uma primeira ruptura, como ingresso no governo de um partido de esquerda, oMovimento ao Socialismo (MAS), e uma tentativa fra-cassada de distanciar-se do FMI. Na condição de mi-nistro da Fazenda, um ex-guerrilheiro, Teodoro Petkoff,administrou o “ajuste” econômico negociado em 1996.

Num gesto considerado ousado, o presidenteoctogenário anistiou o ex-coronel Hugo Chávez, queem 1992 tentara um golpe à frente de 11 batalhões eapoio de estudantes de esquerda da Universidade deValência. O Movimento Bolivariano de Chavez criti-cava a corrupção, denunciava as desigualdades sociaise se insurgia contra a “ditadura dos mercados financei-ros”. Da cadeia, onde o coronel permaneceu por doisanos, à presidência e à avalanche de votos para umaConstituinte com a tarefa de “refundar a república”,foi mera questão de tempo. “A velha política e os ve-lhos partidos estão mortos, só falta sepultá-los”, garan-te Chavez.

(Newton Carlos)

se, por pouco tempo, a capital cultural da América Lati-na. Gallegos ficou 10 meses em palácio. Oficiais corrup-tos, latifundiários obstinados e grandes negociantes colo-caram em seu lugar uma junta militar. O petróleo pagouas contas.

Em 1953, um Congresso constituinte nomeoupresidente o general Perez Jimenez. A Venezuela tornou-se peça do anticomunismo da Guerra Fria, e Jimenez, umditador corrupto. O “jimenezismo” foi um tempo de sun-

Newton CarlosDa Equipe de Colaboradores

tuosas obras viárias. Veio à tona, saído do clericalismo, oComitê de Organização Política e Eleitoral Independente(Copei), partido democrata-cristão. Jimenez foi derruba-do em 1958 por um confuso conglomerado, que abran-gia AD, Copei, sindicatos e militares. Elegeu-se Bétancurte, desde então, AD e Copei se alternaram no poder, namais duradoura “continuidade democrática” do continen-te, até que apareceu Hugo Chavez.

Trabalhadores venezuelanos enterram vítima de manisfestações de rua, freqüentes em um país divididopela extrema desigualdade social e pela corrupção, Chavez promete uma “nova Venezuela”

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500 ANOS, COM CORPO DE 250

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Demétrio MagnoliEditor de Mundo

Demétrio Magnoli é Doutor em Geografia Humana pela USP. A matéria desta páginaestá baseada na sua tese de doutoramento, defendida em 1996 e publicada com o título OCorpo da Pátria: Imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808-1912) (São Paulo,

Unesp-Moderna, 1997). Esse trabalho procura desvendar as origens geográficas das narrativasnacionais brasileiras. Ele concentra a sua atenção na produção de um território imaginário,

que serviu como projeto e plano de ação política para a construção das fronteiras do país.

pátria, segundo dizem, faz 500 anos no ano que vem. Nessa ordem de idéi-as, que assimila a nação a um personagem, o ano 2000 serve também para outra come-moração, de igual importância – os 250 anos do Tratado de Madri. A história oficialconta que foi esse tratado, firmado entre as coroas ibéricas em 1750, o responsável peladelimitação das fronteiras brasileiras. Pois que seja: o corpo da pátria, esse vasto territó-rio do Brasil, nasceu pelas mãos de Alexandre de Gusmão, há exatos dois séculos e meio.

Alexandre de Gusmão, secretário do rei D. João V e membro do Conselho Ultra-marino, foi o principal negociador português. As negociações, iniciadas em 1746, abran-geram as disputas globais que prendiam as duas potências mercantilistas numa rede dedesencontros apoiada sobre o velho Meridiano de Tordesilhas. Gusmão demonstrou queo arquipélago das Filipinas, na longínqua Ásia, localizava-se a mais de 180 graus docélebre meridiano – aquela colônia espanhola estava, portanto, no interior do “hemisfé-rio português”. Desse modo, habilmente, desferiu uma flechada de morte no tratado doanoitecer do século XV, abrindo caminho para a consagração de um novo critério dedelimitação do patrimônio das coroas rivais.

Em nome do direito de posse

Esse critério foi o uti possidetis, ou interdito possessório: a posse legitimada pelaocupação efetiva. No início do século XVII, Hugo Grotius, o holandês que fundou odireito internacional moderno, defenderaas pretensões de seu país às terras daIndonésia com base nesse princípio, con-trariando os “direitos de descoberta” invo-cados pelos portugueses. Em Madri,Gusmão trouxe o uti possidetis para o ladode Portugal. Pelo tratado, finalmente al-cançado, a coroa lusitana reconheceu aposse espanhola das Filipinas e cedeu aColônia de Sacramento, fortificação por-tuguesa erguida junto ao Rio da Prata. Emtroca, a Espanha reconheceu o direito dePortugal à margem oriental dos rios Paraná,Paraguai, Guaporé e Madeira. Em conse-qüência, a coroa espanhola abandonava aPortugal os Sete Povos das Missões, queseriam dizimados nas chamadas GuerrasGuaraníticas (veja a matéria na página aolado).

O Tratado de 1750 foi um acordoentre impérios mercantis e coloniais. EmMadri, o que estava em jogo era opatrimônio das coroas: os direito das di-nastias de tributar as atividades econômi-cas e exigir a lealdade dos súditos que ha-bitavam as suas terras. Desse ponto de vis-ta, trocar os Sete Povos pela Colônia de Sacramento e o controle sobre a navegação noRio da Prata fazia sentido para os espanhóis. Assim como fazia sentido para os portugue-ses trocar direitos meramente hipotéticos sobre as Filipinas pelo ouro palpável (e tributável)das minas de Mato Grosso.

Na esfera política e diplomática, o famoso Tratado teve vida curta. Em 1761, osatos dele decorrentes foram “cancelados, cassados e anulados”, segundo rezava o novoTratado de El Pardo. Depois, em 1777, El Pardo foi cancelado por Santo Ildefonso, quefoi cassado e anulado por Badajós, em 1801. Mas, na esfera da narrativa histórica, oTratado de Madri não morreu jamais. Desde o século XIX, ele foi incorporado à tradi-ção nacional na condição de verdadeiro certificado de batismo das fronteiras da pátria.

A nação é uma tradição inventada

A nação é uma memória coletiva, um passado fabricado, uma tradição inventa-da. No Brasil, a manufatura da memória coube à elite do Império – o novo Estadoindependente, uma monarquia tropical atravessada pela cicatriz da escravidão, precisava

de uma história e de uma geografia. Esse empreendimento foi levado à frente pelo Insti-tuto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), presidido desde 1849 até a proclamaçãoda República por D. Pedro II, e pelos institutos similares organizados nas províncias.

No IHGB, reuniam-se os senadores, ministros, conselheiros de Estado e diplo-matas, que eram também intelectuais, como Francisco de Varnhagen e Capistrano deAbreu, cientistas, como o alemão von Martius, e escritores, como Gonçalves Dias eGonçalves de Magalhães. Nele e nos institutos provinciais, a nata da política e das letrasproduziu as narrativas cujos ecos ainda ouvimos. O romantismo, essa vértebra emotivada época, foi o filtro através do qual a história colonial separou-se dos seus contextospróprios e adquiriu significados novos. Esses significados produziriam espanto aos pro-tagonistas, que não poderiam sequer compreendê-los, mas soam naturais aos nossosouvidos.

Como escrever a história do Brasil? Com essa questão, proposta por um dospresentes, foi aberta a primeira sessão do IHGB, em dezembro de 1838. Martius sugeriuum plano ambicioso, que pioneiramente enfatizava as “contribuições” de índios e ne-gros, inaugurando a mitologia das três raças. Varnhagen foi mais longe e publicou, entre1854 e 1857, a sua História geral do Brasil que é considerada a primeira obra do gênero,embora a sua inspiração óbvia seja a História do Brasil do inglês Southey, editada em1810. Em Varnhagen, o Tratado de Madri já aparece sob uma nova roupagem. De lápara cá, a versão soterrou o fato e, reproduzida à exaustão, edificou um dos mais sólidos

pilares da nacionalidade.

O Tratado de Madri e a literatura

Euclides da Cunha interpretou oTratado de Madri como “a glorificação damais extraordinária marcha colonizadoraque se conhece”. Araújo Jorge, biógrafo deRio Branco, enalteceu “a figura de Alexan-dre de Gusmão, riscando, à distância dequase dois séculos, as fronteiras que deramao Brasil a sua configuração atual”. Delga-do de Carvalho, na sua História diplomá-tica do Brasil, atribuiu “a clarividência dosdestinos de uma grande nação” ao “diplo-mata brasileiro que dirigia a política exte-rior de Portugal”. Na mesma linha, JaimeCortesão, biógrafo do negociador, sugeriuque “por volta de 1746...o grande diplo-mata deve ter entrado na consciência dumaunidade geográfica e econômica do Brasila defender”.

O passado fabricado é um cone desombra que esconde a história. Se o Trata-do de Madri gerou o corpo territorial dapátria, então as guerras do século XIX, des-

de a Cisplatina até a do Paraguai, assim como os tratados firmados por Rio Branco, noalvorecer da República, não são mais que a confirmação de um direito anterior. Por essavia, de modo quase mágico, a história real desaparece no novelo interminável das tradiçõesinventadas, que nos remetem a uma pátria eterna, entalhada num tempo insondável.

Aí se encontra a função das narrativas nacionais. Elas servem como fundaçõesimaginárias da pátria. Seus monumentos – as datas que comemora e os heróis que cele-bra – são utensílios da política. Eles pedem lealdade e admiração. Merecem ceticismo,desconfiança e, sempre que possível, uma revisão crítica.

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O corpo da pátria é uma invenção de natureza mitológica que sustenta, dá umsentido unificado, uma ordem e uma tradição à história de um povo

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menos do que caracterizar o domínio diabólico dos jesu-ítas sobre os índios, domínio esse contrário aos interessesda coroa portuguesa, cuja voz se faz sentir no poema.

Assim, o índio de O Uraguay, apesar de simbolizara energia nobilitante da natureza, debate-se entre doispólos de agressão: por um lado, a ação civilizadora deGomes Freire o conduz à uma luta sem esperança; poroutro, os jesuítas o mantêm em disfarçada escravidão,conduzindo-o à morte sorrateira. A primeira agressão erainevitável, pois tinha por objetivo livrá-lo da tutela jesuíticae integrá-lo à esfera da benigna proteção da coroa. Ao su-jeitar os índios ao domínio português, Gomes Freire ageem nome do progresso, em perfeita consonância com odespotismo esclarecido do Marquês de Pombal, que, me-diante a guerra, levava ao extremo sul do Brasil as luzes doequilíbrio e da obediência. Não é à toa que, além de con-ter um elogio ao empreendimento integrador de GomesFreire, o poema apresenta uma sátira aos jesuítas, que fi-guram como vilões em sua trama, exatamente por susten-tarem uma política desintegradora e contrária ao que seentendia por boa razão do Estado.

Como se vê, o poema de Basílio da Gama é emi-nentemente político, pois veicula noções estabelecidas pelodespotismo esclarecido de Sebastião José de Carvalho, que,além de estabelecer diretrizes administrativas bem defini-das, empenhou-se na criação e divulgação de uma ima-gem favorável de si mesmo. Não foi por acaso que o po-deroso ministro obteve o título Marquês de Pombal logoapós a publicação de O Uraguay, ainda em 1769. Em ri-gor, a publicação desse poema fez parte de uma complexacampanha de propagação de seu ideário, campanha queacabou assumindo nítidas configurações de mecenato, omecenato pombalino. Por meio da literatura, da história,da arquitetura, da gravura e da escultura, esse mecenato,além do antijesuitismo ostensivo, criou e propagou a ima-

O URAGUAY, MARQUÊS DE POMBAL E A POÉTICA CULTURAL

gem de um ministro associado à idéia de progresso, derazão, de estudo, de trabalho, de dinamismo, de firmezaadministrativa e de fidelidade ao rei. Por essa perspectiva,o poema deve ser lido como um encômio alegórico, istoé, como um texto de elogio e exaltação indireta de umafigura proeminente, que, no caso, excede os limites doherói do poema propriamente dito e recai sobre a figurade seu superior na estrutura hierárquica do Estado - oentão Conde de Oeiras, que domina todo o poema, poissurge na abertura do volume de O Uraguay, num sonetoque sintetiza de forma espetacular as virtudes de seu des-potismo esclarecido; permanece na dedicatória do texto,dirigida a seu irmão Francisco Xavier de Mendonça Fur-tado; e participa da própria ficção do poema, em que apa-rece reconstruindo a cidade de Lisboa e expulsando osjesuítas dos domínios portugueses.

Muita influenciada pela visão romântica, nossahistoriografia sempre se orientou pela perspectiva da for-mação de uma literatura brasileira. Por isso, a crítica pós-romântica desconsiderou os vínculos de O Uraguay com aIlustração portuguesa, com o despotismo esclarecido e como mecenato pombalino, para enxergar nele apenas aidealização do índio brasileiro, entendida como antecipa-ção da alma nacional. Criou-se, inclusive, o pressupostocrítico de que os momentos de adesão ao ideário políticolusitano representariam passagens de má poesia em OUraguay. Assim, aos poucos a sensibilidade oitocentistafoi transformando o acessório em essencial, mesmo quepara isso o poema tivesse de ser mutilado em sua estrutu-ra. A leitura histórica, que reconduz o poema à poéticacultural de origem, não exclui a interpretação romântica,antes a entende como momento importante de sua recep-ção, ao passo que esta o mutila para enquadrá-lo em seusistema de valorização de supostos elementos brasileirosna produção colonial.

Ivan Teixeira é doutor em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo. Leciona na Escola de Comunicações e Artes, damesma universidade. Além de colaborar na autoria do material didático do Curso Anglo Vestibulares de São Paulo, escreveu,entre outros, Apresentação de Machado de Assis (Martins Fontes) e Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica (Edusp). A convite

da Editora da Universidade de São Paulo, organizou, em 1996, as Obras Poéticas de Basílio da Gama.

Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica, deIvan Teixeira, instaura entre nós nova categoria paraa abordagem do fenômeno literário: a noção de po-ética cultural. Partindo desse conceito, o livroenfatiza as relações do Marquês de Pombal comJosé Basílio da Gama e com o retor português Fran-cisco José Freire, autor de importantíssima e es-quecida Arte Poética ou Regras da Verdadeira Poesia,brilhantemente resgatada nas páginas desse ensaio.

Marquês de Pombal

D e repente, todo mundo quer saber sobre OUraguay, sempre mais citado do que lido. Sendo um dosmaiores textos do período colonial brasileiro, o súbitointeresse pelo poema de José Basílio da Gama (1741-1795)explica-se como particularização da retomada dos estu-dos coloniais em geral, não só em seus aspectos artísticos,mas também em seus aspectos políticos e econômicos.Agora, com a celebração dos 500 anos de Brasil, o temacolonial tornou-se verdadeira febre e é aceitável que sur-jam publicações marcadas por matiz propagandístico e cir-cunstancial. Essas são algumas das razões pelas quais OUraguay vem sendo cada vez mais solicitado nos circuitosacadêmicos, com surpreendente ressonância na grande im-prensa das principais capitais do país.

Publicado em 1769 sob o patrocínio de SebastiãoJosé de Carvalho e Melo, então Conde de Oeiras e minis-tro todo poderoso de D. José I, O Uraguay, apresentadopelo próprio autor como poema épico, narra a expediçãomilitar do governador do Rio de Janeiro Gomes Freire deAndrade ao Sete Povos da Missões, ocorrida entre 1752 e1756, com o propósito de impor novos limites à AméricaPortuguesa, em obediência aos dispositivos do Tratado deMadri, de 1750. Como se sabe, esse tratado forçava a trans-ferência a portugueses de terras que os jesuítas possuíamcomo suas na América Espanhola. Em troca, Portugal ce-deria à Espanha a Colônia do Sacramento, fortificaçãoportuguesa situada no extremo sul dos domínios espa-nhóis, no estuário do Prata. Em vez de auxiliar os interes-ses dos dois Estados contratantes, os jesuítas teriam arma-do os índios guaranis e os teriam incitado à resistênciacontra o avanço português sobre seus domínios. Resultoudaí a Guerra Guaranítica, objeto do canto de Basílio daGama.

Por definição, o poema épico deve narrar umaguerra ou uma viagem, em que se destaque o espírito deaventura e de heroísmo. Francisco José Freire, autor domais importante compêndio poético em vigor na segun-da metade do século XVIII em Portugal, a Arte Poética ouRegras da Verdadeira Poesia (1748), a cujos ensinamentosBasílio da Gama se submeteu, define epopéia como aimitação de uma ação que, pelo heroísmo e pela perfei-ção, deveria causar espanto e prazer no leitor, a ponto deincitar os ânimos ao amor das virtudes e dos grandes em-preendimentos. Segundo o mesmo retor, o núcleo da açãoépica deveria vir exposto na proposição do poema, o quese observa com nitidez no início de O Uraguay:

MUSA, honremos o Herói que o povo rudeSubjugou do Uraguay e no seu sangueDos decretos reais lavou a afronta.

Por esses versos, entende-se que o propósito dopoema é exaltar a ação de Gomes Freire de Andrade, porhaver conseguido subjugar os índios guaranis dos SetePovos e lavar, com o próprio sangue deles, a afronta que,guiados pelos jesuítas, cometeram contra as decisões doTratado de Madri. Todavia, a voz épica de O Uraguay nãodesmerece os opositores indígenas, mesmo porque, caso ofizesse, a ação de Gomes Freire ficaria diminuída em seusméritos. Por isso, os índios americanos são apresentadoscomo fortes e valentes defensores de suas terras. Além dis-so, são vistos como vítimas da própria inocência e daambição dos jesuítas, pois estes os fizeram acreditar queos reis europeus não possuíam autoridade sobre aqueleslongínquos domínios do continente americano.

A ser julgada pelas estritas leis do poema épico, afábula de O Uraguay deveria limitar-se à ação de GomesFreire contra os indígenas insubmissos, porque assim fi-caria garantida a unidade de ação do poema, preconizadapela poética clássica. Mas não é isso o que se observa.Terminada a batalha do canto segundo, a voz épica dirigesua atenção para a aldeia de São Miguel, onde observa avida dos índios, articulando uma estória inteiramente di-versa da ação do herói. Em linhas gerais, os componentesdessa fábula decorrem da tirania do padre Balda, da qualdecorrem as desventuradas morte de três índios inocentese amoráveis: Cacambo, Lindoya e Tanajura. Qual a fun-ção dessa estória paralela à marcha do exército portuguêsem busca da harmonia política pelas matas do Brasil? Nada

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ANO 2 ■ Nº 6 ■ OUTUBRO 1999

✔ Atrelamento: riscos e oportunidadesSeja qual for o setor da economia ou profissão em que você vai trabalharno futuro, lidar com os riscos do “lock-in” é um dos desafios cruciais. Vejatambém as dicas para se conectar à rede. Págs. 2 e 3

✔ Aprendendo a conviver com o criseAs primeiras crises mais intensas de nossas vidas estão ligadas às escolhasprofissionais e ao período pré-vestibular. E, também nesse setor, pior do queviver crises é camuflá-las, ir atrás de caminhos para fugir delas. Pág. 4

Que Fazer?Que Fazer?uidado com o “lock-in”

■ tecnologia ■ vocação ■ emprego ■

Parece “louquinho”, mas é “lock in” (expressão inglesa que se pronuncia“lóc in”). “To lock”, em inglês, significa prender, trancar. “Lock-in” pode sertraduzido como “apegar-se”, “ficar preso a algo” ou “ficar preso dentro dealgo”, não tanto no sentido de estar aprisionado numa cela, mas de “ficarenganchado, atrelado”. Cuidado com o “lock-in”! Ou seja: cuidado com oatrelamento.

“Atrelamento” significa originalmente “colocar trela”, que é a correia comque se prende o cão de caça. Mas “trela” tem um sentido figurado: licença,liberdade. “Dar trela” é soltar, deixar rolar, dar confiança. Pode-se “atrelar” oscavalos, mas também “dar trela” a uma paquera. “Atrelar” significa ainda“dominar”, “prender”, mas também “apoiar-se permanentemente em alguém”.

Essa edição final do “Que Fazer?” em 1999 fala dos perigos, mas tam-bém das oportunidades criadas pelos “atrelamentos”. Como eles ajudam aentender e enfrentar riscos, em meio a crises de tudo o que é tipo?

A crise econômica, por exemplo, não é apenas brasileira, embora aquiela assuma formas ainda mais cruéis. A economia mundial passa por uma dassuas maiores crises do século, comparável apenas à de 1929. Preparar-separa sobreviver em meio ao ciclo atual de transformações é conseguir cultivarum estado de espírito alerta para os perigos e oportunidades criadas peloatrelamento.

A economia da informação é um novo e vasto território. A Internet éapenas uma das vias de acesso a ele. É nessa nova economia que estão asoportunidades de emprego, as novas profissões, os casos mais impressionan-tes de enriquecimento rápido e, também, de grandes fracassos. Tudo está sen-do redefinido: do modo como se trabalha ao tipo de produto que se consome,das divisões entre disciplinas científicas às formas de aprendizado e acesso àcultura e ao lazer.

Como o próprio nome já indica, na economia da informação tem maisvalor quem está mais bem informado. Tarefa que é aparentemente facilitadapela multiplicação das fontes de informação. Afinal, a Internet é um oceano dedados, contatos, acessos. Mas, como diz o velho ditado, as aparências enga-nam. Ficar louquinho nessa teia de informação é muito fácil...

CC

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Atrelamento: riscos e oportunidadesAtrelamento a sistemas

Afinal, o que é informação? Para entender um pouco melhor, émais adequado falar em “redes de informação”. Uma rede, como umaárvore, é algo que se desenha no espaço como um emaranhado de ra-mos e relacionamentos, algo que se multiplica a partir de si mesmo, emvárias dimensões, dando sempre a impressão de algo que não tem fim,que não tem limites.

Esse é o lado positivo, excitante e rentável da rede. No entanto, éimportante mostrar seu lado obscuro e pouquíssimo discutido - e que aliástem sido ofuscado pelo néon, pelo design dos sites, pelo ti-ti-ti glamourosodas canções que louvam a realidade virtual dos websites e pelo tesão nemsempre sutil que domina as salas de bate-papo.

Em inglês, duas palavras são usadas alternativamente para fazerreferência à rede. Uma é “network”. Outra é “web”. “Network”, comesse “work” (trabalho), lembra o operacional, o utilitário, o funcional, arede como instrumento que facilita e amplia o sentido das atividades detodos os que se conectam a ela.

“Web” é teia, palavra usada para a teia da aranha, que prende,imobiliza, contém e, em vez de ampliar e facilitar a vida de quem seconecta, consome quem se “enreda”, devora quem se atrela; imobiliza,asfixia, domina e subjuga até a morte. Morte biológica, no caso dosseres vivos presos na teia da aranha. Morte da inteligência, no caso dosque se atrelam a um sistema sem ter consciência dos seus riscos e mesmode seus LIMITES, apesar da aparência de que a “www” é algo ilimitado.

Por enquanto, predomina o glamour. Com menos publicidade, hácasos escabrosos de vítimas de novos crimes executados pela rede, deexploradores sem escrúpulos, de massificação sem conteúdo. Há sobretu-do uma enorme ignorância sobre o que significa esse sistema. E sobre adiferença entre fazer uma conexão e se deixar atrelar.

A economia do atrelamento

O livro Information Rules (Regras da Informação, um guia es-tratégico para a economia das redes), escrito por Carl Shapiro e Hal R.Varian (Harvard Business School Press), dedica vários capítulos ao fenô-meno do “lock-in”. É um caso muito específico de atrelamento, mas umbom ponto de partida para entender o problema.

Imagine que você ou sua família decidiram trocar de carro. Nahora de decidir, a opção entre marcas é relativamente livre. Entre umFord, um Toyota ou Volkswagen, pesam fatores como preço, estética,propaganda, usos programados (passeio, viagem, carga). Obviamentenão será preciso reformar a garagem para receber o novo carro. A gaso-lina continuará sendo a mesma. E ninguém precisa voltar para a auto-escola cada vez que compra um carro novo.

Tudo isso é tão óbvio que chega a ser ridículo. Mas compare essetipo de decisão com a compra de um novo computador ou mesmo deobjetos que são usados junto com o computador, cada vez mais numero-sos (impressora, scanner, modem, câmera de vídeo, placas de expansãode memória etc.). Ou de softwares e sistemas operacionais. Surge umapalavrinha danada: “compatibilidade”.

Em geral, é como se fosse necessário voltar à “auto-escola”: lendomanuais ou fazendo cursos (e, cada vez mais, cursos on-line), o uso ade-quado dessas ferramentas exige uma atualização constante das nossashabilidades, conhecimentos e mesmo objetivos profissionais. Afinal, asmáquinas e softwares têm sido responsáveis pela morte de um númeronada desprezível de profissões e empregos nos últimos anos.

Ao contrário do carro, cujas condições de uso já estão amplamentepadronizadas, as novas tecnologias de informação, além de não atende-rem a um padrão único, existem num verdadeiro estado de guerra entrepadrões.

“Lock-in” significa ficar preso a um padrão e, o que é pior, ter deenfrentar custos elevadíssimos quando surge o momento de mudar. Tantopara um indivíduo quanto para uma grande empresa, os investimentosem equipamentos, treinamento e manutenção de sistemas de informaçãocostumam ser elevados. Mas eles se tornam ainda mais altos quando seatrela toda a nossa dependência de informação a um sistema que ficaobsoleto.

O grande problema econômico do “lock-in” está na habilitaçãodas pessoas e das empresas para enfrentar os desafios da atualização eadaptação de sistemas aparentemente ilimitados, mas que, na prática,são datados. Eles podem condicionar e impedir o desenvolvimento.

Ou seja, para ser um profissional de qualidade, para ser uma em-presa competitiva, não basta saber usar o computador ou certos tipos deprogramas (softwares), não basta ter o equipamento e ser treinado noseu uso. A condição de sobrevivência é ser capaz de avaliar, a cadamomento, o grau de atrelamento a um sistema e estar preparado paraquestionar o sistema, indo além de suas limitações.

Competir é aprender, sempre

Qual o conflito jurídico mais célebre desse final de século nos EUA?É o processo contra a Microsoft, de Bill Gates, acusada de tentar impôr oseu padrão a fabricantes e comerciantes, para atingir um domínio de mer-cado tão amplo que beira o monopólio. E quem monopoliza um mercado,ensinam os manuais da economia, consegue lucros extraordinários.

O conflito com a Microsoft obviamente é movido pelos seus concor-rentes que, a rigor, provavelmente fariam o mesmo se pudessem levar oseu domínio de mercado aos níveis alcançados pela empresa de BillGates, hoje uma das pessoas mais ricas do mundo.

Você está sendo aprisionado pela rede, imobilizado pela teia, ou está se preparando para se conectara pessoas e se manter em estado de alerta permanente para a mudança no ambiente e no conhecimen-to? Tente responder às questões abaixo e avalie:

1) Cuidado com o sonambulismo eletrônico. Quando entra na rede, você está consciente do que procura? Ou apenas sedeixa levar pelo que vai aparecendo na tela?

2) Viajar é bom, mas é legal saber que existe um lar para onde a gente volta. Depois de sair de um determinado “link”,você consegue se lembrar exatamente do que estava procurando e continuar sua pesquisa?

3) Diz o ditado que “à noite todos os gatos são pardos”. Você consegue estabelecer diferenças entre um bom e um mau“site”?

4) Antes de comprar o carro é bom fazer o “test drive”. Você já avaliou a qualidade de um “site” recomendando-o a umamigo e insistindo em saber sua opinião?

5) Não ter memória leva você a fazer de novo até mesmo coisas que você não tinha gostado de fazer. Você tem cuidadodos seus “favoritos” (é o recurso, nos programas de navegação pela Internet, onde ficam gravados os endereços de sitesde que gostamos ou precisamos usar com mais frequência)? Em caso positivo, já os subdividiu em “pastas”? Ouqueimou todos os filmes de suas viagens?

6) Reencontrar um amigo é reconhecer-se. Você cria vínculos estáveis com pessoas nos “chats”? Ou para você elas nãopassam de diferentes produtos da prateleira de um supermercado virtual?

7) O bom pescador sempre reserva tempo para recosturar sua rede. Você costuma conversar, com amigos ou na escola,sobre a qualidade, as limitações e possibilidades das máquinas e softwares que utiliza? Ou nas aulas de informáticavocê apenas aprende a usá-los e já se sente satisfeito com isso?

8) O caçador escolhe o calibre da arma pelo tipo de caça. Ao pensar na profissão que deseja seguir, você inclui entre osfatores de análise e comparação o impacto das novas tecnologias da informação no mercado dessa profissão? Faz umaavaliação do seu próprio gosto ou interesse por tecnologias de informação e o uso que delas se faz no mercado ouprofissão em que pretende ingressar?

9) Carros e computadores são sistemas diferentes. Hoje é evidente que, para dirigir, não é preciso ter noções de mecânica.Mas nas atividades que usam tecnologia de informação, algum conhecimento de como as coisas funcionam é importan-te para usá-las melhor. Qual o seu nível de interesse pela tecnologia que está por trás da ferramenta?

10) Sem estratégia tudo é mais difícil. Você olha para o futuro e tenta imaginar o caminho em direção a ele ou olha para opassado, para o que já deu certo, e imagina que vai continuar funcionando? Ou seja, tenta desenhar uma estratégiainovadora ou apenas copiar aquilo que já garantiu o sucesso de outras pessoas?

Dicas para se conectar à rede de informação

Mas a questão central para cada um de nós, usuários desses siste-mas e padrões, é outra: o que significa conectar-se ao mundo econômicoda informação?

É usar inteligentemente as ferramentas disponíveis na rede ou ficarescravo de uma marca, de um fabricante, de um padrão controlado poruma única empresa ou grupo de empresas? É aprender a pensar e sercriativo, ultrapassando os limites do conhecimento, ou ser treinado parausar instrumentos cujos limites são dados pelos interesses do fabricante?É comprar soluções prontas ou criar soluções que sejam adequadas aonosso cotidiano, aos nossos interesses e mesmo às empresas onde traba-lhamos?

Qualquer pessoa sensata responderia que o objetivo maior é sercriativo, pensar, ampliar a inteligência, aprender a aprender, conectar-sesem ficar atrelado, usar a ferramenta em vez de ser condicionado por ela.

Mas isso é mais fácil de querer e dizer do que de fazer. Na maioriadas empresas, investir em tecnologia da informação tem sido sinônimode treinar os funcionários a usar um software ou tipo de máquina. Não éà toa que inúmeras pesquisas têm revelado que os resultados dos investi-mentos deixam a desejar em termos de produtividade, qualidade ecriatividade dos funcionários e das empresas.

Ser competitivo não é comprar o recurso mais caro e mais avança-do, é conseguir aprender a usar melhor, com mais criatividade, os recur-sos disponíveis. Competir é aprender, sempre.

Aprender a aprender

Seja qual for o setor da economia ou profissão em que você vaitrabalhar no futuro, lidar com os riscos do “lock-in” é um dos desafioscruciais, exige não apenas saber usar o computador, mas conseguir ava-liar até que ponto a ferramenta para a conexão não está se transforman-do numa bitola que limita os caminhos a percorrer. Com a palavra, Shapiroe Varian:

“O “lock-in” pode ser uma fonte enorme de dores de cabeça ou delucros substantivos, dependendo de que lado você está, preso a um quar-to trancado ou com a chave para abrir a porta. O caminho para vencerem mercados onde há custos para mudar de tecnologia não está emevitar nem em se entregar ao “lock-in”. Você precisa pensar estrategica-mente: olhe para frente e raciocine retrospectivamente.”

LeituraO livro Information Rules já foi traduzido para o português. É

um texto avançado, mas cheio de exemplos que facilitam o entendimentomesmo para quem ainda não estudou economia. Ele foi publicado sob otítulo A Economia da Informação (Como os princípios econô-micos se aplicam à era da Internet), pela Editora Campus, tem400 páginas e custa R$ 49.

Conectando-se a pessoas

A tendência nas empresas, nos governos e na sociedade é ocorrero fracasso empresarial, político e social sempre que a tecnologia é vistacomo um fim em si mesmo, como uma solução “turn-key”, ou seja, comose fosse uma máquina cujo funcionamento exige apenas que se “gire achave”: ela pensa, decide e trabalha por nós. Do atendimento telefônicopor secretárias virtuais ao desenho de produtos e serviços, a compra desoluções prontas é o melhor caminho para o fracasso estratégico.

Estratégia é olhar para frente e pensar retrospectivamente. Quandoalguém simplesmente copia ou repete mecanicamente um procedimento,uma tarefa, um sistema, está olhando para trás (para o que já foi feito) eapostando todas as fichas na hipótese de o sistema continuar funcionan-do exatamente do mesmo jeito no futuro. Ora, se vivemos num contextode mudança tecnológica e crise, repetir o velho e apostar na sua continui-dade é uma receita infalível para o fracasso.

Como, então, enfrentar a crise de um modelo, o envelhecimento deum padrão tecnológico, a mudança cultural? A resposta é óbvia, mas emgeral fica escondida pela excitação com as máquinas e softwares. Asolução está no tipo de rede na qual você se conecta. E o tipo de rede -ou seja, a sua qualidade, dinamismo, produtividade, sensibilidade paraa mudança - depende única e exclusivamente da qualidade, dinamismo,produtividade e sensibilidade para a mudança das PESSOAS que estãopor trás de cada máquina, usando seja lá qual for o software.

Para ir adiante, rompendo limites em vez de ser aprisionado pelarede, é crucial estabelecer conexões com pessoas reais, de carne e osso,com as quais seja possível interagir criativamente em torno de projetos,temas de interesse, opções profissionais.

Por essa razão, cada vez mais as empresas estão repensando osseus modelos de lidar com os chamados “recursos humanos”. Muitasainda estão na Idade da Pedra nessa área: acham que basta treinar ofuncionário em determinados padrões, fazê-lo assimilar a cultura da em-presa ou repetir mecanicamente o que os funcionários mais velhos jáfazem.

As empresas mais avançadas buscam outro foco. Estão preocupa-das com a mudança e sabem que o recrutamento de novos funcionáriospode ser uma oportunidade para fazer a própria empresa mudar, man-tendo-se conectada ao mundo.

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outubro 99

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Expediente

Editor: Gilson Schwartze-mail: [email protected]

Consultor: Luiz Paulo Labriola e-mail: [email protected]: Knowware ConsultoriaProjeto gráfico: Wladimir Senise

Que fazer?■ tecnologia ■ vocação ■ emprego ■

é um suplemento dos boletinsMundo

Geografia e Política Internacional eTexto & Cultura

■ interpretar ■ escrever ■Não pode ser vendido ou distribuído

separadamente.

APRENDENDO A CONVIVER COM A CRISE

“Crise” é uma palavra que não deve necessariamenteespantar. Assumir maiores responsabilidades é, ao mesmotempo, descobrir “na pele” o que são as “crises”. Até por-que elas resultam de conflitos - entre pessoas, idéias, mode-los, opções - e estes se tornam mais intensos e freqüentes àmedida que as vivências pessoais se multiplicam e se diver-sificam.

Certamente as primeiras crises mais intensas de nossasvidas estão ligadas às escolhas profissionais e ao períodopré-vestibular. E, também nesse setor, pior do que viver cri-ses é camuflá-las, ir atrás de caminhos para fugir delas. Nahora de se decidir por esta ou aquela carreira e de enfrentaros momentos que antecedem os exames, é muito comumcertas pessoas assumirem discursos que parecem ser bas-tante racionais, ponderados, maduros, mas que muitas ve-zes estão apenas ocultando problemas que precisam serresolvidos. Eis aqui alguns desses discursos.

a) “Não estou pronto para fazer essa escolha. Devo espe-rar mais um ano, fazer cursinho, pensar bem e entãotomar uma decisão.” Dependendo da intensidade dasdúvidas e da crise, esse talvez seja mesmo o melhor ca-minho: dar um tempo. Mas muitas vezes o discurso “ma-duro” está servindo apenas para adiar tarefas que vocêterá que fazer também no próximo ano: informar-se so-bre as carreiras, consultar profissionais, avaliar quaisáreas têm mais a ver com seu modo de ser, consultar umespecialista em orientação vocacional. As decisões nãocaem do céu. São produzidas.

b) “Gosto de tanta coisa, que talvez seja melhor esperar umpouco mais para me decidir por esta ou aquela carreira.”Claro, pode haver tantas vontades e tantos projetos nacabeça, que a escolha torna-se aparentemente impossí-vel. Mas talvez esse seja um dos primeiros momentos navida em que você precise fazer uma das tarefas mais difí-ceis: renunciar. Em vez de lotar sua cabeça com incontáveisdesejos, melhor seria priorizar dois ou três deles que se-jam mais intensos e buscar as carreiras que pareçamatendê-los da melhor maneira possível. Querer muita coi-sa não é necessariamente um problema. Ao contrário,pode ser uma solução: o profissional requisitado hoje pe-las grandes empresas é aquele que sabe (e gosta de) fa-zer muitas coisas. Escolha agora algumas metas para suaformação. A intensa competitividade no mercado de tra-balho do próximo século levará você, inevitavelmente, abuscar muitas outras coisas.

c) “Não me preparei adequadamente durante todos essesanos para o vestibular. Por isso, esse não é ainda o mo-mento de eu fazer uma escolha. Não adianta querer

fazer milagre.” O preparo contínuo durante o EnsinoMédio é mesmo muito importante. Esforços intensivos deúltima hora raramente dão resultados. Mas será que ne-nhum dos candidatos aprovados nas carreiras mais dis-putadas possui falhas em sua formação? Todos foramsempre metódicos, aplicados? Quem não passou por altose baixos? Não existe “preparo ideal”. Todos os candi-datos se apresentam, no dia do exame, com o “preparopossível”. E um ano de cursinho nem sempre altera muitoradicalmente essa situação.

d) “Acho que passei do ponto. Estudei tanto, especialmen-te neste ano, que sinto que meu gás acabou. Minha es-colha ficará para o final de 2000.” Ou: “Estou desco-brindo que, no fundo, não sei nada. Quanto mais estu-do, mais claro isso fica. Acho que ainda não é hora deenfrentar o vestibular.” Ou: “Olho para o lado e vejotanta gente melhor do que eu, que acho uma ilusão acre-ditar na minha aprovação.” Estes são, quase sempre, osdiscursos do estresse. Não há no planeta um indivíduoestressado que se sinta capaz de fazer o que julgaprioritário. Às vezes surge até mesmo um sentimento dotipo: “Nadei, nadei e vou morrer na praia.” É o momen-to de “boiar”, nos dois sentidos da palavra: 1) ficar umpouco “por fora” de tudo, dar-se o direito de se desligarda “pauleira” por uns dias (ou mesmo semanas); e 2)parar de dar braçadas, deitar o corpo sobre a água,recuperando energias. Sem essas mudanças de estraté-gia, o estresse será o único vencedor.

Não é preciso colocar na própria boca esses discursos“sérios” que às vezes pai, mãe e mesmo professores fazempara você. Trata-se de um tipo de pensamento “profético” -isto é, do tipo “as coisas acontecerão dessa maneira”. Eleapenas imobiliza, em vez de criar alternativas. E poderá semanifestar outras vezes também no próximo ano, enquantovocê não perceber que todas as escolhas são sempre feitasem clima de precariedade, imaturidade, incerteza, aposta.