1948 Pesquisa etnográfica e historiográfica: o caso das mulheres operárias da Companhia de Tecidos Rio Tinto. Letícia de Carvalho Santos 1 RESUMO A pesquisa etnográfica aliada à pesquisa historiográfica baseia nosso presente trabalho, que se propõe a pesquisar as memórias de mulheres e homens operárias/os na cidade de Rio Tinto, localizada no interior da Paraíba, que foi erguida a partir da instalação de uma fábrica e vila operária. Formalmente, as mulheres já ocupam o mundo do trabalho desde que ele foi instituído e com a Revolução Industrial essa participação ganhou impulso. Elas estiveram sempre presentes, carregando os/as filhos/as e se dividindo em múltiplas horas de trabalho e tarefas. Guardadas as devidas particularidades do período, as mulheres de Rio Tinto também passam pelo desafio de ser mulher e trabalhadora, sem assistência ou ajuda, a não ser de outras mulheres. Essa pequena localidade, vive a experiência da família Lundgren, já dona da Companhia de Tecidos Paulista, que instala ali, em 1924, a Companhia de Tecidos Rio Tinto. Nossa pesquisa, que usa a etnografia e a história oral para a construção de fontes, procura perceber como se deu esse saber de existir em uma cidade que se expande pelo, e sobre, o trabalho dos homens e das mulheres de lá. E como essas mulheres enfrentavam o cotidiano de serem mães, trabalhadoras, donas de casa? Através dos relatos de vida, estamos tentando entender mais esse cotidiano na fábrica/vila operária. (Leite Lopes, 1988). Palavras-chave: Mulheres, Operárias, História Oral, Etnografia. INTRODUÇÃO O presente trabalho é demarcado geograficamente na cidade de Rio Tinto, portanto, temos como ponto inicial, a contextualização de sua construção. Existe 1 Mestranda em História pela Universidade Federal de Pernambuco, bolsista da CAPPES, e-mail: [email protected]
Estudo de gênero de antigas operárias de Rio Tinto - PB, a autora dialoga etnografia com historicidade da região
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1948
Pesquisa etnográfica e historiográfica: o caso das mulheres operárias da
Companhia de Tecidos Rio Tinto.
Letícia de Carvalho Santos1
RESUMO
A pesquisa etnográfica aliada à pesquisa historiográfica baseia nosso presente trabalho, que se propõe a pesquisar as memórias de mulheres e homens operárias/os na cidade de Rio Tinto, localizada no interior da Paraíba, que foi erguida a partir da instalação de uma fábrica e vila operária. Formalmente, as mulheres já ocupam o mundo do trabalho desde que ele foi instituído e com a Revolução Industrial essa participação ganhou impulso. Elas estiveram sempre presentes, carregando os/as filhos/as e se dividindo em múltiplas horas de trabalho e tarefas. Guardadas as devidas particularidades do período, as mulheres de Rio Tinto também passam pelo desafio de ser mulher e trabalhadora, sem assistência ou ajuda, a não ser de outras mulheres. Essa pequena localidade, vive a experiência da família Lundgren, já dona da Companhia de Tecidos Paulista, que instala ali, em 1924, a Companhia de Tecidos Rio Tinto. Nossa pesquisa, que usa a etnografia e a história oral para a construção de fontes, procura perceber como se deu esse saber de existir em uma cidade que se expande pelo, e sobre, o trabalho dos homens e das mulheres de lá. E como essas mulheres enfrentavam o cotidiano de serem mães, trabalhadoras, donas de casa? Através dos relatos de vida, estamos tentando entender mais esse cotidiano na fábrica/vila operária. (Leite Lopes, 1988).
Palavras-chave: Mulheres, Operárias, História Oral, Etnografia.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho é demarcado geograficamente na cidade de Rio Tinto,
portanto, temos como ponto inicial, a contextualização de sua construção. Existe
1 Mestranda em História pela Universidade Federal de Pernambuco, bolsista da CAPPES, e-mail:
uma bibliografia acadêmica e de memoralistas que já se debruçaram sobre a história
do local, no entanto, pretendemos ao longo do desenvolvimento dessa pesquisa,
usar as memórias dos/as moradores/as no intuito de traçarmos outro panorama
dessa construção.
As produções realizadas até o presente momento dão conta de explicar
como o primeiro membro da família Lundgren chega ao Brasil em 1855, o sueco
Herman Theodor Lundgren. Bem como ele inicia seus primeiros experimentos
comerciais, saindo do comércio de exportação, passando pela fábricação de
pólvora, até chegar ao ramo das indústrias têxteis.
Uma vez que inciam os investimentos na indústria têxtil, depois da
compra da Fábrica Paulista, os Lundgren no intuito de ampliar para outro estado a
sua companhia, chegam até a Paraíba e inciam a instalação do complexo - onde
criaram uma cidade - desde a prepação do solo até a edificação dos prédios.
Pretendemos aqui, além de pontuar traços importantes da construção
dessa cidade, trazer os elementos que nos fizeram optar pela junção da pesquisa
etnográfica junto a pesquisa historiográfica. Pontuando assim, como a história social
apresenta características semelhantes e que acrescidas à etnografia, conseguem
captar a história local com maior possibilidade de apreender a memória e o viver das
pessoas do lugar, ajudando numa maior compreensão. Como destaca também o
casal Comaroff, com o qual corroboramos para marcar essa nossa defesa:
A etnografia, assim como a história – e principalmente as duas juntas- seria uma forma de conectar os fragmentos aos quais se pode ter acesso na pesquisa empírica a um contexto mais abrangente, histórica e culturalmente determinado, que lhes conferiria significado. (COMAROFF, 2010, p.2-3).
Também em relação aos objetos de estudo tanto dos/as antropólogos/as,
como dos/as historiadores/as da história social ou vista de baixo, há uma
proximidade nos temas escolhidos e modos de trabalho, se considerar que:
1950
Por razões profundamentes inscritas na política do conhecimento, os antropólogos estudaram, classicamente, populações marginais em relação aos centros de poder ocidental - aquelas que eram, até recentemente, incapazes de oferecer respostas ao que dizíamos ao seu respeito. Nesse ponto, como argumentaremos, nossa posição pouco difere da de historiadores sociais radicais dedicados às áreas inferiores da sociedade, às vidas dos 'pequenos', vistas de baixo pra cima. (COHN apud COMAROFF, 2010, p. 15).
Diante disso, colocamos a etnografia e a história social, somadas a nossa
metodologia da hisória oral, para a produção de documentos através das entrevistas
realizadas com antigos/as operários/as da fábrica. Como aponta Alberti (2004):
A entrevista de história oral é um resíduo de uma ação específica, qual seja, a de interpretar o passado. Note-se que, se chamo isso de ação é porque estou indo um pouco além da constatação inicial de que a entrevista é uma construção do passado. Tomar a entrevista como resíduo de ação, e não apenas como relato de ações passadas, é chamar a atenção para a possibilidade de ela documentar as ações de constituição de memórias - as ações que tanto o entrevistado quanto o entrevistador pretendem estar desencadeando ao construir o passado de uma forma e não de outra. (ALBERTI, 2004, p.35).
1. A construção do espaço
Alguns temas também precisam ser levantados quando nos propomos
a abordar traços do cotidiano de pessoas que além de formarem a mão de obra de
uma fábrica de tecidos, foram os/as construtores/as de uma cidade. Além do
contexto de construção desse lugar, com todas as suas peculiaridades,
dissertaremos um pouco sobre a presença das mulheres nessa história, tanto com
seu envolvimento no mercado de trabalho, compondo a fábrica, como sobre a sua
vivência no cotidiano.
Começando a exploração a partir da compra das terras nas
redondezas, depois se empenhando na construção das primeiras estruturas que
acomodariam as várias máquinas para a formação da Companhia, a história do local
1951
começa a ser escrita, e o cotidiano de trabalho a ser desenhado, quando a fábrica
estava no seu auge de produção - funcionando inclusive com dois prédios na cidade
- fatos ainda lembrados por quem participou desse momento da cidade de Rio Tinto.
Após a expansão do primeiro negócio têxtil da família, é iniciada a
busca por um novo local para construir uma fábrica-vila operária2, como já
mencionamos anteriormente. No ano de 1917, Frederico João Lundgren já estava à
frente dos negócios da CTP, uma vez que seu pai houvesse falecido dez anos
antes. Estabelece-se então uma busca por local adequado. Inicialmente é cogitada a
possibilidade do Rio Grande do Norte, mas o acordo com o governo não é bem
sucedido. Levando em conta que os Lundgren estavam em busca de uma localidade
que os favorecesse mais em termos econômicos. Na Paraíba, portanto, eles
conseguiram um acordo com o então Presidente do Estado, Camilo de Holanda
(1916-1920), que concede vinte e cinco anos de isenção de impostos aos
empresários.
No entanto, o Estado também se isentaria de responsabilidades, como
construção de escolas, hospitais e segurança pública, sendo essa uma demanda da
fábrica. Os espaços que seriam edificados trariam a ideologia pretendida pelos
donos, bem como o surgimento dos ambientes que proporcionasse o lazer, por
exemplo, seriam idealizados a partir da inciativa dos Lundgren. Com ordens para as
primeiras compras de terra, Artur Barbosa de Goés se transfere para a região e faz
morada, para assim iniciar os trâmites comerciais, respondendo aos comandos de
Frederico Lundgren, de maneira discreta e secreta.
Artur de Goés deu conta do recado. Estabeleceu-se no Salema - o antigo e abandonado pôrto fluvial da cidade - montando sortida mercearia. Familiarizou-se com a gente do lugar e adquiriu Preguiça
3, sem pestanejar,
para o espanto de tôda aquela gente. (GOÉS, 1963, p.89).
2 Esse termo é constantemente usado e é conceituado pelo estudioso da Companhia de Tecidos Paulista, José
Sérgio Leite Lopes (1988). 3Aldeia da Preguiça era o nome dado à região onde hoje se localiza a cidade de Rio Tinto.
1952
Artur de Goés continuou a aquisição dos terrenos, enquanto Apolônio
Gomes de Arruda foi nomeado para administrar a propriedade, com incubência de
contratar pessoas, construir as primeiras casas, drenar e sanear as terras, dentre
outras atribuições (GOÉS, 1963, p. 90-91). De maneira perjorativa ao local e
atribuindo glórias de salvação aos Lundgren, Goés (1963) destaca que “onde só se
saia sezão e malária”4, surge uma estrutura que abrigarará a fábrica e a cidade.
Os/as primeiros/as trabalhadores/as chegam ao local e, junto com eles/as, as
máquinas e outros equipamentos; os barracões, olaria e oficinas mêcanicas
também. Os meios de transporte começam a ser exaustivamente utilizados para o
transporte de matérias primas: barcos, caminhões e, futuramente, até algumas
locomotivas. De gente, de perto e de longe, o local é povoado.
No trecho a seguir, Goés (1963), memoralista praticamente oficial da
família empreendedora, descreve as primeiras edificações que apontavam no
horizonte da pequena localidade que agora abrigava uma fábrica (e várias
instalações), além das primeiras casas que compunham a vila operária. A todo o
momento, o escritor ilustra a grandiosidade da arquitetura local, como também
mostra a presença de imigrantes que se dirigem a cidade para compor a mão de
obra qualificada, inexistente ainda em grande quantidade no Brasil.
Da desprezada Aldeia da Preguiça, secularmente afundada na miséria, estavam surgindo grandes edifícios, muito acima do que se poderia imaginar. A chaminé, quase pronta, alcançaria a altura de 76 metros. Estavam lá, técnicos de tôda parte, brasileiros, inglêses, suecos, alemães, austríacos e até famílias japonêsas haviam sido contratadas para o cultivo racional do solo, visando à horticultura e à plantação de arroz. Plantavam-se árvores frutíferas, ordenadamente. Os primeiros arruamentos das casas populares, em semi-círculo, em tôrno da fábrica, já davam uma noção da futura vila de Rio Tinto. Novas edificações eram erguidas, com maior capricho, nos pontos mais altos. Não se construía, apenas uma fábrica, mas uma verdadeira cidade. (GOÉS, 1963, p. 93).
4 Goés (1963) faz questão em toda sua narrativa, de mostrar como o local era inóspito e foi “salvo” com a
chegada dos Lundgren. Que ali, era um local impossível de produzir riqueza, mas a audácia e empreendedorismo da família mudara a realidade do local.
1953
Com a intenção de vir plantar gente pelas bandas da Paraíba, ou em qualquer
Estado que conseguisse benesses fiscais, os Lundgren optaram pela expansão dos
negócios porque necessitavam sair de Pernambuco, conforme tese de Leite Lopes
(1988), de que os mesmos estariam sofrendo perseguição política, como lembra
Vale (2008). Outra justificativa apresentada por Vale, que em certa medida corrobora
com a de Leite Lopes, é a de Egler (1986), cuja afirmação tange na questão política,
pesando especialmente na forte mobilização que o movimento operário estava
fazendo na altura em Paulista.
A escolha da Paraíba apresenta diferentes versões. De acordo com Leite Lopes, os Lundgren apresentam como fator decisivo para implantação, “perseguições políticas” em Pernambuco, com deslocamento para outro estado de nova fábrica têxtil. (VALE, 2008, p. 30).
Já os motivos que facilitaram a implantação são muitos, e vão ampliando-se
na medida em que o capital consegue fazer mais acordos com o poder estatal do
local. Até para que as terras fossem compradas, com a menor dificuldade possível,
os tratos tiveram de ser feitos e, segundo Rodrigues (2008), o prefeito de
Mamanguape em 1923, João Rafael de Carvalho, foi muito útil na compra de Três
Rios, Monte-Mor e Preguiça.
É importante destacar que muitos autores já levantaram dados sobre a
estrutura da fábrica, como também sobre suas características naturais, que foram
determinantes para a construção. Mesmo com todas as especulações de que a
região não era a propícia, foi muito bem pensada a sua compra, uma vez que havia
possibilidade de instalação de ferrovia e havia um porto extinto, onde as
mercadorias poderiam ser escoadas. O rio, que dará nome a cidade pela sua cor
avermelhada, foi fundamental para a circulação da água na fábrica5. De pronto, uma
5 - Mas, essa água é tinta!!!
- Não, doutor, não é tinta, não! Vem do RIO VERMELHO, atravessa a NOVA DESCOBERTA e desemboca na
maré!
- Pois quero ver esse Rio Vermelho!
1954
caixa d’água elevada foi construída. A vila operária recebia água do riacho Patrício,
e a Vila Regina, do riacho Catolé; na rua que recebe o mesmo nome foi também
edificado um repositório de água.
Além da boa reserva de água, nos 660 km2 de terra de propriedade dos
Lundgren, existiam matas que ajudavam no fornecimento das madeiras para as
edificações; as matas também receberam a plantação de eucaliptos, que serviam no
controle do solo, contra erosões etc. Ainda hoje podem ser vistas essas plantações
e a grande área verde que circunda a cidade.
A proximidade também com Mamanguape foi importante. A cidade era uma
das mais importantes da Paraíba e no século XIX já contava com dois portos, Baía
da Traição e Salema, sendo esse último com circulação superior ao de Cabedelo.
Reservas naturais, condições tributárias, estrutura construída, mão de
obra em número significativo, e assim incia-se a produção de uma fábrica e das
histórias de várias pessoas distintas de origem e de trajetória, que largaram suas
terras natais e se aventuraram na busca por trabalho, casa e um futuro anunciado
como promissor.
2. Vila operária: controle e poder de quem?
Para receber esse contingente populacional que se deslocou para Rio
Tinto em busca de trabalho, várias casas tiveram de ser construídas, uma vez que a
fábrica já foi pensada em ser edificada num local distante de uma capital, devido a
todos os problemas - referentes à organização trabalhista - que os Lundgren já
haviam enfrentado na fábrica em Paulista.
Para lá se botaram. Assombro geral! Nem mesmo o Coronel Frederico quiz [sic] acreditar no que viu:
pois as águas nascentes das cabeceiras do rio que chamava VERMELHO, e tornou-se mais tarde RIO TINTO,
eram quase côr [sic] de sangue!
Assim foi que o Coronel Frederico se resolveu mudar, ou trocar, a “ficha” de NOVA DESCOBERTA,
por RIO TINTO! (FERNANDES, 1971, p. 35)
1955
Blay (1985) disserta sobre a vinculação das vilas operárias com as senzalas,
que eram anexos das casas grandes, durante o período de escravidão da mão de
obra africana, muito utilizada tanto no meio rural como urbano. Desde a primeira
iniciativa conhecida de fábrica têxtil no Brasil, data entre os anos de 1840-1850 na
Bahia, enfrenta problemas relacionados aos/as trabalhadores/as, seja devido à falta
de qualificação ou em relação à fixação, no local de trabalho.
Interessados em atrair e reter a força de trabalho, já em 1853 as fábricas de Todos os Santos, na Bahia e Andaraí Pequeno, no Rio de Janeiro, constroem dormitórios para seus trabalhadores não especializados; em 1866 a Fábrica Fernão Velho, em Alagoas, além de dormitórios, constrói pequena enfermaria e um refeitório; em Minas Gerais, a Beriberi alojava 110 mulheres de 10 a 30 anos e a Reigantz, no Rio Grande do Sul, adotava procedimento semelhante. (BLAY, 1985, p. 31).
Além de reter o operariado no local de trabalho e assim conseguir ter o
domínio sobre todo o cotidiano, a posse sobre as casas que a classe trabalhadora
reside, e paga mensalmente, gera outra forma de ganho sobre o salário, porque a
casa se configura também como mercadoria, como aponta Blay (1985):
A casa é uma mercadoria, e nesta transação o operário entra como um “comprador”, possuidor de dinheiro e o proprietário como o que aluga. Na relação capitalista-operário, o primeiro obriga o segundo a reproduzir seu próprio valor e a produzir uma mais-valia, um valor excedente. (BLAY, 1985, p. 14).
A casa, como importante espaço de criação e recriação de saberes, de
convivência, além de perpetuação e ruptura de mandos, é marcada também em Rio
Tinto, pela mercantilização e domínio por parte dos donos da fábrica. As casas,
quando concedidas, respondem a critérios de postos de trabalho que os/as
componentes da família ocupam. Outros espaços são também construídos como
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forma de exercer controle e para manter as pessoas longe de certos espaços
subversivos.
Dentre um dos critérios que existiam para receber a casa - que seria paga em
mensalidades à fábrica - estava a de qual função as pessoas iriam ocupar, caso
existissem tecelãs/ões entre os pretendentes à moradia, o domicílio estava
garantido. A presença das mulheres na Companhia de Tecidos Rio Tinto, não era
verificada só na tecelagem, mas em outras funções que faziam parte da produção
dos tecidos.
3. Mulheres desdobráveis
Ampliando para o âmbito mundial, as mulheres estiveram desenvolvendo
atividades laborais desde antes da consolidação do capitalismo, mas é nele e
especialmente na obrigação compulsória da realização do trabalho doméstico,
acrescido do trabalho fora de casa e de todas as subjugações. As mulheres estão
submetidas a uma subordinação com a marca da divisão sexual do trabalho, da
responsabilidade pelo cuidado com a família e filhos/as, e ainda são impedidas, por
ora, de ocupar postos de trabalho, porque muitos homens as consideram como
propriedade privada.
O trabalho doméstico foi imensamente discutido pelas feministas
revolucionárias desde a época da União Soviética. Alexandra Kollontai e Clara
Zetkin enfrentaram a pauta, construindo críticas aos companheiros de partido e
propondo medidas que o Estado Soviético deveria adotar para retirar as mulheres da
obrigatoriedade do trabalho doméstico e do cuidado com a família. Goldman (2014)
atenta-nos para o fato de que atualmente as feministas travam o debate de divisão
igualitária dos trabalhos domésticos, deveres e direitos. Já na URSS, os cuidados
com a casa seriam estatizados, criar-se-iam restaurantes coletivos, berçários,
lavanderias. No entanto, quem trabalharia neles? Sim, eram funcionários públicos,
mas eram todas mulheres. Os cuidados são coletivizados, entretanto, as mulheres
continuam desempenhando os mesmos trabalhos.
1957
A formação econômica brasileira é marcada por traços de ingerência do
capitalismo europeu. Na altura do tempo de uso da mão de obra escrava e o
controle do capitalismo comercial, vivenciamos a divisão internacional do trabalho e
as ordens da metrópole, e entramos na lógica internacional enquanto economia
exportadora de produtos primários, como aponta Saffioti (2013, p. 205)
A história da economia brasileira é a história de uma constante e renovada rearticulação no sistema capitalista internacional, no qual sempre coube ao Brasil, por força da divisão do trabalho entre as nações, a posição de uma peça auxiliar da engrenagem de um sistema autopropulsor.
A formação do operariado brasileiro ganhou nuances próprias ligadas ao
modo como o capitalismo se desenvolveu no nosso país. Se destacarmos que na
altura do uso da mão de obra escrava, as mulheres trabalhadoras estavam presas
nas cozinhas das casas grandes, servindo de damas de companhia das mulheres da
burguesia ou vendendo quitutes nas cidades, poderemos demarcar a presença
delas no mercado desde o princípio no nosso território.
Com o advento das cidades e o aumento populacional, as mulheres da
classe trabalhadora ocupam com muito mais frequência as cidades. Seja por meio
dos pequenos comércios realizados no meio das ruas, ou no trabalho nas pequenas
oficinas de manufatura, que empregavam muito mais o contingente da classe
operária antes da ampliação do parque industrial brasileiro. Com acesso ao meio
urbano, elas conseguem aumentar seu grau de escolaridade e assim podem
ascender a melhores postos de trabalho. Todavia, a cidade apresenta restrições aos
espaços que elas podem ocupar. A construção desses ambientes carrega uma
marca muito forte dos limites que são impostos às mulheres.
É importante lembrar, como o capitalismo exige especialmente das mulheres
uma mão de obra que desempenhe muitas atividades por vez, ao passo que usa de
maneira oportunista o seu desempenho e ainda incentivam a propaganda de que é o
sistema ideal para o sexo feminino, argumentando a liberdade proporcionada ao
1958
inseri-las no mercado. Entretanto, nenhum desses pressupostos tem sido
comprovado na vivência do trabalho, uma vez que a mulher ainda é a responsável
pelos/as filhos/as e o trabalho doméstico.
Para além da multiplicidade da carga de trabalho, podemos constatar
como em nível mundial, as mulheres sempre ganham menos que os homens e ainda
enfrentam graves entraves quando se candidatam à qualificação profissional. É
nesse mosaico que se configura a formação da classe operária brasileira, cuja
identidade adquirida como classe é muito impulsionada pela organização para a luta,
que por anos foi objeto de estudos de maneira um pouco desprezível, mas não a
contemplava a partir de sua heterogeneidade e particularidades.
No início de nossas visitas à cidade de Rio Tinto e quando ainda estávamos
traçando como seria realizada nossa pesquisa, tivemos a oportunidade de conversar
com algumas mulheres que no passado foram operárias da Companhia de Tecidos
Rio Tinto e ouvimos sempre, nas nossas conversas informais, a descrição da
exaustiva rotina diária pelas quais elas estavam submetidas. A existência tinha como
centralidade o trabalho, seja o realizado em casa ou na fábrica. Nascidas na cidade
ou provenientes dos recrutamentos, as mulheres compartilhavam de vivências,
dificuldades e muita solidariedade. Eram elas que se dividiam entre si para o
cuidado com as crianças, para o ensinamento dos ofícios e organizavam-se para a
divisão diária das atividades entre a casa e a fábrica.
Conclusão
Estamos encaminhando a pesquisa e ampliando os horizontes sobre esses
fazeres diários que se misturam às atividades laborais e aos poucos momentos de
lazer dentro da memória de quem muito trabalhou e lutou pela sobreviviência,
atrelado a teares e as exaustivas horas de trabalho.
1959
Conversamos com mulheres que para sua manutenção na ocupação tinham o
salário como essencial no sustento dos/as componentes da casa - e seu trabalho
não funcionava como algo acessório, mas como renda fundamental - tinham que se
dividir e contar com ajuda de outras mulheres. Acordavam sempre mais cedo,
cuidavam das refeições, saiam para um turno, deixavam as crianças dormindo,
voltavam, davam comida às crianças, trabalhavam novamente, cozinhavam, iam às
compras e seguiam um cotidiano que respirava trabalho, demarcado também pela
ausência igualitária de divisão dos afazeres domésticos e cuidados com os/as
filhos/as. É sobre a classe operária que se reinventa que propusemos a soma da
história com a etnografia para o melhor desenvolvimento desse estudo.
REFERÊNCIAS
ALBERTI, Verena. Ouvir contar: textos em história oral. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2004.
ALVIM, Rosilene. A sedução da cidade: os operários-camponeses e a
fábrica dos Lundgren. Rio de Janeiro: Graphia, 1997.
______ e LEITE LOPES, José Sérgio. Famílias operárias, famílias de
operárias. RBCS, n. 14, ano 5, out 1990. Disponível em: <