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Cultura e Poltica, dez.2012. ISSN: 2237-0579
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MORAR NA PRAA PBLICA: REDES E FLUXOS ENTRE
HABITANTES DE RUA
Ana Lcia Marques Camargo Ferraz1
Resumo: O presente artigo fruto de pesquisa etnogrfica realizada
entre habitantes
de uma praa situada no municpio de Niteri, Rio de Janeiro. A
investigao nasce
de uma atividade de extenso universitria que visa produzir uma
reflexo sobre a
experincia do espao urbano vivida por esta populao; observamos
que o mesmo
espao fsico se reconfigura a depender das diferentes formas de
apropriao que se
do no territrio estudado. A partir da anlise das narrativas
colhidas entre
moradores de rua, pensamos as dificuldades de comunicar a
experincia socialmente
considerada como de insucesso, na elaborao de uma etnografia da
durao.
Tecemos, a partir da relao com os sujeitos estudados, uma
arqueologia do lugar
que considera as metamorfoses no espao vivido resultantes de
projetos de
urbanizao e modernizao de reas de moradia popular e as
estratgias
construdas para lograr permanecer no local em que se escolhe
viver. A partir da
experincia de produo de vdeo com esses moradores refletimos
sobre a linguagem
da pesquisa etnogrfica na apresentao de casos de experincia
traumtica.
Palavras-chave: Moradores de rua, modo de vida, socialidade,
narrativa, etnografia
da durao, antropologia visual.
Abstract: This article is based on ethnographic research
conducted among residents
of a square located in Niteri, Rio de Janeiro, Brazil. The
research comes from a
university extension activity that aims to produce a reflection
on the experience of
1 Ana Lcia Marques Camargo Ferraz professora do Departamento de
Antropologia da Universidade Federal Fluminense, onde coordena o
Laboratrio do Filme Etnogrfico. autora de Dramaturgias da
Autonomia. Pesquisa Etnogrfica entre grupos de trabalhadores (2009)
e de sries de filmes etnogrficos realizados entre diversos grupos
urbanos.
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urban space experienced by this population. We found that the
same physical space
reconfigures itself depending on the different forms of
experience in the studied
area. From the analysis of the narratives collected from
homeless people, we think
the difficulties of communicating the experience socially
considered as failure, in
developing an ethnography of duration. From the relationship
with the subjects
studied, I consider the metamorphosis in the lived space
resulting from urbanization
and modernization projects in the areas of working class housing
and built to
achieve the strategies to remain in place where one chooses to
live. From the
experience of ethnographic filmmaking with these people I
reflect on the language of
ethnography in the study of traumatic experience.
Keywords: Homeless, way of life, sociality, narrative,
ethnography of duration,
Visual Anthropology.
A partir de pesquisa etnogrfica realizada entre moradores de uma
praa em
Niteri, Rio de Janeiro, gostaria de desenvolver algumas
consideraes acerca da
centralidade das redes de socialidade na produo de estratgias de
ocupao do
tecido urbano por sujeitos que, por sua posio social nos
extratos mais
desfavorecidos da classe trabalhadora, so excludos dos projetos
estatais. A cidade,
em sua histria de ocupao, tem sido recortada por projetos de
desenvolvimento
que desconsideram as populaes do territrio em questo que
recortado por obras
de impacto natural e social, construo de grandes vias pblicas,
edificaes
privadas e outras metamorfoses que incidem sobre as condies de
reproduo dessa
populao. Reflito ainda nesse artigo sobre a dificuldade de
narrar a experincia
vivida em trajetrias de sujeitos marcados pelo trauma e, sobre
as abordagens e as
formas da etnografia capazes de lidar com as linguagens dos
homens e mulheres que
experimentam e nomeiam o mundo em que vivem.
Este trabalho nasce de um projeto de extenso intitulado
Sociabilidades urbanas
e Comunicao social: Oficinas de Vdeo entre moradores de bairros
populares de Niteri
vinculado Universidade Federal Fluminense, iniciado h apenas um
ano e rene
uma equipe de pesquisadores em formao em nvel de graduao e
ps-graduao
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das reas de antropologia, sociologia e cinema. Apresento aqui
primeiras
aproximaes de nossos achados empricos e elaboraes
metodolgicas.
Encontramos na noo de fluxos urbanos uma chave de anlise dos
fenmenos que
observamos na pesquisa de campo nos locais de moradia popular
que cercam a
Universidade. Recortamos como espao da observao etnogrfica uma
regio que
vai se reconfigurando a partir dos percursos e relaes construdas
pela populao
estudada.
Na histria da urbanizao de Niteri, o bairro de So Domingos ocupa
um
lugar contraditrio, prximo regio central, em direo ao que, no
imaginrio da
metrpole carioca, pode ser concebido como zona sul, recebe
projetos de
desenvolvimento urbano com aterramento de extensas faixas
litorneas, construo
de grandes vias e do campus da Universidade. Mais recentemente,
uma poltica de
reforma urbana com o cercamento das praas como poltica pblica
foi levada a cabo
pelas autoridades municipais (Botelho, 2006:17). No iderio desse
tipo de
interveno urbana desconsidera-se completamente a cidade como
tecido vivido,
ignorando as formas de vida e impondo obras e aes sobre uma
populao que se
reterritorializa permanentemente.
A Praa Leoni Ramos, localizada em frente ao campus
universitrio,
construdo nos anos 50 sobre regio de aterro martimo, hoje o
centro de um ncleo
ocupado na geografia urbana como rea dedicada a atividades de
lazer, abrigando
uma srie de bares, restaurantes, casas noturnas, onde diferentes
grupos culturais da
regio metropolitana do Rio de Janeiro, estudantes, vendedores
ambulantes e
moradores de bairros populares socializam-se. Em torno da praa,
edifcios altos de
apartamentos residenciais dividem o espao com antigas casas
ocupadas por
pequenos estabelecimentos comerciais ou cortios. A praa fica em
frente Estao
Cantareira, espao tombado pelo patrimnio histrico, antigo
estaleiro para
manuteno das barcas que faziam o transporte martimo entre Niteri
e a cidade do
Rio de Janeiro, cruzando a Baa da Guanabara, antes da regio ser
aterrada. O prdio
foi incendiado em 1959, por insatisfao da populao com o servio
prestado pelas
barcas. Em 1979, o governo desapropria o imvel que passa a ser
administrado pelo
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estado que o cede prefeitura de Niteri. Depois de ficar
abandonado retomado
pelos movimentos culturais em torno do bairro de So Domingos.
Retomado pela
empresa Barcas S.A., o prdio na porta da Universidade permanece
em litgio, sendo
alugado ocasionalmente para festas ou feiras. Hoje um grande
galpo que tem a
fachada do prdio histrico mantida e abre eventualmente para
shows pagos que
renem estudantes universitrios e jovens da cidade.
Assim, a Praa da Cantareira, fica no centro de um espao urbano
povoado
por diferenas. Em nossa abordagem, a praa torna-se espao de
pontos de vista.
Nesse momento da investigao nos detemos no ponto de vista dos
moradores de
rua que habitam a praa e em suas relaes construdas com os
morros, os cortios,
as vielas ocupadas pelas classes trabalhadoras que habitam o
bairro, os pequenos
comerciantes, as Igrejas e o trfico de drogas. Faz parte desse
panorama ainda a
situao que a regio metropolitana do Rio de Janeiro vive nesse
momento com a
poltica pblica de policiamento ostensivo dos espaos populares, o
chamado
choque de ordem, que fragiliza posies sociais, legitimando a
violncia como
linguagem da apropriao do espao urbano.
Ao definir o campo estudado como espao de pontos de vista,
nos
aproximamos de uma antropologia da experincia que se interessa
por compreender
a cidade vivida, percebida e concebida pelos homens e mulheres
que a ocupam. O
terreno de pesquisa mediado pela produo de vdeo, no estudo das
relaes que
alguns distintos personagens estabelecem com a Praa da
Cantareira. Visamos
desenvolver abordagens audiovisuais em torno das distintas
experincias que esses
sujeitos fazem do espao. O trabalho com o filme etnogrfico na
praa nos permite
desenvolver diversos recursos para estabelecer relaes
compreensivas com
diferentes experincias. Na pesquisa, moradores dos morros
invisibilizados pelo
traado urbano, que habitam a praa, em seus percursos, relaes e
tempos de lazer,
narram histrias de vida e ocupao urbana.
Observamos a permanncia de formas residuais de trabalho no
bairro e a
permanncia de atividades produtivas de pequena escala,
saberes-fazer que se
mantm a partir de relaes de vizinhana e da presena de outros
personagens:
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estudantes, moradores de cidades perifricas da regio,
frequentadores dos bares e
restaurantes em frente Universidade, passantes. Jovens
pichadores deixam marcas
nos vrios tempos que revela a arquitetura do lugar. Eles tm uma
linguagem
prpria, um discurso que se impe e que pensa a sua circulao, num
controle sobre
os cdigos da comunicao social. Casas antigas so cortios, abrigam
muitas
famlias. Moradores de cortios confraternizam-se com moradores da
praa que
variam sazonalmente entre a praia e a coleta de marisco e pedir
esmolas, tomando
sol, bebendo cachaa, enquanto as crianas brincam.
A Praa da Cantareira apresenta-se como o centro de redes de
socialidade e
lugar privilegiado de observao por reunir diferentes experincias
do espao
urbano: moradores de morros com suas casas prprias, moradores de
cortios,
habitantes de rua, incluindo tambm estudantes e pequenos
comerciantes.
Vendedores ambulantes, que disputam a possibilidade de estar
ali, no contexto do
choque de ordem, em dias e horrios especficos, so protegidos
pela multido de
estudantes que param para tomar cerveja s noites de
quinta-feira. Mas, a poltica do
choque de ordem no parece rivalizar com o trfico de drogas
ilcitas, que continua
seu negcio, impondo zonas de circulao proibida para aqueles que
se indispem
com as organizaes solidamente enraizadas num tecido de relaes
sociais e
cdigos compartilhados por grupos especficos nos locais de
moradia popular.
Nessa pesquisa encontramos um tecido urbano extremamente
recortado por
diversas formas de violncia e jogos de poder e nos instalamos em
um espao de
pontos de vista, segundo a abordagem que construmos na prtica de
produo do
vdeo etnogrfico, estreitando o dilogo com aqueles que permanecem
no espao da
praa, habitando-a como casa ou como espao de convivncia.
Estreitando dilogos
com aqueles que vivem noite e dia nesse territrio, buscamos
compreender como
que vai-se configurando uma poltica do cho (Lepecki, 2012).
Gostaria de tecer
um dilogo com a definio proposta por Andr Lepecki, pensador do
campo da
teoria da performance, para melhor compreender o que est em jogo
na situao
estudada.
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A poltica do cho no mais do que isto: um atentar agudo s
particularidades fsicas de todos os elementos de uma situao,
sabendo que essas particularidades se co-formatam num plano de
composio entre corpo-e-cho chamado, histria. (...) S assim pode uma
cidade deixar de ser esse amlgama de construes e leis criadas com o
objetivo de se controlar cada vez mais totalmente os espaos de
circulao (de corpos, desejos, ideais, afetos); s assim pode uma
cidade se tornar uma coreografia de atualizao de potncias polticas
e de viver contidos sempre em todo e qualquer cidado: deixando a
poltica acontecer na sua verdadeira face, de modo a que se possa
esperar que o inesperado aja (performs) o infinitamente improvvel,
como disse Arendt. (Lepecki, 2012: 20; 25, passim)
Os moradores da Praa permanecem ali h anos, alguns desaparecem
por um
tempo, viajam, vo para a casa de conhecidos ou para instituies,
mas retornam. A
praa parece ser lugar de encontro, de debate, de troca entre
moradores da cidade.
Espao habitado, que se aproxima da ideia de praa pblica, cada
vez mais rara e
esvaziada pelo tempo acelerado da metrpole e pela vida sobre
rodas produtora do
trnsito e de uma relao acelerada com as ruas nas grandes
cidades. Mas, a
Cantareira parece resistir. As pessoas que se afirmam como
moradores da praa no
pretendem sair dali e constroem suas estratgias de subsistncia
ancoradas no estar
ali. Morar na rua se apresenta como modo de vida. Forma essa
baseada em mltiplas
relaes construdas com os outros habitantes do mesmo espao.
As mulheres que vivem na praa so bravas. Algumas delas evitam
quaisquer
contatos com a pesquisa, ao longo desse ano de trabalho
compreendemos sua
posio nas relaes com atividades ilcitas no circuito do trfico de
drogas. Casais e
homens sozinhos no se recusam ao dilogo, expondo suas razes e
trajetrias.
Maria e Pel so os pais de Pedro2. Ela morava no Beco do 27, uma
viela cheia de
barracos localizada na rua dos fundos da Praa, era casada e Pel
era o melhor amigo
de seu marido. Eles se aproximam e passam a manter uma relao,
quando ela
engravida e sai de casa. Desde ento eles foram morar na praa,
Pedro fez quatro
anos recentemente. Maria habita a regio h mais de vinte anos.
Pel trabalha
reunindo e vendendo caixas de madeira e outros objetos
reciclveis, enquanto ela
2 Os nomes dos interlocutores da pesquisa foram
transformados.
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pede dinheiro para obter o alimento para sua famlia. Nos
momentos em que
precisam de ajuda o seu primeiro marido os socorre. Diariamente,
vrias pessoas que
passam por ali almoam com eles, dormem nos bancos da praa,
encontram os
amigos para tomar cachaa e comentar os acontecimentos.
Mas, quem mora na rua no mora na rua, h inmeras relaes com
casas,
famlias, viagens, barracos, lugares onde deixar as coisas,
pessoas, saberes, como
nosso exemplo nos faz ver. Um modo de cozinhar articula-se com
formas de
conseguir doaes e armazenar alimentos. Reutilizar da gua,
explorar o espao
urbano e a criar novas formas de uso das fontes de energia
encontradas: a energia
eltrica, a madeira, o alimento. Valorar tais elaboraes como
saberes parece ser um
demarcador importante de uma abordagem, aquela que reconhece
como legtimos os
pontos de vista dos sujeitos estudados.
Os estudos sobre moradores de rua que tem se multiplicado nas
ltimas
dcadas apontam a centralidade de formas de trabalho e de
atividades em torno da
produo de alimento. O foco da vida econmica passa a ser o
alimento (Neves,
2010:120), mas, mais que isso, a atividade produz uma
subjetividade particular, uma
corporalidade, uma atividade centrada na subsistncia cotidiana.
Como neste estudo
de caso:
Em meio quela confuso de pessoas, cachorros, colches, o fogo
parecia um lugar isolado, mantido parte. A comida e sua criativa
elaborao, junto com a pinga pareceram garantir a vitalidade daquele
agrupamento. Nos modos de cozinhar e comer, expe-se um embate
constante entre um parmetro civilizador idealizado e a realidade
subtrativa na qual as formas de cozinhar e de comer tm que ser
adaptadas. E, desse conflito, emergem formas criativas e inusitadas
de exerccio do mundo domstico no espao pblico, bem como uma
enunciao clara de agenciamentos corporais dinmicos, sobreviventes e
reformuladores dos cdigos sociais que se pretendem homogneos
(Frangela, 2004:247).
Encontramos no dilogo com essa populao suas histrias de
migrao
organizadas a partir de experincias de trabalho, faz-se
necessrio reconhecer seus
hbitos e modo de vida particulares, seus valores e as solues que
elaboram como
tticas de reproduo da vida, esse passo exigiria uma outra
concepo de cincia,
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aquela que tem como primordial o dilogo com a lgica dos sujeitos
estudados, e
uma crtica ao modo como a poltica pblica elaborada de forma
antidemocrtica.
Nessa pesquisa, a abordagem da histria de vida s parece render
frutos com
os senhores mais velhos, que tem em sua trajetria o trabalho
como experincia
central, marcadora de uma posio, de um modo de vida. Com aqueles
mais jovens
que no chegaram a atuar em relaes formais de trabalho, exercendo
atividades
como lavadores ou guardadores de carros, ou mulheres que se
dedicam ao cozinhar
e cuidar de crianas, atuando em ocupaes subvalorizadas a
pergunta pela histria
de vida rapidamente repelida. Em seu lugar mostram suas
cicatrizes no corpo,
passado presente como marca. Encontramos no dilogo com alguns
desses sujeitos a
dificuldade de narrar suas histrias de vida. A escuta das
narrativas visando
produzir uma etnografia da durao (Eckert e Rocha, 2009:110)
encontra relatos
que testemunham a transfigurao urbana que desvaloriza os
saberes-fazer
apreendidos ao longo da vida, para os quais damos ateno.
partir do levantamento das trajetrias de vida de nossos
interlocutores
sabemos que muitos deles so ex-trabalhadores manuais ou tcnicos,
pedreiros,
eletricistas, soldadores, jardineiros, uma grande parcela
dedica-se pesca, cata de
material reciclvel e mendicncia. Ex-pescadores de alto-mar, qui
trabalhadores
dos antigos estaleiros de quando a estao Cantareira era sediada
na Praia Grande,
antes do aterro, h mais de meio sculo.
A permanncia dessa populao na rua, na praa e na praia, a sua
tranquila
relao com os moradores do entorno, podem indicar um
reconhecimento tcito de
seu direito a permanecer ali fundado numa histria de metamorfose
no espao
urbano pautada na implementao de projetos de desenvolvimento de
autoria do
Estado que desconsidera certos personagens. Transcrevo aqui a
fala do senhor
Marcha Lenta, morador da Praa da Cantareira, por quem fomos
observados ao
longo de meses em diferentes situaes, quando ele decide
espontaneamente dar o
seu depoimento para a cmera:
Eu j andei por esse Brasil inteiro. Eu tenho raiva de So Paulo
porque quando eu sa daqui do Rio pra ir pra So Paulo, pra trabalhar
l, me perguntaram: Voc no bebe cachaa? No vai tomar banho frio!
Sabe o que aconteceu? Todo dia na hora de tomar o banho eu tinha
que tomar um copo de cachaa. Na poca l a cachaa era
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Trs Fazendas. Tomei raiva de So Paulo porque aprendi a beber
cachaa. Todo dia um copo cheio, a vicia! Mas, um lugar bom. No um
lugar bom, bom, bom. Bom o Rio de Janeiro. O Rio um lugar bom, bom,
bom! Considero um lugar bom Minas, Bahia. Tem muito mais lugar que
eu conheo, Paran, tem muito lugar que eu conheo, Curitiba. Mato
Grosso no vou dizer que um lugar bom, l eles faziam um contrato pra
trabalhar, mas tem que ter um olho no padre outro na missa. S tinha
gente ruim do Cear. No podia dormir. Peguei um trem em Curitiba,
trabalhei no Mato Grosso. Trabalhei na Bahia. Trabalhei nos dois
Hotis Sheraton, trabalhei no Vidigal, depois eu fui pra Bahia.
Antes de trabalhar no Sheraton, primeiro eu trabalhei no Meridien,
esse aonde faz a passagem de ano. Eu trabalhei ali, da fundao at o
fim. A cozinha dele l em baixo, subterrnea, do hotel Sheraton no
terceiro andar. Eu constru e sei tudo. eu trabalhei l, trabalhava
com eletricidade, instalei tudo. Pode perguntar pra qualquer um se
a cozinha do Hotel Sheraton no no terceiro andar e a do Meridien no
em baixo. Pode ligar pra qualquer um que conhea, pra qualquer um
que conviveu nesse hotel. Vou at dizer quantos andares tem, pra
senhora saber que eu conheo de cima em baixo. Tem 26 andares. A
senhora pode ligar pra saber, l eles vo dizer, tem 26 andares. Eu
trabalhei da fundao at l em cima. E matou a minha prainha, acabou
com a praia do Vidigal aquele hotel. Ali era nossa praia, na
infncia. E, o senhor est em Niteri desde quando? Em Niteri, desde
79. Minha famlia toda de Niteri. Vim pra c em 79, com 31 anos,
arrumei famlia aqui. Eu no conheo o Brasil todo ainda no mas conheo
muito. No conheo a Amaznia, que o fruto do Brasil, no dia que eu
conhecer a Amaznia vou dizer que conheo, mas conheo muita coisa.
Vou dizer: Eu conheci uma pouca parte do brasil, mas no conheci
tudo. Conheo muito, muito, muito, muito. Minha vida foi trabalho e
querer conhecer. Vim arrumar famlia com 32 anos. Servi no Leme, do
Leme fui morar em Nova Iguau, de Nova Iguau arrumei uma famlia e
fui morar em Queimados e a minha vida foi assim. Com essa mesma
mulher que morei em Queimados, morei em Nova Holanda, de Bom
Sucesso, com ela morei antes em Tribob. Depois no deu certo. De
Tribob fomos morar no morro do Crcere no deu certo, com ela eu no
tive filho no. A eu arranjei famlia e vim pra c. Desde ento o
senhor est morando na mesma casa? Aqui? Eu moro na rua! Os meus
filhos vem aqui me resgatar, mas eu no quero, so todos casados, no
quero ser um intruso na vida deles. Eles vem. Pode perguntar pra
qualquer um a. Pai vamos pra casa. No vou. Aqui eu como, eu bebo,
arrumo minhas latinhas, eu como ali, oito real, ali na padaria. no
como a, no (aponta para os outros moradores da praa). Todo dia eu
arrumo, graas a Deus, no preciso ficar me humilhando na comida
deles ali. ou no ? A senhora me viu me humilhando na comida deles
ali? Pra mim uma vergonha. Eu saio me arrastando do jeito que eu
ando. tem vez que eu arrumo aqui 30, 40 s de latinha. Eu no uso
droga, uso minha cachaa. Paga dez contos fica mais com vontade de
pa, pa, pa. daqui a pouco cem, vai tudo. Se eu comprar de manh uma
garrafa de 2,80 dura pra mim at o outro dia. Se eu comprar um mao
de cigarro, vai at o outro dia. Isso no despesa, despesa? Pra quem
tira 30, 40 contos s de latinha? Eu vou falar pra senhora, a vida
muito boa, tem que saber viver. Marcha Lenta, em depoimento
concedido nos bancos da praa da Cantareira, em setembro de
2012.
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Nossa atividade est na descrio dos fenmenos observados, esboando
uma
compreenso das formas atuais, segundo as perspectivas dos
sujeitos que vivem a
cidade. Observamos redes de circulao conhecidas dos moradores de
rua que
apontam interseces entre distintos moradores da regio, entre
diversas posies
sociais. Temos espaos utilizados como depsitos de objetos,
relaes pessoais
estabelecidas. A relao com a Igreja, com instituies, e outros
personagens urbanos
compem parte das aes empreendidas visando a mobilizao por
alimento e
outros recursos (Silva, 2010:80). O estudo dessa populao nos
leva a por em questo
categorias pensadas como universais na reflexo sociolgica, tais
como: pblico e
privado, domstico, ntimo.
Essa investigao partiu da concepo de uma etnografia da durao
(Eckert e Rocha, 2009) que busca a produzir narrativas,
configurando tempos e
espaos da experincia da vida na cidade, que coexistem em sua
pluralidade e
diferena. No dilogo com a reflexo de Ricoeur (2000), em torno do
rememorado e
do esquecido na experincia subjetiva do tempo que a memria
quando narrada,
configuramos experincias que compem um quadro de fluxos e relaes
que
constituem o territrio urbano tal como subjetivamente percebido.
No entanto,
encontramos algumas dificuldades para a produo de narrativas
referidas `as
experincias socialmente valoradas como de insucesso. Os relatos
trazem histrias
trgicas, de abandono, violncia domstica, orfandade, que so
rapidamente
referidas como justificativa ao estar ali. Uma abordagem do
presente, colada s
prticas e s performances, aos corpos em relao, que constituem a
paisagem
humana do espao estudado, a que nos auxilia a estabelecer
relaes
compreensivas com esta populao.
Recentes debates acadmicos apontam diferentes modos de nomear
os
moradores de rua: mendigos, pessoas em situao de rua, moradores
de rua, sem
teto. Em cada uma dessas formas h uma concepo que reconhece no
outro uma
possibilidade de vida mais ou menos legtima. O modo como os
movimentos
referem-se essa experincia, pessoas em situao de rua, nomeia a
situao
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destacando o seu carter transitrio. No me parece que essas
pessoas tenham o
projeto de voltarem a suas casas.
A perspectiva das pessoas permanecer ali, habitando nos bancos
de praa,
onde, aprendendo a ver, podemos enxergar claramente o espao da
casa ocupado, na
cozinha entre os canteiros de rvores, no quarto onde se recebe
os amigos mais
ntimos, ou na sala, nos bancos da praa onde se recebe os menos
prximos para uma
conversa ocasional com os passantes. Aprender a ver o
aprendizado que a pesquisa
etnogrfica proporciona.
Em processos de produo de imagens, compartilhamos com os
sujeitos
estudados a produo de narrativas sobre a cidade, de pontos de
vista sobre o espao
urbano. Atravs da metodologia do filme etnogrfico, levantamos
narrativas acerca
de socialidade e fluxos urbanos, e sobre como que o tecido
urbano se configura. A
Antropologia Visual tem histria no estudo dos modos de ver das
populaes
estudadas e na compreenso das questes relevantes para estes
grupos. Refiro-me
aos trabalhos fundantes em etnografia visual de Mead e Bateson
(1985), alm dos
trabalhos de seus continuadores, Sol Worth e John Adair (1972).
Em ambos os casos,
temos um antroplogo e um especialista em comunicao em contato
com a cultura
de grupos especficos. E o recurso produo de imagens - em
fotografia ou cinema -
como modo de levantar as formas da cultura e, mais que isso, as
perspectivas dos
homens que a vivem. A partir de tais estudos temos um campo
aberto para a
investigao mediada pelo vdeo etnogrfico. No nosso caso, a partir
da produo de
narrativas e da apropriao do vdeo como instrumento na produo de
olhares
sobre o tema dos fluxos urbanos. Alguns experimentos nessa direo
foram j
iniciados por Ana Galano (1995), que formou um ncleo de estudos
em antropologia
visual a partir da prtica da etnografia mediada pela produo de
imagens em
favelas no Rio de Janeiro. Nesses estudos h um processo de adoo
de pontos de
vista sobre o espao de moradia construdo no dilogo com os
moradores dos bairros
estudados, da eleio de tais pontos de vista pode-se encontrar os
temas e problemas
relevantes para a populao que vive o espao.
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A presena da cmera em campo foi sendo negociada em situaes
delicadas.
No dia em que Maria fazia seu almoo em latas sobre uma fogueira
na porta da
Universidade nos aproximamos e dissemos que gostaramos de
grav-la fazendo o
almoo. Ela se negou. Acatamos, desligamos e guardamos o
equipamento, mas
continuamos por ali, estabelecendo dilogos. Tendo nos visto
conversando com
outras pessoas de sua relao ela foi aos poucos permitindo a
nossa aproximao. Os
senhores que habitam a praa disseram que um dia bom para
grav-los seria o
domingo pela manh, quando a Igreja distribui um caf da manh e os
moradores da
praa tm um tempo de convivncia mais tranquilo. Seguimos essa
orientao, mas
naquele dia conflitos emergiram. Na praa h dias em que as
situaes so tensas.
Seguindo as orientaes do prprio grupo vamos reposicionando nossa
abordagem.
Ha indivduos que no querem ser filmados, h aqueles que so
receptivos e h
aqueles senhores narradores com longas histrias e
experincias.
Desde o incio da pesquisa de campo a presena da cmera de vdeo
foi
central no estabelecimento das relaes. Mas o sujeito que fala
elabora sua fala para a
pesquisa. Ele est envolto, inserido em relaes, o vdeo tambm
documenta esse
dado. Depois de termos sido identificados como pessoas ligadas
Universidade, Sr.
Expedito seleciona e dirige o seu discurso aos estudantes,
criticando-os. Todo ato de
fala sempre contextual.
Como David MacDougall argumenta, em seu percurso do cinema
observacional cmera interativa, o sujeito que se sabe no mundo,
estabelece
relaes, de posies especficas.
Advogo hoje a favor de uma elaborao mltipla ao invs de conjunta,
resultando numa forma de cinema intertextual. Este passo pode fazer
com que a diferena cultural e geopoltica que separa o realizador do
sujeito, seja reconhecida mais claramente, a fim de que seja
respeitada a integridade de cada voz. Podemos dizer que qualquer
filme etnogrfico inscreve o texto do realizador no texto de uma
outra sociedade: um cinema intertextual poderia adotar formas mais
complexas como a incluso de vozes mltiplas, o recurso de
interpretaes diferentes, a montagem de materiais provenientes de
realizadores diversos, a sobreposio de antigos textos sobre novos,
etc. Tais aproximaes colocariam o filme etnogrfico em melhor posio
para confrontar vises opostas de uma mesma realidade e para
assegurar a reciprocidade das experincias (MacDougall,
1994:74).
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Dessa maneira, temos como perspectiva construir abordagens
metodolgicas
que nos instrumentalizem, para aprofundar a produo de tais
olhares situados em
experincias particulares do espao urbano que se encontram no
tecido das relaes
entre aqueles sujeitos que a cidade aproxima.
A edio de vdeo prepara material para o olhar dos que aparecem
nas
imagens, devolver o material gravado, editado, para os sujeitos
filmados, momento
de poder reencontrar-se com a prpria imagem, em sesses coletivas
de exibies de
vdeo. O objetivo inicialmente concebido, a realizao do
mapeamento das formas de
ocupao do espao urbano e das redes de relaes entre moradores do
bairro de So
Domingos, foi se definindo e especificando. O levantamento dos
fluxos e uma
histria das formas de habitao na regio est ainda em esboo. O
centro de nossa
cartografia o espao da Praa e as relaes que ali encontramos,
cheias de conflitos
que emergem no espao pblico. Reunimos linguagens: o stencil, a
fotografia, o
vdeo, com projees de filmes, visando possibilitar e aprofundar o
dilogo. Na
Praa, o trabalho com imagens, vai assumindo a forma que a relao
estabelecida
com os moradores da rua indica. A aproximao de nossos
personagens foi
registrada e a presena da cmera vai construindo a sua
possibilidade. Inicialmente,
a abordagem do desenho foi frustrada pela falta de familiaridade
dos sujeitos com o
lpis. A fotografia deve ainda ser experimentada como meio
suficiente para a
produo de apreenses da experincia vivida do espao urbano, da
perspectiva dos
sujeitos estudados.
A abordagem do stencil com imagens referidas ao universo dos
habitantes do
espao estudado forma de dilogo com jovens moradores e meio de
interveno
sobre o lugar em que se vive. No projeto de extenso, o stencil,
praticado pelos
estudantes participantes do projeto, foi apropriado como
linguagem no
estabelecimento de marcas em percursos inscritos pela pesquisa
na cidade.
Reconhecido como marca de percurso, a imagem grafitada em alguns
pontos-chave
abriu o debate em torno de algumas questes delicadas: a
discriminao do espao
do morro. Um morador do morro recusa a imagem enquanto forma
de
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identificao. Esse elemento nos provoca a reflexo em torno dos
esteretipos
enfrentados por esta populao, que recusa uma poltica de atribuio
de uma
identidade.
A realizao de vdeo e a formao da equipe para a produo e edio
de
vdeo passam, necessariamente, por devolues com exibio do
material produzido
na Praa, para os sujeitos filmados. O momento de ver-se opera no
aprofundamento
da relao de confiana na pesquisa.
A moradia popular, construda a partir da ocupao mais ou menos
irregular
dos morros e encostas pelas classes trabalhadoras h dcadas, tem
recebido uma
reflexo esparsa pela literatura. As etnografias produzidas
acerca das favelas
revelam categorias, estratgias de ocupao do espao urbano,
pautadas em um
padro de moradia que caracteriza uma noo ampliada de famlia
extensa que
abriga descendentes, agregados, em casas que vo se ampliando
verticalmente entre
vielas escondidas pela arquitetura urbana. Na regio que adotamos
como objeto de
nossa cartografia, que rene os bairros de So Domingos e Gragoat,
em Niteri,
pequenos morros abrigam residncias de trabalhadores.
A Praa da Cantareira, espao ocupado de diversas maneiras pelos
nossos
personagens, abriga homens e mulheres que elaboram estratgias de
subsistncia
que adotam a rua como espao de moradia. Debates em torno de como
nomear essa
populao e como construir abordagens de pesquisas capazes de
lidar com a sua
existncia tem mobilizado a produo de textos (Silva, 2010; Neves,
2010; Turra-
Magni e Bruschi, 1998; Frangella, 2004), o que denota um esforo
reflexivo para
compreender uma populao. A sua existncia impe a necessidade
sociolgica de
categorizar suas formas de vida. Pessoas que adotam relaes
econmicas informais
em diferentes atividades episdicas (catadores, guardadores de
carros, carregadores,
vendedores, eventuais pedreiros, ex-soldadores, pescadores)
moram na praa, os que
so casados com empregadas domsticas tm casas no morro. Acompanho
os fluxos,
as relaes e as estratgias de subsistncia adotadas. Trocas,
ddivas e dvidas,
marcam relaes que duram.
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A itinerncia, adotada como estratgia de vida desse extrato da
classe
trabalhadora, colabora na construo de uma territorialidade que
promove uma
desterritorializao nas expectativas e imagens feitas por aqueles
extratos da
populao que produzem e reproduzem o discurso hegemnico que
circula nos
grandes meios de comunicao. Uma invisibilidade marca a relao dos
moradores
de rua com outros personagens que ocupam o mesmo espao, os
estudantes, em seu
modo de ocupar a praa como lugar de lazer, no notam a casa
invisvel que existe
nas prticas dessa populao.
O jornal O Fluminense de 19 de maio de 2012 divulga em
fotografia de capa de
sua edio de sbado a interlocutora da pesquisa tendo seu filho
sendo recolhido
pela Guarda Municipal em ao conjunta com a polcia militar. Numa
das chamadas
de capa Oito moradores de rua so recolhidos e vo para abrigos
diz-se: Operao da
Secretaria de Segurana e Controle Urbano percorreu os bairros de
So Francisco,
Icara e So Domingos. As pessoas retiradas das ruas receberam
alimentao,
condies de higiene e cadastro. Essa no a primeira vez que o
Choque de Ordem
realizado em Niteri. A fotografia de Mria tendo seu filho
segurado por policiais
utilizando luvas cirrgicas enquanto ela era algemada estampada
na capa do jornal
da cidade.
Encontro Maria na Praa com seu filho depois do dia tenso que
fora a
vspera. Alterada, exausta, dormindo no asfalto com um lenol de
algodo,
amamentando Pedro, na porta da Universidade fechada, ela se
inflama ao pegar o
jornal de minha mo. Os moradores da praa negam que algum tenha
sido
recolhido da praa na vspera.
A poltica pblica do choque de ordem produz esse tipo de
visibilidade
negativa da populao que vive margem do mercado de trabalho
formal.
Associando-os aos problemas urbanos, os meios de comunicao de
massa so os
principais sujeitos do discurso da ordem. O jornal da cidade ao
divulgar imagens
como a da violncia policial sofrida por Maria contribui com a
cegueira que impede
o reconhecimento do lugar de tais sujeitos na vida da metrpole
carioca. Essa
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invisibilizao cria espao para um processo de criminalizao dessa
parcela da
populao trabalhadora.
Imagens publicadas pelo jornal O Fluminense de 19 de maio de
2012.
Imagem 01: Fonte: O FLUMINENSE, 2012
Imagem 02 . Fonte: O FLUMINENSE, 2012
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Imagem 03: Fonte: Jornal O FLUMINENSE, 2012
Para discutir o modo como os media constroem um discurso sobre
os
moradores da praa, parece-me eloquente emprestar aqui o conceito
de corpos
abjetos tal como definido por Judith Butler. O abjeto
relaciona-se a todo tipo de
corpos cujas vidas no so consideradas vidas e cuja materialidade
entendida como
no importante. A autora coloca a questo do ser da seguinte
maneira:
Como que alguns tipos de sujeitos reivindicam ontologia, como
que eles contam ou se qualificam como reais? Nesse caso, estamos
falando sobre a distribuio de efeitos ontolgicos, que um
instrumento de poder, instrumentalizado para fins de hierarquia e
subordinao, e tambm com vistas excluso e produo de domnios do
inimaginvel (Butler, 2002:160, traduo da autora).
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Butler se pergunta como que o domnio da ontologia, ele prprio
est delimitado
pelo poder (Prins e Meijer, 2002). Colocar a questo da ontologia
dessa maneira,
associada questo do poder, nos remete de volta ao problema do
reconhecimento
das formas de vida dessa parte da classe trabalhadora, que, no
Rio de Janeiro, se
reproduz nas ruas, como catadores de mariscos ou de materiais
reciclveis, criando
solues para o problema da subsistncia. Esses sujeitos, que as
abordagens
sociolgicas ou os movimentos sociais chamam de sem-teto, pessoas
em situao
de rua, ou ainda de lumpem proletariado, lanam olhares sobre as
relaes sociais
institudas, narram suas experincias, criam estratgias para se
relacionarem com a
ordem estabelecida. Aqui, a questo do reconhecimento chega ao
seu limite. O ser
morador de rua recusa a sua prpria identidade.
Butler dialoga com a questo dos corpos abjetos colocada por
Julia Kristeva
em Pouvoirs de lhorreur. Essa ltima define o abjeto como "aquilo
que um distrbio
identidade, ao sistema, ordem. O que no respeita fronteiras,
posies, regras"
(Kristeva, 1982:16). Nem sujeito, nem objeto, habitante de
fronteiras, sem desejo
nem lugar prprios, errante, dor e riso juntos, em um mundo
imundo, o sujeito
abjeto age em revolta. A noo coloca-nos no lugar onde o sentido
colapsa,
retornando ao problema da identidade recusada, do limite do
sentido, do absurdo da
misria, da fome, da desvalorizao que justifica toda forma de
violncia fsica e
simblica. Entrar em contato com estas experincias nos impe a
necessidade de
ouvir os silncios, ler os corpos, notar estratgias que negam
quaisquer discursos
rpidos e superficiais sobre a situao, sobre o instante em que a
vida se d, cheia de
limites e perigos.
Construmos, com a abordagem do vdeo etnogrfico, uma outra forma
de
lidar com o problema da visibilidade. A pesquisa etnogrfica
contou com a medio
da cmera de vdeo, mas sabendo das insuficincias e de tudo o que
tambm no
pode ser mostrado. Uma antropologia compartilhada com a
experincia particular
dos moradores da Praa, reconstri uma temporalidade especfica,
relaes.
Fotografando a moradia popular, antroplogos encontram a questo
do ponto de
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vista (Galano, 1995; Andrade, Motta e Lara, 1995; Carvalho,
1995; Madeira e Pontes,
1995).
Barbara Glowczevski (2006) nos apresenta o desafio de
reconstruir percursos,
trajetos vividos ou imaginados, na pesquisa por um dilogo entre
as linguagens da
etnografia e as linguagens do mundo, na busca por modos de
reportar a experincia
da pesquisa de campo, em uma base multimdia. Um site deve
apresentar essa
cartografia de mltiplas experincias, percepes, relaes com um
mesmo espao
geogrfico, que se torna outro quando vivido diferentemente por
perspectivas
particulares. Experincias distintas propem a localizao de
diferentes pontos de
vista e de escuta da praa. Sujeitos que, ao ocuparem o espao de
determinada
forma, vm um espao que completamente outro a cada ponto de
vista. Pontos que
possibilitam uma percepo, lugares de ensurdecimento e cegueira
em relao a
outros.
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