Top Banner
Paula Montero (org.) DEUS NA ALDEIA Missionários, índios e m e d i a ç ã o cultural Q EDITOR» G0OBO
506

Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Oct 22, 2015

Download

Documents

Welcome message from author
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
Page 1: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

P a u l a M o n t e r o ( o r g . )

D E U S N A A L D E I A

M i s s i o n á r i o s , í n d i o s e m e d i a ç ã o c u l t u r a l

Q EDITOR» G0OBO

Page 2: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Copyright © 2 0 0 6 by Acione Agnolin, Aramis Luis Silva, Ar t ionka

Cap iber ibe , Cr is t ina Pompa, José Maur í c io P. A. Arruti , Marcos

Pereira Ruf ino , Mar t a Amoroso, Melv ina Afra M e n d e s de Araújo ,

Nicola Gasbarro , Paula M o n t e r o e Rona ldo de Almeida

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida - em qualquer meio ou forma, seja

mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação etc. - nem apropriada ou estocada em sistema de bancos de dados, sem a expressa

autorização da editora.

Preparação: O t a c í l i o N u n e s

Revisão: Valquíria D e l i a Pozza

Capa: F e r n a n d a F i c h e r

Foto de capa: J e a n M a n z o n , Aldeia Xavante (c . 1 9 4 4 ) , ge la t i -

n a ( c c ) , 4 0 x 4 0 , C o l e ç ã o Famí l i a M a n z o n , S ã o P a u l o ( S P )

I a e d i ç ã o , 2 0 0 6

A Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara BrasilgipvHn Lnrrq^SP, Brasil)

Deus na aldeia : mj^S^HtfSTíndios eTifed^í^Nful tura l / Paula Montero, (org.) . - foab

Vários autores Bibliografia ISBN 85-250-4200-5

1 .Antropologia 2. Comunicação intercultural 3. índios da América do Sul - Brasil - Missões 4. Missionários - Brasil 5. Povos indígenas - Brasil I. Montero, Paula. II. Título.

06-4569 CDD-303.482

índice para catálogo sistemático: 1. índios e missionários : Mediação cultural : Sociologia 303.482 2. Missionários e índios : Mediação cultural: Sociologia 303.482

D i r e i t o s d e e d i ç ã o e m l í n g u a p o r t u g u e s a

a d q u i r i d o s por E d i t o r a G l o b o S. A .

Av. Jaguaré , 1 4 8 5 - 0 5 3 4 6 - 9 0 2 - S ã o Paulo , S P

w w w . g lobol ivros . c o m . br

Page 3: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

O "ENCONTRO" ENTRE OS MISSIONÁRIOS E OS ÍNDIOS DO BRASIL, INI-

CIADO NO SÉCULO XVI, CONTINUA QUINHENTOS ANOS DEPOIS E NUM

MUNDO GLOBALIZADO. ESTE LIVRO TRATA, DE UMA PERSPECTIVA

ANTROPOLÓGICA, DESSA HISTÓRIA ACIDENTADA E DAS PROFUNDAS

TRANSFORMAÇÕES QUE ESSE ENCONTRO PROVOCOU E PROVOCA EM

TODOS OS ENVOLVIDOS, PARTICULARMENTE COM CONSEQÜÊNCIAS

INÚMERAS VEZES TRÁGICAS PARA O GRUPO MAIS NUMEROSO - OS

ÍNDIOS EM TODAS AS MANIFESTAÇÕES DE SUA HISTORICIDADE. E

SE A ANTROPOLOGIA É DEVEDORA DA PRÓPRIA ATIVIDADE MIS-

SIONÁRIA PARA CONSTITUIR O SEU OLHAR, ELA TAMBÉM AQUI PODE

SE REVER CRITICAMENTE, TENDO COMO PALCO PARA ESSA AVALI-

AÇÃO OS PROBLEMÁTICOS PROGRAMAS QUE, A PARTIR DOS ANOS 1970.

SÃO POSTOS EM PRÁTICA JUNTO AOS ALDEAMENTOS INDÍGENAS P E U

IGREJA CATÓLICA E PELOS PROTESTANTES HISTÓRICOS E PENTECOSTAIS.

ISBN 05-250-4200-5

Page 4: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

A S R E F L E X Õ E S Q U E O L E I T O R C I K O U

Ir(]i <1 a q u i s . io s111 pi e e n d e n t e s . S e u o b j e t o ,

(1 s , i I Í \ Í (1,1 (I (1S II 1 Í s s j o 11 J li < 1 s (Ol)l Os í n d i o s

l io I ) I , 1 s i I (1 o S | ) | () | ) | ( 1II), 1 s | M l (11 ( 11 I I 111 ,1 i s ( j l I f'

p r o d u z e s s e " 'cm o n l i o , e n a o a p e n a s a t u a l ,

m e s m o s e n d o t . io . int imo, c o m o i g u a l m e n t e

d m n i i i l K o, p o i ( ] u e a g o r a e s t a m o s e n v o l v i

d o s n u m j o g o m u i t o m a i s g l o b a l d e o i d e

IKK d o e p o s s í v e l ,111 K M ( a (Li d i \ e r s i d a d e , d a

c u l t u r a e d<is p r a t i t a s r e l i g i o s a s . 1 p o r q u e

e d e u m C I K o u t r o ( ]ue s e t i a t a , c o m t u d o

o q u e p o s s a \ i r a s i g n i f i c a r par<i o l u t u r o

d o s q u e s e t e i m e m , a c a d a v e z d e u n i a

l o r n i a , n a s e n c r u z i l h a d a s d a h i s t o r i a , e

n e c e s s á r i o s e m p r e re< o n s t i t u i r c o m n o v o s

i n s t r u m e n t o s o s g e s t o s e a s a c o e s d o s p r o

t a g o n i s t a s , t a n t o d o p r e s e n t e q u a n t o d o

p a s s a d o , s e q u i s e r m o s d e p u t a r n o s s o

m o d o d e \ ei e i n t e i p r e t a i o " o u l ro , ( a n u

n h o o b n g a l o r i o p a i a ( o n h e < e i n i o s u n i a

b o a j>ai te di 1 " n o s m e s m o s .

A a b o r d a g e m a<]iii p r e t e n d i d a e m o

v a d o i a s o h \ a i ios aspe< tos : a o l e l e i < i i t ic . i

m e n t e .1 h e r a i u a d a s l e l l e x o e s a n l i o p o l o g i

( a s sol) i e o s < o i 1 1 a I o s m t e i ( u l t u i a is , gi . m d e

p a r t e d e l a s d e v e d o i a s e x a t a m e n t e da <i<ao

Page 5: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

l l l i s s i o i l . i l ' i a s c í l l l a i " I Kl AllKM Íí d, C dl) |)(M's

p e c t i v a r e s s e o l h a r a n t r o p o l o g i c o , a t e n t o

. tos i n s t r u m e n t o s d a f i l o s o f i a d a l i n g u a g e m ,

.1 p a r t i r t a m b é m d o s p r o b l e m a s a b o r d a d o s

p e l a h i s t o r i o g r a f i a a t u a l , s i t u a n d o s e n o q u e

h o j e e u m d o s p o n t o s d e e n c o n t r o m a i s

f e c u n d o s n a s c i ê n c i a s . s o c i a i s : a a n t r o p o l o

g i a h i s t ó r i c a . Dtvssa f o r m a , e p o s s í v e l

v i s u a l i / a r m e l h o r a s d i v e r s a s c a m a d a s d e

s e n t i d o q u e v a o s e n d o d e p o s i t a d a s e

11 a n s l o r m a d a s n a a t i v i d a d e n i i s s i o n e i r a ,

p a r a r e v e l a r c o r n o m i s s i o n á r i o s e í n d i o s

s e t r a n s f o r m a m m u t u a m e n t e n e s s e

" e n c o n t r o " , m e s m o q u e c o m c o n s e q ü e n

c i a s m u i t o d i s t i n t a s p a r a c a d a u m d e l e s .

P o r i s s o , e f u n d a m e n t a l l e r e s s e l i v r o

p a r a c o m p r e e n d e r m o s ( p i e a q u e l a s

<H o e s m i s s i o n á r i a s , in ic i a d a s n o s é c u l o

X V I , d e s a t i n a m s o b n o v a s f o r m a s , n o v a s

l o u p a g e n s , n o p r e s e n t e , e q u e n a s u a

a t u a l n i u l t i p l i ( ' i d a d e , a t r a v é s d o s p r o g r a

m a s i m p l e m e n t a d o s p e l a I g r e j a c a t ó l i c a

e p e l o s p r o t e s t a n t e s ( h i s t o i i c o s e p e n t e

c o s t a i s ) , e s t ã o e m ((Mia o s d e s t i n o s d e

m i l h a r e s d e s e r e s h u m a n o s , o s í n d i o s ,

p r i m e i r o s h a b i t a n t e s d e s s a t e r i a .

Page 6: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

E S T E L I V R O , C O M P O S T O N A F O N T E F A I R F I E L D

E P A G I N A D O P O R A L V E S E M l R A N D A E D I T O R I A L L T D A ,

F O I I M P R E S S O E M P Ó L E N S O F T 7 0 G N A P R O L E D I T O R A G R Á F I C A .

S Ã O P A U L O , B R A S I L , N O I N V E R N O D E 2 0 0 6 .

Page 7: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)
Page 8: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

S U M Á R I O

INTRODUÇÃO — Missionários, índios e mediação cultural . . 9 Paula Montero

1 - índios e missionários no Brasil: para uma teoria da mediação cultural 31 Paula Montero

2 - Missões: a civilização cristã em ação 67 Nicola Gasbarro

3 - Para uma antropologia histórica das missões 111 Cristina Pom^a

4 - Catequese e tradução: Gramática cultural, religiosa e lingüística do encontro catequético e ritual nos séculos XVI-XVII 143 Adone Agnolin

5 - A primeira missa:

Memória e xamanismo na Missão Capuchinha de Bacabal (Rio Tapajós 1872-82) 209 Marta Amoroso

6 - 0 código da cultura: o Cimi no debate da inculturação 235 Marcos Pereira Rufino

Page 9: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

7 - Tradução e mediação: missões transculturais entre grupos indígenas Ronaldo de Almeida

8 - Sob o manto do cristianismo: o processo de conversões palikur 305 Artionka Capiberibe

9 - A cultura como um caminho para as almas 343 Aramis Luis Silva

10 - A produção da alteridade: O Toré e as conversões missionárias e indígenas . . . . 381 Maurício R A. Arruti

11 - Natal na maloca 427 Melvina Afra Mendes de Araújo

Glossário 457 Notas 4 9 1

Bibliografia 547 Sobre os autores 581

Page 10: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

D E U S N A A L D E I A

Page 11: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)
Page 12: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

I N T R O D U Ç Ã O

M I S S I O N Á R I O S , Í N D I O S

E M E D I A Ç Ã O C U L T U R A L

Paula Montero

O CONJUNTO DE TEXTOS que apresentamos ao leitor neste volume é o resultado de um esforço coletivo de enfrentar, através do estu-do da atividade missionária entre as populações indígenas no Brasil, os problemas da interculturalidade que esse tipo de relação impõe, Embora abordado a partir de diferentes perspectivas, este já é um tema clássico na antropologia, e em particular na antropo-logia brasileira, mas que se renova constantemente pelo recrudes-cimento dos ciclos mais recentes de globalização, cujas configura-ções muitas vezes inesperadas (tais como a inversão de processos de "assimilação" dados como certos até muito recentemente) nos obrigam a renovar os termos do debate sobre o tema.

O problema geral do encontro intercultural e de suas conse-qüências foi colocado pela literatura histórico-antropológica das mais diferentes maneiras; em grandes linhas podemos destacar os estudos que o trataram em termos de "aculturação" tais como a escola antropológica americana e a antropologia brasileira dos anos 1950; em termos de "hibridismos" na vertente historiográfica ins-pirada em autores como Serge Gruzinski; em termos das relações entre estrutura e história nos trabalhos inspirados por Marshall

D E U S NA A L D T; I A 9

Page 13: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Sahlins; etc. Os desdobramentos desses diferentes posicionamen-tos para o trato da atividade missionária serão abordados detalha-damente no primeiro capítulo. De nossa parte, tendo em vista o objeto de pesquisa com o qual lidamos, que supõe a interconexão de sistemas simbólico-religiosos distintos, preferimos colocar o problema em termos de interpenetração das civilizações1 de modo a podermos enfrentar a questão com o grau de generalidade que ele exige. Isso porque, por um lado, no plano das práticas e das repre-sentações dos próprios missionários, religião e civilização se consti-tuíram historicamente como categorias irmãs, como bem o demons-tra Cristina Pompa. No plano teórico, por outro, essa formulação rompe com uma sinonímia histórica entre a idéia de nação e a de cultura, permitindo pensar atores cujo sentido da ação se decifra, como sugere Nicola Gasbarro no capítulo 2, na sua disposição para articular diversidades culturais heterogêneas que visam a produzir unidades políticas cada vez mais abrangentes. A catego-ria civilização privilegia as relações entre os homens (e não entre culturas);2 além disso, ela nos ajuda a superar um certo dualismo irredutível ainda prevalecente na antropologia entre o nós e o outro — que advém de uma análise centrada na decifração das particularidades culturais como sistema e no suposto da sua incomensurabilidade —, ao voltar o foco de nossa observação para índios e missionários em relação, ou, dito de outro modo, para o jogo contingente de suas relações sociais e simbólicas em um dado contexto.

Esse modo de colocar o problema geral da interculturalidade também nos permite recuperar para o nosso problema os ganhos da tradição inaugurada pela escola francesa de estudos compara-dos da religião, em particular sua perspectiva histórica e seu com-parativismo. A atividade missionária foi, por excelência, como veremos neste trabalho, uma atividade de classificação e compara-ção das diferenças de modo a localizá-las em quadros universais. Assim, em vez de tomar o eixo da cultura como um dado — pers-pectiva que definiu, desde o início, o trajeto dos estudos de acul-

Page 14: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

turação —, nossa abordagem toma como objeto as representações nativas, ou o modo como a ação missionária comparou historica-mente civilizações de modo a evangelizá-las. Nosso foco voltou-se, assim, para a análise do 'religioso" como linguagem privilegiada das relações interculturais — linguagem que produziu as catego-rias por meio das quais nossos agentes procuraram responder às questões que as diversas situações de contato lhes suscitava ao longo da história — e do modo particular como ele permitiu a pro-dução de instrumentos simbólicos e práticos para as traduções culturais que as relações impunham como necessárias. O fato de que o religioso, em suas diversas dimensões, tenha sido (e, em parte, ainda o seja, como demonstramos neste livro) a linguagem preferencial do esforço de tradução dos agentes envolvidos nessas relações exigiu de nós uma atenção particular para as interações "realmente efetuadas",3 como diria Pierre Bourdieu (1983), a par-tir dessa linguagem. A resultante dessa abordagem é, pois, um volume cujos capítulos dialogam intensamente entre si, de modo a caracterizar as diversas configurações que essas interações assu-mem no caso os jesuítas no século XVI, dos capuchinhos no sécu-lo XIX, dos salesianos, dos consolata, do Cimi e das missões evan-gélicas na contemporaneidade.

* XX

O desenho ^os capítulos aqui proposto supõe um diálogo silencio-so entre as partes que nos parece necessário explicitar para o lei-tor. Esse debate tem, a nosso ver, cinco dimensões principais, ou cinco conjuntos de problemas que podem nos servir de eixo para a apresentação deste empreendimento coletivo: o modo como pro-curamos enfrentar o problema metodológico das relações entre antropologia e história; o uso que fizemos dos principais conceitos — religião e cultura — utilizados nestes textos; a questão estraté-gica da tradução nas relações de mediação; o privilégio que demos à noção de rede na análise das relações sociais e simbólicas; e,

Page 15: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

finalmente, o modo como procuramos construir uma perspectiva teórica adequada ao problema da interculturalidade que enfatizas-se os sentidos produzidos nas relações. Vejamos, com mais aten-ção, cada uma dessas questões.

O ponto de partida — que faz da ação missionária um objeto privilegiado para a compreensão histórico-antrapológica dos meca-nismos simbólicos de alargamento das relações implícitos nos pro-cessos de interpenetração de civilizações — nos obriga a enfrentar a questão da aproximação, em um mesmo estudo, entre material his-tórico e observação antropológica dos fenômenos contemporâneos. Estamos, então, no terreno do vasto e delicado debate sobre as rela-ções entre antropologia e história, do ponto de vista seja das fontes, seja dos métodos ou dos campos de interlocutores. As análises pre-sentes neste livro estão todas mais ou menos explicitamente vincu-ladas a esse debate; mas, entre aquelas que o formulam mais expli-citamente, podemos dividi-las em dois modos complementares e relativamente espelhados de penetrar esse terreno.

De um lado temos os problemas trazidos pelo tratamento etnográfico da documentação histórica que nos obrigam a pensar as condições de possibilidade de realizar, por meio dela, uma antropologia simétrica do encontro missionários-indígenas. Não resta dúvida de que os processos da mediação cultural recebem um tratamento desigual em função da natureza particular das fontes históricas: tendo em vista que esses documentos são produzidos pelos próprios missionários, põe-se a questão da possibilidade e dos limites dessas fontes. O risco fundamental é, obviamente, o de utilizar as informações como dados objetivos, esquecendo os de-terminantes culturais que constituem os "filtros" através dos quais os europeus percebiam os índios. E esses "filtros" não são os mes-mos para todas as fontes: havia diferenças internas nesses olhares, pois havia percepções diferenciadas e estratégicas específicas de apreensão e transcrição do "outro". Essa uniteralidade da fonte documental tornaria inócua qualquer tentativa de apreender, atra-vés delas, relações? O índio ali retratado seria apenas o índio do

Page 16: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

civilizador? O que se pode reter das fontes históricas seria apenas o modo especular como o missionário fala do índio para, no final das contas, falar de si mesmo?

Na perspectiva aqui adotada, apontar a origem histórica das categorias apresentadas nas fontes não significa que elas só pos-sam transmitir um discurso ocidental. Se formos capazes de colo-cá-las em seu contexto de produção, definindo o lugar dos atores, seus interesses e conflitos, os textos nos dirão algo não sobre a "'ori-ginalidade" irremediavelmente perdida e impossível de reconsti-tuir, mas sobre o processo do encontro que é a matéria que aqui nos interessa. Um segundo risco, inerente ao uso desse tipo de documentação, é o de esquecer que os relatos se fixam no proces-so mesmo das relações entre índios e missionários e que, na maior parte das vezes, ele já se iniciara havia muito tempo. O conjunto das fontes deve, pois, ser tratado como uma narrativa na qual se depositam inúmeras vozes, em contraponto ou em uníssono, e em diferentes tempos. Nesse sentido, também a voz do indígena se apresenta como interlocutora. Assim, as fontes devem ser transcri-tas de uma forma suficientemente ampla para devolver, ao mesmo tempo, o contexto histórico em que se produziram determinados acontecimentos, o contexto narrativo em que se articulam as infor-mações e o contexto cultural a partir do qual os relatos foram escri-tos e ao qual eram destinados.

Nessas condições, a perspectiva indígena aparece de maneira muito sutil, nas entrelinhas e sempre filtrada pela ótica dos inte-resses de quem os documenta. Os capítulos de Cristina Pompa (3), Adone Agnolin (4) e Marta Amoroso (5) enfrentam essas ques-tões, cada um à sua maneira. Como bem observa John Monteiro em seu prefácio ao livro de Cristina Pompa sobre as relações entre missionários e os tupis no Brasil colonial (2003), pano de fundo da reflexão que ela empreende neste livro, a autora desafia as supos-tas limitações que a documentação histórica apresenta e insiste em que é possível ler o olhar indígena nela inserido. Trata-se, na verdade, de tentar apreender nos documentos o modo como os

Page 17: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

índios "tomam para si" as particularidades etnográficas reificadas pelas "linguagens particulares" dos missionários. O trabalho de Marta também mostra que as fontes estão longe de ser apenas o registro da experiência particular de um missionário: elas são, ao contrário modeladas, ao mesmo tempo, pelas experiências lidas e conhecidas de outros missionários em outros lugares e momentos e pelos conteúdos doutrinários e ideológicos do projeto civilizatório da Igreja católica que se acumularam ao longo da história. O pró-prio missionário representa sua ação em diálogo com outras expe-riências missionárias construindo-a muitas vezes sobre "os escom-bros" de assentamentos anteriores. A autora captura, assim, através dessa determinação estilística da fonte, ao mesmo tempo, a grade de leitura, a teoria que o missionário usa para descrever a si mesmo, a particularidade indígena mundurucu e as frestas por onde escapam as reações indígenas — a força política dos feiticei-ros e pajés que movem a vingança na missão descrita de um modo acusatório — e convergências de perspectivas entre índios e mis-sionários, tal como no caso do apoio missionário ao ritual da caça às cabeças contra os parintintins, ou na aproximação simbólica entre pajés (sacerdotes protocristãos ) e padres.

Já os catecismos jesuíticos, estudados por Adone Agnolin, são fontes documentais modeladas por retóricas teológico-políticas e metafísicas que precisam ser levadas em conta quando se procura ler através delas "as culturas indígenas"; esse é o esforço realizado pela análise de Agnolin neste livro. Além disso, a produção mesma desse tipo de documento exigiu a construção de um artefato cul-tural de enorme relevância: a gramatização da língua indígena, ins-trumento basilar do catecismo (e da evangelização). Essa grade de leitura que permite ler o sistema mítico-ritual indígena, ainda que na chave da religião, dá lugar a uma pragmática que está obrigada a selecionar, simplificar e adaptar, operações necessárias, segundo o autor, para que a mensagem cristã signifique algo para o índio. Ainda que não se pretenda alcançar a língua indígena "pura", isto é, aquela existente antes da chegada do missionário, os relatos

Page 18: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

sobre as dificuldades para normatizar a língua tupi nos dão acesso, ainda que parcial, às suas características próprias quando compa-radas às latinas, tais como seu caráter contextual e a ausência de convenções lingüísticas de gênero e número. Além disso, quando se leva em conta que o catecismo era uma prática de audição e memorização, torna-se mais clara sua permeabilidade para que nele se incrustassem a memória e a ritualidade indígena. O regis-tro das dificuldades para controlar o que os indígenas compreen-. diam e como compreendiam abre também aqui as frestas que nos dão acesso ao modo de ver indígena.

Assim, assumindo os devidos cuidados quanto ao contexto de produção dos textos missionários e a seu modo de produzir a reconstituição das culturas orais, essa operação permite recuperar nas fontes aquilo que interessa a todos os autores deste volume: o registro da "convergência de horizontes simbólicos"4 resultante das relações históricas entre índios e missionários. E claro que esse modo de ler a documentação histórica não supera o problema do desequilíbrio entre o estudo histórico dessas relações e seu estudo no presente. Ainda assim, é preciso ter em mente que as popula-ções indígenas contemporâneas estudadas neste volume em suas relações com os missionários não são as mesmas "que estavam lá, no passado, e que sempre estiveram lá" para que as pudéssemos estudá-las no presente. Embora pouco se saiba, ainda, da história indígena, é consenso que essa história foi marcada por cisão, dis-pársão, fusão, desaparecimento e recomposição de muitos desses grupos, algumas vezes produto da própria situação colonial ou fora-gidos das missões e "retribalizados" (Cunha, 1998).

Os estudos históricos e os estudos antropológicos que com-põem este volume se enfrentam, pois, com problemas de ordem pro-porcionalmente inversa: os que trabalham o material documental precisam ler nas entrelinhas a dimensão etnográfica; os que traba-lham com o presente precisam decompor as evidências etnográficas de modo a perceber as várias "camadas históricas" depositadas na superfície enganosamente plana que se oferece ao olhar do obser-

Page 19: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

vador direto. O trabalho de José Maurício Arruti é especialmente revelador das possibilidades analíticas que se abrem quanto se lê a etnografia como uma porta de acesso à história, por um lado, e quando se pensa a história como objeto etnológico. Trabalhar his-toricamente com os dados etnográficos de campo coloca, entre outras questões, a necessidade de pensar a história não como um conjunto de fatos reais passados, mas como um dentre outros objetos etnológicos, fundamental na compreensão das relações missionários-indígenas e produto mesmo desse encontro. Obviamente não se trata de afirmar que a história se inaugura no seio daquelas "sociedades frias" por meio do "encontro", mas de reconhecer que as novas relações instauradas estão ligadas a uma série de mudanças na concepção de tempo (modelos de temporali-dade), nas formas de recuperar fatos passados (métodos mnemôni-cos), na atribuição de significados locais e/ou gerais a tais fatos (cor-pus memorial), na sua hierarquização (história indígena), na medida mesma em que tal memória é compatibilizada e ganha um lugar no seio de histórias mais amplas (regionais e nacionais).

Essa relação entre memória e história está no centro da análi-se do processo da indianidade xocó tal como descrita no capítulo 10, no qual a memória cabocla é tão fundamental quanto impedi-tiva do esforço missionário de construção de uma história indíge-na. A construção dessa história costurou memórias dissonantes enquadrando-as cronologicamente por meio do recurso à pesquisa documental, empreendida tanto por missionários quanto por antro-pólogos, sempre tendo em vista uma argumentação voltada para o Estado brasileiro. Mas o importante na análise de J. M. Arruti desse processo está em apreender, primeiro, quanto a "história indígena" é tributária (ou simples extensão) de uma história da terra indígena e, segundo, quanto tal construção discursiva teve profunda repercussão sobre a própria autopercepção da população que ela pretendia descrever: a história que pretendia recuperar para fazer justiça a uma memória indígena na verdade opera a con-

Page 20: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

versão de uma "memória cabocla" dispersa em uma "memória indí-gena" unificada, recriando-a em outros termos.

Na análise empreendida por Artionka Capiberibe no capítulo 8, uma exploração semelhante das relações de temporalidade é expressada em termos de camadas da presença das missões inci-dentes sobre o mesmo grupo indígena. As narrativas palikur sobre a sua conversão ao pentecostalismo evangélico são estruturadas por elementos do cristianismo com os quais conviveram em tem-pos distintos: dos jesuítas, no século X V I I I ; dos padres das prelazias locais, nos séculos XIX e XX; do catolicismo que reunia festas aos santos e xamanismo praticado por eles em um passado recente e hoje presente nos outros povos da região. Essas diferentes tempo-ralidades são combinadas, como em um girar de caleidoscópio, no momento de explicar como e por que os palikur se converteram.

O segundo eixo importante de problemas é conceituai e diz respeito ao modo como estamos utilizando a noção de religião e cultura neste volume. Como bem observou Oscar Calávia em seus comentários ao nosso trabalho, a antropologia contemporânea enfrenta o problema das relações "incestuosas" entre o conceito de religião e o de cultura. As tentativas de demarcação esboçadas por Clifford Geertz não permitiram avançar muito (1978)5 nessa dire-ção. Na raiz dessa dificuldade está o próprio processo de constitui-ção da disciplina antropológica, que, como já apontaram muitos autores, herda dos relatos missionários essa sinonímia implícita. Im^õem-se, portanto, os problemas relativos não só à historicida-de das categorias missionárias e do repertório analítico das ciên-cias sociais como, fundamentalmente, ao trânsito pouco controla-do (o "contrabando", diria Bourdieu) de categorias, temas e problemas de um campo para outro,

Não se trata, portanto, de encontrar "antecipações" de orienta-ções antropológicas no pensamento missionário, mas de reconsti-tuir a dinâmica de certos conceitos, criados em determinados ambientes histórico-sociais (o "cristianismo" em oposição ao "paga-nismo" e, depois, a filosofia tomista como organização teológica do

DEUS N A ALDEIA 17

Page 21: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

mundo) e reelaborados em outros. Como mostramos aqui, essa ree-laboração se dá tanto na apropriação do culturalimo antropológico pelo discurso missionário — através da suposta "reconstrução" de grupos ou no "resgate" de sua tradicionalidade — quanto na apro-priação, pelos próprios indígenas, dos discursos antropológicos e missiológicos para a produção de um discurso étnico.

Para que pudéssemos neutralizar os efeitos mais desconcertan-tes desses contínuos deslizamentos entre o campo antropológico, a pragmática missionária e a auto-representação indígena, procura-mos manter as noções de cultura e religião no plano do discurso nativo: não se trata, pois, nesta abordagem, de descrever "a cultura nativa", mas sim o modo como o "etno" (isto é, aquilo que é carac-terizado como sendo próprio do índio) aparece e é mobilizado pelos padres e pelos grupos indígenas. Homologamente, tampouco se trata de descrever "a religião indígena" (aquilo em que os índios "crêem"), mas o modo como usam e expressam o que os missioná-rios lhe apresentaram como a mensagem religiosa. Nesse tipo de abordagem, o problema antropológico da "conversão", tal como foi colocado em trabalhos já clássicos como o de Hefner (1993), perde substância analítica. Isso porque, se estamos situando a crença no plano do discurso nativo, e não no plano do discurso antropológico, a noção de conversão deve ser tomada como um dos instrumentos missionários para medir a qualidade da absorção de seus ensina-mentos — e é apenas nesse plano que a polêmica sobre a verdadei\ ra ou falsa conversão faz sentido —, ou, no caso indígena, para designar uma posição social em contraposição a outras possíveis.

Como já indicamos acima, no intuito de estruturar melhor o campo teórico onde se situa nossa abordagem, o trabalho de Cristina Pompa neste livro procura desvendar esse processo histó-rico no qual, desde a "conquista espiritual do Novo Mundo", a "religião" se constituiu no instrumento preferencial para descrever a cultura dos outros. A autora chama a nossa atenção para a apo-ria corporificada na antropologia, que, embora não compartilhasse do suposto da universalidade do homo religiosus, analisou fatos

Page 22: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

cognitivos e/ou simbólicos de outras culturas fazendo um uso uni-versal do conceito de religião. O problema dessa permeabilidade entre religião e cultura se torna ainda mais vertiginoso quando se considera que, por um lado, como revela a análise histórica, os missionários foram progressivamente se apropriando do conceito antropológico de "religião" particularmente em sua vertente feno-menológica formulada por autores com Mircea Eliade, para des-crever a cultura indígena e que, por outro, a observação antropoló-gica contemporânea mostra que muitos grupos indígenas se apoiam no culturalismo antropológico resultante desse processo como forma de expressar sua auto-representação.

A análise de J. M. Arruti sobre a relação entre as etnogêneses indígenas e a reificação de uma "religião indígena", substancializa-da no Toré, indica que operam nesses processos uma sinonímia entre as noções de religião, cultura e identidade. As configurações discursivas, missionárias, indígenas e antropológicas parecem entrar em uma espécie de sinergia na qual conceitos e categorias nativas se tornam intercambiáveis, transformando os objetos de nossa reflexão em auto-evidências empíricas. Mais do que um ma-peamento das categorias discursivas colocadas em ação pelos agentes, o autor buscou empreender uma verdadeira "arqueologia" dessas categorias em meio ao processo de negociação que levou o zrupo de caboclos (categoria local) a converter-se em grupo indí-gena t categoria trazida pelos missionários e legitimada pelos antro-pólogos), de modo a descrever, ao mesmo tempo, tanto sua função aeunenêutica quanto sua reapropriação como "verdade" pelos ügentes em mediação.

Também se pode acompanhar perfeitamente a lógica dessa espiral no texto de Aramis Silva (capítulo 9) sobre a criação

ò t áois centros culturais na região do Meruri entre os bororo — JMH museu antropológico, que resulta de uma iniciativa missioná-SB® e centra a "valorização da cultura indígena" em seus aspectos

e ritualísticos espacializados na estrutura esquemática * uEia "aldeia tradicional"; uma "aldeia cultural", iniciativa pes-

Page 23: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

soai de uma liderança indígena que visa à edificação de uma aldeia "tradicional" em escala "real" para que visitantes possam conhecer "a cultura bororo" tal como fora codificada anteriormente pela antropologia salesiana.

O terceiro conjunto de problemas diz respeito à questão da "tradução". Descrever os diversos modos como a "religião" se cons-tituiu no instrumento preferencial para dizer e pensar a cultura dos outros foi, como dissemos, um dos principais esforços que empreendemos neste livro. Ritos, mitos, crenças foram reiterada-mente tomados como grade de leitura das religiões indígenas, estratégia para sua conversão, mas também reiteradamente reapro-priados pelos índios. Em seu empenho em produzir a comensura-bilidade entre as culturas, o esforço missionário de traduzir a lín-gua e a cultura nativa foi uma constante histórica que permanece viva até hoje. Pode-se afirmar que a tradução se constituiu, pois, em um dos principais instrumentos empíricos utilizados pelos mis-sionários para produzir a esperada passagem para a civilização (ou, mais recentemente, como mostram os textos de Aramis Silva e Melvina de Araújo, passagem para a cultura) que se daria no plano do religioso — pela conversão via a tradução da Bíblia tal como foi analisado por Ronaldo de Almeida (capítulo 7) — e no plano cul-tural — pela evangelização via a tradução dos "costumes", da lín-gua, e a padronização da gramática tal como aparece nos trabalhos de Adone Agnolin (capítulo 4), Aramis Silva (capítulo 9), José Maurício Arruti (capítulo 10) e Melvina de Araújo (capítulo 11). Embora de maneira menos sistemática, e menos preocupados com a comensurabilidade e a universalização das relações, os povos indígenas também praticam a tradução apropriando-se dos modos como os religiosos organizam os sistemas de diferenças no proces-so mesmo de tradução dos "costumes".

Mas a noção de tradução é utilizada neste volume também em um sentido mais analítico. Tendo em vista a importância estratégi-ca e política desse instrumento de leitura e apropriação dos senti-dos do outro que a tradução supõe, a análise das operações simbó-

Page 24: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

lico-práticas de tradução nos pareceu constituir um locus privilegia-do para a observação dos processos de produção dessa espécie de "convergência de perspectivas" que nossos atores percebem como da ordem da conversão. As análises aqui desenvolvidas indicam que »>> pnxessos de tradução alimentam um movimento contínuo de crui^meniQ e reposição de "fronteiras" — territoriais, étnicas e polí-licas — que acaba por levar, como uma de suas principais conse-qüências. à fixação de novas diferenças. Diversos capítulos deste livro nos apresentam várias configurações possíveis desse processo: Marcos Rufino, por exemplo, nos mostra no capítulo 6 como, a par-tir dos anos 1970, se rompe a auto-representação histórica do traba-lho missionário catequético e se incorporam as diferenças indíge-nas a imagem genérica do "excluído" dando ao indigenismo católico uma dimensão nacional. Ela terá como contrapartida a produção de lideranças indígenas" que progressivamente terão de mobilizar diferenças étnicas para legitimar-se.

O quarto eixo é de natureza sociológica e diz respeito às redes sociais. Nesse caso, trata-se de dar atenção às relações sociais que constituem (sustentam, resistem, interferem, informam) o proces-so de mediação implicado na ação missionária, e por meio das quais se articulam diversos códigos culturais, diferentes estraté-i i i n d i v i d u a i s , coletivas e institucionais, assim como diferentes rimos de informações (mercadorias materiais e simbólicas).

No contexto dos grupos indígenas da região do Uaçá, no Amapá, .analisados por A. Capeberibe e R. de Almeida, por exemplo, a opo-r ã o entre católicos e evangélicos, mais que expressar uma dispu-

entre agências missionárias, acabou por traduzir disputas inter-a própria sociedade indígena: as relações estabelecidas pelos

Tzz^Kmànos evangélicos e católicos sobrepuseram-se de diferen-iccrnas às redes de parentesco; a entrada de conhecimentos

oucro os relativos à saúde, colocou em perspectiva, para 3* iiroo*. seu próprio acervo de conhecimentos tradicionais; a esoolha missionária de intérpretes locais, por privilegiar os indiví-duos de maior amplitude de visão sobre a sociedade e a tradição

Page 25: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

indígena, recaiu justamente sobre aqueles indivíduos que, por desempenharem papéis como os de xamã, cacique e anciãos, ocu-pam lugares de centralidade e transversalidade nas redes locais, assim como de conexão com redes translocais (ver Almeida, capí-tulo 7). Essas redes de relações estendem-se para além das fron-teiras da região do Uaçá e atingem populações indígenas das mesmas etnias na Guiana Francesa. Dessa forma, a própria rede de parentesco opera como veículo de difusão da religião evangé-lica na medida em que para esta é um dever evangelizar em pri-meiro lugar os parentes com a finalidade de torná-los também "-irmãos de fé".

Em um contexto absolutamente diverso, a análise de J. M. Arruti do processo de identificação étnica xocó, no sertão do São Francisco, mostra como esse processo não pode ser entendido fora da rede formada pelas outras (re)identificações étnicas da região e como o padrão dessas redes variou entre o início e o fim do sécu-lo: as do fim do século menos tributárias de redes de trocas rituais e de parentesco preexistentes do que as produzidas pela própria ação missionária. Nesse último caso, observa-se a construção de redes de informação e troca política por meio das quais as trocas rituais e de parentesco são reativadas ou simplesmente criadas, tendo por modelo as redes "tradicionais".

Assim, ainda que as missões procurem atuar preferencialmen-te sobre algumas dimensões da vida indígena (os mitos, os ritos, o comportamento moral etc.), os meios para intervir nessas dimen-sões extrapolam o que os missionários consideram de forma restri-ta como o universo da religião. Ainda que de forma menos eviden-ciada, isso está implicado em boa parte das outras análises sobre a ação missionária presentes neste volume, mostrando os planos de interação por meio dos quais circulam mercadorias, tecnologias e informações.

Finalmente, o quinto eixo, que podemos considerar a questão teórica central que orienta os trabalhos aqui apresentados, diz res-peito ao modo de compreender como se produz histórica e social-

Page 26: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

mente a "convergência de horizontes simbólicos" entre grupos indígenas e missionários. Talvez seja necessário pontuar melhor a viabilidade de tal proposta. Sabemos que a atividade missionária cristã é um empreendimento de longa duração e marcado por uma dimensão planetária. A literatura sobre o tema é vastíssima e se ali-nhava através de espaços disciplinares densos em sutilezas teóri-cas e conhecimentos empíricos tais como a teologia e a história e, mais recentemente, a etnologia indígena. Assim, a antropologia das missões que pretendemos, embora em diálogo com essas abor-dagens, procurou produzir um lugar teórico que tivesse como foco não a instituição religiosa em si mesma — como no caso dos his-toriadores da Igreja católica que estudam a missão ou as ordens religiosas (como Haubert, 1990) —, nem tampouco as culturas indígenas nelas mesmas — como no caso dos etnólogos que estu-dam os modos de pensar do indígena (Albert, 2002) —, mas o espaço social e simbólico de suas relações nos momentos determi-nados em que o esforço de generalização se impõe: a este locus de relações generalizadoras demos o nome de espaço da mediação cultural.6 Seu programa de trabalho e suas implicações para a aná-lise antropológica foram desenvolvidos mais detalhadamente, como dissemos, no capítulo 1 deste volume. No entanto, de modo a evitar a reposição do dualismo nós/eles que essa noção sempre parece suscitar quando personificada em agentes — pensados como "pontes" entre cosmologias distintas —, é preciso explicitar que estamos utilizando esse termo com o intuito de enfatizar o jogo das relações e processos de construção de sentido nas "inte-rações realmente efetuadas" entre missionários e índios determi-nados. A ênfase se põe,vpois, nas lógicas práticas investidas nessas relações e em seu modo de agenciar os sentidos para produzir um acordo circunstancial sobre a ordem do mundo cujo formato não pode ser antecipado de antemão. Para enfrentarmos essa questão, buscamos construir uma abordagem que colocasse no foco de nossa observação os processos de produção dessa convergência. Catecismos, memórias, etnografias, fotografias, rituais de toda

DF.IIS NA ATDFIA ?3

Page 27: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

sorte — de cura, xamânicos, missas, festas, leituras da bíblia — nos pareceram ser os topoi privilegiados onde esses processos ganhavam algum enunciado observável. Ao nos perguntarmos o que esses construtos simbólico/práticos querem dizer, nos indaga-mos sobre as regras que organizam sua significação para índios e missionários. Mas algumas explicitações dos posicionamentos teó-ricos implícitos nessa abordagem se fazem necessárias.

Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que esse tipo de problema só pode ser construído quando se supõe uma situação, mais ou menos durável, de "encontro" cultural. O termo "encon-tro", usado em alguns textos, deve ser tomado apenas metaforica-mente para designar um espaço (não territorial, evidentemente) onde o jogo das mediações vai sendo permanentemente feito e refeito. Mobilizar a imagem do "encontro" tantas vezes reiterada pela literatura traz dois grandes riscos que gostaríamos, de ante-mão, de evitar:

a) supor que o historiador ou antropólogo está testemunhan-do o "primeiro" encontro entre diferenças radicais tidas como dadas e anteriores às relações. Sabemos bem, e os estudos deste livro mais uma vez demonstram isso, que os sistemas sociais em relação se constroem por sobreposições, a atividade missionária muitas vezes encontrando naquilo que descreve como memória indígena o que havia nela depositado no passado, e a memória mis-sionária se auto-representando como construção que se realiza, segundo a expressão de Amoroso, "sobre os escombros de outras missões". Assim, expressões tais como "encontro" e mesmo "zonas de contato" servem apenas para designar situações mais ou menos permanentes de interculturalidade que denominamos, no primei-ro capítulo, de "campo das relações interculturais". Essas situa-ções se materializam através de redes de relações — reuniões polí-ticas, encontros rituais, publicações, viagens etc. — e também, em parte, na vida cotidiana no espaço físico das missões.

b) supor que o "encontro" se dá sem desigualdades. Como observamos no capítulo 1, a idéia de que esses "encontros" são fei-

Page 28: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

tos de violência e desigualdade de forças é para nós um ponto de partida (e não uma conclusão). É sobejamente conhecido que, para além da violência física, os saberes demográficos, etnológicos e geo-gráficos que os missionários produziram ao longo da história foram poderosos instrumentos de ordenação do mundo nativo para incor-porá-lo progressivamente na órbita do Estado.7 O que nos interessa compreender são as realidades etnográficas que esses saberes ajuda-ram a construir e o poder simbólico (no sentido que Pierre Bourdieu dá ao termo) que advém da manipulação desses saberes. Como bem o demonstrou Bourdieu (1984), o poder simbólico é o poder de "dar a ver" e conseqüentemente "fazer crer". Ao produzir quadros de interpretação e de classificação de pessoas e coisas o poder sim-bólico produz, concomitantemente, realidades sociológicas — insti-tuições, redes de relações e agentes portadores das representações percebidas como legítimas. Os atos de nominação e de classificação têm, pois, intenção performativa. Embora os missionários desenvol-vam constantemente mecanismos de controle das interpretações possíveis e aceitáveis, eles não podem nomear sozinhos. Para que se torne convincente e verossímil, todo sentido depende de um acordo sobre o sentido dos signos, e portanto ele é necessariamente inter-subjetivo. A essa característica do acordo denominamos, inspirados em Clifford Geertz, de "códigos compartilhados". Procuramos de-monstrar ao longo deste volume como esse acordo se constrói e só pode ser lido no processo mesmo da experiência cotidiana de comu-nicação (ver detalhamento no capítulo 1).

Os trabalhos reunidos neste livro procuram responder a essa questão nos planos histórico e etnográfico. Ao longo dos diversos capítulos, descreveu-se o modo como o missionário se comunica com a diferença nativa — como ele imagina que o nativo é ou pensa e como incorpora certos modos interpretados como nativos; ao mesmo tempo, procurou-se descrever como o nativo se apropria em parte de algumas dessas representações de si e do missionário. Assim, a metáfora do "encontro" nos obrigou a supor que, apesar da diversidade de "línguas", os grupos em interação, naquilo que

Page 29: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

interessava à reprodução das relações de interação, desejavam (e pre-cisavam) comunicar-se. Para tanto, tornava-se necessário produzir algum tipo de acordo sobre o sentido do que estava sendo dito. Ora, esse só poderia ser construído no espaço mesmo da interação, isto é, no processo de ajuste e expansão da experiência comum e no exercício comum da linguagem. Mas como definir conceitual-mente essa noção e como descrevê-la como processo?

Ao comentar a leitura que L. Wittgenstein faz da teoria da magia de James Frazer, Stanley Tambiah observa que o autor colo-ca o problema da comensurabilidade das culturas não no plano histórico evolutivo de Frazer, mas no plano dos esquemas cogniti-vos. A significação transcultural se produziria, pois, pela intercone-xão de sentidos em um contexto configuracional.9 Tendo em vista que versões contrastantes sobre o mundo são irredutíveis umas às outras, uma construção de mundo inter-relacional se produz nos jogos de linguagem.

Inspirados nesse equacionamento lógico que a filosofia da lin-guagem de Wittgenstein deu a essa noção de acordo, parece-nos oportuno explicitar algumas de suas implicações teóricas de modo a enquadrar com mais precisão o tipo de abordagem que aqui desenvolvemos.

Segundo o enunciado wittgensteiniano, o acordo resulta do aprendizado do uso de determinadas matrizes ou regras, elas mes-mas condição de significação. A produção desse acordo supõe, por-tanto, que as pessoas (ou grupos) em interação, embora pertençam a universos culturais distintos, estão dispostas a se comunicar e que só poderão se entender se compartilharem experiências comuns. "O comportamento comum a todos os homens é o sistema de refe-rência por meio do qual interpretamos uma linguagem desconheci-da" (Wittgenstein, 1975: 206). Assim, como observa o comentador Glock, "compreender uma linguagem que nos é estranha é algo que não pressupõe uma convergência de crenças, mas sim de padrões de comportamento que, por sua vez, pressupõem capacidades per-ceptuais, necessidades e emoções comuns" (1998: 177).

Page 30: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

No plano da interpretação etnográfica da interação aqui pro-posta, traduzimos essa dupla exigência do processo de produção de um entendimento mútuo — disposição para estabelecer rela-ções de comunicação e compartilhamento de experiências comuns — através da idéia de descrição contextual das significações. Assim, como afirma P. Montero no capítulo 1, a produção de "códigos compartilhados" seria a resultante das estratégias da interação que mobilizam "sentidos que só podem ser descritos contextualmente". Pierre Bourdieu já havia antecipado esse tipo de apropriação da filosofia wittgensteiniana para a construção de sua teoria da práti-ca que coloca as regras do jogo e as estratégias dos agentes no cen-tro de sua reflexão. Bourdieu procura demonstrar que a prática não pode ser deduzida das regras (o jogo formal das estruturas); ela deve ser tomada, ao contrário, como uma improvisação regular na qual esquema (maneiras de ver) e contexto estão inextricavelmente associados e se implicam mutuamente.

Em decorrência desse primeiro delineamento, temos que, se é o ato de jogar juntos que produz a regra, se ela é contextual, a relação entre a regra e a sua aplicação estará sempre em aberto: isto é, definir uma regra e seguir uma regra não são dedutíveis um do outro. Aqui o autor está chamando para si Wittgenstein para criticar o intelectualismo estruturalista que "escorrega do modelo da realidade para a realidade do modelo" (1983: 59). Mas gostaría-mos de acrescentar uma outra dimensão importante nessa reflexão sobre a natureza da regra que interessa particularmente aos textos deste livro. Ao diferenciar a construção da regra de seu uso, a aná-lise dos jogos de linguagem permite discernir os objetos "reais" dos objetos tornados normas: estes últimos retêm apenas algumas pro-priedades do objeto "real" e estas, pragmaticamente, se tornam condutores relevantes do entendimento. Foi a partir dessa pers-pectiva que interpretamos alguns dos referentes que apareciam nos jogos de comunicação de grupos indígenas e missionários: rituais como a missa, ritos xamânicos, funerais emergem como padrão — isto é, construtos de referência para a constituição de

Page 31: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

identidades significativas em torno das potencialidades da força mágica, das relações com a sobrenatureza, do controle da violên-cia e da morte etc.10 A esses construtos simbólico-práticos que se tornam referência nos jogos de comunicação, estamos chamando neste volume de código. Para que se possa ter uma compreensão mais clara da opção por esse conceito, em vez da noção corrente de cultura, algumas das propriedades que lhe imputamos precisam ser mais bem explicitadas.

Em primeiro lugar, partindo do suposto de que é sempre no exercício da experiência comum que os grupos em interação se põem de acordo em relação às situações possíveis que um código de referência designa, a "totalidade do sistema" permanece fora da interação. Assim, não é a "cultura" indígena ou cristã como um todo que é mobilizada nesses jogos de comunicação, mas, ao con-trário, alguns de seus elementos se tornam norma de juízo de uma situação.11 Quais são esses elementos, como eles se apresentam e por que eles são particularmente aptos a se tornarem regra são algumas das questões que exploramos neste livro.

Em segundo lugar, se o código resulta de um acordo sobre o padrão para entendimento de certas situações, esse construto sim-bólico não tem, conseqüentemente, a mesma substância ontológi-ca que os objetos aos quais ele se aplica. Desse modo, não há sen-tido em se perguntar da verdade ou falsidade da relação entre o código e as experiências culturais que ele designa.12 Experiências culturais tais como a adesão ao cristianismo, por exemplo, se apre-sentam, certamente, para índios e missionários de maneira diferen-te; no entanto, para os dois a conversão como um código passa a servir como ponto de referência na medida em que agem em con-sonância com esse enunciado. Esse processo está muito bem des-crito no capítulo 8, sobre a conversão palikur. Dessa perspectiva, as análises que insistem nos mal-entendidos culturais inscritos nesse tipo de relação ("falsas traduções" ou "falsas conversões"), ao não fazerem a distinção entre ente e padrão, supõem a possibilidade de acesso a uma "verdadeira" totalidade cultural obtida através do

Page 32: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

escrutínio da experiência ou da construção abstrata da estrutura — as coisas "tal como elas são" —, totalidade esta que se tornaria medida da adequação entre significação e real. Para evitar esse tipo de problema preferimos manter noções tais como conversão, reli-gião, tradição, cultura no "plano do funcionamento dos códigos.

Finalmente, ao apresentar essas relações de comunicação como jogo, estamos enfatizando a indeterminação da significação, a impor-tância dos agentes e de suas estratégias no processo de negociação dos sentidos, dos "critérios de ver". Na formulação de Bourdieu diríamos que no jogo os lances se adaptam a uma "infinidade de situações possíveis que nenhuma regra pode prever" (1987: 21). Isso quer dizer que no exercício prático do jogo da comunicação os agen-tes em interação, ao mesmo tempo, seguem as regras e ajustam a regra. Colocado o problema dessa maneira, o foco de nossa análise se desloca da regra para o jogo: interessa-nos compreender os enun-ciados que mobiliza (seus modos de representação), as condições de seu exercício (meios de apresentação-ritos, imagens, construções espaciais etc.), enfim, o processo simbólico e prático de "produção de certezas comuns" (Giannotti, 2004).13

* H- X

Agradecemos o apoio da Fapesp, sem o qual este empreendi-mento não teria sido possível. O suporte institucional do Cebrap, que acolheu generosamente este projeto, também merece um agradecimento especial. A todos aqueles que nos abriram as por-tas de seus arquivos, nos deram seu tempo em entrevistas e se colocaram à disposição para nos ajudar, deixamos aqui o registro de nossa gratidão. As leituras atentas de Manuela Carneiro da Cunha, John Monteiro, Rita Segato, Oscar Calavia e Otávio Velho também foram valiosas. Suas críticas e sugestões nos ajudaram a explicitar melhor nossa abordagem e a prevenir eventuais mal-entendidos.

Page 33: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)
Page 34: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

1

Í N D I O S E M I S S I O N Á R I O S N O B R A S I L : P A R A U M A T E O R I A D A

M E D I A Ç Ã O C U L T U R A L

Paula Montero

O VASTO PROBLEMA DAS RELAÇÕES históricas, culturais e políticas entre índios e missionários cristãos tem a nosso ver, como pano de fundo, uma questão antropológica de fôlego e absolutamente con-temporânea: as redefinições da alteridade cultural que hoje se tra-ves te na linguagem da etnicidade. Se toda e qualquer cultura for-mula um modo de pensar o outro — como inimigo, como selvagem, como igual —, pensar antropologicamente o trabalho missionário nos parece constituir uma porta de entrada privilegiada para com-preender o estatuto simbólico e político da diferença no mundo pós-colonial que, a partir de meados do século passado, pôs em \eque as categorias de definição do Outro e de organização das diversidades culturais herdadas do século XIX europeu.

O outro como problema filosófico e antropológico evidente-mente não é novo. Ele emerge sempre que sociedades diversas passam a estabelecer um conjunto de relações mais ou menos duradouras. Não é preciso retomar aqui as análises de um sem-número de autores que enfatizaram a importância da singularida-de americana para as especulações européias do século XV sobre o

Page 35: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

direito e a universalidade da condição humana. Mas, como se sabe, esse processo de definição do outro se realiza de maneiras muito diferente em função dos momentos históricos e da visão de mundo dos atores e culturas envolvidos nessas relações de alteridade. Não seria possível repertoriar, no escopo deste texto, os diferentes modos culturalmente situados de perceber o outro. No entanto, para as finalidades que interessam ao problema geral trabalhado neste livro — isto é, esboçar os termos de uma abordagem teórica que possa compreender, de maneira minimamente satisfatória, o esta-tuto da alteridade nas relações ideológico-políticas contemporâ-neas —, tomamos como referência, como dissemos na Introdução, um ator privilegiado, já que historicamente formado no trato das diferenças culturais: o missionário cristão. Com efeito, como bem observa Nicola Gasbarro no capítulo 2, a missão "é um trabalho con-tínuo de desconstrução e reconstrução dos códigos comunicativos" que usa como matéria-prima da vida intercultural o conhecimento ^ das culturas locais. Inspiradas pelas características particulares dessa atividade, propomos uma chave de leitura dessa relação — que estamos chamando de uma teoria da mediação cultural — cujos principais fundamentos procuraremos delinear neste capítulo.

A escolha desse personagem para a compreensão do problema político da alteridade no mundo contemporâneo já delineia, em diferentes níveis, a nossa maneira de abordar antropologicamente a questão.

Em primeiro lugar, ao colocar o missionário no foco da obser-vação os estudos contidos neste livro enfatizam a atuação desses agentes de mediação nos processos de produção de significação e o papel essencial que exerceram (e ainda exercem) na "indigeniza-ção da modernidade" (Sahlins, 1997).1 Trata-se de compreender o modo como a ação missionária estimula a ressignificação da "tradi-ção" (indígena e não-indígena) para adaptá-la aos novos contextos de intercomunicação cultural.

Além disso, se consideramos a missão um trabalho contínuo de construção e reconstrução de códigos comunicativos, como propõe

Page 36: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Gasbarro, nossa perspectiva privilegia a análise das práticas simbó-licas — práticas rituais, textuais etc. — ou práticas de representa-ção da alteridade, de modo a compreender como elas selecionam (e operam) os códigos capazes de produzir as "traduções" intelec-tualmente compreensíveis e afetivamente aceitáveis entre os vários níveis de diversidade entre nós e o outro (cosmológica, sociológica, antropológica, material etc.). Tem-se como adquirido pela antropo-logia contemporânea a constatação de que essas práticas simbóli-cas geralmente resultam na produção de configurações culturais à imagem dessas representações, não cabendo, portanto, reter no estudo desse tipo de problema, a oposição clássica entre "realidade e representação".

Finalmente, colocar nosso foco no trabalho de mediação nos obriga a enfrentar teoricamente a questão do poder implícito no trabalho de produção cultural subjacente à ação missionária. Temos como ponto de partida que o processo histórico de produ-ção de alteridades indígenas por parte dos missionários, ainda que se reconheça sua dimensão político-ideológica, não pode ser redu-zido a uma ferramenta pura e simples da dominação colonial. As configurações culturais que dele resultam merecem ser tratadas como um objeto propriamente antropológico, isto é, como "produ-ções culturais" que fazem sentido e dão sentido à experiência e às práticas culturais.

Ainda que as configurações culturais resultantes das relações de mediação entre índios e missionários devam ser consideradas em sua dimensão propriamente antropológica (em suas expressões culturais), faz parte do processo de produção de significações a produção de sua "autenticidade", isto é, das formas de convicção ^fue tornam possível a aceitação dessas configurações como "natu-rais"* e historicamente fundadas. A dimensão política da proble-mática da alteridade ganha, pois, aqui um novo estatuto. A in-corporação de "valores" ou categorias religiosas pelos indígenas, por exemplo, deixa de ser libelada como um processo puro e

Page 37: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

simples de "aculturação" — isto é, perda da cultura original pela imposição de valores ocidentais via evangelização; a "eficácia" da significação deve ser tratada, ao contrário, como o resultado de dis-putas simbólicas, mediadas por agentes índios e não-índios, pela apropriação de elementos disponíveis, considerados chave pelos ato-res envolvidos, nos repertórios culturais em relação. Esse posicio-namento nos leva a incluir em nossa análise uma preocupação com a dimensão política dos processos de significação, entendida aqui como o conjunto de motivações e interesses que orientam as escolhas dos agentes mediadores quando privilegiam certas práti-cas e significações em detrimento de outras. Veremos adiante que esses conceitos são chave para a teoria da mediação que estamos propondo.

Embora todas essas dimensões não possam ser separadas, para a economia deste texto, procuraremos tratar de cada uma delas, com mais detalhes, a seguir. Antes disso, vale a pena nos demorarmos um pouco no debate antropológico contemporâneo sobre o colonialismo de modo a compreender seu impacto sobre uma antropologia da atividade missionária.

A A N T R O P O L O G I A DA M I S S Ã O N O

. D E B A T E DO P Ó S - C O L O N I A L I S M O

O que estamos chamando aqui de problemática da alteridade envolve, a nosso ver, dois planos de investigação: o plano empíri-co, no qual se observam os modos de produção do outro entre ato-res historicamente situados, tal como o fazem os estudos contidos neste livro; e o plano disciplinar, no qual a questão da alteridade emerge como objeto da reflexão antropológica.

E claro que esses dois planos estão inteiramente imbricados, tornando-se difícil compreender um sem esclarecer suas implica-ções para o outro (e vice-versa). No que diz respeito ao plano da teoria antropológica, ainda que esta fosse, certamente, uma tarefa

Page 38: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

necessária, não pretendemos empreender aqui um balanço crítico das teorias do contato, modo como nossa disciplina, desde Malinowski, formulou o problema da interculturalidade.2 Em dife-rentes momentos do desenvolvimento de nossa disciplina a ques-tão do Outro foi posta em termos historicamente específicos. No caso da antropologia brasileira sobre o contato entre índios e bran-cos, essa problemática foi marcada, pelo menos até a década de 1970, pelo conceito de "aculturação".3 No interior desse enqua-dramento, entretanto, a atividade missionária não ganha estatuto de problema antropológico próprio — ela é percebida como peri-férica, como prolongamento do poder do Estado ou simplesmente como ineficaz, ou, dito de outro modo, como simples subproduto do colonialismo interno.

As antropologias do contato foram, pois, marcadas, a partir da década de 1950, pela denúncia do sistema colonial. Embora não seja possível delinear neste texto uas principais transformações dessa problemática, é preciso notar que, ao longo do processo de descolonização que se inicia naquele período, a episteme civilizató-ria — que articulava categorias tais como a idéia de progresso téc-nico e a de individuação para fundar a legitimidade da relação do Ocidente com outros povos — perde seu poder de persuasão. O modo como esse movimento obrigou a disciplina antropológica a rever seus próprios pressupostos já foi analisado por uma vasta literatura.4 Os desdobramentos mais recentes desse processo de reflexibilidade disciplinar levaram, como se sabe, à emergência de correntes de pensamento que passam a substituir a pergunta clássica da antropologia, "como conhecer o outro", por uma refle-xão mais auto-referida, cunhada de maneira bastante imprecisa como "antropologia pós-moderna", que indaga sobre os procedi-mentos metodológicos, analíticos e textuais utilizados pela antro-pologia em seu propósito de conhecer o outro.5

Mas o que nos parece importante ressaltar aqui é que uma antropologia da missão só pode emergir como tal no quadro da crí-tica recente ao sistema colonial. Vale a pena, pois, sumariar o

Page 39: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

modo como esses desdobramentos ideológicos modificaram o en-tendimento da atividade missionária como problema antropológi-co e contribuíram para o empreendimento que aqui nos interessa: o de situar as narrativas missionárias da alteridade em uma teoria da mediação cultural.

Dissemos que o horizonte teórico-ideológico no qual as tenta-tivas de pensar o outro se desenvolveram a partir dos anos 1950 é bastante crítico quanto às relações entre a antropologia e o poder colonial. Nesse panorama político a própria antropologia é pensa-da como instrumento de opressão. Em resposta a esse contexto o colonialismo — ou o encontro colonial — se torna objeto cada vez mais central de uma certa corrente antropológica — voltada para os estudos africanos —, inaugurando uma nova tendência de pen-samento antropológico que alguns autores chamaram, num pri-meiro momento, de antropologia do colonialismo e, mais tarde, de antropologia pós-colonial. Vale a pena detalhar o modo como essas perspectivas colocam o problema das relações entre culturas euro-péias e nativas de modo a recuperar sua contribuição para a com-preensão antropológica da prática missionária.

* X X

Como parte de um empreendimento político maior que marcou os anos 1970, antropólogos (e historiadores), inspirados em autores como Immanuel Wallerstein, passaram a investigar como a política colonial havia afetado a teoria antropológica, seu método e a história dos objetos investigados. A crítica ao colo-nialismo que esses autores empreenderam contribuiu para fragi-lizar, ao mesmo tempo, o modo de fazer antropologia até os anos 1960 e a legitimidade de atores, tais como o Estado e a Igreja, que produziam material e simbolicamente o quadro das articula-ções interculturais.

Page 40: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Nesse ambiente de ruptura ideológica, antropólogos e missio-nários, sobretudo europeus, foram acusados de contribuir para a opressão colonial e a desestruturação das culturas nativas. O pró-prio ato de etnografar foi considerado por muitos intelectuais afri-canos como uma violação intrínseca do outro.6

Em resposta a esse estigma ideológico que contaminava a pes-quisa de campo, floresceu uma nova corrente antropológica, mar-cada pela tradição marxista, que se voltou para a denúncia do colo-nialismo e de seus modos de dominação; a análise produzia-se, pois, privilegiadamente na chave da política onde o par domina-ção/resistência relegava a cultura a um plano subsidiário. Tratava-se, então, primordialmente, de analisar o impacto do colonialismo nos vários domínios da vida indígena africana (estrutura agrária, domesticidade, parentesco etc.). Autores como Eric Wolf (1959) podem ser considerados marco importante na construção dessa perspectiva. Pode-se afirmar que os estudos brasileiros sobre acul-turação desenvolveram-se nessa chave, que não favoreceu, como dissemos, uma leitura mais sofisticada da missão.

Segundo Ann Laura Stoler, os anos 1970 inauguram uma "se-gunda onda" de estudos que procuram distanciar-se do determinis-mo implicado na abordagem anterior, que resultava em uma com-preensão apenas instrumental da cultura e/ou tradições. A ação de "resistência" dos nativos contra as imposições coloniais marcou a lite-ratura dessa década. As práticas culturais nativas tornam-se o centro de uma reflexão que as considera não apenas funcionais ou úteis ao colonialismo, ou um desafio a ele, mas o produto de diferentes tem-poralidades historicamente "depositadas" ao longo do encontro colo-nial (Stoler, 1995: 320). Segundo a autora, essa nova abordagem, atenta às relações entre o processo colonial global e as mudanças das práticas locais, viu-se obrigada a deslocar a unidade de análise do nível da aldeia para as relações regionais, nacionais e até mesmo glo-bais (ver, por exemplo, Comaroff, 1985; Stoler, 1985). Nesse proces-so, categorias de análise tais como tribo, nação e cultura deixaram de ser compreendidas como internamente homogêneas e externamente

Page 41: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

distintivas. Apesar dessas inovações, observa Stoler, essa literatura tendeu a tomar o colonialismo e seus agentes como uma força abs-trata, como uma estrutura que se impunha como tal sobre as práticas locais. Com raras exceções, tais como os trabalhos dos Comaroff (1985, 1986) e de Beildeman (1982), que estudaram os agentes mis-sionários protestantes na África do Sul, as discrepâncias entre os interesses da metrópole e dos diferentes grupos europeus locais não eram levadas em conta e suas práticas e lógicas específicas quase não foram etnografadas. Porque os antropólogos tomaram a dicoto-mia colonizador/colonizado como uma evidência, conclui Stoler, e não como categorias historicamente constituídas a serem explicadas, o idioma cultural das relações de poder não foi examinado.7 Teria, pois, permanecido em aberto na agenda da antropologia o estudo dessas "culturas coloniais", cuja matéria-prima seriam as "configura-ções e criações artesanais" dessas reconstruções imaginárias da "europeidade" na colônia.

Em oposição à "política de resistência" implícita no binarismo colonizador/colonizado subjacente à antropologia do colonialismo, os anos 1990 começam a assistir ao desenho de um novo paradig-ma teórico que, inspirado em um debate que emerge no campo da literatura inglesa pós-Commonwealth, se autodenomina teoria pós-colonial. Embora autores como Arif Dirlick (1997)8 tenham reduzi-do a antropologia pós-colonial à antropologia que os estudiosos pro-venientes dos países periféricos fazem quando se instalam em universidades do centro, seus defensores tomam o conceito como um novo modo de "encenar os encontros" entre sociedades coloni-zadoras e seus "outros" cujo valor teórico está em sua releitura dos binarismos (aqui/lá, antes/depois etc.) em termos de tradução cul-tural, ou transculturação. Segundo Stuart Hall (2003) o paradigma pós-colonial pretende dar conta das novas configurações identitá-rias e culturais que emergem na reorganização das relações entre o local e o global implicada nessa fase do "capitalismo transnacional". Conseqüentemente, o conceito "pós-colonial" não se restringe a descrever uma certa sociedade ou época, mas enfatiza a análise das

Page 42: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

relações transversais, laterais e descentradas no intuito de superar a idéia de um mundo composto de identidades isoladas e captar as interconexões e descontinuidades operantes no jogo dessas rela-ções transculturais. Para o autor, nessa perspectiva o "outro deixou de ser um termo fixo no espaço e no tempo externo ao sistema de identificação" e se tornou um sistema de posições no qual a dife-rença é constantemente reformulada "dentro de uma cadeia discur-siva" (pp.l 16-7). Se há consenso na literatura de que as diferenças entre as culturas colonizadoras e colonizadas permanecem profun-das, a forma como essas diferenças operaram (e operam) nunca foi binária; conseqüentemente, segundo Hall, "é impossível desenre-dar, conceituar ou narrar, enquanto entidades distintas, as trajetó-rias totalmente desiguais que constituíram as bases do antagonismo político e resistência cultural, embora seja isso precisamente o que a tradição historiográfica ocidental dominante tem freqüentemente tentado fazer" (p. 116). Conceitos como "hibridismo", "sincretis-mo", "identidades diaspóricas" procuram descrever, pois, nesse paradigma, as situações transculturais típicas dos contextos colo-niais onde o global e o local se articulam de tal modo que frustram qualquer tentativa de "retorno" a "histórias originais fechadas e centradas' em termos étnicos". Assim, o "pós-colonial" seria um conceito que designa essa "mudança de circunstâncias" na qual a noção de "diferença" que acompanhava a representação binária das lutas anticoloniais dá lugar à noção de différance9 — formas, histo-ricamente situadas, de formular a diferença como posição no inte-rior de um sistema discursivo (p. 117). Arjun Appadurai acrescen-ta ao argumento pós-colonial a dimensão territorial. Segundo ele, a produção de localidade — "mundos da vida constituídos por asso-ciações relativamente estáveis, histórias relativamente conhecidas e compartilhadas e espaços e lugares reconhecíveis e coletivamen-te ocupados" (1997: 34) — não se dá mais inteiramente no quadro dos Estados-nação. Zonas de fronteira, por exemplo, como lugares de complexa circulação de pessoas e coisas, são definidas pelo autor como espaços translocais. Com efeito, apenas os Estados

Page 43: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

necessitam do território como fundamento de sua soberania; insti-tuições religiosas, entre outros tipos de movimentos contemporâ-neos, são intrinsecamente transnacionais. Nessa nova conjuntura pós-colonial o ethnos e o demos não precisam coincidir geografica-mente.10

Embora colocados de maneira bastante sucinta, esses são os principais termos de referência a partir dos quais se pensa hoje a problemática das relações de interculturalidade no contexto das relações globais. Podemos agora nos perguntar de que modo eles são úteis para pensar o tema que aqui nos interessa: as relações simbólicas e políticas entre índios e missionários no Brasil em con-textos históricos específicos.

Os trabalhos de Jean & John Comaroff (1991) são, a nosso ver, seminais para compreender a missão como um projeto de pro-dução simbólica e/ou cultural. Retirando o debate sobre o colonia-lismo do enquadramento da mea culpa européia, abordaram a ati-vidade missionária como uma luta pela posse dos signos e significações envolvidos na situação de transculturalidade. Embora seu trabalho ainda permaneça muito marcado pelo seu diálogo com o marxismo — que os leva a tornar equivalente a luta de classes e a luta sobre os meios de significação e a reduzir o pro-blema antropológico da significação à formulação marxista de "pro-dução da consciência" —, ele propõe uma reflexão sobre o poder mais qualitativa e etnográfica, que se situa no plano da percepção e das experiências. Seu trabalho sobre os tswanas busca examinar as "bases simbólicas e materiais do encontro colonial [...] e os modos de transformação e argumentação que faz emergir" (p. 6).

Ao colocar no foco de sua análise os missionários protestan-tes, seus motivos, intenções e formas de imaginação, os autores propõem uma análise do "encontro" que tem como eixo central a agência cuja prática não é concebida como reflexo monolítico das estruturas coloniais. Além disso, sua abordagem enfatiza a análise da atividade missionária como um observatório privilegiado para a compreensão de certas mudanças históricas no modo de enten-

Page 44: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

der a alteridade na perspectiva do Ocidente, bem como as estraté-gias e articulações simbólicas que delas derivaram. Com efeito, do século XVI ao século XX o missionário foi um ator histórico impor-tante na elaboração do que se poderia chamar de uma linguagem colonial: de um modo geral, aplicou-se na codificação de uma grade de leitura que incorporasse a alteridade cultural, fundamen-to de toda relação colonial (e, já nos anos 1980, da pós-colonial). Além disso, a partir de uma concepção teológica da salvação, ins-trumentou-se para localizar esse Outro na história universal e dire-cionar as estratégias de transformação cultural que a ação colonial te, por via de conseqüência, missionária) inaugura. Assim, o que parece extremamente interessante na análise das práticas missio-nárias é perceber o modo como elas (muitas vezes apesar delas) desenvolvem os meios materiais e simbólicos para que os nativos se incorporem às relações coloniais "em seus próprios termos", como diria Sahlins (1997).

Ao enfatizar o plano da "imaginação" — isto é, o ponto de vista dos missionários não-conformistas e de seus confrontos com a sociedade burguesa de sua época — o trabalho dos Comaroff pro-cura desenvolver uma antropologia histórica que visa compreender como o espírito de uma época formula o quadro categorial dentro do qual se desenvolvem as relações do "encontro". Embora os europeus estivessem mais bem posicionados para impor sua pró-pria construção da realidade a ser compartilhada, "cada um acha o outro indispensável para tornar real sua fantasia", uma vez que os cristãos trouxeram bens e conhecimento de que os chefes tswana precisavam desesperadamente para manter sua autonomia frente àos zulus e aos colonos. Assim, somente uma análise histórica da consciência (formas de imaginar o mundo) em formação permiti-ria. segundo os autores, explorar as relações entre as intenções e o que realmente acontece (outcome)u (1992: 237).

O tipo de antropologia histórica que os autores propõem colo-ca. pois, no centro de sua atenção o problema da agência. Sua aná-lise se inspira na historiografia que se inaugura com E. R Thompson

Page 45: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

e estimula o interesse pela compreensão da agência humana entendida como o esforço dos "oprimidos" em mudar sua expe-riência comum. No entanto, segundo Comaroff, "o esforço para a compreensão das motivações dos governantes é tão importante quanto compreender as motivações dos governados" (1991: 9). Ainda assim, estas não teriam recebido a mesma atenção da his-toriografia e da antropologia social, tendendo, ao contrário, a ser largamente reduzidas a um reflexo das estruturas econômicas e políticas.

A antropologia histórica sugerida por esses autores enfatiza, pois, a análise da agência e das significações. Se cultura é "o espa-ço da significação da prática", a antropologia histórica deve voltar-se para a análise desse campo semântico onde os agentes lutam pelo poder das representações. Essa abordagem é especialmente útil para a análise do conjunto de textualidades12 que a atividade missionária produz em suas relações com a vida indígena. Os dife-rentes modos de inscrever o outro a partir dos espaços de intercul-turalidade são instrumentos importantes, no processo de constru-ção dos quadros categoriais objetivamente aceitáveis e subjetivamente convincentes, que dão suporte e continuidade no tempo às relações do "encontro".

Mas, ao privilegiar em sua análise os momentos iniciais da relação entre europeus e nativos, os trabalhos dos Commaroff, de um modo ou de outro, ainda pensam o moãus operanái do "encon-tro" como a articulação política e simbólicade duas entidades cul-turais separadas (e separáveis). A abordagem pós-colonial, ao con-trário, ao posicionar-se no ponto de vista das relações globais, pensa as formações culturais como "diaspóricas", isto é, relações em que o "local" não possui um caráter estável, a tradição é mais um reper-tório de significados do que uma doutrina, e a produção das dife-renças se realiza através de uma lógica contínua de tradução cultu-ral que produz configurações híbridas13 (Hall, 2003: 74-5). Desse ponto de vista, a transculturalidade que caracterizou a experiência colonizadora é irreversível; tendo em vista que o "hibridismo" inter-

Page 46: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

rompe o "retorno" a histórias originais e centradas em termos étni-cos, a análise da cultura obriga, pois, a enfatizar a "multiplicidade de conexões culturais laterais e descentradas" (idem: 111-14).

Esse modo de pensar o problema da transculturalidade nos propõe, portanto, o estudo das relações entre índios e missionários como processos contextuais de traduções múltiplas cuja resultan-te poderia ser descrita em termos de uma "configuração" cultural específica. Tendo em vista que não há uma passagem temporal, analiticamente recuperável, entre uma configuração cultural e outra, a ênfase analítica deve voltar-se para a lógica das relações (políticas e simbólicas) de significação e o modo como produzem e reformulam a alteridade. Se é verdade,, como sugere Sahlins, que o "culturalismo é a formação discursiva moderna das identidades indígenas em sua relação com as alteridades globais-imperiais" (1997: 133), seu conteúdo ou orientação política não pode ser fixado de antemão. Eles podem expressar-se na linguagem da resistência, da abertura para o outro, da tradição, da modernidade etc. Assim, mais do que compreender como as culturas se transformam (ou não) sob o impacto do contato, caberia à análise antropológica compreender como as relações transculturais produzem configurações culturais específicas cujo arranjo, que combina temporalidades distintas, depende do modo como se dão as conexões transversais que autori-zam e dão sentido às traduções bem-sucedidas.

Colocarmos o problema das relações entre índios e missioná-rios no plano da análise das "configurações culturais" delas resul-tantes nos permite superar as dificuldades, ainda implícitas na abordagem dos Comaroff, inerentes a uma perspectiva que busca comparar o antes ao depois (do contato) e separar o que "é deles" do que "é nosso". Nesse plano a episteme da mudança cultural, constitutiva das análises críticas da agência missionária, se deslo-ca para o paradigma da mediação cultural, que se ocupa dos nexos (materiais e simbólicos) entre o local e o global. Consideramos, pois, que a atividade missionária, por propor ativa e continuamen-

Page 47: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

te conexões de sentido, constitui um laboratório privilegiado para a análise desse tipo de relações transversais e descentradas que caracteriza o trabalho de mediação. Enquadrando nossa reflexão a partir desse foco é possível superar muitas das generalidades implícitas na teoria do pós-colonialismo, cuja "invocação litúrgica das posições múltiplas de sujeito" tanto incomodam, e com razão, Marshall Sahlins (2004: 89). Enfatizar a análise das relações des-centradas através de uma idéia de mediação que supere o dualis-mo não significa simplesmente postular a existência de "sujeitos híbridos", mas sim analisar histórica e simbolicamente as condi-ções e os modos de sua produção. Vejamos se é possível avançar-mos um pouco mais nessa direção caracterizando melhor o dese-nho de uma abordagem teórica que privilegia a lógica das relações laterais implícitas no esforço da mediação simbólica.

A M I S S Ã O C O M O M E D I A Ç Ã O :

A S U P E R A Ç Ã O D O B I N A R I S M O

Dissemos que a atividade missionária se constrói no campo das relações interculturais. Analisá-la nessa chave — a das configura-ções culturais específicas — nos coloca, de entrada, o problema da definição do universo dç pertencimento das práticas culturais que o missionário põe em circulação, ou, dito de outro modo, uma vez que a construção simbólica do outro não é prerrogativa da cultura ocidental, será preciso construir uma abordagem que de algum modo incorpore à análise o ponto de vista nativo.

Alguns trabalhos já procuraram avançar nessa direção tentando compreender como o outro é pensado pelos nativos. Em sua com-paração global dos modos de pensar das culturas indígenas e do Ocidente, Gilberto Mazzoleni retoma uma anedota, também men-cionada por Lévi-Strauss, que ilustra a radical oposição entre duas maneiras de conceber a alteridade: nas Antilhas, enquanto os espa-

Page 48: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

nhóis criavam comissões para estabelecer se os índios tinham alma, os índios imergiam os cadáveres dos espanhóis para ver se apodre-ciam. Segundo Mazzoleni, os espanhóis partiam do pressuposto de que o índio pertencia à natureza e debatiam sua humanidade atra-vés de uma disputa teológica, enquanto os índios duvidavam que o europeu pertencesse ao mundo da natureza e procuravam identifi-car a esfera do cosmos da qual faziam parte (1992: 8).

O trabalho de Mazzoleni enfatiza, pois, brilhantemente as diferenças "epistêmicas" que separam o pensamento europeu do indígena: enquanto este supõe uma descontinuidade radical entre o humano e o não-humano, o pensamento indígena (se é possível generalizá-lo deste modo), ao contrário, procura um contato perió-dico com a alteridade, e tende a cosmologizar o humano. Alguns trabalhos mais recentes, como o de Viveiros de Castro, que propõe o "perspectivismo" como quadro de referência característico do pensamento ameríndio, também nos fazem avançar nessa direção ao caracterizar etnograficamente a originalidade do pensamento indígena. Segundo Viveiros, em sua análise das cosmologias ama-zônicas, é possível perceber que, enquanto os paradigmas ociden-tais se apoiam na idéia da unicidade da natureza em contraposição à multiplicidade das culturas, a concepção ameríndia suporia, ao contrário, uma unidade no plano da cultura e variedade no plano da natureza. Diferentemente de Mazzoleni que tinha a sua dispo-sição apenas material documental para compreender a especifici-dade do modo de pensar indígena, Viveiros pôde fazer um belíssi-mo esforço de reconstituição dos contextos nos quais as categorias natureza e cultura fazem sentido para os índios. Segundo ele, mui-tos povos do continente americano compartilham do pressuposto de que a humanidade é a "matéria primordial, ou a forma originá-ria de virtualmente todo ser" (Viveiros de Castro, 2002: 14): do mesmo modo como concebemos o substrato animal de nossa humanidade, o pensamento indígena concebe o substrato humano dos seres do cosmos, como condição universal, ainda que esta não possa ser percebida de maneira imediata. Assim, o modo como os

Page 49: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

seres aparecem depende do ponto de vista de quem observa: ao contrário dos homens, que se percebem como humanos e vêem os animais como presas, os animais se vêem como humanos e perce-bem os humanos como presas. Assim, para descrever essas cosmo-logias não se pode, segundo Viveiros, partir da distinção clássica entre Natureza e Cultura que pressupõe duas "séries paradigmáti-cas que tradicionalmente se opõem: universal e particular, objeti-vo e subjetivo, físico e moral, fato e valor, dado e construído, necessidade e espontaneidade, imanência e transcendência, corpo e espírito, animalidade e humanidade, e outros tantos" (idem: 348); isso porque um dos traços particularmente contrastivos do pensamento ameríndio com relação ao nosso diz respeito a sua concepção de natureza como uma forma do particular, e de espíri-to (ou cultura) como uma forma do universal.

Essas análises nos mostram que o problema filosófico (ou cog-nitivo) do reconhecimento e definição da alteridade parece ser uma dimensão sempre presente em todas as culturas quando são obriga-das a pensar suas relações com outros grupos sociais. Os estudos que procuram compreender as categorias nativas em seus próprios termos representam, pois, uma contribuição inestimável para o entendimento das diferenças fundamentais existentes nas diversas cosmovisões. No entanto, quando nos colocamos o problema das relações interculturais em termos de mediações o plano da análise se desloca para o espaço das conexões de sentido entre o pensamen-to indígena e o não-indígena. Ora, essas passagens não se produzem no abstrato, pela convergência "natural" entre categorias e repertó-rios percebidos como equivalentes ou apropriáveis. Para serem intei-ramente compreendidas é preciso descrever, ao mesmo tempo, os sentidos nativos e missionários em confronto e as práticas significa-tivas promovidas pelos agentes mediadores que procuram adequar conceitos às experiências e percepções. Isso porque, como sugere Barth (2000: 13), os processos de articulação de sentidos são etno-graficamente situados e dependem, pois, da força heurística que os atores envolvidos dão à suas interações particulares.

Page 50: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Vale a pena nos determos um pouco mais demoradamente neste ponto.

As abordagens que buscam compreender a relação entre índios e missionários a partir da ótica das diferenças cosmológicas inspiram-se freqüentemente, no meu entender, na crítica sahlin-siana aos teóricos do sistema mundial. Para Sahlins (1988), as aná-lises de historiadores como E. Wallerstein fazem das sociedades tradicionalmente estudadas pelos antropólogos meros satélites da reprodução do capitalismo. Segundo o autor, essas sociedades teriam um sistema cultural aberto, isto é, capaz de ressignificar localmente as mudanças introduzidas pelas relações coloniais. Cunhando o conceito de "estrutura da conjuntura" Sahlins (1998) se distancia da noção saussuriana de estrutura (como conjunto de relações mutuamente contrastantes) que inspirou Levi-Strauss, e se coloca o problema da mudança das significações categoriais nativas no momento em que são atualizadas na prática. Nesse sen-tido, Sahlins atualiza o modelo de etnicidade de Barth — que pen-sava o grupo étnico como um grupo social em relação sem se ater a sua dimensão cultural — colocando a cosmologia nativa no cen-tro dos processos de simbolização mobilizados pelo contato. As tra-dições cosmológicas seriam, segundo Sahlins, a bagagem de onde os povos retirariam os traços operacionais para pensar sua relação com os outros através da construção simbólica de sinais constras-tivos. Através dessas operações do pensamento cosmológico, os nativos seriam capazes de incorporar os eventos impostos pelo contato em seus próprios termos.

Em artigo recente (1997) Sahlins explicita mais claramente suas discordâncias com as antropologias do sistema mundial: elas negariam qualquer autonomia ou intencionalidade histórica à alte-ridade indígena e reduziriam as formas culturais das sociedades indígenas modernas à ação (ou reação) ao imperialismo. A crítica sahlinsiana procura restaurar a confiança na capacidade dos nati-vos em "elaborar culturalmente tudo o que lhes foi inflingido". Desse modo procura desenvolver uma reflexão que ilumine o modo

Page 51: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

como eles se incorporam ao sistema mundial a partir de seu próprio sistema de mundo (1997: 52-62). Duas teses fundamentais articu-lam esse debate: a "cultura" resultante dessa incorporação não é um pastiche (reprodução estereotipada dos costumes tradicionais), mas um padrão inédito de cultura humana desconhecido pela antropologia demasiadamente tradicional; as formas de incorpora-ção nas relações globais são orquestradas pelos meios significativos (estrutura ou lógica cultural) pertencentes aos nativos.

A partir de meados dos anos 1980, a etnologia amazônica começa a dar atenção, sob a inspiração dos trabalhos de Sahlins, às teorias nativas da alteridade e do contato. O programa de traba-lho coordenado por Bruce Albert e Alcida Ramos a partir de 1987 é uma tentativa importante de produzir uma síntese entre as deter-minações históricas do processo colonial, as estratégias indígenas de resistência ao processo e os dispositivos simbólicos de neutra-lização da alteridade dos brancos (2002: 10). Os autores delimitam quatro grandes temas no modo como as sociedades indígenas ama-zônicas constroem social e simbolicamente o contato: o tema das trocas (de coisas, palavras e doenças), no qual os nativos procuram enfrentar o dilema de garantir as relações de intercâmbio e ao mesmo tempo neutralizar, simbolicamente, os perigos que a socie-dade branca oferece; o do dualismo, no qual procuram enfrentar os dilemas postos pelo surgimento de uma diferença superlativa que se acomoda mal às polaridades de inimigos e afins; o da "resis-tência", no qual as sociedades indígenas transfiguram em seus pró-prios termos aquilo que lhes é proposto/imposto pelo confronto; e, finalmente, o tema da memória do contato, no qual as sociedades indígenas construiriam, a seu modo, seu saber sobre o passado.

Uma das grandes contribuições desse esforço abrangente de pensar as relações interétnicas do ponto de vista das sociedades indígenas é a de ter deslocado o problema da mudança do plano dos comportamentos e valores para o plano cognitivo. Nesse mesmo movimento parece ter sido possível localizar na troca e no

Page 52: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

dualismo indígenas alguns dos grandes dilemas constitutivos dessa relação: a troca como necessidade e ameaça; a reprodução da alte-ridade como forma de adquirir poder, mas também de produzir submissão.

E interessante notar o modo como esses trabalhos se posicio-nam diante do problema do pós-colonialismo. Nos ensaios anterior-mente citados, vimos que Sahlins, ao pensar o processo colonial, tem como interlocutores os teóricos do sistema mundial (Wallerstein em particular) e os teóricos da antropologia pós-colo-nial. Seu problema é o da irremediável incorporação do nativo a uma lógica global — sua argumentação procura demonstrar a (também irremediável) reposição (real e não mimética) da diferença e, conse-qüentemente, a manutenção da função analítica da antropologia. No caso brasileiro, sabe-se que grande parte dos trabalhos que se ocuparam dessas temáticas tinha de se haver com as teorias do con-tato que, como já observamos, enfatizavam o processo de assimila-ção, e suas resultantes desagregadoras para as culturas nativas. Sob a influência de Lévi-Strauss e sua releitura via Sahlins, a etnologia brasileira pode recolocar o problema do contato em novos termos: a cultura deixa de ser uma variável secundária, subsidiária das rela-ções econômicas e políticas inerentes aos processos de assimilação, e ganha um estatuto próprio para conduzir os processos interétnicos. Embora não se possa repertoriar aqui todas as implicações subjacen-tes a esse novo ponto de partida, é possível perceber que ele dese-nha o debate em novos termos, deslocando a análise dos modos de inclusão do nativo na lógica global para a compreensão dos modos como eles pensam, incorporam e neutralizam essa relação. Desse modo, o tema das transformações da cultura nativa, questão chave, mas mal resolvida, nas antropologias do colonialismo, dá lugar a uma reflexão sobre as interpretações nativas das relações interculturais, ou, nas palavras de Bruce Albert sobre "como as sociedades indíge-nas constroem o contato".

Mas como incorporar as virtudes inerentes desses dois pontos de vista contornando suas dificuldades específicas? Com efeito, a

Page 53: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

teoria pós-colonial pensa as relações interculturais em abstrato, sem detalhar os processos particulares através dos quais o global é pensa-do em termos locais. Mas, por outro lado, se as abordagens cosmoló-gicas nos esclarecem sobre o modo como o nativo pensa o contato, elas pouco nos dizem sobre os processos concretos de produção des-sas formas de significação. Seria reincidir no mesmo pecado da gene-ralidade simplesmente afirmar que a cultura nativa pensa o contato em seus próprios termos sem analisar as dinâmicas e os agentes que produzem essas novas formas de significação. O erro do "etnologis-mo", segundo Bourdieu, é tratar as cosmologias como totalidades auto-suficientes e auto-engendradas, "produtos indiferenciados de um trabalho coletivo, passando assim em silêncio tudo o que elas devem às características do campo de produção" (1989: 13).

Mas se nos colocarmos o problema do contato do ponto de vista da mediação a problemática pós-colonial pode ser recolocada de maneira menos determinista, evitando-se, por um lado, os pro-blemas teóricos apontados por Sahlins nas abordagens da assimi-lação e da perda cultural e, por outro, os riscos do dualismo e do etnologismo presentes em uma abordagem puramente cosmológi-ca. Se a mediação é um processo (material e simbólico) de incor-poração de relações mais ou menos locais a relações globais, é pre-ciso pensar como ela realiza essas passagens naqueles mesmos planos tão bem descritos por Bruce Albert: no plano das trocas, no das definições de alteridade, no dos meios de resistência, no das reconstruções da memória e do saber.

O foco da reflexão se desloca, pois, do ponto de vista das socie-dades indígenas para situar-se nos espaços de produção das rela-ções de interação. Trata-se de compreender como dois (ou mais) pontos de vista interagem para produzir significações compartilha-das em níveis cada vez mais generalizantes. Para fazê-lo é preciso colocar em cena os agentes de mediação e suas práticas, pois são eles que, através de suas competências específicas no domínio dos códigos, propõem conexões de sentido plausíveis e/ou verossímeis para a situação.

Page 54: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

O fato de construirmos essa problemática a partir da escolha de um agente mediador particular — o missionário — certamente determina de maneira bastante particular o modo como esse pro-cesso se dá. Tivéssemos escolhido outros personagens mediadores — funcionários da Funai, catequistas indígenas, antropólogos, xamãs etc. —, as resultantes quanto ao processo de produção de significações culturais seriam outras.

De qualquer modo, parece-nos que quando nos situamos desse ponto de vista a problemática do contato pode ser recons-truída em novos termos, a saber: o ponto de vista da mediação nos permite pensar as relações entre o particular e o geral sem que o conceito de cultura perca sua potência analítica. Nem perda, nem pastiche, nem totalidade ontológica, as configurações resultantes dos processos de mediação são modos de realocar as diferenças nos sistemas de relações generalizantes. Trata-se, pois, não tanto de observar o encontro de duas sociedades e/ou culturas distintas te desiguais) e os efeitos de uma sobre a outra, mas de compreen-der como agentes em interação acessam alguns de seus códigos próprios ou se apropriam de alguns dos códigos alheios para signi-ficar. A questão de saber por que certos códigos são privilegiados em detrimento de outros se torna uma das questões-chave desse tipo de abordagem.

A compreensão do problema do contato desse ponto de vista exige, pois, uma certa erudição no que diz respeito ao entendimen-to tanto das categorias nativas quanto das categorias missionárias. Isso porque, colocando a questão em termos barthianos, se não são as culturas ou as cosmologias (estruturas) que entram em interação como tais, trata-se de "explorar os graus e tipos de conexão entre certos domínios da cultura em várias condições de sociedade" 2000: 108). Voltar o foco da observação antropológica para os

nexos e conexões interculturais e para as configurações delas resultantes nos obriga a repensar a funcionalidade do conceito de estrutura para dar conta desse tipo de transformações (reinven-ções) culturais.

Page 55: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Ao se colocar o problema da mudança das significações cultu-rais em situações de contato Sahlins pretende superar os embara-ços lógicos que a noção saussuriana de estrutura — como sistema puramente sincrônico de relações mutuamente contrastantes entre signos — supõe, ao não incorporar a instabilidade das rela-ções de oposição em seu sistema. Para Sahlins, as contradições de significação devem ser compreendidas como visões parciais ou situacionais da ordem global, e nesse caso a estrutura poderia ser considerada como "um conjunto indefinido de permutações contex-tuais" (171). No entanto, essa formulação não satisfaz inteiramente o autor, já que para ele a noção de estrutura como um conjunto de proposições contextualizadas não esgota a lógica da estrutura, dado que estas são apenas representações contingentes e provisó-rias do esquema cultural. Assim, o autor prefere pensar a estrutu-ra no modo como ela se apresenta nos esquemas cosmológicos e, situado nesse ponto de vista, perceber a mudança através da sele-ção motivada entre as inúmeras possibilidades lógicas, inclusive contraditórias, na ordem cultural.

O plano sahlinsiano das estruturas cosmológicas permite entender a incorporação por parte do pensamento indígena de algu-mas categorias do mundo branco, sem perda de coerência do siste-ma. No entanto, quando se coloca em cena este agente mediador que é o missionário, cuja principal particularidade é sua habilidade em indexar códigos nativos a outras ordens cosmológicas, essa noção de estrutura como totalidade auto-referente não parece mais suficiente para compreendermos os mecanismos de produção de significações postos nessa relação. Isso porque não se trata mais aqui de rearranjar as relações entre categorias para expressar uma relação conjuntural com a totalidade cultural, mas de retirar códi-gos de sua relação com a totalidade e indexá-los a outras totalidades. Desse ponto de vista o problema não se põe apenas no plano das relações entre evento e estrutura para dar conta do modo como a significação é afetada pelo contexto e pela experiência locais; é pre-ciso introduzir na análise o problema da conexão de códigos nativos

Page 56: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

com códigos de ordens de generalidade muito diferenciada, cujo sentido a noção sahlinsiana de totalidade estrutural que se expres-sa no plano cosmológico não permite decifrar.

Colocar a questão em termos de encontro de cosmologias supõe a dificuldade adicional de considerar como equivalentes (e opostas) a cosmologia ocidental e a indígena. Ora, podemos concordar que seja possível mapear alguns elementos-chave de algo ao qual se poderia dar o nome de "cosmologia ocidental": a idéia de indivíduo, de capital, de propriedade, de razão etc., mas seria difícil elaborar a partir daí um só sistema que como tal entra-ria em articulação com a cosmologia indígena. Na verdade, existe certamente uma multiplicidade de articulações possíveis (de his-toricidades possíveis) entre códigos distintos; além disso, a ênfase na antinomia dos códigos, invocada muitas vezes para explicar a distancia entre o "nós" e o "eles", ao silenciar sobre o suposto implícito da incomensurabilidade das culturas, impede uma análi-se voltada para a convergência de horizontes simbólicos. A propo-sição barthiana sugere, como dissemos, que as conexões de senti-do se produzem em diferentes níveis e ordens das relações culturais. O desafio desse tipo de abordagem é descobrir os prin-cípios que articulam em uma base única a diversidade de códigos em interação. Se, em muitas situações, o "outro deixou de ser um termo fixo no espaço e no tempo externo ao sistema de identifica-ção" e se tornou um sistema de posições no qual a diferença é constantemente reformulada "dentro de uma cadeia discursiva", a resultante desse processo não pode, certamente, ser tratada em termos da estrutura no sentido sahlinsiano. Para identificá-la, seria preciso nos voltarmos para a compreensão dos modos de produção e reprodução do conhecimento estabelecido pelos agentes de mediação, para o elenco de códigos prioritários que elegem para agir e para sua competência no uso e na interpretação dos códigos em situação. Voltemos, pois, agora nossa atenção para esse tema.

Page 57: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

A M E D I A Ç Ã O C O M O P R O D U Ç Ã O DE

C Ó D I G O S C O M P A R T I L H A D O S

Vimos que o contexto ideológico da dominação colonial inibiu a elaboração de abordagens das relações interculturais desprovidas dos esquematismos implícitos nos grandes modelos — colonialis-mo ou imperalismo —, que subsumem as práticas culturais à lógi-ca da dominação política e econômica. Segundo J. & J. Comma-roff, até muito recentemente, as narrativas sobre o colonialismo eram escritas como "épicas econômicas, sagas políticas em expan-são, dramas de conflito internacional e relações entre centro e periferia" (1992: 265), reduzindo a agência colonial a um processo de mão única. Assim, a compreensão antropológica da atividade missionária sofreu, por muitas décadas, o peso de sua redução à história dos Estados coloniais. Neste sentido podemos concordar com esses autores quando afirmam que a antropologia das missões está ainda na infância, apesar de alguns esforços notáveis (1991: 7).

A medida que as teorias antropológicas do contato e do colo-nialismo vão incorporando à análise o modo como as socieda-des indígenas interpretam e reorientam os rumos do encontro (Howard, 2002: 27) torna-se possível analisar a ação missionária como parte — ao mesmo tempo limitadora e propositiva — das es-tratégias de negociação dos termos e do sentido da anexação das sociedades indígenas à ordem das relações globais. Incorporar à reflexão os modos nativos de ressignificação enriquece uma antro-pologia das missões que se proponha a compreender, como suge-rem J. & J. Comaroff, as bases simbólicas e materiais do encontro colonial e os modos de transformação e argumentação que ele faz emergir (1991: 6).

Mas colocar os missionários no foco de nossa análise da media-ção cultural suscita, como afirmamos acima, questões específicas quanto ao problema da significação que não se esgotam na relação "estrutura/evento". Se uma das características que os distinguem de outros agentes do mundo branco é o fato de que "eles vêm para ficar"

Page 58: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

(ou em muitas situações já estão lá há muito tempo), sua atuação consolida relações e significações ao mesmo tempo menos pontuais e mais estáveis que vão se depositando e decantando ao longo do pro-cesso de interação. Se isso é verdade, temos que, em muitas si-tuações, abordar o encontro apenas a partir da perspectiva dos qua-dros cognitivos indígenas não permite compreender a particularidade das categorias missionárias e o modo como elas operam consistente-mente para a produção de novas significações a partir da ressignifica-ção das categorias nativas através de sua indexação a códigos univer-salizantes que muitas vezes se naturalizam como tradição.

Como bem observa Nicola Gasbarro no capítulo 2, a atividade missionária se caracteriza pelo fato de colocar em prática, histori-camente, processos de universalização do pensamento presentes no cristianismo. Como religião potencialmente universal, o cristia-nismo está imbuído de um horizonte simbólico que supõe uma igualdade estrutural entre sujeitos sociais diversos por natureza e a capacidade de garantir a inclusão social e a inteligibilidade simbó-lica de todo tipo de diversidade. Conceitos como "direito natural" e 'livre arbítrio", pressupostos fundantes da atividade missionária, movem processos simbólicos antropologicamente compreensivos e inclusivos. Não resta dúvida de que é preciso investigar contextual-mente os modos, as hierarquias e as incompreensões que acompa-nham esse "exercício da compatibilização das diferenças", em fun-ção das diferenças específicas com as quais a missão se defronta. No entanto, não se pode compreender a atividade missionária sem supor que ela realiza um contínuo esforço de agenciamento das diferenças que redunda na ampliação da capacidade de generaliza-ção simbólica e institucional das culturas implicadas nessa relação. As missões, observa Gasbarro, ao "incluírem socialmente e com-preenderem simbolicamente novas e imprevistas diversidades", protagonizam "a primeira globalização"; e ao estabelecer os termos de possibilidade dessa generalização das relações em termos de civilização, isto, é de relações entre homens, transformam ao mesmo tempo os nativos e o cristianismo.14

Page 59: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Ora, é consenso entre os pesquisadores que, embora as cosmo-logias ameríndias freqüentemente incorporem, segundo seu código cosmológico próprio, as diferenças, suas categorias em muitas situa-ções têm menor alcance de generalização, já que trabalham segun-do a lógica da produção de diferenciações e oposições. O interessan-te trabalho de Pierre e Françoise Grenand, por exemplo, sobre os conceitos de alteridade waiãipi, mostram que a oposição amigo/ini-migo, baliza fundamental do universo tupi-guarani para pensar os diferentes graus de alteridade, "não consegue dar conta de tudo o que tal categoria recobre" (2000: 147). Embora procurem através de categorias mais periféricas pensar relações que incluam o branco, os autores concluem que os waiãpi não conseguem "circunscrever uma forma de alteridade que se esquiva de qualquer tentativa de absor-ção em seu sistema social e simbólico", e, portanto, traduzir em seus próprios termos a "arrasadora incompatibilidade entre esses univer-sos" (2000: 169, 159).

Ora, agentes como os missionários são especialistas voltados para a produção desse tipo de compatibilização. Assim, se quisermos compreender a atividade missionária no plano dos "corações e men-tes", segundo a imagem formulada pelos Commaroff (1991: Xl), é preciso enfocar ó problema do contato em termos dos processos de articulações simbólicas (e sociais) das diferenças que este ator par-ticular, o missionário, produz. Isso porque a ação missionária nada mais é do que um "trabalho contínuo de recodificação cultural, a partir de sofisticadas técnicas antropológicas e do conhecimento das culturas locais em um contexto prático de vida intercultural" (Gasbarro). Nesse sentido, parece-nos interessante tratar o encon-tro intercultural não tanto em termos de "culturas" e/ou "cosmolo-gias" "em contato", mas mais como processo de produção de códi-gos de comunicação cujas articulação interna e ordem hierárquica dependerão das exigências de complexidade de cada momento his-tórico e das prioridades simbólicas dos sistemas. As resultantes contextuais desses processos serão ordens culturais de maior ou menor complexidade em função do tipo de compatibilização de

Page 60: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

diferenças e conseqüentes graus de generalização que a negociação de significações entre os agentes pôde constituir. A generalização do conceito de igualdade cristã entre os homens, por exemplo, permi-tiu pensar "as religiões dos povos primitivos", que foram etnografi-camente construídas pelos missionários e, no processo, assumidas pelos povos indígenas. Outro exemplo interessante, que infeliz-mente não permite aferir o papel específico do missionário no pro-cesso, é relatado por Dominique Gallois (2000: 211, 217): em seu artigo sobre as representações waiãpi acerca do contato, a autora chama a atenção para a intensificação recente das relações entre grupos territoriais que outrora se consideravam inimigos devido, em parte, ao contexto político de reivindicações territoriais e da parti-cipação coletiva em reuniões e ações em defesa da área indígena. Trata-se aqui novamente de um processo de generalização das rela-ções sociais que só podem ser concebidas e pensadas a partir de processo de anexação de códigos gerais, tais como a retórica da igual-dade e da territorialidade jurídica, aos códigos locais, tais como reversibilidade entre natureza e cultura (não somos bichos") e aliança ("não somos parentes"), para definir os termos da convivên-cia interétnica.

Parece-nos que essa abordagem é capaz de enfrentar o proble-ma dos avatares da alteridade em um contexto globalizado em que as relações interculturais se sedimentam historicamente no inte-rior de um horizonte epistemológico que postula a igualdade estru-tural da humanidade. Tomando-se como suposto que as distâncias culturais se encurtaram aceleradamente no espaço e no tempo, desde os primeiros avanços tecnológicos do século XIX, colocando em contato permanente modos de pensar e de agir diversos, trata-se de saber em que medida os termos e categorias que definem o modo de equacionar a alteridade neste período mais recente se transformaram quando comparados aos processos de compatibili-zação simbólica propostos pela atividade missionária de então. Nesse contexto em que as relações de interculturalidade consti-tuem um ponto de partida do empírico, é preciso constituir uma

Page 61: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

abordagem que coloque como objeto da antropologia não apenas a reconstituição do modo de vida indígena, mas, sobretudo, as "matrizes de interculturalidade": Os missionários são agentes que criam sistemas práticos de comunicação simbólica entre sistemas governados por diversas hierarquias de sentido. Mas, como disse-mos na Introdução, eles não fazem isso sozinhos. Produzem desse modo um conjunto de sentidos compartilhados que permitem pen-sar (e agir) processos de generalização que, por não terem sido obje-to de investigação sistemática, foram relegados pela literatura ao "não-lugar imaginário do sincretismo" (Gasbarro).

As práticas missionárias nos interessam, pois, na medida em que nos apresentam o desafio de elaborar um lugar teórico novo para uma antropologia das mediações culturais. Estamos procuran-do construir uma abordagem que nos permita superar, por um lado, as conhecidas dificuldades que a literatura que reduz a relação entre índios e brancos ao desenraizamento cultural nos colocam: estamos todos de acordo que esses "encontros" são fei-tos de violência e desigualdade de forças. Ainda assim, as rela-ções que se estabelecem e reproduzem criam uma realidade cul-tural particular cujos termos é preciso compreender; por outro lado, consideramos oportuno, como observamos acima, superar o pensamento dual que opõe cultura nativa e cultura ocidental, e procurar a partir dessas oposições equivalência e traduções, uma vez que já está amplamente estabelecido o fato de que muitas vezes o considerado e reconhecido como nativo foi tomado emprestado do mundo branco ao longo do processo histórico de suas relações, ou fixado como nativo pela perspectiva classifica-dora do próprio branco. Assim, inspirada na perspectiva crítica de Peter Gow (Gow, 1991: 18) com relação às premissas dos estudos clássicos da aculturação que opõe comparativamente segmentos "tradicionais" aos "aculturados", mais do que procurar reconhecer o que é nativo e analisar o que se modifica sob o impacto da ação missionária, preferimos ^observar diretamente (ou textualmente) os atores específicos em relação para com-

Page 62: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

preender como constroem o que Geertz chama de "códigos com-partilhados" de significado. Não está implicado nessa noção nenhum valor religioso (comunidade, ecumenicidade) ou huma-nista (igualdade, universalidade).

Trata-se de descrever, o mais minuciosamente possível, os jogos de comunicação que se estabelecem entre missionários e nativos, isto é, o modo como eles se situam mutuamente — como imaginam que o outro é (ou pensa) — e o modo como se produz o acordo sobre as categorias que alarga os universos discursivos para, nas situações em que a ação assim o exige, fixar certos modos nati-vos e/ou cristãos (códigos) de compreensão do mundo (Geertz, 1978: 20).15

A partir desse ponto de vista compreende-se a mediação como um processo de comunicação — isto é, construção de situações e textualidades que engendram sentidos compartilhados16 nas zonas de interculturalidade. Nosso problema é, pois, o de descrever como isso se constrói.

Muitos observadores já chamaram nossa atenção para o fato de que uma das características mais importantes do modus operan-di da atividade missionária em geral é sua valorização da inscrição do outro: seja através da gramaticalização das línguas, da produ-ção/tradução de catecismos, seja através da descrição dos modos de ser e pensar indígenas, a atividade da escrita sobre e para o nati-vo fixa os acontecimentos em narrativas que vão, progressivamen-te, "depositando" significações. O conjunto de relações de tradu-ção e de significação que se estabelecem nesse processo acaba por sedimentar um espaço transcultural feito de traduções múltiplas, justapostas e contextuais, dos códigos nativos e missionários, refe-rentes dos jogos de comunicação em ação no espaço da mediação.17

Cristina Pompa já pôde observar esse processo ao se defrontar com o problema da descrição das "crenças tapuias" nas fontes históri-cas. O relato das crenças kariri aparece codificado na linguagem da cosmologia cristã. Quando, observa a autora, "no contexto dos primeiros conflitos que culminariam na guerra dos Bárbaros', os

Page 63: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

'tapuia' se aproximaram dos padres para pedir o batismo, único meio para escapar às expedições de apresamento, [...] eles devol-vem aos missionários sua versão dos ensinamentos cristãos" (Pompa, 2003).

Se as configurações culturais resultantes dos processos de me-diação se desenvolvem no marco de relações de coerção, desigual-dades e conflito, elas também exigem, como vimos, a produção de um acordo sobre as significações. Ora, esse acordo implica uma colaboração na criação da norma sempre ajustada a interesses, alian-ças e cumplicidades. Assim, a análise das textualidades que ela pro-duz supõe que estas são capazes de tornar visíveis as hierarquias de significação envolvidas nessa relação; elas permitem uma aproxima-ção parcial da compreensão geral desses processos de mediação, em que a alteridade busca seu sentido em termos culturalmente com-preensíveis e subjetivamente aceitáveis. Analisemos, pois, o concei-to de mediação a partir desse ponto de vista.

A M E D I A Ç Ã O N O C A M P O DAS

P R Á T I C A S E I N T E R E S S E S

Quando se observa o processo de intermediação cultural na parti-cularidade de seus agentes, o que é traduzido (e como é traduzi-do) se realiza nos limites das necessidades de consenso colocadas pelas relações existentes e tem o alcance dessa mesma rede de relações. Assim, embora o agente missionário tenha a percepção de que está traduzindo/adaptando para o mundo dos brancos a cultura nativa como um todo, o que, na verdade, ele procura tor-nar "compatível" nesse processo são alguns códigos privilegiados segundo a perspectiva dos agentes em relação, ou, dito de outro modo, os elementos que fazem sentido para manter vivos os inte-resses em jogo na relação. Como dissemos na Introdução, não se trata de mobilizar a totalidade cultural nos jogos de comunicação, mas alguns de seus elementos capazes de se tornar norma de juízo.

Page 64: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Partimos da hipótese central de que, embora várias linguagens subsidiárias de interesse estejam em jogo (a da reprodução da vida, a das trocas de bens, a da cura etc.) do ponto de vista dos missio-nários, o campo privilegiado de construção desses códigos compar-tilhados foi, até muito recentemente, o da gramática religiosa. Por parte desses agentes particulares que são os missionários, é muito fácil compreender por que é a partir dos códigos gerados nesse campo que sua motivação se realiza e sua ação se legitima. Além disso, o que chamamos de religião foi, desde o século XVI, o campo categorial privilegiado no qual o Ocidente definiu e decifrou o Outro. Isso porque a religião (ao lado da noção de civilização) foi um dos conceitos mais generalizadores que a Europa pôde conce-ber para incorporar a alteridade cultural e fazê-la entrar em seu sis-tema de comunicação.

Do ponto de vista dos atores indígenas, somente pesquisas contextuais podem decifrar os elementos que permitam afirmar por que fazia sentido (se fazia sentido e como) definir uma esfera própria do religioso para traduzir o branco. O que, até o momento, grande parte da literatura que se debruça sobre o tema tem nos mostrado (Bruce Albert, Aparecida Vilaça, Manuela Carneiro da Cunha, Viveiros, entre outros) é que essa tradução se realiza no plano da ressignificação cosmológica. As doenças e as mercadorias introduzidas pelos brancos, por exemplo, são ressignificadas nas estruturas cosmológicas de modo a neutralizar seus poderes mal-fazejos; as relações com os outros, brancos e não-brancos, são con-cebidas em termos de amigos/inimigos ou em termos de afinida-de/aliança. Por outro lado, trabalhos como os de Robin Wright Wright , 1999: 15), que levam em conta os processos de "conver-são" em sociedades indígenas, mostram, ao mesmo tempo, que as religiões já se estabeleceram como esfera separada também para a cultura nativa e se tornaram muitas vezes parte constitutiva de sua perspectiva de mundo.

Propomos que a produção de códigos compartilhados seria a resultante, no plano das significações ou das configurações cultu-

Page 65: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

rais, de estratégias mais ou menos calculadas dos agentes em inte-ração para fazer valer seus interesses, cujos valores só podem ser descritos contextualmente. Max Gluckman (Gluckman, 1987: 16) já havia proposto formulação semelhante quando procurou descre-ver o modelo das relações entre zulus e brancos na África do Sul a partir do conceito de "situação social".18 Em sua resposta às críti-cas de Malinowski contra sua idéia de "comunidade branco-africa-na", Gluckman reafirma que, para entender as relações de conta-to, é preciso ter como ponto de partida não o zulu ocidentalizado, mas as relações de cooperação e conflito entre zulus e europeus, desenvolvidas "em situação". Com o uso desse conceito o autor se permite pensar as relações de contato como relações pontuais (que interpelam apenas partes dos sistemas tradicionais e não as culturas como um todo) e interessadas (supõe cooperação e cons-trução de consensos em torno de interesses comuns). Apesar dos termos já um tanto datados dessa antropologia que define cultura como "comportamentos padronizados" (1987: 301), sua tentativa de pensar as "relações sociais" como "expressão no plano da cultu-ra de relações sociológicas" propõe como problema teórico o nexo entre as relações de poder entre personalidades sociais e a mani-pulação (também política) de padrões culturais. Desse modo o autor reserva o conceito de cultura apenas para o comportamento padronizado de personalidades sociais descrito pelo antropólogo e produz neologismos (endocultura, exocultura)19 para tratar da "mani-pulação" simbólica dos padrões culturais pelos atores em situação. Assim, observa ele, "quando um zulu pagão se torna cristão ele não conhece todos os dogmas do cristianismo e nem todas as crenças que se espere que ele abandone. Ele, portanto, agrega valor aos dois conjuntos de crenças" (1987: 312). Essa afirmação nos inte-ressa particularmente porque aponta para uma apropriação frag-mentária da cultura do outro, interessada e a partir dos códigos daquele que dela se apropria. Além disso, acrescenta ele, "temos de explicitar as crenças e os comportamentos do grupo branco que o missionário considera estar transmitindo ao zulu e que o que o

Page 66: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

zulu, por sua vez, considera estar aceitando" (grifo nosso). Parece-nos que essa maneira de colocar o problema das relações de con-tato é extremamente estimulante ao incluir a leitura dos atores na análise daquilo que fazem. As diferenças culturais implicadas nes-sas relações e os conflitos a elas inerentes não são suficientes, segundo o autor, para produzir mudanças culturais; elas se dão apenas quando os padrões culturais existentes não são suficientes para resolver o conflito e a necessidade de cooperação. Em sua tentativa de produzir um modelo dos modos de apropriação dos padrões culturais o autor propõe que: 1) a tendência à cooperação atravessa todos os níveis de clivagens sociais; 2) as relações de cli-vagem são expressadas por reiteração dos padrões tradicionais e as de cooperação — porque exigem o desenvolvimento de "costumes de comunicação" entre ambos — se expressam em uma gama muito variada de padrões próprios e alheios.

Não resta dúvida de que seu esforço para elaborar uma teoria geral da mudança cultural nesses termos corre o risco de um certo esquematismo que poderia maldosamente ser reduzido ao pleo-nasmo "há mudança cultural quando as relações mudam". Ao não se colocar o problema do ponto de vista das significações — a questão de por que são esses elementos e não outros os que são acionados em situação — a cultura fica reduzida às normas ou aos comportamentos dos indivíduos como pertencentes a grupos sociais em relação. A análise das relações sociológicas de conflito e ou cooperação e o valor funcional dos costumes para a persistên-cia dos equilíbrios estruturais sucessivos prevalecem sobre a com-preensão dos sentidos da cultura. Mas é certo também que essa proposição corresponde a uma crítica à teoria malinowskiana do contato, que privilegiava como unidade o costume e compreendia ã sociedade composta de grupos culturalmente heterogêneos de Giuckman em termos de uma cultura (1987: 302).

Ainda assim, parece-nos que esse autor postulou alguns parâ-metros fundamentais para o desenvolvimento de uma antropolo-

Page 67: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

gia do contato, retomados por muitos outros autores depois dele, tais como Georges Balandier na França e Cardoso de Oliveira no Brasil, e que, se colocados sob um novo prisma, ainda podem ser-vir de guia para lidar com a problemática da mediação. Em pri-meiro lugar, apesar de seu reducionismo sociológico, não se pode abandonar a análise dos nexos, que Gluckman propõe, entre as relações sociais e as significações. Em sua descrição de eventos o autor procura mostrar como, em determinadas situações, os indi-víduos lidam com as escolhas com as quais são confrontados pela ampliação das alternativas disponíveis. Avança a hipótese bastan-te estimulante, embora não a desenvolva, de que os elementos culturais mais persistentes são os mais aptos a serem estendidos para uma rede ampliada de relações (1987: 338). Em segundo lugar, enfatiza o papel dos agentes como instrumentos das intera-ções e do aporte de inovações culturais (1987: 333). Sua análise situacional contribui para uma compreensão do contato como processo, uma vez que "sistemas de crenças discrepantes são acionados em diferentes situações sociais" (Velsen, 1981: 364). Finalmente, analisa as configurações culturais à luz dos motivos e interesses dos personagens em interação (Gluckman, 1987: 241); nesse sentido, não existem apenas os pontos de vista nativos e europeus, mas diferentes combinações de pontos de vista que representam grupos de interesses distintos a serem especificados na análise. A diversidade de interesses acompanha as clivagens que se manifestam em todos os níveis da vida social. Assim, os arranjos culturais resultantes do contato não representam o efei-to de uma combinatória simples entre totalidades — a cultura zulu e a européia —, mas dependem, ao contrário, do modo como se ordenam, nos dois campos, as relações de autoridade, oposição e/ou aliança através da configuração de grupos em per-pétua mutação.20 Quando se analisa esse processo do ponto de vista da atuação missionária, torna-se claro que a elucidação dos termos do projeto de salvação que os move é elemento chave da compreensão dos atores nativos que serão privilegiados (e/ou pro-

Page 68: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

duzidos) nessa interação e dos "padrões culturais", como diria Gluckman (ou códigos, como prefiro dizer), que serão acionados nas situações materiais e simbólicas de "cooperação".

Do ponto de vista das experiências particulares descritas neste livro, tais como a dos salesianos, em suas relações específi-cas com os bororo, os xavante e as populações do Uapés, por exemplo, podemos adiantar alguns elementos explicativos do esta-belecimento do que eu chamaria de um certo tipo de "cumplicida-de", ou cooperação, nos termos de Gluckman, que fez do campo religioso o camfo da tradução.

Em primeiro lugar, os padres que no passado se dedicaram a inventariar as culturas nativas (principalmente Colbacchini, Venturelli, Bruzzi) o fizeram a partir de informantes privilegiados, chefes e xamãs, reconhecidos por eles como portadores do conhe-cimento das coisas sagradas e secretas do grupo, intermediados muitas vezes por índios formados nos internatos; esse tipo de esco-lha já privilegia um tipo específico de relato e de relações. Em segundo lugar, pela sua própria percepção, que privilegiava a busca e o reconhecimento do religioso na cultura nativa, e que reconhe-cia o nativo como um ser intrinsecamente religioso, esses infor-mantes, estimulados pelo interesse dos padres, narravam com detalhes e traduziam para o registro detalhado dos missionários cerimônias, festas e ritos.

Com efeito, no que diz respeito aos xamãs, a literatura mostra como esse personagem constituiu-se na maneira de ver, e na estra-tégia missionária, o outro oposto do padre — isto é, reconhecia-se o seu poder religioso e tratava-se de neutralizá-lo a partir de um poder religioso maior. Já na estratégia indígena, tal como no caso éos achuar do Equador descrito por Anne-Christine Taylor, o Mnanismo permitiria a neutralização da intermediação salesiana uã manipulação do sobrenatural (Taylor, 1981: 19). Assim, xamãs e missionários, ambos especialistas nas relações simbólicas com os «àe fora, estariam interessados no controle da transmissão de pode-®es religiosos do outro pensados como veículos da circulação de

Page 69: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

bens e de acesso à riqueza: os nativos porque pensam a afluência como resultante das relações privilegiadas com as forças sobrena-turais (nunkui) e percebem as práticas religiosas dos padres como mais potentes para produzir bens; os missionários porque associa-ram a salvação ao progresso tecnológico e perceberam que seu pro-jeto de societas dependia, em parte, de sua capacidade de apropria-ção dos poderes de intermediação do xamã.

Em época mais recente, quando o campo religioso foi relati-vamente neutralizado como campo legítimo da tradução, a cultura nativa, compreendida como rito, cerimônia e tradições, já estava constituída como tal na percepção desses atores. O campo da tra-dução pode assim deixar a gramática do religioso e adotar o campo da "cultura" — da identidade étnica ou etnicidade — como lingua-gem da negociação dos sentidos. O código da salvação dos missio-nários se move do espiritual (a alma a ser convertida) ao cultural (a tradição a ser salva), sem perder sua capacidade de organização de sentidos. Resta saber de que modo essa conversão à etnicidade interessa às culturas nativas.

São, pois, essas estórias particulares de negociação de senti-dos que este livro procura descrever. No entanto, visto que uma antropologia da mediação como uma teoria geral não se esgota na etnografia, os diferentes capítulos deste livro, colocados em um conjunto, propõem uma perspectiva histórico-comparativa que permite, assim o esperamos, contribuir para uma compreensão menos valorativa dos mecanismos gerais que presidem a produção destes artefatos culturais designados, por economia explicativa, de híbridos e/ou mestiços.

Page 70: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

M I S S Õ E S : A C I V I L I Z A Ç Ã O C R I S T Ã E M A Ç Ã O

Nicola Gasbarro

A H I S T Ó R I A DAS R E L I G I Õ E S E AS M I S S Õ E S

A HISTÓRIA DAS RELIGIÕES, como disciplina, não pode ignorar a história das missões: ela permite rever criticamente e repensar his-toricamente, numa perspectiva antropológica, seja seu objeto inte-lectual — a religião e as religiões —, seja seu método, que deve permanecer rigorosamente histórico e necessariamente compara-tivo. Não é preciso recorrer a reelaborações teóricas ou a descons-íruções mais ou menos funcionais às ideologias do presente, é suficiente questionar-se a respeito da formação e do desenvolvi-mento das noções fundamentais da disciplina.

A História das Religiões, como a Antropologia, nasceu e desen-\«>lveu-se no interior da consciência européia como exigência de «XTnpreensão histórico-social da religião e das religiões, sem apelar gfera as certezas teoréticas da metafísica ou as pretensões de orto-doxia da "revelação". Mas encontrou um "objeto intelectual" histo-ricamente já constituído e socialmente funcional, culturalmente Dofisolidado e simbolicamente eficaz, comparativamente já explora-i : e universalmente reconhecido. Daí decorre, por um lado, a ilu-

Page 71: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

são etnocênctrica de um "universal concreto" (as religiões), analisá-vel objetivamente no plano histórico-social, ou, por outro lado, sua tradução subjetiva, típica da filosofia da consciência, em termos de "sacralidade" transcendente e fenomenológica.

Tudo isso é, historicamente, uma construção intelectual da modernidade: o cristianismo das origens afirmou-se como "religião verdadeira" contra as "superstições" pagãs e, em seu desenvolvi-mento, precisou distinguir-se das — freqüentemente contra as — outras "religiões" monoteístas. Não por acaso, apesar da pretensa universalidade de seu objeto intelectual, a História das Religiões teve de lançar mão de distinções, classificações diferenciais que ameaçam anular antropologicamente a homogeneidade que é a base de qualquer comparação: é só pensar na diferença entre reli-giões "étnicas" e religiões "universais".

O que significa, nesse caso, "universal"? E possível pensar o "étnico" sem uma referência implícita ao "universal"? O "étnico" pode transformar-se em "universal"? O que acontece quando cons-truções culturais tão diferentes entram em contato? Quem estabe-lece os critérios e as perspectivas da "comparabilidade"? A quem cabe a prioridade epistemológica? Se a estrutura "étnica" define inexoravelmente a "alteridade" antropológica, como e por que o "nós" culturalmente forte se autolegitima pela arrogância simbóli-ca da universalidade? Trata-se de relações de força ou de relações de sentido? Como analisar essa complexidade sem recorrer a noções confusas como a de "sincretismo"?

A única resposta possível é que o cristianismo se coloca histo-ricamente como religião universal! Desde que se esclareça a den-sidade cultural dessa "universalidade", a resposta muda radical-mente os problemas e a maneira de colocá-los. Com efeito, por um lado, há a passagem de uma estrutura teorética para um processo histórico-cultural; por outro lado, e conseqüentemente, de um pressuposto universalista para uma perspectiva integralmente antropológica, ao mesmo tempo social e simbólica, das relações, e das relações entre relações.

Page 72: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Esse holismo relacionai, mas não relativista, pode — quando voltado para a história e a comparação rigorosa — reformular as noções e as questões teóricas de fundo, até mesmo as que con-cernem à universalidade do "objeto religioso" ou da "percepção do sagrado", sem desconstruí-los numa indiferença hiperculturalista, mas, ao contrário, reconstruindo sua formação histórica no con-texto antropológico (nada indiferente) das relações das e entre as civilizações. No plano metodológico, porém, tornam-se necessá-rias duas inversões: de um lado, a conexão — ainda ligada à orto-doxia da fé dos teólogos e à metafísica dos filósofos — entre uni-versalidade, comparação e história; de outro lado, a prioridade simbólica da fé-sistema de crenças sobre a prática-sistema ritual das regras e das relações sociais.

A primeira possui coerência teórica mas não historiciza o pressuposto da universalidade; de fato esta última, constituindo-se como fundamento da comparabilidade entre "religiões", reduz o complexo processo de leitura histórico-antropológica das religiões a uma história do objeto intelectual "religião". Trata-se de um curto-circuito hermenêutico que anula na universalidade do "na-tural" até mesmo aquelas invenções sociais que, por sua importân-cia social e simbólica, foram pensadas como "sobrenaturais" em algumas civilizações.

A especificidade da formulação "naturalista" é secundária: pode-se optar para um positivismo que classifica os eventos por meio de esquemas tirados da própria experiência histórica e uni-versalizados étnocentricamente, ou por um subjetivismo transcen-dental da consciência que generaliza a própria transcendência teo-lógica. O que é importante é o processo de universalização que aciona essa "falsa consciência" histórica.

Numa história das civilizações e entre elas, não pode haver universalidade sem comparação, não pode haver comparação fora das relações "de fato" e "de direito" e não pode haver o sentido "do direito" sem uma história preventiva "do fato". E preciso, portanto, transformar a conexão teorética "universalidade-comparação-his-

Page 73: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

tória" na seqüência cronológica e epistemológica "história-compa-ração-universalidade", para submeter a um processo total de histo-ricização e antropologização a estrutura geral do objeto intelectual "religião-religiões" e sua pretensa universalidade.

E mais: essa universalidade só pode ser analisada como o pro-duto sociocultural do processo histórico das relações entre as civi-lizações que, para tornar compatíveis suas diferenças num sistema compartilhado e compartilhável, generalizam regras e produções simbólicas tidas como comuns e indiscutíveis. Não se trata de um sincretismo casual, mas de processos de relações e comparações de fato a serem analisadas historicamente, mediante os códigos de comunicação que elas mesmas acionam.

A comparação de fato nasce das relações entre civilizações: quando estas se multiplicam e se tornam mais complexas, a práti-ca social precisa cada vez mais de sistemas de generalização, capa-zes de incluir socialmente e compatibilizar simbolicamente as dife-renças, se não quer excluí-las como "alteridades" radicais.

A segunda inversão — a da prioridade fé-prática, sistema de crenças/sistema ritual — é uma conseqüência da primeira que acabamos de enunciar e concerne, de novo, a uma prioridade estrutural de nossa cultura moderna. Estamos acostumados a pen-sar a religião e as religiões como um sistema mais ou menos orto-doxo de fé-crenças que orienta necessariamente as práticas; ao ponto de que qualquer questão que de alguma forma diz respeito ao "sentido da vida e da morte" é, para nós, um problema implici-tamente "religioso". Não é assim sempre e em todo lugar: outras civilizações podem formular e resolver o problema de uma forma radicalmente diversa, ou sem soteriologia, ou com uma soteriolo-gia sem divindade.

Por outro lado, o próprio cristianismo se afirma antes como "verdadeiro culto do verdadeiro Deus" para depois construir, gra-ças a isso, uma teologia e uma cristologia que refletem as exigên-cias sociais e simbólicas dos cristãos em seus contextos de vida e de ação. A construção histórica da ritualidade sacramentai e da

Page 74: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

'educação cristã" mostra que a religião é compreensível historica-mente antes pela análise da prática e do exercício do culto do que pela estrutura do dogma e/ou pelo sistema de crenças.

Por isso, como provocação metodológica que tem apenas o intuito de desconstruir um etnocentrismo enraizado, proponho utilizar a noção de "ortoprática" a antepor e contrapor à de "orto-doxia" no estudo da religião-religiões. Ao privilegiar as regras rituais e as ações inclusivas e performativas da vida social, ela pode dar conta também da construção histórica do sistema de crenças como lugar das compatibilidades simbólicas das diferenças cultu-rais. Por outro lado, como mostra a história das origens cristãs, não existe construção de uma religião "universal" sem a relação entre civilizações diferentes e, portanto, sem inclusões sociais da e na religião e sem compatibilidades simbólicas das diferenças com a e na prática comum de culto. A perspectiva histórica precisa partir da hipótese de que até o que chamamos de "sentido da vida e da morte" bem como todas as noções que projetamos no plano uni-versal sejam na verdade o produto histórico das relações entre as civilizações na Idade Moderna, que, não por um acaso, se abre com a descoberta do Novo Mundo e a conseguinte necessidade social e cultural de repensar o mundo.

As duas inversões metodológicas e de perspectiva trazem dire-tamente para a discussão a noção de religião e sua universalidade e remeteín historicamente ao cristianismo, que, desde suas ori-gens, se impôs culturalmente como "religião verdadeira" e como "religião universal". Essa universalidade depende apenas da estru-tura intrínseca de uma mensagem dogmaticamente universalizável ou, também, de uma prática intercultural capaz de acionar um processo de universalização concreta que necessariamente afeta também a cultura ou as culturas de origem? A mensagem cristã é universalizável desde os Atos dos Apóstolospor isso a Igreja é estruturalmente missionária: desse ponto de vista as missões são uma prática de evangelização que permite passar de uma univer-salidade potencial a uma universalidade atual e histórica. E mais:

Page 75: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

sem esta última, o desenho histórico da salvação universal não se realizaria e qualquer fé seria vã em sua essencialidade dogmática.

Historicamente, portanto, não há universalidade religiosa sem missões; o cristianismo — mas isso vale, obviamente, também para o Islã — não é uma religião universal, mas uma religião que tem acionado processos <(ortopráticos" de universalização. Se isso é verdade, surge o problema da gênese da potencialidade univer-salista — o que normalmente atribuímos à revelação transcenden-te — de cada religião, que remete ao seu contexto histórico-cultu-ral, seja institucional e político, seja simbólico e de sentido.

Quando a potencialidade universalista já existe no sistema de relações culturais de origem, como no caso do cristianismo, trata-se de uma transposição teológica, nem por isso menos revolucio-nária, de princípios originalmente não religiosos. E preciso, então, entender sua natureza e sua incidência na formação e no desen-volvimento do dogma teológico, bem como na reformulação teoló-gica do inteiro sistema cultural. Quando, ao contrário, as potencia-lidades universalistas são uma invenção da religião como tal, e é esse o caso do Islã,2 é preciso compreender qjaais são as garantias sócio-institucionais que permitem a universalização histórica da mensagem simbólica, que diz respeito seja à teologia stricto sensu, seja às relações entre homens e divindades.

Uma universalidade potencial exige uma igualdade estrutural também no nível teológico, que diz respeito aos sujeitos sociais diferentes por natureza e por estatuto social, bem como ao objeto da fé; nesse sentido, as religiões universais devem lançar mão de um pensamento social que deve ser igualitário no plano do direito, e de um horizonte simbólico que estabeleça os limites do possí-vel e do pensável, como base indispensável da fé e de seus efeitos salvíficos. Em suma, as potencialidades universalistas, seja qual for seu fundamento dogmático ou sua fundação originária, não são outra coisa senão a capacidade de inclusão social e compreensão simbólica de qualquer diversidade, com hierarquias e incompreen-sões variadas que podem e devem ser analisadas historicamente.

Page 76: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Cada missão precisa desses dois aspectos, o simbólico e o so-cial; conforme as relações e as hierarquias entre eles, muda a es-trutura missionária, mudam suas mensagem e os efeitos de suas transformações. E nesse plano que se dá a diferença entre as mis-sões católicas e as protestantes no Novo Mundo: as primeiras são certamente mais institucionais e hierárquicas no nível simbólico — e daí decorre a grande exigência de compreensão-tradução-catequese (ver Pompa e Agnolin neste volume, capítulos 2 e 4 res-pectivamente) — mas, ao mesmo tempo, são socialmente igualitá-rias no nível do processo de civilização. Daí decorre a grande importância da diversa concepção do "direito natural", pressupos-to de qualquer ação missionária, e do "livre arbítrio", pressuposto histórico de uma mensagem "religiosa" que não pode ser imposta, e princípio geral de legitimação das relações entre civilizações. As missões colocam em cena, na história da modernidade, a comple-xidade dessas relações, as possibilidades e os limites da inclusão social da alteridade cultural e a capacidade simbólica de comuni-cação e compatibilidade das diferenças.

A História das Religiões precisa da história das missões3 tam-bém para historicizar seu método histórico e comparativo: as mis-sões dão origem à comparação histórica entre as civilizações pelo código privilegiado da "religião", que apenas graças a essa capaci-dade de relação e de complexidade torna-se o horizonte intercul-tural do sentido. Essa comparação de fato é a que coloca para a modernidade o problema da comparabilidade, o das diferenças nas civilizações e entre elas, o de uma possível compatibilidade e, sobretudo, o das generalizações simbólicas que a tornam possível. Ao nos libertarmos da retórica da ortodoxia teológica, fica eviden-te que as capacidades de generalização são determinadas histori-camente e condicionadas culturalmente, conforme as diferenças que o sistema religioso encontra no exercício prático das missões.

O cristianismo ocidental construiu a si mesmo a partir do encontro-choque com o paganismo antigo, que em parte absorveu e em parte recusou, propondo uma compatibilidade sistemática

Page 77: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

certamente mais ampla: a teologia da história substitui a história antiga só porque o horizonte salvífico consegue compatibilizar o fim da vida individual com o fim da história coletiva. Não é à toa que o peso do Apocalipse é essencial para as missões (ver Cristina Pompa, capítulo 3): sem estas últimas não há reino de Deus por-que é preciso alcançar a compatibilidade máxima.4

E uma força do sentido que não se esgota no sentido da força e da opressão do imaginário, tão evidenciada pela literatura histó-rica pós-moderna: reconhecer as potencialidades "civilizatórias" e "igualitárias" do cristianismo não significa uma adesão "religiosa", mas antes uma responsabilidade histórico-cultural que redesenha a história das relações entre civilizações em termos mais gerais que os da história estocástica à la Foucault, em que tudo se resolve na casualidade do sentido do poder, sem se questionar criticamente sobre a gênese e o desenvolvimento do poder do sentido.

O poder do sentido do monoteísmo não é teologicamente maior do que o do politeísmo (Hume diria que não se compreen-de como o Uno pode resolver mais problemas do que o Múltiplo),5

mas é antropologicamente mais inclusivo, graças à certeza da sal-vação, tornando compatíveis o sentido da vida e da morte e as estruturas da história coletiva e das sociedades complexas. Uma crítica de antemão não é mais "laica", mas apenas mais "decons-trucionista", enquanto a tarefa do historiador é "construtiva": é preciso reconstituir porque as coisas se deram dessa forma, mesmo se não necessariamente deviam se dar dessa forma. As missões não são apenas o cristianismo em ação, mas a "civilização cristã" em ação, com suas estruturas de poder e seus limites de sentido. Isso é tão mais válido na modernidade, depois da descoberta do Novo Mundo.

Com efeito, o Ocidente cristão inaugura a modernidade com sua religião em ação: as "missões" como processo antropológico de confronto-choque entre culturas estão na base da formação e do desenvolvimento da modernidade. Se a revolução antropológica começa com a chamada "descoberta" do Novo Mundo, é até difícil

Page 78: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

estabelecer se o grande projeto missionário é sua causa ou sua conseqüência. Todos sabemos, porém, que o problema não é cro-nológico ou empiricamente casual, mas cosmo-lógico e estrutu-ralmente antropo-lógico. Não por acaso as missões modernas não são apenas uma perspectiva teológica de "cristianização" do mundo, mas sobretudo um processo antropológico de "civiliza-ção", que se relaciona com as diferenças culturais a partir de uma igualdade estrutural que constitui seu fundamento teórico e seu limite operacional.

Essa perspectiva é a mesma da modernidade, que sobre ela e graças a ela reinventa sua direção, reconstrói seu sentido, repensa suas regras, redesenha sua cosmologia, dando origem a uma nova his-tória e a uma nova geografia do mundo. Chamo-a de "perspectiva" para indicar um caminho complexo, inter-relacional e de longa dura-ção, uma construção cultural progressiva e cheia de imprevistos.

Os resultados "civis" e/ou "religiosos" da função "civilizadora" das missões e da preocupação "missionária" da modernidade são produtos simbólicos de relações, quase fruto de uma busca contí-nua de possíveis compatibilidades, exigência e conseqüência de processos de desestruturação e reestruturação de relações sociais. É preciso reanalisar essa rede de compromissos sociológicos e de códigos comunicativos, de inclusões generalizadas e de compatibi-lidades: as missões mostram que a religião, mesmo quando funcio-na como código prioritário de comunicação intercultural, não pode ser analisada sem a civilização: é uma exigência "ortoprática" antes de se tornar regra metodológica.

As missões constroem a primeira globalização social e simbó-lica da modernidade: é inútil negar as conseqüências colonizado-ras do imaginário,6 mas, para incluir socialmente e compreender simbolicamente diversidades novas e imprevistas, elas são obriga-das a mudar sua mensagem e perder alguns dos pressupostos ini-ciais: o cristianismo dos modernos não é mais o dos antigos e os missionários são os primeiros protagonistas dessa revolução cultural.

Page 79: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

A perspectiva antropológica da modernidade se abre com a missão cristianizadora, porque a civilização do Ocidente europeu é cristã, não apenas a Espanha católica ou o poder temporal da Igreja, mas todo o Ocidente, em sentido extensivo e ostensivo. A expulsão dos muçulmanos e as missões no Novo Mundo fazem parte de uma "reconquista espirituar que tende a ampliar os confins da "cidade de Deus", até coincidirem com os da humanidade.

Essa extensão encontra seu paralelo estrutural no interior da religião que, como código cultural da relação entre os homens e a divindade, é o ordenador hierárquico de todos os outros, seja daqueles que regulam as relações entre os homens (sobretudo o direito como conjunto de regras da vida social e a política como código da christiana resfublica), seja daqueles que regulam as rela-ções entre os homens e a natureza (desde a magia pagã até as pri-meiras tentativas humanistas da ciência e da tecnologia). Assim, as missões acionam toda a civilização ocidental, pois, se a universali-zação do código prioritário implica a universalização de todos os outros, a missão cristã é necessariamente "civilizadora".

O código religioso não é apenas o mais importante mas tam-bém o mais universal, ou seja, o mais inclusivo socialmente e o mais aberto simbolicamente às diferenças, na medida em que a "ci-dade de Deus" é potencialmente aberta a todas as gentes e a doctrina christiana compatibilizou, de fato, todas as elaborações universalis-tas da antigüidade pagã, da filosofia grega ao direito romano. Esse "milagre" antropológico nasceu da mudança de perspectiva que o cristianismo impôs ao sentido da civilização. Com efeito, se a fé cristã, graças à certeza da salvação meta-histórica, torna compatí-veis o fim do homem e o fim da história, a civilização que daí decorre tem uma força extraordinária, capaz de governar simboli-camente o limite da vida humana e os determinismos naturais. Ao dar um sentido a esses limites, a civilização cristã alarga e projeta os horizontes do sentido simbólico e da subjetividade histórica para os confins do tempo e do espaço. Nessa perspectiva, na ação

Page 80: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

missionária, o código cultural da religião determinou, socialmente e simbolicamente, a primeira "ocidentalização do mundo", bem como a primeira "invenção-do outro";7 isso teve conseqüências no pensamento moderno sobre a alteridade e na estrutura da antropo-logia científica.

O historiador das religiões laico é forçado a notar que os resul-tados de um processo histórico desse tipo podem ser completa-mente diferentes do projeto inicial, até inverter totalmente a pers-pectiva de longa duração. A civilização cristã moderna quis incluir socialmente e converter simbolicamente as diversidades do Novo Mundo, mas para fazê-lo foi obrigada a repensar seu poder de sen-tido e seu sentido do poder. O primeiro não foi mais apenas o transcendente sentido cristão, mas uma "visão de mundo" mais geral; o segundo foi entregue a uma "sociedade civil", que mais nada tinha a ver com a "cidade de Deus". E difícil pensar no gran-de debate racionalista e moderno sobre a "religião" e seu papel na história sem pensar nos missionários, primeiras testemunhas do "ateísmo" e das "superstições" dos Outros.

Esta perspectiva abre mais dois horizontes para a comparação. O primeiro é interno a cada sistema social e remete àqueles que a antropologia tradicional chama "traços culturais", que são de fato os códigos de comunicação cuja articulação interna depende das exigências históricas do sistema e das suas relações reais e possí-veis em termos sociais e simbólicos. O segundo diz respeito ao encontro-choque entre diversidades, que, em busca de compatibi-lidade e, na medida do possível, de garantias de exercício de suas diferenças, acabam produzindo uma complexidade maior do siste-ma social.

Por isso, a generalização cristã produz "as religiões dos povos primitivos", freqüentemente construídas pelos missionários a sua imagem e semelhança, mas também um conceito de "religião" tão geral que não tem quase mais nada de autenticamente "cristão". Quando sistemas totalmente diferentes por hierarquias e função se encontram e se chocam, as necessidades práticas de convivên-

DBUS N A A LDEl A 77

Page 81: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

cia levam a compromissos variáveis que, de fato, constituem novas culturas das quais ainda é preciso estudar as origens, pois a histó-ria tradicional excluiu-as do grande desenho do espírito e da iden-tidade, desterrando-as para o não-lugar imaginário do sincretismo ou do espaço selvagem dos "povos sem história". Entre elas é pos-sível, por exemplo, observar um outro cristianismo em ação, uma religião historicamente vivida de maneira radicalmente diversa do cristianismo secularizado do Ocidente moderno. Onde procurar, então, as estruturas universais do objeto religioso? Quais são suas autênticas encarnações?

A verdade da história das relações entre civilizações é outra: a chamada universalização da "religião" não é outra coisa senão uma interpretação "ortodoxa", toda "religiosamente" nossa, de um pro-cesso "ortoprático" de generalização intercultural de um código de sentido. O mecanismo de comunicação é evidente: as exigências práticas de compatibilidade levam a um acordo que pode ser alcançado mediante compromissos variáveis, que vão desde a opressão simbólica total à elaboração de estratégias igualitárias. Hoje, temos a vantagem de conhecer as conseqüências mais evi-dentes dessa história; quanto mais "universal" parece um traço cultural, mais gerais são seus conteúdos e mais confusos seus con-fins formais, testemunho evidente de um processo de generaliza-ção ainda em andamento.

Podemos partir dessas generalizações e tentar entender sua formação e seu desenvolvimento, no campo da religião como no do imaginário, investigando empréstimos, cruzamentos, difu-sões, interferências e os inúmeros jogos da mestiçagem aos quais às culturas dão origem em suas relações. E um trabalho longo de "construção" intercultural da modernidade ocidental, que entrega aos "outros" protagonistas um papel mais ativo que aquele que lhes reserva a narrativa desconstrutora de uma his-tória do Sujeito único.

Page 82: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

A M O D E R N I D A D E A R E C O N S T R U I R :

UMA " N A R R A T I V A " I N T E R C U L T U R A L .

A admiração intelectual dos missionários é talvez o documento melhor da história das relações entre civilizações: a riqueza da natu-reza que enriquece o patrimônio científico, a variedade dos com-portamentos sociais que obrigam a repensar a história "moral" da humanidade, os paradoxos da ritualidade cotidiana que colocam não poucos problemas teológicos para o trabalho de evangelização. Apóstolos de uma fé que tornou compatível o fim da vida individual com o fim da vida coletiva, os missionários são obrigados a viver a certeza dessa esperança na precariedade cotidiana de povos despo-jados de qualquer conforto tecnológico e sem o horizonte histórico do futuro. As grandes dificuldades logísticas são bem mais superá-veis do que as culturais. O trabalho incessante de desestruturação e reestruturação dos códigos comunicativos que não consegue evi-tar equívocos, incompreensões e erros. Antes do que de uma tradu-ção cultural da mensagem teológica, trata-se de uma verdadeira recodificação da religião cristã, que utiliza os conhecimentos cultu-rais locais num contexto prático de vida de relação.

A antropologia clássica, principalmente a mais próxima das problemáticas religiosas, herdou categorias cognoscitivas e técni-cas de observação etnográficas dos missionários justamente por-que foram estes os primeiros que tentaram compreender a com-plexidade das diferenças culturais no interior de uma perspectiva de igualdade estrutural da humanidade. Perspectiva sem dúvida teológica mas que, sendo moralmente normativa e socialmente indiscutível, transformou as grandes diferenças, especialmente aquelas observáveis pelo código da "religião", em aporias intelec-tuais e em contradições existenciais. Com efeito, se o Deus cria-dor e salvador dos homens é o princípio de sua igualdade, como explicar isso a povos que em sua vida social nunca sentiram a exi-gência de uma Fé salvadora? O paradoxo da religião nunca é sepa-rado do drama cultural global; as dificuldades da missão, aponta-

Page 83: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

das por todas as relações,8 são típicas da construção de uma nova cultura "mestiça"9 e o processo de evangelização é um "fato social total", produzido pelas relações entre culturas.

O universalismo potencial da mensagem cristã, ligado indisso-luvelmente à consciência cultural do Ocidente moderno,10 deve defrontar-se com as diferenças radicais. A codificação fundamen-tal do encontro-choque é "religiosa", como bem sabem historiado-res e antropólogos que analisaram a "colonização do imaginário" do Brasil colonial. Daí decorre o problema: se o código geral é a "reli-gião", a diversidade radical pode ser pensada apenas em termos de "superstição"; mas como é possível encontrar uma "superstição", entendida como "excesso de religião", entre "selvagens" sem reli-gião? É o paradoxo da ação missionária que, a partir dele, constrói a primeira compatibilidade intercultural e a primeira linguagem nova entre civilizações diferentes.

Como exemplo, utilizarei aqui a relação do jesuíta italiano Francesco Giuseppe Bressani11 missionário entre os huronianos,12

seja porque o paradoxo é explicitado teoricamente e resolvido com uma precisa estratégia de "código generalizador", seja para ofere-cer uma perspectiva de comparação para quem trabalha com fontes e problemas antropológicos diferentes. É uma maneira de propor um debate teórico e de discutir os instrumentos metodológicos que temos à disposição.

O paradoxo da superstição é colocado, logo de saída, como paradoxo do "agir comunicativo"13 que pede uma solução teórica. Escreve Bressani:14

Falar de superstição, isto é, de excesso de religião em um país onde não há nenhuma, pareceria, talvez, um paradoxo; no entanto, não é novidade passar nos vícios, sem intermediário, de um extremo para outro. Como essa matéria, se não me engano, deve interessar meus leitores, direi sobre ela algumas palavras. (1877: 40).

Page 84: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

O paradoxo não está na realidade, mas na difícil compreensão do mundo indígena por intérpretes cristãos e ocidentais, ainda que a prática da vida tenha mostrado a todos — quase para além das cul-turas! — que passar de um extremo para outro, especialmente no vício, não é novidade do Novo Mundo. A prática ritual indígena remete à superstição, como excesso de religião, num sistema socio-cultural que desconhece a religião. Como compreender uma espe-cificidade em ausência da estrutura à qual ela remete? E se fosse, ao contrário, um indício prático de uma estrutura potencialmente mais geral? E se fosse uma modalidade prática de um saber"'existen-cial" que tem a ver com a "crença" sem explicitar-se numa "fé"?

Se entre religião cristã e ateísmo é possível identificar outras práticas que testemunham as capacidades de ir além do cotidiano, a religião se impõe como valor metacultural e a etnografia missio-nária não pode ser usada contra a mensagem cristã. Não se trata de uma nova apologética, mas da redefinição, em termos de relações entre civilizações, do conceito de religião e de seu "valor de senti-do" na hierarquia dos traços culturais. Ao considerá-la um horizon-te geral, e não necessariamente teísta, que dá um sentido à vida e à história,15 estamos nos referindo a uma concepção totalmente moderna, mas nem por isso exclusivamente ocidental. Os missio-nários, com efeito, são os mediadores não só entre prática indígena e saber ocidental, mas também entre as diferentes hierarquias de códigos culturais dos sistemas sociais que se encontram e se cho-cam. Conseqüentemente, eles constroem, junto com muitos outros atores, uma nova cultura religiosa que atravessa sua própria expe-riência prática e seu conhecimento de homens e coisas.

Os jesuítas, aliás, são particularmente atentos para essa "expe-riência transversal": as Relações que provêm de várias partes do mundo tornam-se objeto de análise comparativa e de uma profun-da reflexão teológica e filosófica, necessária para formar novos missionários. A reflexão é, portanto, já implícita nas Relações, nota-damente naquelas do século XVII, que podem então ser analisadas como testemunhos de um verdadeiro laboratório intelectual e exis-

Page 85: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

tencial. O nó conceituai a desatar é o da religião, principalmente porque esta constitui ainda o código privilegiado da cultura oci-dental inteira e, portanto, a perspectiva epistemológica melhor para compreender qualquer tipo de alteridade. Os missionários são os primeiros antropólogos do Ocidente, não apenas pelo poder político da Igreja, mas pelo "poder de sentido" que a religião tem no interior da modernidade nascente: eles são certamente expres-são de uma instituição poderosa, mas, mais ainda, de uma cultura geral que reconhece sua autoridade simbólica e legitima o exercício desta. Todo o debate ocidental, entre Reforma, Contra-Reforma e descrença, concerne à universalidade da religião e, conseqüente-mente, a sua função de princípio de sentido na hierarquia dos tra-ços culturais da modernidade; a alteridade cultural possui um valor estratégico na reflexão sobre os fundamentos do Ocidente, sobre a estrutura da civilização e do contrato social e sobre o valor da religião, que se tornou um problema de difícil solução. O Huma-nismo reabriu o confronto com a Antigüidade pagã e a descoberta de novos mundos "sem fé" apresenta possibilidades de sentido da vida e da história antes impensáveis. O grande projeto missionário da Contra-Reforma nasce também desta urgência cultural: o Ocidente tenta compreender as outras culturas antes de tudo em termos de "civilização" e de "religião" porque se trata das estrutu-ras fundamentais da vida social.

Bressani, então, precisa resolver o duplo paradoxo intercultu-ral: por um lado, impedir que sua experiência seja usada para des-legitimar o valor universal da religião e, por outro, recuperar a alte-ridade dos huronianos em termos de religião, passando pela superstição. A estratégia é certamente "ortodoxa" do ponto de vista teológico, mas é intelectualmente sutil e antropologicamente efi-caz porque utiliza "ortopraticamente" o sentido do cristianismo em nossa cultura, encontrando sua função primeiro nos indícios estru-turais dos rituais supersticiosos e depois nas crenças implícitas.

O cristianismo é, antes de tudo, "verdadeiro culto do verdadei-ro Deus"; a relação prioritária dos homens com a divindade dá ine-

Page 86: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

\itavelmente sentido às relações dos homens entre si, o que deve implicar as relações dos homens com a natureza. A hierarquia é evi-dente, e uma dimensão não pode existir sem as outras: se o espetá-culo das maravilhas da natureza remete a um Princípio transcen-dente, também as diversas perspectivas da vida social devem ter seu fundamento em princípios compartilhados e compartilháveis, ou seja, em "crenças" em algo ou em alguém. A crença pode estar errada, mas ela tem em si algo da "fé": os homens não podem viver sem um horizonte de certezas capaz de orientar a sua vida e dar sentido à sua morte. Como explicar, por outro lado, os grandes rituais da floresta, que concernem às regras da vida e da morte, sem pressupor um tipo de "fé" em sua eficácia simbólica e social?

A "ortoprática" missionária, da qual a relação de Bressani é um documento interessante, inverte a ortodoxia da hierarquia teo-lógica do cristianismo a fim de universalizar sua estrutura, com o efeito paradoxal de contribuir para generalizar o conceito de "reli-gião" que do cristianismo, na longa duração, acaba conservando apenas a perspectiva racional. Todo o processo, justamente porque fruto de múltiplas interações, não é inteiramente dirigido pelos missionários, muito mais realistas do que os analistas pós-moder-nos; eles são freqüentemente as vítimas das conseqüências cultu-rais da evangelização. As dificuldades da ação missionária, por um lado, e a presença contínua do demônio,16 na qual insistem todas as relações, por outro, mostram antes a complexidade da comuni-cação intercultural do que uma fácil "conquista espiritual". Para ser eficaz, essa "ortoprática" precisa, antes de tudo, de uma refe-rência intercultural precisa, para evitar equívocos e falsas especula-ções teológicas.

Li em muitos autores que combateram o ateísmo que esse pecado é contrário à natureza que coloca em nós algo como um certo instinto da divindade. Eu tinha certeza disso; mas o que eu vi entre nossos Selvagens confirmou para mim novamente esta opinião. Ainda que eles pareçam não ter recebido nenhuma cultura, e que só encontre-

Page 87: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

mos neles a pura natureza em seu estado de degradação, eles têm, no entanto, sentimentos bem diferentes dos nossos libertinos e nos-sos ateus.17

Bressani acaba de descrever a punição do homicídio entre os huronianos, e logo se utiliza dela "ortopraticamente" para começar a falar da "religião dos selvagens", primeiro para evitar ser confun-dido com quem, no Ocidente, nega o valor da religião e depois para garantir uma base concreta e natural para a universalização da "fé":

Em primeiro lugar, eles crêem na imortalidade da alma, e na existên-cia de duas moradas situadas em direção ao ocidente, numa das quais somos felizes, enquanto na outra somos infelizes; mas eles misturam a essa crença mil fábulas semelhantes às dos antigos sobre seus Campos Elísios. Eles reconhecem ainda que há espíritos bons e espíritos maus, e que, se pode tornar favoráveis os bons, oferecen-do uma espécie de sacrifício que consiste em jogar no fogo ou na água tabaco ou a gordura de seus festins.

Com certeza eles têm não apenas um instinto da divindade, mas ainda usam um nome para invocá-la na ocasião necessária, sem muito saber o que ele significa. Eles se dirigem ao Deus Desconhecido, dizen-do: Aireskoui soutanditeur. Este último nome poderia traduzir-se por: tende piedade de nós

Freqüentemente eles se dirigem ao Céu, fazendo-lhe homena-gem, tomando o Sol como testemunho de sua coragem, de sua misé-ria, de sua inocência. Mas, sobretudo nos tratados de paz e de alian-ça com nações estrangeiras, eles invocam o Sol como prova da inteireza de suas intenções, como testemunho dos segredos mais íntimos de seu coração, e o vingador da perfídia daqueles que traí-rem sua fé e não mantiverem sua palavra. O mesmo pensamento era amplamente difundido na gentilidade antiga.

Nossos Selvagens, é verdade, não tinham culto regular e ordiná-rio da divindade, que eles só conheciam de uma maneira confusa; assim, não tinham nem templos, nem padres, nem preces, nem ritos

Page 88: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

públicos. No entanto, eles estavam longe de ser ateus, ou irreligio-sos, pois eles rendiam certas homenagens a gênios aos quais eles atribuíam tudo o que lhes acontecia de bom. Não apenas os invoca-vam freqüentemente, como o dissemos para o Sol, como também lhes dirigiam agradecimentos públicos por suas vitórias, e os viam como a causa de seus êxitos, e dos felizes efeitos dos remédios em suas doenças. Eles acreditavam até mesmo que só podiam contar com esses meios supersticiosos, aos quais recorriam antes de ter recebido a luz da fé.18

É uma grande página de etnografia religiosa e de comparação antropológica: o mundo dos huronianos interage seja com a cul-tura moderna, seja com a civilização antiga, e a prática missioná-ria constrói uma verdadeira história das religiões como pressuposto da evangelização. Mais do que desconstruí-la, é preciso entender se e como ela funciona no plano intercultural e, sobretudo, o que ela comunica como código transversal de conhecimento. Esse conceito universalizado de religião, base necessária para receber a luz da fé, não é outra coisa senão o resultado de um processo antropológico (os selvagens) e histórico (as civilizações do passa-do) de generalização do cristianismo; essa religião não é apenas o sujeito forte da prática missionária, mas sobretudo o objeto da elaboração intercultural das categorias que essa prática usa, inclusive a da "superstição". Se essas funcionam historicamente, sua força deriva mais da longa prática de compatibilidade das diferenças acumulada nos séculos, do que de um maior poder de sentido como religião revelada.

Os missionários estão certamente convencidos do fundamen-to transcendente da verdade religiosa que ele procuram difundir, mas a eficácia antropológica da comunicação depende do nível de generalização do qual a "civilização cristã" já dispõe, graças à sua aventura diacrônica na historicidade das diferenças. Quanto maior for a experiência histórica do confronto com as diferenças e da valorização destas num sistema geral de compatibilidade, mais efi-

D E U S NA A L D E I A 8 5

Page 89: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

cazes serão os instrumentos teóricos e operacionais de inclusão das diferenças numa perspectiva unitária. É isso que acontece também no encontro com os huronianos, e o texto é explícito nesse sentido, fornecendo implicitamente os elementos da estru-tura a reconstituir. Com efeito, não é possível esconder a verdade de um povo sem culto à divindade, sem sacerdotes, templos e rituais religiosos e, portanto, sem uma fé análoga à monoteísta cris-tã ou à politeísta pagã. Eis que, imediatamente, de uma verdade de fato "ortodoxa" se passa a uma possibilidade de direito "ortoprá-tica", capaz de garantir a eficácia da predicação e a dignidade humana, fundamentada teologicamente, dos "selvagens": a fé ausen-te generaliza-se em crenças presentes, lançando mão do patrimô-nio cultural, simbólico e social da "civilização cristã".

Não cabe aqui analisar cada crença particular e evidenciar sua interpretação cristã, mas fica evidente a necessidade de fundar a estrutura geral das crenças na natureza e nas necessidades "morais" da sociedade, até chegar ao "Deus desconhecido" de Paulo ao Areópago de Atenas.19 Aqui as "crenças presentes" não substituem genericamente uma "fé ausente", mas são formas de uma "fé" tão latente e potencial quanto necessária e ainda não anunciada. Trata-se, em suma, de uma generalização filosófica e conceituai fundamentada na exigência natural, que é ao mesmo tempo moral e normativa, da vida social. A própria estrutura da crença legitima o pertencimento "de direito" à comunidade humana: é isso que fazem os missionários, dando uma função "civil" às "crenças" e, portanto, uma perspectiva civilizadora à evangelização.

E esta uma característica das missões católicas, desde as ori-gens: as "crenças" possibilitam a conversão, portanto os "selva-gens" são "homens verdadeiros" e, como tais, "embora se mostrem fora da fé cristã, podem livremente ser donos e gozar de sua liber-dade e do domínio de seus bens, e não devem ser escravizados".20

A experiência missionária mostra que a exigência de regras sociais remete a uma necessidade ética e a um "crer".

Page 90: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Bressani sabe perfeitamente que as estruturas de sentido podem ser imanentes, mas estas, como as crenças, podem ser valorizadas com uma sábia "redução" à transcendência de um Princípio Único, que garante uma compatibilidade maior:

Eles reconhecem sete outros gênios que habitam os ares, e sopram os sete ventos que reinam nestas paragens. "O que perderiam se, por uma sábia redução, não adorassem apenas um? Quid perderent, si unum colerent prudentiore compêndio?" São as palavras de santo Agostinho.21

Mais do que pelos mitos, os missionários se interessam pelos ritos da vida cotidiana, porque neles encontram um ethos em ação, mais ou menos ligado a um culto. E um realismo que dá à narra-tiva missionária um valor de documento intercultural para além de qualquer interesse literário. Graças à descrição-interpretação dos rituais, entramos na vida dos huronianos e podemos compreender seu sentido da vida, da morte e da doença.22 Obviamente, o que impressiona mais os missionários é a concepção indígena da morte e sua relação ritual com os mortos:

Eles vão freqüentemente, sobretudo as mulheres, chorar perto dos túmulos de seus mortos. Esses túmulos são feitos de terra e normal-mente colocados em um mesmo campo. Quando a morte foi natu-ral, cada cadáver é colocado separadamente em uma caixa formada de grossas tábuas, e elevada sobre quatro postes. Ele permanece lá até a festa chamada festa dos mortos, que se celebra a cada oito ou dez anos. Nessa época, todos os habitantes de uma mesma aldeia descem seus caixões, retiram com cuidado a carne dos ossos de seus mortos, e os envolvem em peles preciosas; depois convoca-se toda a nação, e todas essas ossadas reunidas são enterradas solenemente e para sempre em uma grande fossa ricamente recoberta de peles. Enterram-se ao mesmo tempo diferentes oferendas como chaleiras e outras coisas que se supõe as almas precisarão na outra vida [...].

Page 91: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Eles enterram com o morto o que ele tinha de mais precioso duran-te sua vida, e como eles preferem os mortos aos vivos, os túmulos às cabanas, eles não hesitam, no caso de um incêndio de uma aldeia, em enfrentar perdas irreparáveis para salvar os ossos de seus mortos, antes de apagar as chamas que consomem suas casas.

Nossos neófitos, desejosos de conservar o hábito de enterrar com seus mortos o que lhes era mais caro, nos davam como motivo sua própria dor, e nos asseguravam que isso não era porque acreditassem esses objetos necessários ou mesmo úteis às almas separadas de seus corpos, mas para subtrair ao olhar o que na casa lembrava fre-qüentemente com mais vivacidade a memória do defunto.23

Bressani interpreta obviamente em termos cristãos esses rituais, como também atribui aos huronianos a crença na imortali-dade da alma e numa dupla morada no Além. Certamente, esses "Campos Elíseos" têm muito pouco de cristão, assim como a gran-de "festa dos mortos" e o duplo enterro, hoje bem conhecidos pela antropologia, não pressupõem necessariamente uma esperança de salvação. A explicação dos neófitos mostra claramente que se trata de um "culto dos antepassados", vivido socialmente na dramática repetição do ritual coletivo, quase para ligar para sempre a comu-nidade dos vivos à dos mortos. Os ossos são tratados com todos os cuidados porque constituem o esqueleto simbólico do sistema social, assim como os antepassados são a referência ritual neces-sária para a descendência e para as regras matrimoniais. Não há identidade coletiva e individual sem os antepassados e é impossí-vel viver na sociedade sem um ritual de pacificação coletiva com os mortos e com a morte. Não é à toa que Bressani esclarece que a festa exclui os mortos "miseravelmente na guerra ou em algum naufrágio": eles não pertencem à comunidade da outra vida, por-que os vivos não querem relações com eles.

Essa representação coletiva da morte, construída ritualmente à imagem da estrutura social, é antes um duplo simbólico da vida e da cultura do que uma esperança de salvação, mas está clara

Page 92: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

toda a analogia, jogada a partir da idéia de necessidade dessa fun-ção. Se uma cultura consegue se dar uma explicação para a morte e submetê-la simbolicamente às exigências da vida, ela certamen-te sobrevive à história graças a princípios que transcendem a vida de um indivíduo ou de uma geração. Como poderia o missionário deixar de pensar na imortalidade cristã? Como poderia deixar de considerar tais princípios como "religiosos"? E, sobretudo, como poderia deixar de partir daí para anunciar a mensagem de salvação eterna? E isso o que fazem os missionários entre os huronianos: todos devem ter a certeza de que serão como e mais do que os antepassados, à condição de se comportar da maneira certa nesta vida e louvando o verdadeiro Deus que salva da morte. Basta ler as Relações24 para ver que e estratégia funciona, e não à toa. A morte marca a crise definitiva do sentido, além do fim natural da vida: ao resolver a primeira, pode-se resgatar também o segundo. Até para a consciência laica de hoje, quem consegue fazer isso vive sua experiência num horizonte de alguma maneira "religioso", mesmo se não necessariamente cristão. Essa convicção do senso comum contemporâneo nos ajuda a entender o processo que estamos analisando, porque é um produto deste, na longa duração; a trans-cendência como princípio religioso do sentido pode generalizar-se em ethos, porque ambos mostram sua força de resgate na crise radical que qualquer cultura deve resolver simbolicamente: o limi-te entre a vida e a morte, entre a exigência do sentido e a angústia do não-sentido.

Os mesmos princípios governam a crise individual e social da doença, que o ritual é chamado a resolver. A análise de Bressani é uma breve psicopatologia da vida cotidiana entre os huronianos:

Os Huronianos pagãos designam três espécies de doenças: umas que eles vêem como naturais, provenientes de causas puramente físicas; outras que eles atribuem à alma do doente, que desejava ardentemente algo; as terceiras, enfim, que eles crêem causadas pelos adivinhos. As primeiras se curam, eles dizem, por meios naturais, as

Page 93: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

segundas controlando os desejos da alma, as terceiras extraindo do corpo do doente a sorte que era causa de seu mal.

E preciso notar que os Huronianos acreditavam que nossas almas, além dos desejos livres ou, ao menos, voluntários, tinham outros naturais e escondidos, formados nela, não pela via do conhe-cimento, mas por um certo transporte cegò da alma em direção de um objeto em harmonia com ela. Os filósofos chamam estes últimos de desejos inatos, para distingui-los dos primeiros que chamamos de desejos formais.

Segundo os Selvagens, a primeira espécie de desejos se manifes-ta nos sonhos, linguagem própria da alma. Se realizarmos esses sonhos, a alma, dizem eles, fica satisfeita; mas, se não os escutamos, ela se indigna, e longe de dar ao corpo alegria e felicidade, ela se revolta contra ele, o sucumbe de enfermidades, causando até mesmo sua morte.

Quando eles sonhavam com algum objeto longínquo, acredita-vam que a alma, não a alma sensitiva que não pode abandonar o corpo, mas a alma razoável cuja ação é independente dele, deixava o corpo para transportar-se para perto desse objeto. Isto nos faz com-preender por que eles têm tanto cuidado em notar seus sonhos, a fim de descobrir os desejos da alma, e de contentá-los. Eles lhe obede-cem até mesmo a preço de seu sangue, e quando o sonho assim o exi-gia, eles até mutilavam seus membros com horríveis dores [...]

Eles se davam conta, pois, que havia homens mais esclarecidos do que outros, e capazes de ler no interior mais secreto da alma seus desejos naturais e os mais escondidos. Eles chamam esse tipo de homem de Arendiogouanne. Eram normalmente seus médicos, ou, melhor, seus curandeiros, que, chamados junto a algum doente, não exerciam de outro modo sua arte a não ser pela sua ciência supers-ticiosa, adivinhando os desejos íntimos da alma que atormentavam, por despeito, o corpo do doente. Eles atribuíam essa luz ou essa vir-tude a um Ofei, isto é, um gênio poderoso que habitava neles desde o momento em que eles o haviam percebido no sonho, ou depois de acordar, sob a figura de uma águia, de um corvo ou de um outro

Page 94: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

animal semelhante. Para adivinhar esses desejos escondidos, às vezes olhavam uma bacia cheia de água, às vezes simulavam estar possuí-dos de fúria como antigamente as síbilas, às vezes se escondiam em algum lugar escuro, onde descobriam, diziam eles, as imagens dos desejos da alma aflita. Eles os davam a conhecer para que os pudes-sem realizar; mas o remédio do sonho, como o do adivinho, era no mais das vezes vão e inútil, ainda que todos se industriassem sem economizar despesas, nem fatigas, para conseguir o que, de acordo com o adivinho, era o desejo do doente".25

Só quem conhece bem a linguagem da alma e consegue pro-blematizar seu sentido pode escrever páginas etnográficas tão eficazes. Antes do que um imaginário funcional à conversão dos selvagens, são necessários uma experiência das relações, uma par-ticipação existencial e um conhecimento prático das dores do corpo e dos sofrimentos do espírito. E possível fazer uma análise antropológica "desencantada" do documento: o mal físico é distin-to do psicológico e do social, ressaltando, na situação-limite da doença, a necessidade cultural de definir simbolicamente o "sen-tido" do corpo, do indivíduo-pessoa e da sociedade. Obviamente, na cultura holística dos huronianos os três níveis são entrelaçados: o corpo remete à pessoa (não necessariamente à alma!) e esta últi-ma à sociedade, que, como vimos no caso da "festa dos mortos", gerencia simbolicamente até os corpos sem vida. Conseqüente-mente, todo remédio natural é também social e simbólico, como bem sabem todos os operadores rituais das curas; se a cura não funciona é porque não consegue restabelecer o justo equilíbrio entre corpo, indivíduo-pessoa e grupo social. Os adivinhos descri-tos trabalham o corpo como "médicos", mas, sobretudo, a pessoa e o grupo, de quem conhecem as relações sociais e as elaborações simbólicas. Eles conseguem interpretar e "adivinhar" os desejos da alma porque reconhecem as exigências espirituais da relação entre a pessoa doente e o grupo; assim, eles conseguem encontrar os remédios que não têm nada de "natural", porque a matéria não

Page 95: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

está separada do sonho e da visão, assim como o corpo não é sepa-rável da personalidade e das linguagens coletivas que a perpassam na vida cotidiana e no sonho. Os adivinhos, como Bressani bem percebe, são curadores do "espírito" individual e social; nesse nível não se pode errar e não servem remédios exclusivamente naturais, desprovidos de eficácia simbólica. O que não é cientifi-camente verdade para o missionário é simbolicamente verdade para os huronianos:

O fracasso desses remédios não impedia essa idéia supersticiosa de enraizar-se de tal maneira em toda a região que, depois de muitos anos, pudemos talvez apenas enfraquecê-la. Esse erro provinha de um falso princípio, sempre tido entre eles como uma verdade incon-testável, que todos os remédios produziam sempre infalivelmente seu efeito. Quando o remédio natural não tinha resultado favorável, era preciso um remédio fora da natureza, e supersticioso.26

A divergência não concerne diretamente à eficácia dos pode-res divinatórios, mas remete à diferença radical entre culturas: a "religiosa" do missionário interpreta a outra e constrói um código transcultural novo, que favorece a comunicação não apenas "reli-giosa". A doença é interpretada pela distinção entre mal físico e mal moral: este último remete às dinâmicas sociais do costume e dos hábitos, bem como às regras que os governam. A sociedade é bem compreendida em nível antropológico, mas mediante o modelo vertical e hierárquico inteiramente cristão: na base está a nature-za (o corpo e suas dores inevitáveis), no plano intermediário a alma e suas exigências existenciais (a pessoa e seus desejos), no plano superior o social e suas necessidades de princípios de sentido (o mal social, e seus falsos remédios supersticiosos). Obviamente, tam-bém para o missionário pessoa e grupo social são interdependen-tes, assim como o são seus sofrimentos "morais"; aliás, estes estão longe da doença física pelo menos tanto quanto a sobrenatureza da natureza. Até os selvagens, para ele, parecem ter consciência disso,

Page 96: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

a ponto de inventar uma "linguagem da alma" e rituais de cura que nada têm dos remédios naturais. E mais: esses rituais da alma e das almas apresentam um excesso de confiança nos remédios simbólicos, que remetem a um "crer" que não pode ser senão supersticioso.

O problema antropológico é o da eficácia simbólica, ou seja, o poder do sentido que perpassa o social e o individual e por isso tem efeitos sobre o corpo; não por acaso, este último torna-se o código de comunicação entre os dois sistemas culturais. O missionário utiliza-se dele para compreender a alteridade, traduzi-la, interpre-tá-la e construir, a partir daí, a comunicação "ortoprática". O uso generalizado dos termos — basta notar aqui a insistência no verbo "crer" — ou dos conceitos implícitos — como a passagem quase que imperceptível da concepção de "moral" que denota os mores (costumes) àquela que conota uma ética fundada sobre princípios transcendentes — remete a uma generalização substancial: aque-la da religião cristã que inclui até a superstição para superá-la num sistema geral de compatibilidade de sentido. .

E evidente que no nível antropológico a solução paradigmáti-ca de todo mal é a eficácia simbólica implícita no "sentido" com-partilhado pelo grupo social e acionado simbolicamente pelo ope-rador ritual. Pode-se também dizer que essa espécie de ideologia comum que caracteriza a cultura huroniana é um sistema de "crenças" (no sentido de "convicções compartilhadas") não-religio-sas e completamente imanentes, graças ao qual o ritual impõe a todos regras de comportamento na saúde e na doença, na boa e na má sorte. Para o missionário, "crenças" e "rituais" estão na base da superstição dos huronianos, isto é, constituem um excesso com respeito à fé cristã e aos sacramentos católicos, cuja eficácia tran-substancial é obra da graça de Deus.27 Por que atribuir eficácia simbólica aos princípios da vida social é considerado pelo missio-nário como um "excesso de religião"? Por que condenar um "exces-so de religião"? Onde se esconde o excesso numa cultura sem transcendência? Qual mediação pode evitar os excessos? Mais

Page 97: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

uma vez, a história comparativa, que Bressani conhece bem, pode nos ajudar a compreender seu texto.

Historicamente, o termo superstitio remete a um excesso, no sentido de supérfluo e inútil, com toda sua carga de irracionalida-de, e também se opõe à maneira correta de considerar e vivenciar a religio, que é sempre uma escolha diligente e ponderada. A refe-rência clássica é a famosa passagem de Cícero no De Natura Deorum28 que alude também a um significado mais amplo, a saber, tudo o que indica fanatismo, crença vã, poder-se-ia dizer, uma tão falsa quanto inútil religião, inclusive a religião dos outros. Bressani não pode usar apenas essa concepção clássica, pois nela o "senti-do" da religião ainda é demasiado imanente, e portanto os adivi-nhos seriam apenas uns embusteiros, facilmente desmascaráveis pelo senso comum, e não "falsos profetas".29 A superstitio dos huro-nianos não se opõe à religio dos pagãos, aliás, elas têm muito em comum, seja no nível do mito, seja no do ritual; ambas, como mos-tram as referências clássicas de Bressani, remetem a um excesso com respeito à "verdadeira religião como verdadeiro culto do ver-dadeiro Deus", conforme a definição de santo Agostinho. Para o cristianismo como vera religio, são "superstições" tanto as fábulas dos antigos quanto os mitos dos huronianos, tanto os deuses ima-nentes do politeísmo quanto os espíritos da floresta, tanto os sacri-fícios das grandes civilizações quanto os rituais cotidianos dos sel-vagens. Tudo isso constitui, com efeito, um excesso insuportável, o da "idolatria". A definição teológica e a condenação moral desta última estão diretamente ligadas à hierarquia de sentido típica de qualquer revolução monoteísta; se a relação homens-Deus único preside a todas as relações possíveis e todos os sentidos pensáveis, qualquer relação que tome seu lugar constitui, de fato, um "ídolo". Com efeito, cultuar um ídolo é considerar algo ou alguém como divindade, rompendo a ordem hierárquica do ritual e do sentido, e é, portanto, um "excesso" imperdoável, que torna imanente a transcendência de Deus, natural o sobrenatural, histórico o pró-prio Princípio da História. Trata-se, em suma, de um "excesso de

Page 98: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

fé" nas relações entre homens e natureza e dos homens entre eles. Nesse sentido, o Livro da Sabedoria é um verdadeiro processo intelectual e moral contra esta imaginação hiper-religiosa:

Porque o culto de inomináveis ídolos é o começo, a causa e o fim de todo o mal.

(Seus adeptos) incitam o prazer até a loucura, ou fazem vaticí-nios falsos, ou vivem na injustiça, ou, sem escrúpulo, juram falso, porque, confiando em ídolos inanimados, esperam não ser punidos de sua má-fé.

Contudo, o castigo os atingirá por duplo motivo: porque eles des-conheceram a Deus, afeiçoando-se aos ídolos, e porque são culpa-dos, por desprezo à santidade da religião, de ter feito juramentos enganadores. (Sabedoria, 14, 27-30)

É a condenação radical de qualquer tipo de politeísmo das civilizações antigas,30 difícil de ser aplicada às diversas contingên-cias "supersticiosas" da vida dos selvagens. Até o texto sagrado pre-cisa de traduções adequadas, ou seja, capazes de garantir a gene-ralização de seus princípios e perspectivas. A experiência missionária do Novo Mundo já providencia a generalização do conceito de "idolatria", que encontramos formalizado num texto de outro missionário jesuíta: José de Acosta.31

A idolatria, diz o Sábio, e por ele, o Espírito Santo, que é causa e princípio e fim de todos os males, e por isso o inimigo dos homens, multiplicou tantos gêneros e espécies de idolatria, que pensar contá-las uma por uma é coisa infinita. No entanto, reduzindo a idolatria a cabeças, há duas linhagens entre elas: uma está próxima das coi-sas naturais; outra está próxima das coisas imagináveis ou fabricadas pela invenção humana. A primeira delas se divide em dois, porque, ou a coisa que se adora é geral, como o sol, a lua, o fogo, a terra, os elementos; ou é particular, como tal rio, fonte, árvore, monte, e

Page 99: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

quando não por sua espécie, senão em particular, são estas coisas adoradas; este gênero de idolatria se usou no Peru em grande exces-so, e se chama propriamente guaca. O segundo gênero de idolatria, que pertence à invenção ou ficção humana, tem também outras diferenças: uma que consiste em pura arte e invenção humana, como adorar ídolos ou estátuas de pau, ou de pedra, ou de ouro, como de Mercúrio ou Palas que, fora daquela pintura ou escultura, não é nada, nem foi nada. Outra diferença é do que realmente foi e é algo, mas não o que finge o idolatra que o adora, como os mortos ou coisas suas, que por vaidade e lisonja adoram os homens. De sorte que, ao todo contamos quatro modos de idolatria que usam os infiéis, e de todas será conveniente dizer algo.

Aqui cabem duas observações. A primeira é histórica: a práti-ca missionária da Idade Moderna deve adequar a estrutura teoló-gica do conceito de idolatria às novas exigências das culturas do Novo Mundo, com seus pormenores naturalísticos e suas múlti-plas possibilidades simbólicas. A segunda é teórica e estrutural: a generalização de Acosta permite interpretar qualquer horizonte de sentido imanente e qualquer prática ritual em termos de idolatria, transformando os sistemas de significação em código "religioso" de conhecimento e ação. A hierarquia de sentido da religião cristã torna-se paradigma: a religio é a verdade da ação e do pensamento e, portanto, a ordem moral do mundo e da história; todo o resto é desvio, excesso de fé, crença e prática supersticiosa, "a causa e o fim de todo o mal".

Bressani e os outros põem na prática essa generalização reli-giosa; se não é possível viver sem um horizonte homogêneo de sig-nificados culturais, não se pode viver sem alguma forma de religio-sidade e as superstições dos "selvagens" encontram-se incluídas na regra universal mediante a idéia de excesso e de erro. Eles são "idolatras" assim como são "selvagens": sua condição remete a uma história "natural e moral" que pode e deve ser mudada. Afinal, a superstição é uma floresta de sentido que pode ser absorvida na

Page 100: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

"Cidade de Deus", uma sauvagerie do imaginário que pode ser 'civilizada" pela religião. As "reduções" são certamente a institu-cionalização de um projeto de conversão cristã, mas antes disso são o laboratório "ortoprático" de grande reconversão do sentido que se utiliza principalmente da ação ritual.

Podemos compreender as razões interculturais e as motiva-ções simbólicas disso. Em primeiro lugar é preciso dizer que o rito é uma grande máquina de inclusão social e de compatibilidade simbólica, incluindo as diferenças e transformando-as em possibi-lidades de exercício prático. Na "ritologia" de um sistema sociocul-tural são visíveis seja a articulação das relações sociais, seja a fisio-logia das transformações destes, para enfrentar as exigências contingentes do imprevisto e do imprevisível. Cada diferença da natureza e cada crise da cultura são resolvidas pelo ritual median-te um novo sistema de regras práticas que inserem o evento na estrutura, governando simbolicamente seu sentido e anulando sua ameaça diferencial. Dessa maneira, a estrutura é obrigada a gene-ralizar mais e melhor suas regras práticas, até incluir a ameaça potencial das diferenças.

Em segundo lugar, é impossível distinguir os diferentes níveis de comunicação no interior da "ortoprática" ritual: o social do sim-bólico, o civil do religioso, a ação dramática da representação simbó-lica, a força institucionalizante do pensamento da energia imagina-tiva da ação eficaz: tudo acontece, se cumpre e se transforma a um só tempo. O ritual é por sua natureza estrutural e estruturante, trans-significação do sentido e transformação radical da vida, com-patibilidade sintética das dificuldades materiais da vida e das pro-duções simbólicas inventadas para superá-las. Bressani e muitos outros souberam construir uma verdadeira arte barroca do ritual e apenas assim conseguiram resolver os problemas de ortodoxia teo-lógica e construir o código simbólico como primeira verdadeira lin-guagem intercultural da modernidade.

Com efeito, só no ritual os missionários podem "reconduzir" a superstição para a religião e o fazem na vida cotidiana, quase em con-

Page 101: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

corrência com os operadores indígenas. O grande envolvimento dos missionários no campo da saúde não é filantropia nem caridade cris-tã, mas um grande instrumento de conversão de sentido. Ser mais eficaz do que os operadores rituais indígenas não significava apenas denunciar o embuste supersticioso destes mas, antes, incluir um sis-tema de sentido em outro, mais eficaz e "verdadeiro": o sistema reli-gioso. E esta a razão pela qual, freqüentemente, na prática os missio-nários desempenham funções análogas e são identificados pelos índios como xamãs mais poderosos ou adivinhos mais experientes. Todos os meios são bons para a glória de Deus, todas as práticas são morais, desde que funcionais aos princípios religiosos de sentido: Bressani está convencido disso e relata os efeitos sobre os índios:

Tínhamos predito o eclipse do 30 de janeiro de 1646, que começou aqui uma hora e quinze antes da meia-noite. Nós cristãos estávamos de pé à espera; assim que ele apareceu, um dos mais fervorosos, con-sultando apenas o seu zelo, correu para acordar alguns Selvagens: "Venham ver", lhes disse, "como nossos missionários são dignos de fé; não hesitem mais agora em crer nas Verdades que eles pregam. Mas um bom velho, cristão e fervoroso, sem mesmo conhecer a resposta do rei S. Luis sobre o milagre do Santo Sacramento, disse com muita sabedoria: "aqueles que têm dúvidas sobre a verdade da fé, que vão ver o eclipse, eles não terão, no entanto, outra autoridade senão a do seus olhos; nossa fé repousa sobre as melhores provas".33

Os missionários conseguem ser até mais eficientes do que os operadores rituais: conseguem a chuva com uma novena para são José e santo Inácio, saram as doenças e, sobretudo:

Ainda que estivéssemos quase continuamente ao lado dos doentes mais repugnantes e perigosos, e que eles morressem entre nossas mãos, nenhum de nós se contagiou. Eles concluíram que nós éra-mos como espíritos, e acreditavam que havíamos feito aliança com a morte, e um pacto com o inferno34

Page 102: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

A gestão do sentido da vida não convence existencialmente se não é vivida integralmente e na prática. Paul Ragueneau assim descreve a eficácia concreta da missão de Bressani:

O Padre François-Joseph Bressany, que esperávamos há quatro anos, chegou aqui entre os Hurons no começo do último outono. Se não tivesse sido capturado pelos Iroqueses em sua primeira viagem, ele já saberia a língua dos Huronianos e seria um obreiro formado. Mas é preciso confessar que as providências de Deus são amáveis. As crueldades a que o submeteram os Iroqueses e a alguns Huronianos que escaparam, com as mãos mutiladas, dedos cortados, o tornaram melhor predicador que nós, desde o momento de sua chegada, e ser-viu mais do que todas as nossas línguas para fazer conceber a nos-sos Huronianos cristãos as verdades de nossa fé.

E preciso, diziam uns, que Deus seja bem amável e mereça ver-dadeiramente ser o único a ser obedecido já que a vista de mil mor-tes e suplícios mil vezes mais terríveis que a morte não possa fazer parar os que vêm anunciar sua palavra. Se não houvesse um paraí-so, diziam outros, seria possível encontrar homens que atravessam os fogos e as chamas dos Iroqueses, para retiramos do Inferno e nos levar com eles para o céu?35

As dificuldades da conversão são assim superadas pratica-mente pelos missionários: eles utilizam-se de um tipo de experiên-cia análoga à dos "selvagens" para incluir as duas na única Experiência em que todas encontram seu sentido. Eles não "imi-tam" os ritos supersticiosos, mas constroem um sistema de comu-nicação e de ação capaz de compreender as diferenças e valorizar seu espírito, relacionando a hierarquia do sentido cristão à vida dos huronianos, e esta última à dos outros homens. Não é apenas uma estratégia colonial, mas, sem dúvida, um grande projeto de conver-são religiosa que é, ao mesmo tempo, um projeto de inclusão de fato e de direito numa comunidade humana ampliada e num sis-tema de sentido que, mediante a prática ritual, permite repensar

Page 103: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

as diferenças e abrir novas perspectivas para a história das relações entre as civilizações.

Este é apenas um dos muitos paradoxos históricos da supers-tição: signo distintivo da diferença e da discriminação, não apenas religiosa, ele se torna instrumento de resgate da presença indíge-na numa história mais geral, que ainda precisa ser construída e narrada corretamente. Para entrar nessa história, porém, a supers-tição teve de mudar sua natureza: de uma elaboração social e sim-bólica de um sistema imanente e auto-suficiente, ela tornou-se "objetivação" de uma outra civilização que a incluiu na semântica hierárquica e universalizante da religião monoteísta.

Como todos os excessos de sentido, a superstição não se dei-xou "extirpar" facilmente, mas obrigou a religião a ampliar seu campo de ação até os limites do sentido da vida, da doença e da morte, no interior dos quais as duas encontraram um entendimen-to. Os missionários, de fato, acionaram um processo generalizador de compatibilidade das diferenças que, no início, dominaram de uma posição de força e, em seguida, com muitas dificuldades, mas que, na longa duração, mudou sua direção histórica, sua função cultural e sua perspectiva de sentido.

Tudo começou com a pretensão da religião de se impor como sistema de sentido exclusivo e universal, o que permitiu os pri-meiros processos aculturativos; sucessivamente, esse código intercultural encontrou outros códigos de expressão, tanto univer-sais quanto etnocêntricos — entre eles, a antropo-logia como ciência do sentido dos homens —, até sua crise radical que coin-cide com o fim da modernidade ocidental. Hoje, sabemos que a pretensa universalidade da religião não era outra coisa senão uma generalização de sentido na qual a "superstição" teve um papel histórico e intercultural; paradoxalmente, ela entrou no debate filosófico moderno e ainda condiciona a pesquisa etnológica e antropológica.

A história das relações entre civilizações começa talvez a mostrar o paradoxo teórico e prático mais evidente: se as construções indíge-

Page 104: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

nas resistiram por tanto tempo ao impacto com civilizações mais for-tes, isso significa que a "superstição" era e é um excesso de sentido inseparável do sistema social. Bressani e os outros talvez intuíram essas implicações sociais e históricas, mas, não aceitando seus pres-supostos, fizeram dela um excesso religioso e, sem perceber, condu-ziram a própria religião a um excesso de sentido.

P A R A A L É M DA M O D E R N I D A D E : M U I T O S

P R O B L E M A S E A L G U M A S P E R S P E C T I V A S

A história das relações entre as culturas é algo mais complexo do que uma variante da "narrativa" pós-moderna, se até mesmo a força transcendente da religião encontrou resistência cultural por parte de homens "primitivos" e "sem história". É antes um novo percurso de pesquisa que coloca problemas e pode, no máximo, indicar algumas perspectivas.

Um primeiro problema diz respeito à nossa cultura que sai da modernidade: os objetos intelectuais de nossas pesquisas não são estruturas universais de um espírito humano que estabelece seus conteúdos homogêneos e suas formas diferenciadas, mas apenas o produto histórico das relações entre civilizações que inventaram códigos específicos e uma linguagem geral capaz de regular sua "ação comunicativa". Continuar acreditando em sua universalidade é uma superstição inútil e nociva, que deriva da presunção etno-cêntrica e da política colonial da modernidade: inútil porque não nos ajuda a compreender a complexidade do passado, nociva por-que nos impede pensar a diferença do futuro e o futuro da diferen-ça. A repetitividade do presente fecha qualquer história e qualquer antropologia, assim como a homologação da narrativa reduz a com-plexidade do sentido e suas estratégias "ortopráticas" a mera narra-tologia. Até que ponto nossas categorias históricas e antropológicas estão ainda amarradas ao universalismo moderno? Não é esta uma forma de colonialismo simbólico? Considerar as culturas, como

Page 105: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

"formas de vida", apenas construções arbitrárias é condená-las de fato à arbitrariedade do sentido, à imobilidade histórica e à impos-sibilidade de comunicação simbólica. E se essa universalidade fosse o produto histórico de uma generalização nascida das exigên-cias de comunicação entre formas histórico-sociais de invenção cultural? Antes do que em universalismo, não seria melhor falar em pluralismo de processos de generalização? Não seria essa uma es-tratégia útil para romper os esquemas e recolocar em ação as novas formas pluriculturais do sentido e da ação social?

Não é possível enfrentar aqui essas questões, mas pelo menos é necessário refletir historicamente sobre os paradoxos antropoló-gicos da modernidade. Se os missionários construíram a linguagem e os códigos de comunicação, mediante processos progressivos de generalização, a partir das relações práticas entre as culturas, pri-vilegiando evidentemente a "religião", é suficiente "desconstruir" filosoficamente seu fundamento para evitar sua incidência na pes-quisa? Não seria mais útil uma reconstituição histórico-compara-tiva, não apenas para evitar a deriva relativista, mas sobretudo para pôr problemas novos ou reformular corretamente aqueles que não estamos conseguindo resolver? O primeiro é justamente o da reli-gião e das religiões.

O primeiro (aparente) paradoxo é a "religião indígena", que se tornou até um campo específico da pesquisa antropológica. Pensan-do bem, ela não tem em si nenhuma consistência semântica, e muito menos histórica. Quem reivindica a primeira desconhece as relações missionárias que negam sua pertinência e sua prática; quem procura a segunda, para mostrar a universalidade objetiva ou a naturalidade subjetiva do código religioso, ignora que o universa-lismo é uma construção filosófica da modernidade, baseada justa-mente na generalização missionária. O paradoxo aumenta ao se descobrir que as primeiras relações e até a compatibilidade das diferenças tornam-se instrumentos da reflexão libertina e "ateísta" da filosofia moderna, pelo menos de Montaigne até os iluministas.

Page 106: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

As verdadeiras consistências semântica e histórica da "religião indígena", então, têm de ser procuradas na aventura pluricultural da modernidade. A primeira é, não por acaso, o produto "espúrio" das relações entre culturas, acionada por um exército de operado-res rituais e de passeurs culturais. A segunda pode ser observada ainda hoje nas culturas "híbridas" da modernidade que os missio-nários fundaram junto com outros operadores rituais, indígenas ou não: eles se chamam cristianismo latino-americano. Igreja Africana etc., cujo fôlego espiritual e cujas dinâmicas sociais continuam perturbando os puros de espírito do Ocidente europeu. É preciso reconhecer que eles são outra coisa que não o modo ocidental de viver a fé e a esperança, mas para compreender suas dinâmicas é necessário lançar mão da história comparada das relações entre culturas da modernidade.

O mesmo vale para o Ocidente: a fé cristã dos modernos é totalmente diferente da religião dos primeiros séculos do cristia-nismo. Atribuir causas e responsabilidades apenas ao duro con-fronto entre Reforma e Contra-Reforma é miopia historiográfica e etnocentrismo antropológico. Há um exemplo paradigmático: a modernidade nos acostumou lentamente a pensar na religião como no "sentido da vida e da morte", isto é, como último horizon-te da significação e do sentido; por isso, não podemos evitar nos definir "cristãos" mesmo não acreditando no Deus do Novo Testamento. Mas essa implícita "profissão de fé" atéia não é, tam-bém, um produto intercultural da modernidade? Não foi ela, de alguma forma, uma invenção missionária, em sua ânsia de conver-são e de compatibilidade religiosa? Não se trata, portanto, de uma religião "secularizada", e menos ainda de uma visão "laica" da reli-giosidade, mas de um produto das relações entre culturas do qual precisamos ainda fazer a história, antes de julgar sua densidade antropológica e seu valor cultural.

Sem a história das relações entre as culturas é fácil absolutizar e universalizar filosoficamente (e etnocentricamente) os produtos da modernidade, para depois desconstruí-los mediante os absolu-

Page 107: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

tismos éticos do multiculturalismo contemporâneo. Sem a pacien-te busca das generalizações de compatibilidade, é difícil reconstruir a gênese e o desenvolvimento pluriculturais da fé e da religiosida-de dos modernos, de suas angústias e de suas esperanças.

O que vale para a religião vale em medida maior para o siste-ma geral da civilização. Os missionários foram os primeiros a com-preender isso e a imprimir outro rumo à história das relações cul-turais: eles mudaram a direção e o sentido das culturas dos "selvagens", inventando novos códigos de comunicação e novas igualdades sociais, freqüentemente lutando contra outros ociden-tais que teriam preferido exacerbar as diferenças para transformá-las mais facilmente em discriminações sociais e políticas. As vezes, eles se deixaram tomar demasiado pelos interesses de sua própria missão, mas sempre procuraram interagir ortopraticamente na direção da mudança cultural. Com respeito a essa ação transfor-madora, qualquer categoria da antropologia classificatória e dife-rencialista do mundo contemporâneo parece inútil ou inadequada. Por exemplo, é inútil, e historicamente impossível, procurar a essência das culturas indígenas que antecede o encontro-choque com o Ocidente; é inadequado e cientificamente errado interro-gar-se ainda a respeito da estrutura autêntica do pensamento nati-vo. Essência e pensamento se escondem apenas nos interstícios da história pluricultural, que é feita de práticas, de rituais, de busca recíproca de compatibilidade simbólica e de convivência social. Não por acaso, hoje todas as culturas são perpassadas pela com-plexidade: num certo sentido, são todas "civis", se tornaram civili-zações para todos os efeitos, se esse termo remete ainda à valori-zação das relações, à prioridade das estruturas relacionais de complexidade, à inclusão das diferenças para valorar seu exercício num sistema de igualdade que o garante e o legitima. Talvez, até mesmo a "cultura indígena" é uma invenção da história etnocên-trica e da ciência social diferencialista e morfologicamente classi-ficatória: na história real da modernidade não existem identidades insuperáveis e confins intransponíveis, mas só uma imensa rede de

Page 108: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

relações entre civilizações. A razão dos civis é tão mais civil quan-to mais generalizada. Não é preciso inventar novas categorias para identificá-la, como "pensamento mestiço" ou "pensamento fraco" (eu prefiro o primeiro), basta a "razão civil", porque explica bem sejam seus mecanismos simbólicos, seja a subjetividade social que a aciona. Uma antropologia cientificamente correta deve recupe-rar essa consciência de civilidade, aceitando logo em seguida o último dom e o último desafio que a prática missionária deixou para a modernidade. Mencionei várias vezes que as missões se tor-nam verdadeiros processos de generalização de civilização: é só pensar nas "reduções", no valor do direito natural, na autonomia funcional dos rituais das relações sociais, no fato de que os jesuí-tas, na China, chegam a defender e utilizar os "ritos civis" na famo-sa controvérsia. Para os missionários, a generalização religiosa é impensável sem a generalização civil; basta inverter a hierarquia para estarmos já no interior da antropologia científica que tende a privilegiar a prioridade estrutural da civilização sobre a religião, sem excluir, porém, esta última dos códigos mais importantes da vida social. Sem poder fazer aqui a história dessa inversão de cate-gorias generalizantes, que não por acaso perpassa toda a moderni-dade, é preciso dizer que ela se baseia nas diferentes possibilida-des operacionais da generalização: a antropologia científica percebe que o código pluricultural da civilização tem um poder de generalização humana e histórica maior do que o código da reli-gião.

Se pensarmos no "choque de civilizações"36 do nosso mundo, alimentado por uma verdadeira ou presumida diferença radical entre as religiões, bem compreendemos que o desafio do presente e do futuro é entre sistemas diferentes de compatibilidade e na longa duração, como sempre aconteceu na modernidade, vencerá não o mais forte socialmente ou o mais "inspirado" simbolicamen-te, mas quem conseguir elaborar mais complexas compatibilidades simbólicas das diferenças e de inclusão social de "iguais". Um moti-vo a mais para voltar à história das missões como história emble-

Page 109: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

mática da estrutura pluricultural da modernidade; com efeito, ela, por um lado, apresenta a primeira etnografia da alteridade, cujo valor histórico transcende a dimensão "religiosa" e, por outro, constitui uma verdadeira arqueologia não apenas das ciências reli-giosas, mas de todas as ciências humanas que, mediante os encon-tros-choques entre diversas civilizações, continuam narrando o caminho dos homens e o "sentido" que eles se esforçam para dar às suas vidas. Os missionários não pretendiam fazer mais do que isso: de direito e de fato eles são os primeiros antropólogos da modernidade..

Um segundo problema diz respeito diretamente à alteridade e a nossa relação com esta. No texto de Bressani é evidente a resis-tência dos adivinhos e dos "falsos profetas", única oposição práti-ca que a cultura indígena pode organizar. Não se trata de tradicio-nalismo do sentido ou de sobrevivência de formas do imaginário, mas de modalidades históricas de ideação simbólica. Não por acaso, os missionários conseguem "reconvertê-las" ritualmente: apenas na prática de compatibilidade de diferenças típica do pro-cesso ritual os indígenas podem "compreender" o valor de verdade da mensagem cristã. Os jesuítas retraduzem tudo em termos de ortodoxia universal, mas o código de generalização nasce das con-tingências histórico-sociais das culturas em confronto e de suas resistências recíprocas. O ritual é um grande instrumento simbó-lico capaz de impor novas regras de comportamento e novos valo-res compartilhados, mas é também prática social e expressão de relações históricas. Ele põe em cena o imaginário cultural ou inter-cultural em ação, mas também as forças sociais e as contingências de crise que o tornam possível: a fenomenologia completa do rito remete à produção e à troca do simbólico, mas também às estru-turas produtivas e à economia política do simbolismo eficaz. Imaginário cultural e suas contingências de produção, resistência cultural e seus sujeitos, dinâmicas do sentido e relações sociais não são separáveis na análise porque constituem um sistema que produz ao mesmo tempo instituições "que pensam" e princípios de

Page 110: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

sentido institucionalizados. Os missionários compreenderam que projeto de evangelização

e projeto de civilização eram inseparáveis porque as civilizações não podem viver na perene esquizofrenia entre religião do sentido e reli-gião das instituições, entre simbólico e social, entre cultura do espí-rito e exigências da prática cotidiana, entre poética e política. Se o historiador das religiões não se ocupa apenas de seu objeto intelec-tual, mas é obrigado a fazê-lo interagir com a prática social, até mesmo ao preço de perder sua essência, quem pode hoje conservar um objeto intelectual íntegro e sem condicionamentos? Por que esse objeto tem de se tornar o paradigma de qualquer disciplina histórica que se ocupa das diferenças culturais? Fazer de qualquer política social e institucional um instrumento de oposição à liber-dade do imaginário não é, finalmente, uma maneira de celebrar sua impotência cultural? Existe um poder simbólico sem sujeitos, sem relações, sem condicionamentos?

Estamos hoje nas periferias de nossos objetos intelectuais, não pelo enésimo capricho de um poder externo que tem interes-se em negar sua universalidade, mas porque a história concreta das relações entre as culturas no mundo contemporâneo mostra a insuficiência simbólica e político-social de suas generalizações.

Não basta declarar o fracasso de nossa ilusão universalista, é preciso reencontrar uma perspectiva capaz de garantir uma com-patibilidade maior entre as diferenças. As fronteiras são, porém, ambíguas: lançam no centro a experiência da distância, permitem encontrar as diversidades radicais, mas suscitam a nostalgia do centro e a saudade de um fundamento. Elas são sempre uma pro-jeção centrípeta e, portanto, o lugar do sublime literário, do sim-bólico e do imaginário, afinal, de um "religioso" que se confunde com a religiosidade hermenêutica. Trata-se de construções cultu-rais da modernidade, das quais, porém, estamos "ortopraticamen-te" distantes, pois desapareceram os confins móveis da centralida-de ocidental e suas generalizações de sentido.

Para compreender o sentido profundo dessa transformação

Page 111: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

radical seria preciso talvez reanalisar as categorias antropológicas como generalizações históricas das relações entre as culturas e, sobretudo, repensar seus campos de ação como lugares da compa-tibilidade entre as diferenças. Uma história não pós-moderna é inseparável das novas estruturas sociais e dos diversos sujeitos de criação cultural; o pluriculturalismo das relações é antes um pres-suposto da pesquisa histórica "construtiva" do que o fim da pesqui-sa "desconstrutiva". A perspectiva é sempre um horizonte norma-tivo de igualdade, não a igualdade moral, garantida pelo "espírito universal" que não precisa de intervenções sociais e políticas, mas aquela construída na história, como princípio normativo e institu-cional de garantia de compatibilidade das diferenças e de sua riqueza de comunicação e como motor simbólico de uma diversa "cultura mestiça".

Como historiador das religiões, procuro ir além dos confins de meu objeto intelectual e de minhas competências disciplinares. Entendo muito menos, mas a experiência da diversidade me ajuda a formular de maneira mais histórica alguns problemas até agora sem resposta. Afinal, todos aqueles que estudam as diferenças são missionários sem missão divina: trabalham para construir códigos de comunicação entre os homens que possam fazê-los conviver em uma igualdade estrutural que seja o pressuposto da valorização de suas diferenças. Esta perspectiva não é nem religiosa nem laica, apenas antropológica em sentido amplo, ela trabalha com o senti-do porque tem por objeto a comunicação entre os homens. Um grande escritor contemporâneo, que se ocupa também de reli-giões, escreve no prólogo de seu livro:

Nesses meus livros de viagens, ou explorações culturais, o escritor-viajante retira-se cada vez mais, o povo do país entra em cena e eu volto a ser o que era no início: um organizador de narrativas. No século XIX usava-se a história inventada para fazer o que as outras formas literárias — poesia, ensaio — não conseguiam facilmente: relatar as notícias da sociedade em transformação, descrever os esta-

Page 112: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

dos de espírito. Parece estranho que o livro de viagens, originaria-mente tão distante de meus instintos, tenha me levado exatamente a isso: a busca de histórias. Mas falsificar ou forçar as narrativas trai-ria o significado de meu trabalho. As histórias já contêm suficientes nós intricados: são justamente estes que constituem o sentido do livro. O leitor não procure "conclusões".

O título do livro é Beyond belief: Islamic excursions among the converted. Uma espécie de "relação" sobre os paradoxos das supers-tições cruzadas de nosso tempo.

D nus NA A L D E I A 109

Page 113: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)
Page 114: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

3

P A R A U M A A N T R O P O L O G I A

H I S T Ó R I C A D A S M I S S Õ E S

Cristina Pompa

MICHEL DE CERTEAU (1975) ident i f ica o ato de fundação da etno-logia, como escrita da alteridade, na Histoire d'un voyage faict en la terre du Brésil, de Jean de Léry. Isso é bastante significativo, pois, embora o huguenote não possa ser definido um "missionário" stric-to sensu,l é exatamente no âmbito da chegada dos religiosos no Brasil que o autor situa o início do processo de construção do Outro como premissa histórica e conceituai da antropologia, ligan-do-a indissoluvelmente ao momento de implantação da prática missionária.

A análise proposta aqui procura levar adiante as sugestões de De Certeau, acompanhando a formação desse olhar e desse discur-so "antropológico", em que as noções de religião e de civilização jogaram um papel determinante. Ao percorrer esse caminho aca-bamos por descobrir que a esfera que definimos como "religião" se configura como o instrumento analítico preferencial para a com-preensão dos fatos e das representações dos fatos, já que ela se constituiu historicamente como um poderoso construtor de reali-dade. Desde a Conquista Espiritual do Novo Mundo até nossos dias, a linguagem na qual se expressa e é compreendida a identi-

Page 115: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

dade é fundamentalmente uma linguagem religiosa. Pensar histo-ricamente essa questão pode ajudar a repensar criticamente os conceitos antropológicos e a própria prática disciplinar.

De forma diferenciada, os estudos realizados nos últimos anos que enfocam as relações entre índios e missionários vêm privile-giando em suas abordagens o olhar histórico e a análise processual como instrumento metodológico. Com efeito, seja para identificar a dinâmica indígena da absorção, rejeição e reelaboração da men-sagem cristã, seja para recuperar a dinâmica interna ao próprio dis-curso missionário, nas diferentes facetas em que ele se apresenta, é preciso acompanhar, na longa ou na breve duração, a dinâmica do encontro-choque entre horizontes simbólicos diversos e a constru-ção de novos universos de significados "negociados".

O que estou pensando e chamando aqui de "antropologia histó-rica", porém, é algo mais do que um olhar antropológico sobre a his-tória indígena e das missões, na busca daquela que Robin Wright (1999) chama a "raiz distante", ou seja, a linha de continuidade na prática missionária que, porquanto sutil e quebradiça, dos jesuítas do século XVI chega até os nossos dias. Uma antropologia histórica das missões é antes de tudo, no meu entender, a tentativa de historicizar um objeto antropológico (o encontro de catequese) e, principalmen-te, certas categorias analíticas (como os conceitos de religião, de fé, de conversão, e até de mito e ritual) que são precisamente fruto da longa história desse encontro.

A atividade missionária, vista não apenas como prática social mas sobretudo como construção intelectual a partir da prática, constitui um ponto de partida privilegiado para a elaboração de um método histórico-crítico que pode enriquecer a leitura antropoló-gica do religioso a partir da situação oposta e especular: a leitura religiosa da cultura. A proposta metodológica é a de problematizar historicamente algumas categorias conceituais utilizadas pelas ciências sociais, a fim de verificar se e quanto certos conceitos escaparam da própria relativização antropológica e da crítica histó-rica, permanecendo devedores justamente do quadro conceituai

Page 116: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

elaborado pelos missionários, sem aparentemente passar pela rup-tura epistemológica do Iluminismo, quando a religião passou de código privilegiado de leitura do mundo para objeto de estudo científico.

Já Bernand e Gruzinski (1988) tentaram uma "arqueologia" da relação entre religião e ciência, procurando a relação histórica entre as categorias construídas na leitura missionária da alteridade indí-gena e os conceitos dos quais se valem ainda hoje as ciências sociais. Mas antes do que procurar "antecipações" de orientações antropológicas no pensamento missionário, como às vezes parecem fazer os autores citados, o que se pretende aqui é reconstituir a dinâmica de certos conceitos, criados em determinados contextos histórico-sociais (o "cristianismo" em oposição ao "paganismo" e, depois, o racionalismo católico como base da ordenação do mundo) e reelaborados em outros (o debate sobre a "natureza" dos homens americanos e sua "religião"). Entre recuos e avanços, esses concei-tos chegaram até as modernas ciências sociais, principalmente a antropologia religiosa, são reapropriados hoje pelo discurso missio-nário em sua abordagem culturalista e, finalmente, constituem uma linguagem de autodeterminação dos próprios povos indígenas.

F E N O M E N O L O G I A E H I S T Ó R I A DAS R E L I G I Õ E S

Entre as ciências da religião, a fenomenologia obteve com certeza o sucesso maior entre os antropólogos, graças à difusão da obra de Mircea Eliade (ou, melhor, como veremos, dos seus pressupostos epistemológicos). Isso é bastante curioso, já que a fenomenologia religiosa desvaloriza a relação entre religião e cultura, que é justa-mente o objeto da pesquisa antropológica. Com efeito, a fenome-nologia pressupõe a possibilidade de estudar a "religião" para além de qualquer contextualização cultural, já que os fatos culturais e históricos não seriam outra coisa senão manifestações contingen-tes ("hierofanias", segundo Eliade) de algo que é universal e eterno:

Page 117: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

o próprio sagrado, dado como ontologicamente existente (o que R. Otto chama tremendum fascinans), ou, de qualquer maneira, a aspiração universal do homem a algo transcendente que lhe é supe-rior. Da nostalgia dessa transcendência, que remete ao tempo das origens (a "nostalgia das origens" ou o "eterno retorno"), que carac-teriza o homem arcaico, não escaparia, para Eliade, o homem laico moderno, que seria também, portanto, o homo religiosus.

Essa aspiração universal, constatada no nível etnológico desde o início da antropologia como ciência, seja no campo, seja na lite-ratura, é na verdade um construto intelectual de uma ciência que acabou herdando categorias construídas pelo Ocidente cristão e utilizadas na conceptualização das alteridades étnicas com que ele vinha tendo contato, principalmente pela obra dos missionários, os primeiros a fazer uma "história comparada" das religiões. Vale lem-brar que os relatos missionários, bem como as elaborações concei-tuais feitas a partir deles (Las Casas, Acosta, Lafiteau,) foram as fontes principais da etnologia "de gabinete" em seu início.

A aporia de uma antropologia que não queira compartilhar da idéia da universalidade do homo religiosus é a impossibilidade de analisar "fatos" religiosos a não ser utilizando um conceito de reli-gião (e os conceitos anexos: mito, ritual, festa, magia etc.) que ultrapassa a realidade histórica específica em que supostamente se manifesta. A utilização desse conceito "externo" acaba levando a uma separação formal arbitrária do domínio do religioso, o que constitui um problema lógico para uma ciência que tem historica-mente por objeto sistemas culturais que supostamente nada têm a ver com as elaborações intelectuais do Ocidente e por esforço con-ceituai a eliminação de qualquer etnocentrismo.

A substituição do termo "religião" pelo de "cosmologia" tem, por um lado, a vantagem de evitar o uso de categorias etnocêntricas, mas, por outro, não elimina o problema. Com efeito, a própria pesquisa antropológica descobre que as cosmologias indígenas, hoje como no século XVI (ao qual pertencem sua fontes históricas), se constroem e se reconstroem historicamente no confronto com cosmologias

Page 118: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

alheias, in primis os sistemas simbólicos ocidentais, incorporando e reelaborando significativamente elementos destas. A única maneira de escapar da aporia é a consciência das origens históricas dos con-ceitos que utilizamos, não para apenas desconstruí-los como etno-cêntricos (e descobrir que o que a antropologia ou a ciência da reli-gião procura no outro é o "nós"), mas para adquirir uma consciência ampliada de seus limites heurísticos e epistemológicos.

O C O N C E I T O DE FÉ

O estudo "científico" das religiões sempre teve como objeto os pro-dutos da fé religiosa, mas não a própria idéia de fé, já que esta últi-ma (como sinônimo de crença ou de religião) é considerada "natu-ral" no homem, estranha ao devir, o que mostra como o fideísmo cristão pautou a cultura ocidental. Nesse sentido, basta pensar nos santos e nos mártires tidos como "confessores", ou seja, testemu-nhas de sua fé (do "confiteor"), ou nos nomes "confissões" dados às várias seitas protestantes. Ao recuperarmos as contingências históri-cas que realizaram o cristianismo como algo inseparável da "profis-são de fé" (ou "confissão"), a perspectiva de análise se inverte: não é a fé que identifica a religião, mas é a religião (cristã) que constrói, conceitualmente, à fé (Brelich, 1970; Sabbatucci, 1990).

O cristianismo se realiza como escolha a partir de uma alterna-tiva. Se no profetismo hebraico o reino de Deus é necessariamente político, é o reino de Israel, com o cristianismo o reino se universa-liza: é o Reino dos Céus, a vida eterna, aberta para todos os homens. A escolha é, então, entre acreditar ou não que Cristo é o Messias, e também acreditar ou não na salvação ultramundana. Antes do cristianismo a fé (fides) não tinha nada de sobrenatural, era a leal-dade ao pacto (foedus), qualidade civil e deusa, garante da ordem de Júpiter. A fides romana fundava a cidade dos homens, a fé cris-tã a Cidade de Deus; assim, a civitas romana cristianizou-se e uni-versalizou-se na civitas dei. Da mesma maneira, a noção romana de

Page 119: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

religio (de relegere, que indicava uma organização horizontal do sis-tema de comportamentos corretos diante da res publica) tornou-se a religio cristã (de religare, que remete a uma organização do cos-mos pautada na relação vertical homem-deus).

Para Paulo, "Fé é a certeza nas coisas esperadas" (Hb 11.1). Também Tomás distingue entre fé cristã e qualquer crença porque a cristã é "virtude", voltada "para a beatitude esperada". No desen-volvimento da escolástica, Duns Scoto fala na liberdade de acredi-tar ou não na vida eterna. Essa concepção acabou informando nossa cultura e sendo projetada sobre qualquer tipo de crença: fé como escolha de acreditar em algo. Daí se pode entender o espanto dos primeiros missionários em terra americana, diante da "incons-tância da alma selvagem" dos tupinambá, tão faminta dos ensina-mentos religiosos e tão rápida em voltar "às antigas superstições". Na linha da análise de Viveiros de Castro,2 poderíamos colocar a hipótese de que a incompreensibilidade do comportamento ame-ríndio perante a unicidade de Deus repousasse, para os missioná-rios, na aplicação dessa idéia de "escolha", que não pertencia ao universo indígena.

A historicização do conceito de fé, que leva a esvaziá-lo pelo menos como categoria ontológica, senão analítica, pode ser estendida a outros, como, por exemplo, a distinção laico/clerical, nascida como oposição política com o Iluminismo. Mas o que interessa particularmente aqui, na ótica do estudo das missões, é a relação conceituai entre religioso e civil. A distinção dos cam-pos, antes do que do Iluminismo, é produto do cristianismo, a partir da idéia romana de civitas. Na Apologia, Tertuliano explici-ta essa distinção, ao dizer que os cristãos rezam para o bem do imperador (cap. xxx), permanecendo fiéis a seu deus. Retoma-se o preceito evangélico de dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, diferenciando o comportamento religioso do civil. Com o advento do cristianismo como religião do Estado, no século IV, a obediência religiosa e a civil acabam coincidindo; assim, os não-cristãos ficam fora do domínio delimitado por essa

Page 120: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

relação formalizada, ou seja, fora da "civilização". Nem religiosos nem civis, eles serão, portanto, os "pagãos", contrapondo-se a paganitas à civitas, assim como o paganismus ao christianismus (Sabbatucci, 1990).

Com as descobertas, a solução do problema do Outro amplia no plano laico o conceito de religião para estendê-lo aos "selvagens", recuperando no plano teológico a teoria dos Padres da Igreja sobre o "paganismo" grego e romano como manipulação diabólica, teoria desenvolvida quando da afirmação do cristianismo como religião única e verdadeira. Se o politeísmo pagão era a dimensão em relação à qual o monoteísmo cristão pensava a si próprio, o paganismo — transformado em "idolatria" — constituiu a necessária linguagem de reconhecimento e de comunicação com as humanidades outras (Bernand e Gruzinski, 1988; Gasbarro, 1997). Quanto mais "ido-latras", ou seja, comparáveis com a antigüidade clássica, mais dig-nos de respeito, como "civis", e de evangelização, para torná-los "religiosos".

Nas primeiras grandes sistematizações conceptuais elabora-das por Las Casas e Acosta, a "idolatria" torna-se o parâmetro de medição da civilização (hoje diríamos "cultura"), para se orientar num mundo desconhecido, mediante a inserção do exótico num molde familiar. Se a religião é uma invenção cristã, o código reli-gioso é aplicado sistematicamente pelos missionários para cons-truir primeiro, e comunicar depois, com a alteridade. A idéia infor-madora é a máxima de Cícero, retomada pela escolástica, de que não há povo, por mais bárbaro que seja, que não tenha em si uma noção mínima de divindade. O ponto de partida e o de chegada coincidem: a religião, a crença, é um fato humano e universal. O problema será transformar a "crença" na verdadeira Fé, transfor-mando ao mesmo tempo a "barbárie" em civilização.

O código religioso, então, permite pensar a civilização: não é por acaso que os viajantes e os missionários percebem a falta, nos homens americanos, de Fé, Lei e Rei, crença, direito e política, os princípios da civilização. Uma vez estabelecido que há uma míni-

Page 121: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

ma fé nas mentes selvagens, será possível trazê-los para a civiliza-ção. No Brasil, o Plano Civilizador de Nóbrega é o primeiro exem-plo de uma longa série de leis e planos que propõem, com diferen-tes nuances conforme a situação histórica, este binômio (religião-civilização) como princípio informador da assimilação dos indígenas à população "civil", até chegar ao "Regulamento das Missões de Catequese e Civilização dos índios" (1845), o texto-base da política indigenista imperial.

F É E C I V I L I Z A Ç Ã O

Por diferentes que sejam as descrições de missionários e viajantes, holandeses e franceses, protestantes e católicos, capuchinhos e je-suítas, todas as primeiras crônicas do Brasil colonial constroem a alteridade ameríndia ao passo que verificam a identidade européia, no momento em que as descobertas colocam em xeque as verdades consagradas pelos eruditos e pelos santos. Em suas páginas os cro-nistas revelam o grande debate que estava se travando na Europa, a respeito da natureza dos selvagens e, conseqüentemente, de seu "estado de natureza". Trata-se, de fato, do processo de releitura da identidade ocidental diante das novas humanidades que a desco-berta apresentava, através da construção da alteridade destas. O códi-go religioso era, obviamente, privilegiado: a distância entre o Eu e o Outro foi medida pelo parâmetro da Fé, cuja presença ou ausên-cia, ou, melhor, cujo grau de intensidade marcava a distância entre a civilização e a barbárie.

Mas o paradigma interpretativo que organizava os povos do mundo inteiro, da índia ao Peru, numa ordem hierárquica que via os mais "idolatras" nos graus mais altos da humanidade, não se aplicava à humanidade tupinambá, junto à qual não se encontra-vam os sinais diacríticos (templos, ídolos, sacerdotes) da existên-cia de uma "religião" idolátrica. Portanto, a impossibilidade de identificar essa presença através dos sinais conhecidos do paganis-

Page 122: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

mo, ídolos, sacerdotes e templos, fazia com que a ausência de reli-gião caracterizasse os índios do Brasil.

O topos narrativo da falta de Fé, Lei e Rei encontra-se em todos os relatos: o franciscano Thevet, os jesuítas Nóbrega e Anchieta, o aventureiro Staden, o sertanista Gabriel Soares de Souza, o calvinis-ta Léry, o capuchinho DAbbeville. A primeira fonte, modelo de todas as outras, é a afirmação de Amerigo Vespucci, na carta de 1502 a Lorenzo de Mediei, que pode ser considerada a primeira teo-rização do "estado de natureza" dos selvagens: "Não têm lei nem fé nenhuma, vivem segundo natureza [...] não têm Rei, nem obede-cem a ninguém"; e ainda, em Mundus Novus: "Não têm templo nenhum e não têm lei nenhuma, nem são idolatras".3

Por outro lado, a bula papal Sublimis Deus, de 1537, decreta-va que os americanos eram homens verdadeiros Çveri homines"), homens "naturais", de acordo com a primeira noção de Vespucci e como, mais tarde, Acosta tentaria sistematizar na monumental Historia natural e moral de Ias indias, ao falar em homines sylves-tres. E esses homens precisavam da palavra divina, para que se cumprisse a profecia da pregação do Evangelho aos quatro cantos da Terra. A bula do papa Paulo III, além de reconhecer-lhes a dig-nidade de homens, mandava trazer os "naturais" para a fé cristã através da pregação do Verbo de Deus e do exemplo.

O pensamento teológico busca na antigüidade clássica — pela via da escolástica — o elo entre a civitas dei e a cidade dos homens: uma mínima noção de divindade. Por fim, os missionários jesuítas encontram a solução: Tupã, noção mítica ligada ao trovão e portanto, por analogia, à dimensão celeste do ser supremo da religião judaico-cristã. O construto epistemológico missionário atribui ao "homem natural" a capacidade de conceber uma "reli-gião natural", obviamente, uma religião monoteísta in nuce, con-forme a teoria da "degeneração", devido ao isolamento das tribos do Brasil, depois da primeira Revelação.

A exigência epistemológica e política de "redução" do Outro ao Eu atribui aos índios uma crença ou, melhor, uma possibilida-

D E U S NA A L D E I A 1 19

Page 123: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

de de fé (cuja "inconstância" constituirá o drama institucional da missão e pessoal dos missionários no Brasil). No início da Idade Moderna, o código religioso é ainda prioritário na leitura e na interpretação da realidade, inclusive das alteridades antropológi-cas; ele engloba todos os outros: o moral, o político, o jurídico (de Fé, Lei e Rei). Ou seja, qualquer manifestação social da alterida-de que a descoberta apresentava é lida sub specie religionis, e tra-duzida na linguagem religiosa.

Se o homem "natural" traz em si o sinal da presença de Deus, sua inserção na civilização como condição plena de humanidade é a passagem obrigatória para sua cristianização completa. A idéia da "missão civilizatória" está presente no discurso missionário desde os primeiros momentos da catequese jesuítica: é só pensar no "Diálogo sobre a conversão do gentio" e no "Plano Civilizador" de Nóbrega, respectivamente de 1556 e de 1558. A instituição das aldeias missionárias é a solução para poder exercer a necessária educação, para depois passar à conversão. Nesse projeto, utiliza-se a categoria de "polícia" (do latim politia). Para José Eisenberg (2001) o conceito corresponderia ao de "civilização", e mais especi-ficamente ao de "civilização cristã", mas podemos pensar também na raiz grega (polis) do termo, e na noção de "polícia" como "bom governo", de acordo com a idéia platônica de "república". A "polí-cia" jesuítica, como "aprimoramento civil dos costumes", retoma o conceito grego, reelaborado na época renascentista, ligando ainda mais firmemente a idéia de religião à de civilização.

J O G O DE E S P E L H O S

No começo da catequese, trata-se, portanto, da idéia de tornar os índios "homens" (= civis) para fazê-los, depois, cristãos, idéia esta que acompanha todo o processo de evangelização no Brasil colo-nial, e que é apropriada também por outras ordens: os capuchi-nhos Martinho e Bernardo de Nantes, por exemplo, expõem esse

Page 124: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

conceito nos prólogos de suas respectivas Relations sobre a cate-quese entre os "tapuia" do sertão do São Francisco, do começo do século XVIII.

A construção da alteridade indígena, não apenas por oposição à identidade européia, mas também a outras indianidades, pelas dicotomias bravo/manso, gentio/doméstico, civilizado/selvagem, está clara nos relatos sobre o índio "tapuia" do Nordeste, construí-do como categoria colonial em oposição ao mundo tupi e colada à noção de sertão. Habitante do espaço desconhecido do sertão, o "tapuia" é a alteridade humana radical que vai se afastando nas serras inacessíveis, "nas brenhas dos sertões", para usar as pala-vras de Jaboatão, ao passo que as aldeias de índios conquistados "descem" para mais perto dos currais, dos engenhos e da palavra missionária.

Vários códigos são ativados para a construção contrastiva da imagem do "tapuia": o lingüístico (ele fala "com papo tremendo", diz Gabriel Soares de Souza, sua língua é "travada", dizem os jesuí-tas), o espacial (ele mora em lugares inacessíveis, é nômade), o militar (ele é guerreiro valente e feroz, é o "aliado infernal" dos holandeses), o alimentar (ele come tanto quanto quatro homens, mas pode ficar dias sem se alimentar, ele come seus mortos). Esses códigos colocam o "tapuia" num plano de naturalidade sel-vagem, no pano de fundo da oposição litoral/sertão, tão usada e abusada até hoje pela sociologia e pela historiografia nacionais.

Outras descrições, porém (principalmente as holandesas, mas não só), mostram uma certa atenção etnográfica para com os "cos-tumes" indígenas, bárbaros sem dúvida, mas — a seu modo — humanos. De novo, é nessa oscilação entre alteridade irredutível e possibilidade de recuperação no plano da humanidade e da civili-zação que se joga a construção do índio, neste caso o "tapuia", e seu deslocamento no sertão, espaço vazio mas passível de "preen-chimento" civilizatório. A mesma oscilação se dá especificamente no plano da religião, entre uma brutalidade absoluta e irredutível ao cristianismo (por causa do senhorio do demônio sobre as almas

Page 125: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

selvagens) e a possibilidade da catequese, a partir de um "não-conhecimento" ou de uma "noção natural" de Deus.

Os relatos jesuítas e capuchinhos das aldeias do sertão4 expres-sam a necessidade de trazer primeiro os índios para a civilização, para depois conduzi-los à verdadeira fé, trabalho este para o qual o silvíco-la é tamquam tabula rasa. E o trabalho de escrita missionária nesse papel branco está claro, por exemplo, na Relation de Bernard de Nantes, que descreve os "antigos costumes" dos kariri, justamente em oposição ao novo índio "civilizado", exemplo dos frutos da missão. Para reforçar o milagre da conversão, o capuchinho freqüentemente indica os grupos entre os quais esses usos pagãos e bestiais persis-tem, deslocando a noção de "tapuia" para "mais longe", num sertão ainda não alcançado pela civilização e pela missão.

Vários trechos do relato do capuchinho utilizam-se dos binô-mios aldeia/mato, sedentário/nômade, razão/instinto e, acima de todos, litoral/sertão, como significantes da oposição irredutível entre barbárie e civilização, em que a única mediação possível é a graça de Deus e a abnegação dos padres: os "tapuia" andam nus, se alimentando com os frutos que a terra produz por si mesma, se entregam aos prazeres como brutos, sem vergonha uns dos outros, vagam pelos matos, onde vivem só eles (Nantes, 1702). Mas essa alteridade radical se torna logo "redutível": eis, então, que esses índios selvagens são descritos como uma espécie degenus angelicum, conhecedor "por natureza" dos preceitos evangélicos de pobreza e simplicidade, pois possuem apenas arco e flechas e sabem tam-bém suportar a fome na escassez.

A oscilação entre a bestialidade dos selvagens e sua recupera-bilidade ao consórcio humano e civil caracterizou o debate sobre o "outro" na Europa das descobertas e na cultura de viagem qui-nhentista e seiscentista, entre Idade Média e Renascença, entre fé e ciência, entre o que se devia ver e o que se via. Foi através do mesmo prisma que construíra a extraordinária imagem do tupi-nambá, canibal e profeta, no século XVI (cf. Pompa, 2001), que se construiu também, por oposição, o tapuia.

Page 126: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Num e noutro caso, a construção dessas imagens foi funcional ao projeto de catequese. Num e noutro caso, a realização desse pro-jeto exigiu a elaboração de uma linguagem de mediação, uma lin-guagem simbólica negociada, inteligível dos dois lados do encontro. Um exemplo extraordinário dessa negociação são os catecismos jesuíticos ou o teatro anchietano, onde o esforço de tradução das noções teológicas na língua nativa leva à construção daquela que Alfredo Bosi chama "mitologia paralela": nem teologia cristã, nem mitologia tupi, mas uma terceira esfera simbólica, onde bispo é Paí-guaçu, pajé maior, Nossa Senhora é Tupansy; mãe de Tupã, igreja é twpãóka, casa de Tupã, alma é anga (que vale tanto para toda som-bra quanto para o espírito dos antepassados) e Demônio é Anhanga, espírito errante e perigoso (cf. Agnolin, 2001).

Da mesma maneira, para indicar os grandes xamãs tupi, os caraíbas, bem como suas "cerimônias diabólicas", os jesuítas usa-ram o termo "santidade" e as fontes francesas, o termo "profeta". Por um lado, é verdade que, como diz Rolando Vainfas (1995), os missionários trouxeram para a América e projetaram no discurso sobre os índios os dilemas religiosos de uma época em que a neces-sidade de separar o santo do diabólico era a verdadeira obsessão de inquisidores e teólogos. Mas, por outro lado, essa terminologia explicita o trabalho de apreensão e de tradução da alteridade. Se a humanidade dos ameríndios é reconhecida em termos religiosos, porque o da religião é o código dominante no início da Idade Moderna, a linguagem religiosa é a linguagem privilegiada para nomear o Outro, bem como para comunicar com ele. Eis, portan-to, que os feiticeiros são os "santos" indígenas e seus embustes são "como dizer coisa divina" (nas palavras de Nóbrega). A oposição presença/ausência de religião, que radicaliza uma impossibilidade de comunicação, se transforma no binômio verdade/mentira, modalidades opostas no interior de um mesmo código de interpre-tação da realidade. A realidade é só uma, criada por Deus; às vezes, ela aparece distorcida pela "contrafação diabólica", pois o Diabo, "símio de Deus", constrói o contraponto infernal da própria divin-

Page 127: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

dade, com a ajuda de seus aliados, os pajés. Para dizer a realidade americana é preciso elaborar uma linguagem que possa dar conta, ao mesmo tempo, da realidade falsa (construída pelo Demônio) e da verdadeira (revelada por Deus e veiculada pelos padres).

Nessa confusão de horizontes devido à utilização de uma lin-guagem comum, encontra sentido a atitude catequética de muitos padres, jesuítas e capuchinhos, que se utilizaram, nas pregações, da postura e do carisma dos grandes xamãs, os caratbas. E assim que costumava pregar nas aldeias o padre Azpilcueta Navarro, grande "língua": "levantando a voz e pregando-lhes os mistérios da fé, andando em roda deles, batendo o pé, espalmando as mãos, fazendo as mesmas pausas, quebras e espantos costumados entre seus pregadores, pera mais os agradar e persuadir". (Vasconcelos, 1977 [1663], I: 221). Finalmente, conforme relatado por Francisco Pires em carta de 1552, Nóbrega em suas pregações tentava con-vencer os índios de que a "verdadeira santidade" era aquela dos missionários e de que o bispo era o verdadeiro Pajé-guaçu (in Leite, 1954: 150). Não se trata de iniciativas autônomas, mas da pedagogia jesuítica clássica, conforme as instruções de santo Inácio e Anchieta: a utilização de elementos da cultura nativa como linguagem para veicular conteúdos da fé católica, na mesma linha da utilização do nome Tupã para indicar Deus, de Jeropari ou Anhã para o Demônio e assim por diante.

Também do lado indígena houve a leitura da alteridade euro-péia nos termos oferecidos por sua própria cosmologia. As fontes mostram às vezes uma surpreendente convergência de horizontes simbólicos, mas se trata menos de dados preexistentes ao impacto colonial do que das realizações históricas deste. Se realizada com as devidas cautelas, uma análise dos documentos antigos, além de devolver as condições da produção do discurso evangelizador, pode contribuir também para a reconstituição da dinâmica pela qual o evento histórico da "evangelização" foi absorvido e transformado pelas culturas nativas a partir de suas próprias representações.5

Page 128: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Aqui também existem exemplos extraordinários desse traba-lho de tradução e de transformação permanente de códigos e regis-tros. O primeiro está na utilização indígena do termo caraibas para indicar os brancos, que é o oposto especular do termo santidade para indicar os xamãs: a leitura que os indígenas fazem da alteri-dade (principalmente missionária), nos primeiros anos do encon-tro, passa pelo código xamanístico até porque, como vimos, essa identificação é incentivada e procurada pelos padres. Uma relação de Fernão Guerreiro, do começo do século XVII, assim descreve uma "santidade" indígena:

Estava posto de joelhos, com os olhos no céu e as mãos levantadas e abertas como sacerdote que diz missa. [...] Ao dia seguinte me pediu audiência, saímos ao terreiro, mandei falar um índio nosso principal. Mas respondeu com contar de sua santidade, mas foi tão prolixo que lhe disse eu que não vinha a ser ensinado nem dos seus, senão para lhe ensinar o caminho do céu e que para isso os queria levar para a igreja. (Guerreiro, 1929 [1609]: 381).

As "santidades", então, apropriaram-se não apenas dos signos exteriores, mas também da fala dos padres católicos, certas de poder exercer o ministério sacerdotal. O trecho citado é um exemplo extraordinário de tolerância recíproca, perante uma situação "híbri-da", em que a fronteira entre "lícito" e "ilícito" se torna sutil e con-fusa. Sem dúvida, nessa apropriação recíproca de símbolos jogou um papel fundamental a questão do poder. A "batalha pelo monopó-lio da santidade", para usar a expressão de Vainfas, foi uma luta mor-tal pelo poder simbólico, na qual os rivais tentaram se apoderar dos instrumentos, dos símbolos, da fala, da identidade de seu próprio outro. Nesse sentido é esclarecedor o exemplo do padre Francisco Pinto, que ficou conhecido entre os potiguara do Rio Grande do Norte, que ele evangelizou no fim do século XVI, como Amanaiara, "senhor da chuva" como eram os caraibas, e, como os dos caraibas,

Page 129: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

seus ossos se tornaram objeto de culto entre os índios (Carneiro da Cunha, 1996; Pompa, 1999).

Há, portanto, uma leitura da alteridade religiosa nos termos que o horizonte simbólico de cada cultura oferece: nesse sentido, a "santi-dade" para designar os feiticeiros é o oposto especular do termo caraí-ba para indicar os brancos. Da mesma maneira, naquela que Alfredo Bosi chama a "mitologia paralela" da situação colonial, o caraíba Sumé dos tupinambás é são Tomé dos missionários. Se o grande caraíba mitológico é o grande santo da tradição católica, não há de estranhar que os caraíbas contemporâneos sejam "santos".

Quanto ao profeta, poder-se-ia dizer, de antemão, que o termo parece em muitos casos utilizado mais no sentido grego (prophetes) de "adivinhar o futuro", através de oráculos, do que propriamente no sentido bíblico de instrumento de Revelação ao povo de Deus. As fontes concordam em frisar o fato de que o caraíba "diz o futu-ro" a respeito da saúde e da guerra, com a ajuda dos maracás.6

Esclarecedora é a passagem de Thevet que define os caraíbas como adeptos da nigromancia, mostrando claramente, e mais uma vez, a negativização da prática paga, neste caso a oracular, operada pelo cristianismo: quem prediz o futuro fora do modelo bíblico e cristão da "profecia" e da "visão mística" é nigromante, evocador do diabo (Thevet, 1953 [1575]: 116)

Repropõe-se, aqui, a dicotomia verdade/falsidade já apontada para o termo "santidade", dicotomia que ganha profundidade a partir de toda a tradição bíblica e cristã dos "falsos profetas", anun-ciando a vinda do Anticristo, na véspera do fim dos tempos. Trata-se daquela vertente milenarista do cristianismo, imbuída da tradi-ção profética vetero-testamentária e da apocalíptica de João, que foi mantida por uma parte dos intelectuais cristãos e teve um momento de grande auge exatamente no século XVI.-

Essa tradição profética foi trazida para o Novo Mundo e se apresenta freqüentemente na literatura missionária. Por exemplo, os versículos de Mateus sobre o fim do mundo estão na folha de rosto da História da Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha do

Page 130: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Maranhão, do capuchinho Claude dAbbeville. Podemos acrescen-tar que no texto de outro capuchinho, Yves d'Evreux, companhei-ro do primeiro na aventura missionária na "França Equinocial", está claramente dito que a viagem dos capuchinhós e a conversão do gentio da Ilha do Maranhão foram profetizadas por santos ins-pirados pelo Espírito Santo e pelos profetas Isaías e Sophonia (D'Evreux, 1929 [1874]: 365 ss).

Essa mesma profecia é atribuída pelo franciscano André Thevet aos próprios caraíbas. Depois de ter relatado a comunica-ção entre caraíbas e Vesprit, ou seja, o Demônio, comenta: "Mas isso vos direi: que muito tempo antes que viéssemos para cá, o espírito predissera nossa chegada" (Thevet, 1953 [1575]: 82).

Por sua parte, Léry cita as palavras de um velho índio, que relata a passagem, em tempos remotos, de um mairj vestido e bar-bado, que pregava o deus dos cristãos. Os indígenas não acredita-ram nele e "depois desse veio outro e em sinal de maldição doou-nos o tacape com o qual nos matamos uns aos outros" (Léry, 1980 [1578]: 196). Léry põe em relação essas palavras com a tradição cristã da pregação do Evangelho às extremidades do mundo antes do Juízo Final e com a tradição dos "falsos profetas"; DAbbeville usa quase as mesmas palavras, apenas substituindo o termo mair pelo de profeta.

E evidente que, do ponto de vista indígena, estamos aqui diante de um exemplo de elaboração mítica que se abre à incorpo-ração da alteridade; tanto a presença quanto a superioridade dos brancos são colocadas no plano da meta-história, do "já decidido" do mito, fundadas junto com o mundo. Essa fundação mítica, pre-sente nesses como em muitos mitos sul-americanos, faz com que essa presença e essa superioridade não sejam absolutamente "ou-tras", mas — como diz Manuela Carneiro da Cunha (1992: 19) — remetam a uma opção nativa, errada talvez, mas realizada dentro do mundo indígena, feito para os indígenas.8

O que é importante ressaltar, porém, é que a construção sim-bólica do presente colonial se dá mediante uma linguagem cosmo-

Page 131: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

lógica, entre mito e profecia, que para ser inteligível tem de ser negociada. Está claro aqui o jogo de espelhos que se estabelece entre padres e caraibas, entre verdadeiros e falsos profetas, entre profecias cristãs sobre pregação do Evangelho aos gentios e profe-cias nativas sobre a chegada dos brancos. Mais do que de uma coincidência de mitologias, estamos diante do problema cosmoló-gico (ou seja, epistemológico) da compreensão e, portanto, da tra-dução das alteridades antropológicas no interior do quadro de uma história preestabelecida, de um e de outro lado do espelho. Isso leva a uma curiosa coincidentia oppositorum, que se expressa atra-vés de uma linguagem comum. Nesse quadro, "santidades" e "pro-fetas" são construções negociadas. A antropologia que construiu, por sua vez, o "profetismo" tupi-guarani não levou na devida con-sideração esse processo.

U M A R E A L I D A D E N E G O C I A D A

Essa leitura "negociada" da realidade colonial se deu de muitas formas. Se, por um lado, a superioridade dos brancos foi codifica-da em termos míticos (como no caso do mito da "má escolha" da espada de madeira), por outro, as próprias categorias cosmológi-cas foram repensadas à luz da nova realidade colonial. E isso que nos revelam as fontes sobre a evangelização dos "Tapuia" nos séculos XVII e XVIII, documentos preciosos para entender a cons-trução da linguagem religiosa de mediação e, mais ainda, da pró-pria idéia de "religião", que é o que interessa aqui.

A Relation de Bernard de Nantes e algumas cartas jesuíticas sobre os kariri do São Francisco ou os "tapuias" do sertão da Bahia transcrevem fragmentos mitológicos dos grupos por eles aldeados. A fragmentação das notícias a respeito das "crenças" indígenas está no olhar do observador que, para identificar uma "religião", procura — e não acha — algo parecido com os "deuses" do paganismo clás-sico, o contraponto necessário do monoteísmo cristão. Ecoam nes-

Page 132: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

ses relatos todos os elementos que entraram em jogo na conceptua-lização da alteridade tupinambá, no século XVI: o viver conforme o instinto, a falta de conhecimento de Deus, a ausência de templos, altares e sacerdotes, a "idéia confusa" de divindade. A "confusão" atribuída aos selvagens, no caso os kariri do São Francisco, é deter-minada pelo esforço de personalização, de identificação e de classi-ficação (ou seja, de racionalização) do observador missionário, bem como por sua (fracassada) busca de "crenças".

Já vimos a construção histórica da crença como "fé em", no cristianismo, e, depois, sua projeção na alteridade americana. Vale acrescentar também aqui que o "Credo" identifica até liturgica-mente o catolicismo e que a definição das diferentes comunidades de "crentes" como "confissões" (= profissões de fé) é cronologica-mente próxima à época das descobertas (Dieta de Augusta, 1530) e certamente determinou o rumo da catequese nas Américas, in-clusive a importância dada ao sacramento da "confissão" (Pompa, 2003, cap. 2). Está claro, portanto, que a "confusão" e a fragmen-tariedade das crenças indígenas dependiam do fato de que estas — as únicas categorias que, juntamente com os altares e os tem-plos, os missionários podiam reconhecer como constituindo uma bárbara "religião" — não se encontravam entre eles.

Um problema análogo é o da personificação: não apenas os "tapuia" (assim como os tupi) deveriam "acreditar" em algo, mas prin-cipalmente em alguém, crença essa que, fruto da revelação originária e da manipulação diabólica, pudesse ser reconduzida, ou seja, redu-zida, ou convertida, na fé no verdadeiro Deus. Podemos perceber que os poucos relatos sobre "crenças" indígenas apresentam já versões cristãs, ou cristianizadas, de temas mitológicos. Melhor dizendo, eles apresentam já aquele processo de "tradução" que marca a percepção e a devolução para o outro, da nova realidade colonial e missionária. Se é de "crença" que se fala, ela não pode deixar de carregar em si a marca do Ocidente cristão, que da "crença" é o inventor.

Ao falar no "obscuro conhecimento dos princípios da fé" dos kariri, Bernard de Nantes relata:

Page 133: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Poder-se-ia dizer, também, que os índios chamados Chumimi tive-ram antigamente algum obscuro conhecimento da Missão do Filho de Deus na terra. Eles dizem que Deus tinha dois filhos e que o menor, zangado com o maior, abandonou-o e fugiu. Depois de mui-tos anos o maior, sentindo a falta do irmão, falou para seu pai que ia até a terra procurá-lo. Ele veio e encontrou-o junto com seus des-cendentes, que o maltrataram muito e, depois de ter infligido mui-tos tormentos, amarraram-no a uma árvore onde morreu de sede, do que a mãe dele ficou muito aflita. Depois da morte, ele aparecia num lugar e noutro e, finalmente, eles o viram subir de novo para o céu, para cima de uma certa montanha, e depois disso não o viram mais. (Nantes, 1702)

A busca de Bernard é análoga à dos missionários do século XVI entre os tupinambá, procurando as noções do dilúvio, da passagem de Tomé, da imortalidade da alma, ou seja, os "rastros" de um per-curso de descendência que, ligando os selvagens às tribos perdidas de Israel, à estirpe de Cam ou à pregação de são Tomé, podiam conferir consistência à unidade do gênero humano e fundamento à profecia.

O Sexennium Litterarum Brasilicarum ab anno 1651 usque ad 1657 traz muitas informações sobre os "tapuia" das Jacobinas, num momento anterior à fundação das aldeias. Poder-se-ia pensar, portanto, num universo mítico ainda "original", mas logo percebe-mos que não é assim:

Dizem que outrora Deus vivia no ar e que, querendo fazer a terra, reti-rou um pedacinho de terra de seu próprio corpo e fez, misturado com saliva, uma massa, na qual assoprou com toda a força, fazendo grande estrondo, e de repente a terra, com todo seu peso, ficou suspensa. Então com as mãos tirou as raízes dos montes e provocou inundações das águas, das quais tiveram origem as fontes e os rios e o mar. Feito isso, acrescentam que de seu corpo emitiu um enorme raio, do qua]

Page 134: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

foram fabricadas as esferas transparentes dos céus, o sol, a lua e as estrelas, e já que os céus estavam em volta, aí fixou sua morada; mas como enjoou da solidão, voltou para a terra e depois de penetrar no útero de Maria, nasceu dela e, levada a mãe ao céu (assumpta), subiu de novo. (Sexennium Litterarum 1651-1657. ARSI, Bras. 9, f.17.)

Não se trata apenas da absorção de elementos cristãos, mas da fundação mítica da cultura kariri, através de sua inserção numa cosmologia cristã, ou, dito de outra forma, da utilização de uma lin-guagem cosmológica cristã. Por outro lado, o Gênese bíblico, o Evangelho da morte e ressurreição de Cristo e a assunção de Maria estão absorvidos e organizados numa ordem significativa de tipo mítico, entrando a fazer parte da origem do mundo (terra, céu e águas). A presença do deus cristão é fundada pelo mito, junto com o mundo. No contexto dos primeiros conflitos que culminariam na "Guerra dos Bárbaros", os "tapuia" se aproximaram dos padres para pedir o batismo, único meio para escapar às expedições de apresa-mento. Com esse interesse, eles devolveram aos missionários sua versão dos ensinamentos cristãos.

Em 1673, uma carta de Jacques Cockle da aldeia de Santa Teresa (Canabrava) fala nas "superstições" dos kariri. Trata-se de outro exemplo de "tradução" indígena de elementos cristãos: nesse caso, trata-se da Imaculada Conceição:

Além de um Deus único, que fica no ar, a quem chamam Meneruru, veneram muitos santos, que chamam Nhisos: assim falou comigo um dos mais velhos: por Meneruru foi criado (factus est) Cemacuré, cuja mulher de nome Eba, tocada pelo marido não apenas com uma varinha, teve, virgem, um filho: Crumnimni, pai de todos os bran-cos. Chamam um outro filho de deus Ken Ba Baré e outro Varikidzan, que festejam (facere solemnem) todo ano, ou cada seis

meses com um rito ou jogos de oito dias, cobertos em vário modo, ou com o corpo nu pintado. (Jacques Cockle, Carta ao P. Geral U M . 20/11/1673. ARSI, Bras. 26, f. 32.)

Page 135: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Poder-se-ia dizer, também, que os índios chamados Chumimi tive-ram antigamente algum obscuro conhecimento da Missão do Filho de Deus na terra. Eles dizem que Deus tinha dois filhos e que o menor, zangado com o maior, abandonou-o e fugiu. Depois de mui-tos anos o maior, sentindo a falta do irmão, falou para seu pai que ia até a terra procurá-lo. Ele veio e encontrou-o junto com seus des-cendentes, que o maltrataram muito e, depois de ter infligido mui-tos tormentos, amarraram-no a uma árvore onde morreu de sede, do que a mãe dele ficou muito aflita. Depois da morte, ele aparecia num lugar e noutro e, finalmente, eles o viram subir de novo para o céu, para cima de uma certa montanha, e depois disso não o viram mais. (Nantes, 1702)

A busca de Bernard é análoga à dos missionários do século XVI entre os tupinambá, procurando as noções do dilúvio, da passagem de Tomé, da imortalidade da alma, ou seja, os "rastros" de um per-curso de descendência que, ligando os selvagens às tribos perdidas de Israel, à estirpe de Cam ou à pregação de são Tomé, podiam conferir consistência à unidade do gênero humano e fundamento à profecia.

O Sexennium Litterarum Brasilicarum ab anno 1651 usque ad 1657 traz muitas informações sobre os "tapuia" das Jacobinas, num momento anterior à fundação das aldeias. Poder-se-ia pensar, portanto, num universo mítico ainda "original", mas logo percebe-mos que não é assim:

Dizem que outrora Deus vivia no ar e que, querendo fazer a terra, reti-rou um pedacinho de terra de seu próprio corpo e fez, misturado com saliva, uma massa, na qual assoprou com toda a força, fazendo grande estrondo, e de repente a terra, com todo seu peso, ficou suspensa. Então com as mãos tirou as raízes dos montes e provocou inundações das águas, das quais tiveram origem as fontes e os rios e o mar. Feito isso, acrescentam que de seu corpo emitiu um enorme raio, do qual

Page 136: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

foram fabricadas as esferas transparentes dos céus, o sol, a lua e as estrelas, e já que os céus estavam em volta, aí fixou sua morada; mas como enjoou da solidão, voltou para a terra e depois de penetrar no útero de Maria, nasceu dela e, levada a mãe ao céu (assumpta), subiu de novo. (Sexennium Litterarum 1651-1657. ARSI, Bras. 9, f.17.)

Não se trata apenas da absorção de elementos cristãos, mas da fundação mítica da cultura kariri, através de sua inserção numa cosmologia cristã, ou, dito de outra forma, da utilização de uma lin-guagem cosmológica cristã. Por outro lado, o Gênese bíblico, o Evangelho da morte e ressurreição de Cristo e a assunção de Maria estão absorvidos e organizados numa ordem significativa de tipo mítico, entrando a fazer parte da origem do mundo (terra, céu e águas). A presença do deus cristão é fundada pelo mito, junto com o mundo. No contexto dos primeiros conflitos que culminariam na "Guerra dos Bárbaros", os "tapuia" se aproximaram dos padres para pedir o batismo, único meio para escapar às expedições de apresa-mento. Com esse interesse, eles devolveram aos missionários sua versão dos ensinamentos cristãos.

Em 1673, uma carta de Jacques Cockle da aldeia de Santa Teresa (Canabrava) fala nas "superstições" dos kariri. Trata-se de outro exemplo de "tradução" indígena de elementos cristãos: nesse caso, trata-se da Imaculada Conceição:

Além de um Deus único, que fica no ar, a quem chamam Meneruru, veneram muitos santos, que chamam Nhisos: assim falou comigo um dos mais velhos: por Meneruru foi criado (factus est) Cemacuré, cuja mulher de nome Eba, tocada pelo marido não apenas com uma varinha, teve, virgem, um filho: Crumnimni, pai de todos os bran-cos. Chamam um outro filho de deus Ken Ba Baré e outro Varikidzan, que festejam (facere solemnem) todo ano, ou cada seis meses com um rito ou jogos de oito dias, cobertos em vário modo, ou com o corpo nu pintado. (Jacques Cockle, Carta ao P. Geral Oliva, 20/11/1673. ARSI, Bras. 26, f. 32.)

Page 137: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Aqui também, a cosmologia cristã é reinterpretada do ponto de vista nativo, ou, melhor, a mitologia indígena se "abre" à incor-poração de elementos novos, que possam dar conta da nova reali-dade dos brancos: uma "mitologia cristã" (o Deus celeste, uma Nossa Senhora que, virgem, tem um filho) funda a origem dos brancos.

Além da cosmologia, é nos rituais que aparece a releitura em termos nativos das simbologias introduzidas pelos jesuítas. Um exemplo disso poderiam ser as roupas, que os missionários impu-seram nas cerimônias nativas (aquelas que eles deixaram subsistir, definindo-as ludi, "jogos"), e que foram comparadas pelos nativos aos próprios paramentos sacerdotais. Outro exemplo está numa carta que relata a fundação de uma nova aldeia, para a qual uma parte dos indígenas se transferiu, para poder continuar a celebrar a festa que o padre proibira: a aldeia se chamou Roma. Ou seja, o termo que indicava o centro da cristandade passa a traduzir o sen-tido mais profundo da identidade dos "tapuias", que nessas alturas não pode mais prescindir da alteridade cristã.

Como se pode ver, a relação entre missionários e indígenas foi um complexo e articulado trabalho de tradução recíproca e de organização dos símbolos, freqüentemente isolados e fragmenta-dos pelo impacto cultural, numa nova ordem significativa. Assim como para os ocidentais na Idade Moderna o código religioso englobava todos os outros, também para os indígenas a linguagem que os missionários identificaram como "religiosa" não se referia apenas ao que chamamos hoje "religião" ou "cosmologia", mas se constituía como uma metalinguagem que perpassava também todas as esferas da vida social. Isso é particularmente evidente nas extraordinárias cartas trocadas entre dois chefes indígenas: Pedro Poty, potiguara, aliado dos holandeses durante a guerra, e seu "primo", Felipe Camarão, capitão-mor das tropas portuguesas.

Na longa resposta de Pedro Poty às várias cartas enviadas por Felipe Camarão, pedindo para passar para o lado português, está o testemunho da "fé" reformada, bem como as razões de fidelidade

Page 138: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

de Pedro Poty aos holandeses. As cartas, escritas em tupi e tradu-zidas para o holandês, datam de 1645. Eis alguns trechos.

Elles [os Holandeses] nos chamam e vivem conosco como ermãos: portanto, com elles queremos viver e morrer. Por outro lado em todo paiz se encontram os nossos, escravizados pelos perversos Portuguezes, e muitos ainda o estariam, se eu não os houvesse liber-tado. [...] Sou christão e melhor do que vós: creio só em Christo, sem macular a religião com idolatria, como fazeis com a vossa. [...] O rege-dor e commandante do regimento de índios na Parahiba. P. Poti". (in Souto Maior, 1913: 410.)

Recebida esta resposta, Felipe Camarão mandou uma carta circular a todos os índios que apoiavam os Holandeses, numa extrema tentativa de convencê-los a desistir desta aliança:

Fugi dos herejes e vinde tractar de vossa salvação. Como pudeste contar com os Hollandezes, depois delles procederem tão mal com os da vossa nação no Maranhão, pois tendo-lhes feito bella promes-sas, justamente como agora, os enganaram e abandonaram, quando os Portuguezes retomaram o paiz? [...] Si os quizerdes abandonar, não vos dirijais aos Portuguezes, mas vinde sem receio a mim, trazendo uma bandeira branca e tractarei a todos com amizade. [...] O pae dedicado de vós todos, o capitão-mor Camarão" {ibid. 412-413).

Essas cartas são um testemunho precioso da inserção dos índios no mundo colonial, em condições de igualdade política. Para construir suas estratégias, eles utilizaram-se de todos os ele-mentos das culturas e das práticas dos invasores, holandeses ou portugueses: das alianças às armas, da fé ao uso da escrita e até do estilo retórico, mais redundante e barroco do lado português, mais enxuto e "objetivo" do lado holandês.

Por tudo o que foi dito até aqui, está clara a proposta de con-siderar o que é chamado (ou acabou sendo chamado ao longo de

Page 139: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

um complexo processo histórico) de "religião" como código de in-tercomunicação. O conjunto de símbolos e práticas que os missio-nários chamaram "religião indígena" (depois do primeiro momento de espanto frente à ausência de sinais diacríticos de uma religião, como templos, ídolos e sacerdotes) foi na verdade uma série de códigos de leitura da realidade que os missionários identificaram como prioritários para estabelecer a comunicação com o mundo indígena e, a partir daí, realizar a "Conquista Espiritual".

E possível ver como esses códigos privilegiados foram mudando ao longo da missão, junto com a noção de conversão e a de civiliza-ção. Com efeito, no que podemos chamar o "modelo jesuítico", o índio "natural" — sem fé por um lado, mas por outro portador dos sinais da presença de Deus — foi funcional ao projeto de catequese quê exigia a elaboração de uma linguagem de mediação, inteligível dos dois lados do encontro. Sucessivamente a 1757, instaurou-se o que poderíamos definir como "modelo capuchinho pombalino", quando o aldeamento, lugar da "civilização" como meio de conversão, se transformou em "vila de índio", onde o ensino religioso era apenas um dos aspectos do programa de civilização de marca iluminista, que compreendia a alfabetização, o ensino do português no lugar do uso da língua geral (grande veículo de catequese jesuítica). O objetivo desse programa era o desenvolvimento das atividades produtivas e comerciais e, finalmente, a massificação da presença dos brancos e a promoção dos casamentos interétnicos como instrumento de homo-geneização da colônia através da integração dos nativos à sociedade colonial e sua transformação em vassalos fiéis à Coroa.

Também a idéia iluminista da catequese como instrumento de civilização, a ser controlada pelo Estado, mesmo se realizada por religiosos foi o propósito do "Regulamento das Missões de Catequese e Civilização dos índios" (decreto 426 de 24 de julho 1845), fundamento da política indigenista imperial, que teve seu braço operacional nos capuchinhos italianos, funcionários do gover-no, cujo trabalho, submetidos ao poder secular, passou a ser consi-derado em termos "educacionais", funcional à construção da Nação.

Page 140: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Dessa forma, ao analisarmos na longa duração a relação entre índios e missionários, temos de abandonar a pergunta relativa ao se e quanto os índios se converteram ao cristianismo, e investigar os sig-nificados que a noção de conversão foi assumindo ao longo de qua-tro séculos de missão, no interior do discurso das diferentes ordens, nos diversos momentos da história das relações entre Igreja, Estado e grupos indígenas, e, finalmente, na medida em que nos permitem as fontes, no próprio discurso indígena.

Resumindo: no momento da Conquista Espiritual do Novo Mundo, o imaginário europeu construiu a alteridade indígena a partir de uma revisão e de uma rearticulação de algumas catego-rias religiosas: a fé, a profecia, a esfera demoníaca. A partir daí, construiu-se também o projeto missionário, voltado para a realiza-ção do desenho providencial da pregação do Evangelho entre todos os povos da Terra, principalmente os "naturais".

Paralelamente, o "outro" indígena realizava sua própria leitura da alteridade colonizadora e missionária, tentando absorvê-la e plasmá-la conforme suas categorias e através de seus instrumentos: o simbo-lismo mítico-ritual. Nem sempre essa operação foi possível, devido à especificidade das situações históricas em que o encontro colonial se realizou e aos cataclismos sociais e cósmicos que este provocou. Em alguns casos, a presença do branco e sua superioridade foram funda-das pelo mito e os missionários foram assimilados a poderosos xamãs, em outros os rituais católicos foram utilizados para construir um hori-zonte simbólico nativo e, para os nativos, francamente anticolonial, que procurava eliminar simbólica e fisicamente os brancos (como no caso da Santidade de Jaguaripe).9 Como mostram os exemplos histó-ricos da evangelização dos tupi e dos "tapuia", os universos culturais colocados em jogo pelo impacto colonial não foram polaridades irre-dutíveis: desde os primeiros contatos, criou-se (foi procurado) um patamar comum, uma dimensão de trânsito simbólico que teve no "religioso" sua linguagem de mediação.

Os relatos coloniais e missionários refletem um processo de "tradução" em andamento; em outros termos, o "outro" descrito

Page 141: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

pelas fontes já está, na maioria das vezes há muito tempo, num processo de relacionamento com o "eu" ocidental, que é seu pró-prio "outro". O que ele é e o que ele faz, ou seja, sua auto-repre-sentação, depende também do interlocutor, para quem a informa-ção é dirigida e que, possivelmente, a solicitou. As novas identidades e os novos discursos, pautados pelas categorias do "religioso" que se constroem nesse processo de constante interpretação e tradu-ção da realidade colonial em contínua mudança, portanto, são fluidos, negociados e históricos. Por isso, mais do que recuperar uma suposta "originalidade" indígena e reconstruir quanto foi "perdido" ao longo do processo do contato, a pesquisa pode, mais realisticamente, tentar entender as linhas essenciais desse per-curso de mediações.

A N T R O P O L O G I A E H I S T Ó R I A DAS R E L I G I Õ E S

Não é inútil lembrar que a documentação missionária oferece o material empírico (já sistematizado conceitualmente, como vimos) que está na base das elaborações teóricas da primeira antropolo-gia, bem como da história das religiões como ciências. E sobre esse material, produzido naquele imenso laboratório de empreen-dimento intelectual de definição e "redução" da alteridade que foi a América missionária, que se implantou o empreendimento inte-lectual das ciências sociais.

No esforço de romper com a filosofia ou a teologia, Tylor e Max Müller,10 fundadores da antropologia e da ciência da religião, criticaram o uso dessas fontes. Contudo, a própria fundação das disciplinas se joga a partir da relação civilização/religião, de cuja construção histórica as fontes são o espelho fiel. Se a noção tylo-riana de cultura é na verdade a noção iluminista de "civilização", única e racional, o pensamento de Max Müller a respeito das reli-giões baseia-se no conceito romântico de Kultur, como expressão espiritual do ethnos.

Page 142: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

O binômio religioso/civil como paradigma de nossa cultura, que vimos na elaboração conceituai cristã e na reelaboração mis-sionária, se mantém como perspectiva epistemológica para a com-preensão do Outro nas ciências do homem: o racionalismo antro-pológico do evolucionismo privilegia o parâmetro da cultura (estádio de civilização), o romantismo "kulturalista" privilegia a religião, como motor cultural da civilização. A antropologia nasce como tentativa de estender a todos os povos o código da civiliza-ção, a história das religiões como tentativa de aplicar de maneira global o código da religião, já que um e outro, como lembra Nicola Gasbarro no capítulo 2 deste livro, são os códigos mais gerais pro-duzidos pela história do pensamento ocidental moderno.

Para Tylor, o lugar da diferença é a cultura, para Max Müller é a religião. Mas não há uma oposição absoluta, assim como não havia para os missionários: um e outro parâmetros são pensados em termos de relação. Assim, Tylor aceita a religião como elemen-to diferenciador universal, no interior do processo de civilização, e Max Müller — em sua proposta cientificista de análise compara-tiva — aceita as diferenças de civilização, como quando analisa as diferenças entre culturas semíticas (e seu deus da história) e cul-turas indo-européias (e seu deus da natureza). A naturalização romântica das grandes religiões históricas, típica da Kultur, casa-se com a historicização científica da religião, típica da civilização.

A influência da Kultur como experiência prioritária do sujeito encontra-se na preferência dada ao estudo da mitologia e da lin-guagem, característico do romantismo alemão. Nesse sentido, é interessante o fato de que a idéia de mitologia como "doença da linguagem" (existência ou não de certos personagens mitológicos baseada na existência ou não dos nomes para indicá-los) lembra muito de perto a falta de F, L e R como falta das noções de Fé, Lei e Rei apontada pelos missionários. Da mesma maneira, na catego-ria mitológica de "Ser supremo" da escola etnológica alemã,11 bem como na "personificação do céu" de Max Müller (1856), podemos encontrar a mesma construção categorial dos missionários: a "per-

D E U S N A ALDEIA 137

Page 143: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

sonificação" de algo que não é personificável, mas que é a única maneira de compreender e estabelecer uma comunicação com o campo religioso indígena.

A idéia romântica de Kultur prevalecerá no culturalismo em antropologia, pela mediação de Boas e Kroeber (e, parcialmente, de Malinowski),12 como ciência particular do ethnos, e na fenome-nologia religiosa, como relação imediata e autêntica do sujeito com o mundo, na experiência do sagrado. Talvez se deva a essa matriz epistemológica comum o fato de que as ciências do homem, e especificamente a antropologia, encontraram dificuldades no exer-cício de relativização (ou, mais recentemente, "desconstrução") dos conceitos de religião e de sagrado para além de declarações de princípio.

Se uma parte da antropologia, fiel à tradição racionalista, dis-solve as categorias do religioso em outras, como o social, e, com Lévi-Strauss, elimina o conceito de religião da teoria explicativa, uma outra parte, notadamente aquela influenciada pela tradição da Kultur, parece permanecer amarrada a uma ontologia do religioso, num jogo tautológico em que religião remete a cultura, e vice-versa, e afinal acaba apontando para a esfera inefável das emoções ou dos sentimentos, mesmo quando recorre à semiótica. Trata-se de algo parecido com a idéia dos missionários dos séculos XVI e XVII que viam na religião uma espécie de "gramática do mundo" e para isso trabalharam teórica e praticamente, com suas gramáticas e catecis-mos (cf. o capítulo redigido por Adone Agnolin, neste livro).

Nesse sentido, além de Kroeber, para quem "todos os povos primitivos experimentam, pelo que se vê, a necessidade de uma reli-gião", poder-se-ia lembrar Sapir: "o sentimento religioso está pre-sente por toda parte, parece tão universal como a linguagem ou o manejo das ferramentas" (cit. em Bernand e Gruzinski, 1988: 45-6). Nessa relação língua-religião, há sem dúvida um eco de Max Müller e da idéia romântica e fenomenológica de "sentimento".

Essa idéia de "sentimento" está ausente nos antigos missioná-rios, como Las Casas, para quem a religião era fato de racionalidade.

Page 144: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Na procura lascasiana das "semelhanças" entre divindade e mundo e da necessidade de a religião dar uma "ordem" ao cosmos poderia ser procurada, por outro lado, a idéia de "sentido", e até a de "signo", noção esta que encontramos em Geertz (1978), para quem a religião formula "uma ordem autêntica do mundo". Para ele, no entanto, o problema do Significado não é a base onde repousam as crenças, e sim seu campo de aplicação. A diferença da perspectiva religiosa em relação a outras, como a do senso comum ou a da esté-tica, é que ela se move além do cotidiano, em direção de realidades mais amplas, "e sua preocupação definidora não é a ação sobre essas realidades mais amplas, mas sua aceitação, sua fé'. Apesar de afirmar que a antropologia religiosa tem oferecido até hoje resulta-dos pouco satisfatórios justamente porque "considera como certo o que precisa ser elucidado", também Geertz cai na mesma armadi-lha ao considerar que a "perspectiva religiosa" tem uma mesma base em todo lugar: a fé, sem que seja elucidado o limite epistemo-lógico desta categoria. Poderíamos lembrar, nesse sentido, as críti-cas de Adam Kuper ao culturalismo de Geertz, que utiliza a religião como epítome da cultura, e esta última acaba por ser um sistema religioso (Kuper, 2002).

Um último exemplo dessa permanência nas ciências sociais de categorias construídas na história religiosa e missionária oci-dental está mais próximo de nós: o chamado "profetismo tupi-gua-rani". Na impossibilidade de deter-me aqui sobre os chamados "movimentos proféticos" tupinambás, é oportuno pelo menos apontar para o fato de que antropólogos e sociólogos identificaram a "religião" ou a "cosmologia" dos tupinambá com seu "profetis-mo", baseando seus estudos nas fontes missionárias que construí-ram esse conceito — junto com o de "santidade" — a partir do quadro epistemológico que foi brevemente discutido nas páginas anteriores.

Em outro trabalho (Pompa, 2004) procurei remeter esses estudos aos contextos intelectuais em que foram produzidos, con-textos que determinaram preocupações científicas e abordagens

Page 145: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

metodológicas, bem como conclusões explicativas. O que aparece com bastante clareza é que as ciências sociais do século XX, encon-trando categorias já constituídas nas fontes, as utilizaram porque para elas também faziam sentido, obedecendo, como no século XVI, a uma função analógico-classificatória e a uma exigência epis-temológica. Mais claramente: o objetivo de todos os autores era muito mais o estabelecimento de chaves interpretativas e genera-lizantes do que leitura e estudo pontuais dos fatos etnográficos e históricos; isso levou a uma leitura redutiva das informações sobre esses fatos, informada por um duplo "discurso de autoridade", estabelecido pela "prova" das fontes históricas transformadas em informações etnográficas.

Para fins do nosso discurso, são emblemáticos os trabalhos de Pierre e Hélène Clastres e de Lanternari, nos quais reaparece com toda a força, embora com valores diferentes, a polaridade concei-tuai entre o civil (o político) e o religioso, da qual vimos a trajetória histórica. Se Lanternari (1960), em sua abordagem marxista, atri-bui aos "profetismos" o valor "político" de luta contra a opressão, através da religião (nisso utilizando a religião como categoria autô-noma), a antropologia política de Hélène e Pierre Clastres (1974 e 1975) vê no "religioso" uma resposta da sociedade "igualitária" ao nascimento do poder político, o dos chefes, no interior das socieda-des tupis-guaranis, anterior e contemporânea à chegada dos bran-cos. No caso desses autores, como no da maioria dos outros, não é colocado em discussão o valor epistemológico da categoria "profe-tismo" e, por conseguinte, da "religião".

De uma maneira geral, portanto, a antropologia que se inte-ressa pela religião não escapa da dupla contradição que consiste, por um lado, em aplicar categorias formadas no decorrer da histó-ria do Ocidente (profeta, messias, religião) a fatos culturais alheios, como os tupi-guaranis, e definir ao mesmo tempo esses fatos como algo intrinsecamente "nativo" e, por outro lado, utilizar como "pro-vas" etnográficas os textos missionários que testemunham precisa-mente a construção histórica dessas categorias.

Page 146: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

D A M I S S Ã O À M I S S Ã O

A breve análise das narrativas missionárias sobre a "conversão" indígena mostrou que a reconstrução simbólica e prática do mundo indígena, nos séculos XVII e XVIII, foi elaborada a partir de fragmentos significativos de práticas e discursos anteriores. A ade-são ao uso dos símbolos cristãos (ou a cristianização dos símbolos tradicionais) traduz a dinâmica histórica pela qual os indígenas procuravam instrumentos de afirmação política no mundo colo-nial, construindo um universo simbólico compartilhado por outros atores sociais, e reconstruindo com estes uma nova hierarquia das relações sociais e de poder.

Os últimos passos desse percurso são reconhecíveis nas dinâ-micas contemporâneas de auto-identificação étnica, e de reivindi-cação política, através da "gramática da cultura", para usar as pala-vras de Paula Montero; gramática esta que, ao se apropriar do conceito antropológico de cultura, continua se colorindo de tintas religiosas. Um exemplo disso é a prática religiosa do toré, que, no processo contemporâneo da chamada "emergência étnica" no Nor-deste e até na Amazônia, constitui o sinal diacrítico por excelência tanto para o reconhecimento externo quanto para a auto-afirmação de identidade.

O papel das agências indigenistas católicas na "revitalização" ou na própria construção desse ritual é fundamental, e amplamen-te discutido por José Maurício Arruti, neste livro. O que é impor-tante reter aqui é que a linguagem na qual se expressa (de dentro) e é compreendida (de fora) a identidade é uma linguagem "sacra-lizada", ou seja, para ser reconhecido como índio (emergente) e para se afirmar como índio (ressurgente) é preciso realizar atos rituais, bem como fazer referência a uma memória de tipo mítico. A linguagem religiosa de identificação da alteridade construída pelos missionários a partir do século XVII (os "rituais idolátricos"

Page 147: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

conduzidos pelos pajés) volta, com uma inversão de signo, no mundo contemporâneo.

Como vimos, do mesmo ambiente intelectual em que nasce a idéia de Kultur se produz, por um lado, o conceito de cultura que marca o culturalismo e, por outro, a fenomenologia religiosa. É in-teressante observar que, se a antropologia culturalista americana acaba por identificar na religião um domínio específico, ligado a sentimentos, emoções e sentidos, são essas mesmas sugestões teó-ricas que informam a "missão inculturada" católica (e, em certa medida, a "missão transcultural" protestante), como mostram vários capítulos deste livro, em que o conceito de "cultura" se casa com a noção de "idéia de deus", que estaria presente em todas as sociedades. Não se trata, porém, da fórmula "uma religião = uma cultura": se a missão contemporânea transforma o conceito univer-salizante de "civilização" no particularismo das "culturas", não é questionada a "religião" como código universal de comunicação intercultural.

O uso antropológico de categorias que são fruto da história teológica do Ocidente (como a de conversão, de fé, de religião), o "uso missionário" de conceitos antropológicos (como o conceito de cultura na "teologia da inculturação") e, finalmente, a identifica-ção das novas identidades indígenas a partir da noção antropológi-co-religiosa de "ritual" (como no caso do toré nordestino) eviden-ciam a necessidade de repensar historicamente a antropologia e suas categorias. Por isso, se a "antropologia das missões" é um lugar privilegiado para captar "olhares de fronteira", em que teolo-gia cristã e cosmologia indígena se constituem ao mesmo tempo como terreno e como linguagem de mediação, ela é também um lugar privilegiado para pensar as fronteiras conceituais e discipli-nares entre a antropologia e a história.

Page 148: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

C A T E Q U E S E E T R A D U Ç Ã O : G R A M Á T I C A C U L T U R A L , R E L I G I O S A

E L I N G Ü Í S T I C A D O E N C O N T R O C A T E Q U É T I C O E R I T U A L N O S

S É C U L O S X V I - X V I I

Adone Agnolin

I N T R O D U Ç Ã O : G R A M Á T I C A C U L T U R A L E R E L I G I O S A

A CARACTERÍSTICA criação da língua geral e o encontro catequéti-co e cultural ensaiado, através dela, pela catequese missionária jesuítica dos séculos XVI-XVII fundamentam-se, em primeiro lugar, na peculiar e paradigmática situação dos encontros culturais vivi-dos ao redor do Mediterrâneo: de fato, antes da nova dimensão mundial da catequese, decorrente da descoberta americana, essa situação já havia, de alguma forma, costurado uma heterogeneida-de cultural num reduzido espaço geográfico.

Na situação constituída por essa concreta experiência de hete-rogeneidade cultural e histórica, com referência tanto ao passado quanto ao presente, os europeus viviam e conheciam bem a (muitas vezes dramática) pluralidade das culturas. Esse espaço e essa memória se constituem, necessariamente, como os instrumentos e as possibilidades (uma verdadeira ferramenta cultural/conceituai)

Page 149: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

de colocar para si e interpretar as populações americanas recente-mente descobertas. Inserir, de algum modo, essas populações nesse seu contexto cultural permitiu aos europeus absorver o impacto de uma alteridade de outra forma impensável,1 sem que essa operação pudesse subverter a imagem global do mundo ocidental. A perspec-tiva cultural própria da Europa do século XVI e sua experiência his-tórica concreta determinaram o percurso no interior do qual se constituiu um saber em constante elaboração e negociação, deter-minando o ponto de vista dentro do qual documentos e fatos emer-giam de um contexto determinado.2

Só que o novo contexto renascentista e seu peculiar percur-so histórico se ressentiam ainda, inicialmente, de uma recente e importante ruptura: o fato é que com o ocaso do geocentrismo e, posteriormente, com o delinear-se das descobertas geográficas americanas e da Reforma protestante, realizou-se uma profunda (e insanável) fratura em relação ao mundo herdado da Idade Média. A troca de símbolos que se realiza nessa época torna-se emblemática dessa ruptura: em contraposição à "missão" de liber-tar o Santo Sepulcro (a centralidade simbólica do cristianismo medieval representada por Jerusalém), impõe-se (gradativamente, lembrando os objetivos iniciais das navegações de Colombo) a necessidade de contrastar, em toda a superfície terrestre, um mul-tiforme e imprevisível inimigo: o Demônio. E à (re)conhecida "multiformidade" assumida por esse inimigo do gênero humano nas vestes dos antagonistas tradicionais, heréticos e "mouros", jun-tavam-se agora as novas ameaçadoras aparências sob as quais ele se manifestava através das numerosas espécies de protestantes e do multiplicar-se, vertiginoso, das diversidades (só progressiva-mente e muito gradualmente reconhecidas como culturais) que, aos poucos, entram a compartilhar o espaço do consórcio humano.

E nessa dimensão da(s) diversidade(s) temos de levar em con-sideração o determinar-se e estruturar-se de suas distinções inter-nas, no momento em que, ampliando-se, o espaço terrestre, final-mente, definia-se.

Page 150: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

A) Poder-se-ia falar numa estruturação e graduação das "dife-rentes diversidades", que se estenderia:

desde a diversidade da China, emblema de uma cultura com-plexa e refinadíssima que tanto encantará comerciantes, diploma-tas, missionários;

até a América, contraposta à primeira como emblema da diversidade mais selvagem e estrangeira;

definindo-se um pólo intermédio, representado pelas culturas andinas e centro-americanas (revalorizado como anel de conjun-ção, na constituição de uma escala hierárquica das culturas, por parte de Acosta, por exemplo);

para chegar à diversidade, ao mesmo tempo, mais próxima e odia-da/temida (e que permanecia, todavia, enigmática), a turca/muçulma-na, que é aquela que, ainda neste século, suscita o maior interesse.3

Além do mais, é importante observar como, por outro lado, as gradações dessas diversidades tornaram-se, às vezes, instrumentais — destacando-se, muitas vezes, como importantíssimos instru-mentos — para interpretar-se reciprocamente. Assim, por exem-plo, para a estratégia missionária jesuítica será importantíssima a relação e a circulação de informações entre os dois planos, histó-rico e cultural, envolvidos nos recíprocos esforços de interpretação das diversidades.

B) Por outro lado, há uma diversidade (interna) dos intérpretes europeus dessas diversidades (externas). Assim, a alteridade muda-rá de aspecto em relação ao olhar do conquistador, do comercian-te, do missionário (e, nessa direção, a diversidade ganha nuances diferenciadas levando em consideração as diferentes diretrizes das várias ordens missionárias), do degredado etc.

C) Essa diversidade interna ao mundo ocidental aponta, tam-bém, para uma outra importante fratura em relação ao mundo (simbólico) da Idade Média. Podemos colher os símbolos mais sig-nificativos dessa fratura em dois fenômenos que, em princípio,

Page 151: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

permanecem profundamente ligados ao momento do afastamento (a partida) do mundo ocidental. Trata-se das emblemáticas parti-das dos cruzados e dos missionários. Se, como diz Alphonse Dupront "Lart de partir est le fait même de la croisade" (Dupront, 1997, 3e vol.: 1299), este mesmo fato parece caracterizar, também, a viagem missionária (Roscioni, 2001). Mas as analogias param por aqui. De fato, as características distintivas dessas duas viagens sintetizam, sobretudo, as peculiaridades de duas épocas históricas:

O cruzado vive a partida como um evento eminentemente coletivo, o missionário como o coroamento de um, por longo tempo, acaricia-do desejo individual.

E nessa profunda diferença inserem-se todas as outras.

O primeiro deixa o próprio país, todas as vezes que consegue, com a família, o segundo contra a família, que procura colocar-lhe obstáculos de todas as formas. O cruzado tem uma meta precisa, a Palestina, e um objetivo definido, a liberação do Sagrado Sepulcro. O indipe-ta4 tem uma idéia tão indeterminada de seu atracadouro que não exclui de alcançar a verdadeira meta durante o percurso. (Roscioni, 2001: 109)

D) E no que diz respeito a essa dialética européia do coletivo versus individual, é tanto mais significativa sua verificação até nos momentos mais peculiarmente ligados às práticas sacramentais da época, em sua revisão pós-conciliar (Prosperi, 2001: 120-1). Verifi-caremos esse aspecto acompanhando, sobretudo, mais adiante, o processo de afirmação da peculiar "gramática religiosa" que, nesse momento histórico, se desprende, também, em relação à fratura do mundo simbólico da Idade Média, retomando — mais propriamen-te Re-formando — o inicial imperativo catequético cristão.

Ora, a intensa e, às vezes, dramática experiência européia da pluralidade das culturas aponta para as diferentes temporalidades

Page 152: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

e espacialidades vividas nas índias longínquas, mas também, ao mesmo tempo, nas índias internas à própria Europa. O fato é que a perspectiva cultural própria da Europa e sua experiência históri-ca concreta determinaram os percursos e as modalidades no inte-rior dos quais se constituiu um saber em constante elaboração e negociação que, ao mesmo tempo em que fornecia instrumentos para ler alteridades longínquas, determinava, também, a condição e o grau de impacto dessas alteridades em relação a seus instru-mentos (europeus) de leituras.

A partir dessa perspectiva, parece que, finalmente, de várias partes, a recente pesquisa histórica e etnológica comece a investi-gar as muitas formas do encontro,5 isto é, começa-se a reconhecer como, no fundo, a contraposição tradicional entre vencedores e vencidos elide por completo o problema. E, de fato, mais uma vez o momento histórico da descoberta americana reabria, de forma nova, o velho problema e o conseqüente processo de relativização nascido perante a ruptura de uma ordem estabelecida. John Elliott lembrou, bem a propósito, como, transcorrido apenas um século da descoberta americana, Justo Lípsio aplicou, justamente, à nas-cente relação instaurada pelo encontro, o ditado relativo a gregos e romanos: "Novus orbis victus vos vicit" [O novo orbe vencido vos venceu] (Elliott, 1970: 63).6

Trata-se, enfim, de reconhecer, em primeiro lugar, que os ato-res sociais definidos como "vencedores" e "vencidos" se modifica-ram reciprocamente, para posteriormente tentar definir segundo quais e quantas modalidades. Em segundo lugar, nessa perspecti-va fundamentada no encontro prioritário entre os instrumentos analíticos da Antropologia e da História, trata-se de reconhecer a proposta de colher o encontro cultural rejeitando a velha hipótese de blocos culturais monolíticos, para abrir-se em direção a uma análise mais atenta das muitas, complicadas e diferentes histórias, que são também internas às culturas particulares na interseção das quais "vencedores" e "vencidos" se transformam necessariamente através do contato, deixando de ser o que eram até então: esses são

Page 153: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

os pressupostos fundamentais compartilhados por este trabalho e os demais desta obra justamente coletiva na medida em que as diferentes investigações convergem, justamente, nesse pressupos-to comum.

Se, a partir dessa perspectiva, a análise aparece complicada quando destinada a reconstruir o ponto de vista dos vencidos, acre-ditamos que o processo de retorno dos efeitos da conquista sobre a cultura européia, por um lado, e a história das formações culturais que resultam de um necessário compromisso, por outro, represen-tem os pontos fundamentais para conduzir nossa indagação. Dessa forma, a relação estabelecida no encontro com o Novo Mundo obri-gou, desde o começo, à seleção das mensagens em função de sua eficácia — de um e de outro lado do Atlântico —, medida pela rea-ção dos destinatários: de alguma forma, o contato estabelece um "contrato colonial" (Rafael, 1988). Nosso estudo pretende exempli-ficar essa específica e genérica situação colonial através da análise do precursor "encontro catequético" que, nos parece, evidenciou quanto as operações de seleção, simplificação e adaptação se cons-tituíram como operações necessárias e fundamentais para que a herança cultural européia pudesse, de alguma forma, ir ao encon-tro do mundo americano: os missionários configuraram-se como os protagonistas na realização dessas operações, ao mesmo tempo em que, através delas, escreveram — em contínua negociação com sua própria herança cultural e com sua própria função — uma primei-ra "história dos vencidos".

Ora, falar em negociação significa, também, levar em conside-ração as inevitáveis e ;ao mesmo tempo fundamentais precondições da descoberta: elas se referem, sobretudo, a um "modo de proce-der^ que, ao redescobrir o antigo, o colocava ao lado do moderno; desenvolvia-se, enfim, uma atitude que, constituindo-se ao mesmo tempo como cauta, concreta e disponível para com o novo, se con-figurava como capaz, enfim, de fazer com que o novo e o antigo pudessem realizar uma forma de convivência bastante peculiar, sem que, por isso, se colocassem excessivos problemas de coerência.8

Page 154: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Ora, todavia,

a relativização da "verdade" religiosa constitui o êxito de uma oposição entre cultura humanista e intolerância teológica, na qual a comparação etnológica e o conhecimento do "diverso" americano adquirem uma função instrumental. Por outro lado, a vontade de cancelar as diferen-ças, de relativizar a unidade de fé no mundo todo — um só curral e um só pastor — preside tanto aos conflitos religiosos europeus quanto à original mistura de exploração e de catequização que se encontra na colonização ibérica. As premissas, por outro lado, são aquelas da "reconquista", com o cancelamento das minorias religiosas internas: e isto, o pensamento político dos Quinhentos, de Maquiavel a Gentili, o havia compreendido claramente (Prosperi, 1992: 413).

É nessa direção que as cartas jesuíticas adquirem uma outra importante função no controle e na gestão do fundamental instru-mento lingüístico para o domínio colonial. Nessas cartas, de fato, desenvolve-se o processo de administração que tem como função a formação de uma consciência unitária de inteiras coletividades. Dito de outra forma: é importante levar em consideração o fato de que, na ausência de uma ação direta do Estado, as cartas revelam a complexa e importante função política desenvolvida pelas igrejas na realização do exercício — ou pelo menos de sua intenção — da eliminação das diferenças.

Outro importante aspecto, característico da Missio européia constituída entre os selvagens americanos e os sábios chineses, é aquele representado pelo cruzamento de conhecimentos, imagens e tradições clássicas: a recíproca provocação de esquemas teológi-cos cristãos e de dados da experiência, que se destacam dessa cor-respondência, produz e materializa nas cartas os efeitos do novo conhecimento do mundo sobre as disciplinas da História e da Geografia e sobre sua nova relação.

De fato, se o novo espaço das navegações revelava novos mun-dos, esses ofereciam novas modalidades de pensar o mundo no

Page 155: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

tempo: destacava-se o fato de que o controle do espaço não podia ser separado do controle do tempo.

Em relação à rearticulação da memória histórica, a Renas-cença se destaca, portanto, por seu ideal programático de uma renovatio da sabedoria e da juventude do mundo antigo a ser res-taurada contra a decadência da Idade Média. Mas, em relação ao novo espaço que se abre e se determina em seus limites finalmen-te claros e estabelecidos, China e Japão, por um lado, tornar-se-ão a emblematização da sabedoria e da moralidade do mundo, enquanto a América, por outro, tornar-se-á a imagem privilegiada da juventude e, por conseqüência, da esperança do mundo.9

Já no século XVI, portanto, a Europa não descobriu somente um novo continente, mas se deu conta da existência de uma civi-lização mais antiga do que a própria que, se por um lado era dife-rente da sua, não era, por outro lado, menos rica, e podia até mesmo — sobretudo do ponto de vista dos costumes e da organi-zação política — ser elevada a modelo exemplar. Eis que começa a se delinear, nessa perspectiva, a colocação do Oriente entre os modelos da Humanidade, ao lado, se não mesmo acima, dos mode-los do mundo clássico grego e romano exaltados pela tradição humanista-renascentista.

Mas é justamente a grande novidade desse modelo redesco-berto10 que cria, inicialmente, um impasse que imporá uma longa e, às vezes, convulsa discussão e reorganização, tanto em relação aos modelos da prática missionária quanto, por conseqüência, nos processos transculturativos desse inédito encontro. Esse repensa-mento e essa rearticulação se tornam possíveis no momento em que, entre a(s) alteridade(s) interna e externa à Europa, se encon-tra (constitui-se) a garantia de uma Humanidade que, pondo-se como subjetivamente única, possa permitir o constituir-se de uma nova análise do homem como obiectum homo, sem que se corra o risco de uma "fragmentação" da unidade humana que ponha em perigo essa nova e frágil categoria. A nova Antropologia, que se

Page 156: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

destaca na época, fundamenta-se, antes de mais nada, nessa pos-sibilidade de "objetivação do Homem".

É dessa forma que o século X V I I e o sucessivo se tornam tes-temunhos emblemáticos de quanto as "descobertas" tenham inci-dido enormemente na elaboração de Teorias, cada vez mais com-plexas e freqüentes, sobre o Estado e sobre o Direito de natureza, sobre o "relativismo" das normas e das crenças, sobre as origens dos povos americanos (Garcia, 1607; Grotius, 1642), até fomentar as teorias libertinas — paradoxalmente apoiadas nas informações dos jesuítas — que abriam a possibilidade de um poligenismo (Peyrère, 1655),11 numa curiosa convergência em direção a um hu-manismo aberto à utopia e que podia ver a sua realização exempli-ficada em II Cristianesimo Felice dei Paraguay.12 Daqui derivam, também, as reflexões de Giambattista Vico13 e, por outro lado, as de Montesquieu ou de Voltaire "sur les moeurs des nations". Daqui a comum maturação da reivindicação da dignidade e dos direitos dos povos extra-europeus e da rebeldia contra a opressão interna, nos países europeus. E tudo isso, mesmo que — como é o caso de muita documentação jesuítica — muitas vezes o modelo seja aquele de sociedades ideais, mais do que o de sociedades "primi-tivas". Fortemente idealizados são, por exemplo, os hurones das Voyages do barão de Lahotan (de 1703), assim como um marco importante da condenação do colonialismo se realiza com a Histoire philosophique de Reynal, até chegar à importante obra dos Discours de Rousseau, que detecta na sociedade européia e em seus fundamentos — isto é, nas modalidades segundo as quais o europeu estabeleceu as relações com os outros homens e com a natureza — a raiz da corrupção.

Eis que, por além de seus limites e de suas polêmicas, o século XVIII vê o nascimento de uma science de 1'homme, das viagens cien-tíficas e das disciplinas que começam a estudar as línguas, a lite-ratura, os costumes, as crenças, a sociedade dos povos extra-euro-peus: é o momento do afirmar-se dos trabalhos dos Observateurs de Vhomme,14

DEUS NA aldeia 151

Page 157: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Comprometida com a concepção (criação) de uma nova humanidade, a tradição renascentista pôde fomentar a realização de um processo civilizador (Elias, 1939: vol. i) que se torna o novo e fundamental paradigma de uma especularidade comparativa. Na esteira desse processo, entre a "curiosidade", pacata, mas sutil, de Montaigne (Agnolin, 2000) e Vhomme sauvage da paixão política de Rousseau, chega-se, assim, a pôr os fundamentos de uma efe-tiva antropologia (Gasbarro, 1992).15

Em conclusão, o processo de reelaboração e de adaptação dos saberes tradicionais diante de novos mundos, culturais e geográfi-cos, é de extrema importância a fim de entender melhor o modo segundo o qual se capta o novo e se desenvolve uma confiança nas obras humanas que subentende uma nova atitude conquistadora: "ad maiorem Dei gloriam \ no caso jesuítico.

Como já vimos na introdução de um trabalho publicado ante-riormente (Agnolin, 2001: 19-71), algumas características gerais sobre as quais se constituiu o primeiro imperativo catequético cristão já apontavam para as iniciais atitudes conquistadoras da cultura cris-tã-ocidental. Vimos como a catequese encontrava sua origem, seu fundamento e sua instituição no evento originário expressado pelo "E Deus falou". Trata-se da peculiar instituição do verbum de João na tradição evangélica (João 1, 14). É a partir dessa tradição que Cristo, como verbum de Deus (isto é, como enviado do Pai), teria se tornado o impulso para a Igreja assumir sua missão profética que se consti-tuiu como "ministério da palavra". E a partir desse mesmo pressupos-to fundamental, portanto, que a missio adquire a função de desven-dar esse "ministério da palavra": conseqüentemente ela tem a função de "anunciar a obra e a palavra do Mestre a todas as gentes" (Mateus 28, 20). E na missão, portanto, que devia se realizar o encontro com os "mistérios" desvendados por Deus em sua fala, a qual reivindicava um povo (no Antigo Testamento) ou o homem (no Novo) como inter-locutor pessoal do diálogo.

Justamente dentro dessa perspectiva, a revelação cristã se reali-zava, também e necessariamente, na sua inscrição ao longo de

Page 158: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

um caminho histórico da humanidade, tornando os homens cate-cúmenos, isto é, na realização de um projeto (mistério) de Deus que, ao mesmo tempo, transcendia a, e se inscrevia na, própria his-tória. A transcendência em relação à história seria dada ao homem pela fé, enquanto a inscrição na história lhe seria oferecida pela mis-sio — o anúncio de Deus, como misterium, e do Cristo, como ver-bum —, que impunha ao homem (cristão) uma obra de "incultura-ção na fé". Ora, como relevamos naquele trabalho, se a constituição do encontro entre os homens dentro desse processo colocou as bases para a perspectiva de uma nova aproximação entre eles (entre suas diferentes culturas), neste caso o cristianismo encontrou-se na necessidade de constituir novos processos de "mculturação da fé". Abria-se, dessa forma, a perspectiva de uma nova determinação da história do homem, que se inscrevia dentro do paradigma da cate-quese: essa "nova história", peculiar da revolucionária perspectiva cristã, configurava-se como uma história da comunicação da fé.16

Na base dessa revolucionária perspectiva histórica cristã, na época pós-apostólica adquiriu uma relevante importância toda uma tradição de escritos de bispos e pastores que, atendendo a uma parte importante de seu magistério, compunham instruções orais e cate-cismos destinados aos catecúmenos, isto é, aos homens que se colo-cavam dentro desse novo e peculiar caminho histórico da humani-dade, no qual se inscrevia a revelação do mistério cristão.

Na perspectiva histórica que diz respeito ao encontro cate-quético do século XVI, entre a herança humanista-renascentista e a ruptura da Reforma luterana, o ecumenismo cristão também recupera e reveste de novo valor a tradição antiga, onde quer que essa seja colocada, dependendo das posições polêmicas. E ainda — da mesma forma que em relação ao Re-nascimento e à Re-forma —, o passo atrás que se remete à tradição serve para o ecume-nismo cristão realizar melhor o salto que leva à Devotio moderna e que engloba as diferentes posições do reformismo religioso da época. O fato é que, se na Idade da Reforma "Lutero modificou a língua, o imaginário, os valores do cristianismo" (Romano, 1998: 7),

Page 159: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

a abertura para formas do pensamento moderno, que deviam ins-taurar uma subjetividade com a função de dissolver a Tradição mais ou menos recente, não constituiu uma prerrogativa exclusiva do pensamento luterano. Também do lado católico, de fato, a subjeti-vidade começou a instalar-se não somente contra a, mas apesar da, e paralelamente à, Tradição.17 O resultado que se consolidou com a Reforma representa, antes de mais nada, o êxito mais significativo de uma anterior e mais abrangente revolução cultural: aquele "divino" que, após Lutero, se encontraria de modo privilegiado na consciência humana, antes dele viu constituir-se uma consciência humana que começava por reclamá-lo a si (Delumeau, 1990; 0'Malley, 1993; Prosperi, 1996).

E, além da — e paralelamente à — contribuição da obra lute-rana para com esse resultado histórico propriamente moderno, os Exercícios espirituais de Inácio de Loyola representam, talvez, o exemplo mais emblemático que relaciona (e destaca) os novos ter-ritórios da consciência individual, junto à disciplina e à escrita e que —juntamente com a força de uma imaginação que "materia-liza" as imagens dessa consciência e de seus territórios — consti-tuirão os instrumentos fundamentais da missio jesuítica nas novas terras americanas (Barthes, 1990: 41-72).

De fato, na nova direção da atividade apostólica jesuítica que se desprendia da nova espiritualidade dos Exercícios inacianos confluí-ram várias estratégias de evangelização: nelas encontramos o esfor-ço de se adaptar a "um outro mundo" — realmente novo — que impunha a necessidade de renunciar (parcialmente) à própria lín-gua, para aprender e usar uma nova e, com esta última, para adqui-rir novos modos de pensar e pregar o Evangelho. Dessa maneira, o novo missionário ia alcançando uma consciência mais profunda de si e do mundo, que se constituía como dimensão universal que per-mitia superar a particularidade própria ou alheia. Isso fazia com que o missionário jesuíta descobrisse uma própria, fundamental, conver-são que colocava pontualmente em relação à própria vocação mis-sionária e o itinerário espiritual dos exercícios inacianos. E a esse

Page 160: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

respeito que tanto o percurso da nova prática missionária quanto os Exercícios de Inácio se destacavam por sua característica função de iniciação para com este mundo outro, realizando uma "temível expe-riência" de perda da cultura nativa do missionário para chegar, final-mente, a uma identidade cristã universal.

Era, justamente, a construção da identidade cristã universal que, permitindo de qualquer forma uma compreensão do "outro", devia fundamentar sua conversão: nessa direção, se a nova espiri-tualidade dos Exercícios inacianos apontava para um aniquilamen-to do indivíduo no caminho que devia levá-lo a Deus, o percurso através da "temível experiência" (missionária) oferecia-se como a porta de acesso necessária para alcançar essa espiritualidade. O que se destaca, nessa relação direta entre espiritualidade e missão jesuítica, é a emergência de estruturas paralelas entre os dois pro-cessos. Dito de outra forma, uma estrutura paralela ecoa entre a experiência da alteridade etnológica (missionária) e a experiência da alteridade interna do próprio missionário (sua espiritualidade): antes da "redução" da alteridade etnológica, enfim, estrutura-se uma paralela "redução" (aniquilação) do próprio missionário.

O fato é que a elaboração de um mundo de imagens, bem per-ceptíveis pelos sentidos, constituiu os Exercícios espirituais como "escrita viva": uma grafia espiritual escrita na consciência dos mis-sionários com a tinta do pecado e lida com os instrumentos senso-riais —- todos os cinco sentidos, como destaca o próprio Inácio. Os Exercícios configuram-se, finalmente, como uma verdadeira "gra-matização" da consciência, direcionada e formalizada pela media-ção do diretor espiritual. Mas vale a pena observar, sobretudo, como à estrutura dessa dimensão intimamente espiritual corres-ponde uma paralela estrutura intimamente própria da dimensão missionária. Nessa direção, impõe-se uma "gramatização" da orali-dade (da "volatilidade") da língua indígena paralela e fundamental-mente análoga àquela da consciência. E, ao mesmo tempo, essa língua tem de ser "gramatizada": 1) para permitir uma incursão nela por parte do próprio missionário, como experiência de auto-estra-

Page 161: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

nhamento; 2) para poder realizar uma excursão (etnográfica e etno-lógica) na cultura alheia; e, enfim, 3) para poder reduzir, antes de mais nada lingüisticamente, a alteridade do outro no único espaço que podia ser-lhe — e no qual podia ser — reconhecido: a identi-dade cristã universal. A aquisição dessa última identidade devia permitir ao missionário, finalmente, a possibilidade de reajustar o signo lingüístico a fim de poder usá-lo para fins doutrinais. E, como verificação do paralelismo desse percurso, não é sem importância observar como o percurso da importante figura do "língoa" jesuíti-co passa, necessariamente, por todas essas etapas, da mesma forma que o "diretor espiritual" passa por etapas análogas na admi-nistração dos exercícios a quem lhe é submetido.

Ora, levando-se em consideração a complexidade desse pro-cesso, destaca-se o fato de que a pragmática operativa da "literatura catequética" e de suas problemáticas decorrentes torna-se possível por uma tradução, aprioristicamente realizada, que se constitui como a possibilidade (necessariamente pressuposta) de ler a alte-ridade sub specie religionis, isto é, numa perspectiva "religiosa" que somente podia permitir recuperar essa alteridade encontrando e construindo uma sua "religiosidade" característica que, ao mesmo tempo, devia alargar o próprio conceito (ocidental) de religião: uma "religião como tradução", segundo o emblemático título do livro da Cristina Pompa (2003). Por outro lado, porém, a tradução, propriamente lingüística e cultural, destaca-se e caracteriza-se por um aspecto que vai muito além de uma simples subordinação fun-cional ao primeiro pressuposto.18 Enquanto instrumento de expressão da doutrina e dos conceitos do Ocidente cristão, propos-ta segundo a escrita (alfabética), configurando-se como captura de uma oralidade fugidia e obscura (na definição jesuítica), segundo uma determinada ordem do discurso (no sentido foucaultiano) etc., muito mais do que caracterizar (direta e simplesmente) a tra-dução lingüística de forma subordinada à leitura da alteridade sub specie religionis, a gramática lingüística (latina) caracteriza de forma performativa a língua (cultura) alheia, aproximando, progres-

Page 162: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

sivamente, sua alteridade na medida em que a inscreve paralela e contemporaneamente dentro da sua peculiar dimensão lingüístico-gramatical.

Já com a política de aldeamentos, antes em São Paulo de Pirati-ninga e depois no Rio de Janeiro, que começa a ser delineada desde o final dos anos 50 do século XVI,19 assim como nas reducciones ins-tituídas, entre 1610 e 1768, entre o Sul do Brasil, o Paraguai e o Norte da Argentina, a missão jesuítica pretende construir, de fato, uma conversão religiosa que mire num novo paradigma de vida indígena, com relação ao anterior sistema de deslocamento missio-nário junto às suas aldeias. Mas essa mudança de paradigmas não se constituía — não podia se constituir — de forma unívoca. Para poder-se realizar, de alguma forma, o processo de encontro cultural (religioso) fazia-se necessário introduzir, por parte dos missionários, elementos novos em paradigmas (indígenas) antigos, assim como, com maior dificuldade, tentava-se introduzir novos paradigmas cul-turais (religiosos) utilizando velhos elementos culturais indígenas. Fica evidente, todavia, que a tentativa dessa evangelização por redução acabava freqüentemente, do lado indígena, por fomentar a produção de um peculiar universo cultural do qual os missionários, inicialmente, não podiam suspeitar a originalidade nem a força: a "re-dução", por eles imposta, acabava se constituindo numa forma peculiar de "pro-dução" (ou talvez, melhor, de reprodução) da nova cultura aldeada/reduzida.

G R A M Á T I C A L I N G Ü Í S T I C A

A R E D U Ç Ã O L I N G Ü Í S T I C A : E N T R E FALTA DA PALAVRA,

S E L E Ç Ã O F O N É T I C A E P O D E R DA N O M E A Ç Ã O

E a partir do contexto histórico da "gramática cultural" (renascen-tista) e daquele teológico da "gramática religiosa" (catequética) — acima brevemente tratados — que se desprende e pode ser devi-damente analisada a peculiaridade da política lingüística missioná-

Page 163: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

ria nas Américas: em todo o continente americano essa política lin-güística se traduziu, sobretudo, na sistematização da "língua geral". Esse fato, porém, ocorria de forma tanto mais evidente quanto menos essa língua geral se mostrava voltada para a comunicação com grupos indígenas tupi — na medida em que esses estavam desaparecendo e o "tupi" adquirindo características de uma "língua (voltada para a comunicação) colonial" —, e é um fato que tem, do nosso ponto de vista, uma importância notável na construção do projeto catequético jesuítico do Brasil.

Ora, a língua geral dos jesuítas representou o fruto de um longo processo de construção que, em sua primeira fase, se reali-zou ao longo de toda a segunda metade do século XVI.20 Atribuído ao pe. Leonardo do Vale, o famoso Vocabulário na língua brasílica (1622) foi copiado e recopiado, nesse século, em todos os cantos da colônia e mesmo nos colégios inacianos da metrópole, para uso dos aprendizes.21 Circulou em múltiplas cópias manuscritas, cons-tituindo-se, também, como obra coletiva: exemplo da paciência e do engenho dos religiosos no aprendizado e na sistematização, sempre incompletos, da língua indígena.

Eis que, no sucessivo século XVII,

com "o novo descobrimento do Maranhão", se abria uma nova seara, onde os missionários iriam espalhar o Evangelho, munidos não ape-nas da palavra de Deus, como também de uma língua indígena e de uma larga experiência de tradução. [...] Foi [nessa época] a língua geral que serviu para estabelecer um campo de mediação entre índios das mais diversas origens étnicas e lingüísticas e os missioná-rios. A rápida expansão da língua pela Amazônia nos séculos XVII e XVIII constituiu um elemento crucial nos projetos coloniais portu-gueses, tanto na sua dimensão missionária quanto nas atividades conduzidas por interesses particulares. (Monteiro, 2000).

Foi a abertura das missões na Amazônia que estimulou a pro-dução e publicação de novos manuais de gramática22 e de catecis-

Page 164: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

mos;23 sem esquecer a importante experiência de tradução em outras línguas indígenas.24

Nesse século, todavia, há uma outra língua indígena sul-ame-ricana que condiciona a missão catequética jesuítica e à qual se atribui a denominação de "lengua generaltrata-se da língua gua-rani. Como revelou Bartomeu Meliá, a política lingüística que, desde 1610, através da estratégia missionária das "Reduccionesos jesuítas iriam seguir entre os guaranis do Paraguai estava bem defi-nida a partir da clara percepção de que se tinha consciência, isto é, de que o guarani representava, de fato, uma língua geral (Meliá, 1995). Esse fato, juntamente com a importância da relação entre política lingüística e exigência doutrinária, torna-se evidente, como demonstrado pelo autor, com a aplicação ao Paraguai do mandado do Concilio de Lima de 1583, através de uma ordenação do Sínodo de Asunción de 1603 que dizia:

[...] por haber muchas lenguas en estas provincias y muy dificultosas, que para hacer traducción en cada una de ellas, fuera confusión grandísima [...] ordenamos y mandamos que la Doctrina y Catecismo que se há de ensenar a los indios sea en la lengua guarani por ser la más clara y hablarse casi generalmente en estas provincias [...]:25

A história da língua guarani delineia-se de forma análoga àque-la da língua tupi: como os tupis, os guaranis parecem ter se benefi-ciado de uma certa unidade lingüística em seus deslocamentos, e, sobretudo, como no caso do Brasil, alguns viajantes europeus do primeiro período puderam se aproveitar da língua, apreendida em um lugar, para servir-se dela em outros lugares distantes. E se o moderno lingüista Aryon Dalllgna Rodrigues (1986: 32) pôde afir-mar que, apesar de sua enorme dispersão geográfica, as línguas da família tupi-guarani mostram pouca diferença, pode-se, de alguma forma, compreender — apesar de um seu justificável (em termos missionários) exagero — a ênfase de uma (certa) unidade lingüísti-ca extensa, nesses territórios, proposta pelo pe. Montoya.

Page 165: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Tan universal [esta unidade lingüística], que domina ambos mares, el dei Sur por todo el Brasil, y cinendo todo el Peru, con los dos más grandiosos rios que conoce el orbe, que son el de la Plata [...] y el gran Maranón, a él inferior en nada [...] ofreciendo [...] paso a los Apostólicos varones, convidándolos a la conversión de innumerables gentiles de esta lengua. (Montoya, 1639).

Todavia, ainda hoje, os modernos lingüistas indígenas identi-ficam, ao todo, 21 línguas vivas da família tupi-guarani em territó-rio brasileiro (Rodrigues, 1986: 33), sem levar em conta as diferen-ças dialetais. Considerando-se esses dois fatos, aparece uma característica importante em relação à família lingüística tupi-gua-rani, isto é, que, apesar de constituir-se através de uma curiosa e extensa unidade lingüística — e determinando assim a possibilida-de dos deslocamentos nômades (e de conseqüentes novas relações a se estabelecerem) —, a "unidade" das respectivas línguas gerais tupi e guarani não se constituía como "unicidade": operação que marcará os objetivos de um Estado ou de uma proposta imperial.

Em relação a esse novo aspecto, como bem relevado por Melià,

a unidade da língua guarani, apreendida como sistema de linguagem que permitia a compreensão mútua de vários grupos indígenas entre si, foi levada em consideração como princípio de outro tipo de uni-dade: isto é, como norma que podia ser promovida entre os falantes de vários dialetos guarani. Da unidade como estrutura comum se pas-sava à unidade como norma geral. A elaboração de gramáticas e a divulgação de escritos constituíram dois dos mecanismos do quais se serviram os jesuítas dos séculos XVII e XVIII, tendo em vista a criação, por assim dizer, de uma língua geral', que foi a mais representativa do período colonial e à qual se aplicou, um tanto exageradamente, o epíteto de "clássica". (Meliá, 1995: 18, grifos nossos).

Page 166: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

O "caso" guarani manifesta-se, assim, como o curioso e signi-ficativo paralelismo do processo que se constituiu na segunda metade do século XVI com a "língua geral da costa" no Brasil. De fato, em ambos os casos, a analogia da "política lingüística" ecoa tanto no percurso normativo que essas línguas gerais vêm assu-mindo quanto em suas definições referenciais (ao mundo clássi-co): se a língua guarani pôde ser vista como "clássica", em relação ao tupi pôde-se falar do "grego da terra" (Castelnau-CEstoile, 1999: 149-59).

Dois são, a nosso ver, os principais processos segundo os quais se realizava a unidade normativa, lingüística e cultural indígena para fundar uma possibilidade interpretativa jesuítica (ocidental). Por um lado, os aldeamentos nos territórios culturais tupi criavam, com modalidades e intensidade diferentes, aquele melting pot que será característico, sobretudo, das Reducciones jesuíticas e que, determinando movimentos de êxodo, deslocamentos e recolocação dos grupos guarani, caracterizará, também, "descimentos", organi-zados por missionários, e deslocamentos maciços de populações nativas, realizadas por tropas de resgate, conseqüentes ao "novo descobrimento do Maranhão"; por outro lado, em decorrência des-sas situações, por muitos aspectos, paralelas em relação ao impor-se das duas "línguas gerais", tanto a língua tupi quanto a guarani se en-contraram na necessidade de serem generalizadas, isto é, normali-zadas e normativizadas.

O projeto colonial, necessariamente político e civilizador, carac-terístico tanto das reduções quanto das missões na Amazônia, fun-damentava um novo sistema dentro do qual deviam se integrar as novas grandes concentrações de povoados indígenas: uma nova gramática e uma nova semântica serviram para tornar possível a pragmática desse novo sistema. A "política lingüística" realizava-se paralelamente à redução das populações indígenas. Dessa forma, reduzir as línguas orais — ou a língua, no singular, com suas fun-damentais distinções dialetais —, com suas próprias "formas retó-ricas", à escrita, à gramática e ao dicionário, se constituiu como o

Page 167: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

passo lógico para uma profunda redução do discurso e da literatu-ra. Tratava-se de uma efetiva "conquista espiritual" das línguas guarani e tupi, conquista que resultava na criação de uma nova lin-guagem.26 Finalmente, o resultado foi que

a conversão podia significar, para os índios, muito mais que uma experiência religiosa: [...] [configurava-se como a] aquisição de um idioma capaz de traduzir os sentidos e os limites da dominação colo-nial. [...] A conversão estabelecia um campo de mediação determi-nando não apenas os contornos da submissão dos índios como tam-bém oferecendo instrumentos para a contestação.27 [...] [E um fato que, como] instrumentos de tradução, os catecismos, vocabulários e artes de gramática traduziam mais que as palavras: traduziam tradi-ções [...]. (Monteiro, 2000)

Nessa perspectiva se insere o esforço da análise desenvolvida a seguir. Isso quer dizer que, em relação à complexidade da ques-tão relativa ao acesso ao tupi indígena por parte dos missionários, o que nos interessa a respeito do tupi catequético que iremos levar em consideração é o fato de que, com ele, já nos encontramos por dentro da mediação (cultural e lingüística) da qual ele representa, ao mesmo tempo, um instrumento de realização e um resultado significativo, um produtor e um produto.28

Se, de fato, a "política lingüística" realiza-se paralelamente à re-dução das populações indígenas, deixaremos de lado, aqui, a pro-blemática da redução espacial.29 De qualquer forma, partindo das características da política lingüística, voltamos aqui nossa atenção para o problema da redução lingüística. O fato é que, aos olhos dos missionários, a dificuldade da conversão (religiosa) manifesta-se paralelamente à dificuldade da tradução (lingüística): e se falta o vocabulário para dizer o verbum evangélico, a função mais relevan-te da missionação jesuítica será aquela de construir uma gramáti-ca (latina) das línguas indígenas que começa por apontar, antes de mais nada, para problemas fonéticos (latinos) em relação à obscura

Page 168: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

fonética da oralidade dessas línguas. Em relação a essa obscura fonética, segundo as Licenças da Ordem concedidas à obra do pe. Mamiani,

o engenho do Autor [consistiu] em reduzir com tal clareza, e distin-ção a regras certas, e próprias uma lingua não só por si mesma, mas pelo modo barbaro, e fechado, que usam os naturaes em a pronu-ciar, muito mais difficultosa [...]. 30

Realizada essa necessária redução lingüístico-fonética, tratar-se-á, portanto, de gramatizar a língua, antes de averiguar o instru-mento de comunicação obtido, em suas possibilidades de dizer a doutrina e, onde não for diretamente possível, de construir ins-trumentos alternativos que permitam, de qualquer maneira, essa comunicação.

Na "advertências pera pronunciação da lingoa", do catecismo de pe. Araújo, torna-se evidente o esforço de uma anterior norma-tização fonética estruturada, como aquela gramatical, na base da língua latina e portuguesa, da mesma forma que não resultam menos evidentes certas curiosas categorias fonéticas dos gramáti-cos missionários, como no caso da denominação de certas vocais ("i", "a") chamadas de "grossas" ou "ásperas":

Pera maior intelligencia da pronunciação da lingoa conteuda neste Catecismo, poremos aqui algumas advertências para os lingoas moder-nos; deixando as mais para o vocabulario, que se deseja imprimir. 1. No que toca ás fillabas longas, ou breves, se guardar a o mesmo,

que no latim; conforme aos accentos, que se acharem em cima das vogães, se farão longas, ou breves.

2. [...] 3. Na pronunciação desta lingoa, há um i, a que alguns querem cha-

mar grosso, e outros áspero: o qual se escreve com um ponto em baixo . que responde ao de cima .f. i, este se pronuncia com um

Page 169: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

som grosso, ou áspero no ceo da boca, como se depois delia esti-vera, g, vt taira, tàirra, eima, e outros semelhantes.

4. Todo, c, que depois de si tiver, e, ou i, com uma risca no meio vt, c-e, c-,i, há se de pronunciar como se estivera escrito assi, que, qui, mas de maneira que se não especifique a letra, u, como no nosso Portuguez se não especifica nas palavras com que agora declaramos isto.

5. [...] 6. Na pronunciação do, gue, gui: umas vezes se dà a entender, u,

outras não, assi como no nosso Portuguez [...]. Mas não no qui, cuja pronunciação responde sempre â do Portuguez, [...] O que tudo se saberá com o uso.

7. [...] 8. O til, nesta lingoa, não é como M, ou N, na nossa, ainda que na

pronunciação differem pouco. Exemplo, t~i, Ainüpã, Ruã. 9. [...].

Sem deixar de lado o que nos parece uma estrutura significa-tiva — pelo seu propor-se em forma de decálogo que evoca o número dos mandamentos — dessas advertências que, concluin-do-se num significativo e emblemático ponto 10, trata, de fato, de uma letra que corresponde ao cerne da obra de catequese:

10. Onde se achar T. por si sò, há se de ler Tupã: o que se faz por escusar a repetição do dito nome.31

Trata-se, justamente, do fundamental trabalho interpretativo que, no todo ou em parte, espera pela realização do "lingoa": funda-mental ponte de mediação, ao mesmo tempo, entre cultura ociden-tal e cultura indígena, por um lado, e entre "gramática lingüística" e "gramática religiosa", por outro. O "língoa", como a "religião", cons-titui-se como produto híbrido que, por essas mesmas características, se oferece como paralelo e fundamental instrumento para interpre-tar a alteridade indígena: em sua formação é possível entrever o pro-

Page 170: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

cesso histórico dentro do qual se realizou o encontro.32 E se as prá-ticas e as estratégias do encontro cultural adquirem seu peculiar sig-nificado na perspectiva histórico-religiosa, parece-nos que, na pers-pectiva lingüístico/gramatical, adquirem seu peculiar significado as anexas práticas de estratégias escriturais: da gramática, da tradução, da versificação, da escrita etc. Como práticas escriturais, elas terão a função de uma aproximação performativa da alteridade — lingüís-tica e cultural —, inscrevendo-a, como dissemos acima, paralela e contemporaneamente dentro da peculiar dimensão lingüístico-gra-matical ocidental.

A correlação e o paralelismo entre tradução lingüística e con-versão religiosa parecem, de fato, tornar-se evidente lá onde o mis-sionário aponta para a "bestialidade da língua" indígena e da, a priori, decorrente necessidade de uma catequização desta última, antes do que de seus próprios falantes. Eis que, a esse respeito, obtemos uma substituibilidade dos verbos "converter" e "traduzir" em relação à língua e à religião (cultura): substituibilidade que confirma, portanto, a correlação e o paralelismo.

Desde o começo do apostolado no Brasil33 e a fim de interpre-tar corretamente a matéria lingüística indígena, é importante observar como, nessa perspectiva de uma substituibilidade dos ter-mos, os "língoas" deviam se tornar pessoas integradas à vida indí-gena ou, como no caso do irmão jesuíta Correia, acabavam sendo "escolhidos" por essa sua peculiaridade. Nessa função, paralela-mente a essa integração pessoal, todavia, esses intérpretes realiza-vam uma obra de extrinsecação, elaborando uma gramatização da língua (oral) indígena e, conseqüentemente, de sua cultura, desti-nada aos outros padres da Companhia.

Mas, além do irmão Correia, não podemos deixar de levar em consideração o exemplo, talvez mais característico do primeiro processo, de pe. Anchieta: a figura mais característica em relação aos resultados lingüístico-gramaticais destinados a uma forte influência para com os outros padres. Já em 1554 temos notícia de

Page 171: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

que o padre canário se dedica ao ensino da gramática tupi no Colégio de São Paulo de Piratininga. Dado importante em relação a uma necessidade, percebida desde o começo da missão brasilei-ra: é respondendo ao pedido do superior da Companhia que ele começa a compor a Arte da gramática. Em 1555, o pe. Nóbrega leva uma cópia desse texto manuscrito para a Bahia, a fim de ser utilizado para instrução dos novos missionários. O manuscrito cir-cula rapidamente, mostrando a forte necessidade missionária à qual respondia: trinta anos antes de sua publicação — ocorrida em 1595 — tem-se notícia de que já é utilizado para o ensino do tupi no Colégio de Bahia, e em 1560 o célebre professor pe. Luís de Grã torna obrigatório, finalmente, seu estudo.

A forte influência da obra lingüística de Anchieta, em relação aos outros padres da Companhia, é finalmente e explicitamente reconhecida tal como dívida pelo próprio compilador do primeiro catecismo publicado em língua tupi. No prólogo de seu catecismo, de fato, pe. Araújo reconhece que:

Pera a Companhia desta Provincia corresponder ao segundo [objeti-vo: isto é, "no que toca à communicação dos nossos com os naturaes em todas as partes do mundo, e particularmente neste estàdo do Brasil"] de dar por escrito, o que julgou podia ajudar per esta lingoa se saber, já contribuio com este meio, quando na era de 1595. fez imprimir a arte da lingoa, com a qual seus filhos podessem perfei-çoar o que com o uso da communicação com os índios fossem aprendendo.34

A filiação religiosa de Anchieta com os outros padres missioná-rios da Companhia aparece, aqui, como que reforçada por uma filiação decorrente de seu importante trabalho lingüístico, ao mesmo tempo em que a aprendizagem cotidiana da língua, decor-rente do "uso da comunicação", encontra-se na necessidade de ser "aperfeiçoada" — quase ela mesma doutrinada — através do exem-plar modelo anchietano da "arte da língua" (1595). Na trilha dessa

Page 172: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

problemática, portanto, juntamente com a importância da obra lin-güística de Anchieta, não podemos deixar de levar em consideração a importância de sua obra mais propriamente literária. Parece-nos que uma e outra dizem respeito a uma característica "prática da gramatização", lingüística e cultural. Ora, se a primeira encontra seu exemplo mais significativo na compilação de catecismos desti-nados aos indígenas, a segunda torna-se significativa em relação à constituição do mundo, mais geralmente, colonial. Trata-se, neste último caso, da representação (interpretação) "literária" dos impor-tantes acontecimentos que se referem à "construção do Brasil Colônia", nos quais o missionário encontrou-se envolvido. Duas experiências centrais representam, nesse contexto, um exemplo significativo. A partir de 1560, a figura de Anchieta se destaca, ao lado da de Nóbrega, como responsável por dois importantíssimos acontecimentos nesse contexto colonial: dá-se como responsável pela aliança dos tamoios com os portugueses e partícipe da funda-ção de Rio de Janeiro. Os resultados literários dessas importantes experiências históricas se constituem ao redor de duas obras — dis-tintas, centrais e correlatas: trata-se dos poemas De Beata Virgine e De Rebus Gesti Mendi Saa. Ora, se este último poema se propõe celebrar, em forma épica, o Capitão Português Mem de Sá vence-dor, no comando dos soldados cristãos, do reduto calvinista na baía de Guanabara, o primeiro poema foi pensado ter sido escrito nas areias de Iperoig, quando ele e o padre se encontravam reféns, durante as negociações de paz, dos índios tamoios.

Por conseqüência, torna-se evidente que enquanto o De Rebus Gesti configura-se como poema épico e literário propria-mente colonial, o De Beata Virgine nos revela algo mais fundamen-tal da prática letrada do Brasil do século XVI:

1. em primeiro lugar, revela o prioritário imperativo teológico que fundamentava a colonização;

2. desvenda, sucessivamente, a importante função de capturar uma alteridade em sua dimensão e em seu limite oral: na sua experiência

Page 173: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

de refém, Anchieta encontra-se, ao mesmo tempo, na completa condição de estranho perante aquele mundo; sua estranheza confi-gura-se, além da experiência histórica, na impossibilidade de um recurso fundamental de sua própria cultura, que lhe permita repen-sar o imperativo teológico — que no caso jesuitico teria que ser ana-lisado na sua peculiar perspectiva, como dizer, "mariológica" (?): a escrita;

3. portanto, o exercício da escrita na areia manifesta o objetivo funda-mental da sucessiva operação da escrita: a memorização. Esse exer-cício anchietano de uma composição através da memória propõe-se como precursor de uma escrita que se constitui para preservar uma memória, sua composição;

4. finalmente, antes do necessário constituir-se das estratégias cate-quéticas como práticas (letradas) dentro de sua peculiar dimensão teológico-política, tudo indica que os escritos anchietanos são importantes não somente por dar conta da historicidade das repre-sentações produzidas no contexto da evangelização do Brasil, mas por dar conta, antes de mais nada, da formação cultural dessas representações, de seus pressupostos, de suas potencialidades e de seus limites.35

De quanto foi proposto decorre que, dentro de um quadro geral no qual a religião delimita o campo de aplicação e o exercí-cio da política (Lestringant, 1991: 304), "a escrita, ao lado da espa-da e do bastão de ferro, terá uma função essencialmente coloniza-dora" (Daher, 1999: 234). Eis que, nessa ótica, segundo o pe. Antônio Ruiz de Montoya, os missionários jesuítas:

han hecho, y hazen grandissimo fruto, y servicio à Dios nuestro Senor en la conversion de aquellos Gentiles, a los quales de Barbaros, y de Selvages, no solamente los convierten à nuestra santa Fè, pero aun a la policia Christiana, muy en servicio de Dios e de su Magestad.36

Page 174: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

O processo de cristianização das novas populações precisa e pretende inscrever-se, portanto, juntamente com o "processo civi-lizador": de fato, nessa peculiar dimensão histórico-religiosa (oci-dental), a fides se configurava, ao mesmo tempo, como fidelitas em relação ao ordenamento político. O policiamento cristão (a policia Christiana) encontrava-se, portanto, ao mesmo tempo, a serviço de Deus e do Rei.

Nessa peculiar dimensão histórica e através do processo acima esboçado, portanto, a obra de Anchieta — da oralidade (de sua experiência) para a escrita (literária), da diversidade (indígena) para a identidade (teológica), da areia (exercício de memorização) para o papel (organização e imposição da memória) — se constitui como determinante de novas formas de organização do tempo e do espaço (Hansen, 1997). E essa organização espaço-temporal será tanto mais significativa na operação lingüístico-literária elaborada em língua tupi.

Partindo da proposta sugerida por Michel de Certeau (1982: 211) para compará-la com nosso material documental, relevamos, portanto, como as operações de tradução ou de versificação métri-ca do tupi parecem terem-se constituído, ao mesmo tempo, como conversão (lingüística) da escrita e conversão (religiosa) através da escrita, a partir de uma operação que se desprende do "aparelho exegético cristão", segundo a expressão proposta por De Certeau. Em relação a esses aspectos, poderemos compreender historica-mente a estratégia de propor a catequese ao indígena segundo sua própria língua na medida em que — na base da teoria lingüística proposta por Hansen e fundamentada numa inteligência histórica — tratar-se-ia, nas palavras de Daher (que sintetizam a análise de Hansen), de uma série de operações lingüísticas segundo as quais

a escrita terá de subordinar a oralidade para a re-atualização da memó-ria indígena e o encaminhamento da língua tupi até as "boas formas do verbo católico"; a língua tupi deve inscrever-se na temporalidade da ordem da racionalidade do Império português, enquanto homólogo

Dl:US ,\'A AI. D CIA 169

Page 175: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

da língua portuguesa; a língua tupi deve ser subordinada, dessa forma, à identidade católica, pois ela é uma similitude distante (do Bem); finalmente, para boa proporção da gramática, uma memória deve ser oferecida à língua tupi — pois ela é esquecedora — enquanto cons-ciência, constituída como reminiscência da falta do pecado original, do qual todos os homens são portadores. (Daher, 1999: 234-5.)

Eis, enfim, o reaparecimento da estrita relação, acima aponta-da, de uma consciência (racionalidade), condensada na língua por-tuguesa e na memória de sua escrita (gramática): mais uma vez, torna-se significativa, nessa relação, uma função análoga exercida pelos Exercícios espirituais, tanto em relação à materialização dos estados de consciência quanto em relação à utilização da escrita como importante instrumento de memorização. E se, neste último caso, a utilização de imagens e da dramaticidade ritualizada da con-fissão representa o instrumento contextual fundamental para estru-turar a "materialização" e a "memorização", no primeiro caso não podemos deixar de levar em consideração como os dois textos fun-damentais da gramática da língua tupi e dos catecismos ou doutri-na, elaborados na mesma língua, representam o forte grau de mate-rialização e de aplicação de uma lógica letrada e das práticas letradas de catequese a sociedades não gráficas (Daher, 1999: 235);3/ mas essa materialização produz-se, também, dentro de um contexto constituído de imagens e rituais dramáticos que foram deixando indícios através de outros tipos de textos: "autos" teatrais, poemas religiosos, rezas, bulas papais etc. Por conseqüência, junto à co-extensividade das duas formas textuais do catecismo e da gramáti-ca em língua indígena, não podemos deixar de levar em considera-ção suas diferentes formas de contextualização, por um lado, e sua correlação (não meramente analógica) com as práticas dos Exercícios inacianos, por outro, ou, mais geralmente, com as práti-cas decorrentes da confissão, na nova centralidade pós-tridentina que esse sacramento ritual vinha adquirindo.

Page 176: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Esses aspectos tornam-se tanto mais relevantes na medida em que o catecismo — toda a tradição catequética ocidental — não prevê sua manipulação direta por parte do índio-catecúmeno: a catequese como "instrução" propõe-se como prática de audição destinada à memorização do conteúdo das doutrinas. E, também, a partir dessa característica que se desprendem os "mal-entendi-dos" e certos contra-sensos: a própria operação lingüística veicula-da pela leitura dessas instruções abre, de fato, o problema de determinar não somente o que os catecúmenos entendiam, mas também como entendiam. A diferença estabelecida entre os dois pólos culturais extremos — a imposição de uma consciência (escrita) a sociedades "sem história" (caracterizadas pela oralida-de) — e a diferente "tecnologia da memória" que os caracteriza-vam deviam, necessária e automaticamente, abrir espaço para a constituição desses equívocos no encontro. Não podemos, de fato, esquecer que, às características peculiares da memória indígena — compartilhada anônima e coletivamente —, se somavam as características lingüísticas que, como no caso tupi, não só não conheciam estilos e formas textuais mas antes disso não distin-guiam (textualmente: o que nos remete sempre a uma forma de comunicação necessariamente contextual) convenções lingüísti-cas básicas como, no caso europeu, as de gênero e número.

Na sua análise do relato de Jean de Léry, Michel de Certeau demonstrou como o dicionário pôde tornar-se, no Novo Mundo, um instrumento teológico. Na análise que conduzimos (Agnolin, 2001), vimos como numerosos prefácios e prólogos de catecismos — mas isso acontece também em relação às gramáticas — mani-festaram esse aspecto, de forma evidente. Nessa direção podemos afirmar que, levando devidamente em consideração a complexida-de e inter-relação dos vários aspectos acima delineados — além da co-extensividade, os aspectos que se referem às diferentes formas de contextualização e a correlação com a confissão e com os Exercícios inacianos —, realmente a catequese, como obra desti-nada a um processo de conversão, se caracteriza por um corolário

Page 177: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

de operações de "dicionarização" e de "gramatização" das línguas americanas.

Como dizíamos em nosso artigo citado, a respeito do documen-to histórico, o Catecismo, levado em consideração em nossa inves-tigação, o fato é que, se a própria língua do gentio representava uma evidência, digamos, "material" da bestialidade, na obra cate-quética jesuíta essa matéria era destinada a ser plasmada para transformar, paralelamente, a bestialidade de seus falantes. Antes de "construir" catecismos, tratava-se, para os missionários, da neces-sidade de doutrinar a própria língua indígena. Eis o problema e o estabelecer-se do verdadeiro compromisso catequético:38 partindo de pressupostos catequéticos, quando escreviam em tupi, produ-zindo discursos doutrinários dirigidos a índios aldeados, os jesuítas operavam com conceitos e categorias gramaticais, retóricas, teoló-gico-políticas e metafísicas que não existiam nas culturas — e es-pecularmente nos instrumentos lingüísticos, na matéria destinada à replasmação por parte da catequese missionária — das popula-ções indígenas brasileiras.

A esse respeito, levamos em consideração, portanto, alguns dos compromissos lingüísticos que apontavam para o resultado de um contrato — colonial, catequético e gramatical — do qual será definitivamente impossível alcançar o processo de sua constitui-ção histórica. A exemplificação de alguns desses compromissos lingüísticos poderá, esperamos a priori, nos fornecer algumas indi-cações sobre a forma — com quais dificuldades e limites, com quais entendimentos e desentendimentos, através de qual pragma-ticidade e, às vezes, decerto não irrelevante, "fazer vista grossa" a respeito de alguns pseudo-entendimentos — segundo a qual se constituiu, com um certo consistente grau de performatividade, a comunicação.catequética.

Sintetizamos, esquematicamente, esses compromissos lingüís-ticos (culturais) materializados na língua, destacando o emergir de:

Page 178: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

1. uma introdução, sem mais nem menos (mas, às vezes, com algu-mas justificativas propostas pelos próprios artífices da introdução do termo), de palavras portuguesas ou latinas;

2. curiosos neologismos (como palavras compostas em parte por um termo português ou latim e em outra — geralmente o sufixo — por um termo tupi);

3. a seleção e o destaque de um precípuo significado dentro da flo-resta de significados de uma específica palavra indígena;

4. peculiares construções sintáticas para construir conceitos (ou fun-ções institucionais) que não encontravam soluções lingüísticas satisfatórias na língua indígena;

5. especificações a respeito das relações entre significante e signifi-cado em relação a determinados símbolos etc.

E ainda destacamos como, se num primeiro momento essa comunicação lingüística aparece constituída entre a escrita jesuítica e a língua indígena — até um certo ponto, claramente distintas —, entre o produto histórico e cultural de uma ou outra parte, numa análise mais atenta em relação ao lugar (cultural) dos dois interlo-cutores vimos emergir um hibridismo do próprio ato comunicativo e de seu processo. De fato, esse é constituído por uma locução que, muito mais do que uma simples interlocução, colocava em cena a representação de um diálogo (catequético) que, atrás da "realidade" da imposição monológica (a direção do Mestre-jesuíta que reduzia, literalmente, a resposta participativa do Discípulo-indígena a um simples consenso), desvendava um encontro de — em princípio, extremamente prováveis — diferentes sentidos. E os diferentes sentidos se encontravam numa matéria lingüística (nova) que, em sua continua mobilidade, teria revelado uma tentativa (contínua) de acomodação, realizando-se, também e paralelamente, pelo seu constituir-se como instrumento comunicativo performático.

Esse de alguma forma é o resultado lingüístico (material) da catequese jesuítica em língua indígena, sobre o qual é preciso deter-mo-nos em nosso estudo. Vamos levar em consideração, a seguir,

D i; U S ,\ A A L D E I A 173

Page 179: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

alguns exemplos que nos parecem bastantes significativos. Dois desses, um do primeiro e um do quarto tipo — da tipologia esque-matizada na página anterior —, nos são fornecidos desde as pri-meiras linhas do Diálogo da Fé, manuscrito, do pe. Anchieta.39

À pergunta do Mestre: "Marãpe imongaraíbip?ra renõindábe-téT, responde o Discípulo: "Cristãos".

A resposta do discípulo, em sua familiaridade lingüística, soa muito estranha dentro do texto tupi. Todavia, manifesta claramen-te uma escolha: a de não traduzir a adjetivação "Cristão", assim como o seu substantivo "Cristo".40 Para tanto, encontramos até uma justificativa, do próprio missionário, para introduzir, sem mais ou menos, esta e (veremos) outras expressões portuguesas/latinas: essa justificativa se fundamenta no fato de que também nas lín-guas européias verificou-se o mesmo em relação à adoção de ter-mos gregos, hebraicos etc., para expressar conceitos que não teriam pertencido, originariamente, às línguas européias. Se neste caso a estratégia, de fato, funcionou — o termo adotado permitiu introduzir o conceito estranho —, conseqüentemente, podia-se supor, não teria sido diferente o resultado imposto pela estratégia lingüística jesuíta.

Ora, a pergunta do mestre apresenta uma situação não inco-mum nos catecismos dessa época. A pergunta, traduzida em por-tuguês, seria: "Qual é o apelido [o legitimo nomear] dos que são batizados'?". Assim a tradução portuguesa proposta pelo próprio manuscrito de Anchieta. Todavia, entrevemos aqui um problema que, provisoriamente, esquematizamos como sendo do quarto tipo. De fato, a escolha de Anchieta torna evidente, aqui, um exemplo interessante da peculiar estratégia de construções sintáti-cas destinadas à construção de conceitos que não encontram solu-ções lingüísticas satisfatórias na língua indígena. O termo "batiza-do" é construído com uma palavra que condensa quatro termos tupis: o substantivo "y", que indica, neste caso, a "água"; o verbo "monhanga" (contraído), que significa "fazer";41 o substantivo

Page 180: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

"karaíba" (que nos abrirá, em várias situações de traduções cate-quéticas, uma grande problemática, à qual necessariamente volta-remos), que, subtraído à denominação do, como podemos defini-lo (?), "sacerdotes itinerantes" (?), "pajé" C?),42 passou a indicar, sucessivamente, para os indígenas, e o "homem branco", e por intermédio da instrumentação lingüística realizada pelos catecis-mos missionários, "o que é sagrado" [os sacra latino]; e, enfim, o sufixo "pyra" que serve a indicar "parte próxima", "o que está pró-ximo", "próximo de".

Literalmente, portanto, o pe. Anchieta traduz o termo "batiza-do" em tupi com a expressão que corresponderia a, grosso modo, mas literalmente: "feito pela água o que está próximo do sacro (sagrado)".

Um outro exemplo nos permite desenvolver a análise de forma comparativa com o catecismo do pe. Araújo. O problema, e o con-seqüente compromisso catequético, diz ainda respeito ao primeiro ponto [sumariamente traçado]. De fato, em relação ao "Sinal-da-Cruz", se utiliza dentro do texto tupi, tanto no Diálogo da Fé anchietano,43 quanto no Catecismo do pe. Araújo,44 o termo "Santa Cruz" ("S. Cruz" em Anchieta, "Sancta Cruz", latinizado, em Araújo). Para que possa ser compreendido, de alguma forma, em seu valor semântico e, sobretudo, para que seja entendido em seu valor de "signo", no texto de Araújo segue-se a expressão "raangába recè",45

onde o sufixo "(r)ecè" determinaria, nesse específico caso, causa e/ou finalidade, e o termo "(r)a ang-aba" significaria algo como "sinal", "imagem", "marca". Poderíamos, portanto, traduzir de forma literal essa tradução tupi de Araújo como sendo "por sinal (marca) da Santa Cruz". Ora, comparativamente, é interessante observar que, na pergunta do Mestre proposta pelo texto anchietano (que introduz a simples resposta do Discípulo-catecúmeno, "Santa Cruz"), Anchieta escolhe traduzir esse "sinal" com a expressão "Jekuapába", que traduzida literalmente do tupi significaria algo como "meio de conhecer-se (ie-kuáb-a)". A tradução de Anchieta aponta, nos parece, de forma mais clara e, todavia, esclarecedora

Page 181: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

ao mesmo tempo do sentido traduzido por Araújo, a representação do gesto como forma de identidade.

Uma indicação do Catecismo de S. Agostinho parece ecoar, aqui, a distância. Diz, de fato, o De Catechizandis Rudibus:

as idéias devem ser antepostas às palavras, como o é a alma ao corpo. Por conseqüência, devem ouvir [os catecúmenos], de prefe-rência, discursos verdadeiros ao invés que eloqüentes, assim como ter amigos sábios ao invés que belos.46

E continua:

Sabemos, além do mais, que não chega outra voz aos ouvidos de Deus a não ser aquela que vem do profundo do coração. Dessa forma, quando tenham ouvido pastores (antistites) e ministros da Igreja invo-car Deus usando barbarismos e solecismos, ou não compreender as palavras pronunciadas ou dividi-las de forma errada, não deverão sor-rir deles: não porque tais erros não devam ser corrigidos (e o povo possa, portanto, responder "amem" àquilo que pode compreender com clareza), mas porque devem ser tolerados com espírito de cari-dade por parte de quem aprendeu a bem falar, como no foro depen-de do som da voz, assim na Igreja depende da substância da reza. Eis porque um discurso no foro pode, às vezes, ser chamado de boa dição, nunca benção (bona dictio em contraposição a benedictio).

Justificativa e incentivo à missão catequética — e não secun-dariamente contraposição à oratória política romana, para Agostinho —, desde seus começos, a obra catequética funda a jus-tificativa de um (como defini-lo?) "arranjo" entre "mensagem" e "palavra". Todavia, apesar disso, há uma atenção constante na tra-dução jesuíta (ou, como nesse caso, na retranscrição de um signi-ficado estranho a um significante indígena) que se encontra, ainda e também, na função fundante da missio cristã. De fato Agostinho insiste sobre o fato de que

Page 182: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Quanto ao sacramento que estão por receber, aos mais perspicazes é suficiente ouvir o significado do rito, 4'

voltando a insistir, todavia, sucessivamente, na necessidade de se deter por mais tempo e de se servir de um número maior de simi-litudes com os catecúmenos mais lentos no entendimento, e isso para que não subestimem a realidade a que assistem.

Mas é, sobretudo, a atenção ritualista, resultado do momento dramático em que se insere o Concilio de Trento, e o conseqüente resultado em termos catequéticos dessa atenção, que torna signifi-cativa a relação entre "Signo", "Símbolo" e "Identidade cristã". Eis, portanto, que no Catecismo triãentino, sob a análise do "Símbolo da Fé", reencontramos essa (re)estruturação da função do Símbolo:

Os cristãos devem conhecer, portanto, em primeiro lugar, as verda-des que, animados pelo Espírito divino, os santos apóstolos, mestres e doutores da fé, distribuíram nos doze artigos do Símbolo. Tendo, de fato, recebido do Senhor a ordem de ir, quais seus embaixadores, no mundo inteiro, para anunciar o evangelho a cada criatura, decidiram redigir uma fórmula da fé cristã, que permitisse a todos a unanimida-de do sentimento e da profissão e removesse qualquer possibilidade de cisma entre os chamados à unidade da fé, aperfeiçoando-os na unida-de do espírito e de crença. E depois de tê-la composta, os apóstolos chamaram esta profissão de fé e de esperança cristã,48 Símbolo; seja porque resultante das várias sentenças postas pelos indivíduos em comum, seja porque dela teriam podido se servir, quase como de um sigilo e de palavra de ordem, para distinguir facilmente os desertores e os intrusos falsos irmãos, propensos a adulterar o evangelho, daqueles que se haviam alistado sinceramente na milícia de Cristo. (Catecismo tridentino, 1996: 34.)

E em estrita conexão com esse problema da identidade cristã, em relação à ameaçadora situação da Reforma na Europa e, não

Page 183: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

por último, em conexão com uma demoníaca atuação idolátrica entre os indígenas americanos, vale a pena levar em consideração a preocupação sucessiva, no texto anchietano, quando, no diálogo entre Mestre e Discípulo (doravante M. e D.), indaga para elimi-nar, de qualquer forma, um equívoco que aparece como fortemen-te ameaçador em relação à leitura indígena dos (novos) símbolos (materiais) cristãos.

E não parece um acaso o fato do que o esclarecimento dialó-gico siga imediatamente a pergunta acima:

M. Abápasé sumarã? (Quem é nosso inimigo?) D. Ananga (O Demônio) 49

E eis o esclarecimento no diálogo que se abre:

M. Ojerok?pe asé Cruz supé? (Havemos de fazer reverência à Cruz?) D. Ojerok? (Havemos de) fazer reverência!) M. Marã ybyrá supénépé asé jerok?u? (Dai, como diante do pau a

gente reverencia?) D. Aáni; saangábijára supéé, sesé omaenduáramo

(Não, apenas na condição de nos lembrar diante do seu significar) M. Abápe Cruz raangábijára? (O que significa 'Cruz'?) D. Jandé Jára Jesu Cristo. (Nosso Senhor Jesus Cristo!) 50

E, mais adiante, continua Anchieta:

M. Marã itãnépe, koipó ybyrá, naúma imonángimb?ra népe asé omoe-té? (Como a pedra, ou o pau, o barro de que são feitas [as imagens] honra a gente?)

D. Aáni; saangábijáraé, saangábamo sekóremené, sesé omaenduáramo. (Não, o que significa na condição de significar, para nosso lem-brar!)

Page 184: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Antes de mais nada, evidenciamos o fato de que, em relação a Jesus, Maria, os Santos, não se usa o verbo "adorar" mas o verbo "fazer reverência" (lit. "inclinar-se"), correspondente à tradução tupi "Jeroky" (verbo intransitivo). Seria interessante poder averi-guar — coisa que não nos parece possível realizar —, neste espe-cífico caso, se o fato seria determinado pela ausência de uma expressão tupi que signifique melhor o nosso verbo "adorar" (e seria uma situação plausível, como plausível seria a escolha do verbo "inclinar-se" com seu profundo aspecto ritualístico, que "acomoda-ria" tanto o ritualismo tupi quanto o jesuítico) ou por uma delibe-rada escolha — contra-reformisticamente condicionada — de não confundir o sentido pleno de latria, que só se aplicaria a Deus,^ com o de reverência, que pode caber também aos santos.

Este último problema —jun tamen te com a atenção para com a "confusão idolátrica" que pôde ser vista como uma das confusões características da cultura indígena51 — representa, talvez, o pro-blema mais evidente em relação à atenta articulação de perguntas-respostas doutrinárias da nossa última citação: o que mais preocupa, neste lugar, parece ser não só o fato de não contribuir/alimentar essa confusão, mas o de deixar claro — ou pelo menos tentar es-clarecer nos limites impostos pela língua indígena — a diferença entre o Signo e sua Significação, entre as Imagens e sua Essência, entre a Matéria e sua Representação, destacando como a primeira série de termos sirva para entender melhor o (profundo) significa-do da segunda série.

E importante, todavia, observar como, através dessa estratégia catequética para com a alteridade (distante) americana, colhe-se — ou pelo menos nos parece que se evidencia claramente este aspecto — a oportunidade para, de alguma forma, responder às acusações protestantes. Trata-se de um aspecto ao qual teremos que prestar grande atenção e que deveremos levar em considera-ção e aprofundar no momento da comparação entre catecismos indígenas (americanos) e catecismos europeus.

Page 185: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

A introdução, sem mais nem menos (mas, às vezes, com algu-mas justificativas propostas pelos próprios "língoas" missionários que introduzem o termo), podia dar-se, às vezes, de forma correla-ta com a adoção de uma palavra significativa tupi (e que sucessi-vamente podia ser — e acontecerá muitas vezes — até estendida a grupos indígenas não-tupi) utilizada para apontar um conceito ou uma figura que pertenciam ao universo cultural e religioso ociden-tal. Exemplos disso se encontram em todas as obras catequéticas analisadas. Em alguns casos, devemos procurar uma nossa justifi-cativa que, diferentemente das missionárias, seja pelo menos plau-sível. E esse o caso das três pessoas da Trindade que aparecem nessas mesmas páginas do catecismo de Anchieta (1988: 121) e no começo do catecismo de Araújo (1952: fólio 13).

Tupã Túba, Tayra, Spirito Santo, mosap? abá, ojepé Tupã [lit.: Junto com o (A. traduz "em nome do") Pai, Filho e Espírito Santo, três pessoas, em conjunto "Deus"],

assim, responde o discípulo à pergunta do mestre sobre as for-mas de "se benzer" (traduz o próprio Anchieta: mas devemos observar que o termo por ele usado, "jobasab", significa, literalmen-te, "cruzar-se o rosto" e só por extensão foi sendo utilizado como significando "benzer-se", "fazer o sinal da cruz"). A mesma fórmu-la é utilizada por Araújo, em sua função de invocação (só temos uma variante gráfica e a denominação da terceira pessoa aportu-guesada: Tuba, Taira, Efpirito Sancto...).

Ora, no caso da segunda pessoa, a escolha é bastante lógica, dentro da especificidade dos nomes de parentesco tupi: de fato, na cultura indígena, esses nomes levam em consideração o (e distin-guem-se pelo) sexo da pessoa e de seu parente (e em relação a este último se se trata de parente paterno ou materno), e, finalmente, o fato de que o parente seja mais velho ou mais novo (Navarro, 1999: 104, 108): isto é, os nomes de parentesco indígenas levam em consideração a relação social, sendo mais comumente usados

Page 186: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

do que o nome próprio. No nosso caso, (t)ayra representa logica-mente o nome do "filho de homem" (em contraposição, por exem-plo, ao nome de "filho de mulher" que seria membyra). A "conota-ção sexual masculina" do Deus cristão parece não deixar alternativas à escolha.52

Por um lado, porém, a figura do Espírito Santo nunca encon-trará uma sua tradução tupi, nem nos textos anchietanos nem no catecismo de Araújo, assim como não o encontrará no Catecismo de la lengua guarani do pe. Antonio Ruiz de Montoya [(1640) 1876], nem no Catecismo kiriri do pe. Vincencio Mamiani [(1698) 1942] e no Catecismo da língua kariri do Frei Bernardo de Nantes [(1709) 1896]. Por outro lado, desde logo e em todos esses textos, encontramos a "identificação" da primeira pessoa da Trindade com "Tupã", com uma exceção que nos parece bastante significativa. Para com os (próprios) kariri, frei Bernardo de Nantes utiliza o termo Inhinho para identificar o Deus cristão, enquanto o pe. jesuíta Vincencio Mamiani, para com os (próprios) kiriri continua utilizando o termo Tupã. Em nossa escrita colocamos o termo identificação entre aspas: e isso, antes de mais nada, porque não nos é dado saber em que medida o termo constituía-se como um instrumento lingüístico — coisa que nos aparece mais provável — e quanto essa mesma "figura" indígena tupi pudesse ser pensada, pelos jesuítas, em seu paralelismo com a figura do Deus cristão.

E aqui o "encontro (catequético)" revela todo o limite do nosso próprio universo lingüístico (cultural).53 Parece bastante claro que o "instrumento lingüístico" "Tupã" não se constitui como uma escolha casual para que os missionários pudessem apontar, com ele, para com o Deus cristão. Mas se, de fato, o Tupã indígena se oferecia como instrumento lingüístico para essa tradução, por estar ligado ao trovão e ao raio, deveremos problematizar (e tentar explicar) por que os jesuítas escolhem utilizar o termo "Deus", por exemplo, na China, em vez de utilizar seu "Tien", e o que aconte-ce em outros encontros catequéticos com os Impérios da América central; além do mais, deveremos tentar conceber como o "Deus"

DEUS na ALDEIA 181

Page 187: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

cristão podia aparecer de fato como "Tupã" aos olhos das popula-ções indígenas.54 Da mesma forma deveremos procurar as razões (justificativas) de um impor-se generalizado da tradução "Anhangã" por Demônio (mas isso não acontece nos dois catecis-mos kiriri).

"Mistério" por excelência da cultura religiosa cristã, levando em consideração quanto dissemos acima, a Trindade devia tornar-se um mistério bastante complexo para as culturas indígenas. Será interessante confrontar, a esse propósito, o livro III do Catecismo brasílico na Doutrina cristã (vol. i) de pe. Anchieta com o livro II do Catecismo na língua brasílica do pe. Araújo, praticamente iguais

assim como o Catecismo de la lengua guarani de Montoya, no capítulo IV ("Sobre los Artículos", pp. 48-54), o Catecismo kiriri do pe. Mamiani, no capítulo II ("Dos Mistérios que se contém no Credo", pp. 42-6) e, enfim, o Catecismo da Língua Kariris do frei Bernardo de Nantes (na parte intitulada "Ensino de Deus como Trino", pp. 17-9). Em todos os catecismos aparece evidente a preocupação de definir o mistério de forma que as três pessoas não se confundam com três "deuses": para tanto, e em relação à defi-nição doutrinai do mistério, a distinção das três pessoas é deixada clara e correlata à unicidade da sua divindade. Essa unidade em sua divindade também é relevada pela ausência de uma priorida-de temporal de uma entre as três figuras.

Mas, também, havemos de levar em consideração o fato de que a Virgem Maria pôde ser definida, logo em seguida no texto anchie-tano (1988: 124), "Santa Maria Tupãs?" (isto é, mãe de Tupã) e, neste caso, através da "identificação" entre Deus e Tupã, se no con-texto católico a mensagem é clara, será dificilmente imaginável o que pode ter ocorrido por dentro da cosmologia indígena nessa imposição de uma "figura materna" associada ao Tupã indígena.

E, além de Tupã, a construção de um neologismo curioso aca-bou se impondo nos sistemas doutrinários em línguas tupis (não vale para o guarani de Montoya, que utiliza o próprio termo, em

Page 188: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

língua espanhola,"angeles", assim como para com os kiriri: Mamiani usa uma outra expressão kiriri, e, enfim, Bernardo de Nantes usa "anjos"): trata-se da expressão "karaibebé", pela qual deveremos retomar a análise da curiosa e interessante ressemantização da expressão "karaíba" (ver acima), em várias situações, nas quais acaba por traduzir o "sagrado", à qual se junta o verbo tupi "bebê", que significa voar. O anjo tornar-se-ia, dessa forma, uma "santida-de voadora", expressão na qual a termo "santidade" representa tal-vez o núcleo polissêmico mais significativo para entender a trans-formação de sentido mais forte na terminologia tupi, mas, ao mesmo tempo, a mais evidente possibilidade de uma outra leitura dessa "santidade" por parte das populações tupi...

O termo "pecado" é um daqueles que parecem mais controver-tidos: pela primeira vez, a tradução desse termo apresenta soluções diferentes dentro da própria obra anchietana. De fato, às vezes Anchieta usa o termo português dentro do discurso tupi, outras vezes traduz pecado por "angaipaba". O termo em língua indígena, ao invés, é utilizado uniformemente pelos outros autores (termos próprio nos dois catecismos kiriri, e o mesmo (contraído) "angaipá" no guarani de Montoya. No tupi, "angaipáb" indica "mal", "maldoso" e "angaipaba" indicaria "a maldade": infelizmente, parece que o resultado das retranscrições dos vocabulários afetou profundamen-te a possibilidade de pensar de forma menos metafísica (ocidental) esse conceito de "mal" indígena. Ao que me parece, é interessante pensar (ou poder pesquisar) em que medida a expressão tupi possa derivar dos dois termos: o primeiro, "angá",55 e, o segundo, "(t)up-aba", que significa, literalmente, "lugar de estar deitado" e que pas-sou a indicar "leito", "lugar de pouso", "pousada". A qual coisa deve-ria definir um (como poderíamos chamá-lo?) estado psíquico (?) que corresponderia a um "estar deitado da alma".56

Vistos os problemas que, nestes primeiros e genéricos termos, se apresentam no "encontro de tradução" 5/ e vista a complexida-de e quantidade de problemas e de palavras que se constituem de forma "equívoca" e que, num primeiro momento,58 nos assustam,

Page 189: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

todavia, todos esses elementos nos pareceram importantes na medida em que se constituem como os elementos primários para a "construção da tradução".

A fim de integrar nossa análise tendo em vista os problemas que estão voltados para aqueles internos à nova discussão que se determinou na Europa em relação ao violento debate entre Reforma e Contra-reforma, acreditamos seja importante apontar, aqui, para os peculiares problemas lingüísticos ligados aos impor-tantes (para a Igreja católica) institutos sacramentais da Comu-nhão e da Confissão.

A C O M U N H Ã O

Começando um primeiro esboço da análise da Comunhão às pp. 140-2 do Diálogo da Fé do pe. Anchieta,59 nos deparamos, logo no início, com um problema que nos parece extremamente signi-ficativo. Trata-se, vale a pena notar, da mesma retranscrição que será realizada por pe. Araújo, no "Diálogo quarto" do "Capítulo v" (Da Sanctima Euchariftia).

Pergunta o Mestre:

Marãpe amo Sacramento, jandé ánga posánga, réra?

[litQual é certo sacramento, de nossa alma remédio?]

Responde o Discípulo:

Tupã rára" [lit.: O tomar (pegar, apanhar) de Deus]

Afora a não-tradução de "Sacramento", assim como acontece sucessivamente com o termo "hóstia", é no mínimo curiosa a esco-lha lingüística do termo "rára".

No capítulo XXI do Catecismo de la lengua guarani do pe. Ruiz de Montoya, a delucidação dá-se de forma diferente. A pergunta

Page 190: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

inicial "Mbaepe fantifsimo Sacramento", segue a resposta "Hoftia, hae Caliz y confagrapira, ypi pêne Iefu Chrifto abáramo guecó rehebé Tupã namo cuecórehe bé o~i". Para começar, além de jun-tar o termo espanhol "caliz", Montoya constrói um neologismo para introduzir "consagrado": o termo "consagra-pira" realiza a introdu-ção do termo hispânico na língua indígena (guarani, no caso) colo-cando-lhe o sufixo "pira", literalmente "O que é chamado". O pró-prio Montoya traduz, também, sua própria tradução como tendo escrito: "Es Hóstia, y Caliz consagrado, em que eftá la Humanidad, y Diuinidad de Chrifto". Porém, à nossa dúvida de como pode ter traduzido esses conceitos de humanidade e de divindade, responde nossa pesquisa lingüística, que nos mostra que "abáramo" vem a significar apenas "na condição de (como) homem", e que "Tupã namo" está por "na condição de (como) Tupã (Deus)". O ato do comungar é relevado, por Montoya, pelo verbo "recebê-lo" (segun-do sua própria tradução): todavia nós notamos a particularidade da partícula "Poí" (do verbo "poihúmboíbo": não encontramos o signi-ficado explícito de toda a palavra guarani) em significar ["poi(-io-)", trans.] "alimentar", "dar de comer".

Em seu Compêndio da doutrina christãa, o pe. Betendorf [à pá-gina 56 da obra citada] põe de outra forma a pergunta que já con-tém o que era a resposta do Catecismo de Anchieta. Diz, de fato "Bàépe Sacramento Tupã râra, coipo Eucharistía iâbaT [lit.: Qual o sacramento de tomar Deus, chamado Eucaristia?].

Qualquer que seja a cautelosa escolha semântica ou a estraté-gia de tradução do sacramento da Comunhão, parece evidente que não há possibilidade de uma escolha doutrinai que possa subtrair a ação eucarística à sua — por outro aspecto evidente na própria traditio católica da instituição sacramentai — conotação de um:

— "comer Deus" (uma "teofagia"), que devia pelo menos suscitar uma curiosa atenção para com uma cultura que estruturava seus valores fundamentais justamente ao redor da prática antropofágica, — ou, quando menos, de um "tomá-lo" que, caso a ação verbal tupi

Page 191: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

não conotasse a ação alimentar (como acontece, por exemplo, na língua portuguesa)., todavia evocava fortemente um apanhar que devia/podia curiosamente ecoar a mesma prática ritual da captura do inimigo que se constituía como o fundamento da prática antro-pofágica e de sua troca ritual das vítimas sacrificiais (Fernandes, (1952) 1970, (1948) 1989; Agnolin, 2005).

E, a complicar essa curiosa evocação, devia se tornar tanto mais significativa a sucessiva explicação catequética, detalhada e longamente elaborada justamente a partir da, e levando em conta a, polêmica eucarística (da Europa) para com os protestantes. Eis, a seguir o diálogo proposto pelo manuscrito de pe. Anchieta, no Diálogo da Fé (e reproposto de forma análoga pelo pe. Araújo) — que desta vez vamos reproduzir somente segundo a própria tradu-ção de Anchieta, não considerando, a uma primeira análise do texto tupi, que haja aqui relevantes problemas caracteristicamen-te lingüísticos —, que se desenvolve a esse respeito:

M.: "E, porventura, na hóstia está Jesus Cristo?" D.: "Nela esta 60

u M.: "Nela está sua divindade, seu corpo e sua alma?" D.: "Nela estão". M.: "A gente o vê?" D.: "Não o vê". M.: "Mas o que somente a gente vê?" D.: "Só o que era pão". M.: "E cozido o pão7 logo está nele?" D.: "Não". M.: "Quando verdadeiramente?" D.: "Antes de o levantar; só depois de o padre pronunciar sohre ele as

antigas palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo".61

Page 192: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

M.: "E se partir a hóstia em muitas, muitas partes, em cada uma das partes Nosso Senhor Jesus Cristo está?"

D.: "Em cada uma está". M.: "Está [em cada parte] exatamente como [estava] naquele inteiro?" D.: "Exatamente".62

M.: "Que venera a gente, quando o padre ergue o cálix, é esse o vaso de metal somente?"63

D.: "Não; mas o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo que está mesmo nele".

M.: "Mas não foi vinho mesmo que nele puseram?" D.: "Embora vinho, logo ao pronunciar o padre as antigas palavras de

Nosso Senhor Jesus Cristo, tornou-se seu sangue". M.: "Só o seu sangue está nele?" D.: "Não está o seu sangue, o seu corpo também, a sua alma, a sua

divindade também, exatamente como está na hóstia". M.: "E se esse vinho estivesse como se fossem muitas, muitas gotas,

Cristo Nosso Senhor estaria em cada, cada gota?" D.: "Em cada uma estaria".6* [...]

Mas, nessa delicada parte doutrinai, encontramos também algumas significativas variações dentro da própria obra anchietana. Assim, por exemplo, no texto tirado da Doutrina cristã II (Anchieta, 1992(b): fólios 33-34v.), à pergunta do Mestre sobre por que Cristo instituiu esse sacramento, responde o Discípulo:

Para dizer: "Seja meu corpo comida da alma deles" [toikó xe reté iánga remiúramo]; amando-nos muito, querendo ficar junto de nós.

Isso porque:

Como nós morremos de não comermos algo aqui, assim ali nossa alma morreria se não comesse o corpo de Jesus Cristo.

Page 193: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Seria importante poder detectar se esse texto manuscrito pre-cedeu, em sua elaboração inicial, o outro na medida em que, se assim fosse, quanto acabamos de citar poderia, mais uma vez, ter dado (demasiado?) espaço à especularidade entre "teofagia" (cató-lica) e "antropofagia" (indígena),65 o que (a decorrente formulação) poderia ter chegado a criar não poucos estorvos, e conseqüente-mente ter-se-ia imposto sua eliminação.66

Nessa mesma estrutura de instrução catequética se desenvolve a argumentação de pe. Montoya, que, todavia, se detém com mais exemplos no problema da transubstanciação: ele declara abertamen-te o mistério, diferentemente de Anchieta, usando o termo portu-guês em sua própria tradução. Da mesma forma, alarga, também, os exemplos trazidos para a compreensão dos mistérios referidos.

No Catecismo kiriri do pe. Mamiani observamos que, na breve introdução sobre os sacramentos (à p. 11 da obra fac-similar cita-da), encontra-se uma longa expressão kiriri) por ele próprio tradu-zida por eucaristia. Infelizmente, nosso desconhecimento da lín-gua kariri não nos permite verificar o texto em língua indígena. E a curiosidade fica tanto maior porque, pelo que nos parece, deve ter sido bastante artificiosa a retranscrição kiriri desse sacramento. O mesmo não parece, neste caso, verificar-se com a tradução do termo "penitência".

No capítulo V ("Dos sacramentos") sobre a Comunhão (às pp. 118-26), na própria tradução portuguesa, diferentemente dos catecismos analisados até aqui, Mamiani usa, para descrever o mistério eucarístico como corpo e sangue de Cristo, o termo "espé-cie da hóstia & do vinho". Segue-se uma formulação catequética análoga à que encontramos até aqui, com uma sucessiva inovação do uso da expressão "figura & acidentes da hóstia & do vinho" (que lembra os "acidentes da matéria" da longa polêmica eucarística a que fizemos referência), com a conseqüente "destruição da subs-tância do pão e do vinho". Outra característica distintiva das ins-truções anteriores é aquela que diz respeito ao modo de receber a hóstia e às prescrições rituais que se seguem ao ato.

Page 194: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

No outro catecismo kiriri, o de Bernardo de Nantes, na parte sobre o "Ensino do sacramento da Communhão" (pp. 81-6 da edi-ção fac-similar citada), a comunhão aparece, logo no começo, como "o mayor & o mais excell~ente dos sacramentos". Pela pri-meira vez, aparece no texto de Bernardo de Nantes uma presumí-vel caracterização indígena do sacramento: "que chamais vosou-tros apar~ecias brancas". As "cautelas" lingüísticas da tradução jesuítica desaparecem nesse texto, tanto que o autor denomina, sem mais nem menos, esse sacramento da Comunhão de "manjar" e o ato é definido como um "comer o Corpo de Jesu Cristo". Ainda pela primeira vez, juntamente à substância do pão, se nomeia a farinha de mandioca, deixando transparecer o que, desde o come-ço, devia ser uma substituição comum na prática missionária do Brasil e que, também, devia levantar alguns problemas interpreta-tivos, implícitos no valor simbólico da mandioca por parte da cul-tura indígena. O resto da instrução percorre os lugares-comuns que já vimos, principalmente em relação ao texto do pe. Mamiani, mesmo que com um menor desenvolvimento de exemplos a fim de explicar o mistério.

Quanto ao "Discurso do sacramento da Eucaristia" (pp. 338-63), é interessante, por enquanto, observar que se constitui como um encontro bastante curioso — e peculiar desse texto — de uma escrita catequética com uma forma expositiva características dos sermões. Por esse e pelos outros aspectos que sublinhamos e que, também, veremos a seguir, parece evidenciar-se uma peculiarida-de da obra do frei capuchinho Bernardo de Nantes em relação à obra catequética jesuítica em sua complexidade.

A C O N F I S S Ã O

O grande espaço dedicado, em todos os catecismos, ao sacramen-to da Penitência revela a importância que esse sacramento assu-mia para os jesuítas, tanto em sua ação missionária quanto em

Page 195: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

relação com a importância que, para eles próprios, adquiria o exame de consciência, analisado em seus detalhes nos fundamen-tais Exercidos espirituais de santo Inácio.

O primeiro texto anchietano do qual começamos por propor uma primeira investigação a respeito da tradução catequética da Confissão é o texto às pp. 144-7 da publicação do Diálogo da Fé (citado), na parte que trata dos sacramentos (Anchieta, 1992(a): fólios 47v-49).

O início do diálogo reapresenta um destaque que caracteriza tanto o início do diálogo sobre o sacramento da Comunhão quan-to aquele sobre o sacramento da Confissão: o primeiro (já vimos acima) como o segundo são explicitamente definidos, no texto tupi, como "remédios" (posanga) ("da alma", o primeiro, "contra os pecados", o segundo). E o "remédio" oferece-se, depois do batis-mo, como remédio ao qual se pode recorrer ritualmente todas as vezes que se tenha "transgredido a lei de Deus".

Confessar é traduzido por "nemombeú", que na língua tupi parece determinar precipuamente o falar que implica descrição, narração, um contar que se revela como anunciar, mais do que, propriamente, um confessar no sentido cultural ocidental (cris-tão). E o proceder da confissão, a fim de obter o perdão, se confi-gura como um "arrepender-se muito de seus pecados passados não querendo voltar a eles" (oimoas? katú oangaipaguéra, serojeb?potá-re?ma). Trata-se da contrição que aparece grafada em português no interior do outro texto tupi.67 E nesse ponto, entre a contrição e a sucessiva insistência no dever confessar todos os pecados cometi-dos, revela-se toda a insistência posta pelo Concilio de Trento nes-sas problemáticas em relação ao duplo canal da confissão como consolação e tribunal das culpas (que vimos mais acima).

Longa e atenta desenvolve-se a descrição doutrinária em rela-ção ao esquecimento (de algum pecado), perante o qual o Deus-Tupã perdoaria segundo uma forma verbal tupi que nos parece corresponder, em sua raiz verbal (m), mais a um "estar quieto" do que propriamente a um "perdoar" no nosso sentido. Um "estar

Page 196: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

quieto" do Deus-Tupã, que, todavia, exige um contínuo exame de consciência para que, quando se achar o que se esqueceu, se deva confessá-lo. E esse "examinar-se" é traduzido por "oneangerekó", que, como poderíamos imaginar, revela para um tupi um "preo-cupar-se consigo", "um cuidar de si" que dificilmente podia inicial-mente ser entendido pelo que o termo "exame" queria apontar. "Inyrõnamo" por "perdoar"?: parece que traduz-se constantemente "perdoar" por "acalmar", "placar" (Deus-Tupã).

Não podia, sucessivamente, faltar o destaque para a figura e o poder do sacerdote como "Abaré asébe Tupã monyrõmo..." [lit.: O sacerdote (cfr. abaré) para a gente Tupã-Deus apazigua], dife-renciando muito a mensagem lingüística tupi da tradução que en-contramos ao lado do manuscrito anchietano, expressão que, dife-rentemente dessa última, transforma o sacerdote em um, de alguma forma, "apaziguador". Ele aparece, aqui também como "substituto" (rekobiáramo) do Cristo.68

Fica evidente, ao longo do texto, a insistência no que Deus-Tupã não perdoa, com toda a ambigüidade implícita no verbo tupi usado por "perdoar" (nyrõ ou nhyrõ).

Destacam-se, sucessivamente, outros importantes aspectos, como o segredo da confissão, sua importância em ocasião da Páscoa (definida com a expressão tupi que está por "grande jejum") e em proximidade da morte: características que encontra-mos na problemática da confissão evidenciada pelo próprio Concilio de Trento (Anchieta, 1988: 148-49).

No texto da Doutrina cristã, além da novidade do aparecimen-to do termo contrição no diálogo tupi, permanecem as característi-cas que detectamos, até aqui, no Diálogo da Fé. As perguntas do Mestre (veja-se, por exemplo, a número 9) parecem revelar um maior cuidado em garantir um efetivo arrependimento em face da "inconstância" indígena. Também adquire um destaque peculiar o fato de que o sacerdote se configura como mediador necessário do 4 perdoar/apaziguamento" de Deus-Tupã.

Page 197: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

No que diz respeito à confissão temos que também, e sobre-tudo, incluir o importante texto do Confessionário anchietano.69

Colocando-se, desde o começo, como defensor da prática da confissão, mesmo que por intermédio dos intérpretes (ao contrário da posição do bispo Sardinha), Nóbrega entendia, dessa forma, pro-duzir uma "performatividade" da prática, algo que pudesse adquirir (fundar ex nihilo) um significado através da própria repetição (ence-nação) da prática, e isso, claramente, a fim de produzir, literalmen-te, na prática, uma noção de pecado que, como já vimos acima, pare-cia não ter correspondência nas categorias gramaticais, lingüísticas e culturais tupis. A composição do Confissionário de Anchieta pare-ce constituir-se como o esforço paralelo para poder construir lingüís-tica e culturalmente esta espécie de memória artificial que resulta propriamente numa escrita jesuítica enquanto poética.

O Confessionário produzido por Anchieta se constitui por um "acolhimento e instrução inicial" que revela o fundamental valor consolatório da confissão, ao mesmo tempo em que torna eviden-te, todavia, a inutilidade do esforço de fugir do ocultamento de certas culpas diante das onividência de Deus-Tupã. Essa parte ini-cial se detém longamente nessa dupla dimensão consolatória/ impositiva da confissão. E interessante, também, observar como, nessa necessidade que se determina em "declarar o vir menos" (transgressão) a uma lei ("fala sagrada"?) do Deus-Tupã, apareçam aqui (Anchieta, 1992(a): fólio 52v.) as grandes transgressões indí-genas aos olhos dos jesuítas, isto é:

opáhatú mbaéaiba rerobiáguéra, [toda coisa má que i nde poromotáre?maguéra, [teu ter sido inimigo de gente] nde poropotáraguéra, [teu ter querido (desejado) gente (traduzido por

sensual)] nde mondarõaguéra, [teu ter roubado (traduzido por "ser ladrão")] nde sabeyopóra, [tua marca do embriagar-te] mbaé poxy resé nde araá [de coisas feias tu agitado apore?maguérabéno" ainda não desististe]

Page 198: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Resulta claro, aqui, o aberto combate aos "costumes" indíge-nas (aos fundamentos da cultura indígena) no que diz respeito às marcas comuns através das quais os jesuítas percebiam/descre-viam esses costumes, isto é, a superstição (às vezes denominada idolatria: um crer na falsidade, um erro em relação ao "objeto" do crer), a guerra para a captura de inimigos (destinados a alimentar o sistema ritual da antropofagia indígena), a sensualidade (seus costumes sexuais), o embriagar-se (em relação ao ritual, estrita-mente ligado ao ritual da guerra e da antropofagia, da cauinagem) e, dentro de outras ações genericamente definidas como "más", a ação de roubar, que representa uma peculiaridade no contexto indígena, onde esta, geralmente, não era percebida como uma característica comum.

No que diz respeito ao exame, proposto sucessivamente, em relação aos mandamentos, vamos apontando aqui os aspectos que mais chamam atenção justamente por seu abrir-se à preocupação com os costumes indígenas que mais preocupavam a ação da cate-quese missionária no Brasil. A esse respeito é interessante obser-var como as perguntas que se seguem ao primeiro mandamento ("adora um só Deus", lit.: "honrar só Tupã") saem, na parte final, no encalço do combate cerrado ao "pajé" e da instituição cultural que ele representava, tão temida e concorrencial em relação ao traba-lho dos missionários.

Ereixubánukárpe ahá amó pajé supé? [tu chupar ixste erejesuhánukárpe pajé angipába supé? [tu chupar ste erenemopajépajépe erimbaé? [tu muito te fizeste pajé outrora?] ereimoupíxuárpe pajé, serobioá, isuí ekysyiábo? [te fizeste confore ao

pajé, acreditando e tendo edo dele?] eremosángúukárpe abá amó, nde rausúbáguámari? [tu deixaste

remédio para alguém (afim de) teu obter amor dele?] ererobiárpe pajé porapití moangaúba, jeharaímonánga, morangiguána pitángneénga, Guajupiá moraséia, marakáporaséia, mosausúba? [tu acreditaste no pajé fingindo matar gente deitado, fazendo "santida-

Page 199: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

de" (karaíba), em auguro (fazendo adivinhações) com fala de criança, em dança do Guajwpiá (= 'espírito do pajé bom"), em dança de mara-cá, em sonhos?]

E, além do exame em relação às práticas indígenas que dizem respeito aos pajés e às suas relativas "crenças" ou em relação à guerra indígena (veja-se o quinto mandamento), destaca-se, pelo comprimento, pela atenção e pelos particulares do exame, o sexto mandamento, que, sozinho, ocupa metade da parte do Confes-sionário dedicada aos mandamentos.

Talvez os problemas apontados por esse mandamento e a peculiaridade do olhar missionário para os problemas/pecados tra-tados mereçam um capítulo à parte que poderia desenvolver-se ao redor de um enfoque problemático que poderia ser caracterizado, de alguma forma, como "tradução, normativização e produção de uma perversão' da sexualidade indígena", e que poderia/deveria, de alguma forma, ser integrado com as problemáticas do trabalho desenvolvido até aqui.

Justamente pelo comprimento desse sexto mandamento — e levando em conta as dificuldades de uma possível tradução literal, como temos tentado realizar até aqui —, vamos, neste primeiro momento, apontar algumas das perguntas na tradução que encon-tramos ao lado do texto transcrito em ortografia moderna na edição citada (organizada por Armando Cardoso), que, infelizmente, não inclui o original manuscrito de Anchieta. Para um confronto, toda-via, apontamos (e faremos referência, quando for necessário) para o Catecismo na língua brasílica do pe. Araújo, em sua edição fac-similar, citada, que nos oferece um, também comprido, texto em tupi que se desenvolve segundo o mesmo esquema do de Anchieta.

As perguntas — que desta vez, cerradamente, se formulam com uma fartura de particulares sem pares — se seguem ao man-damento "não desejes gente sensualmente" [do verbo poropotar, que em tupi parece significar simplesmente "querer", "desejar"].

Page 200: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

As primeiras perguntas colocam-se em função de um "desvendar a desordem" característica, segundo a perspectiva missionária, da relação de "casamento" indígena, perguntando, por exemplo, "com quantas mulheres vives?", se "vives com uma que é casada com outro (ou que já foi casada)?". Mas, já desde o começo, algumas pergun-tas começam a dirigir-se para particulares que sucessivamente serão cada vez mais particularizados. Assim, por exemplo, pergun-ta-se se "forçaste [mas o verbo tupi usado por Anchieta, "mombuk'\ significa lit. "furar"] alguma menina, violentando-a [o verbo tupi de A., "mokuára", também significa "furar"], estuprando-a ["mondoróka' significa "dilacerar", "rasgar"]". Passando, em seqüência, a pergun-tas a respeito de abraços, beijos, já se pergunta sobre "toque das — e olhar com mau desejo para as — virilhas".

O exame do confessionário volta-se à indagação de particula-res sobre a masturbação (sempre em relação ao homem), pergun-tando a respeito do tocar-se o próprio membro excitando-se (diz a tradução proposta, mas o verbo moagüyagüy significa, de fato, "sacudir", "fazer vibrar"), do provocar-se querendo poluir-se etc., com algumas repetições das perguntas, diferenciadas por mínimos particulares que fazem pensar na tentativa (necessidade?) de detectar em todos os particulares as formas das práticas de mas-turbação. As perguntas procuram detectar, também, possíveis prá-ticas homossexuais ou de assunção de papéis femininos nas rela-ções entre homens indígenas. Provocar uma mulher, tratá-la como meretriz, propor-se como alcoviteiro (intermediador de relações amorosas), ou o simples consentimento de que alguém faça isso, às vezes parecem constituir-se como condições igualmente graves de "pecado". A referência a situações de concubinato, às relações em que havia um certo grau de parentesco (no texto definido até como "grau de irmandade"), certas indicações de promiscuidade, revelam algo que, segundo o próprio organizador e tradutor desse texto, o pe. Armando Cardoso, desvenda "o pormenor evidente de ser este confessionário muito antigo, pois ainda se fala de costu-mes indígenas que, anos depois, já não existiam, quando a cultura

Page 201: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

colonial se foi impondo em aldeias e vilas, com suas casas de pri-vacidade familiar". E, todavia, parece que pe. Cardoso não se dá conta da contradição evidente em seu comentário quando, conti-nuando, quer confirmar tudo quanto foi dito (suposto), relevando como "já o confessionário de Antônio Araújo, pouco mais breve e diferente, supõe cultura religiosa e social mais adiantada" [sic!]. E aí a evidente contradição: "mesmo assim há pormenores seme-lhantes e até iguais" (Anchieta, 1992(b): 92).

As perguntas sobre masturbação masculina visam, também, dis-tinguir o caso em que isso se dá pensando em, ou desejando, uma mulher. Mas não parece, à primeira vista, dar-se uma ordem clara na organização das perguntas. Parece (seja-me permitida a expressão) embaraçado disparar um pouco para todos os lados para detectar pos-síveis faltas, na angústia de que algo pudesse escapar ao missionário, que, nesse caso, se assume como o responsável por criar uma "cons-ciência do pecado", nas ações, às vezes, normais/comuns, ou, eviden-temente, por ele mal entendidas, do indígena tupi. Nessa persegui-ção de perguntas em todas as direções, voltam questões: sobre o poluir-se, sobre a "traição" à esposa, sobre as gestualidades (às vezes cruamente descritas) das práticas e da exibição/manipulação do membro. Uma breve parte conclusiva dessas interrogações (pp. 93-4) parece, finalmente e de alguma forma, organizar-se sobre pensamen-tos, desejos e fantasias, onde, todavia, destaca-se sua relação, ainda, com a prática (finalidade) da masturbação/1

Segue uma parte destinada, segundo o catecismo, a admoes-tar ("Quod Deus avertat") quem eventualmente tenha podido res-ponder sim ao interrogatório proposto antes. E o "processo de cul-pabilização" — de fato, uma das formas (talvez a privilegiada) para impor um "processo civilizador" — começa por interditar, a partir desse momento da confissão, a união com a esposa por se tornar isso incompatível com as práticas (pecaminosas) confessadas. O con-fessor se propõe, com essa injunção, o objetivo mínimo de aplacar (mojerekoápa)72 Deus, sugerindo, no entanto, uma vivência do ho-mem com a própria esposa que não prevê mais uma união sexual,

Page 202: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

mas que contempla o fato (a injunção) de que se torne de "esposa a irmã". O texto não deixa entrever a temporalização dessa "expia-ção", pela qual se haveria de ganhar o 4 perdão", "as pazes" (nyrõna-mo)y de Deus-Tupã.

Uma outra série de perguntas se destina, então, às mulheres, "principalmente mimboáia (criada)". A começar pela eventual ces-são de algum companheiro à própria manceba, ou ao entregar-se como alcoviteira para alguns; pelo festejar uma "conduta antiga" (que se intui como má conduta), ou por um "enfeitar-se querendo homem que te desejasse sensualmente"; por um subtrair-se à casa do próprio senhor para ir com alguém, ou por um jazer sobre a pró-pria manceba como chocarreira: e tudo isso até chegar a pergun-tas tecidas em detalhes (picantes). Assim, por exemplo, é formula-da uma dessas perguntas: "tocaste em tuas virilhas abrindo-as, avermelhando-te, alargando-as, separando-as, ferindo-te?" (p. 95). Sem esquecer a sensualidade/sedução exercida, eventualmente, contra algum menino. Em síntese, constrói-se, aqui também, um "confessionário" que, em relação à sexualidade, tinha o objetivo de detectar todas as minúcias de um "pecado" que se constituía, ao olhar do missionário, no pensamento/vontade ("anseaste", "dese-jaste", "pensaste", "te encantaste") e nas ações ("abraçaste", "tocas-te", "acenaste", "pintaste"), aparecendo, também, a (possível) rejei-ção de uma (eventual) gravidez ("te espremeste, após homem ter relação contigo, não querendo ter filho?", "deste à luz outrora de boa vontade?").

Passa-se, sucessivamente, a uma série de perguntas destina-das à mulher casada. E isso, também, visando aos vários graus de ações: assim, por exemplo, em relação ao eventual consentimento dado ao marido para ter relações com outras mulheres, em relação ao ciúme para com o marido por causa de alguma mulher, em rela-ção à resistência ao marido querendo este unir-se com ela. Em rela-ção, enfim, à "culpabilização" para com o homem que tenha "dei-tado" com a própria esposa "quando sucedia seu sangue", ou que tenha procurado unir-se a uma sua parenta.

Page 203: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

No final dessas "indagações confessionárias" — verdadeiros "tribunais da consciência" a ser construída, apesar de encontra-rem-se, também, aspectos consolatórios da confissão —, caso a mulher tenha respondido afirmativamente às perguntas, reenvia-se-a à "admoestação", o quod Deus avertat que, anteriormente, tinha-se destinado ao homem.

Finalmente, além de apresentar esses problemas lingüístico-doutrinais específicos e estreitamente entrelaçados, a catequese, enquanto caracterizada por um corolário de operações de "dicio-narização" e de "gramatização" das línguas americanas, como apontado por Michel de Certeau, encontra-se na necessidade, particularmente significativa, de prolongar-se necessariamente, em alguns dos catecismos objetos da nossa indagação, em seus anexos dicionários de nomes de parentesco: essa definição (dicio-narização) dos termos de parentesco parece constituir-se, no nosso caso, como o anel de conjunção — de grande importância instrumental, do ponto de vista missionário, e extremamente sig-nificativo, do ponto de vista histórico e antropológico — entre a gramática e a doutrina. E não é por acaso. Além de sua específi-ca função de auxílio à obra de catequese, esse tipo de dicionário-apêndice mostra toda sua peculiar função que transborda o coro-lário meramente gramatical e dicionarístico para adquirir um "poder de nomeação", que se constitui, ao mesmo tempo, como paralelo "poder de reconhecimento" das relações de parentesco indígena. Esse reconhecimento constitui-se, obviamente, como a base essencial para se poder construir o policiamento moral e cívico da catequese: a organização gramatical e dicionarística dos nomes de parentesco segundo a língua indígena representa, por-tanto, a base fundamental para uma posterior doutrinação dos costumes.

Podemos apontar, a esse respeito, para alguns exemplos que podem ser encontrados nessa parte dos catecismos jesuíticos do pe. Araújo e do pe. Montoya: fora da tentativa de construir um quadro o mais completo do "sistema elementar de parentesco"

Page 204: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

indígena, em alguns termos peculiares os missionários já "doutri-nam" a relação apontada pelo termo.

E o caso, por exemplo, do termo tupi Agoâçâ e do termo gua-rani Aguaçá: a definição que Araújo dá do primeiro é "damo, ou dama, em mà parte", julgamento e combate moral da relação apon-tada pelo nome que se destaca, também, na definição da expres-são guarani de Montoya, "mancebo, y mançeba, amancebados".

A mesma operação se realiza, também, quando é destacado, por oposição, o valor (moralmente) positivo da relação subenten-dida pelo termo: assim no caso tupi do termo Abà iba (ou Aunhã íha), definido por Araújo como "namorado, não em mà parte: usa delle sò a molher, fallando delle" (ou "namorada não em mà parte usa delle sò o varão: xe cunha ibamo arecô"). Outro caso análogo, segundo os nomes tupi de Araújo, é aquele oferecido pelo nome Temirêcô, na definição do qual se trata de "molher casada, uxor, usa delle so o varão, vt xeremirêcó".

Nesses dicionários emerge, também, o grau de aceitação, sedimentado no próprio nome, das relações condenadas e a serem combatidas. Sempre em Araújo encontramos, por exemplo, o nome tupi Nhemõya, para o qual é dada a definição "Comboça. Usa delle a molher somente a respeito da manceba de seu marido" — o correspondente nome guarani Némoi é definido, por Montoya, somente como "cumbleca".

Enfim, a "dicionarização" dos termos de parentesco oferece-se, na definição do pe. Araújo, como "Annotação [...] pera intelli-gencia das circunstacias, que podem occorrer na Confissão". E se esse dicionário específico destaca-se, portanto, em função de um correto policiamento cívico e moral (ocidental e missionário) que se realiza através da confissão, sua função se completa em vista de uma (nova) correta definição da relação matrimonial (dos graus de parentesco que devem ser excluídos dessa). É por isso que uma segunda parte do dicionário proposto no fim do catecis-mo guarani pelo pe. Montoya [(1640) 1876: 324-29] desenvolve-se em relação aos termos que definem os diferentes graus de

Page 205: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

parentesco indígena relacionados com o casamento, deixando bem claro, na introdução desse dicionário, o fato de que "por Bula de Paulo III se pueden casar los índios sin dispensacion en el tercero y quarto grado".73 Finalmente, da mesma forma que a "religião", os "ritos" e as "línguas" indígenas, o "parentesco" tam-bém se estrutura através de uma necessária (do ponto de vista missionário) "gramatização", que se configura, dessa maneira, como código geral instrumental à construção de um sistema que, em sua capacidade de generalização, cria as condições essenciais para uma fundamental "convergência de perspectivas" (cf. Arruti, capítulo 10 neste volume) entre missionários e indígenas. Na base dessa convergência se constituem os jogos de mediação entre suas particularidades contextuais e suas linhas de continuidade histórica. Como destaca Paula Montero,74 a partir dessa base comum — a constituição da máxima generalização de um deter-minado código que possa se tornar comum, nós diríamos um ver-dadeiro "mínimo denominador comum" — torna-se possível pen-sar à noção de "códigos compartilhados", proposta por Clifford Geertz, e, finalmente, torna-se possível acompanhar, historica-mente, a construção de um acordo que se desprende do próprio processo da experiência cotidiana de comunicação.

Através do paradigma da tradição religiosa, leitura e pregação vão juntas: nessa direção, tanto a gramática quanto o catecismo permitem a passagem da língua indígena, e dos conteúdos cultu-rais por ela veiculados, em direção à fixação das formas sintáticas que carregam a materialidade e a memória da cultura européia. Tudo isso, na medida em que se encobrem os "tesouros da língua" indígena, segundo a expressão do pe. Montoya: mas esses tesouros são destinados a emergir ao longo dos problemas de tradução que encontramos em nossa investigação.

E se a gramatização da língua tupi resulta na homogeneização dos signos lingüísticos, a operação torna-se tanto mais significati-va se posta em relação à imposição da homogeneização, da unifor-

Page 206: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

mização e da compactação, operações que se impõem na conjuntu-ra da nova catequese pós-conciliar: de um e de outro lado, na ana-logia das operações, evidencia-se a marca característica da própria conversão (um convergir, em sentido próprio) religiosa. A obra apostólica dos missionários opera, desse ponto de vista, uma dupla 'operação de tradução": ao redor de um "religioso" peculiarmente ocidental, por um lado, criando, dessa forma, a possibilidade para que a alteridade possa convergir na direção desse "religioso"; e, por outro lado, ao redor de uma operação de "gramatização" que, ao mesmo tempo em que permite transitar de uma língua para outra, permite a redução das diferenças lingüísticas sub specie grammati-cae. Trata-se, enfim, do que se torna evidente nas palavras do pró-logo do Catecismo do pe. Araújo, com as quais o autor declara:

Auditus autem per verbum Dei [ouvir os outros através do verbo de Deus],

onde a gramática, através da qual se pode ouvir esses "outros", adqui-re a característica do verbo divino. Essa estrita relação entre a gra-mática lingüística e a gramática religiosa (do verbo de Deus) per-mite, portanto, que não possa ser colocada em dúvida a estratégia catequética segundo a língua indígena:

Quem duvida [por conseqüência] que a commun cação desta divi-na palavra se há de fazer por meio da lingoa da quelle, a quem pre-tendemos reduzir/5

Em sua simetria, as duas operações apresentam, no específico caso indígena americano, suas características dificuldades. As consi-deráveis dificuldades da catequese americana, perante a "inconstân-cia da alma selvagem", ecoam, analogicamente, as dificuldades da "redução lingüística". De fato, nas palavras do pe. Antônio Vieira:

Page 207: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Pois se a santo Agostinho, sendo santo Agostinho, se à águia dos entendimentos humanos se lhe fez tão dificultoso aprender a língua grega, que está tão vulgarizada entre os latinos e tão facilitada com mestres, com livros, com artes, com vocabulários e com todos os outros instrumentos de aprender, que serão as línguas bárbaras e bar-baríssimas de umas gentes onde nunca houve quem soubesse ler nem escrever? Que será aprender o nheengaíba, o juruna, o tapajó, o tremembé, o mamaianá, que só os nomes parecem que fazem horror? — As letras dos Chinas e dos Japões muita dificuldade têm porque são letras hieroglíficas, como a dos Egípcios; mas, enfim, é aprender línguas de gente política e estudar por letra e por papel. Mas haver de arrostar com uma língua bruta e de brutos, sem livro, sem mestre, sem guia e no meio daquela escuridade e dissonância haver de cavar os primeiros alicerces e descobrir os primeiros rudimentos dela, dis-tinguir o nome, o verbo, o advérbio, a proposição, o número, o caso, o tempo, o modo e modos nunca vistos nem imaginados, como o de homens enfim tão diferentes dos outros nas línguas, como nos cos-tumes, não há dúvida que é empresa muito árdua a qualquer enten-dimento e muito mais árdua à vontade que não estiver muito sacrifi-cada e muito unida com Deus. (Vieira, 1959: 415-6)

Como já apontamos acima, a dificuldade da operação de gra-matização lingüística — já inscrita no próprio "horror" que os nomes das línguas indígenas transmitem — encontra-se enraizada numa dupla ausência, índice de barbárie (no sentido de ausência de ' exercício político"), uma decorrente da outra: a ausência da escrita (ausência, portanto, de livros, de mestres, de guias, respon-sável pela obscuridade e pela dissonância) e a ausência dos "rudi-mentos" gramaticais (os modos, os números, as preposições, as formas verbais... e, nós juntaremos, os gêneros). As operações que decorrem dessas ausências se caracterizarão, portanto, mais uma vez, na necessária e fundamental operação de "gramatização" lin-güística e na conversão do outro em direção a um religioso que, veiculado na dificuldade de transcrevê-lo na língua indígena, torna-se

Page 208: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

também testemunha da "empresa muito árdua", emblema do ne-cessário sacrifício missionário. Nessa última tarefa esclarece-se a dimensão do trabalho missionário (jesuíta), que adquire, como apontado pelas palavras do pe. Araújo, seu peculiar significado:

[...] por causa delia [da comunicação dos missionários com os "natu-rais"] não são jà os lingoas de todo acabados [...], não por que a esta nossa Mãy a Companhia, faltem filhos bõs lingoas, que como melho-res obreiros, occwpandose na conversão, procurem sua conservação [...].76

Enfim, nesse jogo de palavras — "conversão" (do outro) versus "conservação" (do si próprio) — proposto pelo jesuíta, a decorrente operação lingüística de redução religiosa da alteridade serve, tam-bém e necessariamente, para a realização da vocação missionária.

Uma única determinação teológica subtende, portanto, as duas operações de redução lingüística e religiosa, tornando possí-vel a recuperação da unidade desperdiçada com o episódio de Babel: no contexto bíblico, a ruptura da unidade representava a possibilidade de entender a multiplicidade (histórica) das línguas humanas; no contexto da redução, realizada pelas operações de "dicionarização" e de "gramatização" da obra apostólica missioná-ria, realiza-se, ao contrário, a possibilidade de reunificar (teologi-camente) essas diferenças lingüísticas. Dentro dessa perspectiva, a própria língua indígena vê reconhecida sua possibilidade de par-ticipar do legado da língua adâmica. E se, nessa época, a língua adâmica coincidia com o latim — que forneceu os instrumentos gramaticais privilegiados para essa operação de redução —, as diferenças lingüísticas constituíam-se como os vários registros "vulgares" que podiam ser reduzidos (homogeneizados, uniformi-zados) segundo a perspectiva da "gramática universal".

E, de fato, a única determinação teológica que, na administra-ção das operações de redução, religiosa e gramatical, permite pro-jetar sobre o indígena a dupla universalização do critério cultural europeu presente nos catecismos americanos em língua indígena:

Page 209: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

de um lado, a universalização lingüística, que encontra seus fun-damentos nos modelos grego e latino, de outro, a universalização religiosa, fundada na unidade da pessoa e na identidade como cri-térios de coerência, consistência e não-contradição.77

Dessa forma, para além da reunificação/redução religiosa, a vocação apostólica da catequese jesuíta aparece ligada à matriz pro-priamente lingüística. Esse fato torna-se evidente no próprio Diálogo sobre a conversão do gentio (1553-4) do pe. Manuel da Nóbrega: nele, o jesuíta postula e prenuncia a graça da qual todos os missio-nários devem ser dotados para a matriz da língua. E, de fato, o pró-prio Diálogo reconhece, a esse respeito, como, não se tratando do obstáculo da "presença de uma doutrina inimiga" a ser vencida, no processo de catequese e conversão indígena, o problema consiste nos costumes bárbaros dos gentios: se nessa direção, portanto, o problema da inconstância do indígena é associado àquele do proje-to educativo jesuíta, o Diálogo parece sugerir uma ligação direta entre esse projeto e uma verdadeira e própria "catequização lingüís-tica". O "processo civilizador" passaria, portanto, de alguma forma, por uma imposição de regras lingüísticas, traduzidas (isto é, "trazi-das para dentro" do mundo indígena) pelos missionários.

A "universalização civilizadora" — doutrinai e gramatical, reli-giosa e lingüística — encontra-se, assim, indissoluvelmente asso-ciada, segundo a perspectiva exemplarmente sintetizada por Daher:

Afin dmtégrer 1'Indien dans 1'ordre hiérarchique du corps mystique de lempire portugais, le missionaire, à Fintérieur des normes écrites du catholicisme, produit la "conscience" chez 1'Indien — en tant que mémoire coupable et repentir des péchés passés — et louvre ainsi à la contrition. II participe alors légitimement, comme tous les hommes, au péché adamique. (Daher, 1999: 245)

No fundo, o fato de o missionário-gramático — e a relação entre os dois termos dá-se de forma estritamente interdependente

Page 210: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

— reconhecer que a língua indígena possa participar do legado da língua adâmica, como vimos anteriormente, carregava a conse-qüente necessidade de fazer com que o próprio indígena pudesse (devesse) participar, ao mesmo tempo, do pecado adâmico.

Nessa direção, se os homens são, segundo Ong,

seres cujos processos de pensamento não provêm de uma simples disposição natural, mas da maneira segundo a qual essas disposições são estruturadas, direta ou indiretamente, por uma tecnologia da escrita (Ong, 1982: 78),

enfim, se, segundo o autor, a escrita estrutura a consciência, a nossa investigação aponta, para além disso, em direção às carac-terísticas peculiares que a catequese jesuítica em língua indígena adquire na nova perspectiva missionária.

Partindo dos resultados da investigação, deveremos levar em consideração como essa perspectiva se destaca pela estrita e com-plexa relação entre suas três dimensões: cultural, religiosa e lin-güística. E com relação a essa característica que adquire seu peculiar significado o problema da "gramatização" junto àquele da "diciona-rização", da redução gramatical e, paralelamente, da redução do léxico. E se, especularmente à experiência indígena, essa redução do sistema de nomeação das coisas é evidentemente influenciada, no caso americano, pelos nomes de coisas que os europeus não conheciam antes do encontro, justamente com relação a isso resulta evidente como as traduções, que se constituíam como dicionarização, não ocorriam de forma unívoca dos missionários para os índios.

De qualquer maneira, todavia, nossa investigação aponta como, nessa específica direção, se verificasse, finalmente:

1. a possibilidade de uma descontextualização das línguas indíge-nas, realizada através da escrita e da "gramatização" lingüística;

D e u s N A A I. I) K I A 2 0 5

Page 211: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

2. uma descontexualização lingüística que se configura, necessaria-mente, como uma "detribalização" enquanto funcional à implan-tação do processo civilizador;

3. uma "destribalização" como aviamento para uma gramática (lin-güística e cultural) universal, tecida em função da homogeneiza-ção dos parâmetros de unidade e identidade da pessoa, como cri-térios de coerência, consistência e não-contradição, enfim, do ponto de vista missionário, dos parâmetros de consciência, memória e constância;

4. a retranscrição, por dentro da própria língua (cultura) indígena, desses "universais" ocidentais, agindo propriamente como "con-versão" lingüística e cultural que garante a finalidade totalizante da conversão religiosa;

5. a conversão como "convergir" (traduzibilidade) da diversidade (cultural) dos signos lingüísticos, religiosos etc., para dentro da identidade do catolicismo;

6. a generalização das normas (escritas) enquanto, recobrindo ou recolocando as normas fortemente e necessariamente contextua-lizadas das sociedades orais (Goody, 1986: 24), permite estender o domínio da lei sobre o costume e, por conseqüência, realizar a dupla unidade colonizadora e evangélica.

De qualquer forma, todavia, é importante levar em considera-ção o fato de que a "descontextualização" lingüística com sua con-seqüente "destribalização" social acabou por constituir, paralela e necessariamente, uma retranscrição e uma conversão da cultura indígena que não se limita a seu aspecto meramente negativo, mas que, necessariamente, a "recontextualiza" e a "reestrutura", lin-güística e socialmente, dentro de uma nova generalização, lingüís-tica, normativa, religiosa e política, que, ao mesmo tempo, afeta profundamente a própria herança cultural ocidental ao longo de sua ação colonizadora e evangelizadora.

Nessa direção manifestam-se as características que sintetizam os processos implícitos àquela que mais acima denominamos de

Page 212: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

"redução lingüística". Essa se configura, portanto, pela imposição de sua estrutura gramatical (latina), imposta pela técnica da escri-ta. De fato, tecnicamente, a escrita impõe uma prioritária e funda-mental normalização dos sons (fonologia), operação que se torna o exemplo mais significativo do processo reducionista, destinado a transformar a ruidosa multiplicidade (babélica) da língua indígena, num único "grego da terra": um selecionado "monolingüismo" paralelo ao monoteísmo cristão. De fato, a fonologia, como reco-nhecimento de sons significativos (e, portanto, como cancelamen-to daqueles não significativos para o interlocutor), se constitui como o primeiro e fundamental passo para as sucessivas reduções: gramatical, religiosa e cultural. Partindo de seus fundamentais referenciais ocidentais, os missionários-gramáticos não descarta-vam, todavia, a possibilidade de prestar atenção aos novos fenôme-nos que encontravam: só que, como finalmente exemplificado pela dimensão lingüística, eles podiam ser, de alguma forma, levados em consideração somente através de sua diferença. Essa diferença, no entrecruzar-se de suas dimensões histórica relativa (aquela oci-dental e renascentista) e espacial relativizadora (etnológica), ao rea-lizar suas específicas revoluções, de caráter humanístico-filológico a primeira, e missionário-gramatical a segunda, representa a heran-ça histórica mais significativa que o século XVI vai constituindo em seus fundamentos, que condicionarão profundamente a leitura da alteridade — interna e externa à Europa — dos dois séculos seguin-tes, antes de entregá-la para o sucessivo desenvolvimento da Antro-pologia científica.

Page 213: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)
Page 214: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

A P R I M E I R A M I S S A : M E M Ó R I A E X A M A N I S M O N A

M I S S Ã O C A P U C H I N H A D E B A C A B A L

(Rio Tapajós, 1872-1882)

Marta Amoroso "[...] não é a imagem visual do fantasma que importa, mas o nó das relações humanas a partir do qual o fantasma é invo-cado — ou que o fantasma contribui para amarrar."

ÍTALO CALVINO

A INAUGURAÇÃO DO MURAL Primeiro missa no Brasil (1948),1 do pintor paulista Cândido Portinari (Brodósqui, São Paulo, 1903-62), foi celebrada na imprensa por Mário Pedrosa (1981) "como uma das realizações mais pujantes da arte brasileira de todos os tem-pos". O tema histórico, anteriormente visitado por Vitor Meirelles (Desterro, Florianópolis, 1832-1903), em 1861, ganhara nas mãos de Portinari a expressão de uma originalidade que destacaria a obra do pintor paulista do conjunto das obras de outros pintores modernistas de seu tempo. Nas duas Missas, o diferencial repou-saria no fato de Portinari obter a suspensão da suposta realidade histórica ditada pelo tema para se ater ao sentido profundo da cena inaugural, a celebração da missa na recém-inaugurada Terra de Santa Cruz. O crítico nos mostra que em Vitor Meirelles a realida-

D K U S NA a i . D I-:I A 2 0 9

Page 215: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

de histórica expressa-se em detalhes pitorescos da natureza — macacos, palmeiras — e da cena primordial — com índios espa-lhados por todo o cenário. Em Portinari, a missa despojava-se des-ses pseudoproblemas pictóricos e o artista se concentrava exclusi-vamente no ato da missa: atenção aos personagens principais que participavam do ritual, ao local onde se realizava a cerimônia, ao palco que tem luz própria, artificial, distribuída pelo arbítrio do artista. Em Portinari a iluminação dava ao conjunto um caráter cenográfico, de teatro. Isto é, de representação de algo totalmente separado do meio natural ambiente e do meio social nativo. Retomando as palavras do crítico, a primeira missa do ponto de vista cultural surgia como o que havia de mais antinatural, de mais estranho ao Brasil "selvagem, fetichista e pagão"; era ato de con-quista cultural, de plantação da semente de civilização cristã que vinha de fora, era evento da civilização cristã em solo pagão. "Eis porque não há índios, não há árvores, não há morros, nem bichos a participarem: a cerimônia que só estrangeiros brancos de outros mundos, talvez de outra espécie, estão realizando".(Pedrosa, [1942] 1981: 29). O efeito desse arbítrio artístico pode ser visto na supressão da terra, o solo espinhento da Terra de Vera Cruz des-crita por Caminha: na tela não há solo ("não se vê na tela um palmo de terra nua", comenta o crítico), apenas a pavimentação artificial, o assoalho de tacos de madeira polida e a pedra talhada. A composição, por sua vez, é expressada em linhas retas hierarqui-zadas, o que exclui a natureza e suas curvas. O altar construído no pavimento está disposto sobre degraus hierarquizados, a composi-ção é toda em pirâmide, cujo vértice é representado pelo cálice. A tonalidade é amarelada, luz também estranha que vem do ato do batismo. O desenho em ângulos, as linhas verticais do altar, das colunas, das lanças tem um ar totalmente gótico.

Os olhares sobre a representação da missa entre os índios, que fizeram os dos pintores e os nossos, de antropólogos neste momento, aludem necessariamente à própria condição da memó-ria da missão, de cena construída e reconstruída secularmente,

Page 216: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

sobre a qual se depositam interpretações e nas quais os índios podem estar mais ou menos presentes, mais ou menos representa-dos, mais ou menos subsumidos. Assim, o registro produzido por missionários e historiadores da Ordem Menor dos Frades Capuchinhos sobre o ato histórico — tantas vezes repetido — da inauguração da cristandade entre gentios traz a dupla referência de uma experiência particular, que ao mesmo tempo fala do proje-to histórico da Igreja católica. A primeira missa na Missão de Bacabal, rio Tapajós, Pará, é fragmento que nos remete inevitavel-mente, pela própria natureza do registro dos missionários, a outras missas celebradas entre os índios em todos os tempos e regiões. Frei Pelino de Castrovalva, Diretor dos índios em Bacabal, diante das dificuldades que enfrentou no Pará, compara Bacabal às mis-sões na China e no Japão. Seu trabalho entre populações amazô-nicas dialogava, por sua vez, com o de outros capuchinhos que atuaram na mesma época nos aldeamentos do Império e que sofre-ram como ele as mais variadas formas de resistência.

Os mundurucu somam hoje uma população de por volta 10.065 pessoas (Funai, 2002), que habita uma região limitada pela margem oriental do rio Tapajós e pelos rios Cururu e das Tropas, ambos tributários do Tapajós, em Terras Indígenas distri-buídas nos estados do Pará, Amazonas e Mato Grosso. A primei-ra missa em Bacabal inaugura um ciclo de curta duração de dez anos de atuação capuchinha entre os mundurucu. Os capuchi-nhos estabeleceram em 1872 a Missão de Bacabal na região de Itaituba, rio Tapajós, considerada borda comercial do território indígena. Os missionários italianos seguiam um padrão de aldea-mento característico do período do Império,2 a sede da missão coin-cidindo com o posto avançado do governo do Império nas frontei-ras do mundo cristão.

No início do século XX, missionários franciscanos alemães irão se estabelecer rio acima, na confluência do Cururu com o Tapajós, e ai permanecem até hoje.3 O Aldeamento de Bacabal restou como um monumento histórico da presença da missão, e, assim como

D E U S N A A L D E I A 21 1

Page 217: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

"Aldeamento Abandonado", foi visitado e registrado pelo casal de etnólogos americanos Yolanda e Robert Murphy (ver Mapa) em meados do século passado. A eles devemos a descrição mais exaus-tiva das instituições mundurucu (Yolanda & Robert Murphy, 1954, Robert Murphy, 1958, 1960), resultado de pesquisa realizada na década de 1950, sob a orientação de Julian Steward, editor do Handbook of South American Indians (1946-50), paladino da ecolo-gia cultural norte-americana, dos estudos sobre áreas culturais e formulador da tipologia da integração sociocultural advindas do contato (Descola, 2002; Viveiros de Castro, 2002: 322).

Os Murphy se interessaram especialmente em observar aspec-tos da mudança cultural que se operara no Cururu por efeito da inclusão dos grupos mundurucu no sistema de aviamento que se implantara na região com o ciclo da borracha, no século XIX, siste-ma que, como se sabe, tem por base a exploração do trabalho indí-gena, por meio do endividamento. Parte da análise dos dois etnólo-gos recai assim sobre a linha que separava os bravos guerreiros mundurucu — renomados caçadores de cabeça, presença lendária da Amazônia colonial até meados do século XIX — dos caboclos aculturados do Tapajós, descaracterizados culturalmente e confun-didos do ponto de vista social com a população ribeirinha.

A presença da missão franciscana alemã, que por sinal hospe-da temporariamente o casal americano no rio Cururu, é também foco da atenção dos etnólogos americanos. No registro deixado por viajantes, missionários alemães e etnólogos americanos vislumbra-se o quadro de um novo dualismo que se delineia a partir do final do século XIX e que se soma às metades clânicas e cerimoniais dos mundurucu. Este se define pelo grau de proximidade e afastamen-to dos grupos nativos do sistema de aviamento e do catolicismo. Assim, a população que habitava o Tapajós nem sequer era consi-derada indígena nos anos 1950; os mundurucu em contato com a missão do Cururu estariam engajados no sistema comercial, e con-seqüentemente dependentes das trocas comerciais; os mundurucu das Campinas permaneciam afastados e "tradicionais". Nas dife-

Page 218: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

rentes situações, a prática do xamanismo permanecia inalterada no mundo mundurucu considerado em sua totalidade.

Se o exercício antropológico se define como uma tradução que envolve sempre alguma forma de traição, estaremos aqui cor-rendo o risco de trair os missionários capuchinhos, foco central de nossa análise. Não se trata exclusivamente de observar o programa da missão, já que nas memórias, na correspondência e nos relató-rios dos missionários — textos sobre os quais nos debruçamos — as populações indígenas fornecem a matéria primordial da obser-vação etnográfica. Estamos diante do discurso missionário invaria-velmente perante as relações. Assim, proponho que observemos a memória capuchinha por meio das relações que no discurso mis-sionário se revelam essenciais. Para tanto, busco identificar o lugar que as idéias de Deus e de Diabo ocupam em tais narrativas e frag-mentos discursivos. Veremos que às imagens de Deus e de Diabo se associam o governo do Império e o sistema do Padroado; os regatões e o sistema de aviamento na Amazônia; os pajés, feiticei-ros e o sistema xamânico mundurucu. A análise segue a orientação de um exercício de antropologia simétrica sugerida em B. Latour ([1996] 2002), que pressupõe que as crenças não são um estado mental, mas efeito da relação entre povos. Tal orientação nos con-duz a observar o exercício missionário na complexidade das redes por ele estabelecidas, que articulam diferentes planos de uma atuação que se dá nas aldeias em contato com as populações ame-ríndias; em um determinado circuito comercial regional e no cír-culo político-administrativo mais global, ao qual se agregam os circui-tos intelectuais que a atuação missionária alimenta. Interessa-nos, sobretudo, nos inteirarmos da "etnociência" de um capuchinho em meados do século XIX, a teoria da história subjacente à observação do Outro — os hábitos e costumes, já que não se dispunha do con-ceito de cultura — e da Natureza.

A narrativa missionária é tomada assim na sua positividade — no sentido que P. Montero sugere nesta coletânea, de experiência etnográfica, advinda da relação de alteridade que move a missão, e

í)i us \ \ \ i i) 1.1 \ 213

Page 219: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

que se realiza na prolongada imersão dos missionários em univer-sos socioculturais distintos. Ethnografia, ademais, é um conceito bastante comum no século XIX, os principais periódicos dedicam seções ao tema. Nossa intenção aqui é, no entanto, a de captar a teoria que orienta a práxis missionária, as ethnografias dos religiosos capuchinhos e a posterior produção da memória da missão.

Veremos que o projeto universalizador da Igreja católica, condu-zido por frades capuchinhos no Bacabal, se traduz em um esforço dos missionários para, a partir da experiência da missão, formular uma teoria da história da religião que incorporasse os mundurucu. Os pontos centrais dessa teoria passariam pela ideologia de cunho evolucionista que primeiramente busca identificar as origens bárba-ras de todos os povos. Assim, os cristãos também já foram bárbaros; o Carnaval poderia ilustrar a reminiscência desse passado pagão que se manifesta no mundo cristão, a despeito de tais folias não consta-rem das escrituras cristãs. No sentido inverso, as populações ame-ríndias se aproximariam dos cristãos, já que portariam algum tipo de comportamento religioso. Os mundurucu, por exemplo, apresenta-vam sinais de um protocatolicismo nas procissões e nas festas de penitência e expiação, que guardariam semelhança formal com as procissões de rogação dos primórdios da Igreja católica.

Diante das instituições de uma população tupi, do canibalis-mo em vigor na vida ritual dos mundurucu, os capuchinhos reco-nhecem instituições pagãs que estavam na origem do cristianismo. Devidamente relido em molde familiar ao olhar cristão, o selvagem rapidamente ganha a condição de civilizado. A operação leva em conta tão-somente a presença física do equipamento missionário junto à população ameríndia e a decorrente experiência missioná-ria que advém de tal implantação, ainda que seja uma experiência em mão única. O "selvagem" da missão no século XIX é assim maté-ria volátil — logo que descoberto deixa imediatamente de sê-lo, e os religiosos passam a buscar novos "verdadeiros selvagens" para com eles iniciar outra missão.

Page 220: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Sobre a base de alguma expressão de religiosidade identifica-da a missão constrói a possibilidade da empresa apostólica. Não haveria distância intransponível entre esses dois universos, e as chances de a missão frutificar no Tapajós se assentariam assim na constatação de que os mundurucu detinham alguma idéia de reli-gião. E interessante observar que a teoria nativa que os missioná-rios capuchinhos utilizam no século XIX se aproxima em muitos sentidos das teses veiculadas pela historiografia brasileira da época, especialmente Varnhagen e Taunay — autores que assina-lam que bárbaros também povoavam o passado europeu, de forma que usos e costumes aproximavam índios do Brasil das populações do continente europeu antes de estas fazerem uso do bronze e do ferro4 (Amoroso, 1996). Chamamos a atenção para os limites desta e de outras formas de historicismo que povoam a reflexão sobre as populações ameríndias a partir de meados do século XIX,5 que resultaram igualmente na dissolução do diferencial ameríndio.

Passamos a tratar da produção memorialística da missão capu-chinha como um dos pilares do projeto missionário. A memória da missão corresponde à etapa de redimensionamento da experiência missionária, reflexão que submete a matéria vivida aos contornos do programa missionário e, devidamente ajustada, passa a circular no meio católico.

M E M Ó R I A

Seria legítimo supor — considerando os fundamentos da Ordem Menor dos Frades Capuchinhos (o. F. M. Cap.) — que a experiên-cia missionária dos frades italianos no Brasil6 não houvesse gerado memória escrita a ser legada à posteridade. Afinal, a prática da escri-tura, se não condenada, era desaconselhada pela tradição francisca-na como uma manifestação da vaidade humana que afastaria os seguidores de são Francisco do voto de simplicidade. O desprezo pelos livros e pela erudição, no entanto, jamais levou o santo de

Page 221: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Assis a abrir mão dos biógrafos, das biografias e memórias, gênero que marca de fato uma nova tradição literária da Igreja católica liga-da ao surgimento da Ordem Menor (Le Goff, 2001). O gênero bio-gráfico seria assim o veículo mais apropriado para a mensagem fran-ciscana contrapor a simplicidade da vida de seus santos e mártires ao que consideravam erudição estéril da tradição escolástica. O desprezo pela escritura tende gradativamente a ser abandonado na modernidade à medida que atribuições administrativas da Ordem Menor crescem e as relações com a Santa Sé tornam-se mais com-plexas. Subsiste, no entanto, no discurso dos frades capuchinhos destinados a catequizar os índios no Brasil no século XIX. Frei Luís de Cimitille, missionário que atuou entre os kaingang do Paraná, ele mesmo um autor, aludia ao caráter supérfluo da escritura ao comen-tar que o missionário: "todo se deve dar ao único necessário, segun-do a palavra evangélica". E completava: "algumas pessoas talvez pen-sem que é pura perda de tempo gasto em coligir estas notícias e que eu poderia ter empregado mais vantajosamente as minhas horas desocupadas" (frei Luís de Cimitille, in: Fernandes, 1956: 14).

O fundamento franciscano da condenação do texto escrito atualiza-se no Brasil imperial pela via do mito da missão sem memória, que alude a um sinistro que teria extraviado a documen-tação capuchinha sobre os aldeamentos indígenas, que seguia para a Itália, mito conhecido de todo pesquisador que percorre os arquivos italianos e brasileiros da O. F. M. Cap. Uma versão publi-cada desse mito da perda da memória da missão capuchinha apa-rece em frei Pelino de Castrovalva ([1883] 2000: 36), missionário que atuou entre os mundurucu do Pará, que, inspirado pela expe-riência radical da missão entre os índios, torna-se autor de uma memória publicada na Itália. O pesquisador pertinaz se surpreen-derá, no entanto, com o extravagante volume de ensaios e reflexões produzidos sobre os aldeamentos indígenas do Império. A totalida-de dos missionários que esteve em campo e atuou diretamente com as populações indígenas deixou cartas e relatórios dirigidos à Prefeitura da Custódia da O. F. M. Cap., com sede no Rio de Janeiro.

Page 222: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Além disso, alguns destes se tornaram autores ou fonte de inspira-ção de memórias sobre os índios do Brasil, com livros publicados no Brasil e na Itália. A documentação sobre a missão no Brasil, por sua vez, alimenta há algumas décadas a historiografia da Ordem Menor dos Frades Capuchinhos (Pietro Vittorino Regni, Giuseppe da Castrogiovanni, Metódio da Nembro, Jacinto de Palazzolo, Alfredo Sganzerla, Casimiro M. de Orleans, Fidelis de Primério, Modesto Resende de Taubaté, entre outros), para a qual a expe-riência brasileira dos frades italianos é capítulo indispensável. O texto sobre a missão de catequese é assim construído e recons-truído no correr do tempo, como outros monumentos da cristan-dade — as Igrejas e os cemitérios —, edificações que marcaram no século XIX a presença dos frades italianos nos trópicos.

E importante ainda considerar a particularidade da época. O século XIX marca no Brasil e na Europa o crescimento da im-prensa e da indústria editorial (Chartier, 1999), sendo, portanto, época bastante propícia a escritores e autores. O que nos leva a considerar que a sedução da autoria antes de ter sido enfrentada como uma quimera por capuchinhos comprometidos com a sim-plicidade e o anonimato de seu sacerdócio foi antes a tábua de sal-vação do frade italiano no sertão. O recurso do texto representava de certa forma uma contingência para o missionário que habitava nos aldeamentos indígenas, que se mantinha com verbas que vinham de longe, da Presidência das Províncias ou do Ministério da Agricultura e Obras Públicas do Império, este — assim como a Prefeitura da Ordem Menor — com sede no Rio de Janeiro. E que vez por outra se via cercado de escândalos e denúncias — aqui não cabe julgar quanto essas denúncias tinham ou não fundamento — alimentados na imprensa local pelos inúmeros desafetos que os capuchinhos angariaram regionalmente no exercício da catequese.

Se um fluxo discursivo sobre a adesão incondicional dos índios ao cristianismo constitui-se assim nos periódicos católicos e repercute nos relatórios e documentos oficiais do Império, tema

Page 223: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

que se reencontra também na historiografia da O. F. M. Cap., a me-mória da missão produzida por seus protagonistas está eivada de frestas (e por vezes de flechas), que permitem que o leitor acesse matéria variada, não necessariamente prevista no programa oficial da "Catequese e Civilização" do governo ou da Ordem Menor. Assim, a inconstância dos selvagens registrada por Vieira por meio da imagem vegetal da murta é substituída nas páginas capuchi-nhas por metáfora emprestada do reino mineral — o peito de bron-ze que os índios impunham à conversão. A conversão, esta se daria pelo trabalho dos índios, obtido por meio da mediação das merca-dorias, associadas ao exercício da catequese; a civilização, por sua vez, se traduziria no rigor da disciplina imposta em nome do impe-rador, condição para a mudança de hábitos, de práticas, de rituais (Amoroso, 2003).

Das memórias e notícias das missões publicadas ainda no século XIX destacamos o trabalho de frei Luís de Cimitille (1882, 1931); o de frei Rafael de Taggia (1856) e o de frei Pelino de Castrovalva (1883, 2000) para ilustrar a rede de circulação deli-neada por esse tipo de texto. Natureza do registro e público-alvo aproximam os dois primeiros: frei Luís e frei Rafael buscavam res-ponder a uma demanda crescente, originada no centro intelectual da corte — Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Exposição de Antropologia do Museu Nacional — por inventários etnográficos dos índios (Lilia Moritz Schwarcz, 1998). Esse tipo de registro na segunda metade do século XIX deveria privilegiar o índio "puro", em detrimento da notícia sobre a relação das populações nativas com a cristandade, o que se impõe como tarefa difícil, nem sempre levada a cabo pelos missionários. Frei Luís de Cimitille divulga sua Memória na Exposição Antropológica que se inaugura em 1882 no Museu Nacional do Rio de Janeiro. O texto, que recebe várias ree-dições,7 foi considerado a "primeira monografia de caráter etnográ-fico, em idioma português, sobre os kaingang do Paraná" (Fernandes, 1 1955: 15). Trata-se de uma peça datada sobre um tema caro ao

Page 224: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

século XIX (Taylor, 1986): o registro etnográfico sobre o homem-em-estado-de-natureza. Retomando as palavras de frei Luiz de Cimitille:

algumas pessoas talvez pensem que é pura perda de tempo gasto em coligir estas notícias e que eu poderia ter empregado mais vantajosa-mente as minhas horas desocupadas [...] desejo, porém, que se lem-brem que cada um procede como entende a este respeito; porque aquilo que a uns parece supérfluo, aos outros não só parece útil, como também necessário para poder civilizar os índios ainda bravios; e mesmo tudo que se puder colher acerca dos costumes deste primo-gênitos do solo americano, será de grande utilidade para a história futura. Tempo virá que os nossos descendentes duvidarão da existên-cia de uma raça de homens que viviam em estado de natureza a mais completa. (Frei Luís de Cimitille, im Fernandes 1956: 14.)

Na conhecida memória o frade napolitano divulgou o etnôni-mo kaingang, que -passmi a designar genericamente os grupos jê meridionais portadores de diferentes dialetos. Descreveu, com base na cultura material dos kaingang8 de São Jerônimo, o padrão de habitação comunal, alimentação e técnicas de manufatura de armas, de tecidos e utensílios. Comentava rapidamente alguns costumes e apresentava um pequeno vocabulário da língua falada pelos kamé. Sobre o tema central da religião, que dá título à memória, frei Luis de Cimitille lançava mão da literatura — citan-do Robison Crusoé de Daniel Defoe — para levar o leitor a apreen-der a complexidade das relações que se estabeleciam entre missio-nário católico e os kaingang quando o assunto era a conversão ao catolicismo. Frei Luis de Cimitille narra um diálogo que teve com Arepquembe, liderança kamé, na época aldeada com seu grupo nas proximidades de São Jerônimo. Nele, o chefe indígena afirma-va ter exclusivo interesse nas mercadorias a que a missão católica dava acesso, bens que qualquer liderança indígena almejava pos-suir para manter sua posição no seio do grupo. Algo muito distan-

D E U S N A A L D E I A 219

Page 225: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

te da curiosidade de Sexta-feira, que a literatura imortalizara em sua indagação interessada acerca da crença em Deus. Se não pelas palavras, concluirá frei Luis de Cimitille, a conversão do selvagem ameríndio poderia se dar pela via da materialidade dos bens dos civilizados.

E também como observação ethnographica que o "Mappa dos índios Cherentes e Chavantes da Nova Povoação de Theresa Christina no rio Tocantins e dos índios Chraós de Pedro Affonso nas margens do mesmo rio [...]" é publicado em 1856 pela RIHGB.

Nela o peito de bronze que se volta contra a mensagem cristã é tema central: frei Rafael de Taggia, que passou quase cinqüenta anos em aldeamentos indígenas de Goiás, onde por fim morreu, registrava a impossibilidade da conversão do índio ao catolicismo, baseando-se para isso em três premissas. A primeira delas eram "as superstições", o fato de os grupos jê, segundo o missionário, guar-darem suas próprias crenças e cultos, acreditarem na vida futura, realizarem rituais de muitos dias nas sepulturas, cerimônias que eram antecedidos de resguardos alimentares praticados com o fim de propiciar a comunicação com os parentes mortos. A segunda dificuldade para a conversão ao catolicismo seria a notória inco-municabilidade dos cristãos com os índios no que dizia respeito a certos temas: para o missionário, faltava a argumentação necessá-ria para "trazer um povo ao cristianismo", preleção que exigia domínio das "línguas custosas", plano da comunicação inacessível aos missionários italianos. O terceiro elemento a dificultar a con-versão seria a "vida errante" dos xerente, xavante e krahó. À seme-lhança do que se deu no século XIX com populações indígenas de outras regiões do Brasil, os índios dos aldeamentos de Goiás man-tinham suas aldeias distantes do centro urbano da missão católica, alimentando, no entanto, relações comerciais e de trabalho com os missionários. Conformado de por ora os índios "serem pelo menos amigos", frei Rafael de Taggia arriscava a hipótese de que a incli-nação natural dos índios às superstições poderia no futuro facilitar sua conversão ao catolicismo.

Page 226: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

A possibilidade da conversão se assentando nas inclinações ameríndias às superstições reaparece no registro de frei Pelino de Castrovalva sobre a Missão de Bacabal. Do ponto de vista formal, a memória de frei Pelino de Castrovalva, publicada originalmente em italiano no final do século XIX9 e recentemente traduzida e publicada no Brasil (o. F. M. Cap. Rogério Beltrani de Milão, 2000) é uma narrativa extensa, composta de 24 capítulos dispostos em quase 240 páginas. Nela o missionário busca dar conta de dez anos de atividades missionárias (1872-82) entre os mundurucu. Ainda do ponto de vista formal, o texto é comparado pelos historiadores capuchinhos com as memórias de frei Mariano de Bagnaia (1885) e de Savino de Rimini (1925), ambas narrativas sobre a missão no Brasil voltadas para o público católico europeu. Curioso ainda o contexto político da reedição da memória de frei Pelino de Castrovalva: como nos mostra o curador da edição brasileira, esta faria parte do processo de reconhecimento oficial pela Igreja cató-lica dos protomártires mortos em Alto Alegre em março de 1901.10

A missão católica é assim um texto que se constrói por sobreposi-ções, um monumento que se ergue dos escombros de outras mis-sões: Bacabal serve para lembrar os mártires católicos que morre-ram em Alto Alegre, pioneiros do apostolado no Brasil, apostolado este que com seus mártires revive os primórdios da Igreja católica.

Passemos à memória da Missão de Bacabal (1872-82), regis-trada nas cartas e relatórios dos missionários capuchinhos Pelino de Castrovalva, Antonino de Albano e Antonio de Reschio, parte deles publicada posteriormente em periódicos da O. F. M. Cap. Re-tomamos aqui a proposta inicial de observar a missão do ponto de vista das relações que o discurso missionário revela como essen-ciais. Para tanto, sugerimos acompanhar onde a imagem de Deus e do Diabo estão colocadas.

Page 227: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

M I S S Ã O DE B A C A B A L

Frei Rogério Beltrami, na conclusão que acrescenta à memória da Missão de Bacabal, lança uma severa crítica à antropologia, que esteve mais atenta aos fracassos do que aos sucessos da missão católica entre os índios. Um dos deslizes apontados pelo historia-dor capuchinho a seus colegas antropólogos é que estes confundi-ram a missão capuchinha com as ações do governo do Império. "Quanto lhes valeu, lá longe, embrenhados nas matas, a proteção do monarca e de sua administração?" (2000: 239), questiona o his-toriador. A relação da missão capuchinha com o governo do Império é tema da nossa primeira exploração das relações que sub-jazem à idéia de Deus e de Diabo na narrativa capuchinha. Veremos que a idéia de Deus se associa à de Imperador na justifi-cação inicial para o exercício da catequese no rio Tapajós. A mis-são capuchinha — como ademais qualquer missão católica, todas elas devidamente chanceladas pelo governo — jamais superará o trauma da condição oficial do exercício da catequese no século XIX.

A missão capuchinha entre os mundurucu se inaugurou em 1872 com a celebração da primeira missa, conduzida por frei Pelino de Castrovalva e coadjuvada por frei Antonino de Albano, contando com a participação dos sateré-mawé vindos do Aldea-mento do Andirá. Na primeira missa, narrada como uma perfor-mance oral, o "valor marcial dos mundurucu" é ressaltado: frei Pelino registra que se fazia entender por meio de gestos e com a ajuda de um tradutor, e anunciou aos mundurucu que os frades estavam ali em nome de dois senhores — Deus e o imperador do Brasil —, ambos interessados em escrever o nome da nação mun-durucu na história do Brasil, nação heróica que resistira no passa-do a se sujeitar às tropas portuguesas, e que agora vivia na condi-ção de escravos dos regatões.

Para a celebração, o terreno foi limpado — os índios cortaram por dois dias as árvores, roçaram o espaço para a edificação da

Page 228: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

capela e de uma cabana para abrigo dos padres. Deus aparece nesse contexto associado à figura do imperador, estas seriam as forças supralocais de onde emanava o poder do corpo moral em que se constituía a missão capuchinha. Nas palavras de frei Pelino de Castrovalva:

Erigimos um altar provisório, na pequena capela, e no dia seguinte celebramos a Primeira Missa. Com os poucos panos que tínhamos, havíamos vestido, dentro do possível, os índios. Fi-los entender que nós tínhamos ido liberta-los e salva-los daquele estado desolador, enviados por dois grandes senhores: um deles chamado Deus, cria-dor do céu e da terra, e o outro um poderoso Imperador que reina-va na terra. Disse-lhes que Deus amava intensamente os índios sel-vagens e nos confiara segredos, que nós lhes devíamos comunicar. O Imperador nos pedira que fundássemos aí uma grande cidade, a cidade dos Mundurucus, onde seria despertado o antigo valor para fazê-los poderosos frente aos homens e destarte debelar e aniquilar seus inimigos. Se estivessem prontos a se mostrarem filhos dóceis, nós de boa vontade assumiríamos a tarefa de pais extremosos, iden-tificando nossa existência com a deles, que de agora em diante, o que os prejudicasse, nos prejudicaria; quem os beneficiasse a nós também beneficiaria. (Frei Pelino de Castrovalva 2000: 86)

A Missão de Bacabal se estabelecia na região de Itaituba, por onde o comércio extrativista da borracha e das drogas do sertão escoava regularmente sua produção. Os mundurucu do Tapajós havia muito estavam atrelados a essa rede de troca de produtos da floresta por mercadorias trazidas pelos regatões. A missão se inse-ria, assim, no universo de relações complexas dos mundurucu com a sociedade regional. A aplicação do "Regulamento das Missões" configurava a construção de um espaço político dirigido e adminis-trado por um enviado do governo central, poder maior que legava ao missionário o exercício de ministérios variados: da educação, da saúde, do trabalho, da justiça, da agricultura. A memória de Bacabal,

Page 229: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

nesse sentido, é a memória da gênese da administração central do Império na fronteira indígena. O proto-indigenismo praticado pela missão católica sob os auspícios do Império, e com a sua pro-teção, almejava uma maior distância das políticas seculares prati-cadas com os índios, o que se revela, por exemplo, na condenação a qualquer forma de trabalho escravo, mensagem que a missão capuchinha veicula na Europa11 e na defesa da autonomia do pro-jeto missionário.

Assim, a memória da missão, traduzida em termos do mito da construção da Cidade de Deus, é uma história em três atos: a che-gada do missionário — mediador de Deus e da vontade do impe-rador, a luta contra as forças do mal que ameaçavam a edificação da República dos índios do Tapajós e a autonomia econômica e política da missão capuchinha entre os mundurucu. Em suas memórias, frei Pelino de Castrovalva leva à risca suas prerrogativas e implanta, logo depois da igreja, do cemitério e da casa dos padres, uma Cadeia12 oü Casa de Punição e organiza um pelotão mundurucu, com jovens armados e fardados.13 Como outras mis-sões capuchinhas do Império, Bacabal é um aldeamento armado.

Os detalhes da guerra contra a figura diabólica do regatão reve-lam a disputa que se trava em torno do controle da aliança com as políticas indígenas no Tapajós. Os comerciantes regionais ligados à praça de Itaituba aparecem como insufladores de conflitos intra-étnicos que envolvem os aliados mundurucu contra os parintintins. Inimigos tradicionais daqueles, os parintintins são uma população falante do tronco tupi que constituía alvo tradicional da guerra da caça das cabeças mundurucu. Em 1876 os missionários do Bacabal se interpõem contra uma retaliação aos parintintins organizada pelos mundurucu aproximados da missão. Os parintintins eram acu-sados de ameaçar os locais de extração da borracha controlados pelos comerciantes de Itaituba. O Regulamento das Missões, instrumento legal da atuação missionária, será traduzido na ocasião em uma Ordenação que proibia a presença de comerciantes e de qualquer forma de comércio com os índios nas proximidades do aldeamento.

Page 230: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

"A nossa obra é obra de Deus, a vossa obra é do Diabo, e o Diabo nada pode contra Deus !!! Eu vos profetizo que na guerra em que vos colocastes, nós vencemos e vós sereis destruídos!" (2000 :118). As ações do missionário de Bacabal contra os regatões, no entanto, repercutem na esfera regional e em Belém, alcançando em poucos dias o governo do Império, que, através do Ministério da Agricul-tura, ordenará o afastamento de frei Pelino de Castrovalva do cargo de Diretor dos índios.

Inicia-se o terceiro ato da construção da Cidade de Deus: o temor de permanecer no Bacabal sem a proteção que o cargo de diretor garantia aos religiosos será logo suplantado pelo vislumbre da possibilidade de uma atuação independente da missão capu-chinha na constituição da República dos índios do Tapajós: "Pouco me importava a perda do apoio civil, por parte do Governo, e, gra-ças a Deus pouco podia também perder quanto à ajuda material, pois já os produtos materiais do Tapajós eram quase suficientes para manter a Missão." (2000:153). Frei Pelino de Castrovalva retorna na condição não mais de Diretor Civil dos índios do Bacabal, mas

como um simples missionário enviado de Roma para vos ensinar e sal-var vossas almas. Seremos com as mudanças mais livres e vereis que podereis viver sem aquele vil auxílio que o Governo nos dava e que ser-via mais para excitar o nosso apetite do que para satisfazê-lo. Carís-simos filhos, erguei vossos olhos e vede quanta Providência e quanta riqueza Deus nos proporcionou nesta vasta região, nesta floresta! Porque a borracha, a copaíba, o comarú, a salsa, o guaraná, o cacau etc. etc devem ser exclusivamente deixados à especulação dos regatões? Estes produtos acaso não são dos primeiros ocupantes? Sim! Por certo. E até hoje os regatões enriqueceram com vosso trabalho. Daqui em diante, pelo contrário iremos pensar na maneira de negociar para pro-ver às nossas necessidades. Desfrutemos, portanto também nós, daquela liberdade que o bom Deus nos outorgou! (2000: 158).

Page 231: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Esse é o trecho da narrativa que celebra as vantagens da auto-nomia econômica da missão, núcleo original da Cidade dos Mundurucus14 que se ergueria no Tapajós, liberta inclusive do governo do Império, sempre ameaçado pelos políticos ligados à maçonaria, inimigos do imperador e da missão católica.15

Gonçalves Tocantins (1877) esteve na época no Aldeamento do Bacabal na condição de observador oficial do governo do Pará e analisou o processo movido contra o missionário capuchinho, que era então acusado de manter vida ilícita, ter mulher e filhos no local. O visitante comenta que a Missão de Bacabal havia se instalado em um antigo aldeamento de índios contatados e já havia bastante tempo articulados a atividades de agricultura, fabrico de borracha, serviço de canoas, pesca e permuta de gêneros com comerciantes regionais. O missionário se interpunha nessa rede de atividades, declarando guerra aos comerciantes, aconselhando inclusive os índios ao não-pagamento das dívidas acumuladas com os comerciantes.

Já se observou que o idealismo do missionário católico rapida-mente se traduz em razão prática em contato com as populações indígenas (Calavia, 1998). A missão capuchinha repete no Pará o que pudemos observar em outros aldeamentos indígenas do Império — as relações da missão com o comércio local foram sem-pre extremamente tensas em função de os religiosos italianos e o governo focalizarem o trabalho dos índios como o locus privilegia-do do programa de "Catequese e Civilização". O Império se inter-porá contra qualquer tentativa de autonomia da missão ensaiada pelos capuchinhos; estes, por sua vez, reagiam sonegando missio-nários para o programa do governo.

Passamos a seguir a examinar as relações que se dão na esfe-ra local, entre missionários, pajés e feiticeiros. Esse jogo de rela-ções aparece na memória missionária em segundo plano, submetido à importância que a questão dos regatões tem na memória da mis-são. O interesse particular da relação local é a disposição discur-siva que se articula frente aos índios (ver, por exemplo, nota 14).

Page 232: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Os missionários falam em nome dos índios, articulando um discur-so ficcional sobre o que os índios estariam ponderando a respeito de fatos diversos como o contato com os brancos, as cidades, as diferenças étnicas, a guerra intertribal e interétnica e a própria atuação dos missionários.

X A M A N I S M O

Na esfera regional e global os regatões aparecem invariavelmente identificados nas narrativas do aldeamento ao diabo, ao satanás, Príncipe das Trevas. Os pajés que atuavam no aldeamento serão considerados interlocutores do diabo.16

Registrados ainda no século XVIII, no contexto dos estudos sobre populações siberianas para designar especialistas religiosos (Bonte-Izard, 1991), o termos xamã e seu correlato, o xamanismo, salvo engano, não fazem parte do repertório de viajantes e missio-nários que percorreram a Amazônia no século XIX. Diante do con-junto de práticas e concepções implicadas no sistema de tratamen-to das doenças entre os mundurucu na época do aldeamento de Bacabal, missionários e viajantes utilizam os termos magia efeiti-çaria e os especialistas nativos são chamados pajés, mágicos, magos e feiticeiros. No encadeamento narrativo que constitui a memória da missão, fragmentos desconexos que compõem os três últimos capítulos criam um caleidoscópio constituído por costumes e superstições nativas com as quais os falsos sacerdotes ludibriam o povo. A função terapêutica do pajé, a descrição de suas práticas, a exposição dos motivos de sua preeminência política no mundo social mundurucu (e dos neocristãos), assim como a caça da cabe-ça, são elencados como magia simpática destituída de qualquer sentido. A disputa que se estabelece da parte do missionário com os pajés e especialistas mundurucu torna o que seria uma descri-ção compreensiva do sistema simbólico mundurucu num tratado acusatório dos pajés, que são apresentados como bufões cercados

Page 233: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

de sacerdotes e sacerdotisas iniciados, "que mantêm a credulida-de popular com suas imposturas, assumindo o papel de sábios.'' (2000: 225)

Na memória de Bacabal o termo magia aparece logo depois de celebrada a primeira missa no Tapajós, por ocasião de uma epide-mia de doenças respiratórias {febre catarral de pneumonia e pleuri-sia) que assola os mundurucu com a chegada da missão capuchi-nha. Frei Pelino de Castrovalva registrava que:

Os mortos não ultrapassaram 20 a 30, mas estes foram suficientes para lançar no meio dos índios o terror e o medo. Encontram-se ainda cheios de ignorância e superstição, atribuíam todos os males à magia, e começaram a gritar que estavam enfeitiçados e que o lugar estava cheio de malefícios e encantamentos e logo começaram a fugir em todas as direções para retornar ao seu antigo lugar. Este terrível e inesperado evento consternou-no não pouco [...]" (2000: 93).

Magia retorna ao centro da narrativa para explicar preceitos etiológicos mundurucu adotados pelos índios no adoentado frei Antonino de Albano, logo nos primeiros anos de estada do missio-nário em Bacabal. A doença, descrita como "um misto de hepati-te, disenteria e palpitação do coração", deixara o missionário pros-trado e cadavérico.

Os índios, que tudo atribuem a magia, garantiam que o pobre esta-va enfeitiçado, e os seus pajés queriam, por força, tirar-lhe o encan-tamento. Inútil a minha oposição e a do Frei Antonino para desfazer o erro grosseiro, pois um belo dia, de manhãzinha, encontrando-me na Igreja, celebrando, enquanto F. Antonino estava em sua rede, em casa, um mago chamado pajé aproveitando-se da oportunidade, pouco a pouco, e disfarçadamente penetrou na ponta dos pés, onde estava o Padre, com toda delicadeza dirigiu-se à rede, e, inclinando-se sobre ele, começou a gesticular e a pronunciar palavras sacra-mentais de magia. (2000: 134)

Page 234: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Frei Antonino por fim se recupera temporariamente da doen-ça — que o levará a abandonar a missão no ano seguinte — inge-rindo, sob orientação dos mundurucu, a planta para tudo.

A função terapêutica que o pajé assume dentro do sistema xamânico mundurucu é ainda acentuada na memória da missão em outras passagens, que descrevem o pajé em seu exercício, envolto em nuvem densa de fumaça, retirando com a boca o agente patoló-gico — um verme, por exemplo — que teria causado a doença.17

A sabedoria dos pajés é desqualificada, no entanto a ela se atribui a fonte do grande poder que tais especialistas exerciam na vida em aldeamento, dispondo sobre a vida e a morte mesmo entre aqueles que a missão contava como os mais fiéis aliados.

Outros aspectos do complexo xamânico mundurucu escapam totalmente à compreensão dos capuchinhos. Isso se dá, por exem-plo, com a interpretação do ritual da caça das cabeças praticado pelos mundurucu no aldeamento ou de outros motivos perspectivis-tas que pululam na narrativa missionária. Em agosto de 1876, frei Pelino de Castrovalva envia ao presidente da Província do Pará um relatório de suas atividades onde registra, no item Ordem Pública, um interessante episódio.18 O missionário comenta que retivera no tronco por alguns dias o índio Pangnácio Manne, que estivera envol-vido em uma morte no aldeamento. O rapaz havia saído para caçar nas primeiras horas da manhã, acompanhado de outros homens. Pangnácio chegou sozinho a um igarapé, onde um veado se lavava, e descarregou sobre a caça a carga da espingarda. Aos primeiros gri-tos deu-se conta que, de fato, se tratava de uma mulher munduru-cu que se lavava nas águas do igarapé. Surpreso e ainda confuso, o rapaz socorreu a infeliz, mas não a tempo de salvá-la.

O caso foi julgado pelo frade diretor como um acidente. Um acidente, no entanto, surpreendente, a ponto de o frade fazê-lo constar em seu relatório semestral, e também bastante incom-preensível, a ponto de levar o missionário a punir uma vítima — no caso, o jovem Pangnácio. A preeminência de motivos perspec-tivistas na vida cotidiana de uma aldeia — fato amplamente des-

Page 235: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

crito pela etnologia moderna e aqui referido pelo missionário — se apresentava em meio às acusações de feitiçaria, igualmente descri-tas por frei Pelino. Pancrácio fora vítima de feitiço, que o fazia adoecer, perder gradativamente suas características humanas e se aproximar cada vez mais dos animais, o que o levava a ver os homens e mulheres de sua aldeia como animais. Segundo o mis-sionário, entre os parentes da falecida, Pancrácio e os caçadores não se registrava nenhuma desavença anterior. A conduta pacífi-ca, colaboradora e cordata do rapaz no aldeamento também reforçava a tese da sua inocência. Ainda assim, Pangnácio foi retido no tronco por uma semana, para espanto de todos que sabiam que as esperanças de cura do rapaz se depositavam no tratamento xamanístico.

Na memória da missão a busca de uma explicação para o poder do pajé e das superstições no mundo mundurucu leva o mis-sionário a abordar o ritual da caça das cabeças e outros rituais, mais tarde descritos pela etnologia como o sistema de classifica-ções da fauna e da flora dos mundurucu. Em 1878, frei Pelino, que na ocasião administrava sozinho a missão, participou direta-mente da montagem de nova expedição guerreira contra os parin-tintins, que haviam atacado mais uma vez os seringais explorados pelos mundurucu. O assalto aos parintintins foi organizado pelas lideranças mundurucu ligadas à Missão de Bacabal. Nas palavras do missionário, a possibilidade de chegar a esses "novos selvagens" — os parintintins19 — leva-o a "consentir" o embate e inclusive municiar seus aliados com armas e suprimentos. A operação defla-gra o ritual da caça às cabeças dos mundurucu, amplamente descrito pela etnologia ameríndia. Apresentado no contexto da documentação dos aldeamentos do Império, a descrição confirma o que P. Menget definiu como a imutabilidade do complexo ritual das cabeças (Menget, 1992: 313). •

Observa-se que o missionário diante das etapas do ritual,20

que chega a durar até três anos e que o missionário acompanhou ao longo dos anos de 1878-9 — em etapas que envolvem a expe-

Page 236: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

dição guerreira, o corte das cabeças, o seqüestro de jovens con-trários, trazidos como reféns, distribuídos e adotados por aqueles que protagonizaram o embate, o tratamento das cabeças, a deco-ração dos troféus, a cerimônia de homenagem ao chefe guerrei-ro —,21 descreve o "bárbaro costume" dos mundurucu como uma simples manifestação guerreira, desarticulada das outras esferas da vrda ritual.

Diante do ritual que no ano seguinte se celebra em torno do chefe guerreiro da expedição contra os parintintins, frei Pelino irá comparar a cerimônia a que assistia pela primeira vez no Tapajós ao Carnaval praticado entre os cristãos, que, a despeito de não estar previsto nas sagradas escrituras, permanecia praticado pelos cristãos como uma folia pagã que remonta à origem dos povos (como se o Carnaval falasse do cristão ainda quando bárbaro).

Em diferentes momentos o missionário se vê diante da força política dos feiticeiros e pajés mundurucu, que movem a vingança incessante da vida na missão, levando a dezenas de mortes indica-das pelos pajés.22 Em meio de uma declaração de impotência da missão contra a superstição e os bárbaros costumes, o missionário chega a aproximar os pajés do diabo, na condição de interlocutores, ou ainda filhos de satanás. De resto, pajés não eram o diabo na perspectiva do missionário, esta atribuição se reservava, como vimos, a outros atores da vida em aldeamento. Assim, para o mis-sionário, os pajés aos olhos dos mundurucu eram o diabo;23 os fei-ticeiros e pajés, no entanto, força política reconhecida na missão, podiam se associar aos verdadeiros inimigos — estes sim identifi-cados com as forças ocultas do mal: os regatões.

Restaria identificar para o missionário capuchinho a fonte do prestígio imoral dos pajés de onde emanava a resistência dos mun-durucu à pregação da boa nova. Em um primeiro movimento observa-se a visão pragmática do capuchinho associar a força polí-tica dos pajés à garantia da subsistência do grupo. Falando da força dos pajés, o religioso comentava:

Page 237: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

precisava toda energia para acabar com seu prestígio imoral e fazê-los assim cair em descrédito. Se bem que muitos se encontrassem longe das missões. Quando os índios percebiam a escassez da pesca e da caça, às escondidas os convidavam, ainda, para tirar o mal de seus vegetais, de suas plantas e de seus animais. Por seu lado bem sabiam como manter a credulidade popular com suas imposturas, assumindo o papel de sábios e videntes. À classe de pajés perten-ciam também as mulheres iniciadas pelo próprio pajé na arte mági-ca com alguns ritos secretos sobre os quais não quero mais manifes-tar; de tal modo que tornava vitoriosos de possuir sacerdotes e sacerdotisas! (2000: 225-6)

Todos reunidos com seus pajés em uma ou mais casas contíguas se carregam com os ossos dos animais que cada um trouxe, e em ati-tude humilde, penitente e suplicante desfilam processionalmente em direção à floresta, cada um leva na mão uma caveira e ossos como relíquia: os pajés vão na frente cantando em alta voz, e o povo segue silenciosamente e reverente. O seu canto bárbaro e sem notas, consiste em certa invocação à mãe da caça e da pesca. [...] Então desfilam de novo [...] dirigindo-se ao rio. Naquele lugar as mesmas cerimônias [...] declarando que foi retirado o encantamen-to da mãe dos peixes. Retornam a casa onde a procissão saiu e pas-sam a noite toda em orgias diabólicas. (2000: 227)

O segundo passo da análise capuchinha é identificar os rituais da vida mundurucu — como o chamado culto aos ossos dos animais — a rituais pagãos de outros continentes de forma a enquadrá-los como costumes protocristãos descritos na teoria da história da reli-gião. Para tanto, a narrativa missionária aproxima o texto sobre os mundurucu da ritualística católica, introduzindo a estratégica figu-ra dos sacerdotes e sacerdotisas.24 Surge nas memórias capuchinhas a exótica figura do sacerdote que oficializaria os rituais, como auxi-liares dos pajés e feiticeiros (posições estas que, por sua vez, se confundem nos últimos três capítulos das memórias). O pajé é então associado à figura do mediador; aquele que intermediava

Page 238: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

oferendas à Natureza. Na narrativa missionária, as práticas dos pajés mundurucu são assim "reconhecidas" como práticas sacrifi-cias que já estavam nas origens da cristandade: "Para os Mundurucu não civilizados esta é uma festa de penitência e expia-ção, considerando o tempo e número da procissão, para remover o castigo e obter a abundância, parece-me entrever um qualquer vestígio de catolicismo, apresentando este quase o mesmo escopo que nós nas nossas procissões das rogações".

A observação capuchinha parece nessas passagens colocar em operação a máquina retórica de identificação do mesmo — a univer-salidade do homem descrito nas escrituras —, que restava guardada nos recônditos da floresta tropical, à espera da revelação missioná-ria. O mecanismo é efetivo para apresentar ao mundo a humanida-de do selvagem, e de fato nos registros oficiais, na imprensa e nos institutos científicos da época a ethnografia missionária a serviço do projeto de universalização irá imperar no século XIX, garantindo em alguns casos maior eficácia às políticas do governo. Ao projeto cató-lico se associará, no entanto, o ônus de ter se mantido obliterada, por décadas, sob o véu espesso do paternalismo, a riqueza da cos-mologia desse povo tupi e de tantos outros.

Page 239: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)
Page 240: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

6

O C Ó D I G O D A C U L T U R A : O C l M I N O D E B A T E D A I N C U L T U R A Ç Ã O

Marcos Pereira Rufino

Ao PERCORRERMOS OS TRABALHOS aqui reunidos, salta aos olhos a imensa diversidade e variação que caracteriza o esforço missioná-rio cristão junto aos índios no Brasil, mesmo que estejamos aten-tos, nesta obra, em reconstituir os processos que revelem continui-dades. Se essa diversidade chega a ser perturbadora ao analista — na medida em que evidencia a complexidade do campo e das inú-meras interações que nele ocorrem —, ela também nos favorece ao tornar inteligível uma afirmação central em nossa argumenta-ção, enunciada já no primeiro capítulo: pensamos a missão como uma agência mediadora cuja ação de produção de sentidos se pauta pelos "limites das necessidades de consenso colocadas pelas relações existentes". Afirmamos ainda que os códigos mobi-lizados na mediação posta em movimento pelos missionários, necessariamente seletivos, obedecem à sensibilidade desses agen-tes para o repertório de interesses e práticas presentes em seu campo de ação.

O que desenvolveremos aqui deverá ser lido nessa mesma perspectiva. De maneira breve, duas questões deterão a nossa atenção. A primeira delas diz respeito ao contexto de produção e

Page 241: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

apropriação de um conjunto de formulações teológicas — realiza-das por um segmento missionário católico contemporâneo — que interpretam e significam a ação da Igreja diante da alteridade cul-tural. A segunda é a forma como esse segmento missionário cons-titui a sua arena de mediação, o que exige, por sua vez, a análise da maneira como esses missionários representam a si mesmos nessa arena e sua missão dentro dela.

U M A NOVA M I S S Ã O E N T R E OS Í N D I O S

O segmento missionário em questão reúne-se sob o aparelho ins-titucional do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão que responde oficiosamente pelo conjunto da Igreja católica perante as questões relativas aos índios no Brasil. Sua posição privilegiada na cartografia hierárquica dos múltiplos e variados aparelhos da Igreja1 torna-o um representante indiscutível da instituição ecle-siástica no âmbito da política indigenista. Essa instituição missio-nária ocupa um lugar igualmente central na relação da Igreja com a diversidade socionativa brasileira, o que faz dela uma espécie de força-tarefa paraeclesiástica incumbida da fronteira da cultura e da alteridade radical no Brasil.2

O Cimi se credita a tarefa de, no interior da Igreja, sensibilizar o conjunto da congregação católica, entre religiosos, leigos, pasto-rais, e outras instituições internas, para a realidade das centenas de povos indígenas presentes no território nacional, "realidade", quase sempre, apresentada nos termos das freqüentes e crônicas agres-sões das quais os nativos seriam vítimas. Esses missionários se atri-buem outrossim a missão de estarem presentes e atuantes junto aos índios em seus territórios como também no âmbito das~suas lutas políticas, reivindicações e litígios surgidos em decorrência do contato desses povos com a sociedade nacional envolvente. O Cimi é, certamente, a sigla católica mais conhecida no universo das dis-putas políticas travadas no interior do indigenismo e uma das mais

Page 242: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

visíveis no âmbito dos movimentos sociais e setores da sociedade civil atuantes na defesa dos direitos sociais coletivos. Ele consti-tui um importante mediador na interação da Igreja católica com o delicado tema da pluralidade — em seus mais diversos desdo-bramentos — e, certamente, um locus de materialidade histórica e institucional por onde a Igreja possa experimentar parte dos dilemas que ela tem se colocado quanto ao tema da evangelização da cultura.

Em grande medida, o processo histórico de criação e desenvol-vimento dessa nova experiência de missionação entre os índios é, em si mesmo, revelador das transformações recentes nas significa-ções atribuídas pela Igreja à problemática da alteridade e da dife-rença. A referência a alguns de seus momentos principais é, portan-to, imprescindível para que possamos compreender a apropriação, pela Igreja brasileira, das formulações teológicas hodiernas que são conhecidas pelo termo inculturação. Nesse sentido, entendemos essa experiência missionária como sendo, simultaneamente, resul-tado e agente dessas transformações, que atingem, entre outras coi-sas, a definição, o propósito e a forma da evangelização.

A proposta de criação do Cimi ocorreu no III Encontro de Estudos sobre Pastoral Indigenista, em abril de 1972, realizado no Instituto Anthropos, em Brasília. Esse evento, que produziria des-dobramentos futuros importantes para a pastoral indigenista, resul-tou de um arranjo complexo de situações, contextos e processos sociais que exerceram forte influência sobre a Igreja católica no Brasil. O surgimento dessa agência missionária está relacionado não apenas às transformações significativas que ocorriam na Igreja católica universal e brasileira3 como também às mudanças políticas e sociais que, em sentido amplo, atuavam sobre a sociedade nacio-nal em finais da década de 1960 e início da década seguinte.

O seu aparecimento no cenário eclesial católico está direta-mente relacionado à atuação da Operação Anchieta, a Opan.4

Nascida poucos anos antes, em 1969, a Opan foi formada a partir de um encontro de jovens congregados marianos e, em seu início,

Di-: u s I\ A A LI) i: IA 2 3 7

Page 243: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

atuava dentro das referências "tradicionais" do trabalho catequéti-co das missões religiosas católicas presentes nos territórios de diversos povos indígenas no período (Opan, 1987: 84). Essas refe-rências se traduziam na prática de intervir propositadamente na vida social e no cotidiano dos índios, gerando, por exemplo, modi-ficações na estrutura de aldeias, na organização social, nas repre-sentações cosmológicas etc.

Entretanto, uma série de mudanças pelas quais passava a Igreja católica, universal e latino-americana, em decorrência do Concilio Ecumênico Vaticano II e da II Conferência Geral do Epis-copado Latino-americano, realizada em Medellin, ambos na déca-da de 1960, propiciou as condições para que emergissem vozes dissonantes, dentro da própria Igreja, quanto ao "modelo" de tra-balho missionário perpetrado pelas ordens religiosas. A Opan constituiu-se em um espaço para o amadurecimento desses ques-tionamentos e passou, gradativamente, a assumir uma postura cada vez mais crítica diante do seu próprio trabalho.

O curto espaço de tempo em que a missionação junto aos índios no Brasil teve os seus fundamentos abalados, na segunda metade dos anos 1960 e início dos anos 1970, é digno de nota. Veremos adiante que as causas para que isso ocorresse foram diversas, mas certamente o clima de efervescência e renovação que deixara toda Igreja em agitação desempenhou um papel cen-tral. Bispos, religiosos e leigos inseridos nas suas comunidades paroquiais ou nos grupos da Ação Católica5 estiveram mobilizados em torno dos documentos conciliares, que por muitos anos ainda seriam combustível para debates intensos. As leituras e releituras — algumas realizadas em núcleos de estudo dedicados aos do-cumentos espalhados pelo país — das conclusões do Vaticano II (encerrado em 1965) e de Medellin (em 1968) forjavam a revisão de muitas práticas e concepções que, então, tornavam-se anacrô-nicas. Quanto à catequese dos índios no Brasil, esse movimento de revisão histórica do catolicismo só fazia aumentar a sensação de mal-estar de muitos missionários diante de sua própria imagem.

Page 244: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Ao menos para alguns, como os reunidos na Opan, as representa-ções que faziam acerca de sua imersão no universo dos índios, sal-vando-os de todas as desgraças às quais estes estariam fadados caso eles não estivessem lá, se antes eram motivo de júbilo, agora provocavam constrangimento.

M O M E N T O S DE R E N O V A Ç Ã O :

V A T I C A N O I I E M E D E L L I N

Uma breve discussão acerca do Concilio Ecumênico Vaticano II é importante para que situemos historicamente a súbita hipersensibi-lidade da Igreja diante das revisões críticas que tinham por objeto suas estratégias de evangelização nas fronteiras com as sociedades indígenas. A sua realização, em nosso entender, foi imprescindível para o desenvolvimento de um novo contexto de recepção, no inte-rior da Igreja, para a prática missionária. A literatura atribui a esse concilio não só a responsabilidade por mudanças significativas na vida e no funcionamento do aparelho eclesiástico como também na esfera das práticas pastorais da Igreja. O concilio foi, em si mesmo, expressão de um ambiente de maior participação leiga na ação pastoral, além do sentimento de que a Igreja precisava, em alguma medida, atualizar-se em sua relação com o mundo moder-no. O tema da renovação da Igreja frente aos novos tempos está impresso no termo aggiornamento, que se tornou uma palavra-chave nas referências feitas ao concilio pela própria Cúria Romana.

Por sua vez, a II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, que ocorreu em Medellin, em 1968, realizou um apro-fundamento das questões levantadas no Vaticano II no contexto específico das igrejas na América Latina, procurando localizar os temas próprios e as questões prementes que deveriam ser lidas à luz do Concilio Ecumênico. O encontro de Medellin, todavia, não foi uma mera reafirmação, no plano local, do que se debateu no

D i; U S N A A L D E I A 2 3 9

Page 245: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Vaticano II. O elemento que talvez seja mais notável quanto à especificidade desse encontro está no diagnóstico das condições sociais do continente e na tomada de posição pela "transformação das estruturas sociais" por parte dos cristãos (Sigmund, 1990). A preocupação com os pobres é um tema gestado em Medellin e, pelas décadas posteriores, seria uma marca distintiva do tipo de inserção social característica do episcopado latino-americano.6

Veremos mais adiante que, contrariamente ao ocorrido no Vati-cano II, a problemática da alteridade cultural preocupava muito pouco os bispos presentes em Medellin.7

João XXIII anunciou a realização do concilio Vaticano II no co-meço de 1959, logo no início de seu pontificado. Esse momento solene de reflexão e decisão de toda a Igreja universal deveria ser-vir de impulso para a aproximação da Igreja com todos os cristãos separados de Roma e também estimular o despertar das obrigações missionárias de todo católico.8 Tratava-se também de acionar o episcopado de todo o mundo e promover uma consulta ampla sobre as questões e dilemas vivenciados pela Igreja em todas as realidades em que estava presente. Assim, o secretário de Estado do Vaticano e também presidente da Comissão Preparatória do Concilio, cardeal Tardini, foi orientado a corresponder-se com mais de 2.500 bispos de todo o mundo sobre a sugestão de temas para a reunião.9 O clima de abertura e congraçamento produzido nas etapas preparatórias do concilio foi um espaço importante para a manifestação de grupos e setores simpáticos à idéia de renova-ção espiritual da Igreja, e que criam ser necessário abrir as portas da instituição para posturas mais flexíveis frente ao mundo exter-no e para uma revisão crítica de suas ações passadas. Quando o concilio teve início, em 1962, era evidente a existência de campos distintos e antagônicos em que se distribuiu o episcopado. Como observou Zizola (1983), era possível reconhecer nos debates e con-frontos que ocorriam nas sessões o enfrentamento de dois grandes grupos: aqueles comprometidos com o zelo ao magistério e aos ensinamentos constitutivos da tradição e aqueles outros preocupa-

Page 246: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

dos com os desafios pastorais contemporâneos que exigiam novas respostas da Igreja.

Se é verdade que, de fato, por baixo da casca do organismo eclesiás-tico, uma surda germinação evocava um concilio renovador, e secretamente lhe preparava o terreno, por outro lado, também é verdade que o anúncio do concilio apanhara o mundo católico despreparado. Poucos eram os espíritos que tinham consciência da vastidão da crise religiosa em curso; correntes reformadoras pulsa-vam no corpo do catolicismo, mas de forma erradia, clandestina, farejadas por rastreamentos intelectuais mais ou menos declarados: o anúncio do concilio foi a primeira oportunidade para essas cor-rentes encontrarem um centro de condensação e manifestação, de reabilitação e expressão pública a serviço oficial de toda a Igreja (Zizola, 1983: 309).

As mudanças que iremos discutir na prática concreta da Igreja junto aos índios no Brasil no início dos anos de 1970, com a cria-ção do Cimi, devem ser situadas nesse contexto maior de transfor-mações intra-eclesiais. Elas se filiam às questões colocadas por essas correntes que, segundo Zizola, se apresentavam de maneira titubeante. Mesmo João XXIII, na alocução realizada no início do con-cilio, orientou os líderes presentes a assumirem um espírito de franca abertura à renovação. Se a Igreja crera ser necessário o espí-rito de condenação e severidade no passado, afirmava agora que o momento deveria ser de perdão e compreensão, escuta e interlo-cução com o mundo.

O resultado final do concilio aponta, de fato, para mudanças significativas na Igreja. Não caberia aqui, por razões óbvias, dis-cuti-las e avaliá-las em suas implicações para o catolicismo univer-sal. Um dos documentos aprovados nesse encontro, todavia, deve orientar nossa atenção.10 O Ad Gentes (ou "Sobre a atividade mis-sionária da Igreja") ocupa um lugar central em nossa discussão. Ao insistir sobre o fundamento missionário de uma teleologia católi-

Page 247: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

ca, esse documento reatualiza o significado da participação na Igreja nos termos de práticas dirigidas ao alcance daqueles muitos que ainda não conheceram o Evangelho. Os padres conciliares que-rem despertar um sentimento de inquietude dos católicos diante do longo caminho a se percorrer para que se cumpra o desígnio de Cristo quanto à missão universal.11 O fiel, diz o documento, deve compartilhar da mesma ansiedade da hierarquia diante da árdua tarefa que ainda resta à Igreja.

O tema da Igreja missionária, sabemos, não apresenta nenhu-ma novidade em si mesmo. O Ad Gentes {rr 2) inicia sua exposi-ção assumindo essa premissa como um fato pacífico, pois "a Igreja peregrina é missionária por sua própria natureza, exatamente por-que ela é originária da missão do Filho e da missão do Espírito Santo, de acordo com a vontade de Deus-Pai".12 O que devemos observar, entretanto, é a maneira como a questão é recolocada no contexto de profunda revisão interna que a Igreja propunha reali-zar no Concilio Vaticano II. O documento — resultante, devemos insistir, do mais importante evento da hierarquia eclesiástica — afirma proposições que alteram significativamente o entendimen-to do campo missionário.

A Igreja, em um momento solene de afirmação doutrinai, orien-ta o missionário, agora, a inserir-se na vida dos povos de maneira integral.13 O episcopado pede que ele se engaje na construção de laços profundos e íntimos, inspirado por um sentimento sincero de partilha, apoiado no mesmo tipo de amor que Cristo devotou aos homens. Nessa reorientação da prática evangelizadora, o agen-te é convidado a abrir-se para o largo conjunto de signos, valores e tradições que definem a singularidade de cada povo ou nação. Observemos que essa nova postura não é apresentada, ao menos em suas representações, como sendo uma carta estratégica para melhor alcançar os seus fins. Ela resulta de uma premissa que impõe, necessariamente, uma transformação radical na apreensão que a Igreja faz da relação sujeito-objeto presente no campo mis-sionário, e que terá um papel preponderante na gestação, alguns

Page 248: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

anos depois, da teologia da inculturação: cada cultura na qual o missionário se dispõe a entrar traz, ocultas sob sistemas culturais e significações estranhos, as sementes da Boa-Nova. Pela primei-ra vez, surge entre os fundamentos do apostolado cristão uma tare-fa a qual jamais se cobrara do missionário, a de apanhar os sinais que revelem a presença de Deus nesses povos ou os tesouros que "um Deus generoso distribuiu entre as nações da Terra". O que é um corolário, por sua vez, da admissão de que a missão, em sua rela-ção com esses grupos, não mais detém a prerrogativa exclusiva sobre aquilo que diz respeito a Deus e sua obra. Em Medellin, os bispos acrescentam o fenômeno das transformações culturais e religiosas que atuam sobre nações com numerosas populações indígenas (que já havia alguns séculos eram objetos da evangeliza-ção) e que desnorteiam o entendimento que a Igreja latino-ameri-cana tem de sua evangelização. O que se revela um problema a mais para seu modelo pastoral vigente:

Até agora a Igreja contou principalmente com uma pastoral conser-vadora, baseada numa sacramentalização com pouca ênfase numa prévia evangelização. Pastoral apta, sem dúvida, para uma época em que as estruturas sociais coincidiam com as estruturas religiosas, em que os métodos de comunicação dos valores (família, escola...) esta-vam impregnados de valores cristãos e onde a fé se transmitia quase pela própria força da tradição (Ceiam, 1984: 67).

Outras características importantes na caracterização da pas-toral indigenista pós-1970, no Brasil, seriam gestadas, de modo lasso, no Vaticano II. Será-nos necessário, portanto, não o perder de vista na análise que faremos adiante. Algumas problemáticas que podemos discernir em uma antropologia acerca da pastoral indigenista no Brasil, como a linha da "promoção social" ou a pro-posta da evangelização pelo exemplo de vida, relacionam-se de maneira muito próxima às proposições conciliares.14 Outras, como o tema da igreja autóctone, dependem de mediações e relei-

Page 249: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

turas que nem por isso perdem seu parentesco com o espírito do concilio.

O novo período de investimento missionário deve, portanto, reconsiderar a economia interna dos agentes envolvidos na evan-gelização. A Igreja, diz o documento, deve aceitar que as suas for-ças atuantes na fronteira do mundo cristão sejam recompostas e que seja dada aos fiéis leigos a possibilidade de protagonizar o seu anúncio perante outros povos. A presença dos leigos nessa emprei-tada seria até mesmo fundamental para o estabelecimento de uma evangelização verdadeira.

Em Medellin, os participantes remetem-se aos documentos episcopais anteriores sobre a participação leiga, mas propõem rever a natureza dessa participação a partir do momento histórico vivido pelo continente quando da realização da conferência. Depois de relembrarem o quadro "de marginalidade, alienação e pobreza, condicionado, em última instância, por estruturas de dependência econômica, política e cultural em relação às metrópoles industria-lizadas" (Ceiam, 1984: 99), os bispos concluem que a laicidade, a partir de então, deva renovar-se, alterando significativamente o seu padrão de inserção na vida social e política. Essa renovação é imprescindível para que o movimento leigo supere uma crise inter-na, que diz respeito à sua incapacidade de responder aos desafios de um continente em transformação.

A Igreja latino-americana, segundo as conclusões de Medellin, deve resituar o leigo, portanto, no plano da história. Deve propor-cionar-lhe o amadurecimento de uma nova pedagogia evangeliza-dora que lhe permita, simultaneamente, travar o bom combate do Evangelho sob as novas condições sócio-históricas do continente e reavaliar a si mesmo e a sua obra. Os bispos brasileiros, partici-pantes entusiasmados do Concilio Vaticano II e também da Conferência de Medellin, propuseram planos pastorais em abso-luta conformidade com esse espírito conciliar. Articulados politi-camente na CiNBB, eles corroboraram, no início dos anos 1970, a estruturação de uma experiência de missionação junto aos índios

Page 250: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

que esteve pautada na reflexão sobre a evangelização proposta por esses encontros.

O s " E X C L U Í D O S " EM SUA V E R S Ã O I N D Í G E N A

No Brasil, e provavelmente em toda a América Latina, as novas condições de recepção e entendimento do que ocorria no mundo exterior, patrocinadas pelo Vaticano II e por Medellin, geraram, de certo modo, uma desorganização na maneira como os envolvidos no apostolado católico junto aos índios simbolizavam sua missão e representavam a si mesmos. Mas aqui não iremos tratar das trans-formações que, supomos, deveriam estar agindo no interior das diversas ordens religiosas missionárias. Uma investigação dos pro-cessos internos, em qualquer uma delas, deve considerar a sua his-tória particular, sua geopolítica mundial, suas relações com os povos sob sua esfera e alguns outros fatores.15 Nossa preocupação aqui está voltada para uma experiência particular: a estruturação do trabalho pastoral da Igreja brasileira junto aos índios na forma de um organismo secular, umbilicalmente vinculado à hierarquia nacional em sua organização e seus procedimentos, e expressiva-mente aberto à participação leiga.

Observamos antes que o período imediatamente anterior à ges-tação do Cimi revelava um nítido sentimento de mal-estar entre alguns poucos missionários, reunidos principalmente no interior da Opan. Esse mal-estar resultava da avaliação autocrítica sobre os fundamentos teológicos do trabalho missionário desenvolvido até então e sobre o decurso desse trabalho sobre as populações indíge-nas envolvidas. Muito daquilo que antes seria prontamente rebati-do pela instituição como sendo vestígios da "lenda negra" passava agora a ser escutado com atenção. Além da crítica externa, formu-lada por pesquisadores e indigenistas, os católicos desta Igreja "renovada" são informados também por sua própria presença na instituição e, às vezes, pelo contato direto com essas experiências

D1: U S ,\'A A L D E I A 2 4 5

Page 251: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

de evangelização dos índios, como foi o caso de muitos participan-tes da Opan. Avançava-se, enfim, na construção de um quebra-cabeça cuja figura final em nada corroborava a imagem laudatória que a missão, havia séculos, fazia de si.

O modo como a Igreja brasileira conduziu a resolução desse impasse, ou mal-estar, esteve profundamente vinculado aos desen-volvimentos pastorais e teológicos fermentados no novo ambiente eclesial pós-conciliar. As proposições de Medellin estiveram parti-cularmente evidentes nesse momento. O distanciamento da "mis-são tradicional" que os participantes da Opan realizavam ocorria pari passu ao elogio da "promoção humana" (Opan, 1987). As difi-culdades e carências vividas por inúmeros grupos indígenas quan-to a sua auto-sustentação, saúde e educação, passavam a ocupar o primeiro plano da atenção missionária. Essa reorientação do esfor-ço pastoral afastava os missionários do plano da cultura, e contri-buía para suprimir da ação evangelizadora a política de intervir na organização social, no repertório simbólico e nas representações religiosas dos índios. Um marco ritual desse novo período foi a "desmontagem" da estrutura física da Missão de Utiariti, em que a Opan simbolizava o seu rompimento definitivo com as práticas do passado que ela mesmo conhecera em seus primeiros anos na Missão Anchieta e na Colônia Agrícola Sagarana.16

A ênfase nos problemas sociais e econômicos, que afetavam os grupos indígenas em contato com esses missionários, fazia com que essa nova experiência de evangelização se aproximasse igual-mente de um outro aspecto presente nas orientações de Medellin. Em termos gerais, há uma redução sociológica das relações entre índios e brancos — particularmente o Estado e as frentes de expan-são — a uma agenda de questões econômicas, políticas e de direi-tos sociais a serem conquistados (Rufino, 1996: 155). Essa redu-ção, por sua vez, promove uma segunda, a saber, a assimilação da personagem indígena, com todas as suas diferenças, histórias e graus de contato específicos, a um denominador comum: o "excluído".

Page 252: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Como objeto central da luta pelos direitos, o excluído — tam-bém referido como marginalizado — é resultado de uma constru-ção intelectual ampla, trazida à luz por setores e forças internas à Igreja que foram capazes de criar um centro de "condensação" — para utilizarmos novamente a expressão de Giancarlo Zizola — que permitisse a síntese de seu projeto e a alavancagem de suas posi-ções por meio de símbolos fortes. Se o Vaticano II descortinou novas fronteiras para o desenvolvimento teológico e doutrinai, a Conferência de Medellin, no contexto do continente, certamente endossou uma forma de atuação pastoral cuja atenção maior se voltava para a "humanização" das estruturas sociais, e também para a oposição ao modo como se realiza a inserção da América Latina no capitalismo global.17 Ela partia de um diagnóstico que reunia todas as coletividades, aí incluídos os povos indígenas, em uma situação comum de espoliação e sofrimento gerados pelo modelo econômico vigente e pelos arranjos políticos que lhe sus-tentavam nos vários países latino-americanos.

A proposta de criação do Cimi deu-se em meio a esse ambiente intelectual. Podemos afirmar que esse evento ocorria no momento em que o índio genérico — aquela figura resultante da sobreposi-ção de múltiplos extratos retirados aqui e ali de grupos distintos no tempo e no espaço —, longe de ser desconstruído em suas partes, era, ao contrário, substituído por uma figura ainda mais densa. Parodiando Ramos (1995),18 talvez possamos sugerir a expressão índio hipergenérico, pois é uma representação de indianidade que condensa na imagem já dilapidada do índio genérico o sentido de identidade e pertencimento a várias outras coletividades, unidas entre si pelas injustiças que sofrem.

Essa nova página da ação pastoral da Igreja brasileira entre os índios, portanto, inicia-se por uma operação semântica que torna-va possível adequá-la às categorias mentais formuladas em Medellin. Agregar os índios junto ao simbolismo do excluído per-mitia inseri-los no projeto maior de atuação da Igreja sobre a socie-dade, somando-os à pauta fundamental que a Igreja latino-ameri-

Page 253: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

cana elaborara em Medellin, a atenção aos marginalizados. Em seu tópico sobre a educação no continente e seus desafios para a Igreja, o documento final da conferência nos dá uma amostra da categoria de excluído em ação, o excluído da cultura:

Considerando a urgência do desenvolvimento integral do homem e de todos os homens na grande comunidade latino-americana, os esforços educativos padecem de sérias deficiências e inadequações. Existe, em primeiro lugar, o vasto setor dos homens "marginalizados" da cultura, os analfabetos e especialmente os analfabetos indígenas, privados por vezes até do benefício elementar da comunicação por meio de uma língua comum. Sua ignorância é uma escravidão inu-mana. Sua liberação, uma responsabilidade de todos os homens lati-no-americanos. (Ceiam, 1984: 47)

Precisamos ter em mente que os ensaios de pastoral indige-nista que surgem nesse momento — e não apenas no Brasil — inserem-se no simbolismo discursivo que a Igreja tece sobre o homem no continente. A Igreja dos oprimidos, nos sugere o do-cumento, opera em movimentos centrípetos; ela procura, inces-santemente, agregar a diversidade de experiências sociais, cultu-rais e cotidianas em um mesmo vetor. Assim, os grupos indígenas, comunidades camponesas ou pobres urbanos formam, acima de tudo, uma "grande comunidade latino-americana".19

Os leigos e religiosos da Igreja pós-Medellin passaram a ter um grande fardo a carregar. São muitas as suas responsabilidades, urgentíssimas as suas causas e inúmeros os oprimidos a espera de socorro. Os missionários envolvidos na criação do Cimi partem, portanto, de uma orientação clara a esse respeito. Os grupos indí-genas deveriam ser entendidos em uma perspectiva "global", pois estão inseridos em uma conjuntura social, política e econômica que os confina em uma situação de violência e dificuldades. O mode-lo de trabalho que os missionários irão assumir junto aos índios

Page 254: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

pode ser mais bem compreendido a partir de uma expressão desti-nada a tornar-se palavra-chave nesse período: encarnação.

Temos aqui a premissa de que a atuação evangelizadora, que se quer sintonizada com as condições presentes, deva, necessaria-mente, ser um agente propulsor da transformação social. Ela pre-cisa agir, portanto, também em uma perspectiva global, voltando sua atenção para a totalidade da existência de sua clientela, pro-curando combater tudo aquilo que impede a plenitude da vida e da descoberta religiosa. E para que esse combate possa ser trava-do, para que a missão possa alcançar essa posição holística, exige-se do missionário que encarne a si próprio na vida e no cotidiano daqueles a quem a Boa-Nova é destinada. Por meio da encarnação missionária persegue-se a metáfora da encarnação do Cristo na Terra; ele que é filho de Deus mas se dispôs a viver entre os homens, compartilhar de seus sofrimentos e sacrificar-se por todos.20 Os novos missionários deverão, portanto, afirmar o seu compromisso com o mundo e com a história. Compromisso que, nas palavras de Medellin, significa

ratificar com ações a solidariedade em que todo homem se encontra imerso, assumindo tarefas de promoção humana na linha de um determinado projeto social. O compromisso assim entendido, na América Latina, deve estar impregnado pelas circunstâncias peculia-res de seu momento histórico presente, pelos signos da libertação, da humanização e do desenvolvimento, (idem: 101)

A realidade concreta em que começou a operar essa encarnação missionária se deu, desde o nascimento do Cimi, pela ênfase no tema da promoção social e por uma posição hostil e, algumas vezes, radicalmente crítica aos agentes sociais diretamente associados à manutenção da "estrutura social" no Brasil, em particular o Estado nacional e os setores e grupos privados vinculados às frentes de expansão econômica no interior do país. A cena indigenista passava a ser avaliada nos termos de sua macrorrelação com o entorno com-

Page 255: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

posto pelos múltiplos elementos que lhe influenciavam e determi-navam. A tomada de posição diante do cenário político nacional, particularmente no que dizia respeito à política indigenista, partia, evidentemente, de uma análise conjuntural tornada possível somen-te nessas circunstâncias. Contrariamente à lógica operante em gru-pos missionários locais, contidos em sua interlocução nos limites de seus territórios de abrangência, o Cimi trazia, já em seu nascimen-to, as atribuições de lidar com a esfera do indigenismo em sua dimensão nacional, e de ter como interlocutores os grandes agentes públicos e privados que lhe afetavam. E as possibilidades de desem-penhar essas atribuições dependiam, evidentemente, de que sua estruturação se desse em termos nacionais.

A criação do Conselho, em nosso entender, representava um passo significativo da Igreja brasileira na resposta a algumas deman-das internas. Precisamente no momento em que se falava muito da importância da pastoral de conjunto e da necessidade de a Igreja avaliar as suas deficiências na organização e no aproveitamento dos grupos atuantes na evangelização da sociedade, tornava-se claro que a ausência de uma pastoral indigenista específica em nada con-tribuía para as iniciativas missionárias dispersas pelo país. As ações solitárias de diversas ordens religiosas — cada qual com seu caris-ma, metodologia e fins próprios — junto aos índios não apenas apresentavam os problemas que discutimos anteriormente, quanto à sua inadequação diante do ambiente de renovação doutrinária e eclesial, como também testemunhavam a falta de coordenação e consistência no campo da atividade missionária, cuja responsabili-dade é de toda a Igreja. Mais do que nunca, o aproveitamento insu-ficiente de recursos, o dispêndio desnecessário de esforços e a pouca racionalidade no planejamento das ações surgiam nas avalia-ções da hierarquia como componentes importantes de uma autocrí-tica das operações da instituição. Lembremos que ainda no perío-do que antecedeu a criação dos movimentos especializados da Ação Católica, a Cúria Romana, por meio de Pio XI, escreve aos bispos brasileiros cobrando que os investimentos realizados na estruturação

Page 256: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

dos grupos do" movimento sejam acompanhados pela coordenação em todos os níveis. Seria intolerável, diz ele em sua carta ao epis-copado brasileiro em 1946, a dispersão de forças e energias em tarefas que, paradoxalmente, procuram fortalecer a organização dos cristãos: para Pio XI, é preciso "que haja unidade orgânica".21

Parte da reestruturação do campo missionário entre os índios, cujo resultado maior esteve na criação de um conselho missioná-rio em nível nacional, acontecia, portanto, em um contexto no qual já se acumulara uma reflexão institucional sobre a organiza-ção racional e coordenada de grupos pastorais. Exatamente vinte anos antes da criação do Cimi, o próprio episcopado brasileiro fun-daria a sua conferência nacional permanente, a CNBB, tendo como estímulo questões semelhantes às que estamos discutindo aqui.

O N Ã O - L U G A R DA C U L T U R A

Em meado dos anos 1980, uma alteração significativa no vocabu-lário do Cimi parece expressar um novo momento na maneira como a instituição formula a sua representação do que seja uma "nova" perspectiva de evangelização. Esse novo momento, em certa medida, evidenciava uma percepção desses agentes acerca da ina-dequação de suas categorias teológicas que deveriam tornar inteli-gível a sua atuação junto aos índios. Um conceito que desempe-nhou um papel fundamental na consolidação do modelo de atuação do Cimi, desde seus primeiros momentos, mas que então passava a suscitar dificuldades consideráveis, era a noção de "encarnação" missionária. O tema da "encarnação" permitia a arti-culação de valores e sentidos caros aos missionários, principal-mente no que diz respeito à necessidade de associar o anúncio da Boa-Nova à ação engajada e militante de cristãos que se assumem como defensores, porta-vozes e aliados incondicionais de uma minoria permanentemente ameaçada e sujeita às agressões da sociedade nacional, principalmente por suas frentes de expansão

Page 257: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

econômica. Entretanto, se essa noção possuía a capacidade opera-cional de traduzir duplamente a ação política nos termos de uma cosmovisão cristã e reinterpretar os Evangelhos a partir de um pro-jeto político libertador e revolucionário, ela passava ao largo de uma problemática que persegue aqueles situados nas regiões em que a alteridade é manifesta: a cultura.

Lembremos que essa teologia encarnacionista, que se desen-volveu na América Latina ao final dos anos 1960, é parte constitu-tiva dos mesmos processos internos que produziram a "opção pre-ferencial pelos pobres", assumida pelos líderes da Igreja do continente na Conferência Episcopal de Medellin, em 1968. Ela esteve associada também ao conjunto maior das proposições que politizaram a Igreja sob a gramática interpretativa domaterialismo histórico e do antagonismo de classes, incorporadas ao programa pastoral da Teologia da Libertação. Essa "Igreja dos oprimidos", fundada simbolicamente em Medellin, não operava sob o código da cultura e da alteridade. Ao contrário, seu grande esforço de produ-ção de sentidos esteve voltado para a construção de um sujeito his-tórico agregador, quase monotético, que fosse capaz de subtrair da alteridade imediatamente percebida, um repertório coerente e sin-tético de características comuns: tratava-se de sedimentar a figura do "oprimido", sujeito histórico marcado pelo martírio e pela expo-liação impostos pelo capitalismo.

Situando o trabalho evangelizador no seu devido contexto de interesses e práticas, podemos dizer que os missionários estavam — no ínterim que vai do período pós-conciliar até meados dos anos 1980 — sensíveis não à percepção ou ao elogio da diferença, mas à necessidade de aniquilá-la simbolicamente. Os índios no Brasil são incorporados, portanto, a um quadro de referências em que todos são comutados em um único ser social, capaz de expres-sar aquilo que, nessa representação, seria a essência ontológica dos povos do continente e que, também em sua essência, consti-tuiria uma única grande nação latino-americana adormecida, tor-nada única pelas penitências sofridas. Assim, os diversos povos

Page 258: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

indígenas do Brasil poderiam ser aproximados não apenas entre si e de outros tantos grupos indígenas do continente, mas também reunidos simbolicamente aos operários da indústria, aos campone-ses e agricultores desterrados, aos negros e afrodescendentes viti-mados pelo preconceito, aos marginalizados dos centros urbanos e quem mais coubesse no amplo conjunto dos excluídos.

As transformações que iremos observar na instrumentação teórica e teológica dos missionários em finais dos anos 1980 refe-rem-se exatamente ao tratamento dado ao problema da cultura. Em nosso entender, se essa mudança nos instrumentos intelec-tuais é alimentada por alterações na percepção que esses agentes realizam acerca da diversidade cultural, ela é, simultaneamente, responsável por nutrir uma sensibilidade do aparelho missionário diante dessa percepção — que, se não é nova na história da Igreja, é aqui "revisitada" de forma dramática. A palavra-chave que servi-rá como nome de batismo para esse segundo momento da pastoral indigenista no Brasil será a inculturação.

Temos uma clivagem gradual de posições, em que o empreen-dimento de cristalização de entidades socioculturais distintas em uma mesma personagem — o oprimido, marginalizado, ou excluí-do — cede lugar ao seu oposto. Cabe aos missionários, a partir de então, lançar-se no paciente trabalho de reconstituição das dife-renças perdidas pelo seu esforço anterior, desfazendo, fio a fio, a grande trama monotética que falava dos povos indígenas no singu-lar.22 A apreensão missionária dos índios, ao menos nesse aspecto, torna-se convergente com uma certa práxis antropológica de iden-tificação, ou construção, das individualidades "étnicas", sempre cuidadosa em evitar que experiências socioculturais diversas sejam subsumidas em conjuntos sociais amplos. E, como nos mostra Arruti (cap. 10) acerca do papel do Cimi no segundo ciclo de ree-mergências indígenas,23 devemos considerar que os missionários assumiram o estandarte da alteridade deveras a sério.

Evidentemente, o esforço de entender a novidade da incultu-ração — que logo se transformou em adjetivo onipresente dentro

Page 259: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

da missão24 — no contexto da missionação entre os índios não alcançaria seu fim se não fôssemos capazes de responder a uma questão que lhe antecede: quais foram as circunstâncias e motiva-ções que, em um curto espaço de tempo, alçaram o tema da cul-tura e da alteridade ao lugar privilegiado que ela agora ocupa para a Igreja?

A relação da missão diante da cultura não deve ser dissociada das mudanças que a Igreja, em seu conjunto, sofreu em relação à questão. Apesar da proeminência missionária no debate teológico da inculturação, devemos adiantar que não foi o Cimi ou a pasto-ral indigenista no Brasil que o iniciou. Se esses agentes são, hoje, uma referência sobre o assunto no interior da Igreja, disputando com outras forças internas a competência e a legitimidade sobre a significação desse código, isso se deve a um conjunto de fatores oriundos de um contexto mais amplo em que essa missão esteve historicamente situada.

O LUGAR DA C U L T U R A

Um grande problema colocado ao investigador, no que diz respei-to às movimentações intelectuais da Igreja diante da cultura, é rea-lizar a passagem do plano da Igreja universal para o contexto espe-cificamente latino-americano. Se nos é fácil tratar a Igreja católica como uma instituição transnacional, una, reconhecível em todas as suas formas particulares, hierarquicamente centralizada, e extremamente zelosa em anunciar as suas continuidades, devemos também — a partir do plano analítico em que nos colocamos — discernir a força dos contextos locais, e a especificidade dos pro-cessos históricos regionais que obrigam as Igrejas particulares a darem respostas também particulares a tais realidades. Insistimos nessa observação porque entendemos que a teoria da inculturação de nossos missionários apresenta uma coloração própria em rela-ção à sua matriz mundial. E, para compreendermos o que de ori-

Page 260: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

ginal se faz por aqui, iremos pensá-la, mais à frente, nos termos de uma "teologia de situação".

Quando a Igreja brasileira, e nossos missionários em especial, passa a insistir no vocabulário da cultura, ela o faz no interior de um campo semântico que coincide apenas aparentemente com aquele produzido pelo Vaticano II. Sua referência principal esteve nas representações construídas nas duas conferências episcopais do continente que ocorreram logo após o concilio ecumênico, em especial a segunda delas. A Conferência Episcopal de Medellin, de 1968, e a de Puebla, realizada dez anos depois, são os dois gran-des momentos de reunião das Igrejas particulares do continente em que podemos observar um esforço de aclimatação e ajuste das proposições debatidas no Vaticano II .2 5

Deixemos claro, todavia, que a nossa leitura dessas conferên-cias não reproduz a interpretação corrente, comum aos "intelec-tuais orgânicos" da Igreja que, por razões que não cabe aqui explo-rar, situam-nas em uma perspectiva de continuidade em relação às teses do Vaticano II, como se fossem decorrências naturais de uma tradução do concilio ecumênico para a realidade do continente. Esse fato, em si mesmo, revela algumas estratégias das forças internas à Igreja local em disciplinar a leitura das significações produzidas em Roma e em trazer para si, seu projeto pastoral e político, a legitimidade emanada daquele concilio.

A Conferência de Puebla nos interessa mais diretamente pela atenção maior dada à questão da cultura. O seu longo documento conclusivo reafirma a "opção preferencial pelos pobres", assumida em Medellin, mas articula o tema da exclusão social e das injusti-ças do continente a um repertório mais amplo de temas. Dizíamos em outra ocasião (2002: 282) que os debates de Puebla expres-sam, ainda que incipientemente, uma tensão interna às preocupa-ções com a evangelização das coletividades portadoras de culturas distintas. Essa conferência representa um momento transitório para a Igreja, no que diz respeito à problemática da alteridade e das exigências específicas a que o trabalho pastoral envolvido com

Page 261: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

os grupos indígenas deveria responder. Ao avançarmos sobre o debate que se desenvolveria logo em seguida acerca da incultura-ção, ficará patente que, em Puebla, a Igreja carecia de vocabulário e categorias adequadas para formular, ou reformular, o tema que se tornaria central em seu compromisso apostólico com a América Latina uma década depois, a saber, a reevangelização dos povos a partir do "diálogo" com as culturas.

Apesar de ainda operar com a categoria de "oprimido", a nar-rativa de Puebla esforça-se em recriá-la dialeticamente, como se a grande nação latino-americana — a Pachamama, Terra Mãe, con-forme Boff (1992) — fosse a síntese resultante da tensão entre o uno (o oprimido) e o múltiplo (as muitas identidades sociais nele condensadas). Não se trata mais de insistir tão-somente nos aspec-tos agregadores e monotéticos dessa figura emblemática — espé-cie de materialização, ou encarnação, da figura do Cristo crucifi-cado —, mas de relativizá-la diante das diferenças e culturas que são mobilizadas para constituí-la.

As alegorias presentes no documento final do encontro, e que seriam reproduzidas em inúmeros outros textos e falas da Igreja no país, nos sugerem a técnica holográfica como metáfora. Em qual-quer lugar que nos coloquemos em proximidade do oprimido, veremos um plano diferente. Estaremos sempre diante do mesmo oprimido, mas percebendo faces distintas — ou "feições", na lin-guagem do documento —, nitidamente reconhecíveis, apesar de compactadas em um mesmo ponto. Todas esses planos expressam as muitas "feições sofredores de Cristo": anciãos e idosos, campo-neses, operários, desempregados, crianças e jovens... Há também "as feições de indígenas e, com freqüência, também de afro-ame-ricanos que, vivendo segregados e em situações desumanas, podem ser considerados como os mais pobres dentre os pobres". (Ceiam, 1986: 95).

A pastoral indigenista no Brasil em seu conjunto, e o Cimi em particular, que se colocou o problema da cultura ao final dos anos 1980, esteve envolvida na produção desse holograma, apesar de sua

Page 262: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

contribuição se concentrar nas feições da sociodiversidade nativa. Isso corrobora um pressuposto imprescindível à perspectiva teórica presente neste volume, pois demonstra como a definição da alteri-dade não pode ser compreendida senão em função das conjunturas históricas e da cosmovisão dos atores envolvidos.

A participação dos missionários nesse empreendimento inte-lectual acerca das relações entre Igreja e cultura nos permite pro-blematizar o lugar dessa experiência missionária de uma maneira mais ampla em nossa perspectiva teórica da mediação. Além de ocupar um lugar específico na mediação cultural junto aos povos indígenas com os quais trabalha, o segmento missionário em ques-tão é um mediador importante também no interior da instituição da qual faz parte, imprimindo à Igreja em seu conjunto uma maneira específica de lidar com o problema da alteridade. Afinal, estamos falando de um setor da Igreja cujo campo de ação, ou evangelização, é povoado por agentes, cosmologias e sinais diacrí-ticos. Participante ativa de conjunto institucional maior — com-posto pela extensa rede de grupos, instituições e pastorais católi-cos —, a missão indigenista representa uma espécie de força-tarefa para os assuntos da cultura.

Podemos observar mais claramente as credenciais que legiti-mam o Cimi, ou mais amplamente a pastoral indigenista, como mediadores no interior da Igreja quanto ao debate da cultura no momento mesmo em que a inculturação entra em cena. Os mis-sionários estão entre os primeiros a digerir, problematizar e propa-gar o conceito no país de maneira sistemática, no início dos anos 1990.26 Mais do que reproduzir um debate teológico que então começava a se expandir por todo o ecúmeno, mas que mobilizava mais intensamente as Igrejas da Ásia e da África, eles agem na reconstrução dos códigos internos a essa forma teológica, situan-do-os em um simbolismo familiar à Igreja do continente. E, ao rea-lizar essa recodificação, em que o discurso da inculturação é des-montado e posteriormente reconstruído em uma teologia de situação, os missionários parecem conseguir o impossível: manipu-

Page 263: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

lar a genealogia de parentesco de alguns momentos e formula-ções recentes da Igreja do continente, e imbutir a inculturação na mesma linhagem de Medellin, Puebla, a teologia da liberta-ção, e as experiências das CEBs no Brasil, sem que se note qual-quer contradição.

Para que possamos reconhecer os méritos dessa engenharia que manipula a história, os conceitos e a teologia, precisamos, antes de mais nada, identificar o que havia para ser recodificado. Inicialmente, propomos aplicar o "estranhamento" característico do olhar antropológico sobre essa representação missionária que subsume a teologia da libertação — contrapartida teórica da "Igreja da libertação" — ao momento recente de predomínio da teologia da inculturação. Quais diferenças significativas, afinal, se fazem presente entre estes dois conjuntos discursivos? Eviden-temente, uma comparação competente entre eles exigiria um esforço de reflexão à parte, o que extrapolaria a proposta deste texto. Podemos, contudo, fazer breves referências a características e processos constitutivos da teologia da libertação que se fazem ausentes na discussão da inculturação, a fim de permitir-nos per-ceber rupturas onde os discursos afirmam continuidades.

L I B E R T A Ç Ã O E I N C U L T U R A Ç Ã O :

A P R O X I M A Ç Õ E S E R U P T U R A S

A teologia da libertação ocorreu em um cenário de clara polariza-ção de forças e interesses no interior da Igreja. Havia duas áreas de emissão nitidamente distintas, apesar das nuanças de posições em maior ou menor grau em cada uma dessas áreas. Um campo emis-sor reunia teólogos e intelectuais da teologia da libertação; em posi-ção diametralmente oposta a esta estavam o Vaticano e seus teólo-gos, como também alguns expoentes do episcopado de outros países. O confronto ideológico relacionado à teologia da libertação acontecia em torno de atores definidos, agrupados em conjuntos

Page 264: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

cuja expressão era, muitas vezes, inequívoca. Assim, o grupo dos teólogos da libertação agregava intelectuais cujos nomes se torna-ram conhecidos e fortemente associados com a manifestação ideo-lógica da teologia que propunham. Mesmo o "outro lado", o de seus opositores, jamais ocultou os seus soldados, e alguns nomes dessa intelectualidade ganharam uma projeção externa às cercanias da Igreja que também os associou a esse debate, marcando-os como uma espécie de força-tarefa da ortodoxia. A teologia da libertação, longe de se mover por espaços difusos, fincou raízes profundas em determinadas instituições eclesiais que lhe serviram como base estável de sustentação e correia de transmissão para seus esforços de propagação. As CEBs, as pastorais sociais atuantes nas periferias das grandes cidades, os centros de documentação e formação de agentes pastorais e lideranças contribuíram de maneira ainda não suficientemente estudada para seu desenvolvimento.

A incultupação, até onde nos é possível observar, vem trilhando um caminho diferente. Perceberemos outras dinâmicas e arranjos inesperados. Em seu caso, não podemos afirmar que haja uma pola-rização de posições contraditórias, ou a caracterização de campos de emissão nítidos e claramente identificáveis (Suess, 1995). Nossa pesquisa sobre a caracterização do debate, a construção do conceito — que está em pleno movimento no momento mesmo que o discu-timos — e a mobilização de significações nos mostra quão delicado é o trabalho que pretende classificar sujeitos e falas. A inculturação está, literalmente, na boca de muitos. Ela tem sido utilizada sistema-ticamente pela cúpula da hierarquia eclesiástica, seja no Vaticano, seja em nível continental ou nacional, como o Ceiam e a CNBB. Está presente também no discurso das mais diversas frentes de ação pas-toral, principalmente nas pastorais extra-eclesiais — que vêem a si próprias como a extensão da Igreja para fora de seus muros — enga-jadas na realidade social. Tem sido não apenas objeto de estudo de intelectuais das mais diversas posições e compromissos na Igreja, como também é recorrentemente usada como instrumento de aná-lise e categoria de reflexão teológica e pastoral por eles.

Page 265: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

A proliferação da inculturação em tantos campos diferentes não significa, entretanto, que todos mobilizem os mesmos senti-dos. Entendemos que a polarização expressa na oposição direta entre duas arenas distintas, evidenciada por ocasião da teologia da libertação, desloca-se, aqui, para o interior da reflexão comum a todos que propagam a inculturação. Não se trata, como no caso anterior, de defendê-la ou combatê-la. Mas de disputá-la, definir-lhe o sentido, orientar o seu uso. Tampouco é possível classificar os vários agentes envolvidos aqui em setores de emissão definidos, em cujo perímetro se poderia separar interpretações ou paradig-mas da inculturação. Se é possível relacionar emissores que, por sua constituição, apresentam perfis e traços que os tornam facil-mente reconhecidos, o mesmo não é possível quanto a associá-los a tal ou qual discurso acerca da inculturação. Com exceção de alguns colegiados diretamente vinculados ao poder pontifício — como a Comissão Pontifícia para a Cultura e algumas Congre-gações da Santa Sé —, as instituições materialmente visíveis pre-sentes na discussão, de projeção inequívoca, como a Ordem Jesuítica, ou importantes espaços de reunião do episcopado, como o Ceiam e a CNBB no Brasil, reproduzem internamente os antago-nismos do debate internacional sobre a inculturação, apesar de fazê-lo em menor proporção.

A teologia da libertação foi relacionada, já em sua origem, a um lugar específico da geografia da Igreja. Apesar das contribui-ções importantes de teólogos europeus, a América Latina tornou-se o centro da produção dessa forma de teologia. As questões for-muladas por ela sempre estiveram embasadas em um diagnóstico da realidade do continente e, de certo modo, configuravam um perfil de ação eclesial adequado às suas demandas sociais. Essa "localidade" da gênese e do desenvolvimento da teologia da liber-tação agiu também sobre as respostas dadas a ela. Em mais de uma manifestação papal podemos notar como o compromisso dessa forma teológica com a América Latina é identificado a um particularismo improdutivo para os desafios da Igreja diante da

Page 266: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

modernidade. Em alguns momentos, ela aparece como um fenô-meno anacrônico, agindo na obliteração do universalismo católico, tão necessário para a articulação dos cristãos e tão dificilmente preservado pelos esforços da Santa Sé. Contrariamente à teologia da libertação, a inculturação não é um fenômeno endêmico. Ela é, ao contrário, um evento transcontinental, como o é a Igreja univer-sal. A produção teórica em torno da inculturação parte da expe-riência missionária nos recantos mais diversos. Para nós, essa dimensão planetária da inculturação é responsável por um certo frêmito na comunidade intelectual católica como em raros momentos se vê — tal comunidade não está mais calada, obser-vando passivamente uma contenda em que somente os latino-americanos pareciam existir. Em um momento, descobre-se que em todos os lugares há experiências a serem relatadas e testemu-nhos à espera de quem os ouça.

A escala planetária em que age a inculturação produz algumas implicações para a produção teórica católica que não devem ser ignoradas. Em cada contexto regional a Igreja elabora a incultura-ção no bojo de trocas culturais únicas, com características históri-cas e sociais singulares. E não poderia ser diferente. Para nos ater-mos a apenas um exemplo, se na América Latina a mediação cultural exercida pelo missionário deve ser ajustada para lidar com culturas indígenas cujas manifestações religiosas há poucas déca-das eram tidas por imaturas e rústicas diante da complexidade e riqueza simbólica cristã — apesar da significativa mudança de tom que ouvimos hoje, quando se fala em resgatar o Deus que sempre esteve nelas presente —, em regiões como a Ásia essa mediação se confronta com religiões de status tão privilegiado quanto o próprio cristianismo, como ocorre em áreas marcadas pela presença do hinduísmo, das grandes tradições religiosas orientais e da cultura islâmica (Poggi, 1984).

O universo semântico constituído pela volumosa produção intelectual dos teólogos da libertação apresenta-se circunscrito a um conjunto limitado de proposições. Apesar dos inúmeros nomes

Page 267: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

que se somaram aos autores mais tradicionais e expressivos dessa chave teológica, é significativa a similaridade de posições, enfo-ques e estilos narrativos.27 As suas implicações convergem para uma esfera também circunscrita. A teologia da libertação, grosso modo, dirige-se para as estruturas sociais e políticas que, em seu diagnóstico, seriam as responsáveis pelas injustiças e opressões do cotidiano. Não deixa de ser um problema paralelo a esse a crítica à estruturação hierárquica e centralizadora da instituição eclesial, que refletiria, tão-somente, os vícios do mundo temporal e impe-diria uma tomada de consciência por parte de toda a comunidade católica das mazelas engedradas pelo capitalismo. A teologia da libertação, por sua vez, propõe uma atuação ativa da Igreja no combate a essas realidades, o que se traduz em um envolvimento concreto e explícito no confronto diário travado pelos diversos agentes sociais.

Ainda em um cotejamento com a teologia da libertação, as implicações da inculturação apontam para muitas direções dife-rentes. Os resultados de uma práxis orientada pelos pressupostos dessa nova teologia não dizem respeito apenas ao modo de se pra-ticar a evangelização, ou ao conteúdo da mensagem a ser propaga-do. Também não se limitam ao modo específico como, em cada caso concreto, se constrói a interação entre evangelizadores e des-tinatários. Ela interpela a história da própria Igreja, como também a sua constituição, os seus métodos e a leitura que ela faz de seu próprio projeto de ação. Apesar de termos na teologia da libertação uma crítica contundente ao rigor hierárquico da instituição e ao solilóquio papal, ela — como ousamos sugerir — nem de longe alcança, em profundidade e extensão, o potencial poder da incul-turação em agir sobre as estruturas internas da Igreja. Isso explica, em parte, o notório engajamento do Vaticano em todos os espaços importantes onde ela é discutida.

Lembremos também que os teólogos da libertação comparti-lhavam um arsenal comum de instrumentos de análise da realida-de social. E significativo que seja a teoria social de orientação mar-

Page 268: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

xista a responsável pela comunhão desses intelectuais em uma mesma frente de ação — propiciando um código comum de comu-nicação —, e não o campo tradicional de autores e problemas acu-mulados pela reflexão teológica até então. O marxismo e a sua apropriação como instrumento para a análise da realidade social é, em grande medida, ausente na inculturação.28 Não que esta teolo-gia prescinda da análise social. O problema central para ela, no entanto, está em questões que são internas à própria evangelização e à teologia. A inculturação é um olhar para o interior da prática missionária, como também para a própria Igreja Católica em seu conjunto; e sua abordagem dos males e dificuldades vividas pelos destinatários de sua ação se faz em um contexto distinto daquele de cujo antídoto os teólogos marxistas eram portadores. Por outro lado, a inculturação tem dificuldades em operar com o movimen-to agregador e centrípeto de movimentos revolucionários marxis-tas, presente na teologia da libertação, em que o conjunto do "povo de Deus" é reunido sob o signo do proletariado, na cidade, e do campesinato, no campo.29 O desafio que a missão inculturada se coloca, de resgatar a diversidade e singularidade de cada um dos povos em que atua, exige dela um instrumental teórico que reali-ze o movimento contrário àquele dos teólogos da libertação: ela precisa dilacerar a personagem compacta e densa do excluído a fim de revelar as "feições" de tantas coletividades cujas identidades foram soterradas.

O C Ó D I G O DA I N C U L T U R A Ç Ã O

Ao insistirmos na distância que a inculturação (como momento histórico, teologia, e representação pastoral) apresenta em relação à teologia da libertação, não estamos almejando descreditar a nar-rativa missionária. Seria, sem dúvida, ingênuo cobrar das represen-tações intelectuais que operam no plano êmico uma relação de verossimilhança com a análise feita pelo antropólogo. E, ademais,

Page 269: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

estaríamos ignorando uma proposição cara à nossa abordagem aqui, que é o argumento — compartilhado em outros capítulos deste volume — de que os códigos produzidos, lidos ou recriados pela missão são mobilizados, sempre, em referência a um repertó-rio de interesses e práticas.

A maneira peculiar como a missão discutida aqui constitui o seu entendimento sobre o passado recente da Igreja e o articula ao pre-sente é, em si mesma, uma expressão da forma original como ela introduz a inculturação no Brasil. Esse segmento missionário age, assim, como um mediador privilegiado no interior da Igreja, forne-cendo-lhe, se não uma estratégia, ao menos um lugar próprio sobre o qual ela possa pensar a alteridade.

Entretanto, para que possamos entender o que, afinal, na incul-turação e na preocupação teórica da Igreja com a alteridade o Cimi logrou recodificar, produzindo significações de apelo e reverbera-ção locaí — o que apelidamos de uma teologia de situação —, devemos dirigir nossa atenção para o contexto mais amplo em que a inculturação vem sendo gestada.

No início da década de 1980, começaram a surgir os resulta-dos de muitas reflexões que, em todo o mundo católico, se faziam sobre o tema da relação entre cultura e evangelização. O resulta-do mais expressivo desses esforços, sem sombra de dúvida, pode ser resumido na palavra "inculturação". Sua formulação — carre-gada de expectativas e promessas de um novo tempo para a ação evangelizadora — simbolizava um golpe de misericórdia nas já abaladas concepções missionárias das experiências "tradicionais" e "catequéticas".

Entre os grandes precursores dos estudos multidisciplinares, que envolviam parte da intelectualidade católica, sobre o tema encontram-se alguns teólogos jesuítas.30 A partir de 1981, eles rea-lizaram três importantes eventos sobre o papel da Igreja ante os problemas colocados pelo contato interétnico com populações indígenas.31 Os documentos produzidos nesses eventos analisam, de maneira pioneira, a atuação missionária em várias regiões do

Page 270: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

planeta sob a luz da inculturação, que então era um termo usado pelos jesuítas para se referir a um instrumental teórico em cons-trução, voltado para a compreensão da evangelização em realida-des culturais não-ocidentais.

Interessa-nos sobretudo a repercussão desse debate intelec-tual para fora das fronteiras da Sociedade de Jesus. A força dessas novas formulações pode ser medida no próprio fato de o Vaticano tê-las incorporado, expressando-se em termos muito próximos da matriz jesuítica. Arij Roest Crollius, um dos principais organizado-res destes encontros, assim definia a inculturação:

A inculturação da Igreja é a integração da experiência cristã de uma Igreja local na cultura de seu povo, de uma tal forma que esta expe-riência não apenas expresse a si mesma nos elementos dessa cultu-ra, mas se torne uma força que anime, oriente e inove esse cultura a fim de criar uma nova unidade e comunhão, não apenas dentro da cultura em questão mas também na perspectiva do engrandecimen-to da Igreja universal. (Crollius, 1984: 15)

As inovações trazidas por esse conceito — ao reforçar as Igrejas locais e reafirmar seus laços com as culturas nativas — deram novo ânimo à intelectualidade missionária. Talvez a sua primeira implica-ção inovadora esteja na mudança operada, do ponto de vista da Igreja, sobre o conceito de cultura. O teor das reflexões sobre o con-ceito começa a abandonar uma perspectiva meramente descritiva — em que muitas vezes a "cultura" era assimilada à noção de cultura material — e passa a privilegiar definições mais fluidas, que reme-tem à totalidade da vida social, permitindo ver na cultura o ponto de encontro de fenômenos de toda ordem, como os problemas econô-micos, políticos, filosóficos, religiosos e domésticos etc. (Azevedo, 1982: 8). Evidentemente, a definição da inculturação não está preo-cupada em pensar a cultura da mesma forma que fazem os antropó-logos (Collius, 1984: 6). Apesar de algumas referências pontuais ao debate realizado na antropologia e nas ciências sociais, a noção de

Page 271: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

cultura é utilizada de forma um tanto genérica, revelando uma plas-ticidade conceituai que permite aos missionários aplicá-la nos mais diferentes contextos.

Uma segunda dimensão inovadora da inculturação está no fato de que ela permitiria uma consciência mais viva do caráter dialógico da relação entre Igreja e cultura. Ela teria o mérito de apresentar-nos uma estratégia evangelizadora que se conduz em um processo de mão dupla, que vai das culturas ao cristianismo e deste àquelas; Crollius (1986) refere-se a essa dinâmica como um processo sem fim. O modo como o conceito é amplamente difun-dido no contexto maior das discussões em torno da nova evangeli-zação explica-se, em parte, por sua habilidade em situar a tarefa dessa nova evangelização como sendo um desafio de ordem peda-gógica. No caso da pastoral indigenista no continente latino-ame-ricano, portanto, a inculturação implicaria a superação de uma pedagogia que visava domesticar os povos indígenas pela introje-ção de valores culturais europeus. Essa mudança não estaria ape-nas na ordem dos valores a se transmitir. A pedagogia da incultu-ração pressuporia a alteração dos próprios termos da relação pedagógica que hierarquiza diferencialmente aquele que ensina daquele que aprende. Ela pretende suprimir essa distinção que separa evangelizador e evangelizado, propondo uma metodologia que, paradoxalmente, abriria mão de ensinar, uma vez que não pode mais supor que o outro desconheça a liberdade e o "Verbo".

A encarnação de Maria na experiência mexicana, por meio da Virgem de Guadalupe, dirigindo-se ao índio asteca em náuatle, seria um caso exemplar dessa pedagogia, que, apesar de revelado-ra, teria passado despercebida pela Igreja (Boff, 1992: 112). A ima-gem da virgem, ajustada aos termos da cultura indígena, seria ela mesma uma das expressões mais significativas do dialogismo con-tido na inculturação. Na leitura contemporânea dessa experiência do cristianismo no México, temos uma santa que "se encarna" no universo cultural asteca, estabelecendo um vínculo direto dessa experiência cristã com a mensagem que ela traz. Metaforicamente,

Page 272: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

dispensa-se, em uma perspectiva inculturada, qualquer mediação entre índios e Igreja — a portadora da mensagem cristã — pois ambos falam uma mesma língua e, por meio dela, podem com-preender-se mutamente.

Um terceiro aspecto importante na inculturação estaria no des-taque dado à Igreja local. Ela assumiria um papel ativo em seu meio, arcando com responsabilidades e compromissos até então impensa-dos em sua esfera, como uma relativa autonomia na elaboração dos rituais litúrgicos ou na reformulação de importantes peças da dou-trina cristã para o código cultural do "outro", como, por exemplo, os sacramentos. O descentramento que a inculturação procura impri-mir na relação entre os diversos segmentos eclesiais, até mesmo no que diz respeito à relação entre Santa Sé e Igrejas particulares, acon-tece no interior de uma problemática fundamental para a instituição eclesial em seu conjunto. Ao mesmo tempo que o caráter transna-cional, cosmopolita e uno da Igreja apresenta-se como produtor de uma originalidade privilegiada para o catolicismo, que só desse modo pode almejar criar "significações" inteligíveis num mundo marcado pela fragmentação, a Igreja salienta a importância de reavi-var a memória histórica local, particularmente a história dos santos regionais e nacionais, lançando-se na tarefa de compreender a plu-ralidade das realidades onde ela se erigiu.

Vemos que mesmo as formulações minimalistas da incultura-ção, como a proposta por Crollius, pressupõem elementos que são claramente divergentes do modus operandi da evangelização que a Igreja do continente havia elaborado a partir de Medellin. A "Igreja da libertação" nunca abriu mão do proselitismo evangélico, apesar de construí-lo não sobre a doutrinação bíblica mas sobre um certo profetismo revolucionário que orbitava em torno de um Cristo politizado e combativo.

Mesmo em Puebla, é evidente a defesa de um intervencionis-mo salvacionista sobre as culturas, que conclama todo a Igreja a "al-cançar e transformar pela força do Evangelho os critérios de juízo, os valores determinantes, os pontos de interesse, as linhas de pen-

Page 273: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

samento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida da humanida-de, que estão em contraste com a palavra de Deus e com o projeto de salvação" (Ceiam, 1986: 187). Podemos perceber no discurso dessa conferência um momento transitório na discussão da alteri-dade e das exigências específicas a que o trabalho pastoral com os índios deveria responder. Puebla nos revela que a Igreja do conti-nente carecia de vocabulário e categorias adequadas para pensar a evangelização dos povos a partir do "diálogo" com as culturas.

O Cimi, por sua vez, é agente e objeto desses processos que atingiam a grande comunidade apostólica. A partir de meados da década de 1980, se ele sofre com a fragilidade do pensamento católico diante dos dilemas colocados pela alteridade — que, no Brasil, se restringia à linguagem da libertação política —, a missão, por sua inserção nas realidades indígenas no país, tornava-se pro-gressivamente um interlocutor qualificado no interior da pastoral de conjunto, antecipando questionamentos e reflexões que esta-riam no centro de uma reflexão teológica inculturada ao final dessa mesma década.

Não queremos afirmar, obviamente, que o código da "encar-nação", palavra-chave em Puebla, com sua perspectiva de tradução da Boa-Nova e imersão missionária na realidade social do outro, fosse insignificante para relacionar a missão à problemática da al-teridade. Todavia, entendemos que esse código servia, acima de tudo, ao propósito de uma tradução alegórica da desejada imersão pastoral entre os oprimidos, e não ao projeto pastoral de evangeli-zação da cultura. Até mesmo porque encontrar a alteridade soter-rada sob o peso das tantas "feições" concatenadas no oprimido não deveria ser fácil.32

O propósito do trabalho missionário entre os índios levou o Cimi a ter presente, desde sua origem, uma série de questões que, a partir do final da década de 1980, passaram a ser formuladas na linguagem da inculturação. Não poderíamos, obviamente, pensar que a instituição vivesse em um permanente "grau zero" no que diz respeito à reflexão acerca da cultura. Mesmo em nível teórico, a

Page 274: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

cultura importava na medida em que a relação dos missionários com a diversidade socionativa envolvia questões éticas e religiosas às quais a Igreja precisava responder. Porém, as duas primeiras décadas na atuação do Cimi foram tão fortemente marcadas pela luta política, pelo engajamento temporal dos missionários nas trin-cheiras do indigenismo e pela preocupação em denunciar os numerosos episódios de violência e agressão aos índios, que a pro-blemática de sua relação com a alteridade não despertava qualquer sentimento de urgência.

A preocupação do Cimi com essa questão ganhou destaque com o Encontro de Pastoral Sacramentai, ocorrido em 1986. O Setor de Pastoral Sacramentai, nascido desse encontro, é um marco na trajetória do Cimi em nível nacional porque representa um com-promisso institucional dos missionários com refletir a relação entre evangelização e cultura. Essa relação deixa de ser uma preocupa-ção encerrada nos limites das consciências individuais dos agentes pastorais. Esse Setor sofreu algumas reformulações em 1991 e pas-sou a se chamar Articulação Nacional de Diálogo Religioso e Incul-turação (ANDRl) , entrando, assim, em sintonia com o novo vocabu-lário teológico-pastoral. Ao criar esses aparelhos especializados, o Cimi procurava sistematizar as várias experiências missionárias entre os povos indígenas e permitir ao conjunto de seus agentes um meio de avaliação e análise do que eles estavam fazendo. Entendemos, por outro lado, que a instituição estava preocupada também em tornar mais evidente o sentido religioso de sua ação, mesmo que isso se desse pelo argumento do respeito e defesa das religiões nativas.

[...] a dimensão religiosa perpassa todos os aspectos da cultura e precisa ser levada em conta quando se trabalha nos campos da saúde, educação, auto-sustentação. Em conseqüência é preciso que os missionários cresçam na percepção da importância que a religião tem nestes campos, nas lutas e frente às mudanças atuais. (Cimi, 1997b: 39)

D i: U S NA A L D E I A 2 6 9

Page 275: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

O trecho anterior expõe uma autocrítica da pastoral indigenis-ta sobre aquilo que ela mesmo percebe como sendo um desequilí-brio: a ação sobre as estruturas concretas que afetam a vida dos índios não pode tornar o missionário um mero militante do indige-nismo, confundindo-o, assim, com todos os outros que lhe com-partilham o campo. A missão, agora, censura em si mesma a falta do que antes havia em excesso. Se em sua fase de orientação encarnacionista a missão deslocava o seu foco do proselitismo reli-gioso para a promoção social, chegamos, na era da inculturação, à situação inversa. A pastoral indigenista, hoje, se vê imersa na tare-fa de injetar a significação religiosa em sua prática, mas de manei-ra a evitar os vícios da missão "tradicional". Ao avaliar o caminho percorrido ao longo dos anos, os missionários identificam o que para eles representam vitórias no campo da inculturação.

Eis alguns exemplos entre muitos outros: os kaingang do Xapecozinho retomaram a prática do Kiki, seu culto aos mortos, após várias déca-das sem praticá-lo. Essa retomada foi conseqüência direta do apoio prestado pelo Cimi desde o final da década de 1970. A área indíge-na Xapecó (sc) é a única onde o povo kaingang ainda pratica este ritual, conduzido por rezadores dali e da área indígena Palmas (PR). Outro importante resultado foi a revitalização da prática tradicional religiosa guarani. Entre os quatro povos indígenas no município do Oiapoque a religião se tornou o eixo propulsor e a força motora que levou à demarcação de seu território e ao enfrentamento dos proble-mas relativos a saúde, educação, alternativas econômicas e revalori-zação de suas culturas. Entre os xavante houve um trabalho sistemá-tico visando à inculturação da liturgia. (Cimi, 1997b: 38)

Esses excertos de experiências positivas de inculturação, no entanto, não tocam no que há de mais delicado e desafiador na pro-posta inculturativa. Esses casos insistem apenas no apoio missioná-rio à retomada, pelos índios, de antigas práticas religiosas que a mis-são de outrora fizera desaparecer. Não que um esforço desse tipo

Page 276: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

tenha pouca importância. Mas lembremos que o projeto da incultu-ração propõe um desafio ainda maior, que é articular essas atitudes de respeito pela alteridade cultural com a propagação do núcleo fun-damental da mensagem cristã, se é que tal articulação não seja uma contradição em seus próprios termos. Conforme nos dizia Crollius (1986), a missão deve não apenas fazer com que a experiência cris-tã se torne parte constituinte da cultura do outro, manifestando-se no código nativo, mas possibilitar igualmente que essa experiência encarnada "anime, oriente e inove" a cultura — o que, por sua vez, agiria em benefício da Igreja universal. Uma outra definição teológi-ca da inculturação apresenta desafios semelhantes:

O que, então, é inculturação? E a relação dinâmica entre a mensa-gem cristã e a cultura ou culturas; uma inserção da vida cristã den-tro da cultura; um processo corrente de assimilação e interação crí-tica e recíproca entre elas. (Azevedo, 1982: 11)

Essa tentativa de definição do que seja a teologia da incultu-ração, como todas as outras com que nos deparamos, traz uma ampla margem para a manipulação teórica, pois constrói o seu argumento sobre conceitos e noções cujas interpretações e usos são distintos. O que, em nosso entender, permite que setores ecle-siais de orientações doutrinárias tão diversas façam uso do mesmo instrumental, sem que tenham de sacrificar os seus modelos de Igreja e ação pastoral. Afinal, o que pode significar uma "interação recíproca e crítica" entre a vida cristã e a cultura? O que se quer dizer por assimilação entre a cultura indígena e o cristianismo, ou quem assimila ou é assimilado?

U M A T E O L O G I A DE S I T U A Ç Ã O

O Cimi aproveita, em benefício de seu projeto pastoral, essa lassi-dão conceituai acerca da inculturação. Como muitos outros agen-

Page 277: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

tes envolvidos nas disputas em torno do conceito, a pastoral indi-genista luta o bom combate, lançando mão, por um lado, da vola-tilidade do debate e, por outro, de sua intensa produção de repre-sentações e narrativas que tematizam a sua própria prática entre os índios. A pastoral indigenista se adiantou às outras pastorais na emissão de experiências, avaliações e propostas de inculturação. Quando a expressão "inculturação" começou a sua trajetória ascendente nas falas e textos da Igreja brasileira, o Cimi, em certa medida, já estava "proficiente" nessa nova linguagem.33

O que, no entanto, diz a pastoral indigenista acerca da incul-turação? Talvez a melhor resposta seja entender o que ela não diz: ela certamente resiste a qualquer tentativa de enxertar em seu horizonte de atuação uma preocupação em introduzir a "experiên-cia cristã", mesmo que "traduzida" para o código cultural e simbó-lico do outro. Arriscamo-nos a pensar que, surpreendentemente, ela faz o duplo movimento de saturar os usos e as referências à noção para, no passo seguinte, implodi-la. Isso pode parecer con-traditório, principalmente se considerarmos o que já expusemos antes quanto ao fato de a pastoral indigenista ter encontrado na inculturação uma estratégia para "desmontar" o oprimido em seus componentes indígenas. Mas não é. O que esses missionários que-rem evitar é a constituição de um novo paradigma evangelizador que, absolutamente versado na compreensão da cultura, reedite o proselitismo evangélico em uma forma palatável à sensibilidade contemporânea por meio da "técnica antropológica".34

Em seu último discurso à Assembléia Geral da CNBB na con-dição de presidente do Cimi, dom Erwin Krautler, bispo do Xingu que por oito anos, respondeu pela pastoral indigenista perante o episcopado nacional, realiza uma exposição muito significativa para o que estamos querendo expressar.

A verdadeira inculturação — o enxerto do Evangelho nas culturas indígenas — é um imperativo antropológico e um indicativo teológi-co estreitamente ligado ao mistério da Encarnação. "Como Cristo,

Page 278: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

por sua encarnação, se ligou às condições sociais e culturais dos homens com quem conviveu, assim deve a Igreja inserir-se em todas essas sociedades, para que a todas possa oferecer o mistério da sal-vação e a vida trazida por Deus" nos ensina "Ad Gentes". Puebla, citando Santo Irineu, afirma a mesma verdade em outras palavras: "O que não é assumido não é redimido". O problema da incultura-ção, portanto, não é de ordem teológica. E de ordem prática e con-juntural. Está na hora de crescer entre nós a consciência de que todos — mesmo depois da opção preferencial pelos pobres — con-tinuamos prisioneiros da cultura dominante. Por isso, a questão da inculturação não é um problema particular da pastoral indigenista. (Krautler, 1991: 90)

Essa exposição articula o problema da inculturação não com os imperativos da tradução da "novidade cristã" para as culturas indígenas, mas com o mistério da encarnação de Cristo, que adentrou simultaneamente na cultura e nas condições sociais "dos homens com quem conviveu". A "verdadeira inculturação" é um problema de ordem prática e conjuntural; ela resgata ainda o tema da libertação dos homens. Se a Igreja realizou um salto em sua "opção preferencial" em Santo Domingo, indo do pobre ao "outro", caberia lembrar, afirma dom Erwin, que continuamos todos prisioneiros. Prisioneiros das estruturas sociais já denuncia-das em Medellin, e prisioneiros igualmente da cultura dominan-te e dos valores morais que acompanham essas mesmas estrutu-ras. A noção de inculturação, implícita nessa fala, propõe, portanto, um sentido especial para o ingresso da Igreja brasileira no debate: não se trataria de pensar em uma "inculturação de fronteira",35 preocupada com as situações-limite em que o Evan-gelho e as experiências cristãs possam ser manifestadas a partir da própria cultura, mas de uma "inculturação do cotidiano", estreita-mente vinculada à "velha" pauta da libertação, a libertação da cul-tura dominante.

Page 279: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Quando a unidade simbólica é expressão de uma centralização administrativa, sem correspondência ao chão cultural diversificado das nossas comunidades, os símbolos e sinais escondem mais do que revelam. E o clima favorável para o sincretismo. A inculturação, que não deixa de exigir um certo pluralismo pentescostal, é o fim do sincretismo. Já que não podemos viver o Evangelho sem mediações culturais, a monocultura sempre revela um sincretismo latente e uma cultura dominante, (idem)

A pastoral indigenista, em nosso argumento, afirma uma posi-ção cautelosa diante de um certo alvoroço provocado pelo debate da inculturação. Na condição de quem guarda as marcas da expe-riência de campo e de quem está permanentemente envolvido com as realidades sociais "outras", os missionários expressam um enten-dimento circunspecto da questão. Se é do "chão cultural" de cada uma das realidades sociais com as quais os missionários atuam que deve brotar, espontaneamente, a unidade simbólica, então não caberia à Igreja preocupar-se com aquilo que surgirá em seu devi-do tempo. Afinal, a missão inculturada não quer uma homogenei-zação sincrética, em que o simbolismo resultante sirva para enco-brir os sinais dissonantes e as diferenças irredutíveis.

Antes de atingir essa unidade simbólica — tida como distan-te dos horizontes da Igreja no Brasil pelo muito que ainda há de ser feito em relação às lutas pela libertação da "dominação cultu-ral" — a pastoral indigenista propõe perseguir uma outra utopia: as Igrejas índias. Essas Igrejas, referidas no plural, estão evidente-mente em um horizonte distante. Porém, elas comporiam, ao menos, um quadro mental possível de se imaginar, diriam os mis-sionários. Essas Igrejas pluriculturais e pluriétnicas seriam consti-tuídas pelos próprios nativos, teriam suas formas litúrgicas pró-prias e "leriam" a doutrina cristã a partir de suas experiências. Para nós, quando esses missionários falam em Igrejas índias como parte de um horizonte possível ao projeto pastoral da missão, eles não estão retirando à utopia a sua natureza irrealizável. Estão sim resis-

Page 280: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

tindo a um discurso de inculturação, talvez hegemônico, que pres-supõe — se levarmos a teoria a suas últimas conseqüências — a instauração de uma unidade simbólica centrada naquilo que é vagamente definido como "núcleo" da mensagem cristã.

A construção do edifício teórico da inculturação proposta pela missão no Brasil começou pela implosão do holograma referido anteriormente. Os objetos da ação evangelizadora não são mais encontrados em um mesmo locus, ao redor do qual o olhar missio-nário costumava enxergar diversos planos, diversos povos, diversas faces, gradualmente revelados a cada mudança de ângulo. Estão agora, ao contrário, dispersos no espaço, ao redor da missão, des-locando-se nas direções mais variadas. Ao processarem uma forma própria de inculturação, os missionários reconhecem quão intan-gível é a alteridade e admitem não poder alcançar muitas de suas manifestações. A missão se apequena diante da grandiosidade da cultura.

Page 281: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)
Page 282: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

7

T R A D U Ç Ã O E M E D I A Ç Ã O : M I S S Õ E S T R A N S C U L T U R A I S E N T R E

G R U P O S I N D Í G E N A S

Ronaldo de Almeida

UM DOS FENÔMENOS SOCIAIS mais significativo no Brasil atual-mente diz respeito à expansão evangélica, parte dela realizada por agências missionárias cuja referência teológica principal é a matriz evangélico-fundamentalista de origem anglo-saxã (Fernandes, 1980; Neil, 1964). O Brasil pode ser considerado uma etapa de um movimento missionário transnacional, que aqui adquiriu cores locais e potencializou o impulso salvacionista desses religiosos. Nesse macroprocesso o país ocupa um lugar estratégico na medi-da em que se tornou pólo emissor de missões evangélicas para sociedades de tradição católica e aquelas não estruturadas sobre o que genericamente chamamos de "cultura cristã". Para ser mais preciso, a expansão dá-se em duas direções: por um lado, as mis-sões foram para América Latina, Ãfrica portuguesa e países islâmi-cos; por outro, elas foram em direção às sociedades indígenas no interior do país.1

O objetivo específico deste capítulo é analisar os processos de tradução cultural da religião evangélica para grupos indígenas via atividade missionária. Se esse é o foco de observação, o problema

Page 283: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

propriamente teórico refere-se aos mecanismos de mediação cul-tural ativados no movimento de universalização da religião evangé-lica. Quando falo em tradução cultural tenho em mente a versão da Bíblia para as línguas indígenas (atividade considerada princi-pal pelos missionários-lingüístas evangélicos), mas também o pro-cesso de doutrinação que implica a vivência prolongada com os grupos indígenas e a tentativa de inserção de valores, comporta-mentos, práticas etc. Não se trata, portanto, somente da tradução de um livro, mas de uma atividade religiosa com vários planos de interação, a saber, os diretamente problematizados pelas missões (comportamento, moral, ritos, mitos) e outros que a princípio não são o foco central da sua atividade (organização social, economia, relações políticas, localização geográfica etc.), mas sobre os quais e em diferentes intensidades as missões repercutem, assim como a partir deles são reelaboradas.

O argumento é de que a tradução cultural ocorre como um processo desigual de mediações em diferentes planos da vida social com ajustes sucessivos dos diferentes códigos culturais. Os mal-entendidos construídos na evangelização são ajustados, variando conforme as situações específicas, e a compatibilização entre os diferentes códigos sempre resulta na construção de um novo con-junto de sentidos. Dessa forma, penso o ideário missionário inse-rido em um fluxo de adequações. Por ser uma "ponta-de-lança", a tradução missionária ocorre por meio de uma negociação de senti-dos que refaz as idéias e práticas religiosas com a finalidade de universalizar ainda mais a própria religião evangélica.

Para investigar a ação missionária adotei como procedimento metodológico a análise comparativa de diferentes contextos. Isso porque o assentamento pretendido em uma sociedade indígena tem resultados com significativa imprevisibilidade de acordo com diversas monografias. Em muitas, a missão simplesmente não con-segue ter entrada; em outras, é muito freqüente a inconstância dos índios no pertencimento ao grupo religioso; ou, ainda, a mensagem pode ser transformada em algo muito diferente da intenção dos

Page 284: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

missionários. Todas essas possibilidades são em parte verdadeiras para o conjunto das atividades missionárias na região tratada neste capítulo, onde se encontram os grupos indígenas karipuna, galibi-marworno e palikur — localizados na região do Oiapoque, estado do Amapá, na fronteira do Brasil com a Guiana Francesa — e entre os waiãpi — localizados na Terra Indígena Waiãpi no Centro-Oeste do mesmo estado. Como será visto mais adiante, por estarem nas margens da expansão do cristianismo, as missões articulam seus fundamentos ora os adequando como no caso do xamanismo, ora os reafirmando combativamente principalmente contra o catolicismo.

R E L I G I Ã O E C U L T U R A

As missões cristãs debatem (e debatem-se sobre) como tratar sím-bolos, costumes, ritos, cosmologias, enfim, um conjunto de artefa-tos nativos que, segundo elas, define uma determinada sociedade como uma unidade cultural e, por conseguinte, não deve ser dis-solvido no processo de universalização do cristianismo. As missões católicas e evangélicas resolvem esses problemas de formas dife-rentes, mas em ambas a cultura é entendida como algo da "essên-cia" de uma sociedade e, por conseqüência, o lugar de expressão da dimensão religiosa constitutiva da "natureza humana". Transcul-turação e inculturação são algumas das formulações teo(antropo)-lógicas do universo cristão no equacionamento das dimensões da religião e da cultura. A seguir analiso como a concepção ontológi-ca dessas dimensões estrutura o procedimento das missões trans-culturais evangélicas, tendo como contraponto os procedimentos da missão inculturada católica.

A missão transcultural é formulada em seminários evangélicos nos quais são ensinadas lingüística e antropologia, além de conhe-cimentos técnicos como os de enfermagem, mecânica e pedago-gia, que facilitam a entrada de missionários nas áreas indígenas. As

Page 285: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

transculturais abrangem a quase totalidade das instituições evan-gélicas entre sociedades indígenas no Brasil e podem ser circuns-critas em torno de um mesmo conjunto de preceitos de matriz evangélico-fundamentalista, a saber: o salvacionismo, a expectati-va escatológica, a mudança de comportamento via código moral, a introdução de novos rituais, a formação de lideranças religiosas nativas e, por fim, a ênfase na tradução da Bíblia cujo pressuposto exegético é a interpretação literalista (por isso, fundamentalista) do texto sagrado.

A formação de lideranças religiosas nativas e a Bíblia vertida para a língua indígena são os principais indicadores de uma socie-dade já "alcançada pelo Evangelho", entenda-se, um grupo capaz de manter a religião e de difundi-la por meio de missionários indí-genas. O "retorno do messias" (Jesus Cristo) e o "juízo final" ocor-rerão quando todos os "povos" forem alcançados pela mensagem cristã, de acordo com o Evangelho de Marcos (capítulo 16, versí-culo 15). Para as transculturais "povo", cultura e língua são enten-didos como equivalentes, e sua missão é difundir o Evangelho visando não a quantidade de pessoas, mas a variedade cultural e lingüística (Almeida, 2002). Em todo o material de divulgação das transculturais no meio evangélico (âmbito onde elas conseguem financiamento e recrutam pessoas "vocacionadas" para suas ativi-dades), é freqüente a utilização de estatísticas para calcular o pro-gresso da universalização da mensagem evangélica, e os critérios de sucesso são, na maior parte das vezes, a Bíblia traduzida e a for-mação de lideranças religiosas nativas. O esforço missionário pode ser reduzido metonimicamente a esses dois elementos, embora todo o empreendimento não se encerre neles.

Segundo Barros (1993), a lingüística ensinada pelas missões transculturais procura articular a visão científica e a religiosa, como se a segunda estabelecesse os princípios e os limites para a primei-ra.2 A autora destaca duas instituições centrais nesse processo: a American Bible Society (ABS), na década de. 1930, e o Summer Institute of Linguistic (SIL), nos anos 1940. A ABS era uma institui-

Page 286: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

ção norte-americana que servia, principalmente, como avaliadora da tradução da Bíblia do inglês para outras línguas.3 A literalidade, a busca da menor variação no texto, era um valor a ser mantido e sinal de fidelidade à Palavra de Deus. O que se exigia fundamen-talmente do tradutor, e isto legitimava seu trabalho, era ser hones-to e ter fé. A compreensão variaria de acordo com a educação bíbli-ca fornecida pelos missionários. Em suma, critérios morais e religiosos eram as formas de controle da tradução. Nesse momen-to, o tradutor é o centro do trabalho, e sua experiência e entendi-mento da Bíblia garantem a legitimidade do texto vertido.

Em vez de se deter no vocábulo e pressupor a honestidade do missionário, o SIL adotou procedimentos técnicos que compreen-dem a língua como um sistema sincrônico e autônomo com níveis de análise diferenciados. A boa tradução, para o fundamentalista SIL, se faz na fidelidade ao texto original e na obediência à estru-tura da língua receptora. Para tanto, ele acredita na existência de um sentido trans-histórico que deve ser universalizado pelas dife-rentes culturas, e a literalidade é o procedimento mais adequado na tradução. Os principais lingüistas do SIL podem ser divididos em duas gerações. Na primeira, sob influência da lingüística norte-americana de Bloomfield e Sapir, o SIL produziu manuais onde introduziu o conceito de estrutura gramatical como eixo cen-tral da tradução. Na segunda, a partir dos anos 1970, sob a influência de Chomsky, Halliday, Grice, Austin e Pierce, ele passa a ancorar a tradução na estrutura semântica. A menor unidade sig-nificativa seria o "traço semântico" e a maior, o próprio texto orga-nizado como um discurso. Em ambos, o foco da análise dirige-se preferencialmente para o nível das proposições, cujos componen-tes são fornecidos pelo léxico. Em vez de traduzir palavra por pala-vra, a operação é menos fiel aos termos (Barros, 1993: 47).

Para as missões transculturais existem certas concepções de mundo que são verdadeiras e universais, logo, compreensíveis a qualquer diferença cultural. As línguas variariam em suas estrutu-ras superficiais (fonologia, gramática e léxico) e se assemelhariam

Page 287: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

na estrutura profunda (semântica). Assim, busca-se nesse nível o sentido trans-histórico e transcultural da Bíblia. Abandona-se a tradução literal da ABS pela idiomática do SIL, mas sem deixar de manter a literalidade da exegese bíblica, característica da interpre-tação fundamentalista. Como corolário, o nativo (não necessaria-mente crente) torna-se, mais do que o missionário, a peça central na tradução, dado que só ele pode conseguir expressar na sua lín-gua esse sentido universal imanente às culturas.

Apesar do pressuposto da diferença, todas as culturas seriam perpassadas por uma dimensão (a idéia de Deus) que permite a transitividade (ou tradutibilidade) de conteúdos entre diferentes sistemas culturais. Nesse sentido, as missões formam seus profis-sionais ensinando as disciplinas antropologia e lingüística como técnica e não ciência. Técnica porque são ütilizadas sob o código religioso. Assim, o relativismo cultural e o método crítico-histórico são incompatíveis com os pressupostos ontológicos da exegese fundamentalista. A partir de uma perspectiva dogmática, as disci-plinas são utilizadas, por um lado, para legitimar mudanças cultu-rais e, por outro, para viabilizar a propagação do Evangelho.

No processo de tradução da Bíblia, as missões transculturais têm como estratégia utilizar informantes nativos como via de aces-so a uma suposta "cultura autêntica". Na coleta de dados culturais e lingüísticos o missionário privilegia a diversidade de membros do grupo. Jovens, velhos, mulheres, caciques, xamãs, enfim, um amplo leque de indivíduos, faixas etárias e posições sociais que possibili-ta o confronto de versões para a definição das mais recorrentes. Posteriormente, realiza-se a "retroversão", na qual o consultor lin-güístico checa o entendimento dos termos, expressões, estruturas gramaticais e também do sentido religioso. Este último passo é concomitante à doutrinação na Bíblia. Isto é, à medida que os mis-sionários aumentam seu entendimento da cultura, os índios vão sendo simultaneamente educados a interpretar a Bíblia. O proces-so é descrito pelos missionários como uma série de ajustes e apro-ximações sucessivas de sentidos, cujo produto final é a versão da

Page 288: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Bíblia em língua indígena. A tradução ocorre, portanto, tanto de um ponto de vista lingüístico, por meio da Bíblia, quanto de um ponto de vista pedagógico, em razão da necessidade de ensinar uma forma de interpretá-la. Tradução e doutrinação são processos concomitantes, pois é necessário que o informante nativo com-preenda um suposto sentido bíblico verdadeiro para encontrar em sua cultura as noções equivalentes.

Nesse processo, a ação missionária deve privilegiar algumas dimensões da vida social indígena que são relacionadas ao reper-tório evangélico fundamentalista. O "glossário espiritual" — con-junto de termos bíblicos (perdão, salvação, pecado, graça, diabo, juízo final, sacrifício etc.) considerados chaves por circunscrevem o campo semântico que organiza o discurso religioso e revela as dimensões da vida social a serem tematizadas pela missão — é o universo lexical privilegiado no processo de tradução e doutrina-ção. Assim, nem todos os planos da vida indígena são diretamente visados, mas somente aqueles relacionados ao que os missionários denominam "plano espiritual" (o sobrenatural, o pós-morte, a magia, os espíritos, os mitos, os rituais etc.), por um lado, e, por outro, a dimensão moral e comportamental (adultério, alcoolismo, violência etc.).

Chamo a atenção para essas características da missão evangé-lico-fundamentalista com a finalidade de diferenciá-la de outras empresas que, embora estejam inseridas no universo cristão, apre-sentam distinções significativas que resultam na mobilização de outros códigos culturais. Por exemplo, o pressuposto da teologia da inculturação encontrada em setores da Igreja católica é o de que na própria cultura existem valores cristãos (justiça, fraternida-de, amor, solidariedade etc.) que indicam a não-necessidade de proselitismo (Montero, 1996: 120). Segundo a etnografiá de Orta (2000) sobre os aymara do altiplano boliviano (que será discutida posteriormente), antes da inculturação os catequistas nativos eram a demonstração da incompletude da evangelização por não conse-guirem "livrar-se" de conteúdos culturais não-cristãos. Atualmente,

Page 289: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

no contexto da inculturação, isso não é mais obstáculo; ao contrá-rio, o catequista é a via de acesso à cultura autêntica à qual o cato-licismo (uma forma cultural particular do cristianismo) deve agora se converter (Orta, 2000).

Essa face contemporânea do catolicismo da teologia da incul-turação também estabelece pontes com setores do protestantismo histórico na trilha do ecumenismo e do diálogo inter-religioso. Como exemplo, no meio evangélico existem as missões protestan-tes de perfil ecumênico como o GiVlTE (Grupo de Trabalho Missio-nário Evangélico), cujas ações se aproximam das do Cimi (Con-selho Indigenista Missionário) e da teologia da inculturação, cujo enfoque está na educação indígena e na organização política como meio de preservação da posse da terra e de acesso a benefícios estatais ou de fundações e ONGs. Em suma, entre protestantes e católicos existe uma zona de cooperação e tolerância, onde con-cordam sobre certos valores humanistas como justiça social, menor desigualdade econômica, liberdade política e religiosa. Um ambiente de reflexão teológica e, em menor grau, de atuação que dilui as fronteiras entre segmentos católicos e o protestantismo ecumênico (isto é, não fundamentalista).

Diante desses dois modelos (o transcultural e o inculturado), como se dá a ação das missões nas áreas indígenas do estado do Amapá listadas acima? A presença do catolicismo ocorre em duas versões: uma mais tradicional, apoiada na devoção aos santos, e outra com relativa orientação do Cimi nos temas relacionados à educação indígena. Por outro lado, as instituições evangélicas fize-ram-se presentes na região por meio das denominações Batista e Assembléia de Deus e das agências transculturais de origem norte-americana que foram nacionalizadas, a saber, a Sociedade Interna-cional de Lingüísitca (SIL) e a Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB). Na verdade, as trajetórias históricas do cristianismo nos grupos indígenas apresentam relativas diferenças, o que levou as missões a variarem suas estratégias de universalização das idéias e práticas cristãs. Embora o objetivo das transculturais seja o de acessar uma

Page 290: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

idealizada "cultura autêntica", sua atividade no Oiapoque sobrepõe-se aos legados deixados por outras ações religiosas.

No caso dos grupos observados, podem-se fazer as seguintes "regressões". Os palikur foram evangelizados pelo Summer Institute of Linguistic (atualmente a Sociedade Internacional de Lingüística), na década de 1960, quando as lembranças do catolicismo eram remotas. Antes disso, em 1925, o que se destacava, segundo o rela-to de Nimuendajú (1926), eram os pajés e um catolicismo diminu-to, a ponto de atualmente interpretarem o seu passado como um estado de "braveza", de "selvageria", de completa ignorância em rela-ção ao Deus cristão e à civilização, conforme seus próprios termos. Por fim, ainda nos anos 1960, a Assembléia de Deus valeu-se do tra-balho do SIL e de sua tradução da Bíblia para disseminar o pentecos-talismo entre os palikur (Capiberibe, 2001).

Ainda no Oiapoque, entre os galibi-marworno e os karipuna, a ação católica, a partir da década de 1970, visou à educação indí-gena e estimulou o catolicismo tradicional das festas de santos que não excluiu a pajelança (Tassinari, 1998; Vidal, 1996), seguindo assim umas das orientações mais gerais da teologia da incultura-ção. Por outro lado, entre esses dois grupos atua a evangélica Missão Novas Tribos no Brasil (MNTB), que se opõe concomitan-temente à pajelança e ao universo católico de modo geral: ao cato-licismo tradicional, em seus ritos e simbologia, e ao uinculturado\ com sua ênfase na educação e no ativismo político (Almeida, 2002). A acusação das missões evangélicas ao catolicismo é, prin-cipalmente, de idolatria, entendida como qualquer forma de reve-rência à (adoração de) imagem material de um ser humano (tanto um santo quanto o próprio Cristo).4 Sobre as festas dos santos pro-movidas pelo catolicismo, afirma o missionário da MNTB entre os galibi-marworno:

Não é a festa cultural, assim como o Toré. E uma festa católica, da tradição católica. Então pode ver que houve uma mudança muito grande na população indígena quando o catolicismo penetrou. Está

Page 291: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

havendo muita festa, muita bebida, muito estrago e autodestruição do povo. Quando acontece isso, sempre há morte, sempre há brigas, sempre há prejuízos na comunidade. E o povo deixa de sustentar suas próprias famílias como era de costume, antes. O Catolicismo penetrou e jogou muitas coisas dentro da cultura. (Almeida, 2000)

Logo em seguida, o missionário da MNTB relacionou ainda o diabo aos rituais do Toré, nos quais o pajé convocaria os espíritos malignos. A interpretação é dupla: a pajelança deve ser negada por ser diabólica, mas ela expressa também uma relação com o sobre-natural, o que denunciaria uma idéia nativa (natural) de Deus; porém ela é errada. E o catolicismo é culpado por distorcer ainda mais essa idéia e aumentar a confusão moral ao anunciar um falso cristianismo. A missão transcultural, portanto, desloca o catolicis-mo (ou recoloca o cristianismo nos seus termos) e condena a paje-lança, mas simultaneamente atribuindo-lhe idéias cristãs univer-sais (o homem pecador e a necessidade de Deus).

Este último caso aplica-se melhor à situação do grupo waiãpi, localizado no centro-oeste do Amapá, que não teve o mesmo nível de interação com a sociedade não-índia que os grupos do Oiapoque, apesar de a história do contato ser marcada por migrações, guerras e divisões que foram registradas desde o século XVIII (Gallois, .1986). Nesse grupo indígena, a referência principal para a atuação da missão MNTB — que deu continuidade ao trabalho do SIL ini-ciado na década de 1970 — é o universo xamânico, sem a media-ção do catolicismo. A proposta é de "remodelar" a idéia "mínima" de Deus desconstruindo o xamanismo em termos evangélicos.

O que se verifica nesses casos é que as atividades dos missio-nários transculturais da MNTB e do SIL, por um lado, e da teologia da inculturação, por outro, assemelham-se na tentativa de encon-trar na própria sociedade "sinais do Reino de Deus".5 Elas partem de uma espécie de teologia natural em que a idéia de Deus se encontra em qualquer sociedade e a natureza atesta a existência real de um ser superior e criador do mundo. Assim, em diferentes

Page 292: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

níveis e a partir de diferentes orientações, a transculturação e a inculturação procuram (ou constroem) dimensões universais nas culturas indígenas reveladoras da idéia "natural" de Deus, o que resulta em pensar o cristianismo como um valor autóctone. Essa noção de cultura dos religiosos ancora-se nos pressupostos da fenomenologia da religião para a qual todo homem busca o senti-do de sua existência e a religião é o lugar universal onde esta pro-cura é experimentada (Eliade, 1987, p.93). Nessa perspectiva ontológica — presente em parte da tradição da História das Religiões como na obra de Mircea Eliade — a própria idéia de cultura é compreendida como variação de uma natureza humana que em si é religiosa. Dessa forma, a universalidade do homo religiosus se manifesta na particularidade das culturas.

Onde, então, estaria a diferença entre a transculturação e a inculturação? Conforme Rufino (1996: 167), em sua análise sobre a pastoral indigenista católica contemporânea, a inculturação "cala-se" quanto à evangelização, pois entende as culturas como expres-são da "natureza humana", como se todas elas trouxessem em si de forma plena as verdades religiosas cristãs anteriores ao próprio catolicismo. A inculturação busca despertar nas culturas valores universais como o amor e a justiça, cuja maior expressão teria sido Jesus Cristo. O procedimento missionário é o de extração destas "verdades universais". Simétrica e inversamente a essa definição, diria que as missões transculturais "anunciam" o Evangelho (no sentido de proclamar uma revelação) às culturas, pela escrita ou pela oralidade, remodelando o universo de valores, rituais e com-portamentos, segundo os parâmetros da religiosidade evangélico-fundamentalista, que variam de acordo como o tipo de agente (presbiterianos, batistas, da Assembléia de Deus, entre outros). A despeito de possíveis juízos de valor, a diferença entre calar e anunciar resulta em padrões de interação variáveis. Como a ação inculturada católica é considerada menos intervencionista e mais auxiliadora da luta política dos índios do que a transcultural evan-

Page 293: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

gélica, as avaliações do movimento indigenista, sobretudo, tendem a considerar aquela forma de missão melhor do que esta.

Sem querer cair em um anacronismo, mas apenas com a intenção de ampliar a comparação entre tipos de empresa missio-nária, o procedimento das missões transculturais, quando compara-do ao católico, aproxima-se mais do modelo jesuíta do período colonial do que da "inculturação" contemporânea. Isto é, os jesuí-tas não encontraram entre os tupi-guarani a idolatria do mundo pagão, mas sim uma ausência de religiosidade que foi considerada sinal de selvageria. Mas, para viabilizar a catequese, foi necessário atribuir aos indígenas uma idéia "mínima" de Deus em baixo-relevo. O procedimento de tradução jesuíta reduziu o universo cosmoló-gico às categorias cristãs. Segundo Pompa (2001: 186), os jesuítas transformaram a oposição inicial de religião verdadeiro/ falso no binômio presença!ausência. A catequese procurou construir uma mediação com o universo tupi-guarani e encontrou no xamã o locus privilegiado de atuação. A religiosidade dos caraibas era entendida como falsidade resultante da distorção diabólica, mas também como a presença da idéia de Deus. Assim, Tupã expressou a idéia do deus poderoso e criador cristão, e os espíritos da flores-ta, os demônios da Bíblia (Shapiro, 1987: 129).

Se anteriormente a evangelização jesuíta dos tupi-guarani pautou-se pela conversão à simbologia cristã, com a teologia da "inculturação", ao contrário, esse modelo de missão foi condenado por ter sido considerado uma imposição do conquistador a outras tradições culturais. O modelo"inculturado" positiva aquelas dimen-sões da vida indígena que foram demonizadas pelos jesuítas. Agora, elas são sinais de identidade, logo, sujeitas à preservação, pois nelas se encontram os verdadeiros valores universais cristãos. Shapiro (1987) define como evoluiu a perspectiva missionária católica do período colonial no Brasil ao contexto pós-Vaticano II: primeiro, a Igreja precisou demonizar os mitos e rituais indígenas, depois,' catequizou recuperando a idéia natural de Deus, por fim, se inculturou abdicando do padrão clássico de conversão.

Page 294: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Assim como na empresa jesuítica, para as missões transcultu-rais o xamanismo é o alvo privilegiado do processo de tradução. Elas exercem suas atividades tendo como planos especulares esse universo simbólico e o seu agente prático, o xamã, que é conside-rado uma espécie de depósito da tradição cultural. Nele se encon-traria a dimensão religiosa existente em qualquer sociedade. Entretanto, o erro dos indígenas consistiria em não entender que o xamanismo e seus espíritos são manifestações de seres malignos — o diabo e seus demônios. Se existe uma idéia de Deus, o mesmo vale para o diabo. Essa formulação se verifica em todos os missionários atuantes na região. Segundo o depoimento do pastor da Assembléia de Deus entre os wayana e apalai (na reserva do Tumucumaque, fronteira do Amapá com o Pará), a pajelança está associada ao espiritismo e à macumba. O pastor wayana, em ser-mão proferido sobre uma passagem da Epístola a Tiago, no templo de sua aldeia, pregou que era necessário tomar cuidado com o que se fala e se ouve, pois o diabo poderia estar por perto tentando o homem a pecar. Basicamente ele associou a figura do diabo às prá-ticas como intriga, inveja, calúnia, fofoca, que se expressam nos atos de falar e de ouvir falar mal de alguém.

Na tradução do missionário os nomes que os próprios waiãpi denominam seus espíritos são usados para o diabo e demônios. Os xamãs emprestam o nome aos feiticeiros que são necessariamente associados na Bíblia à malignidade. Entretanto, o missionário ainda conferiu ao xamã duas habilidades: conhecimento de ervas para a cura do corpo e sua capacidade de dar alívio psicológico aos índios em momentos de aflição. Ou seja, embora seja o represen-tante da malignidade do universo cultural indígena, o xamã detém também o conhecimento fitoterapêutico e a ascendência moral sobre o grupo, principalmente no aconselhamento de doentes e aflitos. Assim, ele não é condenado em sua totalidade, mas é acei-to como técnica, sem a dimensão referente a crenças e rituais. Essas qualidades são admitidas pelo missionário como sendo cul-turais, entenda-se, "neutras espiritualmente", logo, devem ser parte

Page 295: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

de uma atividade de preservação. Preservar a cultura é incentivar qualquer prática ou idéia que não se refira ao "plano espiritual". Este, ao contrário, deve ser regenerado e transformado devido a uma natureza humana "decaída". Tudo aquilo que é representado pelos missionários como sendo parte de um suposto sistema reli-gioso nativo (mitos, ritos, comportamentos, moral, símbolos, entre outros) é alvo de conversões. A dimensão religiosa atribuída aos waiãpi pelos missionários está sujeita à mudança cultural, ou, melhor, à conversão ao universo cristão. Na verdade, o termo uti-lizado pelo missionário foi "remodelação", não transformação. Isso porque entre os waiãpi já existe a idéia confusa de Deus que necessita se expandir como visão de mundo.

Como afirmado pelo missionário em seus depoimentos, o apren-dizado mais fácil do xamã sobre o cristianismo deveu-se à sua inti-midade com o mundo dos espíritos. Nessa declaração, assim como em outras tantas, o xamanismo não é negado como um sistema de crenças. Ao contrário, ele é admitido como real e eficaz, mas neces-sita ser "remodelado" à gramática cristã, ou seja, o verdadeiro entendimento implica associá-lo às ações do diabo cristão. A prin-cípio, a missão fundamentalista não admite a manutenção das prá-ticas tradicionais de cura, mas a persistência dos índios em recor-rer ao xamanismo gera no missionário o procedimento de separar, via doutrinação, os aspectos técnicos dos espirituais. Para legitimar a não-oposição ao xamã, o missionário promove o despovoamento do universo dos espíritos, reduzindo-os à categoria diabólica, e simultaneamente recupera-o como procedimento terapêutico. Dessa forma, ele ajusta sua pregação às práticas tradicionais e defende um discurso de preservação cultural aprendido mais recen-temente nos centros evangélicos de formação missionária. Paradoxalmente, o xamã é a fonte do missionário para acessar a "cul-tura nativa", e o "sucesso" da evangelização encontra-se idealmente na superação do xamanismo como rito e visão de mundo.

A continuidade invertida com o universo do xamã não é unilate-ral. Boa parte da literatura sobre a evangelização de sociedades indí-

Page 296: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

genas relata diversos casos em que o missionário é associado pelos índios aos xamãs. Esse processo já foi verificado na empresa catequé-tica jesuíta entre os tupi-guarani no período colonial. Se os jesuítas cristianizaram a cosmologia desses índios estabelecendo a equivalên-cia entre o Deus cristão e Tupã, os índios incorporaram os missioná-rios como detentores de poderes xamânicos capazes também de pro-mover curas (Shapiro, 1987: 130; Viveiros de Castro, 1992: 33).

Em contextos contemporâneos da Amazônia, Capiberibe (2001), ao analisar o diário da missionária do SIL entre os palikur, mostra como Diana Green tinha consciência de que os índios a compreenderam segundo a lógica do xamanismo, quando orou por uma pessoa que se encontrava doente (p. 156). Nesse .confronto de interpretações sobre o mundo e a existência se estabelece um espelhamento em que cada um enquadra o outro em suas catego-rias, de tal maneira que a tradução passa necessariamente por um processo de redução do outro. Tudo se passa em um espaço-tempo de negociação paciente que varia de caso a caso e cuja expectati-va missionária é de que certas práticas serão abandonadas nas gerações seguintes. Assim, a Bíblia não é somente a mediação entre Deus e os homens, conforme a clássica teologia protestante, mas sua tradução pode ser considerada o resultado prático de um longo processo de mediação cultural, cuja maior ou menor eficá-cia na transmissão de certos conteúdos variará de acordo com os contextos específicos e os agentes da mediação.

P O R D E N T R O DO M A L - E N T E N D I D O

Gallois & Grupioni (1999), ao descreverem uma aldeia waiãpi que viveu um período de contato com os missionários da MNTB, pro-põem uma leitura crítica das suas atividades, entendendo-as como desestabilizadoras da ordem tradicional. "Nossa intenção é mos-trar que o impacto da mensagem cristã da igualdade entre todos os

'filhos de Deus' atinge esses povos não em seu sistema religioso, mas

D E U S NA A L D E I A 291

Page 297: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

em sua capacidade de se posicionar — no plano político e cultu-ral mais amplo — enquanto minoria diferenciada da sociedade dominante." (p. 80, grifos meus.) Em sua reflexão, os autores ainda descrevem as estratégias e os pressupostos antropológicos implícitos na ação missionária evangélica, neles encontrando prin-cipalmente a influência da antropologia norte-americana, que compreenderia a cultura a partir de "traços" expressos no compor-tamento e nos costumes. Partindo de uma mescla de concepções evolucionistas, funcionalistas e interpretações psicoculturais para respaldar suas atividades, a missão entenderia cultura como dinâ-mica, logo, sujeita à evangelização (p. 105).

Para os autores, o pouco de sucesso alcançado pelo missionário entre os waiãpi deveu-se mais ao assistencialismo nas áreas de saúde e educação — que causou uma relação de dependência e enfraque-ceu a capacidade dos índios de "autodeterminação" — do que pro-priamente à eficácia do discurso religioso. Nesse sentido, a oferta de serviços não fornecidos pelo Estado — por meio da Funai ou da Funasa — é substituída pela ação das missões que contam com suporte material como transporte aéreo e fluvial, médicos e dentistas evangélicos que dedicam algumas semanas do ano ao trabalho mis-sionário-assistencialista. Da mesma forma que o assistencialismo aumenta a eficácia da MNTB, as situações de desequilíbrio social cria-riam um contexto favorável à ação missionária. Contudo, apesar do tom crítico ao trabalho da MNTB, a argumentação dos autores procura afirmar que os índios fazem escolhas e adaptações, selecionando fragmentos da mensagem cristã, como se fossem autônomos na pre-servação de suas tradições. Assim, se por um lado os índios são colo-cados em uma relação de dependência que enfraqueceria as frontei-ras da identidade waiãpi, por outro, eles seletivamente incorporariam alguns elementos do universo não-índio.

E pela proteção e assistência que elas conseguem inserir os grupos indígenas alcançados numa relação de dependência ideológica, social e econômica, debilitando sua capacidade de adaptação às relações

Page 298: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

com a sociedade envolvente. Concluímos também pela distância radi-cal entre as incorporações realizadas pelos índios e os propósitos das missões. A revelação que elas propõem se quer absoluta, ao passo que os índios escolhem adaptações selecionando fragmentos da mensagem. (Gallois & Grupioni, 1999: 119, grifos meus.)

O argumento geral de que os missionários não atingiram os seus objetivos, mas foram outros aspectos que garantiram um rela-tivo desempenho, encontra-se também no trabalho desenvolvido por Vilaça (1996), ao estudar os índios wan , em Rondônia. Antes da chegada da MNTB, esses índios tinham como projeção para o "mundo dos mortos" uma vida só entre consangüíneos e sem afins. A relação de afinidade ocorreria somente neste mundo, e, mesmo assim, o movimento da sociedade Wari' era tentar eliminá-la por meio da consangüinização, da comensalidade e da coabitação com os afins. Mas a consangüinização artificial pode ser rompida em caso de algum conflito pessoal entre eles. Os missionários, por sua vez, pregavam um mundo entre "irmãos de fé", relação social que inclui consangüíneos e afins, e dilui a hierarquia entre eles. A fra-ternidade universal cristã retira o indivíduo do seio da sua família ou grupo e o liga à "comunidade de irmãos". Assim, a disposição para aderir aos evangélicos teria sido o resultado da identificação, no ideário cristão, da fraternidade universal neste mundo com o constante movimento de consangüinização dos afins.

Segundo a autora, com a chegada da MNTB e a adesão em grupo à pregação dos missionários, os wari' abandonaram as brigas de bordunas, a poligamia, o adultério, os rituais de canibalismo funerário e a bebida alcoólica, em resumo, aspectos da vida social que levavam à reafirmação da afinidade. Décadas depois, a religião evangélica foi abandonada porque o problema da afinidade se sobrepôs à fraternidade universal apregoada pelos missionários, desestruturando as relações entre os "irmãos de fé". De acordo còm Vilaça (1996), não havia ocorrido um encontro de cosmolo-gias como pensavam os missionários, mas um encontro de socio-

Page 299: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

logias. A autora argumenta que o sucesso momentâneo das mis-sões deveu-se a um "mal-entendido" entre a intencionalidade das missões e a recepção dos índios. Nesse "mal-entendido" a estrutu-ra indígena incorporou o evento missionário à sua lógica, da mesma forma como o capitão Cook foi compreendido pelos havaianos como Lono (Sahlins, 1987:141).

Entretanto, a meu ver, para pensar em termos de mal-entendi-do e, por conseqüência, sustentar a idéia de ineficácia das missões, essa abordagem acaba partindo do ponto de vista da intenção dos agentes missionários, captado principalmente no plano do discurso (a "comunidade dos irmãos" entre os wari' e o "sistema religioso" entre os waiãpi). Isto é, parte-se do próprio ideário das missões quanto aos propósitos da evangelização, em seguida, compara-se (mede-se) sua eficácia em "converter" os índios ao cristianismo, na prática e na representação do mundo e da existência. Ao final, a conclusão é a de não-correspondência entre a intenção dos agen-tes e os resultados das suas ações.

O argumento da ineficácia do discurso da missão — o conteú-do doutrinário da MNTB não gerou a adesão dos índios, mas sim um "mal-entendido" — se fundamenta na idéia de incompatibilidade entre formas distintas de pensamento. Na interpretação de Vilaça (1996), pode-se inferir que os warf estavam distantes da com-preensão do pensamento religioso cristão e da lógica da interven-ção divina.

Um xamã wari' é aquele que vê, enquanto um padre católico ou um missionário protestante é aquele que crê, sem experiência objetiva do alvo de sua crença (e de suas dúvidas). [E conclui:] O que fize-ram não foi estabelecer com ele uma relação de crença/dúvida, mas digeri-lo, incorporá-lo ao seu universo, despindo-o de seus atributos divinos, humanizando-o e afinizando-o. (Vilaça, 1996: 116)

De fato, é muito plausível que a tradição cultural de cada grupo indígena se imponha (no sentido de ser englobante) à ação

Page 300: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

de poucas pessoas com círculos de reciprocidade restritos, como os missionários. Como uma espécie de "posto avançado", a missão atua com uma estrutura mínima, na medida do possível reduzida à disposição e à capacidade do missionário e de sua família. A mis-são é uma ação especializada e desempenhada por um pequeno grupo de profissionais religiosos em diferentes contextos sociais, logo, não se trata de um "encontro" entre agrupamentos sociais como nos processos migratórios, mas de uma ação pontual. E no jogo de interações entre o sistema religioso condensado em um agente estrangeiro e a ordem social histórica, as sínteses são pro-duzidas no plano local. Sobre a expansão do sistema mundial no setor transpacífico, disse Sahlins:

[...] no que diz respeito ao encontro intercultural, deveremos exami-nar como povos indígenas tentam integrar a experiência do sistema mundial em algo que é lógica e ontologicamente mais inclusivo: seu próprio sistema de mundo. (Sahlins, 1988: 51)

Como exemplo, Wright (1999) mostrou como a missionária Sophie Müller, da Cruzada de Evangelização Universal, em 1950, teria sido eficaz na conversão dos baniwas por ter sido incorpora-da a uma estrutura preexistente. O salvacionismo de Müller recusou a manutenção de elementos da cultura baniwa como o caxiri, o xamanismo, o tabaco e as plantas sagradas, associando-os ao diabo. Sua pregação escatológica, de tradição adventista, fez com que os baniwa a associassem a figuras milenaristas do século XIX. As etnias kuripako, kubeo, guayabero, piapoco, guahibo, cuiva, saliva e baniwa, principalmente esta última, passaram por três momentos de efervescência religiosa. Na segunda metade do século XIX, os xamãs Anizetto e, décadas depois, Kamiko incorpo-raram elementos do cristianismo e promoveram um grande movi-mento milenarista e messiânico que marcou essas sociedades. Segundo Wright (1999: 172), os "ensinamentos evangélicos foram moldados a processos preexistentes, particularmente relacionados

Page 301: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

à produção de novas gerações de crentes adultos", no período pos-terior da missionária Müller. A etnografia dos baniwa nos sugere ainda que o evento não só foi incorporado pela estrutura mas tam-bém se tornou estrutural. Assim, a seqüência de atividades evan-gelizadoras decanta algumas idéias e práticas que se incorporam aos processos históricos de cada grupo indígena.

Pode-se pensar, ainda, que os santos católicos nas aldeias kari-puna no Oiapoque foram utilizados como "emblemas" de uma dinâ-mica interna de segmentação em famílias, conforme a etnografia de Tassinari (1998). A autora descreve como as aldeias são formadas por redes familiares e têm como nomes os santos católicos. Assim, os santos padroeiros atuam como uma espécie de "operador totêmico" — para utilizar a análise de Sahlins (1979) de como as mercadorias são critério de classificação social na ordem capitalista6 — ao serem a gramática da segmentação social. A unidade católica é segmentada nas diferentes devoções aos santos que se sobrepõem à rede de parentesco. Neste caso, a lógica da Igreja católica e a segmentação karipuna em diferentes aldeias não são incompatíveis. No caso dos karipuna, isso garantiu um enraizamento do catolicismo bastante sig-nificativo na medida em que ele se tornou, entre outras coisas, o demarcador simbólico de uma dimensão da organização social.

Em outro contexto, o missionário da MNTB entre os galibi-mar-worno, também no Oiapoque, até há pouco tempo era visto como alguém que contribuía para o desenvolvimento da aldeia Kumarumã, onde está reunida a quase totalidade desse grupo. Hoje, os principais líderes afirmam que são católicos e não preci-sam da religião do missionário. Assim, do ponto de vista das lide-ranças, uma nova religião representa a possibilidade da fragmenta-ção do grupo; e o mais importante é ter a aldeia unida e submetida ao conselho de anciãos. Nesse caso, o catolicismo é mais apropria-do ao padrão de organização com poder centralizado como entre os galibi-marworno. O catolicismo é visto como um fator de coesão social e o sectarismo evangélico é considerado uma ameaça a algu-mas lideranças indígenas.7

Page 302: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Entre os wayana e apalai, o problema é inverso. Em uma de suas aldeias havia um templo batista, um pastor wayana evangeli-zado por missões batistas quando morou no Suriname e o Novo Testamento em wayana traduzido por um casal norte-americano do SIL. Mais recentemente, um missionário da Assembléia de Deus foi levado por um dos caciques que estavam perdendo auto-ridade para o pastor wayana, e a forma de recuperá-la foi ampliar sua rede de relações por meio da construção de um novo templo. As duas igrejas, Batista e Assembléia de Deus, entraram na lógica da disputa interna. O atual templo batista e o terreno destinado à construção da nova igreja da Assembléia de Deus estão localizados perto, respectivamente, da casa do pastor e da do cacique, além da de seus respectivos parentes. Se nesse caso verifica-se que a lógi-ca local incorporou os interesses dos missionários, por outro lado, a fragmentação evangélica — resultante de sua institucionalidade sectária (Troeltsch, 1987) — ajustou-se à disputa interna.

Em suma, o dinamismo das relações de poder se articulou à lógica institucional de católicos e evangélicos. A Igreja católica é uma instituição totalizante, diferente do fracionamento das denomi-nações evangélicas, entretanto, os santos padroeiros se articulam à separação das famílias no jogo das diferenciações sociais dos karipuna enquanto a fragmentação denominacional evangélica serviu às dis-putas entre os wayana e apalai.

Pelos dados etnográficos e por boa parte da literatura etnoló-gica, a adesão dos índios na Amazônia à religião evangélica, e mesmo à católica, tem sido marcada pela inconstância dos fiéis, que oscilam na sua freqüência à igreja. Assim como aderem todos juntos, eles abandonam também em grupo a religião (Viveiros de Castro, 2002; Vilaça,1996, Wright, 1999). Os palikur da Assem-bléia de Deus são inconstantes na prática da religião. Quando não estão freqüentando a igreja consideram-se "desviados", o que ocor-reu diversas vezes na vida de todos os índios, segundo seus depoi-mentos (Capiberibe, 2000). Contudo, a inconstância dos índios ocorre de forma similar nos centros urbanos. O "desviado" é uma

Page 303: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

categoria no sistema religioso evangélico, cuja solução é a "conci-liação com Deus", que é um momento preciso de qualquer culto da Assembléia de Deus. Nessa denominação, conforme observado em outras pesquisas sobre o universo pentecostal em áreas urba-nas, a inconstância dos fiéis, em boa medida fruto das exigências comportamentais, é uma constante estrutural.

Em suma, a solução do mal-entendido ou a idéia de que os eventos (aquilo que é externo ao universo indígena) são incorpora-dos pela estrutura nativa tende a não levar em consideração a dinâ-mica das próprias religiões, suas lógicas de funcionamento e estra-tégias de ação. Não é novidade que qualquer tradução incorre em traições; no entanto, as conclusões a partir do mal-entendido ten-dem a reafirmar o fracasso da empresa missionária, uma vez que os resultados não correspondem às intenções iniciais. Essa argu-mentação, por um lado, incorpora o próprio ideário missionário como padrão de medida e, por outro, reduz os planos de interação. Uma das respostas a essa argumentação é que se se parte dos ideais missionários, deve-se também medir a eficácia segundo seus critérios de "sucesso". Isto é, se certos grupos se reconhe-cem e são reconhecidos como evangélicos, que sentido há em afirmar que os missionários não atingiram o "sistema religioso", por exemplo?

Isso, todavia, não significa abandonar por completo a sugestão do mal-entendido, mas simplesmente colocá-lo de outra forma, não para reafirmar a diferença, mas para pensá-lo como um produ-tor de diferenças. Se as missões provocam a formação de vínculos pelo assistencialismo, nada impede a ampliação de outras áreas de recíprocas influências. Os círculos de reciprocidade são criados em vários planos: econômico, prática médica, organização política e o universo que envolve o xamã. Nesses espaços se estabelecem negociações de sentido, prática e comportamento. Trata-se de zonas de indeterminação e comunicação nas quais pode se estabe-lecer uma relação sistêmica de fluxo de sentidos com intensidades e planos diferentes.

Page 304: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Quanto à eficácia da evangelização, ou seja, da própria tradu-ção da religião, percebe-se a apropriação e a reelaboração por parte dos índios dos elementos cristãos, como se a lógica local, de certa forma, se apropriasse seletivamente do que lhe é exógeno. Entre-tanto, ao se observar o ponto de vista da missão, estratégias de ação e critérios de sucesso, constata-se que, apesar da rigidez da pregação, a exegese bíblica desses religiosos permite, na prática efetiva da evangelização, uma "maleabilidade" na significação dos fundamentos, mas sempre vistos como atemporais e ontológicos. A princípio paradoxal, o fundamentalismo evangélico se apresenta rígido ao mesmo tempo que adaptável. Se é possível falar em in-compreensões (mal-entendidos), elas são recíprocas. E se os evan-gélicos fundamentalistas se satisfazem com o seu trabalho, não seria interessante pensá-los mudando na sua expansão?

M E D I A Ç Ã O E R E S S O N Â N C I A

O fato de alguns grupos indígenas verem-se a si mesmos e serem vistos como evangélicos é apenas uma parte da resposta, pois, dessa maneira, ainda se continua partindo das formulações dos agentes sobre si mesmos, o que não responde ao problema dos me-canismos de tradução. Em outros termos, admitir o mal-entendi-do não é o ponto de chegada da análise, mas é algo constitutivo da comunicação e gerador de realidades. Se a tradução é o esforço de transitividade de sentidos no intervalo da alteridade entre os gru-pos indígenas e missionários evangélicos, o foco da análise deve ser justamente esse espaço de mediação cultural, não com a fina-lidade de medir os entendimentos, mas de compreender os meca-nismos de produção de entendimentos. Logo, como são construí-dos os ajustamentos de diferentes códigos simbólicos e práticos?

A escolha do xamã como fonte e alvo principais do processo de tradução da Bíblia, como descrito entre os waiãpi, não é gratuita. Escatologia, cura, mundo dos espíritos, ritos — em suma, áreas que

Page 305: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

dizem respeito propriamente ao universo do xamanismo — fazem parte do repertório que os missionários pretendem universalizar entre as populações indígenas. Ao discutir o xamanismo tendo como base empírica a reserva do Juruá, Carneiro da Cunha (1998) enten-de que o xamã ocupa um lugar destacado nas sociedades indígenas não propriamente por ser o reservatório da cultura nativa, como crê o missionário, mas graças ao seu ponto de vista relativamente amplo, apesar de particular. Isso é possível porque o xamã é um "decifrador" de mundos. Por meio de suas viagens, por vezes alucinógenas, ele vê coisas inacessíveis aos outros homens. Além disso, no caso relatado pela autora (p. 15), o xamã tem a capacidade de transitar fora da aldeia como também em sua periferia mais tradicional. O seu mode-lo, contudo, não é dualista, pois entre o global e o local existem níveis intermediários que se conectam em cadeia.

A perspectiva alargada possibilita ao xamã passar por diferen-tes códigos por meio de um processo de tradução que estabelece uma coerência entre pontos de vista separados. Recorrendo a Walter Benjamin, Carneiro da Cunha (1998) entende que a tradu-ção não é só uma tarefa de arrumação, de guardar o novo em velhas gavetas; trata-se de remanejamento mais do que de arruma-ção" (p. 12). Em seu artigo "The task of the translator", Benjamin (1969) entende a tradução como o estabelecimento de relações recíprocas entre línguas diferentes por meio da "representação embrionária de uma significação oculta". A má tradução procura encontrar equivalência entre duas línguas, como se pudesse trans-por sentidos baseando-se na literalidade e na semelhança. A boa tradução, ao contrário, busca a reverberação de sentidos de uma intenção original no "modo de significação" de outra língua. Mais do que a transmissão de informações, traduzir significa gerar res-sonâncias de significação entre "modos de intenção". No texto ori-ginal conteúdo e língua são como fruta e pele (Benjamin: 1969: 75). Essa relação intrínseca se rompe na tradução. Em outros ter-mos, a tradução, mais do que encontrar equivalentes de significa-dos, na verdade, tem a capacidade de gerar "ressonâncias" de

Page 306: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

"modos de intenção" entre as línguas, o que propicia a reverbera-ção de sentidos. O problema colocado pela autora em relação ao xamanismo refere-se à possibilidade de considerar a cultura como uma totalidade a priori, no sentido durkheimiano. Se o debate antropológico contemporâneo questiona essa idéia de totalidades culturais, seu argumento — que recorreu ao trabalho de Taylor (1995) — sugere a existência de "teorias implícitas compartilha-das", resultado da articulação entre pontos de vista separados e a repercussão de suas intenções. Nesse sentido, o xamã, por sua capacidade de percorrer diversos códigos, é um ponto de vista gerador, por excelência, dessas "ressonâncias" de sentido em virtu-de da amplitude de seu trânsito (Carneiro da Cunha, 1998: 7).

Se nesse artigo a autora tematiza o conceito de cultura, a minha preocupação, todavia, é com a tradução cultural operada pela mediação das perspectivas ampliadas. Analogamente, comparo, em parte, a posição do xamã como desenhada por Carneiro da Cunha (1998) à do pastor e ex-cacique Paulo Orlando, entre os índios palikur (Capiberibe, 2001). Paulo Orlando tinha uma posi-ção social que lhe permitiu percorrer diversas redes de relações dentro e fora da aldeia. Na condição de cacique e de pastor da aldeia Kumenê, ele viajou pela rede de parentes palikur — que compreende principalmente a região do Oiapoque (aldeias no Uaça e as de Oiapoque e Saint Georges de TOyapoc) e outras par-tes da Guiana Francesa — e pela rede de relações entre os irmãos da Assembléia de Deus — da região e de Macapá. Sobre a rede de parentesco e sob a identidade religiosa, ele transitou entre a costa norte do Brasil e a Guiana Francesa transmitindo a prega-ção pentecostal.

Se o a posição do pastor palikur pode ser comparada em alguns aspectos à do xamã na rede de relações (por possuir uma perspectiva ampliada), a semelhança é ainda maior com o modelo formulado na etnografia de Orta (2000) sobre o catequista nativo entre os aymara do altiplano boliviano. Esse autor criticou a abor-

Page 307: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

dagem dualista que oscilou entre entender os catequistas como um "decantado inerte", na medida em que abandonou as práticas indígenas, ou buscar nele elementos indígenas pré-colonização. Os catequistas eram vistos tanto por católicos quanto por antropó-logos pela idéia de duplicidade (uma justaposição). Ao contrário desse dualismo "essencializador", Orta trata positivamente o cate-quista entendendo-o como um produto sincrético. Uma metoní-mia da história colonial que não deve ser desconstruída para bus-car um estágio pré-contato, mas analisada exatamente em sua condição de síntese de mediações culturais.

Orta (2000) defende que esse agente religioso desempenha um papel mediador entre diferentes chaves interpretativas, pois ele é uma sobreposição de perspectivas, na medida em que é conhecedor das tradições indígenas e foi formado pelo catolicismo tradicional para catequizar o seu povo. Em razão de sua posição, ele é capaz de "ver" e "ser visto" amplamente e de se colocar na mediação entre diferentes sistemas culturais. Trata-se de um "ponto nodal", a saber, posição pela qual perpassam vários planos com diferentes circuitos de reciprocidade, o que gera maior com-preensão e, por conseguinte, maior capacidade de tradução em meio a um emaranhado de sistemas de significação. O catequista não é um ser dual, mas uma posição complexa, visto que situada em um emaranhado de ordens assimétricas.

Atualmente, o conhecimento do catequista sobre as tradições aymara está sendo valorizado pela teologia católica da "incultura-çãoEle se tornou (está situado como) uma possibilidade de aces-so a uma (idealizada) identidade aymara. Ora ele é nativo, ora sabe sobre o mundo fora da aldeia. O conhecimento da cultura genuí-na e a capacidade de traduzir os valores positivos nela encontrados devem-se exatamente ao fato de o catequista ser uma perspectiva sincretizada e ocupar uma posição de mediação na rede social. Assim sendo, a "inculturação" necessita de posições nativas para atingir uma suposta cultura autêntica, mas que para Orta já são mediações (Orta, 2000: 876).

Page 308: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Diferentemente dos palikur e dos wayana, que já possuem o Novo Testamento em suas respectivas línguas, entre os waiãpi a tradução ainda se encontra em fase de negociação (construção de conexões significativas) operada pelo menos em dois níveis: dos nativos informantes, que são paulatinamente doutrinados e fazem a verificação da tradução, e dos missionários etnógrafos-lingüistas, que dedicam parte de sua vida a morar entre os índios. Da mesma forma, o procedimento dos missionários tradutores evangélicos é construir pontes simbólicas e materiais com índios escolhidos estrategicamente por sua capacidade de reverberação de sentidos. Nesse sentido, entre os waiãpi, o foco da análise não está propria-mente no xamã, mas no intervalo (ou nos mecanismos de media-ção) entre o missionário tradutor e o informante xamã.

Nos dois casos citados (a síntese de interações representada pelo pastor palikur Paulo Orlando e pela Bíblia traduzida, e a pro-dução de pontes de significação entre xamã waiãpi e missionário lingüista), os agentes da mediação são elementos centrais na tra-dução cultural, pois são capazes de transitar entre mundos e de ressoar sentidos. A tradução se efetiva entre agentes do aparelho eclesial, de um lado, e perspectivas privilegiadas (o xamã, o caci-que etc.), de outro. A escolha dos informantes recai sobre indiví-duos que têm uma amplitude de visão decorrente de sua mediação translocal e sua centralidade local, e esse posicionamento confere aos mediadores a capacidade de operar sinapses entre códigos cul-turais descontínuos.

Por fim, o que é traduzido? Ao perguntar isso não penso pro-priamente na recepção das sociedades indígenas. A questão é, ini-cialmente, direcionada aos evangélicos: o que querem transmitir e como se processa a tradução. Como são adensados os planos de comunicação entre sociedades indígenas e missionários evangéli-cos a ponto de estes reconhecerem a efetividade do esforço em-preendido? E em um plano mais geral, como são construídas as passagens que permitem a transmissão e o reprocessamento sim-bólico e prático de conteúdos culturais? A transmissão-transfpr-

Page 309: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

mação da mensagem religiosa efetiva-se por meio de agentes que estabelecem ressonâncias de sentidos, de acordo com a amplitu-de de seus pontos de vista específicos. Se este trabalho não trata propriamente do ponto de vista indígena, tentei incorporá-lo à análise como reações à ação missionária. O intuito foi entendê-las como repercussões da atividade missionária que são, posterior-mente, incorporadas ao cálculo dos agentes mediadores. Por se tratar de relações entre diferentes códigos culturais, a tradução exige negociação e os planos de mudança são vários: o grupo in-dígena que foi evangelizado; a mensagem por ele incorporada e (re)significada; os ajustes feitos pelos missionários para adequar a transmissão da mensagem; e, em um plano maior e a longo prazo, o próprio sentido da atividade missionária. Nesse processo não apenas o grupo indígena está sendo "provocado", mas tam-bém alguns códigos da religiosidade evangélica estão sendo nego-ciados, absorvidos e recalculados. A tradução tem uma direção intencional precisa que parte da cosmologia fundamentalista para as sociedades indígenas; mas esse movimento amplia-se quando ativa e reativamente as populações indígenas também incorporam elementos da cosmologia cristã e os devolvem reelaborados, os quais em alguma medida são incorporados ao cálculo do agente missionário por meio de uma cadeia de mediações sucessivas.

Page 310: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

8

S O B O M A N T O D O C R I S T I A N I S M O : O P R O C E S S O

D E C O N V E R S Õ E S P A L I K U R 1

Artionka Capiberibe

O "DESCOBRIMENTO" DA AMÉRICA apresentou para a religião cristã um novo campo de atuação. A longa história do contato entre mis-sionários cristãos e povos "sem fé" até hoje se desdobra. Um des-ses desdobramentos mais recente é o crescimento das missões evangélicas dedicadas exclusivamente à conversão de povos indí-genas2 observado no século XX.

O estudo do cristianismo em populações não ocidentais ocupa ainda um espaço pequeno dentro da disciplina antropológica, porém é cada vez mais alvo de seu interesse e há um certo tempo, ela o vem enfrentando. É possível apontar três enfoques principais do debate antropológico contemporâneo sobre o tema, os quais se encontram representados no conjunto desta coletânea: o primeiro está voltado para as missionações ocorridas no passado, e, por meio de documentos históricos, procura apreender as respostas dadas pelas populações indígenas às tentativas de convertê-los (Clas-tres,1978; Viveiros de Castro, 1992; Amoroso, 1998; Pompa, 2002; entre outros). O segundo volta sua atenção aos agentes da conver-são, procurando compreender quem são os missionários, o que

Page 311: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

representam as missões a que se dedicam, que tipo de instituição missionária existe, quais os resultados de um missionamento; o foco de interesse nesses estudos é o cristianismo e sua expansão transcultural (Fernandes, 1980; Stoll, 1982;Barros, 1993; Almeida, 2002). E por último, o enfoque ao qual este trabalho se relaciona mais diretamente, o que procura interpretar qual o significado da conversão cristã para uma sociedade não ocidental e qual o produ-to resultante desta (Hefner, 1993; Wright, 1998, 1999 e 2004; Meyer, 1999; Vilaça, 2002; Robbins, 2004).

Não se pode negar que a longevidade da ação religiosa entre as populações indígenas engendra modificações substanciais em sua organização sociocultural. Diante dessa situação, três princi-pais questões se impõem: por que e como um discurso religioso, a princípio alheio aos preceitos cosmológicos e sociológicos de uma dada população, é absorvido e incorporado por esta; e o que resul-ta dessa incorporação. Dado que se trata de uma situação transcul-tural, as questões também se aplicam às missões cristãs, basta para isso que se inverta o ponto de partida, e procure-se com-preender por que e como tais missões, cujos referenciais sociocul-turais são completamente distintos dos da população-alvo, se empenham em sua tarefa e o que resulta dessa empreitada para ambos os protagonistas.

Alguns desses questionamentos foram feitos na minha disser-tação de mestrado (Capiberibe, 2001), que tratou do processo de evangelização pentecostal dos palikur, povo indígena falante de uma língua arawak, localizado em ambos os lados da fronteira entre o Brasil e a Guiana Francesa. O propósito fundamental da dissertação foi o de compreender como ocorreu a conversão, ini-ciada em meados da década de 1960, por meio da ação, empreen-dida em momentos diferentes, do Summer Institute of Linguistics (SIL), da New Tribes Mission (NTM) e da Igreja Evangélica Assem-bléia de Deus ( iEAD). O S palikur3 são hoje, em sua maioria, filia-dos à IEAD, possuem uma Igreja estabelecida, com pastores nativos e o Novo Testamento integralmente traduzido para a língua verná-

Page 312: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

cuia. No entanto, até chegar a esse ponto, o processo de evangeli-zação percorreu um longo trajeto, no qual se encontram camadas superpostas de influências religiosas de cunho diferente.

A proposta deste capítulo é mostrar que em um processo de conversão entram em jogo vários níveis de experiência, os quais produzem diferentes tipos de arranjos que só podem ser mapeados por meio de uma análise sobre a história e o contexto etnográfico em questão. Palikur e missionários encontram-se, em duplo senti-do, carregados de significados, os quais se aderem uns aos outros e são ressignificados no processo de conversão, o que, por sua vez, vai resultar em um tipo de religiosidade bastante específica.

Se para os missionários o que atraiu os palikur à religião evan-gélica foi a introdução do perdão cristão em um sistema regido pela lógica da vingança, para os palikur a força motora da conver-são foi certamente o batismo com o Espírito Santo da religião pen-tecostal, experiência de êxtase religioso que possui um forte élan xamânico. E, embora o processo de conversão tenha produzido diferentes leituras, todas colaboraram no que, ao final das contas, se tornou a religião evangélica pentecostal palikur.

P A S S A D O R E M O T O , R E C E N T E E O P R E S E N T E :

O C A T O L I C I S M O NO U A Ç Á 4

O catolicismo presente nas narrativas palikur possui profundidade histórica na região do Uaçá. O primeiro marco de sua presença é a expansão das missões jesuítas francesas — cuja agência missioná-ria estava sediada na costa da Guiana Francesa — para o baixo Oiapoque, no começo do século XVIII (Hurault, 1972: 120 ss.). E do pe. Fauque um dos mais detalhados conjuntos de informações dessa época sobre os índios dessa região. Em 1735, Fauque fez uma viagem de reconhecimento aos palikur, encontrando-os no rio Uaçá. Mas a missão palikur só tornará a ser mencionada três anos depois, em uma carta de abril de 1738, enviada do Oiapoque pelo

Page 313: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

pe. Fauque ao pe. De La Neuville (Lettres Éd. Et Cur., 1839: 22-34). Além dessa informação há apenas mais uma carta que menciona tal missão, o que pode indicar que talvez esta tenha tido uma duração efêmera ou nem sequer tenha existido, tratando-se apenas de uma única viagem de reconhecimento (Hurault, 1972: 128).

Quando se passa para as narrativas palikur sobre os jesuítas, percebe-se que, apesar de fugaz como nas fontes históricas, a ima-gem dos jesuítas projetada pelas falas é bastante significativa na auto-elaboração de sua história religiosa. Afirma-se que "Teve igre-ja católica aqui, no tempo dos jesuítas franceses, que dominavam aqui tudo, eu não vi, mas a minha mãe me contou isso"5 (Paulo Orlando, 1996). A afirmação do conhecimento da existência do catolicismo jesuíta é, porém, marcada por um distanciamento dos palikur em relação a essa religião. Isso me foi repassado e está tam-bém presente no diário de campo da missionária lingüista Diana Green,6 quando o mesmo Paulo Orlando,7 em 1965, indica um local "próximo de sua roça onde teria existido uma Igreja Católica que era dirigida à população crioula que vivia nessa região" (1965-77: 21).

Hoje, a microrregião do Uaçá — outrora palco de guerras e disputas entre grupos indígenas, e entre estes e europeus (Capiberibe, 2001: 77-92) — é habitada por apenas quatro etnias que compartilham de um pano de fundo católico comum, hoje representado por duas vertentes diferentes: um catolicismo con-duzido por festas de santo e que convive com rituais xamânicos; e um catolicismo avesso tanto às festas de santo, quanto ao xamanis-mo, mais próximo ao catolicismo romano.

Cada povo da região ocupa um dos rios que formam a bacia do Uaçá. O rio Uaçá é habitado pelos galibi-marworno, o Curipi pelos karipuna, o Urukauá pelos palikur. Um pouco mais afastados e fora da área específica do Uaçá, encontramos os galibi do Oiapoque, que também fazem parte da denominação conjunta "Povos Indígenas do Uaçá", mas vivem numa faixa da Terra Indígena do Uaçá, localizada na margem esquerda do rio Oiapoque.

Page 314: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Os galibi-marworno e os karipuna seguem o catolicismo das festas de santo.8 Entre os galibi-marworno — formados pela união de diferentes grupos históricos que pouco a pouco foram adotan-do uma identidade e uma língua conjunta, o patois (Nimuendajú, 1926; Vidal, 2001) — o ápice da religiosidade cristã concentra-se na festa de Santa Maria, realizada todos os anos em agosto. Dela participam outros povos indígenas da região, brasileiros, guianen-ses e franceses. São primeiramente três dias de festa, iniciados com a realização de uma procissão para arrecadar contribuições que é acompanhada por violas, violões, rabecas e tambores; no pri-meiro dia, ergue-se o mastro da festa decorado com folhas, frutas e legumes (comunicação pessoal, Lux Vidal). Após pausa de uma semana, o evento é finalizado com mais três dias de festejo, ocor-re outra procissão e o mastro é derrubado anunciando o fim da festa e prenunciando a festa do ano seguinte. Nos dias efetivos de festa ocorrem missas à luz de velas na igreja da aldeia principal, Kumarumã, com ladainhas recitadas pelos diáconos índios em latim; bailes animados por som mecânico que toca ritmos musicais variados; comes e bebes durante todo o dia; torneios de futebol masculino e feminino, nos quais participam os times representan-tes dos grupos indígenas da região e o time dos não-índios; discur-sos de políticos locais e reivindicações políticas dos caciques; rojões; etc.

Nas narrativas galibi-marworno a caracterização do ser católi-co está relacionada principalmente aos ritos ligados ao ciclo de vida: o batismo, a possibilidade de casar-se na Igreja, receber as exéquias religiosas e um funeral católico (CEDI, 1983: 48; comuni-cação pessoal, Lux Vidal). Sem esquecer, é claro, da festa de Santa Maria, que é realmente um grande evento de avivamento da fé. Mas os símbolos do catolicismo não estão sós nessa sociedade, eles dividem espaço com os rituais e práticas xamânicas, sobretu-do com o Turé, uma espécie de ritual indígena de difusão regional. Embora, em alguns períodos tenha ficado sem ser realizado regu-larmente pela falta de um pajé atuante, visionário (comunicação

Page 315: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

pessoal, Lux Vidal) que pudesse dirigi-lo, os galibi-marworno nunca abandonaram seus cantos xamânicos.

Um quadro religioso parecido com esse também se encontra entre os karipuna, povo formado por meio de casamentos entre bra-sileiros e índias da região, que por mais de um século vêm cons-truindo uma forte identidade indígena. Entre os karipuna, diferen-temente dos galibi-marworno, o calendário anual de festas para os santos é intenso. Cada aldeia, aproximadamente nove, possui um santo padroeiro, cuja festa em seu favor é considerada a "festa gran-de" da aldeia. A festa grande dos karipuna é a festa do Divino, rea-lizada na aldeia Espírito Santo (Tassinari, 2003). A estrutura das festas segue basicamente um mesmo modelo e, apesar das diferen-ças de significado, há uma certa semelhança entre estas e a festa da Santa Maria galibi-marworno descrita acima. Nas festas de san-tos karipuna encontramos, entre outras coisas: ascensão e derruba-da do mastro, ladainha, pagamento de promessas, festeiros encar-regados da realização da festa, baile, comes, bebes, futebol etc.

Hoje, os karipuna são os que mais realizam os rituais de Turé na região do Uaçá. Essas festas em muito se aproximam das des-crições que os palikur fazem sobre os rituais que realizavam antes de se converterem e de um Turé palikur, de 1925, descrito por Nimuendajú (1926: 50-5). O que diferencia o Turé karipuna dos outros Turés da região é o papel fundamental que exerce no siste-ma de elaboração de sua identidade indígena, e não se resume a isso, pois também emprestam um pouco do seu apelo simbólico aos outros índios do Uaçá.9

Com uma história na região bastante diferente das outras etnias, temos os galibi do Oiapoque, um pequeno grupo familiar composto por 36 pessoas falantes de uma língua carib (kalina), que migraram na década de 1950 da região de Mana na Guiana Francesa para a margem direita do baixo rio Oiapoque. O catolicismo que seguem é também diferente da configuração presente entre os gali-bi-marworno e os karipuna. Suas práticas religiosas não incluem as festas de santo e não permitem o paralelismo entre religião católica

Page 316: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

e xamanismo. Distanciando-se das práticas católicas de seus vizi-nhos, os galibi do Oiapoque se apresentam como mais ortodoxos em relação às práticas religiosas católicas. Como define Vidal, "o catoli-cismo dos Galibi é a chamada linha tradicional e há séculos incor-porado às suas crenças e práticas" (2000: 45).

O S P A L I K U R : C A T O L I C I S M O R E I N T E R P R E T A D O

Entre os palikur, quando se fala no catolicismo, a primeira menção é sempre sobre os sacramentos, que, dentre os sete existentes (batis-mo, crisma, eucaristia, confissão, ordenamento, matrimônio e unção dos enfermos), tem ó batismo como o mais aplicado, sendo comum na geração que conta hoje por volta de quarenta anos. A ascendên-cia do batismo foi tamanha que produziu uma categoria de relação de parentesco especifica, um tipo de compadrio. Vejamos:

Fui batizado na Igreja Católica, tenho o documento do batismo ainda na minha carteira. Tenho padrinho e madrinha, o padrinho já é faleci-do, o Djalma Sfair, chefe de posto, a madrinha é Conceição dos Santos, é karipuna e mora em Caiena. Os padrinhos, por exemplo, o pai não tá, o padrinho existe como o papai e a madrinha como a mamãe. Meu padrinho era um segundo pai, ele sempre me dava roupa.

Eu já vi compadre e comadre namorar, isso os brancos. O finado Roque Penafort10 namorou com sua comadre, pecado para nós, porque comadre e compadre são como irmãos. Agora existe ainda madrinhas e padrinhos no Kumenê, mas não hatiza mais. As pessoas vêm pedir as crianças como afilhado. Pedem e no outro dia vem trazer presen-te para o afilhado. Isso é antigo, é da época da invasão... (Mateus Batista, 2001).

Percebe-se então que a relação de compadrio introduzida pelo catolicismo em tempos remotos, mesmo após a abolição deste, se mantém. E de modo diferente ao dos não-índios, cuja regra lhes

Page 317: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

parece ser a falta de regra (vide grifo), para os palikur a relação entre compadres e comadres insere-se no sistema que regulamen-ta o parentesco: não se deve "namorar" com gikumega (minha comadre) ou comgikumpega (meu compadre), considerados como irmãos, a tal ponto que atribui-se-lhes o encargo de substituir, res-pectivamente, a mãe ou o pai do afilhado, numa posição equiva-lente à ocupada por nahgu (mãe e irmã da mãe) e nihgu (pai e irmão do pai). Por fim, chama atenção que os padrinhos de Mateus não sejam palikur, mas sim um não-índio bem posiciona-do, ou seja, chefe de posto, e uma karipuna.

Vilaça (2002: 72-3) fornece uma análise sobre os critérios para escolha dos padrinhos entre os wari' boa para pensar a mesma situação entre os palikur. Nesse texto, a autora aponta uma prefe-rência na escolha de padrinhos não-wari', os quais podem ser não-índios ou índios de outras etnias (assim como no caso de Mateus), seguindo uma estratégia cujo objetivo é o de escolher bons presen-teadores. Acrescente-se que os índios escolhidos pelos wari' para serem seus compadres pertencem às etnias makurap, canoé e aruá, e, na situação que suscita a reflexão da autora sobre o com-padrio, dividem o espaço de habitação com os wari' num local onde havia sido fundada uma antiga colônia agrícola, denominada de Sagarana, e que atualmente é administrado por membros do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Nas relações interétni-cas, Vilaça aponta uma diferenciação fundamental para entender-mos por que esses outros índios são também padrinhos preferen-ciais para os wari'. Diz a autora: "Em Sagarana esses índios exibem para os Wari' o que entendem como sendo mais civilização': têm uma melhor situação econômica, vestem-se melhor e falam um português fluente" (Vilaça, 2002: 70, tradução minha), posição que lembra a dos karipuna na região.11

A autora observa também que, no caso de faltarem não-índios ou índios de outra etnia que preencham o papel de padrinhos, os wari' escolhidos para a função são sempre parentes próximos, e entre eles não se usam as referências compadre e comadre como

Page 318: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

vocativo que antecede o nome próprio do modo feito com os não-índios e índios de outras etnias. A conclusão a que chega Vilaça é que o compadrio estabelecido com pessoas não-wari' seria um "artifício externo", o qual serviria para incorporar socialmente os "estrangeiros" (Vilaça, 2002: 73).

O caso palikur citado acima parece aproximar-se bastante desta explicação, pelo menos a forma em que ele é descrito é similar ao caso wari', no entanto não posso avançar mais nas especulações sobre o modo pelo qual o compadrio ocorria no passado. Ao olhar para o presente, o que se vê é um contraste fundamental em relação ao compadrio wari', qual seja, a incorpo-ração dessa categoria, completamente desprovida de seus atribu-tos religiosos, ao sistema que rege as regras de parentesco (vide grifo na citação acima).

E também na fala da geração que foi batizada e casada na Igreja católica que o catolicismo aparece representando algo infe-rior à religião evangélica, como uma etapa cumprida até a chega-da da verdadeira fé. A construção da história religiosa palikur é feita em termos semelhantes a uma escala evolutiva:

Há muitos anos, então a pessoa antiga conhecia Deus assim... ouvia um trovão e para eles era Deus, ouvia também aquele relâmpago, é Deus, ouvia aquela árvore muito grande, esse é Deus, vê também uma ave muito grande, então para eles é Deus, tudo isso... para as pessoas antigamente eles consideravam Deus. O meu pai já não era assim, já mudou, já entendia que Deus existia no céu, mas também não entendia de qual forma, o que é Deus. Ele conhecia que Deus exis-tia no céu porque o pai dele [...] trabalhou em Caiena, ele passou vinte anos em Caiena, aí os muitos colegas dele, crioulos, contavam para ele que Deus existia no céu, mas até eles, os crioulos, não sabiam explicar como é que é Deus, só conhecia Deus, todo mundo conhe-cia Deus... muita gente conhecia a religião, digamos assim, como qualquer um serviço, qualquer um trabalho [...], uma religião, para eles não serve pra nada, não está ligada a nada mesmo, porque, diga-

Page 319: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

mos assim, a lei de Deus para que serve para o homem? Eles não sabia isso.

Olha, até hoje você pode conversar com uma pessoa que não é crente, que não conheceu o que é Deus, tu podes perguntar para ele assim: Você conhece Deus? Aonde Deus mora? Ele vai responder assim: — Conheço, Deus mora no céu. Porque todo mundo conhe-ce que Deus mora no céu, então você vai perguntar dele: — Você sabe a lei de Deus? — Eu conheço sim, porque eu já ouvi, já parti-cipei muito da Igreja, Igreja católica. E você pode perguntar dele, conversar, não demora você tá teimando já, por que? Porque ele não entende essas coisas, a lei de Deus, ele entende como ele bem entende, para ele entender bem a lei de Deus, bem mesmo, corre-to, ele não pode explicar isso, é como os palikur que nunca ouviu o que é Deus, eles consideravam uma árvore como um Deus, um tro-vão, um relâmpago, isso é Deus.

Eu não estou discriminando outra religião, outras, digamos assim, de padre, mas eu estou explicando, mais ou menos o que é verdade mesmo. O Aarão, antes de contar isso, porque isso saiu do Aarão, aquele Moisés que é o profeta de Deus, então o Moisés foi conversar, encontrar com Deus na montanha Oliveira e foi justa-mente para receber aquela placa lavrada numa pedra para poder fazer os mandamentos, [...] ele foi também rezar lá, então lá Deus apareceu com ele, passou muito tempo lá conversando com Deus, então o povo que ficaram na terra esperando Moisés, esperando, esperando até que cansaram de esperar, alguns deles dizendo já que: — Ah o Moisés está demorando demais, já passou o dia que ele mar-cou, não chegou até agora, e agora quem nós vamos adorar agora? — aí disseram pro Aarão: —Aarão, Sabe de uma coisa, olha o Moisés tá demorando, nós esperamos o Moisés para nós adorar o Moisés. Pra eles, eles estão adorando o Moisés, para eles Moisés é Deus. — Então, acho que o Moisés não vem mais, era bom para nós pensar em outra coisa, nós não podemos ficar sem adorar ninguém. Aí o que eles falaram para o Aarão: — Faz o nosso Deus! —Aí encomen-daram para fazer uma imagem, fazer aquela imagem de um gado,

Page 320: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

fazia de cobre misturado com ouro. Aí o Aarão fez, agora tem um Deus para eles adorarem, começaram adorar.

Aí quando Deus viu o povo de Moisés estarem com outras idéias, já estavam pecando contra Deus, não estão adorando mais Deus, estão adorando imagens, imagens como vida. Aí Deus disse para Moisés: — Moisés, o teu pessoal estão adorando imagens, a maioria deles estão adorando, bebendo, dançando, estão desistindo de outra coisa já. Aí o Moisés veio ver se realmente era como Deus estava dizendo para ele. Quando ele chegou aqui na terra ele viu assim mesmo, a maio-ria estava dançando, adorando. Ele vinha com dois mandamentos lavrados de pedra, tanto ele ficou revoltado que jogou um na terra, partiu, quebrou mesmo o mandamento, ficou um, [...], aí Deus disse para ele: — Não fica revoltado, tem alguns deles que ainda não ado-rou a imagem, alguns deles que ainda não dançou, alguns deles que ainda não bebeu, alguns deles que ainda não divertiu de nada, então conversa com eles, então é aquelas pessoas que é os nossos, mas aqueles que adoraram imagens já, esses são do demônio, explicou para o Moisés. Aí o Moisés veio e [...] começou a esfriar daquele brabe-za dele, porque ele ficou furioso demais, daí que começou a entrar essas coisas, imagens, o Aarão que inventou isso com o povo, mui-tos anos mesmo, mais de seiscentos anos atrás, Jesus ainda não nas-ceu naquele tempo, mas já existia Deus, e como Deus disse: — "Verbo era Deus, e Deus era verbo". Então pra ver, ele disse: porque "Eu antes de todos, não tem aquele que é mais antes de mim, nem depois de mim, só eu mesmo".

Então quando chegou o missionário aqui, o palikur ainda estava naquele, não entendia bem o que era Deus, entendia Deus, mas não entendia para que era Deus, você pode perguntar naquele tempo que ninguém pode explicar, mas agora não, a gente pode explicar, porque agora não é só padre que lê a Bíblia, todo mundo está lendo a Bíblia agora, até índio, imagina só, até o índio hoje em dia estão lendo a Bíblia, estão sabendo as notícias de Deus e sabendo o que era Deus, por que que existe Deus no mundo, no céu, quem é o homem, quem fez o homem, do que o homem foi feito, pode perguntar: — Do que o

Page 321: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

homem foi feito? — O homem foi feito do pó da terra, Deus fez pri-meiro o homem, o Adão, depois fez uma mulher, Eva, esposa do Adão [...] E qual foi operado primeiro na terra? Foi Adão, Deus ope-rou ele para tirar da costela dele para fazer uma mulher. Quem sabe isso? Pode perguntar para os brancos mesmo, que são muito estu-diosos, talvez ele pode explicar isso também, mas antigamente, mui-tos anos atrás, muitos não sabiam isso, você pode perguntar que eles não explicavam nada disso. (Manoel Labonté, Kumenê, 1997)

Nessa narrativa percebe-se claramente a incorporação de um vocabulário novo, que remete à elaboração feita pelos convertidos de seu passado apresentado nos termos de um discurso evangélico (Almeida, 2002). O catolicismo representa um primeiro estágio do cristianismo, antes dele o que existia era a crença em fenômenos da natureza como manifestações divinas. Porém, até a chegada do protestantismo, os palikur "não conheciam Deus", os motivos para isso eram: a intermediação na relação entre o Homem e Deus, feita pelo padre, fato que impedia o acesso direto aos evangelhos da Bíblia e, portanto, dificultava o conhecimento do universo cris-tão; a crença nos santos, os quais são vistos como imagens "sem vida", ou seja, sem imanência divina, aspecto que torna sua adora-ção um ato sem efeito e, no limite, um ato pecaminoso, visto que a narrativa remete-se a um episódio bíblico (Êxodo 32:1-35) para condenar o culto às imagens.

Em razão desse discurso de repúdio12 em relação ao mundo católico era difícil obter informações mais detalhadas de como eram e como agiam os palikur na época do catolicismo.

Curt Nimuendajú (1926), Eurico Fernandes (1948) e Expedito Arnaud (1984, 1996), cujos trabalhos foram elaborados a partir de pesquisas de campo realizadas antes da evangelização pentecostal, no caso dos dois primeiros, ou pouco depois do começo da evan-gelização, no caso de Arnaud, fornecem escassas descrições da religião católica entre os palikur, dando a entender que essa reli-gião era inconsistente e portanto não merecedora de mais atenção.

Page 322: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Entre essas informações e a ênfase dada nos discursos palikur sobre o catolicismo como um passado cristão afigura-se um des-compasso. Se antes da evangelização pentecostal o que existia eram "trapos de religião cristã", como nos fala Nimuendajú (1926: 45-6), e o que prevalecia era sua "crença tradicional", segundo Fernandes (1953: 288-9) e Arnaud (1996: 307), por que tais "trapos" apare-cem de modo tão significativo na fala dos palikur?

A resposta a essa questão deve levar em conta, primeiramen-te, que a configuração do catolicismo do passado palikur, como veremos adiante, em muito se aproxima das configurações do cato-licismo entre os galibi-marworno e os karipuna. Assim, o catolicis-mo das narrativas palikur torna-se fato calcado na tradição, embo-ra no presente mais se pareça com um mito. A resposta para a preponderância deste nos discursos também deve ser buscada no contexto católico regional. Dessa forma podemos observar que para os palikur o catolicismo dos discursos do presente é legitima-do por uma referência ao passado. No entanto, as elaborações pali-kur sobre um passado católico estão assentadas no presente, na relação que estabelecem como índios crentes com os índios cató-licos da região.

Para pensar por que o capitão Cook se apresentava para os havaianos como uma tradição antes de se tornar um fato, Sahlins vale-se da análise lingüística de Bréal sobre a desproporção entre a língua e o mundo, colocando que, se por um lado:

os objetos são mais particulares enquanto emblemas em um espa-ço-tempo específico do que os signos, enquanto categorias ou clas-ses conceituais. Por outro lado, as coisas são mais gerais do que suas expressões, por apresentarem sob a forma de experiência mais pro-priedades e relações do que poderiam ser escolhidas e valorizadas por qualquer signo. Portanto o signo, enquanto sentido, se torna duplamente arbitrário na referência: ao mesmo tempo uma segmen-tação relativa e uma representação seletiva. Conclui-se da natureza arbitrária do signo que a cultura é, por sua própria natureza, um

Page 323: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

objeto histórico [...] É histórico porque é arbitrário: por não refletir simplesmente o mundo existente; mas, pelo contrário, porque na ordenação dos objetos existentes pelos conceitos preexistentes, a língua ignoraria o fluxo do momento. A totalidade e a particularida-de de objetos lhe escapam. Então, inversamente, o sistema é arbi-trário porque é histórico. O presente seja lá qual for, é reconhecido enquanto passado. (1990: 184-15)

No caso palikur o presente não é só reconhecido como passa-do, mas o passado como presente. O catolicismo reputado à histó-ria passada dos palikur é segmentado de maneira relativa e repre-sentado de maneira seletiva nas narrativas de modo semelhante ao catolicismo de seus vizinhos, isto é, a substância da memória encontra-se viva e atual. Isso também pode explicar por que as ela-borações sobre a existência e o significado do catolicismo entre os palikur são postas de modos diferentes pelos nativos e pelos pes-quisadores.

As melhores descrições sobre aspectos do catolicismo palikur são encontradas no Personal diary of Harold and Diana Green, escrito pela missionária lingüista Diana Green. Diana e seu espo-so, Harold Green, ambos missionários lingüistas norte-americanos membros do Summer Institute of Linguistics (SIL), chegaram ao Urukauá no dia 26 de janeiro de 1965 com o objetivo de estudar a língua para fazer a tradução da Bíblia para o palikur, como declara Diana:

Resolvemos ir para os palikur, porque ouvimos que eles precisavam de ajuda, só restavam poucos e não iam durar mais muito tempo. Fomos para ajudá-los e principalmente para levar-lhes a palavra de Deus.13

Começava então uma obra que teria longa duração e cujos resultados seriam profundos. A história da atuação do casal Green

Page 324: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

entre os palikur não difere muito do modelo básico seguido por esse tipo de especialista, e já bastante esmiuçado em teses, livros e arti-gos antropológicos (Stoll, 1982; Barros, 1993; Almeida, 2002; entre outros) e presente na vasta publicação de livros de missiólogos (Winter & Hawthorne, 1987; Steuernagel, 1985), folders e publica-ções de missões.

Depois de uma primeira recusa do governo brasileiro em con-ceder autorização para que o casal entrasse no Urukauá por se tra-tar de estrangeiros querendo instalar-se numa região de fronteira,14

o governo não só concedeu a autorização como sua entrada ocorreu sob os auspícios do SPI. Isso se deu através de um convênio com a divisão de educação, primeiro do SPI e posteriormente da Funai, sob a rubrica"sub-programa Palikúr" (Green & Green, 1986) e também sob o convênio firmado em 1959 entre SIL e Museu Nacional.

Ambos os convênios do SIL, com a academia e com o governo, fazem parte, respectivamente, da história do início dos estudos de lingüística no Brasil e da aplicação prática desses estudos na alfabe-tização em língua nativa. Os convênios ocorreram em momentos dis-tintos, no final da década de 1950, através da academia, mais espe-cificamente através do Museu Nacional, que tomou essa decisão por julgar ser um meio apropriado de ter e manter o conhecimento sobre as centenas de línguas faladas pelos povos indígenas e profundamen-te desconhecidas até então, segundo M. C. D. de Barros: "A figura do ultimo falante' foi um elemento central para assegurar a legitimi-dade e permanência da missão no país" (1993: 247).15 E, doze anos após o convênio com o Museu Nacional, finalmente o SIL conseguiu estabelecer um acordo com o órgão indigenista oficial, o qual havia inicialmente recusado uma proposta, feita em 1954, de alfabetização em língua indígena por considerar inadequado ceder a tarefa de alfa-betizar os índios a missionários (Barros, 1993: 246).

Para o missionário lingüista a tradução da Bíblia é o trabalho de uma vida. Após os estudos de formação missionária, que incluem lingüística, antropologia cultural e teologia (Almeida, 2002: 51 ss), cumpre-se um período de treinamento sertanista, no qual noções

Page 325: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

básicas de sobrevivência na selva são aprendidas. Uma vez em campo e/ou próximo do campo o tempo de dedicação do missioná-rio lingüista varia em torno de quinze a vinte anos (SIL, s.d.), mas, mesmo após finda a tradução do Novo Testamento, objetivo prin-cipal da obra, os missionários lingüistas terão, arrisco dizer que pelo resto de suas vidas, sempre material para traduzir e produzir. No caso de Harold e Diana Green, o tempo de campo foi abrevia-do para doze anos em decorrência da proibição da entrada de mis-sionários lingüistas em áreas indígenas, estabelecida no último triênio da década de 1970 pelo governo federal.16

Ademais da tradução do Novo Testamento, dos livros de Salmos e Gênesis do Antigo Testamento, e da elaboração de livros de hinos religiosos e bíblicos, o casal Green escreveu artigos acadê-micos sobre a língua palikur (H. Green, 1979; D. Green, s.d.; D. Green, 1994)w e produziu uma série de textos de cunho laico, cumprindo a parte que lhes cabia, como lingüistas, no trabalho acordado em convênio tanto com a academia quanto com o governo brasileiro. A dedicação a essa produção secular está assentada no conjunto de diretrizes do SIL:

O propósito do Summer Institute of Linguistics é servir à humani-dade, com os meios singulares disponíveis aos seus membros. Dentre estes estão inclusos: préstimos em lingüística, tradução, alfabetização, levantamentos lingüísticos, auxílio prático e comuni-tário, treinamento e investigação antropológica [...]. Além das Escrituras Cristãs, os lingüistas da sil provavelmente envolver-se-ão na tradução ou publicação de uma variedade mais abrangente de material, incluindo literatura da própria comunidade, livros textos, manuais de saúde, noticiário público e outros [...]. Estudos numa língua particular podem dar luz à teoria da linguagem. Apesar de nem todos os pesquisadores da sil se considerarem teóricos, alguns gastam grande parte de seu tempo em áreas de desenvolvimento de teoria lingüística. Bons estudos teóricos18 levam a boas aplicações práticas e beneficiam a muitos. (SIL, s.d.)

Page 326: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Os resultados desse trabalho, apresentados na forma de rela-tório à Funai (Green, 1986), foram: a produção de cartilhas de al-fabetização; de um dicionário parikwaki/português/patois; de livros de leitura com histórias, lendas e mitos palikur; de carti-lhas informativas e educativas sobre saúde e doença; e a alfabe-tização de uma parcela da população, crianças e adultos. No total, entre livros religiosos e laicos, foram 66 textos impressos,19

alguns em gráfica, outros em chapas de silk-screen ou impresso-ra de computador.

O Diário do período de campo do casal Green é um documen-to valioso, pois contém descrições detalhadas sobre os processos do ciclo de vida, como o nascimento, o casamento e a morte; his-tóricos de doenças e tratamentos a elas aplicados; relatos sobre as relações políticas dos palikur com o órgão oficial (SPI e depois Funai) e com os outros índios da região; descrições de como ocor-riam as tensões políticas internas ao grupo; menção às diversas fes-tas xamânicas e de santos que ocorriam na região; descrição de como agia o xamã e como se dava o xamanismo no grupo; e, por fim, várias passagens que registram o uso de símbolos católicos, como a cruz e o rosário.

Já havia escutado falar sobre um hábito antigo, não mais uti-lizado no presente, de pintar cruzes com urucum dos lados, na popa e na proa da canoa para afastar os "bichos", seres sobrenatu-rais, atraídos pelo cheiro de menstruação. De acordo com um rela-to que obtive, as cruzes pintadas geravam uma ilusão que fazia com que os "bichos" enxergassem a canoa "superblindada" com ferro ou cobre e com isso desistissem de aproximar-se dela. Aliado a essa estratégia existia também um jeito especial de falar utiliza-do nas canoas, que consistia em nunca mencionar diretamente o nome de animais ferozes e peçonhentos ou de qualquer objeto. Arnaud (1996: 303) complementa essa informação dizendo que isso se dava porque acreditavam os palikur que, ao pronunciar os nomes dos "bichos" ou objetos, eles ganhariam enormes propor-ções e cairiam sobre a canoa esmagando a todos.

Page 327: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Ao ouvir essa história das cruzes nas canoas não me ocor-reu, na época, que elas pudessem estar relacionadas ao catoli-cismo, pois seu uso e seu significado simbólico pareciam bas-tante "indígenas". Porém são recorrentes no Diário os relatos sobre o uso de cruzes feitas de madeira ou apenas pintadas com urucum sobre objetos ou partes do corpo, por vezes associadas ao uso de rosários, numa utilização muito particular de instru-mentos do universo cristão. Os símbolos católicos aparecem em situações diferentes, mas principalmente relacionados ao siste-ma de tratamento de doenças, integrados no conjunto de "tera-pias profanas", acessíveis a todos os adultos de ambos os sexos (Gallois, 1988: 270-85). Tais terapias consistiam no uso de can-tos, sopros, fitoterapia e na aplicação direta de objetos e pinturas sobre o corpo. O Diário faz uma clara distinção entre as "terapias profanas" e aquelas reservadas aos especialistas, xamãs e sopra-dores. Destaco a seguir alguns trechos que podem ilustrar o que acabo de enunciar.

July 10, 1965 — Saturday: Alfonso came early saying the new baby cried ali night and had a fever. We think he is catching pneumonia. I gave the baby some Tetrex and Vicks. [...] They put a rosary around the sick babys neck but took it off when I said it was choking him. Later they put a cord necklace with two packets made of green cloth hanging from it. The pockets were filled with small white crystals of quartz... (1965-77: 15, grifo meu).

July 11 , 1965 — Sunday: Alfonso said the crystals of quartz on the babys neck were taken from an alligator he had caught. "They are hard and sickness cant enter, so they keep sickness out of the babys body." (1965-77: 15).

July 13, 1965 — Tuesday: Alfonso s baby got worse last night. I gave the baby some sulfadiazine. The baby was again wearing the rosary and his forehead, both the front and back of his hands and feet were painted with "urucu" in the form of red crosses... (1965-77: 16, grifo meu).

Page 328: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

July 25, 1965 — Sunday: [...] The Baby is much better. It had a small cross made of tiny sticks stuck on the front of his hair [...] She said it was because the baby had hiccups. (1965-77: 18, grifo meu).

March 29, 1967 — Wednesday: The girl was still alive but very weak this morning. However she did stop vomiting. Liyoh asked if a bath in warm boiled water with lemon tree leaves wouldn t be good for her [...]. After the bath Liyoh spit into a small round metal con-tainer of "urucú" and mixed it with his finger. Then he painted red crosses on her forehead, one on her chest, on the palms of her hands and on the soles of her feet. She is still very sick but a little better. I am giving her antibiotic shots and several body building medicines. She is in Gods hands. (1965-77: 37, grifo meu.)

Nos excertos acima, vê-se que as cruzes e o terço são emprega-dos em associação com outras terapias, como os saquinhos conten-do quartzo branco pendurados ao pescoço do bebê, mencionados no primeiro excerto, e o banho de folhas de limoeiro dado na moça doente antes de lhe pintarem o corpo com cruzes de urucum. Os efeitos simbólicos das cruzes e do rosário aparecem restritos ao domínio do conhecimento terapêutico. Ao considerar o emprego das cruzes como "blindagem" de canoa, pode-se ampliar um pouco a extensão de sua incorporação ao conhecimento palikur, no entanto, mesmo assim, permanece-se no domínio das profilaxias e terapias, visto que a "blindagem" é um "remédio" preventivo para ataques de entes sobrenaturais atraídos pelo cheiro da menstruação.

Nota-se então que os emblemas do catolicismo apresentados acima foram inseridos em um conhecimento medicinal amplo e prévio. Provavelmente a associação entre símbolos cristãos e ma-neiras de tratamento palikur não tenha resistido diante daquela entre orações e antibióticos, sulfas, vicks etc. No entanto, isso não representou o fim do uso do conhecimento fitoterápico e mesmo de encantações e sopros, praticados até os dias de hoje.

Explicando as diferenças entre pajé, feiticeiro e soprador, Paulo Orlando relata uma história de cura bem-sucedida realizada por um

Page 329: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

soprador e, em sua conclusão sobre a eficácia da cura, fornece uma concepção de como ocorre a convivência de práticas como as encan-tações e os sopros com a religião cristã evangélica, diz ele:

Deus sabe que nós não temos médico, não temos nada, então cada pessoa tem o seu modo de viver e de solucionar o problema. Então esse é o tal de pota, o tal soprador, que sopra. (Kumenê, 1996)

Essa conclusão traduz uma espécie de subsunção das práticas xamânicas em relação ao domínio onipotente de Deus, ser supre-mo que age por diversos meios, inclusive pelo sopro do xamã cura-dor. Pode-se dizer que há uma inversão, na qual a conexão direta ocorre entre as práticas ditas "mais tradicionais", alopatias e ora-ções. Donde se conclui que a busca tenaz pela eficácia dós trata-mentos ultrapassa esta ou aquela crença.

As passagens que mencionam outros usos e costumes deriva-dos do contato com o catolicismo são mais fragmentadas, entre-tanto, não menos fundamentais que as precedentes. Em determi-nado trecho, o Diário faz uma curta menção a respeito de uma das inúmeras festas que ocorriam no período em que os missionários chegaram ao Urukauá, sobre a qual diz tratar-se de uma festa ao estilo brasileiro e não indígena. Tratava-se de uma festa de santo,20

regada a wohska (bebida fermentada) e cuja característica mais marcante é a presença de um mastro fincado no meio do pátio do "dono" da festa:

June 24, 1965 — Thursday: [...] The banner or flag was erected in Paulos yard. The pole was covered with green leaves and bananas. The flag was white with a bird, a cross and the name São Antonio written in blue. The flag belonged to a man on another island. (1965-77: 13)

Por fim, vale destacar que é relevante a contraposição feita por Diana entre essa festa do mastro com bandeira de santo e fes-

Page 330: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

tas indígenas, pois aponta para a mesma diferenciação que fazem os índios da região entre as festas de Turé e as festas realizadas para os santos padroeiros, a primeira considerada indígena e a segunda não. O que nos leva a crer que poderia ocorrer situação semelhante ao que se vê hoje sobretudo entre os karipuna, onde se observa a realização de rituais xamânicos em paralelo às festas católicas. No entanto, não estou com isso supondo que havia entre os palikur um sistema religioso que congregava catolicismo e xamanismo nos mesmos termos que se observam hoje entre alguns dos povos vizinhos, mas apenas que entre eles também se proces-savam, bem ou mal, os costumes católicos difundidos na área.

Aliando as informações fornecidas pelo Diário sobre as tera-pias de cura e as festas de contorno católico às narrativas indíge-nas sobre a ação dos padres na região, sobre a inserção do com-padrio no sistema de parentesco e sobre aspectos do catolicismo hoje desprezados, considero que se pode obter um quadro mini-mamente ordenado de como era a configuração católica entre os palikur.

Porém, o motivo pelo qual o catolicismo não perde as cores é o fato de estar impresso no presente e não no passado. E esse catolicismo das narrativas é associado àquele praticado pelos povos vizinhos. O catolicismo que aparece nos discursos dos crentes palikur parece refletir a imagem invertida do ideal cren-te, aspecto que, então, torna seu conhecimento relevante para a compreensão de alguns fundamentos do processo de conversão evangélica.

E E N F I M O S E V A N G É L I C O S

Cronologicamente, a história da entrada da religião evangélica no Urukauá começa por volta da década de 1950, quando membros de igrejas evangélicas, em momentos diferentes, iniciaram os pri-meiros contatos com os palikur. Em diversas narrativas aparece

Page 331: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

uma espécie de "história dos eventos" da conversão. Apresento a seguir um dos testemunhos dessa história.

Em 1958, chega um rapaz que acho que é um holandês, ele é cren-te... ninguém conhecia aquilo de crente... Ele não pregou o evange-lho, porque ele tem medo do índio, depois foi embora aí chegou outro, um americano, ficou três dias no rio, estava com medo do índio matar ele. Depois do americano outro chegou aqui e começou a pregar o evangelho, na casa do senhor Paulo (Paulo Orlando), na época que ele chegou aqui, não tinha casa, era tudo mato... Aí che-gava aqui com essa canção: — Cristo salva, cristo salva, salva peca-dor... Na época que eles canta o americano falou: — Olha, vocês não pode cantar isso porque vocês não aceitaram Jesus... Porque a gente ainda não sabia também, não é"? Mas Jesus não fala isso não... é verdade que ele salva mesmo. Depois que chega um rapaz que o nome dele é Aroldo (Harold Green), aí... ele ficou... doze anos eles ficaram aqui. O Aroldo é crente batista, a gente ainda não conhecia Deus, o senhor. Aroldo não prega o evangelho, ele só virando a Bíblia na língua do índio. Ele era uma bilíngüe né, lingüista...o Aroldo já estava plantando a semente do Deus aqui no Kumenê. Aí... quando a semente nasceu, chegou um rapaz, que era pastor, "mspirante" de Deus, era muito inspirado mesmo, graças a Deus, o nome dele era Glen Johnson. Chegou aqui em 1968, ninguém aceitava Jesus tam-bém, ninguém entendeu a palavra dele, ele também porque não fala português, ele veio com um rapaz, um brasileiro o nome dele é Wilson. Aí o seu Glen começou a pregar o evangelho... mas ninguém da gente entendeu, quem que entende a palavra dele apenas o senhor Moisés e o Paulo, quando ele pregou o evangelho o senhor Paulo com o finado senhor Moisés eles traduziam para nós em pali-kur... aí nós começamos a conhecer, aí eles voltavam, passava uma semana, chegava de novo, começou a pregar, ficava dois dias, volta no Oiapoque de novo, passava mais uma semana, chega de novo, começando a pregar, aí veio quatro vezes, meu irmão aceitava Jesus, meu irmão Roberto Ioiô com a esposa dele foi o primeiro a aceitar

Page 332: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Jesus... e o cunhado dele, sogra e o sogro dele também. Eles aceita-ram Jesus... aí depois o pastor ficava muito alegre, acho também que Deus que dava poder para ele, Deus começou a falar com ele que... o rio Urukauá, que ele vai aceitar todas as pessoas aceitava Jesus, graças a Deus, na época, quando nós não aceitava lesus, aqui nós não tinha nada, nem branco, nem Funai, não tem nada, nada... nem professora. Aí depois que o pastor chegou de novo, aí encontrava com Paulo que estava fazendo uma festa na casa dele. Aí no meio do caxixi,21 ele tava ficando porre... Aí o Paulo começava... a aceitar Jesus bêbado, aí o pastor falou com ele: — Olha! Agora que o senhor não pode beber nada, o senhor tava pastor agora, não é pastor, mas a gente vai dar pro senhor só como pregador. Aí começaram a pregar e deixava o caxixi, o Paulo deixava o caxixi, aí o Paulo aceitou Jesus, com a mãe dele e o irmão dele, o finado senhor Leon. Aí o Paulo começou a pregar o Evangelho, na época também que todo mundo tava aí do outro lado, todo mundo tava tudo espalhado. Aí... o Glen chegou de novo e começou a pregar o Evangelho, estava orando, aí depois nós aceitamos Jesus, todo mundo aceitava, quase todo mundo, mas na época... o resto daquele pessoa daqui eles viviam só com chora aqui, com chora mudava aqui tudinho, mas chegava aqui com chora. Chorando, chegava com alegre, aceitaram... estavam sen-tindo a alegria do Deus no coração deles, chegavam todos alegres aqui, todo mundo aceitava Jesus... Graças a Deus, foi ele, mas não é ele, foi Deus, foi Jesus. (Carlos Floriano Ioiô, Kumenê, 1997)

Para um olhar externo e completamente leigo em questões e atribuições religiosas evangélicas, o papel desempenhado pelos missionários lingüistas era o óbvio divisor de águas, permitindo visualizar um período anterior à evangelização e outro posterior, sendo, portanto, a meu ver, o evento fundamental da conversão. Contudo, deve-se considerar que há uma divisão de papéis e de etapas no processo religioso cujo fim é a conversão. Aos missioná-rios lingüistas cabe estudar a língua para a tradução dos evange-

Page 333: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

lhos, transmitir, pouco a pouco, os ensinamentos destes ao grupo de informantes com os quais trabalham no conhecimento do ver-náculo nativo, formando o que é chamado por Barros (1993) de "grupo de leitores da Escritura", e, por fim, dar exemplo de vida, mostrar em campo o comportamento ideal do crente. Feito isso, entra-se na etapa posterior, geralmente conduzida por missionários evangelistas e/ou pastores, na qual a partir de prédicas e exorta-ções obtém-se o assentimento individual à entrada em uma "nova vida", em outras palavras, à conversão.

Na estratégia de evangelização pela tradução, o SIL se encarrega de construir os alicerces de uma igreja evangélica nos moldes do ideá-rio do tradutor da Reforma: através da tradução da Bíblia na língua vernácula e da formação de um grupo de leitores da Escritura. A manutenção posterior dessa igreja fica a cargo das outras missões evangélicas, o que tem levado o SIL a trabalhar em dobradinha com a New Tribes Mission. (Barros, 1993: 27)

Tanto o SIL quanto a NTM, cuja versão brasileira é representa-da pela Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), são missões trans-culturais22 de origem fundamentalista, uma linha de pensamento religioso que se assenta na leitura literal da Bíblia, como continen-te da história da humanidade, confrontando-se diretamente com o pensamento evolucionista vigente no campo das ciências desde Darwin (Crapanzano, 2000: 183-93). Essa corrente fundamenta-lista opõe-se radicalmente à linha de pensamento religioso mais progressista, formada principalmente por membros das elites ecle-siásticas que possuem cleros formados em seminários e vínculos com universidades, pregando teologias "liberais" a ponto de propor o ecumenismo e uma leitura alegórica das escrituras em conso-nância com os descobrimentos da ciência23 (Barros, 1993: 32; Fernandes, 1980: 140-1). A oposição dos fundamentalistas em relação às outras correntes religiosas é radical a ponto de eles se negarem a dialogar com estas:

Page 334: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Though Fundamentalist is as prone to apologetics as any church [...] it has tended to retreat from any active, criticai engagement with other Christianities, certainly other religions. Fundamentalist theologians argue among themselves. For the most part they do not argue with theologians from non-evangelical churches. They tend to dismiss these other theologies in a name-calling way, with easy stereotypes. Their understanding of other religions, indeed, other value systems, is limited and judgmental. They have the truth, they have Jesus, they have been chosen — why bother to engage? (Crapanzano, 2000: xxiii)

Não por acaso a principal estratégia de conversão dessa rede interdenominacional é a tradução dos Evangelhos para as línguas nativas, possibilitando aos "novos" fiéis o acesso direto à "verdade literal da Bíblia", numa espécie de transliteração da palavra de Deus. De acordo com Almeida:

[...] a tradução da Bíblia é a atividade missionária evangélica, por excelência. A ação protestante visa garantir o acesso direto ao texto sagrado sem mediação sacerdotal. A missão, portanto, pode ser reduzida ao esforço de tradução deste elemento mediador. E para sua efetivação é necessário o agente missionário, [...] profissional da religião dedicado à expansão. Nele se encontram de forma conden-sada e especializada as idéias religiosas, as técnicas e as estratégias de evangelização. (Almeida, 2002: 17)

A divisão de funções, mas principalmente a incerteza quanto ao que entendiam os índios sobre a mensagem cristã que começa-va a lhes ser transmitida e as dúvidas quanto ao melhor meio de transmiti-la, aparecem, cá e lá, nos três primeiros anos descritos no Diário. Essa insegurança faz parte do controle de qualidade da mensagem, mas principalmente da subjetividade que envolve o repasse de um conhecimento que supõe a adesão a uma nova crença, a fé cristã.

Page 335: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Porém sua intervenção não foi cautelosa ao ponto de deixarem de cumprir o papel proselitista que uma missão religiosa exige. Lembremos que é substancial o que se passa de conhecimento religioso no ato da tradução. E que, durante o período que estão em campo, os missionários devem ser exemplo de conduta a ser seguida, agindo em auxílio a todos que correm em busca de socor-ro, principalmente médico, mas também de outras ordens, como sobrenaturais.

O Diário mostra que Diana e Harold Green gastaram parte de seu tempo em campo cuidando de doentes. Ao interferirem nesse campo, com razoável sucesso devido aos fortes efeitos da alopatia, os missionários terminaram por colocar-se numa situação que demandava cuidado, pois em pouco tempo, passaram a ser vistos como uma espécie de xamãs poderosos que possuíam um espírito auxiliar mais poderoso ainda, Deus. O desejo de não ter sua mensa-gem corrompida os auxiliou a esclarecer e separar bem o sistema religioso cristão do sistema de crenças xamânicas, aspecto funda-mental para a continuidade do processo evangelizador; sem isso, arriscariam ver seu trabalho fazer água antes do tempo de consolidá-lo.24 Ser equiparado ao xamã seria inserir-se no sistema xamânico vigente, e com isso a distintividade da missão estaria comprometida. Contrapor-se ao xamã era absolutamente necessário para marcar uma linha de oposição, que estabelecia a missão cristã no pólo posi-tivo e o xamã no negativo, inserido no sistema maniqueísta cristão que opõe: bem/mal, Deus/diabo. De acordo com Almeida, para os missionários, esse referencial dualista é absolutamente essencial e deve ser reconstituído no contexto de cada missão:

Se anteriormente foi afirmado que cada cultura tem uma idéia de Deus, o mesmo vale para o diabo. Uma das naturezas da vida social é a "herança de Adão". Qualquer cultura tem uma malignidade camuflada [...]. O erro dos índios consistiria em não entender que seus espíritos são manifestações de seres malignos — o diabo e seus demônios [...]. (2002: 145)

Page 336: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Estabelecer claramente as diferenças entre as noções cristãs de Deus e diabo e torná-las significativas nas mais diversas socie-dades nas quais o cristianismo queira instalar-se é uma das princi-pais atividades a que se dedicam as missões. Um exemplo claro disso pode ser visto na analise de Birgit Meyer sobre o papel do diabo na conversão dos ewe de Gana, empreendida por missioná-rios pietistas alemães. A autora mostra como a noção da Igreja Pietista Alemã de um diabo que é ao mesmo tempo interiorizado pelos pecados individuais e exteriorizado numa presença física foi o elo de ligação com a cosmologia e o panteão ewe.

For Ewe Christians the Devil was clearly the link between Christianity and the Ewe religion: as Abosamhe represented ali trõwo and other spiritual beings, and as the Devil he was Gods counterpart. He integrated into the Ewe Christian worldview ali the gods and ghosts previously known to them, and thereby the non-Christian religion became meaningful in the light of Christianity. It also became an integral part of it, though negatively defined and transformed [..]. (Meyer, 1999: 100)

Os espíritos auxiliares do xamã palikur também ganharam status negativo e foram transformados em manifestações do diabo. No entanto, um aspecto relacionado ao xamã, a possessão, foi res-significado pela introdução do batismo com o Espírito Santo dentro da Igreja, e passou a ser visto de maneira positiva. Como veremos adiante, esse aspecto teve influência definitiva na conversão palikur.

Se o xamanismo das sociedades indígenas é variável na forma, há algo nele que é invariável: o xamã como aquele que organiza o conhecimento da sociedade, uma vez que tem acesso excepcional aos diversos mundos, à concepção cosmológica, escatológica etc. e portanto aos diversos conhecimentos. O xamã carrega, nas mais diversas situações em que se encontre a sociedade da qual faz parte, uma perspectiva ampliada de sua sociedade (Carneiro da Cunha, 1998).

Page 337: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Se assim o concebemos, então torna-se claro o motivo pelo qual o xamã palikur foi banido da sociedade após o processo de conversão. Ele corporificava magistralmente aspectos da identida-de palikur incompatíveis com a adesão à crença pentecostal, e per-feitos para serem enquadrados no sistema cristão como represen-tativos da malignidade. O xamã palikur era o realizador dos rituais devotados aos seres espirituais, nos quais estavam presentes o uso da bebida wohska e do fumo; e praticava a feitiçaria, também acompanhada pelo fumo e pela bebida.

Após a evangelização pentecostal houve uma mudança na ocupação espacial no Urukauá, traduzida na concentração de várias famílias em uma única aldeia, Kumenê. Essa concentração costuma ser apontada pelos palikur como um fator positivo em relação ao modo de ocupação passado, de pequenos grupos locais distribuídos em aldeias afastadas. A antiga forma de ocupação espacial é hoje atribuída às ações dos xamãs. Estes seriam os res-ponsáveis por manter as pessoas distanciadas umas das outras, por promoverem, por meio da feitiçaria, um verdadeiro estado de ven-deta, criando um sistema de vinganças que se retroalimentava. Entendido este no sentido atribuído por Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro, em que:

[...] uma certa cumplicidade [...] permite à vingança, fruto da vin-gança, gerar a vingança futura e [...] coloca, assim, em uma relação permanente de hostilidade os grupos envolvidos [...]. (1985: 64-5)

Os palikur contam que antigamente a vingança era empreendi-da por meio da própria feitiçaria, que poderia ser feita pelo sopro em alimentos ou objetos daquele a quem se pretendia fazer o malefício, ou por meio dos "olhos d1agua", nos quais bastava colocar uma roupa de quem se queria matar, ou qualquer coisa com que a pessoa tivesse tido contato, e estabelecer um prazo para a realização do fei-tiço; no prazo estipulado o dono da roupa morria. Com o tempo esse

Page 338: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

tipo de vingança foi sendo substituído por uma vingança mais corpo a corpo, e assim a troca de acusações sempre redundava no extermí-nio físico do suposto culpado por praticar feitiçaria. Mas, de acordo com uma informação do pe. Fauque de 1736 (Lettres Ed. et Cur., 1839: 28), que menciona a matança empreendida pelos palikur con-tra seus "pajés", essa prática existe há bastante tempo. O que faz pensar que talvez a troca de feitiçarias e a de agressões físicas tenham sempre andado juntas.

Enfim, os xamãs são julgados pelos crentes palikur como prin-cipais protagonistas da incapacidade que tinham de viver em uma sociedade harmônica, entenda-se, sem guerras, brigas e mortes. Porém, o duplo encargo de fazer malefícios e curar revela uma certa ambigüidade no discurso dos crentes palikur sobre o xamã, mostran-do que o universo xamânico não desapareceu, permanece ainda pre-sente nos discursos e nas práticas de cura, como a manipulação de ervas, o uso de encantações e sopros. Isso sem mencionar o lado xamânico manifesto na religião pentecostal.

Embora a carga negativa do sistema pré-conversão seja atri-buída quase que integralmente aos xamãs, este não são os únicos responsáveis por impedir os palikur de terem uma vida social mais intensa e próxima, são apenas parte de um conjunto amplo de ati-vidades e comportamento sociais vistos como propiciadores de estados de violência, formado pelas práticas rituais; por crenças xamânicas; pelo universo cosmológico pré-cristão; pelas relações entre afins e consangüíneos, vividas cotidianamente e tematizadas nos mitos; pela bebida alcoólica; etc.

Com a religião evangélica o amplo espectro de estados de agres-sividade comportado pela sociedade adquiriu a conotação de esta-dos endemoninhados, e por conta disso uma das imagens mais for-tes do mundo evangélico palikur é a dos "soldados de cristo que lutam por Deus e contra o demônio".26

Page 339: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

I N S T I T U I N D O A I G R E J A

Geertz, na análise que faz sobre o islamismo no Marrocos e na Indonésia, mostra como em cada uma dessas sociedades essa reli-gião de Grande Tradição se insere ajustando-se a uma espécie de estrutura cultural prévia, que faz com que o islamismo se apresen-te de maneiras diferentes:

Las razones materiales por Ias que el Islam marroquí llegó a ser acti-vista, riguroso, dogmático y algo más que simplemente antropocén-trico, y por las que el Islam indonésio llegó a ser sincretista, reflexi-vo, variado, y a manifestar una notable postura fenomenológica se hallan, al menos en parte, en el tipo de vida colectiva dentro de y junto a la cual ambos evolucionaron. (1994: 38)

"O tipo de vida coletiva", como resume Geertz, é um dos fato-res determinantes para o resultado de um processo de conversão, que pode explicar por que o cuidado observado pelos missionários lingüistas na transmissão da mensagem Evangélica não garantiu os resultados pós-conversão esperados por estes. As condições dadas no campo acrescentaram ingredientes que não faziam parte do script original.

A discordância com alguns aspectos da religião instituída entre os palikur aparece no Diário, mas também me foi explicita-da em conversas entabuladas com Diana no período em que con-vivemos em campo:

November 15, 1970 — Saturday: [...] There were two women who claimed to be "filled with the Spirit". They were quite overcome with emotion and were shouting "Jesus, meu pai" over and over again! They werent even speaking in Palikur but in Portuguese. A purely learned or copied phrase used by Brazilians in Assembly of God Churches. How sad they are missing the hlessing ofknowing the depths of Gods ways, which they could have by using their own lan-guage instead of the national language. (1965-77: 61, grifo meu)

Page 340: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Três anos após a vinda dos Green, ocorreu o evento que marca, nas narrativas indígenas,2/ o momento da conversão, isto é, a chegada ao Urukauá de um pastor da New Tribes Mission (NTM) que seguia de barco numa missão rumo à Argentina, quando seu barco quebrou próximo à baía do rio Oiapoque, obrigando-o a per-manecer algumas semanas na cidade de Oiapoque. Lá, teria sido informado sobre a existência de uma população indígena "ainda não alcançada", para usar a expressão de lei entre os missionários. De posse dessa informação, fez algumas incursões pelo Urukauá, para onde ia e permanecia uns poucos dias por semana, iniciando, então, uma série de pregações evangélicas em inglês, as quais eram traduzidas para o português pelo militar brasileiro que os acompanhava e do português para o parikwaki pelos índios Paulo Orlando e Moisés Iaparrá. Após algum tempo dessa Babel de pré-dicas, as pessoas passaram a aceitar o batismo nas águas e torna-ram-se crentes.

Dito desse modo tudo parece muito simples. No entanto, não foram somente as palavras do pastor que serviram como força de atração, houve um elemento cuja força arrebatadora parece ter sido o ponto chave de todo o processo de conversão e manutenção da religião pentecostal no Urukauá. Esse componente aparece no relato do sr. Carlos Floriano na forma de uma euforia, que se caracteriza por suscitar nas pessoas uma vontade irrepreensível de chorar e se alegrar, fenômeno definido pelo sr. Carlos Floriano como: "sentindo a alegria de Deus no coração". Trata-se do transe religioso, o batismo com o Espírito Santo, presente nas Igrejas pentecostais.

O batismo com o Espírito Santo diferencia de modo radical os pentecostais dos outros cristãos. Para essa religião evangélica Deus se apresenta próximo, manifesto, e é chamado de "Deus vivo" ou "Deus verdadeiro". Não há na relação entre os Homens e Deus nenhum tipo de barreira, nem santos, nem padres. E a comunica-ção desse Deus com os Homens ocorre em diferentes planos, por meio: das escrituras; da manifestação em seres da natureza; dos

Page 341: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

sonhos; e do canto. Afora as escrituras, todos os outros meios cita-dos remetem a um referencial de comunicação com o mundo sobrenatural extremamente xamânico.

Porém, na medida em que Igreja Evangélica Assembléia de Deus (IEAD) 28 vai se instituindo, inicia-se o processo de normati-zação da religiosidade. Doravante, é preciso dedicação à doutrina da Igreja, entendida como "costumes comportamentais" (Freston, 1994: 126, nota 17), cujos principais, no caso palikur são: não inge-rir bebida alcoólica; não praticar esporte competitivo; não fumar; casar dentro da Igreja; manter os cabelos curtos, para os homens, e compridos, para as mulheres.

Apesar de parecerem um tanto impositivas, essas normas de conduta não são aplicadas a ferro e fogo. No passado, quando a religião ainda estava em vias de instalação, havia uma rigidez maior em sua aplicação (Arnaud, 1996: 321). Hoje, ainda há uma pres-são do pastor e da comunidade da Igreja para que os fiéis não se descomprometam da doutrina da Igreja, mas a pressão maior pare-ce ser interna; cometer uma falta com a Igreja acarreta um senti-mento de culpa que é individual e faz parte da relação do indiví-duo com Deus. Ao questionar sobre o modo pelo qual as pessoas afastavam-se da Igreja, ouvi mais de uma vez de crentes fiéis e crentes afastados a mesma resposta: não é a Igreja que afasta quem se desvia das normas, é o próprio "desviado" quem se retira.

A imersão no Espírito Santo e a leitura cuidadosa da Bíblia são as marcas fundamentais dos pentecostais (Crapanzano, 2000: 41), e isso se aplica com todas as letras à IEAD (Mafra, 2001: 31), portanto a leitura da Bíblia é imprescindível para manter a relação com Deus o mais estreita possível. Aos olhos palikur, a Bíblia Sagrada é a fonte para toda e qualquer explicação: seja sobre a ori-gem e o fim dos Homens e do Mundo, seja sobre o comportamen-to cotidiano do fiel. Ela é uma espécie de guia de diretrizes para a vida dos humanos e, por isso, é constantemente escrutinada na busca de respostas e conforto para os infortúnios do dia-a-dia. Não por acaso, as escrituras ocupam lugar central na celebração dos

Page 342: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

cultos, podendo ser manuseadas por todos os fiéis. As partes lidas no culto, de alguma maneira, no momento em que são recitadas, fazem sentido para a vida de quem as está lendo, e disso advém o desejo de compartilhá-las com a comunidade dos irmãos.

Também como ferramenta principal, a Bíblia é utilizada nas investidas de conversão realizadas pelos próprios palikur entre os não-evangélicos.29 Em 1997, acompanhei uma investida de conver-são empreendida pela IEAD entre os palikur adventistas do Tawari. Os pastores palikur da Assembléia de Deus realizaram um culto de evangelização totalmente assentado na leitura e na interpretação do Evangelho de Lucas (1:5-80),30 esforçando-se ao máximo para tornar palpáveis àquela audiência as histórias lidas na Bíblia. O ins-trumento que, mais tarde, serviria de apoio à pregação do pastor era um vídeo sobre a vida de Jesus, ao qual ele se remetia como um ates-tado da veracidade do conteúdo lido no livro sagrado.

O culto do Tawary mostrou que a possibilidade de ver em vídeo o que está escrito na Bíblia era um modo de torná-la mais acessível a uma comunidade cuja escrita não é de domínio corren-te, significando a possibilidade concreta de "conhecer a palavra de Deus", e com isso poder finalmente acreditar na Uhokri Gannasan (título da Bíblia palikur, que significa "a palavra de Deus"). A cone-xão entre o "ver" e o "crer" é fundamental para um crente palikur.31

A importância dessa conexão é também presente entre os urap-min, que consideram a visão um meio de aquisição do conheci-mento genuíno e o olhar, o sentido humano mais importante íRobbins, 2004: 261).

O "ver" e o "crer" andam juntos desde o princípio da conversão, e um exemplo disso é o batismo com o Espírito Santo, que, ao pro-porcionar uma experiência de contato com o mundo sobrenatural, possibilita o conhecimento sobre esse mundo. E dessa perspectiva que o catolicismo foi visto como insuficiente, pois não fornecia o "conhecimento" necessário para que se pudesse crer em Deus.

Como dito mais acima, os modos pelos quais Deus é experi-mentado, principalmente através do sonho e do transe, aludem

Page 343: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

diretamente ao universo do xamã. A relação entre a experiência do transe xamânico e a experiência do transe pentecostal parece ser a chave que abriu as portas à religião cristã evangélica.32 Mas em que consiste o pentecostalismo palikur? Pode-se dizer que consis-te na ética cotidiana (ou "costumes comportamentais"), mas, fun-damentalmente, na doutrina do Espírito Santo.

A força de convencimento do Espírito Santo pode ser medida no relato de um "batismo de fogo", como é denominado o primei-ro contato com o Espírito Santo em oposição ao batismo nas águas. O episódio descrito abaixo, assim como a história do marco de conversão (cf. supra), se passa quase por acaso, quando um palikur e três karipuna que estavam com ele numa expedição de caça viram-se obrigados a parar na aldeia Kumenê para arranjar suprimentos. Ao pedirem auxílio ao pastor Paulo Orlando, recebe-ram vários quilos de farinha doada pelos crentes e o convite para participar de um culto:

Aí o senhor Paulo disse: — Você pode ir freqüentar o culto conos-co? — Sim, nós vamos à tarde. Aí quando chega sete horas da noite, pras oito, aí começou o culto... Naquele tempo eu ainda não tinha aceitado Jesus, então quando nós chegamos na Igreja não tinha mais cadeira pra gente sentar, então nós ficamos em pé no corredor... Aí os crentes entraram, quando os crentes começaram orar de repente, naquele momento, eu senti, entrou um vento muito frio pela porta aonde a gente entra... então, depois que o vento passou, só faltava mesmo pra gente ver o homem que vem andando, só faltava mesmo isso... não faltava nada mais, porque naquela hora passou, primeiro o seu Marajó estava em pé assim diante de mim, depois eu, depois de mim o Valdomiro, depois do Valdomiro o Ivan, então ele passou, primeiro ele passou assim, a mão, eu vi! eu vi o seu Marajó, ele ficou meio assim, modificado mesmo... ele queria chorar, queria gritar, queria cantar, ele queria se alegrar, ele queria se... orar, naquela hora, mas eu fiquei assim olhando nele, mas quando eu senti a mão do homem passou assim na minha cabeça..., mas a mão do homem

Page 344: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

dava pra você gritar, alegrar, cantar, orar, chorar, mas que gozo! mas que alegria! que a gente recebe, aí eu fiquei lá... eu quase não supor-tava mais, eu queria chorar, eu queria gritar, eu queria cantar, eu queria orar, eu queria dançar, eu queria correr pra dentro da igreja pra me ajoelhar e orar, e cantar, e pregar, e fazer tudo. Aí, não podia mais suportar aquele gozo, aquela alegria, mas que alegria! o seu Marajó também, o Valdomiro também, o Ivan também, nós quatro, aí o Marajó não suportava mais, e tu sabe o que ele me dizia? Dizia assim: — Manoel, embora sair lá que eu quero verter água. — Aí quando nós saímos, ele disse: — Manoel não é verter tanta água assim que eu disse pra você vamos embora sair, mas é que eu não posso suportar mais, eu tava prá correr lá onde está o pastor. — Aí eu contei a minha também. Eu digo: — Seu Marajó, eu também. O filho dele respondeu também. Eu só faltava chorar, só faltava gri-tar, mas eu agüentei aquele gozo, aquela alegria, aonde que chegou um ponto que eu não podia mais suportar, aí o jeito é sair, nós saí-mos todos, aí quando nós chegamos lá fora conversamos, aí nós tor-namos entrar na igreja, aí nós ficamos aonde nós estávamos... não demora o homem voltando de lá, de dentro da igreja, ia voltando para o portão de novo, agora ele passou a mão nas minhas costas, passou a mão assim nas minhas costas, só faltava eu gritar, seu Marajó também, o Valdomiro também, aí só faltava eu cantar o hino, cantar o hino louvando a Deus, glorificando Deus, poxa, eu fiquei com aquilo... (Manoel Labonté, Kumenê 1996)

A narrativa acima revela as sensações de quem experimenta o fenômeno; um fenômeno apresentado como concreto. Os palikur não questionam a autenticidade ou não do êxtase vivido por alguém, ele é um fato. Comparando-se o êxtase palikur com o ~repouso no espírito" que ocorre entre os carismáticos estudados por Csordas, nos quais a autenticidade do fenômeno é uma ques-tão com a qual se debate a comunidade religiosa (1997: 252-9), percebe-se que embora ambos possam ser vistos genericamente como estados de consciência alterada, a maneira como são inter-

Page 345: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

namente interpretados está diretamente relacionada ao referencial sociocultural de cada um.

Não há questionamento sobre a autenticidade do batismo com o Espírito Santo, porque lidar com o mundo dos espíritos não é novidade para os palikur. A novidade é poder fazer isso de uma maneira segura. Desta feita, o controle da religião pentecostal sobre o transe torna-se um importante diferencial entre este e o transe xamânico, uma vez que, estando controlado, o contato com o mundo sobrenatural não oferece perigo, tornando-se extremamente dese-jado. Ao passo que a relação com outros domínios do cosmos, mediada pelo xamã, é uma relação que pode ser perigosa, pois depende da habilidade do visionário em controlá-la. Ao xamã cabe a responsabilidade de negociar com os espíritos e a todos cabe não transgredir as regras sociais estabelecidas para não provocar a ira destes.

O fenômeno do êxtase é visto como uma prova da existência de Deus. E o Espírito Santo quem toca o sr. Manoel, e é nesse momento que ele passa a "conhecer" Deus. Essa experiência feno-menológica é não só a força de atração, mas a mantenedora dos laços com a Igreja, porque é considerada como uma experiência particular daquilo que se vai vivenciar na vida eterna. Todos alme-jam o gozo, a alegria, a vida sem infortúnios que o fim dos tempos reserva àqueles que "aceitaram Jesus".

C O N S I D E R A Ç Õ E S F I N A I S

O que se depreende do levantamento sobre o passado religioso palikur e da confrontação com as religiosidades presentes entre seus vizinhos é que há uma identidade religiosa evangélica cons-truída dentro de uma matriz cristã. O passado religioso palikur foi composto por elementos católicos, com os quais a convivência é muito antiga, desde os jesuítas, passando pelos padres das paró-quias dos municípios próximos, até o sistema de festas de santo

Page 346: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

das populações vizinhas. Esse passado, espelhado no presente dos povos vizinhos, é condenado, seja porque os elementos do catoli-cismo não foram eficientes o bastante para se ter um conhecimen-to de Deus, seja por causa da permissividade em relação ao xamã e ao xamanismo. E no contraste que sobressaem os elementos mais caros à religiosidade dos evangélicos palikur, quais sejam: o contato íntimo com Deus, por meio do pentecostalismo; e o fim do sistema de vinganças, por meio do banimento dos xamãs e de todo o sistema ritual sustentado neles.

Se os missionários chegam ao campo com uma caixa pronta, vêem-se obrigados a abri-la e refazê-la, e os ajustes são feitos de parte a parte, tanto por eles quanto pelos palikur. Do conteúdo da caixa, algumas coisas produzem ressonância e permitem estabelecer pon-tos de contato. Num primeiro momento, entra em jogo o sistema maniqueísta cristão, fixando no pólo negativo o sistema de vingan-ça dos xamãs e em contraposição a ele o sistema de perdão cris-tão. A apresentação de uma alternativa à vingança simbolizada pelos xamãs e ao que ela representa foi um forte atrativo para a evangelização. Contudo, a religião evangélica não deu conta de subtrair o universo não desejado das violências, conseguindo ape-nas mantê-lo num estado de letargia do qual ele pode sair a qual-quer momento.

Entra em cena então, algo familiar aos palikur, o contato com o mundo sobrenatural. Desta feita, um mundo povoado por um único e onipotente espírito, o Espírito Santo, capaz de alcançar qualquer um indistintamente, bastando para isso que a pessoa se arrependa de sua condição de pecador e "aceite Jesus". Ver, conhe-cer em sua própria intimidade o Espírito de Deus é uma experiên-cia descrita como algo arrebatador, e também como um meio de saber que há vida além da morte e como essa vida se processará.

A resposta imediata dos palikur à pergunta sobre o que os teria motivado a aderirem à religião evangélica é similar à dos mis-sionários, isto é, a da substituição da vingança pelo perdão para uma vida terrena mais tranqüila. Porém a resposta revelada no

Page 347: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

modo pelo qual concebem o ser crente é mais ampla, contempla um universo de conhecimentos ancestrais, os quais forneceram ressonância para o entendimento da religião cristã. O tema trata-do de modo fundamental no processo de evangelização foi certa-mente a vida após a morte. Uma vida eterna brevemente experi-mentada na Terra, vista através de uma pequena fresta, no batismo com o Espírito Santo.

Então a significância desse espírito... o fogo é Espírito de Deus, do poder de Deus, então é com esse poder que Deus fez a Terra, fez tudo quanto existe na Terra, as aves, os animais, o Homem, então é assim, então o Espírito de Deus é isso. Deus é como um fogo! Deus ninguém aproxima ele! Deus é poderoso! Deus é bondoso! Deus é um homem espiritual! pois é, é isso, o espírito é isso. (Manoel Labonté, Kumenê, 1996)

Page 348: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

9

A C U L T U R A C O M O U M C A M I N H O P A R A A S A L M A S

Aramis Luis Silva

No FIM DE 2004 um grupo de índios bororo de Meruri1 embarcou para Gênova, cidade escolhida para ser a capital européia da cul-tura nesse ano, para participar de uma mostra onde, entre outras coisas, exibiriam a produção de oficinas culturais. No início do mesmo ano, o ministro da Cultura, Gilberto Gil, desembarcou na mesma reserva indígena para lançar um projeto-símbolo de políti-ca cultural para as minorias. Eventos completamente independen-tes, que contrastaram com a habitual calmaria na aldeia criada pela Missão Salesiana Sagrado Coração de Jesus em 1902, na região dos Tachos, e transferida em 1923 para atual área. E, se é necessário indicar uma pista que nos ajude a explicar toda essa movimentação, o conceito "cultura" e a formação de lideranças que agem em seu em torno é a melhor alternativa.

No primeiro artigo deste livro, Paula Montero menciona que nas últimas décadas "cultura" passa a operar de forma fundamen-tal em um ideário missionário antes organizado pelo conceito de conversão religiosa. Se tal código salvacionista transfigura o espi-ritual em cultural, caberia, segundo a autora, um exame caso a caso para entendermos de que modo essa conversão dos religio-

Page 349: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

sos à etnicidade se conecta aos interesses de específicas comuni-dades nativas.

Não podemos ignorar que, enquanto se verifica nas matrizes discursivas da Igreja católica tal passagem de uma gramática do religioso para o campo da cultura, observa-se desde as últimas décadas do século passado a emergência de um culturalismo nati-vo que expressa uma nova configuração de forças sociais e políti-cas.2 Está posta uma relação a ser investigada.

No texto que segue, convidamos o leitor a conhecer um exem-plo etnográfico em processo na Reserva Indígena de Meruri, esta-do de Mato Grosso, que pode nos ajudar a vislumbrar o desloca-mento simbólico e discursivo identificado por Paula Montero e nos dar pistas para entendermos conexões entre os discursos iden-titários nativo e missionário. Porém, antes de avançarmos com pre-tensões que visem a conclusões, por ora, fica como nossa princi-pal meta a documentação de um fenômeno local que se presta como reflexo de uma realidade global mais abrangente. Rumo aos fatos que nos interessam:

Trata-se da implantação de dois modelos de "projetos cultu-rais" independentes. O primeiro, o Centro de Pesquisa e Valo-rização da Cultura Bororo "Pe. Rodolfo Lunkenbein", idealizado pela professora doutora Aivone Carvalhão Brandão, com apoio da Congregação Salesiana, organização religiosa católica que mantém há 103 anos uma missão junto aos índios bororo de Meruri, e atualmente ligado ao Núcleo de Pesquisas em Etno-comunicação do Museu Dom Bosco-Universidade Católica Dom Bosco. O se-gundo, um projeto de construção de uma "aldeia cultural", distan-te cerca de 10 km da aldeia, criado sob liderança do bororo Paulo Meriecureu3 em parceria com o Instituto de Desenvolvimento das Tradições Indígenas (Ideti), sediado em São Paulo. Para dimensio-nar a força simbólica e política deste último projeto, vale lembrar-mos que ele foi tomado pelo Ministério da Cultura (MinC)4 como um modelo de política pública do governo Lula para a população indígena. Ação simbolicamente ratificada no dia 15 de abril de

Page 350: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

2004, com a presença do ministro Gilberto Gil em Meruri na ceri-mônia de lançamento oficial desse trabalho.

Interessante que a realidade nos proporciona assistir a iniciati-vas atreladas a atores relacionados a duas redes distintas de rela-ções. Porém, em ambas, o conceito de cultura circula como mola mestra de suas aspirações. De um lado, atores ligados à Igreja, que os interliga a uma estrutura escalonada em nível nacional e trans-nacional. Do outro, uma liderança que tem o suporte de uma orga-nização não-governamental indígena que lhe serve de intermedia-ção com órgãos estatais e civis da sociedade nacional envolvente. O que nos chama atenção é a possibilidade de identificar tais empresas dentro de um mesmo tipo de imaginação utópica.5 Para além de seus respectivos potenciais inventivos, nos deparamos com discursos estruturados sobre objetivações de uma cultura, para ins-crevê-la em esforços de "intervenção cultural". Religiosos ou não, a questão de ordem é fé na cultura.

Antes de avançarmos, apresentaremos sucintamente os proje-tos e alguns de seus atores envolvidos. Empreitadas que tomare-mos como expressões nativas de culturalismos, terminologia desenvolvida por Marshall Sahlins para classificar fenômenos rela-tivos à autoconsciência cultural característica do fim do século XX. E se o autor nos apresenta sua definição mais cabal do fenômeno como "a formação discursiva moderna das identidades indígenas em relação com as alteridades global-empíricas",6 faremos justa-mente dessa formulação o ponto de partida de nossa hipótese e dela extrairemos a espinha dorsal de nossa apresentação. Ou seja, discursos etnicitários nativos e religiosos participam de uma mesma formação discursiva, e o exame dos seus possíveis diálogos requer a observação dos distintos loci sociais nos quais os respec-tivos discursos são produzidos.

E fundamental a advertência: não se trata de comparar discur-sos ou buscar suas verdades, mas de identificar distintas redes de relações e entender como elas constroem e fazem circular idéias e conceitos. Percurso que faremos sob a perspectiva de que todo

Page 351: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

sentido é negociado e participante de uma engenhosa trama de significação que deve ser examinada contextualmente. Para che-garmos a tais idéias e conceitos, lançamos mão de falas de alguns personagens capitais no cenário merurense, que tomaremos neste artigo como criativos agentes que despontam em campo como expressões locais de um fenômeno político de formação de lide-ranças culturais. Esclarecido esse ponto, vamos aos nossos cultu-ralismos e suas conversas.

D A S E M I Ó T I C A DA C U L T U R A AO P O V O

B O R O R O . D E T U R I M A M E R U R I

O Centro Cultural "Pe. Rodolfo Lunkenbein",7 instalado no prédio da Missão Salesiana de Mato Grosso de Meruri, é composto por três unidades — funcionais e espaciais — distintas e contíguas. Uma sala de multimeios, aparelhada com televisão, videocassete, apare-lhos de DVD, mesa de som etc. e painéis fotográficos com imagens de rituais que vão do rito de nominação ao rito fúnebre bororo; a biblioteca Simão Bororo,8 que abriga ainda um arquivo fotográfico; e a Sala de Expressão de Cultura Koge Ekureu,9 local onde é exibi-da, além de artefatos integrantes da cultura material recentes, uma coleção de objetos rituais repatriada do Museu Colle Don Bosco, província de Asti, a vinte quilômetros de Turim, na Itália.

O objetivo do centro é a "valorização da cultura". Espaço para documentação, pesquisa e ponto de apoio para organização de ofi-cinas interessadas em "revigorar" as técnicas tradicionais de produ-ção da cultura material do povo e os respectivos contextos cosmo-lógicos aos quais elas se referem. Além de espaço reservado para exposição dos artigos repatriados pelo museu salesiano da Itália, as peças recentemente produzidas pelos bororo em "oficinas cultu-rais" estão disponíveis para serem utilizadas em rituais e cerimô-nias na aldeia ou para além de seus limites. Fatos ocorridos fre-qüentemente.

Page 352: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Sem contar com as fotografias e imagens de vídeo relacionadas ao processo de formação do centro cultural,10 a Sala de Expressão de Cultura Koge Ekureu se presta como um valioso documento simbólico — espacial — para analisarmos pressupostos que organi-zam o projeto. Acredito que os próprios religiosos não discordariam se elegermos tal sala como o coração do centro cultural.

Não se trata de expor simplesmente peças. Boe e-kudawa, akigos, bakus, parikos11 e uma multiplicidade de adornos perten-centes à famosa e exuberante arte plumária bororo etc. O esforço está em reinseri-los simbolicamente em uma organização social reconstruída. Mostrar que estiveram organizados sobre um quadro semântico "original e único" pertencente a um grupo humano cujos bororo de hoje são os seus herdeiros imediatos. Heranças que significam concomitantemente benefício e responsabilidade.

Para tanto, tratou-se de representar esquematicamente dentro da sala uma aldeia bororo tradicional seguindo formalmente os pontos cardeais que orientariam a distribuição espacial fora daquele espaço. Ou seja, suas metades exogâmicas (tugarege e ecerae) divididas entre norte e sul, e separadas por um eixo leste-oeste, onde os quatro clãs que as compõem foram reagrupados por trançados de broto de babaçu, que representam as paredes das oito casas clânicas comunais. Diante de tais fachadas-vitrines, foram afixados ou colocados em sua base o conjunto de peças que seria da primazia de cada clã de acordo a "tradição".

No centro da sala, ou do coração do centro cultural, foi colo-cada uma vitrine octogonal que guarda a coleção repatriada do Museu do Colle.12 Além de servir de abrigo para as peças que já contam com mais de noventa anos de existência, a vitrine susten-tada por quatro toras de aroeira assume a função de representar o baimanagejeu, a casa dos homens bororo, espaço de reuniões dos casados, moradia dos jovens iniciados e local que já foi interpreta-do pelos salesianos como o centro do poder religioso nativo.

Para finalizar a composição da bela metáfora plástica, um mastro de madeira atravessa a vitrine ligando o chão ao teto da sala

Page 353: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

(e da casa dos homens imaginária). Seria por meio desse pilar, que tradicionalmente ficaria no centro das casas dos homens bororo, que os aroe (espécie de almas antepassadas) desceriam ao mundo dos vivos. E nesse pilar que foram também afixados objetos rituais que expressam outro dualismo bororo. Do lado leste da madeira, um pana, instrumento de sopro e insígnia do herói mítico Itubore, que rege o lado oriental. A oeste, um ika, outro instrumento musi-cal, associado ao herói Bakororo. Encerrando a instalação museo-gráfica, um esplendoroso pariko usado para simbolizar a beleza e a vitalidade de uma cultura viva afixado no topo desse tronco cen-tral, antes elo de ligação entre mundos.

Inaugurado em 2001, um ano antes das comemorações do centenário da presença salesiana junto aos bororo de Meruri e no ano em que se celebrariam os 25 anos da morte do pe. Rodolfo Lunkenbein e de Simão Bororo, as raízes da história do centro cul-tural deitam em paisagens bem mais distantes. Recuperar essa his-tória pela memória de sua principal fomentadora, a professora Aivone Carvalho Brandão, documentada em tese de doutorado defendida junto ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Comu-nicação e Semiótica da Pontifica Universidade Católica de São Paulo13 (PUC-SP) ou em entrevista realizada em fevereiro de .2004 e janeiro de 2005, pode nos dar acesso a um imaginário valiosíssi-mo e nos instigar a entender de que modo a organização salesiana encontra parceiros para sua empreitada missionária.

A professora,14 ao rememorar a sua trajetória, localiza entre os corredores da PUC seu encontro decisivo com a "cultura boro-ro". Nas primeiras décadas dos anos 1990, a então aluna de semiótica da cultura do professor Fernando Segolin, interessada nas narrativas relacionadas ao universo "morte", trocou o estudo dos textos de Virgínia Woolf pela análise de uma narrativa que estaria sendo contada pelos rituais fúnebres bororo. Desse inte-resse nasce uma dissertação de mestrado,15 e, segundo ela, uma paixão por um povo. Porém, relação até então limitada à bibliogra-fia sobre o grupo étnico.

Page 354: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Planos familiares interrompem o projeto de um doutorado que poderiam levá-la a campo e ela segue para a Itália. Antes da parti-da, o vizinho e amigo de Brasília e sua maior referência antropoló-gica, Darcy Ribeiro,16 a consola contando que em Roma ela iria encontrar uma pequena e preciosa coleção de artefatos bororo no Museo Preistorico-Etnografico Luigi Pigorini. Nessa instituição ela ficaria por um ano trabalhando como pesquisadora e colabora-dora da reformulação de uma sala destinada a abrigar a coleção de peças americanas.

Findo o trabalho, a linha férrea que liga Roma a Turim seria sua ponte freqüente (ela continuou morando em Roma) para outra coleção de objetos bororo que se tornou mais conhecida a partir dos trabalhos: o acervo do Museo Missionário Etnologico Colle Bom Bosco, em Castel Nuovo, a vinte quilômetros de Turim. A instituição, parte de um complexo arquitetônico construído em torno da "Casetta di Don Bosco",17 tem no seu acervo cerca de 10 mil objetos coletados por missionários salesianos espalhados, a partir de 1875, pela América, Ásia, África e Oceania. Desse total, aproximadamente seiscentas peças são identificadas como perten-centes à cultura material bororo, sendo que a grande maioria foi enviada à Itália entre 1925 e 1926. Primeiro o papa Pio XI solici-tou que os missionários reunissem peças para a Exposição Missionária no Vaticano em comemoração ao Jubileu de 1925. Um ano após a mostra da Santa Sé, d. Filippo Rinaldi, então a autoridade máxima salesiana, organizou a Mostra Comemorativa do Cinqüentenário de Bom Bosco em Turim, formando, desse modo, com o acervo vindos das missões salesianas, o patrimônio museológico atual do Museu do Colle.

Aivone, após sua experiência no museu romano e com infor-mações etnológicas acumuladas para a qualificação de sua disser-tação em semiótica da cultura, chega no momento em que a insti-tuição passa por importantes reformas — físicas, conceituais e didáticas, segundo ela.

Page 355: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Assim, as culturas indígenas passaram a ser ordenadas segundo cri-térios estéticos e temáticos, em vez de serem organizadas quantita-tivamente, ou seja, reunidas de acordo com o maior número de peças coletadas. Dessa forma, as vitrines tornaram-se mais comuni-cativas, uma vez que textos explicativos e fotografias proporciona-ram aos visitantes a oportunidade de apreender a riqueza e a varie-dade operativa das diversas culturas ali representadas.18

A participação ativa nesse processo de reformulação museoló-gica do Colle, no trabalho de revalorização, catalogação do acervo e sistematização de informações sobre as peças, além de lhe abrir portas junto aos escalões superiores da congregação, ajudou a deli-near os contornos do seu antigo projeto de campo e a reorganizar sua forma de representar o mundo bororo.

Eu me dediquei muito para contribuir com meus conhecimentos na catalogação científica do acervo bororo. Cada objeto para mim era um bororo. Porque eu sabia que cada objeto tinha seu distintivo clâ-nico, que, às vezes, era construído para ser usado uma única vez. Eu podia ver quantos tinham nascido e quantos morrido através dos objetos. Era tudo muito vivo pra mim. E foi muito triste. Porque eu fui conhecer os bororo lá [na Itália]. E começou a crise e as indaga-ções. Como eles estão hoje? Como é que essa cultura tão maravilho-sa está toda aqui? O que será que tem lá?19

Munida de fotografias de cada uma das peças do acervo boro-ro salesiano e com o apoio institucional da congregação, ela regres-sa ao Brasil para finalmente concretizar o desejo de conhecer os bororo de carne e osso. Na bagagem, um projeto que foi se defi-nindo ao longo do tempo: fazer de algum modo aquele acervo — segundo ela, enclausurado no museu e sem aura — chegar ao Meruri, acreditando que tais objetos seriam "agentes comunicado-res da história,,2° com potencial de "revitalizar a cultura" e a "auto-estima dos bororo".

Page 356: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Os primeiros passos dessa estratégia, iniciada em 1999, foram junto à Escola Indígena do Meruri, sempre lembrada pelos salesia-nos como a primeira escola indígena do Brasil. A conquista da con-fiança dos alunos e dos professores indígenas seria, de acordo com Aivone, a ponte para "a comunidade".21 Depois de estimular con-versas nas quais os bororo falaram "sobre a vida, sobre sua histó-ria, sobre modos de ver e compreender o mundo, sobre diferenças culturais e semelhanças do espírito humano",22 as fotografias dos objetos foram apresentados ao grupo.

Ampliadas, bem definidas e agrupadas segundo o Rito de Nomina-ção, os alunos puderam manuseá-las, falar sobre elas, desenhá-las, descobrir seus nomes, usos e significações, com o auxílio da Enciclopédia Bororo e do conhecimento dos anciãos.23

Em maio de 2000, enquanto prosseguem na escola os traba-lhos que visam, por meio da produção de textos bilíngües, contex-tualizar os objetos apresentados aos alunos, ocorre um fato signifi-cativo: pais e padrinhos de duas crianças, com menos de um ano de idade, propuseram que fosse realizado ritual de nominação seguindo os "modelos tradicionais". Evento cuja interpretação da professora é peça fundamental para entendermos a sua conexão e operacionalidade frente ao contexto discursivo católico anunciado acima, de deslocamento de uma gramática religiosa para o campo da cultura. Transfiguração do código missionário que ao mesmo tempo reafirma sua estrutura universalizante salvacionista.

Assim, os alunos viram os objetos ressurgindo para a vida pelo fio da narrativa de suas próprias histórias, em meio ao ritual de nominação. O ritual começou ao pôr-do-sol de um dia e só terminou ao nascer do outro: cantos clânicos e uma recôndita alegria marcaram aqueles momentos de profunda significação, reunindo grandes e pequenos numa viagem em busca de si e da própria história; uma história con-tada através de objetos, quase uma seqüência narrativa capaz de

Page 357: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

compor o texto ritual que os levava ao encontro com os grandes heróis do passado, relembrados e, por isto mesmo, presentificados durante aquele rito. Era a ressurreição, o eterno retorno.24

A interpretação fenomenológica dada ao evento contida na tese corroboraria a hipótese primeira da autora: tais peças, muito mais que meros objetos da cultura material, seriam signos capazes de articular uma narrativa cosmológica. Por meio deles, uma memória poderia ser reativada, salvando uma cosmologia que cor-ria o risco de ser apagada pelos reveses de uma ocidentalização marcada pela violência das injustiças sociais. Mitos e ritos, para os quais esses objetos reivindicavam a sua contextualização, pode-riam ser os meios de acesso a essa cosmologia, expressão única de uma dada cultura que, em última instância, organiza sua forma particular de se relacionar com o sagrado e o profano. Em síntese, o projeto teria como meta criar mecanismos para a reativação dessa memória coletiva para que narrativas cosmológicas pudes-sem desencadear uma significação do mundo. Operação que teria como corolário a afirmação étnica do grupo e estímulo a um con-texto sociocultural que favoreceria a auto-estima individual.

E se para Aivone a possibilidade de materializar a idéia de "um diálogo entre o museu salesiano e a aldeia" era um meio para atingir o seu fim: a revitalização da cultura, para a congregação religiosa era bem-vindo o projeto que fazia dela (do seu acervo, do conhecimen-to coletado, organizado e produzido pelos salesianos) o instrumento. Estabelecia-se, desse modo, uma aliança entre expectativas conver-gentes, em que os respectivos agentes se beneficiariam das compe-tências, saberes e poderes dos seus aliados.

A partir daí, ganhamos chaves para interpretar a sua força em Meruri, indo além de seu carisma e projeto pessoal. Aivone, que conta com expressivo financiamento direto das autoridades sale-sianas de Turim, representa sangue novo no contexto missionário e no quadro de alianças entre brancos e os bororo. Ela pode ser tanto a ponte para novos compromissos entre missionários e índios

Page 358: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

estabelecidos sob novo código, como ponte entre o mundo religio-so e o mundo laico, aproximando o ideário religioso para uma lin-guagem leiga. Interessante mencionar que o diálogo entre religião e ciência é tema muito significativo na história da congregação e das Missões de Mato Grosso.25

Identificada uma estrutura relacionai entre agentes com expectativas convergentes, obviamente não devemos entender essas relações desencarnadas dos símbolos operados por tais ato-res. São eles, os símbolos, que asseguram a manutenção de alian-ças por meio de suas subjetivações e é para eles que converge grande parte dos esforços das agências para definir suas chaves de leitura. A narrativa de Aivone sobre sua "conversão" ao projeto mis-sionário salesiano contemporâneo é eloqüente:

Em relação aos salesianos é que me aconteceu uma coisa muito forte. Porque a idéia que eu tinha [da missão] era a de Darcy Ribeiro, era a idéia de outros antropólogos. E quando eu cheguei e vi padre Ochoa26 [...] que vive há mais de quarenta anos lá [em Meruri]. Pe. Ochoa, ele ama tanto aqueles índios. Eu acho que nenhum pai ama os filhos como o pe. Ochoa ama aqueles índios. Qualquer hora da noite, qualquer hora do dia que um deles chama por pe. Ochoa ele atende com a mesma ternura.27

O trecho acima se refere a um contexto de tomada de conhe-cimento (e uma interpretação pessoal) de um novo quadro ideoló-gico que passou a orientar a prática missionária católica pós-anos 1970, processo que vai culminar em um movimento organizado em torno de uma teologia designada pelos religiosos como Teologia da Inculturação. Trata-se de uma leitura, a partir de um contexto local, de algo que a Igreja definiria como "uma nova forma de evangeliza-ção" estruturada de maneira a responder questões relativas à afir-mação de identidades culturais locais e problematizar a relação entre cristianismo e ocidentalização. Um projeto com pretensões de definir o novo lugar da diferença no mundo contemporâneo den-

Page 359: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

tro de um processo de universalização "de valores humanos".28 Se o projeto salesiano por quase um século foi civilizar, ou seja, transfor-mar em igual para salvar, agora se tratava de preservar diferenças para atingir os mesmos fins. Inversão em que o conceito de cultu-ra ganha operacionalidade fundamental.

A surpresa de Aivone diante do contraste entre o que sabia ter sido a missão do passado e o que ela via no presente é ilustrativa. Afinal, relata a própria professora, quando chega em Meruri, a idéia básica que tinha sobre o trabalho da missão junto aos povos indígenas era formada pela opinião de Darcy Ribeiro, um dos mais ácidos críticos do trabalho missionário. Ou seja, a missão como uma das frentes de contato do mundo ocidental responsável pela "desestruturação da cultura nativa".29 Porém, o Meruri do fim do século XX, se ainda marcado pela miséria e por sérios problemas como o alcoolismo, que vitima número crescente de pessoas, para Aivone, contaria com parceiros do mundo branco muito diferentes daqueles pintados pelos escritos antropológicos sobre aculturação.

Os anos de internato, proibição do uso da língua bororo, iden-tificação de práticas culturais nativas com expressões demoníacas eram um passado que podia ser explicado a partir de referências a determinados contextos históricos. Um passado que podia ser redimido com o sangue de um missionário vertido em defesa de parte do território indígena30 e pelos anos que religiosos dedica-ram, no passado, a defender a vida dos índios, e no presente, a sua cultura. A biografia de nomes como pe. Ochoa e mestre Mario Bordignon, salesianos que se dedicam a um exaustivo trabalho de pesquisa, documentação e publicação, levando adiante a "tradição etnográfica salesiana", serviria de exemplo para ilustrar qual seria um novo contexto missionário salesiano.

Interessante perceber que se, para a professora, os mitos bororo encerram uma cosmovisão que pode dar sentido à vida (e à história), a história da aldeia — e do calvário de um povo — pode se transfigurar em mito capaz de explicar a aliança entre padres e índios em torno de um projeto comum (promoção da vida e da dig-

Page 360: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

nidade humana) e dar o sentido existencial para sua missão cultu-ral junto aos bororo. O Cristo pintado na parede ao fundo do altar da pequena capela do Meruri, um enorme Jesus-bororo que paira sabre as margens do rio das Garças e é observado por um casal de crianças portando uma arara e um peixe, lhe servirá de imagem-símbolo para explicar como via a relação entre salesianos e bororo e indicar que podia participar desse processo:

Era como se depois daquele massacre, que morreu padre, morreu índio, que teve uma mãe foi esfaqueada... aquilo foi tão forte para eles [os bororo]... é como se naquele momento a aldeia tivesse revi-vido. Aí surge um Cristo diferente. Muito mais próximo da verdade deles. Deixa de ser o Cristo ocidental. Pra mim daquele momento em diante não havia mais diferença. A morte nos iguala a todos.31

Dessa forma, a história do Meruri é novamente palco para um constante diálogo entre os discursos religioso e científico, esse último agora assumindo uma nova feição por via da semiótica da cultura. Discursos e diálogos entre dois campos de saberes mati-zados outrora em outras configurações, novamente estruturados de acordo com princípios de uma cosmovisão cristã. Interessante per-ceber, ao fazer um exame atento da tese que nos serve de documen-to — a qual a autora faz questão de informar que foi feita para ser-vir aos bororo e não aos cânones acadêmicos —, a centralidade de uma leitura de Mircea Eliade, que serve de sustentáculo para um diálogo entre semiótica e religião.32

Explicita-se aqui a lógica simbólica católica e sua capacida-de de anexar códigos, se não nativos, no caso, de outros atores do inundo branco com os quais mantêm vital diálogo. Cultura, que nornam de empréstimo como ferramenta conceituai para explica-ção racional de um mundo objetivo, é transfigurado em conceito peligioso, cultura como conceito ancorado em uma ontologia espiritualista.

Page 361: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Expectativas afinadas, símbolos operacionalizados, e o Meruri assiste (e interage) ao surgimento do Centro Cultural "Pe. Rodolfo Lunkenbein" como resultante de um processo político simbólico que se dedica ao incessante trabalho de produção de uma tradição a ser preservada. Idéia que surgiu da parceria entre a direção da missão e Aivone como a simples construção de uma sala que ser-visse de apoio às oficinas para a produção de objetos até o amadu-recimento da criação de uma instituição, que, muito além de mero suporte espacial, funcionasse como uma espécie de "laboratório didático da escola33 onde são oferecidas oficinas para aprendiza-gem das tradições".

O projeto cultural, o qual Aivone faz questão de mencionar que foi discutido com os "professores indígenas, com os alunos das turmas mais adiantadas, com os anciãos34 e com os padres Francisco de Lima (então diretor da missão Sagrado Coração de Meruri) e Gonçalo Ochoa", foi apresentado em novembro de 2000 às Missioni Don Bosco, em Turim, espécie de autarquia salesiana responsável pela captação de recursos e pelo financiamento de obras missionários ao redor do mundo.

O órgão financia a movimentação do Centro Cultural. Do pagamento do salário de um curador bororo para a sala Koge Ekure e um responsável pelos laboratórios de multimeios, passando pela compra de material, até a promoção das oficinas de produção de peças da cultura material bororo, cuja primeira produção ajudou a compor o acervo da nova instituição e uma segunda sessão, pro-movida em 2004, destinada à exposição Io sono Bororo — Um popolo indigeno nativo dei Brasile tra riti e futebol, que esteve em cartaz no Museu da Cultura do Mundo — Castelo DAJbertis, em Gênova, a capital européia da cultura em 2004, de novembro do mesmo ano até março de 2005.

Para se dimensionar o que foram as oficinas promovidas na fase de implementação do centro de cultura35 — e de que modo elas foram incorporadas ao projeto como forma de atender às demandas locais —, podemos citar que elas foram desde oficinas

Page 362: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

para a produção de peças em algodão, chamadas de akigu, até uma "macro-oficina" denominada de "mutirões clânicos". Tratou-se do projeto da reforma (concluída ainda em 2004) das 67 casas boro-ro da aldeia de Meruri elaborado para "testar a existência de algum tipo de troca de serviço entre os ecerae e tugarege ou, em caso contrário, estimular o resgate desse valor". Aqui, vale revisitarmos o já mencionado diálogo entre ciência e religião. "O projeto foi apresentado à Associazione Missioni Dom Bosco, que, compreen-dendo o aspecto científico e sobretudo humano de nosso intento, o aprovou para ter seu início em julho de 2002", conclui a autora, que harmoniza habilmente a expectativa de múltiplos agentes envolvidos no contexto merurense sob um quadro semântico orga-nizado por um código culturalista.

Assim, do patrimônio do museu salesiano de Turim, seguem as peças e/ou modelos fotográficos que vão organizar as primeiras ofi-cinas para produção de versões contemporâneas dos objetos nativos. A Enciclopédia Bororo,36 valiosíssima produção etnográfica salesia-na, serve como referência à tradição e fonte de memórias, que pode ser corroborada ou decifrada junto à intervenção dos anciãos e de pe. Ochoa, grandes conhecedores de informações desconhecidas pelas gerações mais novas. Os demais salesianos e o "staff" não-reli-gioso organizado por Aivone dão o suporte para a organização das ati-vidades. Aos mais novos, caberia o sabor de experimentar um passa-do mítico que se presentifica e revela as suas chaves de leitura do mundo. O Meruri ganhava assim seu centro de cultura, cuja véspe-ra de inauguração já sinalizava, independentemente das interpreta-ções que possam ser dados ao evento, seu dinamismo ao conseguir articular um ritual de nominação de vinte crianças. "O maior rito realizado coletivamente na história desse povo", registra a congrega-ção em notícia divulgada em site. Em nome da cultura, índios boro-ro, religiosos e "especialistas da cultura"37 foram convidados à ceri-mônia de inauguração, que por si só mereceria uma etnografia.

Empreitada em nome de uma tradição que revela a potencia-lidade de uma constante invenção de um passado que se processa

Page 363: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

concomitantemente com a produção de um futuro, fechando o cír-culo que nos encerra eternamente em um presente, cuja inescapa-bilidade só pode ser negada pelo mito e pela utopia.

U M A A L D E I A C U L T U R A L C O M O

UM M O D E L O PARA O B R A S I L

Cultura. A força do termo, que hoje é conceito nativo em Meruri, é reafirmada quando percebemos que na aldeia a palavra é chave para outras utopias, muito além da "épica salvacionista missioná-ria". Paralelo à movimentação ao redor do centro cultural salesia-no, discretamente foi sendo gestado o projeto cultural Meri Ore Eda (Morada dos Filhos do Sol), uma iniciativa pessoal do bororo Paulo Meriecureu associado a grupo organizado em torno de cinco vínculos matrimoniais,38 empreitada posteriormente encampada pela organização não-governamental indígena Instituto de Desenvolvimento das Tradições Indígenas (Ideti).39 Coube a essa instituição, que se autodefine em texto de apresentação na inter-net40 como uma "organização não-governamental criada e dirigida por pessoas de várias etnias,41 com o objetivo de proteger, resgatar e promover a cultura e o conhecimento dos povos indígenas do Brasil", a formatação de um projeto final para ser apresentado ao Ministério da Cultura, responsável pela intermediação na capta-ção de recursos (orçado em cerca de R$ 3,3 milhões) junto a empresas e organizações internacionais para a construção de uma aldeia cultural em Meruri.

Trata-se da edificação, em terreno a 10 quilômetros da aldeia/ missão, de oito casas de madeira e palha trançada organizadas ao redor de uma casa dos homens, reproduzindo o que foi convencio-nado chamar de planta tradicional bororo.42 Em um segundo cír-culo, cinco casas onde vai morar o grupo que será responsável pela manutenção da aldeia cultural e também para abrigar visitantes bororo e "turistas" interessados "em conhecer — ou pesquisar —

Page 364: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

uma outra cultura". Um projeto arquitetônico assinado por Fabrício Pedroza, que visa conciliar "características tradicionais" com benefícios da modernidade, como eletricidade, telefonia e recursos de saneamento, e contar com uma série de instalações culturais como escola, centro de exposição, laboratório de produ-ção de vídeo e fotografia, sala de informática e biblioteca. Um con-junto arquitetônico capaz de, além de dar conforto para seus mora-dores, promover uma série de oficinas culturais para o "resgate da cultura bororo".

Eis a condensação da apresentação física do projeto feita por Angela Pappiani, jornalista e coordenadora técnica do Ideti, em entrevista em maio de 2004, por Paulo Meriecure, em conversas gravadas em janeiro de 2004 e fevereiro de 2005 e na leitura do projeto encaminhado para o MinC. Porém, é interessantíssimo perceber que a tarefa de tentar resumir o que seria o projeto para além de suas características formais esbarra numa dimensão já anunciada em outros artigos deste livro sobre o fenômeno da mediação cultural. Ou seja, buscar definição para a aldeia Meri Ore Eda (Morada dos Filhos do Sol) exige um esforço de tentar decompor códigos partilhados entre atores diversos que operacio-nalizam repertórios comuns.

Seguindo o rastro do conceito de comunidade acionado por vários atores envolvidos no projeto, por exemplo, torna-se clara a formulação enunciada por Paula Montero e Marcos Rufino de que esses códigos partilhados surgem como resultado da negociação simbólica dos agentes em interação. Vejamos como a aldeia se materializa no discurso dos específicos atores engajados no proje-to usando o conceito de comunidade como fio de Ariadne. "Isso sim que é busca de dignidade. Esse projeto simboliza o que é o Ministério da Cultura no governo Lula. E o projeto que harmoniza a tradição com a invenção. Eu não preciso inventar nada. O povo bororo já inventou e está nos dando um presente material, que é a construção da nova aldeia", declarou o ministro da Cultura Gilberto Gil durante cerimônia do lançamento oficial da emprei-

Page 365: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

tada, enquanto recebia o projeto das mãos de Paulo Meriecureu. O site do MinC, que divulga a informação, completa que essa foi a forma que o ministro (e um dos representantes do tropicalismo musical brasileiro) "manifestou sua emoção ao conhecer projeto que busca promover o resgate e a preservação da cultura indígena do sudoeste mato-grossense".43

Cultura e tradição encontram abrigo em um projeto de Brasil moderno e globalizado. A diferença cultural, aqui domesticada a uma forma de variação de expressão referente sempre a um con-teúdo universal, ganha legitimidade e licença para a existência em um contexto de construção de uma nação multirracial e multiétni-ca. Nesse nível, trata-se de estabelecer as conexões entre os ter-mos comunidade e nação. Edificar um constructo em que o últi-mo conceito seja capaz de englobar harmonicamente o primeiro e exibir tal modelo a uma opinião pública, que passa a estar envolvi-da com o projeto bororo mediante a participação do Estado.

A cobertura jornalística de algumas mídias lança luzes sobre as leituras do senso comum sobre o evento, e registra as projeções de certos agentes do mundo branco ao identificar grupos indíge-nas com comunidades harmônicas idealizadas e a-históricas até o contato com o mundo branco. "O povo reivindicou"; "Os bororo detectaram o problema".44 Uma população de cerca de 1.200 indi-víduos, clivada por gênero, grupos de idade e separada geografica-mente, em regiões marcadas por historicidades distintas que imprimiram características específicas em sua história de contato com a sociedade envolvente, torna-se um todo indistinto. E nessa operação a construção da figura do líder indígena, que passa a ser visto pela sociedade envolvente como o porta-voz desse todo homogêneo, está imersa em "mal-entendidos". Mal-entendidos, todavia, que não ofuscam a operacionalidade do termo "comunida-de", que, por sua vez, ganha cartão verde de circulação entre os discursos. Vejamos o que Paulo Meriecureu pode nos contar sobre a sua comunidade e a centralidade que o conceito cultura assume nesse cenário.

Page 366: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Aos 44 anos,45 o bororo nascido em Meruri, com o primeiro grau cursado junto com os anchietanos, em Silvânia, em escola de Brasília em projeto educacional desenvolvido pela Fundação Nacional do índio (Funai), e com os salesianos, em Barra do Garça, lamenta a decadência cultural do seu povo. Processo que verifica em um comportamento social degenerado e desenraizado de seu passado. Alcoolismo, manifestações de vandalismo, como a quebra de carros, e cachorros sarnentos são elencados como sinto-mas de uma sociedade em crise. "Homem embriagado carregar mulher pro mato. Isso é selvagem! Nunca existiu isso na cultura bororo", prossegue a liderança, fazendo referências às "vaqueja-das", práticas nas quais mulheres, geralmente alcoolizadas, man-têm relações sexuais com grupos masculinos.

Interessante assinalar: Paulo, que também comanda a associa-ção esportiva PEMO (Projeto Equipe Meri Ore),46 que organiza times bororo na participação dos Jogos dos Povos Indígenas, loca-liza essa tomada de consciência do poder da cultura durante par-ticipação no evento esportivo ao lado de outras etnias. "Eu passei a ter vergonha de não ter cultura", sintetiza. Vergonha que forma-ta um novo olhar sobre Meruri e nos dá pistas para entendermos o papel político das novas organizações indígenas e sua capacida-de de articular redes nas quais interpretações sobre o contato cir-culam, tomando de empréstimo uma imagem usada por Dominique Gallois,47 em "espiral".

Aqui não é aldeia. Aqui é uma vila. O que faz o bororo não sair daqui é a energia, a televisão, o baile, o futebol e a escola. A escola é necessária, mas não precisa estar tumultuada aqui. Ninguém está vendo lá os xavante invadindo nossas terras. Ninguém está incomo-dado. Mas se a gente ocupa o território, fiscaliza, caça, pesca, faz uma roça em vários locais da reserva, ninguém vai perturbar a gente. Mas todo mundo aqui depende do salário do avô, do tio, então se acomodou. Nem artesanato estão fazendo mais. Nós estamos presos

Page 367: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

por uma cultura não-índia. Eu sempre falo com os jovens, o nosso povo para ser povo tem que ter a cultura. Se nós não tem cultura não é povo. Fica igual ribeirinho, sei lá, gente largado.48

Diante do quadro, segundo ele, o caminho é tentar "levantar a cultura e a força política-cultural do povo bororo". Trajeto que passa pela edificação de uma aldeia onde os bororo possam "se libertar da cultura dos brancos". E para a liderança indígena é clara a idéia de que isso só será possível quando forem criadas formas de emancipação econômica. A engenhosidade do seu plano está em colocar a tradição bororo como, muito mais do que referências para organização da vida social e/ou paradigmas interpretativos do mundo, capital cultural.

Para além dos projetos de auto-sustentabilidade, que voltam a seduzir a sociedade envolvente, que lê tais iniciativas como um retorno a um passado sem males,49 a aldeia cultural poderia servir como espaço — além de preservação — de reprodução cultural. Idéia que é apreendida no projeto quando trata da criação de ofi-cinas culturais e de suportes para a produção de livros ou CDs que atendam às demandas da "comunidade".

Apesar de a fala de Paulo reiterar em diversos momentos uma dicotomização entre "nós e eles", como expressão de delimitação clara de fronteiras culturais que seguem em gradação crescente do núcleo bororo, passando pelas populações indígenas, até chegar ao que chama de "mundo branco", seu plano de autonomia implica sempre a idéia de relação.

A aldeia seria justamente uma estratégia para os Bororo revi-talizarem a sua cultura, de modo a poder continuar a participar desse "arco-íris cultural"50 composto pelas populações ameríndias, ou seja, caminho para continuarem sendo índios, como também uma forma de organização autônoma mas articulada com redes sociais abrangentes, sintetizada na fala de Paulo pela expressão "mundo dos bancos". Na fala de Paulo Meriecureu, o "turismo cul-

Page 368: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

tural" é acenado de forma mais enfática como meio de capitalizar tal trabalho de preservação.

Por que o turismo? Turismo porque a gente quer que lá fora o mundo branco venha a conhecer e sentir de perto uma tradição res-surgindo. Uma tradição se incorporar. Então ela será aberta para um espaço cultural e nós vamos ter outra aldeia pequena, ao lado da aldeia grande. Vai ter uma aldeia para os turistas. Vai ter as casas, vai ter dormitório, refeitório e auditório. Vai ter uma sede da associação, um centro cultural para expor.

A primeira conversa com a liderança foi gravada no dia 22 de janeiro de 2004, data em que o projeto foi levado à primeira reu-nião conjunta com os caciques,51 que, em tese, deveria reunir representantes de todas as aldeias bororo para apresentação do projeto e formação de "um conselho" que seria responsável por estabelecer um elo entre a aldeia cultural e as outras demais onze aldeias. De lá para cá, alterações e incrementos no projeto ocorre-ram, como a idéia de construção de uma área para culto ao sol. Todavia, vale a pena continuarmos a acessar as representações do projeto em sua fase embrionária para ver como foram transforma-das para compatibilizar múltiplas acepções de comunidade.

Meri Ore Eda é assumidamente uma criação pessoal de Paulo, mas, para que ela aconteça, terá de contar com a participa-ção de um grupo de pessoas para fazer dela "a aldeia de uma comunidade" renovada pelo resgate de determinada cultura refe-renciada a determinado povo. Enfim, ser uma aldeia bororo para nela morar bororo. Logo, Paulo se pode resignar-se diante do des-crédito de alguns agentes merurenses ao seu projeto de transfor-mação da realidade ao preferirem continuar no que chama "de vila ao redor da missão", não pode deixar de trabalhar para estabelecer Meri Ore Eda como mais uma aldeia do mundo bororo.

Observamos a primeira reunião com os caciques bororo, a par-tir dessa ótica mencionada acima. Mas, para que essa articulação

Page 369: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

no contexto de redes bororo — pensada como representação de lideranças locais — pudesse ter sido realizada, uma articulação interna ao contexto das redes merurenses já havia sido feita para o estabelecimento do grupo de futuros moradores, os responsáveis pela manutenção, produção de alimentos, e organização e execução de um "calendário ritualístico da tradição" no qual estaria prevista uma série de eventos. "Nós vamos ter a festa do milho, a pescaria, o batizado, o casamento, tudo vai ser feito lá. Agora as aldeias de Mato Grosso, todas vão ser convidadas",52 conta Paulo, nos dando mais uma pista da forma como o grupo local de Meri Ore Eda se articularia com os demais bororo.

Para organizar os habitantes da nova aldeia, Paulo explicita um código partilhado em processo há mais de 102 anos acompanhado as acomodações sociológicas advindas das relações entre as redes bororo e as redes coloniais: "Primeiramente serão cinco famílias \ confirma o líder na versão do projeto. A frase, para que possamos evitar uma significação simplificadora que pode nos levar a opor erroneamente "familiar nuclear cristãTfamília clânica", exige uma triangulação. Seu entendimento não está restrito nem a um mode-lo exclusivo nem a outro. No caso, a imaginação sociológica de Paulo se realiza para dar forma a uma nova versão dessa família quando interconecta os dois modelos para de um extrair sua abs-tração conceituai, de outro, sua forma e conteúdo. Ambos respal-dados por experiência histórica concreta, que configura em Meruri a feição contextual do termo.

Dito de outro modo, para planejar sua comunidade futura, Paulo conta com uma representação de como as relações entre consangüíneos e afins eram configuradas em um passado apreen-dido por uma dada memória, com um "modelo cristão" que fora proposto para superação deste como contraponto e com uma Meruri concreta e contextual, na qual as experiências cotidianas se processam e dão determinada feição para essa família bororo merurense, distribuída entre casas nucleares em armamento, organizadas em torno de um vínculo matrimonial, mas na qual a

Page 370: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

mulher exerce um direito sobre essa, em caso das freqüentes sepa-rações. Enfim, duas virtualidades representacionais e uma pereni-dade configuracional como argamassas para seu futuro, que sem-pre sugere um vir-a-ser, uma concretude enfim realizada, uma estabilidade perdida a ser reconquistada.

Enciclopédia Bororo volume I, página 8 e volume II, página 450, sobre a mesa, Paulo nos explica, auxiliado pela informação coletada e organizada pelos missionários salesianos Venturelli e \lbisetti,53 a futura composição da aldeia, que voltará a seguir as divisões clânicas que sumiram do espaço em Meruri, com a intro-dução de residências destinadas a famílias nucleares, base de uma das estratégias cruciais dos religiosos para implantar famílias cris-:âs entre os nativos.

Dos oitos clãs previstos e ratificados pelas etnografias leigas e missionárias para a composição de uma aldeia bororo, Meri Ore Eda conta apenas com quarto, Baadojeba, Aroroe, Apiborege e Iwagudo. Formação advinda de cinco vínculos matrimonias, ou seja, de cinco casas nucleares da paisagem (termo pensado como temporalidades sobrepostas) merurense de onde sairão as novas casas clânicas.

Segue o elenco de tais uniões fornecido por Paulo, assim como sua filiação clânica de cada membro: Paulo (baadojeba) e sua esposa Jucilene Rikbktsa54 Meri Kajejewudo (segundo Paulo, que será ritualmente incorporada ao clã Aroroe); José Rodrigues Boi Adowu (baadojeba) e Neusa Aore Ekureudo (baadojeba); Vicente Joware Ewabo (baadojeba) e Maria Clarice Ecerae Togiwudo (abiporege);55 Osmar Rodrigues Aroe Enogiwu (baadoje-ba) e Elitania Arare Ekurudo (iwagudo) e, finalmente, Kleber Rodrigues Meri Tóroreu (baadojeba) e Rosilene Burue Kajejewudo t abiporege).

Assim, nessa feição, tal comunidade, diferentemente das as-sociações humanas concebidas de forma idealmente naturalizada por parte dos interlocutores do mundo branco, nasce como uma "comunidade" estabelecida em torno de um projeto político comum.

D i ; u s NA A I, D L I A 3 6 5

Page 371: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Ela é formada por aqueles que acreditaram no plano de uma refor-ma cultural da sociedade e se comprometeram com estratégias para a domesticação e conversão do mundo dos brancos para um universo tido como bororo.

Todavia, se a paisagem composta por 102 anos de relações entre bororo e missionários imprimiu a sua paisagem a feição de um vilarejo, a lógica da parentela, que está completamente ausen-te na exposição de Paulo — que jamais utiliza termos de classifi-cação de parentesco para classificar qualquer um dos futuros moradores —, é reposta quando revemos árvores genealógicas de tal comunidade.

José Rodrigues é irmão de Paulo. Kleber e Osmar, filhos de José e Neusa, são seus sobrinhos. Uma seqüência genealógica em perfeita conexão com distintos "códigos familiares" passíveis de manipulações discursivas que respaldem sua vinculação com dis-tintos repertórios quando descontextualizadas para ser operaciona-lizadas em outros contextos. Um ramo exato de uma família oci-dental cristã, como também uma recomposição clânica estruturada pela matrilinhagem bororo. Paulo, José Rodrigues e Osmar (assim como Vicente) são do clã baadojeba. Kleber, por ser filho de Neusa, também baadojeba, arroga-se pertencer ao mesmo clã de "grande prestígio na tradição". E atenção para o lugar simbó-lico dessa "família" — tertno usado aqui por nós com toda a sua imprecisão — quando visamos apreender a lógica da apropriação da tradição para a estruturação organizacional política da nova aldeia.

Paulo e Kleber são enfáticos: cabe pela tradição aos baadoje-ba o levantamento de novas aldeias. Dessa forma, auxiliada pelas prerrogativas outorgadas no passado, essa malha de rede meruren-se — núcleo familiar e clânico — assume a liderança para a cons-trução de uma aldeia que vai recuperar uma cultura sob risco já como um sinal de revitalização e resgate.

Auxiliado pelas informações e pela autoridade etnológica para definir o que é a tradição, Paulo explica que os bororo são matrili-neares. Logo, serão as esposas associadas a esse núcleo baadojeba,

Page 372: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

referidas aos clãs acima citados, que serão as fundadoras das novas casas de Meri Ore Eda que abrigarão a futura população, num total, segundo Paulo, de cerca de vinte pessoas.56

Note-se que, longe de qualquer intenção para buscar camadas de uma indianidade profunda e submetê-las a avaliações sobre a cor-reção etnológica das informações que nos foram fornecidas, o inte-resse é indicar o movimento discursivo dos atores por entre reper-tórios e como eles são agenciados. Dito de outro modo, quais são os códigos bororo que são alvos para serem acionados? Por que eles são explicitados em um contexto de mediação na qual eles buscam provar para agentes bororo e não-bororo sua autenticidade? Ações simbólicas que implicam determinados cálculos contextuais que indicam a expressa relação entre política e memória, na qual a cul-tura objetivada surge como um produto desse processo.

E nessa revisita à tradição para fundamentar uma transferên-cia não só domiciliar como organizacional por meio de um código híbrido, Paulo encontra caminho para fundamentar sua liderança costurando novamente com outros códigos. O líder baadojeba boro-ro, valendo-se também da idealização dos interlocutores do mundo branco, conecta-se ao discurso igualitarista ocidental e à idéia de bem comum para colocar seu projeto a serviço de uma "comunida-de" que voltará a ter baadojeba como chefes de prestígio.

Paulo, ao se constituir como liderança, é obrigado a realizar simultâneo movimento para se legitimar como representante diante daqueles que almeja representar e como representante para aqueles para quem visa exercer a representação. Nessa operação, o projeto de Meri Ore Eda torna-se vital e as pretensões de futuro passam a ser determinantes para as configurações atuais. Sua força como liderança, que antes podia ser questionada por outros agentes do contexto merurense, agora passa a ser outorgada pelo ministério, que acaba por maximizar sua força centrífuga. Mais uma demonstração etnográfica de como lideranças são produtos não só meramente endo-sociais, mas também de um processo comunicacional com atores exteriores às redes locais.

Page 373: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Reproduzimos a seguir trecho da entrevista com a intenção de que ela possa ilustrar como os conceitos de "liderança",4 represen-tação" e "comunidade", que servem de pontes simbólicas entre os interesses de múltiplos atores, quando referidos a seu contexto de enunciação, podem ganhar acepções bem particulares. A seqüên-cia de falas surge quando indagamos sobre a possibilidade ou não de outras famílias se mudarem para a nova aldeia, após a consta-tação do sucesso do projeto.

E as pessoas quiserem mudar para lá? Paulo: Não tem jeito não. A gente não aceita. Porque nós vamos

ter um sistema de governo, tipo prefeitura. E quem for dirigir ali não é cacique. Esse nome já vai apagar. Vai ter outro nome.

Qual nome? Paulo: Não sei. A comunidade que morar lá que vai... Mas vai ser eleito? Paulo: Não. Não existe eleição. A gente vai dirigir até morrer. A gente seria quem? Paulo: Eu (enfático). A gente é dono da idéia, a gente tá tentan-

do. Depois que morrer é meu filho que vai tomar conta.

No projeto encaminhado ao ministério, as aspirações de Paulo Meriecureu são traduzidas em uma linguagem culturalista que, como dissemos acima, equaciona a diferença cultural a uma varia-ção possível de expressão de um único conteúdo. Podemos notar que em sua fala comunidade está muito longe da conotação acio-nada, por exemplo, na feitura das reportagens jornalísticas sobre a aldeia. A utilização de um mesmo repertório organizado pela gra-mática culturalista garante a efetivação de uma comunicação, ou seja, a manutenção de sentidos partilhados, nos termos colocados por Montero. Por outro lado, idéias de representação como "con-selho de caciques", por exemplo, podem ser acionadas pela lide-rança como uma forma que visa criar seu projeto político, buscando referências onde é possível. Enquanto se ancora em uma memória

Page 374: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

na qual conserva a informação sobre a existência de reuniões entre os principais chefes clânicos, a faz convergir com uma representa-ção muito cara aos seus aliados para além do mundo bororo, que vêem ali sinais de uma representação protoparlamentar fundada na sabedoria dos mais velhos, expressão de uma harmonia social na qual integra seus vários grupos de idade.

Porém, cabe aqui ressaltar que a observação desse processo está bem longe de sugerir a volta do homem manipulador de Bronislaw Malinowski, ou, recuperando os termos da crítica de Pierre Bourdieu, um regresso a uma etapa pré-estruturalista do indivíduo e suas escolhas. Se nossa abordagem, como explicita Montero revisi-tando Max Gluckman no artigo que abre esta coletânea, parte do princípio de que o exame de determinadas falas exige que as tome-mos como produções de sujeitos posicionados perante processos sócio-históricos, avançamos com uma determinada etnologia con-temporânea57 que inscreve tais falas como um dos múltiplos gêneros discursivos existentes dentro do horizonte simbólico nativo. Ou seja, se já há consenso de que não se trata de discursos que pairam inde-pendentemente sobre organizações sociais, que também deixemos claro que nos deparamos com discursos políticos produzidos, a partir de uma realidade nativa, para uma relação com o mundo branco. Um gênero narrativo que nos remete diretamente à idéia de mediação. Ou seja, ele não existe fora de uma relação com o exterior.

E interessante observar que-há ressonância da fala de Paulo Meriecureu quando se alarga nossa observação para outros hori-zontes etnográficos, sendo que tais relações discursivas já estive-ram sob atenção da etnologia. Dominique Gallois, por exemplo, chama-nos a atenção para a semelhança da retórica e da temática dos discursos políticos quando pronunciados em contextos simila-res proferidos por líderes de grupos diferentes.58 Quando se procura mapear uma rede de relações na qual Paulo está inserido, podemos notar a centralidade da sua posição de mediação entre a comuni-dade merurense bororo e um movimento pan-indígena nacional para interpretarmos suas falas.

D F - U S I\ A A L D E I A 3 6 9

Page 375: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Há cerca de nove anos como presidente da associação indíge-na PE MO, responsável, além da organização de atividades esporti-vas, por "apresentações culturais" fora da aldeia, e integrante da diretoria do Ideti desde 2002, o ativismo político de Paulo remon-ta à década de 1980, quando era um dos dirigentes da União das Nações (UNl ) , junto com Ailton Krenak, um dos líderes indígenas do contexto brasileiro, que conquistou uma das maiores projeções nacionais e internacionais.

Depois de informados com tais dados, o fato de passarmos a encontrar o nome Paulo Meriecureu substituído por Paulo Bororo, quando nos dedicamos a pesquisar publicações que registrem as atividades da liderança indígena, nos indica que precisamos situá-lo não em um contexto nativo, mas sim desdobrar tal contexto em múltiplos. Neles, encontraremos o Paulo Meriecureu, homem do clã baadojeba da metade ecerae, casado com uma rikbaktsa,'9 que mora e mantém um pequeno comércio em uma casa de frente para a lateral dos prédios da Missão Salesiana, residência que tam-bém lhe serve de base para a sua associação que arregimenta jovens para participação em jogos promovidos pelo Ministério do Esporte, sob a condição de não se envolveram com o consumo de álcool. Encontraremos também o Paulo Meriecureu de Meruri — considerada por muitos bororo como "a aldeia mais afastadas da tradição" — que convoca representantes das onze comunidades para apresentar seu projeto cultural. Reunião que exigirá viagens às demais aldeias, devido ao baixo quorum.

Enfim, encontraremos o Paulo Bororo dos comunicados indi-genistas; dos sites dos ministérios; e o Paulo Bororó que é saudado pelo sucesso do projeto por Jurandir Siridiwê, xavante, presidente do Ideti e colega de Paulo desde quando ambos eram bolsistas da Funai na juventude, que explica seu apoio à empreitada cultural diante do ministro Gilberto Gil, pois "acredita que o Meri Ore Eda é um modelo de projeto que pode mostrar para o Brasil que existe um caminho para o povo indígena, uma nova possibilidade de rela-ção entre o nosso povo e o povo brasileiro".60

Page 376: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Se considerarmos que já temos pistas que nos ajudam a en-tender que o contexto impõe que a liderança indígena tenha habi-lidade para transitar por uma rede de relações escalonada em diversos níveis — da aldeia composta por cerca de 360 pessoas, passando para uma "nação bororo" de cerca de 1.200 indivíduos, até uma rede indigenista nacional —, vale a pena conhecermos como o próprio Paulo pensa a liderança:

O pessoal aqui não entende o que é liderança, sabe? Eles são... res-peitando o meu povo... eles acham que liderança é aquele que é posto e que ganha. Isso não é liderança. Liderança é aquele que nasce da gente, da força da boa vontade. Quando você fala, o grupo atende. Isso é liderar. O povo, o grupo, a comunidade ouve sua ordem, sua voz. Isso que é liderar. Liderança não é o que é posto pelo cacique. Isso é passageiro. A gente tem como liderança isso nato, da natureza. Isso é coisa tradicional mesmo. Eu sempre falo: ninguém vai tirar porque não foi colocado como liderança. Eu surgi. Eu vou sair só depois que morrer mesmo.

Novamente a tradição é chamada para fazer a crítica do pre-sente e inventar um futuro. Paulo, que pertence ao clã que tem a primazia da chefia, acaba por não considerar a legitimidade dos caciques do Meruri. E a recusa vai além de uma questão persona-lística. O que está em jogo é um sistema social capaz de produzir lideranças genuínas.

Na estrutura política tradicional bororo, além do xamã dos espí-ritos da natureza (Bari) e do xamã das almas (Aroe Etawarare),61

pode ser identificado outro personagem, o Boe eimejera, chefe da guerra, dos cerimoniais e da aldeia. Com o contato com a socieda-de envolvente, outra figura política nativa entra em cena, o Brae eimejera, aquele responsável pela intermediação com os brancos. O Meruri é de fato a aldeia onde essa estrutura sofreu mudanças radicais, como atestam antropólogos como Renate B. Viertler e Paulo Serpa. As funções políticas e cerimoniais foram completa-

D I : U S I\' A A L D E I A 3 7 1

Page 377: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

mente separadas e as lideranças, que assumem a função de diálo-go com as autoridades do mundo branco, são escolhidas por elei-ção direta.

Mas quando Paulo reivindica a legitimidade que a tradição pode dar à liderança, a força do seu argumento está em não se basear na volta de uma dada configuração em que esta era exerci-da, mas sim de um espírito de liderar, este sim tradicionalmente bororo. Interpretação de um modo de ser e exercer a liderança que não está livre de estruturas simbólicas prévias e é ao mesmo tempo aberta e capaz de anexar códigos e referências de outras matrizes discursivas. Operação derivada do exercício de uma política sim-bólica que simultaneamente produz a sua naturalização. Interes-sante observar que se reivindica o exercício de "uma forma natu-ralmente bororo de liderar" quando, concomitantemente, se procura descobrir e "revitalizar a cultura bororo", ou seja, o locus formador dessa naturalidade de um modo de ser. Processo que revela a engenhosidade de uma política simbólica capaz de reatualizar e reinventar os limites etnicitários que definiriam o que seria "o ser bororo" e hábil para equacionar tensões e contradições de um pro-jeto que visa conciliar inovação e tradição.

C O N F L U Ê N C I A S

Nossa intenção até aqui foi mapear produções socioculturais de agentes políticos que se valem de uma gramática culturalista que, tomando a liberdade de usar uma expressão de Eduardo Viveiros de Castro deslocada de seu contexto, "faz da cultura uma metáfo-ra para a política".62 E se no contexto da criação do projeto cultu-ral missionário identificamos o que anunciamos acima como uma passagem da gramática do religioso para o campo da cultura, ou seja, o espiritual transfigurado em cultural, podemos traçar o cami-nho inverso quando nosso foco de atenção se dirige ao projeto cul-tural nativo. Retomemos nosso fio de Ariadne, o conceito comuni-

Page 378: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

dade, e vejamos para onde ele nos conduz, por meio da fala de Paulo Meriecureu Bororo.63

Após o líder nativo esboçar uma explicação de transmissão hereditária de poder dentro da nova aldeia, que definira a passa-gem da liderança dele para o filho, lançamos a provocação, infor-mados sobre a descendência matrilinear bororo.

E se seu filho ele não quiser tomar conta da aldeia? Paulo: Vai alguém, tem minha filha. Tenho três filhas. Minha

mulher não vai querer porque fica mais complicado. Porque ela não é bororo, né? Então nós queremos um novo sistema. A gente inclu-sive vai ser responsável pelo alimento das pessoas. Não é aldeia como aqui que cada um se vira por conta própria. Lá quem for comandar vai ter que dar a despesa das famílias que morarem lá.

E as famílias vão trabalhar todas juntas? Paulo: Todas juntas. Vai ser uma comunidade. Antigamente era assim? Paulo: Eu não sei. Esse negócio do capitão, do cacique dar comi-

da não existia não. Deixe-me tirar uma dúvida? Você pretende criar algo como anti-

gamente ou uma coisa completamente nova? Paulo: Eu estou tentando realizar o que meu espírito manda. E uma

coisa que eu mesmo fico em dúvida. São coisas do mistério. São coi-sas que me tocam e eu tenho que fazer daquele jeito. Eu não tenho assim: 'eu quero aquilo é aquilo". Isso é para Saddam Hussein, para os ditadores. Isso não vem da ditadura. Isso vem do bom espírito. O espí-rito manda e a gente tem de fazer. E uma força. E eu venho raciocinan-do. Por que eu tenho que fazer isso? Mas eu tenho que fazer.

Quando você diz grande espírito eu posso pensar em quê? Paulo: O grande espírito que eu sempre venho considerar é Deus,

o criador.

É instigante perceber que é novamente sob a sombra de "Deus" que o culturalismo missionário e o nativo se encontram,

Page 379: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

evocando a idéia formulada por Paula Montero de que encontra-mos o campo religioso como um espaço privilegiado para a tradu-ção.64 Obviamente a história do contato entre bororo e sociedade nacional marca com certa inseparabilidade os dois culturalismos. Afinal, a tal "tradição bororo" objetivada hoje nas falas nativas em Meruri nasce, em parte, de um laborioso trabalho salesiano de tra-dução e inscrição do que seria essa cultura nativa — entendida como conjunto de ritos, mitos e cantos.65 Vale lembrarmos da aposta na funcionalidade de bibliotecas para os dois projetos, que prevê que os próprios índios possam pesquisar sobre a sua cultu-ra. Porém, essa peculiaridade não esgota tal configuração.

Ainda sob a sombra do "sagrado", lembramos que nas primei-ras páginas deste texto nos valemos da definição de Sahlins de cul-turalismo como "a formação discursiva moderna das identidades indígenas em relação com as alteridades global-empíricas"66 para em seguida afirmarmos que o discurso etnicitário missionário con-temporâneo pertence a essa mesma formação discursiva. Agora, acreditamos poder pensar os rendimentos e implicações da idéia formulada por Marcos Rufino de que a Teologia da Inculturação, conjunto de representações discursivas criadas pela Igreja para definir o que ela considera ser seu novo projeto de evangelização, seria uma gramática mediadora inserida dentro dessa formação discursiva etnicitária.67 Uma metamediação, como nos termos definidos por Rufino, que estaria incumbida de criar canais de comunicação entre esses discursos identitários locais e suas ane-xações a um projeto universalizante da Igreja católica. Empreitada com pretensões de dar um lugar moral a essas diferenças culturais em um mundo globalizado. Nossos culturalismos, nativos e religio-sos, seriam produto de uma mediação cultural. Seriam textos arti-culados sob códigos partilhados e operacionalizados por uma gra-mática culturalista.

Voltemos aos nossos casos etnográficos e, novamente, reto-memos nosso fio de Ariadne, a comunidade, conceito que usare-

Page 380: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

a o s como canal de ligação entre os discursos de atores ligados ao universo missionário e agentes nativos dedicados à edificação cie dois projetos culturais que, insistimos, são completamente independentes.

Podemos vislumbrar a comunidade de Paulo a partir de sua crítica a uma relação com o mundo branco. Seu diagnóstico para os males que afligem seu povo remete a um desapego do grupo a um modelo cultural, conseqüência de tal relação marcada pela dependência. Ter o revigoramento da cultura como prognóstico não significa, do ponto de vista de Paulo, a simples volta a conteú-dos culturais, mas a possibilidade de criar uma nova estrutura rela-cionai na qual o mundo branco (suas lógicas e tecnologias) seja submetido a um projeto político nativo. A crítica de Paulo às refor-mas das casas de Meruri atreladas ao projeto cultural salesiano é eloqüente:

Eu falo (para os salesianos) que a reforma das casas é fazer com que os bororo não saiam daqui. Com as terras sendo invadida,68 ninguém quer fazer roça, ninguém quer mudar pra fazer uma aldeia pra lá. Ninguém quer fazer nada. O pessoal se acomoda. Quando alguém vai me ajudar na roça já fala: "Ih, tá ruim aqui, falta som". Quer dizer, acostumou com som. "Lá falta baile." Isso é errado."69

E vale frisar o refinamento da crítica, que incide sobre os sale-sianos tomando-os não como "os responsáveis" de uma dada confi-guração. Podemos notar sim o reconhecimento nativo de uma par-ceria histórica que fez de religiosos e bororo aliados frente a um contexto sociocultural global. Porém, a inventividade do projeto da aldeia cultural de Paulo seria não a simples mudança de postura frente a um tradicional mediador de relações com o mundo branco, mas sim um reposicionamento do grupo frente ao contexto global no qual estão inseridos múltiplos atores desse mundo branco.

A palavra de ordem atrelada ao termo cultura é autonomia, e a polida recusa ao pedido de permissão de um antropólogo para

Page 381: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

assistir à primeira reunião de apresentação do projeto cultural aos caciques bororo indica que essa reivindicação se refere ao mundo branco como um todo. Indo além, a idéia de que "os bororo não precisam mais de antropólogos para dizer como é a cultura deles"'0

expressa uma nova consciência nativa que concebe cultura e sociedade também como frutos históricos. O reconhecimento do papel de agente cultural como agente político é patente. Mas se essas representações são formuladas dentro de um gênero narrati-vo político, tal qual a etnologia o inscreve, também temos de estar atentos ao diálogo intenso com outros gêneros narrativos nativos. Vejamos.

A sede de autonomia política (e cultural) de Paulo diante do mundo branco é tanta, que até novos símbolos religiosos fazem parte de suas intenções quando ele pensa na edificação de uma nova aldeia sob uma nova ordem cultural. Em exame sobre como o líder se vê como católico e bororo, percebemos que o mesmo processo de seleção de múltiplos códigos para a reinvenção cultu-ral (e perpetuação, nos termos defendidos por Marshall Sahlins em Ilhas de história) está em operação quando ele pensa o que seria religião.

Você é católico? Paulo: Sou. Mas eu acho que sem ser católico eu sempre vou ter

um Deus, né? Inclusive a gente vai ter nossos cultos. Separados. Eu não estou criando uma religião, mas uma forma de contemplar Deus.

Os missionários poderiam ir à aldeia? Paulo: Poder pode. Porque eu quero puxar um pouco do pessoal

dos incas. Dos incas? Paulo: É, dos incas do Peru. Nós somos descendentes dos incas.

Bororo tem no Peru. Então pra nós o símbolo sempre vai ser o sol/1

Não é que vamos adorar o sol. Mas é um símbolo. Como o Brasil tem bandeira, a Itália tem também bandeira. Pra nós vai ser o sol.

Page 382: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

O católico tem um homem e nós queremos que o sol seja represen-tante de Deus. É isso que é o grande espírito. Então por isso que eu falo, que o espírito vem conduzindo nosso trabalho.

Longe de querer fazer "arqueologias" para identificar quais camadas discursivas contêm elementos Verdadeiramente indíge-nas", o interessante é observar a produção simbólica do que seria um modo de ser bororo num mundo contemporâneo. Dito de outro modo, entender a formação de um imaginário e sua opera-cionalidade para produção de realidades sociológicas. Para Paulo, se os bororo de hoje são herdeiros de uma cultura ancestral, cabe a eles resgatá-la para edificar ao entorno dela uma nova comuni-dade. Por via da memória dos velhos e de uma produção etnológi-ca religiosa e leiga, extraí-la de um contexto marcado por depen-dência e desorganização social, que, como o fluxo de energia de um moto-contínuo, vivem em estreita relação de causa e efeito com essa descaracterização cultural identificada.

E interessante notar que, do repertório visitado desse passado, apenas alguns códigos serão tomados para atestar e reconstruir uma autenticidade nativa. Não podemos desprezar as coincidên-cias semânticas da liderança bororo: o projeto de superação dos males sociais compreende o "levantamento de uma aldeia" que segue em paralelo ao "levantamento de uma cultura". No entrecru-zamento desses dois planos encontramos a centralidade do código clânico, que se presta como espécie de código-baliza para integri-dade da tradição.

Se os esforços das intervenções civilizatórias leigas e religiosas durante décadas incidiram justamente sobre a organização social nativa, de modo a pulverizar as casas clânicas coletivas matrilinea-res dispostas em círculo em unidades residenciais nucleares em armamentos, o esforço agora é restituir simbolicamente no espaço tais divisões em uma aldeia que funcionalmente até poderia dar lugar às já consolidadas casas nucleares, mas que novamente tra-taria de inscrever no espaço as divisões clânicas em um conjunto

Page 383: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

arquitetônico que abrigaria espaços de produção cultural auto-objetivantes/2 Como nos faz pensar José Maurício Arruti, uma aldeia cultural onde o virtual e o real se confundiriam em nome da uma cultura a ser resgatada.

Quando perguntamos ao Paulo de que modo a composição dos moradores da nova aldeia levaria em conta as divisões de meta-des ou clãs, tendo em vista que a aldeia ideal bororo seria compos-ta de oito famílias clânicas, o líder foi enfático ao demonstrar que o critério de seleção das cinco famílias, como dissemos acima, foi a adesão a um diagnóstico e prognóstico sobre uma dada conjun-tura histórica. Se há em operação alguma determinação estrutu-ral relacionada a tal código clânico, resposta que pede uma etno-grafia de fôlego no Meruri, devemos ter em mente que se trataria de fenômeno completamente distinto, tendo em vista que seria da ordem do inconsciente, da sua contemporânea manipulação consciente desse código, que acaba por fetichizá-lo. Enfim, o Meruri, assim como se prestou no passado, serve de um excelen-te campo de reflexão para a Antropologia, no qual ela pode obser-var se desdobrando o processo no qual Cultura manipula criativa-mente a cultura.

E o mesmo código clânico bororo, fartamente descrito pela etnografia leiga e religiosa, volta como ponte entre passado e pre-sente quando se pensa a reforma da comunidade bororo contem-porânea, desta vez, pelo projeto humanístico da professora Aivone, a principal responsável pela criação do centro de cultura bororo. Vale lembrarmos que um dos seus esforços se concentra justamen-te na manutenção da operacionalidade de tal código, afinal, seu trabalho intelectual, inserido no projeto missionário, parte de um esforço, segundo ela, de recuperação de "uma estrutura social per-feita em que uns viviam pelos outros".73

Voltemos para nosso centro de cultura bororo sediado no pré-dio da missão, mais especificamente para o centro da Sala de Expressão de Cultura Koge Ekureu. Dirijamos nossa atenção para sua bela metáfora, que recria uma aldeia e reinsere os objetos

Page 384: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

bororo em um novo estatuto dentro da história desse povo. Metá-foras são recursos de expressão poderosos. Ao estabelecer cone-xões estruturais entre entidades de substâncias diversas, aspectos que são negligenciados em uma perspectiva podem se tornar elo-qüentes em outras. Vamos nos valer justamente dessa característica para situar exatamente o atual lugar da "cultura" no projeto missioná-rio salvacionista salesiano olhando a sua sala-de-expressão-metáfora. Notemos as substanciais modificações históricas dos seus meios e a permanência dos seus fins.

E conhecido na etnologia bororo, ou por estudos que se dedi-cam a pensar o contato interétnico, o relato do missionário Antonio Colbacchini sobre a derrubada da casa dos homens boro-ro concretizada em 1914.74 Lugar de corrupção de costumes e, sobretudo, local onde o poder do diabo residia para exercer sua influência sobre a tribo e mantê-la sob as sombras da ignorância, diria o salesiano. Afinal, vale retomar, tal casa abrigava o ponto central onde o mundo dos vivos se comunicava com o mundo dos mortos. Era pelo tronco de madeira fixado no centro do baimana-gejeu que chegavam ao mundo dos vivos os aroe, espécie de almas antepassadas.

Ao conseguir convencer os bororo a pôr abaixo a casa dos homens, a missão conquistava uma importante prova do seu traba-lho de evangelização e muito mais. Acabava por atingir o espaço simbólico (e funcional) da organização social. Local da organiza-ção pública do poder e espaço vital para a produção de sujeitos políticos bororo.75 Para a congregação, evento significativo da prova da intervenção "sobré os corações e mentes bororo" e sinal do avanço do seu projeto de salvação.

Anos de missão e conseqüências dessa intervenção se seguem. Acertos e erros são avaliados. Sempre fiel ao seu proje-to salvacionista, a história impõe à congregação novos contextos que exigem outras estratégias. Se os "saberes bororo" foram um obstáculo para essa salvação, hoje, tais saberes, depois de inscri-tos em uma tradução religiosa, se tornam peças fundamentais

Page 385: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

para o projeto de missionação contemporânea. Se não há mais a antiga viga no centro do bai mana gejewu de Meruri, para asseguar que os aroe venham ao mundo dos vivos garantir a continuidade da vida bororo na terra, que seja erguida uma outra viga na sala Koge Ekureu, para que a cultura leve as almas ao paraíso e se pro-duza na história.

Page 386: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

1 o

A P R O D U Ç Ã O D A A L T E R I D A D E : O T O R É E A S C O N V E R S Õ E S

M I S S I O N Á R I A S E I N D Í G E N A S

José Maurício P. A. Arruti

POUCOS COLOCARÃO em causa o papel fundamental que a Igreja católica desempenhou nas etnogêneses indígenas ocorridas no Nordeste brasileiro ao longo de todo o século XX — e que se pro-longam pelo século XXL Etnogênese é o termo — um tanto polê-mico, mas de uso corrente — usado para descrever o processo de auto-atribuição de rótulos étnicos por grupos que, até determina-do momento, eram tomados indistintamente como sertanejos ou caboclos.

No caso do Nordeste, tais grupos remetem a populações indí-genas que desapareceram dos registros oficiais por volta da déca-da de 1870, depois que as antigas Missões — que lhes haviam reu-nido e reduzido, mas que também lhes serviam como última garantia contra o avanço dos fazendeiros e das cidades — foram desarticuladas e suas terras arrecadadas aos "próprios nacionais". Com o fim oficial dos aldeamentos tais populações foram disper-sadas ou acuadas em pequenos trechos de seus antigos territórios, passando a ser proibidas de exercer algumas das práticas que lhes distinguiam. Entre estas, em especial o Toré, que — como tam-

Page 387: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)
Page 388: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

G L O S S Á R I O

Ação Católica Marcos Rufino

Movimento para-eclesiástico surgido no apogeu de um clima de forte efervescência pastoral, durante o pontificado de Pio XI. Surgido no final dos anos 1920, o movimento enfatizava a parti-cipação dos leigos no projeto evangelizador da Igreja católica e tinha como meta fundamental impulsionar o trabalho missionário fora dos muros da instituição, promovendo uma presença mais efetiva da Igreja junto à sociedade secular. A Ação Católica vinha ao encontro da crescente atenção da Cúria Romana e do episco-pado europeu com a temática da laicidade, tal como exposto na encíclica papal Ubi arcano dei, publicada logo no início do papado de Pio XI, em 1922. O projeto organizacional da Ação Católica pressupunha uma distinção entre grupos de atuação geral e grupos de atuação especializada. Os grupos de atuação geral reuniam qualquer católico disposto a participar, tendo por única restrição a classificação de seus membros por gênero ou faixas etárias. Já os grupos de atuação especializada reuniam parcelas específicas do rebanho católico, como trabalhadores, estudantes, advogados, cam-poneses, casais etc. Seriam esses grupos especializados que con-duziram de maneira mais definida o trabalho apostólico extra-ecle-sial. Os católicos inseridos em um movimento especializado da Ação Católica seriam responsáveis não apenas por levar os valores

D i: u s N A \ i D i: i \ 4 5 7

Page 389: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

cristãos para o meio social em que viviam mas também por tradu-zir a presença desses valores no trabalho, na escola, no espaço familiar etc. em uma experiência de sentido apostólico, cujo fim seria aproximar a tudo e a todos de uma vivência inspirada na evangelização. Entre as organizações especializadas da Ação Católica que mais se destacaram estão aquelas que reúnem a juventude no meio estudantil e no mundo do trabalho. A JOC (Juventude Operária Católica), a JUC (Juventude Universitária Católica) e a JEC (Juventude Estudantil Católica) ganharam uma expressão significativa em diversos países europeus e em países da América Latina. O trabalho evangelizador dos leigos envolvidos nessas organizações era muito distinto do dos grupos intra-ecle-siais de leitura bíblica, liturgia ou devoção. No contexto brasileiro, a práxis da Ação Católica influenciou não apenas os movimentos inspirados na Teologia da Libertação como também todo o conjun-to de pastorais sociais da América Latina, entre elas o Cimi.

Bispo - Arcebispo Bruno Feitler

Eclesiásticos que têm a plenitude do sacerdócio, isto é, que têm poderes de conferir todos os sacramentos (ver), sendo os da con-firmação e da ordem exclusivamente de sua alçada. Trata-se do posto de direção de uma diocese, sendo, por sua função, conside-rado sucessor dos apóstolos de Jesus. Nesse sentido, o arcebispa-do não é mais do que a diocese do arcebispo, que ocupa funções semelhantes às dos bispos, sem poder de intervenção direta nas dioceses dos seus sufragâneos. Contudo, o arcebispo tem o poder de convocar sínodos provinciais, de onde podem sair resoluções a ser aplicadas em toda a província eclesiástica (o conjunto dos bis-pados sufragâneos de uma metrópole, isto é, de um arcebispado). Uma diocese é divida em paróquias (ver) e seu templo sede é cha-mado de catedral. No Brasil colonial houve uma tentativa de reu-nir um sínodo provincial, em 1707, pelo arcebispo da Bahia,

Page 390: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

d. Sebastião Monteiro da Vide, mas que, pela ausência ou vacân-cia de quase todos os seus sufragâneos, não passou de um sínodo diocesano, isto é, com aplicação apenas na sua diocese. Não houve outros sínodos no Brasil até a proclamação da República.

No Brasil, como pastores, os bispos deviam, além de manter e fomentar a fé nas paróquias instituídas (ver visita pastoral), divul-gar o catolicismo por entre a população indígena, mantendo assim missões no sertão, administradas por padres seculares.

De acordo com o padroado (ver), os bispos do Brasil eram escolhidos pelo rei (e em seguida pelo imperador) e somente con-firmados pelo papa, devendo assim prestar contas tanto ao papa quanto ao monarca.

Cabido Bruno Feitler

Conjunto de clérigos de uma catedral, chamados genericamente de cônegos. Alguns possuíam dignidades, enumeradas aqui em ordem decrescente de importância: deão, chantre, tesoureiro-mor, mestre-escola e arcediago. Também ocupavam cargos no tribunal eclesiástico (ver imunidades).

Clérigo Bruno Feitler

Eclesiástico. Indivíduo que recebeu todas ou algumas das ordens sacras (ver Ordens religiosas e Ordens sacras).

Colégio Jesuíta Bruno Feitler

Instituição jesuíta especializada no ensino e aberta a estudantes externos à Companhia, sobretudo no Brasil colonial, onde não havia universidade e onde os seminários episcopais só surgiram em decor-

D L : U S |\'A A L D K I A 4 5 9

Page 391: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

rência da expulsão dos inacianos (1759). Os colégios eram os centros da vida jesuíta, tendo sob sua dependência residências e aldeias.

Companhia de Jesus Adone Agnolin

Em 1534 o espanhol Inácio de Loyola funda, junto com seis com-panheiros, o primeiro núcleo da Companhia de Jesus, que preten-de constituir-se como um instrumento de luta a serviço do papa contra os heréticos e os infiéis. Os jesuítas tornar-se-ão os prota-gonistas da Contra-Reforma católica. Sua elevada preparação cul-tural, formação segundo um modelo único, dedicação e espírito missionário, sua capacidade de penetração nos níveis altos da sociedade e, sobretudo, sua plena e total disponibilidade às ordens do papa foram as características que lhe asseguraram o sucesso.

Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)

Marcos Pereira Rufino

Ao ser fundada em 1952, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil tornou-se o mais importante organismo da Igreja católica no país. Um dos objetivos presentes no processo de criação da CNBB era promover um fórum comum para a participação do episcopa-do nacional, viabilizando assim a troca de experiências e a formu-lação de projetos e ações pastorais de longo alcance, impossíveis de serem gestados isoladamente, no âmbito da jurisdição de cada bispo. A construção da CNBB, como diversas outras conferências episcopais nacionais, foi apoiada pela Cúria Romana, que enten-dia ser necessária a constituição de canais de comunicação mais efetivos no interior dos episcopados nacionais. Desde os seus pri-meiros momentos, a CNBB atuou como uma referência importante para a ação política da Igreja católica na sociedade brasileira, desempenhando papel de destaque no cenário nacional nas mais diversas ocasições. De orientação conservadora em suas duas pri-

Page 392: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

meiras décadas, a CNBB passou a ser identificada, particularmente após o recrudescimento da ditadura militar nos anos 1970, como um pilar na defesa dos direito humanos e ponto de apoio ao movi-mento de democratização do país. Apesar de não ter poder de ges-tão sobre as jurisdições territoriais de cada um dos seus bispos — pois, conforme o código canônico, o bispo ainda é o supremo líder religioso no interior de sua área de atribuição —, a CNBB logrou conquistar um papel de extrema importância na condução das prá-ticas e metas da Igreja católica no país.

Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB) Marcos Pereira Rufino

Organismo criado em 1954, logo depois da CNBB, e cujo objetivo maior é promover a articulação entre os religosos e as religiosas do país. Entre suas ações está animar os Institutos Religiosos e pro-mover a formação e o aprofundamento de temas associados à vida religiosa, à teologia e aos carismas relativos às ordens e congrega-ções religiosas. Um dos grandes desafios colocados à CRB é atuali-zar permanentemente os sentidos da vida religosa no mundo moderno, particularmente na sociedade brasileira contemporânea. A revista da CRB é um importante espaço para o debate teológico e de temas pastorais no Brasil.

II Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano (1968, Medellin)

Marcos Pereira Rufino

Esta Conferência aprofundou as questões levantadas no Concilio Vaticano II adaptando-as ao contexto latino-americano. A preocupa-ção com os pobres foi um dos grandes temas nela gestados e, ao longo das décadas posteriores, seria uma marca característica do episcopado latino-americano. Em suas conclusões, a Conferência propõe ressituar o leigo no plano da história ao fazê-lo assumir

Page 393: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

o compromisso da promoção humana. No início dos anos 1970 o episcopado brasileiro, articulado politicamente em torno da Con-frência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), estimula uma nova abordagem da atividade missionária, pautada não mais na cateque-se, mas na promoção humana.

III Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano (1979, Puebla) Paula Montero

Esta III Conferência, mais conhecida como a Conferência de Puebla, apesar de ter sido dominada por uma visão mais eclesial, que desejava sepultar Medellin, acabou por referendar a tomada de posição da Conferência anterior, afirmando solenemente a opção preferencial pelos pobres. Convocada oficialmente pelo papa Paulo VI em 1976, confirmada por João Paulo I em agosto de 1978, veio a realizar-se em 27 de janeiro de 1979, depois da eleição de João Paulo II. Seus documentos preparatórios expressaram o ambien-te de tensões existentes entre a Cúria Romana e as Conferências Episcopais Nacionais que pretendiam consolidar uma reflexão teológica centrada nas Comunidades de Base, e entre a Secretaria Executiva do Cèlam e os teólogos e peritos progressistas latino-americanos, cuja presença na Conferência não estava sendo esti-mulada. A presença do papa na inauguração da Conferência lhe conferiu um alcance popular e mediático inédito.

IV Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano (1992, Santo Domingo)

Marcos Pereira Rufino

Planejada para coincidir com o aniversário de 500 anos da chega-da de Colombo à América, a IV Ceiam, realizada em Santo Domingo, na República Dominicana, representou mais do que um momento simbólico de celebração e revisão dos cinco séculos de

Page 394: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

presença da Igreja católica no Novo Mundo. A conferência tinha por objetivo definir a orientação pastoral a ser seguida pelo episco-pado de toda a América Latina em um segundo grande momento da história da Igreja no continente, a se iniciar no limiar de um novo milênio. O tema predominante de todo o encontro foi a ne-cessidade de "evangelização das culturas", o que expressava a repercussão e a força mobilizadora da teologia da inculturação sobre o continente. A idéia de reevangelização continental, a par-tir de uma atenção primordial dada ao universo da cultura e suas dinâmicas sociais específicas, tornou-se chave' em toda a documen-tação do encontro. A Conferência de Santo Domingo, como ficou conhecida, vira uma página da história das Conferências Episcopais realizadas na América Latina na segunda metade do século XX. Ela procura expandir a atenção pastoral da Igreja para além de suas preocupações com as injustiças presentes na estru-tura social do capitalismo latino-americano e constituir teologica-mente um novo conjunto de atores para sua ação evangelizadora, que não seja, dessa vez, reduzido à figura simbólica do "oprimido".

Conselho Missionário Indigenista (CIMI)

Marcos Pereira Rufino

A proposta de criação do Cimi ocorreu no III Encontro de Estudos sobre Pastoral Indigenista, em abril de 1972, realizado no Instituto Anthropos, em Brasília. O seu aparecimento no cenário eclesial cató-lico está diretamente relacionado à atuação da Operaão Anchieta (Opan), hoje Operação Amazônia Nativa. Nascida em 1969, a Opan foi formada a partir de um encontro de jovens congregados marianos. Em seu início atuava a partir das referências do trabalho catequético missionário tradicional entre os povos indígenas. Com as mudanças propostas pelo Concilio Ecumênico Vaticano II (1962-65) e pela II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, realizada em Medellin (1968) {ver), a Opan tornou-se uma voz cada vez mais crí-tica do trabalho missionário. No início dos anos 1970 volta-se exclu-

D E U S N A A L D K I A 4 6 3

Page 395: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

sivamente para atividades indigenistas deixando para o Cimi as res-ponsabilidades de evangelização.

O Cimi tornou-se um órgão anexo à CNBB cinco anos após a sua fundação, quando também os estatutos do Conselho foram formalmente aprovados pela Conferência nacional. Conforme seu estatuto, compõem o Cimi todos os bispos e prelados em cujas dioceses ou prelazias existam grupos indígenas, os superiores das ordens e congregações que atuam junto a alguma etnia, o bispo responsável pela Linha Missionária da CNBB e membros das pas-torais indigenistas diocesanas.

Concilio de Trento (1544-63) Adone Agnolin

Convocado em 1544 pelo papa Paulo III, o concilio geral da Igreja se inicia em Trento em 13 de dezembro de 1545. Os trabalhos, definitivamente encerrados apenas em 6 de dezembro de 1563, definem as diretrizes de reforma eclesiástica (residência dos bis-pos, instituições de seminários, catecismos etc.). Em contraposi-ção à vontade de Carlos V, Roma traçou uma linha nítida de divi-são entre a doutrina ortodoxa e a heresia. Uma das questões capitais no confronto com a Reforma era a doutrina da justifica-ção: debatia-se a essência do pecado original e o modo como o homem podia libertar-se dele. A tese luterana da justificação sola fide colocava em xeque todas as formas de exercício de piedade religiosa que haviam estruturado a sociedade cristã européia, desde a escolha da perfeição (votos monásticos) até as obras de caridade com as quais os não perfeitos (laicos conjugados, "tercei-ra ordem") podiam pagar as contas de seus pecados. Essa questão foi resolvida no sentido apreciado pelo partido romano mais intransigente. Ao lado da definição da doutrina ortodoxa sobre o pecado original foram listadas todas as proposições a serem consi-deradas heréticas e condenadas com a fórmula "anathema sit".

Page 396: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

A sistematização dogmática e disciplinar resultante do conci-lio respondeu às necessidades do confronto-choque com as igrejas e as tendências da Reforma, elaborando um universo doutrinai que forneceu o instrumento para definir a identidade do catolicis-mo moderno; mas, sobretudo, redesenhou o perfil social do ecle-siástico como membro de um corpo que se distinguia dos outros pelo hábito e pela severidade obrigatória dos costumes, dando-lhe condição de opor-se, desse modo, aos poderes estatais. A ele foi entregue a função de garantir o consenso com sua presença capi-lar e cotidiana na vida do povo cristão: um povo composto, final-mente, por "fiéis", isto é, laicos ligados pela identidade de fé e pela obediência ao governo eclesiástico.

Concílios de Lima Aâone Agnolin

O cenário não-europeu permaneceu distante da influência do Concilio de Trento. Todavia, em alguns temas as decisões do con-cilio influíram na experiência religiosa dos povos americanos. A questão dos sacramentos e, de forma particular, a da penitência, por exemplo, foram dominantes nos concílios provinciais america-nos que tiveram lugar em Lima, o primeiro em 1552, o segundo em 1567 (quando o Tridentino foi oficialmente recebido em todo o império espanhol). A "extirpação da idolatria" foi uma função entregue aos inquisidores e aos bispos, mas foi graças aos missio-nários atraídos pelo modelo apostólico de pregação que o cristia-nismo tridentino penetrou em profundidade.

Primeiro Concilio de Lima (1551-52)

Cinco anos depois da elevação da cidade de Lima a sé episcopal, em 12 de fevereiro de 1546, os problemas provocados pela exten-são dos territórios e pelas dificuldades de comunicação levaram o papa Paulo III a reorganizar as sés americanas de Santo Domingo,

Page 397: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

México e Lima, separando-as da autoridade metropolitana de Sevilha. A Igreja de Lima foi elevada à dignidade metropolitana e lhe foram consignadas, como sufragâneas, as igrejas de León de Nicaragua, Panamá, Quito, Popayán e Cuzco. Jerónimo de Loaysa foi promovido a arcebispo de Lima; convocou uma assembléia eclesiástica geral com caráter provincial, legitimada durante as sessões solenes de 24 de janeiro e de 20 de fevereiro de 1552, com o objetivo de enfrentar os problemas característicos do nascimen-to da Igreja hispano-americana.

No concilio foram delineadas as primeiras definições de métodos e técnicas de evangelização a serem aplicados através da unificação do ensino da fé, com o objetivo de evitar heresias e fal-sas interpretações. A publicação de uma Instrucción o Sumario de los artículos de fe resumiu as resoluções conciliares em dezoito capítulos, e foram promulgadas as constituições que se referiam aos índios, as assim chamadas Costituciónes de los naturalesy que continham orações e preceitos que os neófitos deveriam decorar, um 4 catecismo menor" e um extenso Colóquios o Declaración fun-cional na regulamentação das questões relativas aos catecúmenos, na utilização da língua indígena na transmissão da doutrina, da administração dos sacramentos do matrimônio e da confirmação, da moderação dos salários para os clérigos e da disciplina para con-ter as ausências nas dioceses. Todas essas disposições reaparece-rão com maior ênfase e vigor nos decretos do terceiro concilio limenho, de 1582-13.

Segundo Concilio de Lima (1567-68)

Embora a evangelização indígena americana tenha começado no período imediatamente anterior ao início dos trabalhos conciliares tridentinos, os problemas da Igreja americana ali encontraram somente uma atenção marginal. Em 12 de julho de 1564, Felipe II reconheceu as prescrições e os decretos conciliares como leis do Estado a serem subscritas e respeitadas. No entanto, ainda que os

Page 398: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

grandes concílios no México e em Lima tenham inserido a legisla-ção tridentina em seus decretos, a função desses últimos visava à evangelização dos indígenas. As ordens religiosas reformadas pelo concilio, Franciscanos, Dominicanos e Jesuítas, foram aquelas preferidas para escrever essa parte fundamental da história do con-tinente americano.

O momento mais representativo da aceitação do "espírito" conciliar tridentino na América é representado pelo Concilio Provincial celebrado em Lima nos anos de 1567-68 e presidido, novamente, pelo Dominicano Jerônimo de Loaysa. Mas, apesar disso e apesar do juramento ao papa e a Roma, sublinhou-se nesse concilio a necessidade de uma adaptação à realidade local, de tal forma que se delineavam características peculiares à Igreja hispa-no-americana, não assimiláveis àquelas da capital do catolicismo. Além de ampliar os decretos emanados no primeiro concilio lime-nho, de 1552, foram expostas, em 132 Capítulos, as "Constitu-tiones para espanoles", caracterizadas por disposições dogmáticas e disciplinares e, sobretudo, as "Constitutiones de lo que toca a los Índios", em 122 Capítulos, para definir a doutrina da fé a ser ensi-nada a eles: sua integração partia da condição de que rejeitassem todas suas crenças — quando se supunha que as tivessem — por-que consideradas idolátricas. Dessa forma, a conversão se impu-nha não só pela questão da salvação, mas, evidentemente, como integração política que, tornando-os súditos do Império, os reunia sob o único denominador comum da fé. Além disso, e em confor-midade com os decretos tridentinos, destacou-se novamente a exi-gência da uniformidade do ensino aos indígenas, a ser realizado com a adoção de um único catecismo.

Em 1576 foi nomeado provincial o jesuíta José de Acosta, que, na tentativa de resolver o problema da necessidade de conhe-cer a língua indígena, redigiu dois catecismos: um breve, para ser memorizado pelos indígenas, e um mais extenso, para uso dos catequistas; além disso, elaborou um compêndio de orações para crianças a serem traduzidas em quíchua e aymara.

D E U S N A A L D E I A 4 6 7

Page 399: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Terceiro Concilio de Lima (1582-83)

A fim de educar os costumes, introduzir a disciplina eclesiástica e destruir a supertição, em 15 de agosto de 1582, no dia da festa da Assunção de Maria, abriu-se o Terceiro Concilio. Este teve influência em toda a América do Sul e nos territórios de missões jesuíticas, ecoando até o Extremo Oriente. Sua relevância históri-ca encontra-se ligada à peculiaridade de ter sido o único Concilio Provincial hispano-americano seguido, dois anos depois, por aque-le mexicano, que, muito provavelmente, foi estimulado, também, pela presença marcante de José de Acosta.

De fato, o Terceiro Concilio de Lima encerrou a época da con-quista e deu início à consolidação da hegemonia espanhola na América do Sul. Por suas particularidades e pela importância de que se revestiu até o século da independência latino-americana, foi definido "El Trento de Lima". Em 1568 emanou "Las Instruc-ciones", através das quais intensificou a presença da Igreja no Peru; por meio das visitas e dos concílios, estabeleceu um sistema de controle que visava evitar o desenvolvimento de correntes hos-tis à Coroa; introduziu a Companhia de Jesus na obra de evange-lização como uma ordem considerada fiel à sua política; confiou às ordens religiosas reformadas várias funções que normalmente eram atribuídas ao clero secular, incentivando o abandono das organizações monacais e encarregando-as da pregação da doutrina entre os indígenas; enfim, modificou as taxas a fim de enfraquecer a base econômica e a hierarquia eclesiástica.

Na conclusão da reunião conciliar foram promulgados 44 Capítulos que, desta vez, tratavam principalmente da doctrina y sacramentos, apontando para os conteúdos doutrinários a serem ensinados aos adultos na catequese. Em relação aos concílios ante-riores, que separaram os decretos que se referiam aos índios daque-les para os espanhóis, o elemento significativamente novo dos novos decretos conciliares é constituído pela elaboração de um

Page 400: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

único corpo legislativo dentro do qual foi reservado amplo espaço para a resolução das questões especificamente indígenas. Outro aspecto importante: seguindo as indicações contidas no livro VI ("de sacramentis indiis administrandis") do De Procurando, Indorum Salute, o concilio seguiu as indicações do pe. Acosta na insistência e na atenção a respeito da administração dos sacramentos. Uma atenção particular é reservada pelos decretos conciliares aos sacra-mentos do batismo, do matrimônio e, sobretudo, da confissão.

O Terceiro Concilio de Lima abriu-se numa data em que, depois da elevação de Bartolomé de Las Casas ao cargo de bispo, justamente em 1582, se afirmou o ius connubii, isto é, foi reconhe-cida a função humana (gostaríamos de chamá-la de "humanizado-ra") das missões que desenvolviam uma obra ao mesmo tempo evangélica e evangelizadora, tendo portanto a obrigação tanto de corrigir os costumes — elevando-os a níveis de civilização aceitá-veis —, quanto de tornar os indígenas idôneos à recepção dos sacramentos. Com o afirmar-se do ius connubii, a ação missioná-ria de "hazer cristianos" os indígenas visava realizar em estrita conexão os dois objetivos, constituindo-se como missão de civiliza-ção: "reducere ad ecclesiam et vitam civilem".

Enfim, a exemplo do Concilio de Trento, os decretos conciliares apontaram para a necessidade da publicação de um compêndio cate-quético, uniforme na doutrina a ser ensinada (a "ninos, jovens y adul-tos"), destacando-se por seu peculiar convite a ser traduzido nas duas línguas principais do vice-reinado: o quíchua e o aymara.

Concilio Vaticano I (1869-70) Paula Montero

Convocado pelo papa, estava diretamente preocupado em proteger a autoridade e as propriedades da Igreja católica contra as forças modernizantes que varriam a Europa. Ele representou a vitória dos segmentos ultramontanos, ou papistas, no interior da Igreja e afir-mou a polêmica doutrina da infalibilidade papal, segundo a qual o

Page 401: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

bispo de Roma tem sempre a verdade quando se trata da interpre-tação do sistema doutrinário católico. Este concilio jamais foi for-malmente encerrado, pois, depois de um recesso em que os bispos retornaram à suas regiões de atuação, as tropas piemontesas inva-diram Roma, impedindo a continuação da reunião.

Concilio EcumênicoVaticano II (1962-65) Paula Montero

Convocado pelo papa João XXIII, teve como principal objetivo rede-finir as diretrizes do cristianismo no mundo pós-Segunda Guerra. Sob a influência de grande parte de bispos e teólogos progressistas da Europa, as conclusões do concilio estabeleceram um conjunto de novos princípios para a Igreja, em particular, uma atitude mais aber-ta para o mundo moderno e seus valores seculares — tolerância reli-giosa, ateísmo, liberalismo, comunismo etc. Outro importante prin-cípio estabelecido por este concilio foi a idéia de Igreja como "Povo de Deus": padres, bispos e leigos, apesar de seus diferentes poderes e funções, constituem uma mesma comunidade, compartilham o mesmo destino e são iguais aos olhos de Deus. Esse princípio repre-senta um significativo deslocamento da idéia de Igreja como uma sociedade hierarquicamente estruturada para a idéia de uma comu-nidade de iguais. Finalmente, o concilio enfatizou uma nova aliança com os mais pobres, rompendo com uma longa tradição de união com as autoridades civis. Essa nova ênfase abre um novo espaço político para a Igreja, que se atribui o papel de juiz moral da ordem política e estimula um ativismo social por meio dos leigos.

O concilio teve grande impacto nas Igrejas latino-americanas ao colocar o seu episcopado, na maior parte das vezes, com uma experiência restrita à vida de suas dioceses, em contato com um novo e desafiador ambiente intelectual. Além disso, os quatro anos de convivência foram uma ocasião única para a construção de uma nova rede de relações e cumplicidades entre os mais de seiscentos

Page 402: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

bispos do continente. Finalmente, pode-se dizer que o concilio contribuiu para consolidar a influência de uma personagem que se tornará estratégica na Igreja latino-americana nas décadas seguin-tes: o assessor dos bispos.

Clero Secular e Ordens Regulares Acione Agnolin

Seculares e regulares correspondem a dois modelos institucionais opostos, que poderiam ser definidos como Igreja territorial e sei-tas: à Igreja dos bispos e dos párocos, juizes ordinários no espiri-tual sobre todos os batizados de circunscrições eclesiásticas terri-toriais, se contrapõe o clero de pertença voluntária, pessoal e não territorial dos monges e dos frades. A convivência e concorrência, dentro do único "estado" eclesiástico, de seculares e regulares foi sempre repleta de conflitos: eles expressam a oposição entre igre-ja fundamentada com o batismo sobre a territorialidade, e igrejas-santuário, extra ou aterritoriais.

Com a administração dos sacramentos, o clero secular (ver) tem o monopólio das funções públicas de estado civil, essenciais para definir o pertencimento não somente à Igreja mas também aos Estados seculares; em razão de tal monopólio, tem competência judiciária em via ordinária sobre todos os cidadãos de todos os Estados católicos. Assim, bispos e padres seculares representam um clero público que, na dupla função civil e sacramentai, é sempre constitutivo e integrante tanto da Igreja quanto dos Estados, sempre sujeitado a dois soberanos e dividido por uma dupla fidelidade.

As ordens regulares (ver), ao contrário, representam o clero "privado", extra ou aterritorial: autogovernados pelos superiores e sujeitados somente às regras da ordem; monastérios e conventos são sempre, pelo menos na intenção, instituições totais, cujos membros se separaram da humanidade comum. Esse segundo tipo de igrejas — no plural e não no singular — pode ser definido de tipo sectário, para sublinhar que é constituído por periódicos

Page 403: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

movimentos de autofundação ou refundação por separação volun-tária, com a assunção de uma religio ou regra de vida que preten-de tornar esses homens perfeitos, separados e superiores à huma-nidade comum, não somente em relação aos fiéis laicos mas também em relação ao clero secular. Nas comunidades monásti-cas e conventuais, a pertença não é definida pela ordem, nem pelos sacramentos de "definição de estado", atos de legitimação ritual dos eventos biológicos fundamentais na vida de todo indiví-duo; mas por regras e votos excepcionais e exclusivos de purifica-ção e separação da impureza, que comportam de norma, mesmo que em diferentes modos e medida, a rejeição do sexo, do sangue e do dinheiro. No sentido antropológico, trata-se de comunidades liminais ou de margem, cujos membros se colocam como mediado-res entre natural e sobrenatural não por força de uma consagração ex opere operato, prescindindo das qualidades da pessoa, mas justa-mente graças à sua pureza pessoal. Seu modelo não é a Igreja está-vel e obrigatória dos bispos e das dioceses do Império do IV século, mas aquela dos Atos dos apóstolos, a atividade carismática e profé-tica de missionários móveis, que relacionam entre si seitas de mino-ria de fiéis voluntários e pregam a conversão entre os pagãos.

A função dos monges e dos frades é diferente daquela do clero secular, que marca os limites entre natureza e cultura, oficiando os ritos de passagem que consagram os eventos fundamentais da vida biológica de cada indivíduo. Poder-se-ia dizer que desenvolve essen-cialmente duas funções, ambas ligadas às originárias vocação de pro-paganda da fé e conversão através da penitência. A mais geral é de oferecer explicações e remédios à desventura, seja coletiva ou indivi-dual, à doença e à morte. Monges e frades são especialistas nos remédios propiciatórios e intercessores, mágicos e votivos-terapêuti-cos; é, sobretudo, junto a seus santuários que prosseguem muitos dos aspectos mais arcaicos da religio ou piedade em geral, em continui-dade com as religiões votivas dos santuários clássicos e pagãos. Mas, assim como se pode atribuir a uma graça divina a morte evitada, da mesma forma se pode atribuir a castigo divino a morte que se verifi-

Page 404: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

cou, e a esse respeito os remédios oferecidos pelo clero carismáti-co podem ser tanto autopunitivos e expiatórios como no caso dos movimentos dos flagelantes, quanto o sacrifício-suplício do phar-makós, o impuro que atrai sobre a comunidade a ira divina, seja ele herético ou maleficus, hebreu ou bruxa. Esta representa a segunda especialidade dos regulares.

Confraria - Irmandade Bruno Feitler

Associação laica que funciona sob princípios religiosos. Organizadas pelos próprios fiéis, para além de fornecer um enquadramento reli-gioso comum, na época colonial, as irmandades eram um fator de solidariedade do grupo que a organizava (grupos sociais, raciais, pro-fissionais) e remediavam ao mesmo tempo os medos comuns em face da religião e as dificuldades em face da realidade social, por for-necer assistência aos irmãos que a necessitassem.

Congregação Geral da Propaganda Fide Paula Montero

Criada em 1622 pelo papa Gregório XV, tem por finalidade manter sob sua jurisdição e controle toda a atividade missionária do mundo. Pela constituição Inescrutabili ganha plenos poderes para enviar missionários e vigiar-lhes a ação. Em razão dos privilégios do Padroado a Propaganda se vê impedida de enviar missionários para América, África, China e Japão. Ela procura contornar o monopó-lio ibérico instalando uma nova hierarquia — os bispos partibus infideliSy que recebiam a titularidade de uma sede episcopal desa-parecida e um território missionário sobre o qual se aplicava sua jurisdição. Escolhidos geralmente entre os membros de uma con-gregação religiosa no momento de sua nomeação, o instituto ganhava uma espécie de monopólio sobre o território e a ação apostólica passava a ser diretamente controlada pelo papa.

Page 405: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Congregação Salesiana Paula Montero

Dom Bosco (1815-88) dá início a sua obra educativa em Turim no final de 1841, procurando dar uma formação religiosa aos jovens de origem rural que vinham em busca de trabalho nos grandes centros urbanos industriais. Fundada èm 1859, a sociedade Sale-siana teve que ajustar-se às exigências impostas pela restauração italiana, que, a partir de 1848, extinguira os tribunais eclesiásticos, proibira as corporações religiosas e leigas de adquirirem proprieda-des ou receberem bens sem autorização do Estado e estendera aos religiosos as obrigações do serviço militar. Nesse contexto de cres-cente secularização do Estado, Pio IX propõe que as regras salesia-nas fossem de fácil observância e que suas práticas de piedade não os distinguissem do mundo envolvente.

Os salesianos vieram para o Brasil em 1883, no final do período imperial, estabelecendo-se, primeiramente, na região do Sudeste (Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais) onde a expansão da bur-guesia comercial e industrial criava, ao mesmo tempo, uma expres-siva demanda de formação dos jovens da elite e a necessidade de capacitação profissional dos imigrantes italianos recém-estabeleci-dos nos centros industriais. Desde sua chegada os salesianos se dis-puseram a colaborar com o movimento dos bispos reformadores interessados em recolocar o clero sob a influência direta da autori-dade romana enfraquecida pelo regime do Padroado, reforçar o celibato e retomar o controle dos centros de devoção popular.

Demonologia Adone Agnolin

Baseada na instrumentação interpretativa do demônio, a "demono-logia" foi instrumento imprescindível para gerenciar modalidades peculiares de encontros culturais. A estrutura interpretativa demo-nológica constituiu, historicamente, inevitável e perturbadora imer-

Page 406: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

são no mundo das culturas, autóctones, exóticas e indígenas. Ela permitiu constituir, na base desses encontros, uma nova e peculiar dimensão cultural: a cultura colonial.

Em vista dos problemas suscitados pelos excessos e pelas ausências de "estruturas idolátricas" nessas culturas, a "conquista espiritual" encontrou-se diante da necessidade de estruturar uma rede interpretativa que lhe permitisse, de alguma forma, ler e interpretar as práticas culturais indígenas: tratou-se de uma rede redutora que encontrava ao redor do "demoníaco" a estrutura efi-caz e cômoda para poder, mesmo que fosse para condenar, abrir-se ao conhecimento dessas práticas.

O "demoníaco" constituía-se, portanto, como rede que, em princípio, oferecia a possibilidade de entender tanto os "excessos" (rituais: diferentes do culto idolátrico), quanto as "ausências" (de crenças: que, de fato, revelava a ausência da idolatria) que carac-terizavam determinadas culturas. E, assim, o "demoníaco" come-çou, timidamente, a instalar-se nas primeiras descrições das alte-ridades indígenas. A demonologia constituiu-se, portanto, como um grau zero de religiosidade, patamar inaugural do processo evangelizador.

Diocese (ver bispo — arcebispo)

Ecumenismo Marcos Pereira Rufino

O ecumenismo é um movimento que almeja a unidade religiosa e a reaproximação das Igrejas cristãs. O termo é freqüentemente uti-lizado não apenas para descrever o movimento organizado no inte-rior das Igrejas cristãs, mas a utopia da unidade religiosa em si mesma, como também os esforços realizados para atingir esse fim. Talvez o momento histórico mais importante para as ações em prol do ecumenismo seja a reunião promovida por uma série de Igrejas protestantes em 1910, conhecida por Encontro de Edimburgo,

Page 407: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

que, entre outras coisas, estabeleceu o funcionamento do Conse-lho Mundial de Igrejas, sediado em Genebra. A Igreja católica manteve-se afastada dessas ações ecumênicas em seus primeiros momentos, recusando-se até mesmo a participar do encontro de 1910, mas revisou sua posição acerca do tema nas décadas seguin-tes. Ao longo da segunda metade do século XX, o ecumenismo — como movimento ou ideologia — exerceu um forte impacto na política interna e na orientação teológica e pastoral de muitas igre-jas. Especialmente atingida por esse movimento foi a Igreja católi-ca universal (cujos temas discutidos no Concilio Vaticano relacio-navam-se direta ou indiretamente ao ecumenismo), e as diversas Igrejas católicas particulares (no caso brasileiro, a título de exem-plo, a Igreja se viu às voltas com a teologia da libertação).

Nos dias de hoje, o ecumenismo é uma bandeira política defendida pela quase totalidade das Igrejas cristãs ao redor do mundo, incluindo a Igreja Ortodoxa e outras Igrejas católicas não romanas. Ele sofre, porém, a forte oposição de denominações pro-testantes classificadas no espectro fundamentalista e pentecostal.

Imunidades Bruno Feitler

Os clérigos gozavam de vários tipos de imunidades, dentre elas a jurídica, o que fazia com que fosse necessária a existência de um juízo eclesiástico. Esse tribunal eclesiástico, existente em cada bis-pado, também julgava certos casos onde laicos estavam em causa (em casos de blasfêmias, por exemplo). Nas comarcas eclesiásti-cas eram juizes de primeira instância os vigários de comarca ou da vara, o pároco (ver) de uma paróquia regional de mais importância. Freqüentemente, as comarcas eclesiásticas do Brasil colonial coin-cidiam com os limites das freguesias, o pároco sendo então cha-mado mais comumente de vigário. Deles se apelava diretamente ao tribunal eclesiástico do bispado, regido pelo vigário geral, secundado pelo provisor e por desembargadores. Deste tribunal se

Page 408: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

apelava para a Relação eclesiástica do arcebispado, que também era o tribunal local da diocese arquiepiscopal. Da Relação, se ape-lava à Mesa de Consciência e Ordens, conselho régio situado em Lisboa.

O bispo (ou o arcebispo) era nominalmente o juiz supremo da sua diocese, e durante as visitas pastorais (ver), o visitador (o pró-prio prelado ou alguém por ele nomeado) exercia os poderes de juiz, podendo assim julgar localmente alguns casos.

Os clérigos regulares eram julgados dentro do seu próprio convento ou na sede da sua província. Os conflitos jurisdicionais entre os tribunais eclesiásticos, civis e também inquisitoriais, não eram raros.

Inspetoria Aramis Silva

Nome dado às comarcas religiosas por onde estão espalhados os membros e instituições administradas pela congregação salesiana. No Brasil existem seis inspetorias, sendo que cada unidade adminis-trativa está submetida diretamente à sede em Turim. São elas: Inspetoria Nossa Senhora Auxiliadora (noroeste de SP e norte do Paraná); Inspetoria Santo Afonso Maria de Ligório (MT, MS e oeste de SP); Inspetoria São Luiz Gonzaga (Nordeste, exceto MA); Inspe-toria São Domingos Sávio (Norte do Brasil); Inspetoria São Pio I (sul do PR, SC e RS) e Inspetoria São João Bosco (RJ, ES, MG, GO).

Instituto Consolata para as Missões Estrangeiras Melvina A. de Araújo

Fundado em 29 de janeiro de 1901, em Turim, pelo sacerdote José Allamano, o Instituto iniciou suas atividades enviando missioná-rios para a África e depois se expandiu para outros continentes. Allamano foi um representante do espírito ultramontano, tendo se dedicado especialmente à formação dos novos clérigos do Piemonte

Page 409: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

e ao reavivamento do culto mariano. Os Consolata chegam a Rio Branco (AC) em 14 de junho de 1948 para assumir a missão deixa-da pelos monges beneditinos. Continuaram as atividades iniciadas por seus antecessores assumindo a escola e o hospital Nossa Senhora de Fátima, em Boa Vista, construindo novas escolas e hospitais e cumprindo, junto às populações indígenas, suas via-gens de desobriga.

Missão Adone Agnolin

A missão católica, em seu sentido moderno, consolida-se como modelo através do plano eclesiástico tridentino no século XVI. O mundo da Contra-Reforma foi caracterizado por um grande impulso missionário que surgiu como resposta aos urgentes pro-blemas enfrentados dentro das próprias fronteiras culturais euro-péias: conseqüentemente, "reconquista" (antes referida ao território hispânico e, agora, ressignificada diante da alarmante subtração de novos territórios europeus em favor da Reforma), "controle" dos territórios (ameaçados pela circulação das idéias reformistas e heréticas) e "missão" foram os termos mais significativamente pre-sentes nas discussões conciliares. Mas a essas expressões estava prestes a juntar-se uma outra realidade que, ao longo do Concilio de Trento, estava batendo à porta: a Conquista das Américas. Essas realidades, em seu conjunto, dominaram a obra e as preocupações das novas ordens religiosas.

Se o problema da "reconquista" havia, por longo tempo, colo-cado o mundo ibérico diante da elaboração simbólica e do contro-le dos processos de conquista, na nova situação histórica se pas-sou, no decorrer dos Quinhentos, a uma presença cada vez mais importante de Roma. Foi, de fato, ao papa Paulo III que se viu con-fiada a incumbência de afirmar com clareza, num documento ofi-cial (.Altitudo divini consilii, 1 de junho de 1537), a plena dignida-de humana das populações do Novo Mundo americano: e com

Page 410: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

esse "reconhecimento", impulsionado pela ordem dos dominica-nos, abriu-se um espaço fundamental e fundante para a necessi-dade de empreender a obra de evangelização nos novos territórios.

Para além das diretrizes conciliares, as forças decisivas para a penetração do cristianismo tridentino entre as populações "idola-tras" foram expressadas pelas ordens religiosas, e de forma espe-cial pelos jesuítas. Se, de fato, nas reuniões conciliares, a "extirpa-ção da idolatria" foi uma função entregue aos inquisidores e aos bispos, foi graças aos missionários, atraídos pelo modelo apostóli-co de pregação, que o cristianismo penetrou em profundidade. No caso brasileiro, as diretrizes da missão foram inteiramente deter-minadas pelo pensamento jesuítico. Ao longo dos séculos seguin-tes esse modelo foi sendo relido e modificado em função das necessidades conjunturais do esforço missionário em diferentes momentos históricos.

Missões transculturais ("missões de fé") Ronaldo Almeida

São organizações transversais ao meio evangélico que mobilizam membros de várias denominações ao trabalho missionário de socie-dades de tradição não-cristã. Esse tipo de institucionalização se caracteriza por uma relativa autonomia teológica e administrativa, por isso são tratadas também como agências interdenominacionais ou para-eclesiásticas. Muitas dessas missões eram de origem estrangeira, e, com o passar dos anos, sua direção foi sendo trans-ferida aos brasileiros — ou aos "nacionais", como dizem os missioná-rios. Os estrangeiros procuram atuar mais no apoio técnico e teoló-gico do que na ação direta com a população. Esta fica por conta da ""igreja nativa", a saber, os evangélicos com algum tempo de conver-são e de treinamento. Devido às características dos públicos-alvo, as missões transculturais fazem um trabalho tecnicamente especia-lizado que exige a capacitação dos seus profissionais em lingüística e antropologia. As principais missões são a Sociedade Internacional

Page 411: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

de Lingüística (SIL) e a Missão Novas Tribos no Brasil (MNTB), que iniciaram o seu trabalho no país como Summer Institute of Linguistics e New Tribes, ambas surgidas nos Estados Unidos nos anos 1930 e 1940, respectivamente. Essas agências classificam sua atividade como "transcultural". Cultura é entendida, por um lado, como as práticas baseadas nos costumes e no comportamento, por outro, como a visão de mundo de um grupo social codificada em sua língua. A transculturação pretende fazer a tradução cultural (que também passa pela tradução lingüística) da religião evangéli-ca de forma cadenciada e constante para um determinado grupo étnico. Para as "missões de fé" o objetivo é "alcançar" o maior número de grupos culturais para que se cumpram a "Volta do Messias" e o "Juízo Final", conforme a interpretação do Evangelho de Marcos 16: 15. Os principais indicativos de que um povo foi "alcançado" são ter "nativos" que reproduzam a religião evangélica e a Bíblia traduzida na língua indígena.

Ordens Menores Bruno Feitler

São quatro as ordens menores: ostiário, leitor, exorcista e acólito. Implicam uma primeira tonsura. Apesar do nome, as ordens meno-res não são realmente equiparadas ao sacramento da ordem, mas são vistas como uma simples disposição a ele. Atuavam como assistentes dos clérigos de ordens sacras. Estas ordens foram suprimidas pelo Concilio Vaticano II; em seu lugar foram dispos-tos os ministérios de leitor e acólito.

Ordens Sacras Bruno Feitler

As ordens sacras são três: subdiácono, diácono, presbítero ou sacerdote (ver padre, pároco). São chamadas de sagradas pelo fato de aqueles que as tomam ficarem já totalmente dedicados e con-

Page 412: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

sagrados a Deus, tanto pelo voto que fazem de castidade como pela impossibilidade de voltar ao estado secular. Elas são distintas tanto pela dignidade quanto por suas funções, cada vez mais pró-ximas do material e das ações ligadas à administração dos sacra-mentos.

Padre Bruno Feitler

Homem que recebeu o sacramento da ordem; sacerdote secular ou regular; clérigo. Não está necessariamente vinculado à uma paróquia (ver pároco, ordens sacras).

Padroado Bruno Feitler

Regime instaurado por uma série de decretos papais promulgados entre 1456 e 1551, que davam ao grão-mestre da ordem de Cristo (em seguida incorporada à Coroa) jurisdição espiritual sobre os territórios descobertos ou ainda a descobrir por Portugal. O rei era assim patrono das missões católicas e instituições eclesiásticas na Ásia, na África e no Brasil. Através dele, o monarca tinha autorida-de sobre todos os postos, cargos, benefícios e funções eclesiásticas nos territórios ultramarinos, além de recolher o dízimo e nomear seus prelados (que eram em seguida confirmados pelo papa). Contudo, esse conjunto de direitos e privilégios implicava também deveres: o rei devia divulgar, proteger e manter o catolicismo e suas instituições nos seus domínios. Assim, as conquistas portu-guesas se fizeram sempre por meio de uma união indissolúvel entre a cruz e a Coroa. No Brasil, o padroado se manteve em vigor (agora nas mãos do imperador) até a proclamação da República, em 1889. Esse sistema também existiu na América espanhola com o nome de patronazgo.

Page 413: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Pároco — Paróquia Bruno Feitler

Padre (ver) provido de uma paróquia, isto é, a menor delimitação territorial eclesiástica, cujo conjunto forma uma diocese. O con-junto de fiéis de uma paróquia forma uma freguesia. A igreja sede de uma paróquia é chamada de matriz e a igreja-catedral é sempre matriz da paróquia onde se situa.

Os párocos eram escolhidos pelos bispos após um exame, onde eram verificados os conhecimentos e a idoneidade do candi-dato. Devido ao padroado, esse candidato devia ser confirmado pelo monarca. Os párocos podiam ser simples (anuais) ou colados, isto é, vinculados de modo vitalício a uma paróquia.

Os párocos têm como função administrar aos seus fregueses os sacramentos de seu ministério (batismo, eucaristia, penitência, extrema-unção, casamento) e ensinar-lhes a doutrina cristã, seja por sermões, seja por práticas (discursos) quando forem incapazes de pregar, todos os domingos e dias santos. As Constituições pri-meiras do arcebispado da Bahia (1707) prevêem ainda a possibili-dade de o pároco simplesmente ler aos fiéis algum capítulo seu que trate da doutrina cristã.

O pároco tinha o poder de castigar e impor multas pecuniá-rias aos fregueses que não comparecessem às missas e festas divi-nas (ver imunidades) e, dependendo das necessidades, podia ser auxiliado por um cura ou um coadjutor, com as mesmas funções (mas não a mesma dignidade) que ele.

Pastoral Indigenista Marcos Pereira Rufino

Dependendo das situações em que é utilizada, a expressão pasto-ral indigenista pode revelar sentidos distintos. Em alguns casos, refere-se ao conjunto de preocupações da Igreja católica com a evangelização dos povos indígenas, incluindo elementos muito

Page 414: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

diversos, como sua reflexão teológica, suas linhas concretas de tra-balho, seus pronunciamentos a respeito da questão indígena e assim por diante. Em outros contextos, a expressão "pastoral indi-genista" é utilizada para definir os grupos ou equipes pastorais — sejam eles compostos por religiosos, leigos ou ambos — de dioce-ses e prelazias preocupados exclusivamente com o atendimento dos grupos indígenas que possam existir em seu perímetro.

Pentecostalismo Ronaldo Almeida

Surgido no meio protestante norte-americano na virada para o sécu-lo XX, o pentecostalismo caracteriza-se por ser uma prática religiosa ancorada na doutrina do Espírito Santo. O pentecostalismo chegou ao Brasil por meio de um missionário italiano em São Paulo e de dois irmãos suecos em Belém do Pará, os três vindos dos Estados Unidos, onde conheceram a doutrina pentecostal. O primeiro fundou a Con-gregação Cristã do Brasil, em 1910, enquanto os outros deram início à Assembléia de Deus, em 1911. Tendo como base a centralidade da Bíblia como no culto protestante, o pentecostalismo caracteriza-se por uma religiosidade mais efervescente, emotiva, catártica, cujo êxtase se expressa, dentre diversas formas, no fenômeno de "falar em línguas", sociologicamente definido como glossolalia. Além da ênfas.e nas manifestações do Espírito Santo, boa parte das denominações pentecostais pratica o exorcismo de demônios e acredita na cura milagrosa. O pentecostalismo caracteriza-se também pelo intenso proselitismo, que nas denominações mais tradicionais é estimulado por um discurso apocalíptico para o qual no "fim do mundo" haverá a salvação de alguns e a condenação da maior parte da humanidade. Mais recentemente, a partir dos finais dos anos 1970, parte do seg-mento que ficou conhecido como "neopentecostal" construiu a práti-ca proselitista ancorada na idéia de que a ascensão social neste mundo é indício de uma vida religiosa com muita fé; em contraposi-ção, os males e dificuldades materiais são vistos como ações do diabo.

Page 415: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Prelado Bruno Feitler

Título honorífico de alguns dignitários eclesiásticos, como, por exemplo, bispos, abades, provinciais etc.

Prelazia (ver bispo — arcebispo)

Protestantismo Histórico Ronaldo Almeida

De forma geral, a antropologia e a sociologia da religião no Brasil definem como protestantismo histórico os segmentos evangélicos não-pentecostais cujas origens remontam à Reforma Protestante no século XVI, a saber, anglicanos, episcopais, metodistas, lutera-nos, presbiterianos, congregacionais, reformados europeus, batis-tas e menonitas. Ele pode ser organizado em dois segmentos: o que se constituiu por meio da imigração européia e o que veio por meio de missões norte-americanas. Os princípios teológicos estão, em parte, elaborados em oposição ao catolocismo romano, como a condenação à adoração de imagens (o que é entendido como ido-latria), à confissão, ao batismo de crianças, à universalidade da Igreja católica, ao purgatório, ao mistério da transubstanciação, ao culto aos santos e a Maria, entre outros. Afirmam que nenhuma instituição religiosa pode ser a mediadora entre os homens e o deus cristão. O único elemento de mediação é a Bíblia, que pode ser interpretada por qualquer indivíduo e não somente aqueles a quem Max Weber definiu como os "profissionais" do saber religioso. A despeito da variedade das formas de governo eclesial, os seg-mentos do protestantismo histórico têm também como caracterís-tica geral a organização "congregacional", isto é, pequenas comu-nidades morais localizadas em templos nos quais indivíduos e famílias se associam e se reproduzem.

Page 416: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Redução Adone Agnolin

Antes de institucionalizar-se nos famosos modelos alternativos da organização social que levam esse nome, a operação de "redução" das culturas indígenas se constituiu como prática de reconheci-mento da cultura indígena: os primeiros reconhecimentos pare-cem delinear-se em forma de excessos, por um lado, e de ausências, por outro. Num primeiro tempo, os excessos serão identificados com os costumes e as ausências com as crenças. No imperativo de cristianizar os indígenas, os primeiros parecem, em princípio, ter preocupado mais do que as segundas.

Os excessos indígenas identificavam-se, sobretudo, com o con-junto de "costumes abomináveis" ou "maus costumes" que conotava um estágio (de aristotélica memória) inferior de humanidade revela-dor de uma profunda desordem social e que dificultava, ao mesmo tempo, o processo de civilização, fundamento irrenunciável para a (sucessiva) obra de cristianização. Nesse sentido, na base do proces-so de catequização impunha-se o trabalho como instrumento de civilização. De fato, tanto a aldeia quanto as "reducciones" consti-tuem-se como lugares de trabalho que, como tais, tinham por fina-lidade a civilização do indígena americano: estabilidade, regularida-de, hierarquia constituíam-se quase como uma administração de diferentes temporalidades, que encontra um de seus mais significa-tivos desafios no controle e ordenação temporal de uma sexualidade indígena que os jesuítas consideram, mais uma vez, desordenada e excessiva. O processo (civilizatório, antes do que missionário) de redução manifesta, portanto, o domínio político como policiamento voltado para a modificar os (excessos dos) costumes indígenas.

O instituto da reducción, propriamente dita, constituiu uma componente fundamental da mais ampla reforma introduzida pelo vice-rei Toledo no Peru, a partir de 1570: é dessa reforma que decorre a experiência platina, como instituto posterior à data de 1610. E importante, aliás, destacar a hipótese de uma transforma-

Page 417: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

ção da missão como lugar que se constituiu in primis, desde 1560, nos aldeamentos missionários do litoral brasileiro. Nesta direção, a missão jesuítica americana se constitui em contraposição ao mo-delo "mediterrâneo", isto é, em contraposição ao modelo da prega-ção apostólica — que todavia continuará a ser praticado, no pri-meiro período missionário, nas "missões voadoras" —, e acabará se impondo como missão por redução.

Já com a política de aldeamentos no Rio de Janeiro, que come-ça a ser delineada desde o final dos anos 50 do século XVI, assim como nas reducciones instituídas, entre 1610 e 1768, entre o Sul do Brasil, o Paraguai e o Norte da Argentina, a missão jesuítica preten-de construir, de fato, uma conversão religiosa que mire para um novo paradigma de vida indígena. Resta, todavia, o fato de que essa mudança de paradigmas não se constituía — não podia se consti-tuir — de forma unívoca. Para poder realizar-se, de alguma forma, o processo de encontro cultural (religioso) fazia-se necessário, por parte dos missionários, introduzir elementos novos em paradigmas (indígenas) antigos, assim como, com maior dificuldade, tentava-se introduzir novos paradigmas culturais (religiosos), utilizando velhos elementos culturais indígenas. Fica evidente que a tentativa dessa evangelização por redução acabava freqüentemente, do lado indíge-na, por fomentar a produção de um universo cultural peculiar do qual os missionários, inicialmente, não podiam suspeitar a origina-lidade nem a força: a "re-dução" por eles imposta acabava se cons-tituindo numa forma peculiar de "pro-dução" (ou, talvez melhor, de re-produção) da nova cultura aldeada/reduzida.

Sacramentos Bruno Feitler

Na Bíblia, é termo que designa coisas santas ou sagradas. Em seguida serviu para designar os sacramentos instituídos, segundo a tradição, por Jesus. São em número de sete: batismo, confirmação, comunhão, penitência, extrema-unção, ordem e matrimônio.

Page 418: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Segundo o Concilio de Trento, são um sinal sensível de que, pela instituição divina, têm a virtude de significar e produzir san-tidade e justiça. A finalidade primeira dos sacramentos é a remis-são dos pecados, e assim tornar o fiel justo e agradável a Deus. O batismo e a penitência, ao apagar os pecados, recolocam o fiel na graça de Deus, outros o conservam nessa graça ou a aumentam após o recebimento do sacramento, como a confirmação, a euca-ristia etc., podendo assim ser equiparados a ritos de passagem, por transformarem a essência do fiel ou seu lugar na comunidade. Segundo o mesmo concilio, eles também servem para congregar os fiéis no corpo do catolicismo, por sinais que os designam como fazendo parte desse conjunto.

O Concilio de Trento marcou uma ordem de dignidades entre os sacramentos, de acordo com suas excelências. O primeiro é o da eucaristia, por conter o corpo e o sangue transubstanciados de Jesus Cristo; o segundo é o batismo, por ser o mais necessário, limpando do pecado original; em terceiro lugar os sacramentos da ordem e da confirmação, pela perfeição em que colocam os fiéis; em quarto lugar, a penitência e a extrema-unção; e em último, o casamento.

Ultramontanismo Marcos Pereira Rufino

O significado desse termo sofreu variações ao longo de um vasto período que vai do final da Idade Média até o final do século XIX. Mas, de maneira geral, ele se refere a um movimento de apoio à autoridade papal, entendida como superior aos Concílios Ecumê-nicos e a outras autoridades religiosas nacionais. A expressão ganhou um destaque especial na França após a emergência da Reforma Protestante, quando a designação ultramontano era utili-zada de maneira um tanto pejorativa (pelos galicanos) para classi-ficar aqueles que juravam uma lealdade maior ao papa e não ao rei ou aos líderes religiosos nacionais. Os jesuítas, a partir do século

Page 419: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

XVII, tornaram-se os mais visíveis ultramontanos no cenário euro-peu ao longo dos três séculos seguintes. A realização do Concilio Vaticano I, em 1879, coroou a vitória das teses ultramontanas e estabeleceu, de uma vez por todas, a supremacia papal sobre toda a Igreja católica. Entre outras coisas, o concilio afirmou a infalibi-lidade papal sobre o dogma e o poder de livre comunicação do bispo de Roma sobre outras jurisdições episcopais.

Visita Pastoral Bruno Feitler

Teoricamente devia ser feita todos os anos por cada bispo (ou seu enviado) na totalidade de paróquias do seu bispado. Segundo o Concilio de Trento, o objetivo dessas visitas era a instrução dos povos, a correção dos abusos e a reforma dos costumes. O visita-dor, normalmente acompanhado de missionários regulares, verifi-cava a decência e a boa ordem das igrejas, capelas e confrarias, pregava, confessava, julgava casos de sua alçada e administrava, tratando-se do bispo, o sacramento da confirmação.

Page 420: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

F O N T E S :

Adriano, PROSPERI. II Concilio di Trento: uma introduzione storica. Turim, Einaudi, 2001.

Caio C. B O S C H I , O S leigos e o poder: irmandaàes leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Atica, 1986.

Charles R. BOXER, A Igreja e a expansão ibérica (1440-1770). Lisboa: Edições 70, 1989.

Dicionário eletrônico Houaiss da língua Portuguesa 1.0.

Dictionnaire théologique-portatif\ contenant Vexposition et les preuves de la révéla-tion; de tous les dogmes de lafoi et de la morale [...]. Paris: Didot et al., 1756.

Arlindo RUBERT, A Igreja no Brasil. Galicanismo imperial (1822-1889). Santa Maria: Pallotti, 1993, pp. 83-95.

Ronaldo VAINFAS (dir.), Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.

Sebastião Monteiro da VlDE, Constituições primeiras do arcebispado da Bahia [...]. São Paulo: Antonio Louzada Antunes, 1853 [1719].

Page 421: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)
Page 422: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

N O T A S

1. índios e missionários no Brasil: para uma teoria de mediação cultural

1. Expressão utilizada pelo autor para descrever a "intensificação cultural'' que acompanharia a incorporação das culturas tradicionais no sistema capitalista mundial (1997: 53).

2. Ver a esse respeito, p. ex., Gluckmann, Balandier e, no Brasil, Darcy Ribeiro, Cardoso de Oliveira e João Pacheco, entre outros.

3. Os trabalhos de Darcy Ribeiro, Eduardo Galvão e Roberto Cardoso de Oliveira são os mais representativos dessa fase. Segundo esses autores o contato, intensi-ficado pelo avanço das frentes de expansão da década de 1950, teria levado à dependência e à descaracterização das sociedades indígenas, progressivamente assimiladas à sociedade nacional.

4. Ver a esse respeito Talai Asad, Anthropology & the colonial encounter, Ithaca Press, 1973.

5. Ver Clifford Geertz 1973, 1983; Rabinow, 1986; e James Clifford, 1995.

6. Em seu artigo "O pessimismo sentimental", Sahlins (1997) faz uma crítica demolidora a uma visão de vanguarda que reduz o conceito de cultura a um "tropo ideológico do colonialismo" e a antropologia a um instrumento de estabili-zação de diferenças para legitimar desigualdades.

Na análise de Adam Kuper a tendência intelectual mais poderosa na África do Sul nos anos 1970 inspirava-se na nova esquerda: em oposição à esquerda tradi-cional, que considerava as divisões étnicas historicamente irrelevantes, aquela insistia na força política das lealdades raciais. Essa geração de jovens historiado-res sul-africanos, treinados na Inglaterra nos anos 1970, começa a publicar uma influente historiografia neomarxista sobre os negros na África do Sul. Sua abor-dagem, inspirada no "primeiro" Sahlins, em Meillassoux e em Terray, trabalha a oposição centro/periferia e procura compreender os processos sociais — migra-

D E U S NA A L D K I A 491

Page 423: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

ção, família, expressões religiosas - que contribuem para reduzir os custos de manutenção das reservas de força de trabalho no centro (1987: 3).

8. Dirlick, estudioso da China moderna e crítico do "paradigma pós-colonial", o reduz a um discurso pós-estruturalista empregado por intelectuais do Terceiro Mundo que "estão se dando bem em universidades americanas prestigiosas" e que usam a linguagem da lingüística para reformular o marxismo (ver Novos Estudos, n~ 49, Cebrap, 1997).

9. Noção tomada por empréstimo de J. Derrida (Positions, Chicago University Press, 1972) para superar uma concepção binária da diferença fundada na idéia de uma fronteira de exclusão e de uma oposição rígida entre o dentro e o fora. O conceito enfatiza as passagens e o caráter relacionai das significações: "o sig-nificado não possui origem nem destino final, não pode ser fixado, está sempre em processo e posicionado' ao longo de um espectro" (Hall, 2003: 33, 60, 61).

10. O autor critica o enraizamento pertinaz na Antropologia de um certo deter-minismo geográfico. Apesar de críticas vigorosas como as de Sahlins (1979), "a imagem de que recursos e práticas espaciais tanto constituem como determinam formas de sociabilidade é notavelmente resistente". Segundo ele, a preocupação dos antropólogos com as regras de residência e sua relação com grupos de des-cendência é expressão do pressuposto de que o espaço geográfico limita e deter-mina os arranjos sociais (Appadurai, 1997: 42).

11. Em seu esforço meticuloso de traduzir a Bíblia para a língua nativa, os missio-nários estavam convencidos de estar construindo um meio universal de comuni-cação humana capaz de "remover a massa de bobagens que paralisava a mente dos nativos". Mas os autores observam que as conseqüências foram mais longe do que as intenções, pois a tradução transpôs a Bíblia em um registro cultural que não é verdadeiro para nenhum dos registros de partida, criando efeitos de sentido total-mente inesperados e modelando novas formas de significação (1992: 252-7).

12. Stuart Hall considera o conceito como resultante dos avanços teóricos do pós-estruturalismo cujo balanço ele retrata do seguinte modo: a reconfiguração da teoria que resultou em se ter de pensar questões da cultura através das metá-foras da linguagem e da textualidade implicam o reconhecimento da importância crucial da linguagem e da metáfora lingüística para qualquer estudo da cultura; na expansão da noção de texto e da textualidade, quer como significado, quer como aquilo que escapa e adia o significado; no reconhecimento da heterogenei-dade e da multiplicidade dos significados; no reconhecimento da textualidade e do poder cultural da própria representação como local de poder e de regulamen-tação; do simbólico como fonte de identidade (2003: 211).

13. Segundo o autor, "hibridismo" não é uma referência à composição racial mista de uma população, nem se refere a indivíduos "híbridos", assimilados, em con-traste com os "tradicionais" e os "modernos". Trata-se de um quadro muito mais

Page 424: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

complexo da cultura, marcado pela incomensurabilidade e que não está inscrito na literatura sociológica ou antropológica convencional (2003: 75-6).

14. O autor observa que a civilização cristã, ao pretender incluir e converter sim-bolicamente a diversidade do Novo Mundo, foi obrigada a abandonar sua noção de civitas como cidade de Deus para nela incluir o conceito de sociedade civil.

15. Para Lévi-Strauss a noção de código diz respeito à decifração das mensagens contidas nos mitos. A análise estrutural busca ordenar a natureza aparentemente caótica dessas narrativas em torno de chaves de leitura - código sociológico , sen-sorial, cosmológico, estético etc. - que revelam o funcionamento geral do pensa-mento mítico em suas várias formas de conceber a origem ou o acesso do homem à cultura. Geertz usa a noção de maneira bem diferente. Inspirado na hermenêu-tica de A . Schutz, que coloca o problema do entendimento comum, Geertz se propõe descrever as significações nativas que são sempre "explicações de explica-ções". Assim, o que ele chama de código é a escolha de uma "estrutura de signi-ficado", um idioma, que dá sentido a uma ação (1978: 19).

16. Quando Geertz afirma que a cultura (os códigos) é pública está dizendo que os sentidos da ação são compreendidos por todos. No horizonte dessa afirmação está a teoria schutziana do conhecimento comum. Para Schutz, entre as proprie-dades desse conhecimento está sua construção intersubjetiva: os atores assumem a tese geral da "reciprocidade de perspectivas" apesar das diferenças biográficas. Assim, quando os atores agem, sabem o que fazem e compartilham com os outros esses conhecimentos (ver Giddens, 1991).

17. Em sua análise da literatura de viagens, Mary Pratt (1992) observa que um tipo de narrativa é produzida nas "zonas de contato". A autora toma emprestada da lingüística a idéia de "contato" para referir-se à língua improvisada que se desen-volve entre falantes de diferentes etnias que precisam comunicar-se de maneira consistente, usualmente no contexto das relações comerciais (1992: 6-7).

18. Eventos particulares que supõem interações entre brancos e zulus; matéria-prima que se observa e a partir da qual o antropólogo abstrai a estrutura social, a forma das relações sociais e as instituições; comportamentos de indivíduos como membros de uma comunidade em ocasiões determinadas. (Gluckman, 1987: 228-238).

19. Endocultura = cultura de uma personalidade social ou grupo no sentido de como ele é percebida por ele. Exocultura = cultura de uma personalidade social ou grupo no sentido de como ele é percebido pelos outros membros do mesmo sistema social (Gluckman: 313).

20. Embora parta de uma abordagem distinta, Manuela Carneiro da Cunha chega a conclusões semelhantes em sua análise dos descendentes de brasileiros nagôs que voltam para a África e se tornam católicos. Segundo a autora, os grupos étni-cos "são formas de organização que respondem a condições políticas e econômi-cas contemporâneas e não vestígios de organizações passadas" (1987: 94).

D n u s N A A L D E I A 4 9 3

Page 425: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

2. Missões: a civilização cristã em ação

1. Trata-se da narração da atividade "missionária" de Paulo e Barnabé entre os "pagãos", que é sancionada e generalizada no Concilio de Jerusalém (At 15, 1-21): a mensagem cristã dirige-se a todos os "pagãos" que não precisam necessariamen-te "serem circuncidados conforme a Lei de Moisés". É a origem não apenas do novo Povo de Deus, que inclui diversas culturas, mas também a legitimação das Missões: "Então, pareceu bem aos apóstolos e aos anciãos, com toda a igreja, ele-ger varões dentre eles e enviá-los com Paulo e Barnabé a Antioquia" (At 15, 22).

2. Sobre esse problema, antropologicamente complexo, cf. Nicola Gasbarro, La città delllslam e la città delia guerra, Molão, Giuffrè, 1991.

3. Essa história sociocultural é obviamente diversa da antropologia religiosa fun-dada nas missões, implícita ou explicitamente "ao serviço da fé", como, por exem-plo, a de Louis J. Luzbetak, The church and cultures. New perspectives in Missiological Anthropology, Maryknoll, Orbis Books, 1988.

4. "Depois destas coisas olhei, e eis uma grande multidão, que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas, que estavam em pé diante do trono e em presença do Cordeiro, trajando compridas vestes brancas, e com pal-mas nas mãos, e clamavam com grande voz: Salvação ao nosso Deus, que está assentado sobre o trono, e ao Cordeiro" (Ap 7, 9-10).

5. Estou me referindo aqui a uma das primeiras e mais conscientes tentativas de fundar uma história "natural" (ou seja, oposta à "sobrenatural" e portanto não fun-dada na fé na revelação) da religião da cultura ocidental. David Hume publicou em 1757 The natural history of religion, enquanto em 1779, três anos após sua morte, foram publicados os Dialogues concerning natural religion.

6. Cf. Serge Gruzinski, La colonisation de 1'imaginaire. Societés indigènes et occi-dentalisation dans le Mexique espagnol, WI-XVIII siècle, Paris, Gallimard, 1988.

7. Cf. Serge Latouche, Loccidentalisation du monde. Essai sur la signification, la portée et les limites de Vuniformisation planétaire, Paris, La Découverte, 1989 ; Mondher Kilani, Linvention de 1'autre. Essais sur le discours anthropologique, Lausanne, Payot, 1994.

8. Claude Reichler publicou recentemente "Littérature et anthropologie. De la représentation à Tinteraction dans une Relation de la Nouvelle-France au XVII siè-cle", L'Hommey 164, outubro/dezembro, 2002, pp. 37-55. Trata-se de um ensaio muito interessante sobre Jean de Brébeuf, fundador das missões jesuíticas entre os huronianos, numa perspectiva análoga àquela aqui utilizada, seja quanto ao valor documentário da etnologia religiosa, seja no que concerne à relação entre antropologia e literatura. Pessoalmente, prefiro falar em "história comparada das civilizações", para dar valor também a uma historicização do imaginário, mas con-cordo totalmente no conteúdo, no método e, sobretudo, na idéia de "matrices d'interculturalité" como objeto da nova história e da nova antropologia.

Page 426: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

9. A nova antropologia está redescobrindo o valor positivo desse conceito. Vejam-se Jean-Loup Amselle, Logiques métisses. Anthropologie de 1'identité en Afrique et ailleurs, Paris, Payot, 1990, e sobretudo Serge Gruzinski, La pensée métisse, Paris, Fayard, 1999.

10. O código prioritário de compreensão do mundo no Ocidente é ainda aquele da "religião" não apenas em termos de "cosmologia cultural", mas também de "consciência subjetiva" da vida cotidiana. Para o primeiro aspecto, veja-se Lucien Febvre, Le problème de 1'incroyance au XVI siècle. La religion de Rabelais, Paris, Albin Michel, 1968 ( I a ed. 1942); sobre o segundo, Adriano Prosperi, Tríbunali delia coscienza. Inquisitori, confessori, missionari, Turim, Einaudi, 1996 e Vincenzo Lavenia, Linfamia e il perdono. Tributi, pene e confessione nella teologia morale delia prima età moderna, Bolonha, II Mulino, 2004. Quanto às evidentes aberturas para as alteridades dos Essais de Montaigne, é preciso não esquecer a centralidade da consciência cultural e epistemológica explicitada na Apologie de Raymond Sebond (Claude Lévi-Strauss, En relisant Montaigne, em Histoire de Linx, Paris, Plon, 1991, pp. 277-97).

11. Francesco Giuseppe Bressani (1612-72) chegou ao Canadá em 1642 e traba-lhou entre os franceses de Québec. Em 1645 fez missão entre os huronianos, que o consideraram um herói por ter suportado as violências dos iroqueses. Em 1650, após a destruição da missão, voltou para Québec, mas, por razões de saúde, teve de voltar à Itália. Morreu em Florença, em 9 de setembro de 1972. Para o texto em francês, veja-se a Relation abregée de quelques missions des Pières de la Compagnie de Jésus dans la Nouvelle France, traduit de 1'italien et augmenté d'un avant-propos, de la biographie de 1'auteur, et d'un grand nombre de notes et de gra-vures, par le R. R F. Martin s.j., Montréal, John Lovell, 1852, republicada em Les jésuites-martyrs du Canada, Montréal, Compagnie d'imprimerie canadienne, 1877, edição utilizada aqui. Como é sabido, as relações jesuíticas sobre a Nova França constituem um dos mais importantes tesouros etno-históricos, para uma história comparativa das religiões e das civilizações. As relações foram publicadas em Reuben G. Thwaites (org..), Thejesuit Relations and allied documents: Traveis and explorations of Jesuit missionaries in Neiv France, 1610-1792, 73 vol., Cleveland (Ohio), 1896-1901; Lucien Campeau s.j. (org.), Monumenta Novae Francise (MNF), 9 vol., Québec e Roma, 1967-2003. A relação de Bressani em italiano encontra-se em Monumenta Novae Franciae, vol. VIII, 1996, pp. 402-530. Sobre a obra do jesuíta italiano veja-se René Latourelle s.j., François-Joseph Bressani, missionarie et umaniste, Montréal, Bellarmin, 1999.

12. A história das relações entre europeus e huronianos não é apenas missionária e religiosa. Basta pensar nas viagens de Samuel de Champlain e, sobretudo, na autêntica guerra entre os europeus pelo controle do comércio de peles, que envol-veu também as populações indígenas. Mas há mais: "O comércio de peles contri-buiu para mudar a maneira de fazer guerra entre as populações ameríndias, aumen-

D E U S N A A L D E I A 4 9 5

Page 427: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

tando sua intensidade e seu alcance. Levou à dizimação de populações inteiras e ao deslocamento de outras de seu habitat originário. As peles não eram a única mer-cadoria fornecida pelos índios; o desenvolvimento do comércio necessitava também de abastecimento e sua expansão para o oeste alterou e intensificou os padrões de produção alimentar para caçadores e comerciantes". (Eric R. Wolf, Europe and the people without history, Berkeley, University of Califórnia Press, 1982. Para uma abordagem histórica geral, veja-se Francis Jennings, The invasion of America: Indians, colonialism, and the cant of conquest, Nova York, W. W. Norton, 1976.

13. A teoria habermasiana pode oferecer uma perspectiva útil para a história das missões. Com efeito, por um lado ela supera a dicotomia entre a prática das rela-ções e a transformação das estruturas simbólicas, por outro, aponta para a dimen-são "operacional" da comunicação intercultural, que exige novas regras comparti-lhadas e simbolicamente compartilháveis: Jürgen Habermas, Teorie des kommunikativen Handelns, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1981.

14. "Parler de superstition, cest-à-dire dexcès en matière de religion dans un pays ou 1'on n'en trouvait aucune, passera peut-être pour un paradoxe ; cependant ce nest pas chose nouvelle devoir passer dans les vices, sans intermédiaire, dun extrême à lautre. Comme cette matière, si je ne me trompe, doit intéresser mes lecteurs, j en dirai ici quelques mots."

15. A investigação histórica sobre essa recodificação moderna da "religião" é ainda etnocêntrica, estando ligada à gênese e a influência cultural da Reforma, enquanto ignora quase totalmente a história das relações entre civilizações. Uma conceptualização tão geral da "religião", que chega a colocar entre parênteses até mesmo a fé e o culto ao deus único, não pode ser apenas produto do processo de "desencantamento do mundo", todo interno à cultura ocidental moderna. Na relação de Bressani as duas perspectivas estão, não por acaso, presentes: trata-se de outro paradoxo da literatura missionária, vista como conjunto de testemunhos das relações entre civilizações e dos problemas novos a serem enfrentados pela modernidade ocidental.

16. "Le démon qui commandait à leurs âmes en maítre absolu, et sans opposi-tion, ne se mettait peut-être pas en peine de les servir, comme il servait les magi-ciens, sur lame desquels il espérait avoir des droits, en retour de ses services" (p 44) o demônio é talvez o protagonista mais interessante das relações missio-nárias, como mostram vários capítulo deste livro. Causa principal do fracasso da comunicação intercultural, maitre de superstições e ritos paradoxais, inimigo de qualquer sistema de compatibilidade religiosa e humana, ele representa antropo-logicamente a diversidade irredutível com toda sua força de sedução.

17. "Jai lu dans plusieurs auteurs qui ont combattu lathéisme, que ce péché est contraire à la nature, qui met en nous comme un certain instinct de la divinité. Je n'en doutais pas ; mais ce que jai vu chez nos Sauvages, ma encore confirmé

Page 428: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

dans cette opinion. Quoiquils semblent navoir reçu absolument aucune culture, et qu on ne trouve en eux que la pure nature dans son état de dégradation, ils ont cependant des sentiments bien différents de ceux de nos libertins et de nos athées " (p. 37).

18. "Dabord, ils croient à 1'immortalité de lame, et à Fexistence de deux demeures situées vers loccident, dans lune des quelles on est hereux, tandis que dans lautre on est malhereux ; mais ils mêlent a cette croyance mille fables sem-blables à celles des anciens"au sujet de leurs Champs-Elysées. Ils reconnaissent de plus quil y a des esprits bons et des esprits malins, et de se rendre favorables les bons, en offrant une espèce de sacrifice, qui consiste àjeter dans le feu ou dans leau du tabac ou de la graisse de leurs festins.

II est certain qu'ils ont non seulement un instinct de la divinité, mais encore se servent dun nom pour Tinvoquer dans loccasion, sans trop savoir ce quil sig-nifie. Ils s adressent au Dieu Inconnu, en disant: Aireskoui soutanditeur. Ce der-nier nom pourrait se traduire par: Ayes pitié de nous.

Três souvent ils sadressent au Ciei, en lui faisant hommage, et prennent le Soleil à témoin de leur courage, de leur misère et de leur innocence. Mias sur-tout dans les traités de paix et dalliance avec les nations étrangères, ils invoquent le Soleil en prouve de la droiture de leur intentions, comme étant le témoin des secrets les plus intimes de leur coeur, et le vengeur de la perfidie de ceux qui tra-hissent leur foi et ne tiennent pas leur parole. La même pensée se retrouve aussi répandue généralement dans lancienne gentilité. [...]. Nos Sauvages, il est vrai, navaient pas de culte régulier et ordinaire de la divi-nité, qu'ils ne connaissaient même que d'une manière confuse; aussi, navaient-ils ni temples, ni prêtres, ni prières, ni rits publics. Ils étaient cepen-dant si loin d etre athées, ou irréligieux, qu'ils rendaient certains hommages à des génies auxquels ils attribuaient tout ce qui leur arrivait d'hereux. Non seu-lement ils les invoquaient souvent, comme nous 1'avons dit du Soleil, mais ils leur adressaient des remerciments publics pour leurs victoires, et les regar-daient comme la cause de tous les succès, et des hereux effets des remèdes dans leurs maladies. Ils ne croyaient même pouvoir compter que sur ces moyens superstitieux, auxquels il recouraient avant d'avoir reçu la lumière de la foi" (pp. 39-40).

19. Trata-se da célebre passagem dos Atos dos Apóstolos (17, 16-33). A analogia é funcional seja para o anúncio de um Deus que ainda não se conhece, seja para os cultos pagãos que parecem pressupor praticamente sua necessária presença. O missionário entre os huronianos, assim como Paulo entre os atenienses, perce-be e infere a exigência da verdadeira fé na prática ritual pagã. O papel do "temor de Deus" como inerente à condição humana é um dos aspectos fundamentais da generalização do conceito de religião.

Page 429: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

20. É uma passagem da famosa bula Veritas ipsa do papa Paulo III, 1537 (freqüen-temente citada como Sublimis Deus), que reconhece aos índios a dignidade de homens e o direito relativo, porque "capazes de fé cristã", contra quem quase legi-tima sua escravização como "animais brutos" com o "pretexto" de que eles desco-nhecem a verdadeira fé (Josef Meltzer (org.), America Pontifícia. Primi saeculi evangelizationis 1493-1592, Cidade do Vaticano, Libreria Editrice Vaticana, 1991, vol. I, pp. 364-6). O valor histórico-cultural da bula está na relação entre capaci-dade de fé, testemunhada pelo patrimônio de crenças, e seu pertencimento de direito, garantido teologicamente, à humanidade. Essa bula é o fundamento teo-lógico do projeto missionário como fim da barbárie, mas também a origem antro-pológica da história das religiões primitivas como produto das relações entre civi-lizações. Reconhecer a capacidade de crer como sinal distintivo da humanidade já é usar a religião como código de inclusão, o que não pode deixar de ter conseqüên-cias no plano social e político, como mostra a história das missões jesuíticas.

21. "Ils reconnaissent sept autres génies qui habitent les airs, et soufflent les sept vents qui règnent dans ces contrées. 'Que perdraient-ils, si par une sage réduc-tion, ils nen adoraient quun seul ? Quid perderent, si unum colerent prudentiore compêndio 7 Ce sont les paroles de saint Augustin " (p. 39).

22. A antropologia contemporânea está recuperando os estudos sobre as concep-ções da doença nas "culturas primitivas", porque estas envolvem necessariamen-te o inteiro sistema simbólico e social. Veja-se, por exemplo, Marc Augé, Claudine Herzlich, Le sens du mal Antropologie, histoire, sociologie de la maladie, Paris, Editions des archives contemporaines, 1983.

23. "Ils vont souvent, mais surtout les femmes, pleurer près des tombeaux de leurs morts. Ces tombeaux sont élevés de terre et ordinairement placés dans un même champ. Quand la mort a été naturelle, chaque cadavre est mis séparément dans une caisse formée de grosses écorces, et élevée sur quatre poteaux. II reste là jusqu a une fête appeléefête des morts, qui se célèbre tous les huit ou dix ans. A cette époque, tous les habitants dun même village descendent ces bières, dépouillent avec soin de leur chair les ossements de leur morts, et les envelop-pent dans des peaux précieuses ; puis on convoque le pays entier, et tous ces ossements réunis sont ensevelis avec solennité et pour toujours dans une grande fosse richement tapissée de pelletteries. On y enterre en même temps différen-tes offrandes comme chaudières et autres choses dont les âmes sont supposées avoir besoin dans 1'autre vie. [...]. Ils ensevelissent avec le mort ce qu'il avait de plus précieux pendant sa vie, et comme ils préfèrent les morts aux vivants, et les tombeaux aux cabanes, ils nhésitent pas, dans Tincendie d un village, à faire une perte irréparable pour sauver les ossements de leurs morts, avant d eteindre les flammes qui consument leurs demeures

Nos néophytes, désireux de conserver lusage denterrer avec leurs morts ce que ceux-ci avaient de plus cher, nous donnaient pour motif leur propre douleur,

Page 430: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

et nous assuraient que ce n etait pas parce qu'ils croyaient ces objets nécessaires ni même utiles aux âmes séparées de leurs corps, mais afin de soustraire à leurs regards ce qui dans la cabanne réveillait souvent avec le plus de vivacité le sou-venir du défunt" (pp. 46-7).

24. Veja-se, por exemplo, a relação de Paul Ragueneau s.j., Relation de ce qui s'es passé de plus remarquahle en la mission des Pères de la Compagnie de Jésus aux Hurons, pais de la Nouvelle-France} depuis le mois de may de 1'année 1645 jusquau rnois de mai delannée 1646, in MNF, vol. VI, 1992, pp. 636-93. Pelas testemunhas dos inúmeros huronianos "convertidos" podemos reconstruir suas concepções da morte: por um lado a imortalidade cristã substitui as crenças tradicionais, por outro, a estrutura simbólica do culto aos antepassados não desaparece mas se reproduz na vida cristã. Do ponto de vista antropológico não há de se admirar: o ritual nunca apresenta problemas de compatibilidade e consegue juntar diferen-ças radicais. Não por acaso a metodologia jesuítica é barroca, sobretudo na valo-rização do ritual. A esse respeito, Claude Reichler frisa as técnicas comunicati-vas quase teatrais dos jesuítas (2002: 43) e "1'esprit baroque, comme disposition 'holistique de conciliation des contrairei (ibid.: 54), mas tudo isso seria incom-preensível sem o ritual como "ortoprática" de compatibilidade das diferenças.

25. "Les Hurons paiens distinguaient trois sortes de maladies: les unes, quils regardaient comme naturelles, provenant de causes purement physiques ; dautres, quils attribuaient à lame du malade, qui désirait ardemment quelque chose ; les troisièmes, enfin, quils croyaient causées par les jongleurs. Les pre-mières se guérissaient, disaient-ils, par des moyens naturels, les secondes en con-tenant les désirs de lame, et les troisièmes en extrayant du corps du malade le sort qui était la cause de son mal.

II faut remarquer que les Hurons croyaient que nos âmes, outre les désirs libres ou au moins volontaires, en avaient dautres naturels et cachês, formés en elle, non par voie de connaissance, mais par un certain transport aveugle de lame vers un objet en harmonie avec elle. Les philosophes appellent ces derniers désirs innés, pour les distinguer des premiers, quon appelle désirs formés.

Selon ces Sauvages, la première espèce de désirs se manifeste par les songes, qui sont le langage propre de lame. Si lon réallise ces songes, lame, disaient-ils, est satisfaite ; mais si on ne les écoute pas, elle s'indigne, et loin de procurer au corps le boneur et la félicité, elle se révolte contre lui, laccable dmfirmités, et cause même la mort.

Quand ils rêvaient à quelque objet éloigné, ils croyaient que lame, non lame sensitive qui ne peut pas abandonner le corps, mais lame raissonable dont Faction est indépendante de lui, quittait le corps pour se trasporter près de cet objet. Ceei nous fait comprendre pourquoi ils mettaient tant de soin à remarquer leurs songes, afin de découvrir les désirs de lame, et de les contenter. Ils leur obéissaient au prix même de leur sang, et quand le songe Fexigeait, ils allaient jusqua se mutiler les membres avec d'horribles douleurs. [...].

Page 431: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Ils se figuraient donc quily avait des hommes plus éclairés que dautres, et capa-bles de lire dans 1'intérieur le plus secret de lame, ses désirs naturels et les plus cachês. Ils nomment cette classe d'hommes Arendiogouanne. C etaient ordinai-rement leurs médecins, ou plutôt leurs jongleurs, qui, appelés auprès de quelque malade, nexerçaient pas autrement leur art que par leur science superstitieuse, en dévinant les désirs intimes de lame qui tourmentaient, par dépit, le corps du malade. Ils attribuaient cette lumière ou cette vertu à un Oki, c'est-à-dire àun génie puissant qui habitait en eux, depuis qu ils lavaient aperçu en songe, ou après leur réveil,sous la figure d un aigle, d un corbeau ou dun autre animal sem-blable. Pour deviner ces désirs cachês, tantôt ils regardaient dans un bassin plein d eau, tantôt ils feignaient d etre possédés de quelque furie, comme autrefois les sibylles, tantôt ils se cachaient dans quelque lieu obscur, d'oü ils découvraient, disaient-ils, les images des désirs de lame affligée. Ils les faisaient connaitre ensuite afin qu on les accomplit ; mais le remède du songe, aussi bien que celui du jongleur, était le plus souvent vain et inutile, bien que tous, à 1'envi, smdustriassent sans épargner ni dépense, ni fatigue, à se procurer ce qui, d après le jongleur, était le désir de lame du malade" (pp. 41-2).

26. "Tout le mauvais succès de ces remèdes nempêchait pas cette idée supersti-tieuse de senraciner tellement dans tout le pays, que cest à peine si, après bien des années, on a pu lafflaiblir. Cette erreur venait d un faux príncipe, qui a toujours passé chez eux pour une verité incontestable, cest que tous les remèdes produisent toujours infailliblement leur effet. Quand le remède naturel était sans résultat favo-rable, il fallait un remède en dehors de la nature, et superstitieux" (p. 43).

27. Vale lembrar que a relação de Bressani está dividida em três partes: a primei-ra, intitulada "Natureza", descreve o caráter dos huronianos e a natureza do lugar; a segunda, intitulada "Graça", é dedicada às conversões; a terceira, intitulada "Glória", é uma homenagem ao sacrifício e à morte dos missionários e, espera-se, à sua gloria. Por um lado, a conversão é uma transformação radical do homem, quase uma transubstanciação, que só pode ser obra da "Graça"; por outro, o único nível que se opõe e se sobrepõe à "Natureza" é o da "Graça", que deve governar o "sentido" da vida inteira dos homens para que estes possam ter acesso à "Glória".

28. "Non enim philosophi solum verum etiam maiores nostri superstitionem a religione separaverunt. Nam qui totos dies precabantur et immolabant, ut sibi sui liberi superstites essent, superstitiosi sunt appellati, quod nomen patuit postea latius; qui autem omnia quae ad cultum deorum omnia pertinerent diligenter retractarent et tamquam relegerent, sunt dicti religiosi ex relegando, <tamquam> elegantes ex eligendo, [tamquam] <ex> dirigendo diligentes, ex intelligendo intel-ligentes; his enim in verbis omnibus inest vis legenda eadem quae in religioso, ita factum est in superstizioso et religioso alterum vitii nomen alterum laudis" (De natura deorum, 2, 28, 72).

Page 432: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

29. "Eles levavam ainda mais longe sua confiança em certos homens que se preten-diam não apenas profetas, mas ainda, senhores das estações do ano, e que não per-diam seu crédito, apesar de suas falsas previsões". ("Ils poussaient ancore plus loin leur confiance en certains hommes qui se prétendaient non seulement prophètes, mais ancore maítres de saisons, et qui ne perdaient pas leur crédit, malgré leurs fausses prédictions", (p. 45). A civilização cristã do observador-missionário é evi-dente em todas as categorias que usa: um cristão não pode pensar a adivinhação a não ser em termos de profecia: paradoxalmente, pelo menos na prática terapêutica, o adivinho deve hipotetizar um passado possível como causa da doença, e não pre-dizer um futuro histórico. Portanto, suas hipóteses não podem ser "falsas predições" porque não são e não querem ser "predições" no sentido profético. Sobre este assunto, veja-se também o artigo de Cristina Pompa, nesta coletânea

30. O pequeno tratado do Livro da Sabedoria (Sap 13-15) é uma objetivação teo-lógica e filosófica do politeísmo. Distinguem-se quatro formas de idolatria: 1. a adoração dos fenômenos naturais e dos astros (13, 1-9), que remete à religião dos caldeus; 2. a adoração dos ídolos propriamente dita (13, 10-14, 11), que está no centro da polêmica antipagã; 3. a adoração de um filho morto ou de um sobera-no (14, 12-21), que lembra a teoria ehuemerística da idolatria; a adoração dos animais repugnantes (15, 18-19), característica do politeísmo egípcio. Essa clas-sificação, que não exclui outras formas, poderia se tornar paradigmática, mas os missionários generalizaram, não por acaso, seu sentido

31. José de Acosta, Historia natural y moral de las índias, Sevilha. Em outro traba-lho, analisei especificamente essa obra e suas implicações: Nicola Gasbarro, "II lin-guaggio deiridolatria. Per una storia delle religioni culturalmente soggettiva", Studi e Materiali di Storia delle Religioni, n. s., XX, 1/2, 1996, pp. 189-221. Livro indis-pensável para a abordagem do conceito de idolatria, cf. Carmen Bernand, Serge Gruzinski, De 1'idolâtrie. Une archéologie des science religieuses, Paris, Seuil, 1988.

32. Há um testemunho análogo do mesmo acontecimento em Paul Ragueneau s.j., op. cit., p. 667. O valor documental da etnologia religiosa de Bressani é indis-cutível: em 18 novembro de 1649 ele observou o eclipse lunar em Québec e em 1650 apresentou um relatório à Académie Royale des Sciences: cf. MNF, vol. VIII, 1994, p. 637. E evidente que as relações não são apenas "narrativas" ou apenas "funcionais"!

33. "Nous avions prédit leclipse du 30 janvier 1646, qui commença ici une heure et un quart avant minuit. Nos chrétiens étaient debout dans lattente; aussitôt quelle parut, un des plus fervents, ne consultant que son zèle, courut éveiller quelques Sauvages: Venez voir, leur di-il, comme nosmissionaires sont dignes de foi; ne balancez donc plus maintenant a croire les Vérités qu ils prêchent'.

Mais un bon vieillard, chrétien fervent, sans même connaitre la reponse du roi Saint Louis, au sujet du miracle du Saint Sacrement, dit avec beacoup de sages-se: Que ceux qui ont des doutes sur la vérité de la foi aillent voir leclipse, ils

Page 433: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

n auront cependant pas d autre autorité que leurs yeux; notre foi repose sur des meilleures preuves" (p. 109).

34. "Quoique nous fussions presque continuellement auprès des malades les plus dégoütants et les plus dangereux, et quils mourussent entre nos mains, aucun de nous ne contracta la contagion. Ils en concluaient que nous étions comme des esprits, et ils croyaient que nous avions fait alliance avec la mort, et un pacte avec Venfer" (pp. 101-2).

35. "Le Père François-Joseph Bressany, que nous attendions depuis quatre ans, arriva icy aux Hurons au commencement de lautomne dernier. S'il neüt esté cap-tif des Iroquois en son premier voyage, il sçauroit dèsjà la langue huronne et seroit un ouvrier formé. Mais il faut avouer que lesprovidences de Dieu sont aimables. Les cruautez que luy ont veu souffrir aux Iroquois quelques Hurons qui en sont échappez, et ses mains mutilées, ses doigts couppez lont rendu meilleur prédicateur que nous ne sommes, dès le point de son arrivée, et ont servy plus que toutes nos langues à faire concevoir plus que jamais à nos chrestiens hurons les véritez de notre foy.

'II faut, disoient les uns, que Dieu soit bien aimable et mérite vrayment luy seul destre obéy, puisque la veue demillemorts et des supplices mille fois plus effro-yables que la mort ne peuvent arrester ceux qui nous viennent annoncer sa parole'. - 'S'il ny avoit un paradis, disoient les autres, pourroit-il se trouver des hommes qui traversassent les feux et les flammes des Iroquois, pour nous retirer de Fenfer et nous mener avec eux dans le ciei?'" (pp. 667-8).

36. Cf. Samuel P. Huntington, The clash of civilizations and the remaking ofworld order. Nova York, Simon & Schuster, 1996.

3. Para uma antropologia histórica

1. A idéia moderna de missão nasceu no Concilio de Trento, justamente como rea-ção ao avanço protestante e frente à crise do modelo de conversão baseado no sacramento do batismo administrado por predicadores fervorosos (como os fran-ciscanos na Nova Espanha, na primeira metade do século XVl). O novo modelo, de tipo "apostólico", com um corpus de agentes especializados, métodos específicos e lugares apropriados, foi encarnado pelos jesuítas, cuja ordem já nasceu, em 1540, 25 anos antes da conclusão do Concilio de Trento, com essa vocação. O dos jesuí-tas foi um dos principais movimentos da Igreja católica, que, frente à devastadora ameaça da heresia luterana, escolheu realizar a reforma religiosa sob a bandeira papista, tendo um impacto profundo na resposta tridentina ao protestantismo.

2. Enquanto para os evangelizadores os tupinambás são "homens de cera, pron-tos para receber uma forma [...] vácuo religioso clamando por ser preenchido", nos tupinambás aparece o "desejo de ser outro, mas segundo os próprios termos".

Page 434: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

E esses termos remetem à cosmologia tupi, que, ao fundar a disjunção entre homens e heróis, funda a mortalidade, mas, ao mesmo tempo, considera uma e outra como algo não definitivo. "Os europeus vieram compartilhar um espaço que já estava povoado pelas figuras tupi da alteridade: deuses, afins, inimigos, cujos predicados se intercomunicavam" (Viveiros de Castro, 2002: 206).

3. Vespucci, Amerigo, "Nota duna lettera venuta d'Amerigo Vespucci a Lorenzo di Piero Francesco de' Mediei lanno 1502 da Lisbona delia loro tornata delle nuove terre...", in Gasbarro, 1992, p. 124; idem, Mundus Novus, in Firpo, 1965, p . 8 8 .

4. Na segunda metade do século XVII os jesuítas fundaram os "pagi Tapuyarum" (as aldeias dos tapuias) no sertão das Jacobinas e no baixo São Francisco, região esta onde atuaram também os capuchinhos franceses e, depois, italianos.

5. Sobre os riscos e as perspectivas de uma análise das fontes em busca não ape-nas do discurso colonial, mas também da prática indígena de apreensão e reela-boração desse discurso, bem como das condições de interlocução, cf. Pompa, 2003, Introdução.

6. Os maracás foram os únicos objetos assimilados pelos missionários aos ídolos, constituindo, portanto, os únicos sinais da "idolatria" indígena.

7. Mair é o termo com que os tupinambás designavam os franceses. O termo parece ter vivido a mesma "aventura semântica" de caraíba: Maira é um herói cul-tural da mitologia tupi, cujas ações são, em outras versões, atribuídas a Sumé, jus-tamente, um grande caraíba.

8. O mito mais conhecido, nesse sentido, é o que aparece no relato de D'Abbeville: "Reconhecem seu estado miserável e o atribuem ao fato de seu ante-passado ter escolhido a espada de madeira e recusado a de ferro. E dizem que a nossa felicidade provém de ter o nosso aceito a espada de ferro; isso é que nos tornou herdeiros do verdadeiro conhecimento de Deus, das artes, das ciências, das indústrias e outrds bens que possuímos. E isso fez de nós os mais velhos e deles os mais moços, quando inicialmente era o contrário" (D'Abbeville, 1974 [1614]: 252). Sobre a "má escolha" como fundação mítica da superioridade dos brancos, além da citada Carneiro da Cunha, vejam-se as observações de Monteiro ( 2001: 74 ss) e Viveiros de Castro (2002: 201 ss).

9. A Santidade de Jaguaripe, ocorrida na Bahia, entre 1585 e 1586, e devassada durante a Primeira Visitação da Inquisição no Nordeste, em 1591, foi liderada por um índio de nome Antônio, educado numa missão jesuítica. Antônio, que dizia encarnar Tamanduare - ancestral dos tupinambás - anunciava para breve o fim da dominação portuguesa e da religião dos jesuítas. Os adeptos cultuavam um ídolo de pedra, realizavam "confissões" (ou o que a linguagem inquisitorial traduziu como tais) e um batismo "ao avesso", aspergindo de água benta os pés das crianças. No cuidadoso estudo de Ronaldo Vainfas (1985) está claro o pro-

D E U S N A A L D E I A 503

Page 435: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

cesso que o autor define como a "tradução do catolicismo para o tupi e a tradu-ção tupi do catolicismo".

10. Para uma reflexão sobre o lugar de Tylor e Max Müller na história do pensa-mento contemporâneo, cf. Gasbarro, 1988.

1 1 . 0 expoente mais influente dessa escola foi padre Schmidt (1926), que elabo-rou a teoria do Urmonotheirmus, o "monoteísmo primordial".

12. Para as raízes centro-européias do pensamento malinowskiano cf. Gellner, 1997.

4. Catequese e tradução. Gramática cultural, religiosa e lingüística do encontro catequético e ritual nos séculos XVI-XVII

1. E que, portanto, poderia ter paralisado a sua ação diante da absoluta incom-preensão do "outro".

2. Ver, a esse respeito, a projeção do familiar no desconhecido: Todorov apud Garin, 1998: 329-57, referência da citação à p. 333; mas também, Gerbi, 1996; Mazzoleni, 1992; Vainfas, 1995, e veja-se, paralelamente e ao mesmo tempo, a projeção de um familiar recentemente reconhecido (os antigos): Montaigne, Bodin etc.

3. Seria importante poder verificar se pôde existir, nesse caso, alguma correspon-dência com a importante função que os filósofos árabes mantiveram como inter-mediários de uma revisitação da filosofia aristotélica, à qual, além do mais, se contrapõe a nova tradição ficiniana-platônica.

4. Literalmente, "aquele que pede as índias".

5. Segundo a perspectiva central dessa obra, que focaliza as problemáticas ine-rentes ao "encontro cultural" através do importante encontro-debate realizado nos respectivos territórios disciplinares da Antropologia e da História, no seu recí-proco entrecruzamento com relação à temática abordada.

6. Justo Lipsio, carta de 1603, na qual se referia, especificamente, ao problema da inflação produzida pelos metais preciosos americanos.

7. Para usar uma expressão caracteristicamente jesuítica.

8. Essa também, evidentemente, se constitui como categoria histórica, isto é, como categoria que se encontra sujeita a modificar sua determinação e sua capa-cidade denotativa (e de julgamento), dependendo do momento histórico, além das categorias sociais implicadas na formulação de tal "juízo".

9. Em relação a isso, cf. Colombo, Caminha, Léry, mas também Montaigne, More... até Rousseau. Veja-se, também, a esse respeito a análise proposta por Garin, 1990: 348-9.

Page 436: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

10. E trata-se de uma redescoberta que encontra sua grande novidade no impor-se, na nova força e na conjuntura, da nova missio jesuítica.

11. Nessa obra, o calvinista de Bordeaux dissertava acerca dos "primi homines ante Adamum conditi".

12. Título da obra do iluminista italiano Antonio Ludovico Muratori.

13. Que, rejeitando as alternativas de relegar ao reino do extra-humano os selva-gens americanos e rejeitando a possibilidade de colocá-los nas origens e portan-to de serem considerados como "superados" pela história, via neles homens como nós, ao mesmo tempo coexistentes e diferentes, e, portanto, a serem entendidos em sua plena dignidade.

14. E isso, mesmo levando em consideração o fato de que o parêntese mito-lógica não tenha sido esgotado: cf., por exemplo, a fortuna do Tahiti e do mito do Pacífico de Bougainville; o oceano Índico de Bernardin de Saint-Pierre, o exotismo de Stevenson, Loti, Gauguin, ou o mundo americano de Chateaubriand; mas até mesmo a discussão "científica" sobre a inferioridade americana em Buffon, de Pauw, Schopenhauer (ver A. Gerbi), Hegel etc. Cf., a esse respeito, Garin, 1990 : 358-61.

15. Veja-se em relação a essa obra o que diz respeito à herança dessa tradição que chega até O pensamento selvagem de Lévi-Strauss (que, não por acaso, dedicou particular atenção às obras de Montaigne e de Rousseau).

16. Em relação a esses aspectos peculiares da catequese (cristã), veja-se princi-palmente o item "apontamentos sobre a catequese", pp. 22-5 de nosso artigo, citado.

17. Tratamos mais detalhadamente desse aspecto histórico (moderno) da cate-quese no item sucessivo de nosso artigo, "a catequese nesse momento histórico", pp. 26-39.

18. A esse respeito, encontramos uma importante convergência com o trabalho de Ronaldo de Almeida, Tradução Religiosa e Mediação Cultural, capítulo 7 deste livro. Nesse capítulo, por sua situação de fronteira, a missão é vista, justamente, como "lugar privilegiado para discutir processos de tradução operados nos planos lingüísticos, ritual e comportamental".

19. Política com a qual o terceiro governador-geral, Mem de Sá, com a ajuda dos jesuítas, respondeu aos incessantes combates que os índios hostis davam aos portu-gueses. No que diz respeito aos aldeamentos jesuíticos em São Paulo, veja-se Monteiro, 1994, sobretudo o primeiro capítulo e "O contraponto jesuítico", pp. 42-51. No que diz respeito a alguns relevantes resultados junto à cultura indígena em relação à política de aldeamentos cf., também, o relevante estudo de Almeida, 2003.

20. Em relação ao trabalho de Pero Correia, Azpilcueta Navarro, Luís de Grã, Leonardo do Vale e José de Anchieta, que o completa com a publicação da Arte de grammatica em 1595.

Page 437: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

21. Vocabulário da língua brasüica [1622], 2a ed. revista, organização e notas de Carlos Drumond, São Paulo, Universidade de São Paulo, 1952 (Boletim FFCL n2 137).

22. A começar pela Arte da língua brasüica do pe. Luís Figueira, impressa em Lisboa em 1621.

23. Como a nova edição do catecismo do pe. Antônio Araújo, Catecismo brasílico da doutrina cristã, com os acréscimos do pe. Bartolomeu de Leão, em 1686; e o Compêndio da doutrina cristã na língua portuguesa e brasüica, do pe. João Felipe Bettendorf, no ano sucessivo de 1687.

24. Como o Catecismo da doutrina cristã na língua brasüica da nação kiriri, do pe. Luiz Vincencio Mamiani (de 1698) e o Katecismo indico da língua kariris, do frei capuchinho Bernardo de Nantes (de 1709).

25. Sínodo de Asunción. Primera parte, 2â Constitución; ver Melià, 1969: 28-9.

26. Sobre esse aspecto em relação à língua guarani, cf. Melià, 1995: 18-9.

27. Cf., a esse respeito, Rafael, 1988: 7.

28. "Por dentro da mediação" quer dizer, como definido na Introdução desta obra, dentro do espaço social e simbólico estruturado e estruturante, ao mesmo tempo, constituído pela generalização lingüística que se configura, na perspectiva de nosso trabalho específico, como espaço privilegiado de mediação cultural. Com relação à perspectiva teórica geral relativa ao focus da "mediação cultural", veja-se o programa de trabalho e suas implicações para a análise antropológica desen-volvidos mais detalhadamente em Paula Monteiro, "índios e missionários no Brasil: para uma teoria da mediação cultural", capítulo 1 deste volume.

29. Problemática, todavia, de extrema importância e determinante em relação às outras. Em relação a esta, seria de fundamental importância evidenciar suas implicações políticas — no sentido grego-aristotélico (politia) da expressão —, no que se refere à relação de socialização realizada pela cidade (= paradigma de racionalidade); implicações políticas que se encontram, nessa época, com a noção de "civilização" que, na própria Europa renascentista, se manifesta como "processo". Nesta perspectiva peculiar o processo de evangelização se encontra-rá com o — para sucessivamente fundamentar-se no — processo de civilização.

30. Mamiani, (1698) 1942: XIII-XIV. É importante observar, a esse propósito, que o próprio termo "kariri", que define a língua indígena segundo a qual escreve seu catecismo o Pe. Mamiani, teria, para os tupis (ou não seria para o tupi jesuítico?), o significado de "língua travada".

31. Araújo (1618) 1952: I-IV, fólios Al, 2, A2, 3.

32. E trata-se justamente, nesse caso, do missionário colocado em cena como agente mediador privilegiado, "cuja principal particularidade" — segundo a defi-

Page 438: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

nição de Paula Montero no capítulo 1 deste livro — "é sua habilidade em inde-xar códigos nativos a outras ordens cosmológicas".

33. Apostolado que goza de forma relevante, na interpretação missionária, da Graça concedida por Deus, que é apontado como responsável por esse Dom (milagre) concedido ao pregador.

34. Araújo, (1618) 1952: 3-4 (páginas do Prólogo não numeradas).

35. Em relação ao protagonismo de Anchieta, juntamente com o pe. Nóbrega, nos importantes acontecimentos da aliança dos tamoios com os portugueses e da fundação do Rio de Janeiro, assim como em relação aos resultados propriamente literários dessas importantes experiências históricas, sintetizados nos dois poe-mas (De Beata Virgine e De Rebus Gesti Mendi Saa), há uma relevante produção de estudos que, aprofundando esse aspecto, poderemos, posteriormente, levar em consideração.

36. Montoya, 1640: V e VI fólios não numerados.

37. Cf., a esse respeito, em relação às Filipinas e à língua tagalog, também, Rafael, 1988.

38. Um verdadeiro Contrato Colonial, segundo a feliz expressão de Rafael, 1988.

39. Diálogo da Fé, do pe. Joseph de Anchieta, s.j. Texto tupi e português com intro-dução histórico-literária e notas do pe. Armando Cardoso, s.j., que inclui os textos fac-similares manuscritos classificados como APGSI N. 29 ms. 1730 e ARSI Opp. NN. 22 e sua cópia APGSI n. 33 ms. 1731. São Paulo, Loyola, 1988. Manuscrito, folio 2 (da numeração contida no próprio manuscrito), texto em ortografia moder-na à p. 119. Para os fins de nossa análise, aceitamos a proposta gráfica de retrans-crição do texto anchietano manuscrito, do pe. Armando Cardoso, responsável pela introdução histórico-literária e pelas notas do texto na edição consultada e já citada: é levemente diferente daquela do pe. Anchieta, e, todavia, por não comprometer minimamente a nossa análise, e por tornar mais clara e acessível a leitura — quan-to às características fonéticas de algumas vogais e a alguma acentuação — carac-teriza-se por sua utilidade para quem não tiver um conhecimento mínimo da lín-gua tupi. As outras obras catequéticas do pe. Anchieta, estritamente ligadas a essa e às quais iremos fazer referência neste trabalho são: Doutrina cristã — Tomo 1: Catecismo brasílico. Com texto tupi e português. Introdução tradução e notas do pe. Armando Cardoso, s.j. Incluindo o texto fac-similar (tupi) manuscrito classifi-cado como APGSI N. 29 ms. 1730. São Paulo, Loyola, 1992; e Doutrina cristã — Tomo I: Doutrina autografa e confessionário. Introdução histórico-literária, tradução e notas do pe. Armando Cardoso, s.j. Incluindo o texto fac-similar manuscrito (em português) da Doutrina Autografa e texto (tupi) em ortografia moderna (traduzi-do). São Paulo, Loyola, 1992.

40. Ou "Jesú Cristo": na "decifração" do texto manuscrito de Anchieta, nos pare-ce tratar-se da transcrição em sua forma latina "Jesu Christo", sucessivamente

Page 439: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

"Jesu x.°". Nesse mesmo lugar, manuscrito, fólios 2 e 3, além de "Jesu Cristo" encontramos grafado, da mesma forma, em português "Santa Maria", "Santa Cruz", "Spirito Santo" (latinizado?) e "Santos".

41. Um "fazer ritual", na perspectiva ocidental.

42. Teremos que abrir aqui um parêntese para analisar, em termos antropológi-cos, a importante função cultural exercida pelo "karaíba" tupi, função que teria "justificado" a forte perseguição colocada em cena, desde o começo de sua ativi-dade missionária, pelos jesuítas. Daí, à primeira vista, o paradoxo dessa adoção do termo "karaíba" em seus catecismos.

43. Idem, ibidem. Manuscrito, fólio 2, texto em ortografia moderna à p. 121.

44. Obra citada, na qual — tratando-se de fac-similar — não há numeração pró-pria, mas conserva-se a numeração originária da publicação (nem sempre isenta de alguma imprecisão): neste caso trata-se da folio 13 (capítulo i).

45. No caso do texto do pe. Araújo, já que não houve alteração gráfica do texto tupi (assim como não houve tradução), deixaremos a grafia proposta pelo próprio autor.

46. Cf., a esse respeito, a inversão literal dos princípios da retórica latina clássi-ca que resultará, no decorrer da citação que relatamos a seguir, na contraposição agostiniana entre fórum e Igreja, proposta através do jogo etimológico entre um declarar/dizer {horta dictio) e um ben(di)zer (henedictio, consagração).

47. Todas essas citações se encontram em S. Agostinho, 1998: § 9.13, pp. 35-6.

48. Itálico nosso. E interessante observar, a esse propósito, o evidenciar-se de um subjetivismo e de uma unanimidade do sentimento que ganharam um espaço relevante em relação à revolução humanista e à criação da humanidade, caracte-rísticas que destacamos como uma da peculiaridade (mas, conseqüentemente, não novas) da cultura humanista e renascentista.

49. Sobre essa identificação, também, deveremos abrir uma análise à parte que leve em consideração a função cultural exercida por essa "figura" indígena tupi, e isso para tentar descobrir por quais aspectos, em relação à(s) cultura(s) tupi os missionários puderam selecioná-la para uma identificação com o Demônio da cultura ocidental.

50. A propósito da Cruz como emblema do "lenho sagrado", vale a pena conferir o Catecismo de S. Agostinho, à p. 65!

51. Ver a esse respeito o problema desta "confusão" — própria dos camponeses castelhanos assim como dos índios americanos — como é tratado por Francisco De Vitoria e pela "Escola de Salamanca": entre outras obras, cf. Pagden, 1982; e Prosperi, 1996.

Page 440: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

52. Vale a pena, além do mais, observar — em forma de simples evocação — o, pelo menos curioso, somar-se da coincidência de um Cristo evangélico visto, também, como "filho do homem" (mas o contexto e o significado são outros...)?

53. Cf. o problema (histórico religioso) no falar de "identificação", de "figura(s)", de "divindade(s)". Para tanto será interessante observar o que é analisado pela obra de Sabbatucci, 1981.

54. Para tanto será interessante poder procurar tais "respostas", ou, melhor, pro-blematizar tais "convergências" através da análise da (do confronto com a) obra de Sabbattucci, 1998.

55. Termo, de forma tão complicada, traduzido por alma e que na língua tupi indicaria, propriamente, uma "sombra", imagem que não cabe perfeitamente na materialidade do termo!

56. Ou, talvez melhor, como sugere a possível tradução do termo "angá" aponta-da na nota anterior, um "estar deitado na sombra".

57. Mas haveríamos de falar, no plural, de encontros de traduções, na medida em que só podemos suspeitar o encontro do outro lado, aquele indígena — na sua pluralidade lingüística e cultural — que podemos intuir, numa primeira aproxi-mação antropológica, segundo as possíveis confusões que podiam se determinar em suas diferentes perspectivas culturais.

58. Já fizemos uma primeira listagem desses problemas lingüístico-culturais em relação a toda a obra catequética de Anchieta. E se tem sido um grande trabalho, precisamos evidenciar que seria necessário fazer o mesmo para com as outras obras catequéticas, a fim de entrecruzar os dados para uma análise comparativa.

59. Citado em ortografia moderna. Texto que se encontra na Doutrina cristã I. Manuscrito — incluído na publicação do Diálogo da Fé — fólios 49v-50v.

60. Identificação fundamental — e logo no começo remarcada — do catolicismo.

61. Eis aqui a presença do mistério da transubstanciação, tão marcadamente pre-sente e importante na polêmica entre católicos e protestantes.

62. A insistência sobre esse "dado" é muito importante na medida em que serve (serviu por muito tempo) na Europa, para o proteger-se do catolicismo contra o delinear-se da heresia corpuscular e do atomismo, que ainda constituirão, por exemplo, no âmbito europeu, o centro da acusação contra Galileu. A possibilida-de do determinar-se da heresia corpuscular e atomista nasceu, de fato, com o sucesso que a física substancialista da luz e do calor foi ganhando, até Galileu, opondo-se à metafísica tradicional das qualidades aristotélicas e, ao mesmo tempo, superando as metafísicas herméticas. Essas últimas, em nome de uma conciliação com algumas passagens da Escritura e dentro do espírito contempla-tivo que as despertava, responderam à exigência de um naturalismo cristão como aquele do humanismo neoplatônico de Marsílio Ficino e de Giovanni Pico delia

Page 441: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Mirandola: os mais cultos e abertos ambientes teológicos de Roma, inclusive o próprio cardeal Bellarmino, podiam reconhecer, portanto, essa filosofia, por seu valor religioso. Ora, tanto Galileu quanto toda a tradição ao redor da qual se desenvolvia sua filosofia — inspirando-se na filosofia da natureza redescoberta e revitalizada pelo humanismo neoplatônico, com a difusão do De Rerum Natura de Lucrécio e dos Pneumatica de Héron de Alexandria — interessavam-se pelas novas e sedutoras perspectivas do atomismo em física. Assim Galileu chegou à verificação experimental de que o atomismo constituía uma hipótese de pesqui-sa legítima e fecunda que podia confirmar a validade das idéias de Demócrito, contrastando com a concepção aristotélica do mundo. O Saggiatore galileano (publicado em Roma em 1623) apresentou, de fato, um programa que oferecia uma teoria corpuscular de todos os elementos da natureza e de todos os fenôme-nos perceptíveis: o mundo da (nova) experiência sensível era visto como um intenso movimento de partículas de matéria. Contra essa perspectiva ameaçado-ra levantaram-se os cientistas jesuítas que viam o perigo do impor-se da verdade heliocêntrica e da conseqüente impossibilidade física da cosmologia aristotélica. E a concordância da palavra da Bíblia com o geocentrismo de Aristóteles era ape-nas um dos argumentos vinculatórios para os jesuítas, na necessidade de manter a exegese bíblica dentro da tradição escolástica.

63. Eis que aparece, por trás dessa pergunta, a necessidade de prevenir o sempre ameaçador "culto idolátrico" indígena, ameaça e reação doutrinária que encontra-remos em vários lugares dos diversos catecismos em língua indígena.

64. Depois de ter afastado a possibilidade (o perigo) de tornar um objeto idolátri-co o próprio cálice, em toda essa última parte repete-se quanto foi visto (doutri-naria e jesuiticamente sim, "repetita iuvant") a respeito do mistério da transubs-tanciação, em conexão com a defesa contra a possível heresia corpuscular e atomista, desta vez em relação ao vinho da celebração eucarística.

65. Juntando-se um curioso "querer ficar junto de nós" que parece corresponder ainda mais à "disponibilidade" com que o cativo tupi, proverbialmente, se entre-gava a seu cativeiro.

66. Trata-se, todavia, de uma hipótese não verificável.

67. Incluído às pp. 209-12 do vol. Doutrina cristã (tomo 1), em ortografia moder-na, tirado da Doutrina cristã II (manuscrito, fólios 30v-32v).

68. E, portanto, o próprio Cristo podia ser representado como apaziguador?!

69. Que se encontra na Doutrina cristã (tomo 2) às pp. 77-104, e do qual não há, na publicação, o texto manuscrito, mas que reenvia à Doutrina cristã 1, fólios 51 -67v e à Doutrina Cristã 2, fólios 43-54.

70. Veja-se, porém, por angaipába quanto já dissemos acima. Vale ressaltar que nossa tradução literal dessas duas primeiras perguntas evidencia, contrariamente à tradução proposta, um "pecar" não por vontade, mas por "omissão", por não-

Page 442: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

determinação. Esse nos parece um fato importante em relação à peculiaridade da colocação da cultura indígena na percepção/representação constituída por parte dos missionários.

71. Na sua ingenuidade (religiosa) é, todavia, significativo o destaque do próprio pe. Cardoso, que, a esse respeito, comenta: "era preciso insistir também nos pecados interiores de maus desejos, para a delicadeza de consciência, a que o índio não estava acostumado; com maior atenção às más inclinações interiores, ele se afastaria mais facilmente de quedas de ação". Op. Cit., p. 95. E claro que as perguntas de um historiador seriam bem outras: por que seria preciso insistir para a delicadeza de consciência? Por que haveria, de outra forma, uma queda de consciência? Qual o grau que oferece a medida da delicadeza e/ou da consciên-cia? etc. Perguntas e análises que estão incluídas ao longo do percurso de nossa investigação.

72. Lembramos quanto dissemos antes a respeito do uso na "retradução" jesuíti-ca do verbo "adorar" no lugar do verbo "fazer reverência" (lit. "inclinar-se"), cor-respondente à tradução tupi "Jeroky" (verbo intransitivo). Já relevamos, naquela altura, quanto seria interessante poder averiguar se o fato seria determinado pela ausência de uma expressão tupi que expresse melhor o nosso verbo "adorar" (e seria uma situação plausível, como plausível seria a escolha do verbo "inclinar-se" com seu profundo aspecto ritualístico, que "acomodaria" tanto o ritualismo tupi quanto o jesuítico) ou por uma deliberada escolha — contra-reformisticamente condicionada — de não confundir o sentido pleno de latria, que só se aplicaria a Deus, com o de reverência, que pode caber também aos santos. Ora, na tradução de "aplacar", realizada com o verbo mojerekoápa, parece significativa a etimologia comum e, conseqüentemente, seu compartilhar um dos aspectos que relevamos acima, isto é, o configurar-se da "adoração" ao Deus-Tupã, como de uma forma de conseguir "aplacá-lo", de "reconciliar-se" com ele, que de alguma forma, por-tanto, se configura como um Deus terribilis (?).

73. A anotação continua com a referência às disputationes "Pater Sanchez 1.8. de Matrim. Difput. 24. Num. 35. El primer grado tranfuerfal fer de jure naturae afir-man muchos, entre los quales el Padre Tomas Sanchez, el qual dize que es proua-ble la contraria, y afsi es difpenfable. Vide Sanch. 1.7. difp. 32. Num. 12". Montoya, citado, p. 324.

74. Na Introdução desta obra e, sucessivamente, no capítulo 1.

75. Araújo, (1618) 1952: 2-3, folhas não numeradas.

76. Araújo, (1618) 1952: 3, folhas não numeradas, itálico nosso.

77. No que diz respeito a esse segundo critério de universalização, vejam-se essas características analisadas no artigo de Hansen, 1995.

Page 443: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

5. A primeira missa. Memória e xamanismo na Missão Capuchinha de Bacabal (Rio Tapajós, 1872-82)

1. O mural está exposto na sede do Banco Boa Vista no Rio de Janeiro, edifício criado por Oscar Niemeyer.

2. Quanto ao perfil sociológico dos equipamentos religiosos do Império, os aldea-mentos apresentam um quadro de pequenas populações cadastradas como índios aldeados dentro de um coletivo maior de índios do sertão que permaneciam dis-tantes fisicamente da sede dos aldeamentos, habitando aldeias autônomas e man-tendo relações esporádicas com a missão católica. Inscritos como índios aldeados estão aqueles que estabeleceram com a sede da missão relações de trabalho, em troca de mercadoria: engajam-se nos programas de "desbravamento" do sertão ou de navegação dos rios, nas frentes para a abertura de estradas, plantam roças para o fornecimento de mantimentos para equipamentos do governo. Os dados sobre a catequese dos índios, encaminhados pelos missionários ao governo, entretanto se referem invariavelmente ao número total de índios de uma determinada região: além dos "aldeados", isto é, que prestavam serviço junto à missão, os capuchinhos contabilizavam também populações das aldeias distantes da missão. A atuação dos missionários nos serviços religiosos e na educação se justificava, ainda que em terra indígena, pela assistência que a missão fornecia aos cristãos dos povoa-dos, no modelo das Missões Populares. E com esse quadro humano — formado por cristão na periferia da civilização, aos quais se somavam regularmente desta-camentos policiais que davam suporte à missão — que o missionário contava para a edificação das igrejas e cemitérios, plantações e demais empreendimentos.

3. A presença secular da Missão Franciscana do Cururu entre os mundurucus é tema de pesquisa em andamento (Jayne H. Collevatti). Adiantamos, no entanto, que este seguirá outro modelo de missão católica entre os mundurucu, sendo que o diferencial do programa dos franciscanos alemães residia no formato agressivo das atividades econômicas implantadas no Cururu, baseadas na criação e comer-cialização de gado. Para uma interpretação do impacto da introdução da criação e comercialização de gado pela missão cristã na territorialidade dos Ashuar, ver Descola (1982).

4. Para uma visão yró-índio da história do Brasil do século XIX, ver Capistrano de Abreu.

5. Nos anos 1960, no contexto do marcado pelo debate com a historiografia mar-xista, V. Lanternari utilizará o historicismo para incorporar as populações perifé-ricas do capitalismo a uma compreensão mais abrangente da história das reli-giões. Buscava evitar: "[...] possibilidade de fratura nem de separação entre o mundo dos chamados povos primitivos (ou atrasados, coloniais, iletrados, ou como quiserem chamá-los) — em suma, o mundo objeto de estudo etnológico — e o mundo costumeira e convencionalmente conhecido como 'histórico', seja

Page 444: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

antigo' ou 'moderno'. [...] Existe entre as duas ordens de cultura uma continuida-de indissolúvel, que não podemos romper, a menos que desejemos arriscar inevi-tavelmente não compreender de todo nem o mundo primitivo' nem o mundo moderno', isto é, inclusive a nós mesmos. [...] As culturas baseadas em regimes econômicos atrasados — caça-coleta, agricultura primitiva, criação [...] formam o substrato da civilização antiga e, afinal, da moderna, que descende dela por pro-cesso de desenvolvimento contínuo, conservando, incorporados a si mesma mui-tos daqueles aspectos e caracteres (folclore, religião popular) não obstante as indefectíveis e ininterruptas reelaborações" (Lanternari [1960] 1974: 11).

6. A historiografia da Ordem Menor diverge quanto à data inaugural da presença dos capuchinhos no Brasil, ver: Metódio da Nembro (1858), Faria (1990). Da Nembro registra tal presença nos primeiros momentos de colonização portugue-sa na Bahia, ainda no século XVI; Faria tece a crônica da missão no Brasil a partir de 1612, ano da chegada dos missionários capuchinhos Yves d'Evreux e Claude de Abbeville no Maranhão, acompanhando a expedição francesa comandada por Daniel de La Touche. A polêmica alude a dissidência que ocorre no interior da Ordem Menor entre claustrais e observantes, estes reivindicando o termo capu-chinho como marca da autenticidade do movimento empreendido na Itália em 1525. Antes de 1550 a missão capuchinha italiana não havia se expandido por Portugal e suas colônias, o que torna discutível a presença de observantes nos tró-picos antes da tentativa de colonização empreendida pelos franceses no Maranhão.

7. "Esta Memória, publicada pela primeira vez em 1882, foi posteriormente reproduzida nos 'Kaingang de Guarapuava', monografia do Visconde de Taunay, inserta no vol. LI da RIHGB (1888) e posteriormente no livro 'Entre os nossos índios' (1931). Também foi divulgada, revisada estilisticamente, no trabalho 'Kaingang de Guarapuava (coroados do Paraná)' inserto no vol. X da Revista do Museu Paulista (1918)" (Lourenço Fernandes, 1956: 13).

8. F. Luis de Cimitille utiliza a designação kamé, relativa ao sistema de metades dos kaingangs (kamé/kairu), para identificar os grupos que se aproximam de S. Jerônimo.

9. Publicada originalmente em Annali Francescani, 14 (1883), 15 (1884), Milão: Itália.

10. No dia 5 de março de 2000, a Igreja reconheceu como protomártires os reli-giosos capuchinhos que morreram no Maranhão em 1901 (Beltrami 2000: 240), mortos pelos índios guajajara no aldeamento de Alto Alegre.

11. Nas publicações veiculadas na Europa, os missionários registram seu descon-forto com a oficialidade da escravidão no Brasil imperial.

12. "Éramos tudo. Detínhamos altos poderes espirituais e civis; uns de Roma, outros do Império. Vigiávamos para que se mantivesse a boa ordem e a discipli-

Page 445: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

na [...]. Por este fim fizemos umas cadeias, um regulamento feito pela Assembléia Legislativa e confirmado por decreto imperial regulamentava a nossa função em toda área civil" (2000: 103).

1 3 . 0 missionário obtém em Belém "a patente e a farda de capitão para um valen-te Tuxaua, meu amigo, e oito fardas militares para oito robustos jovens índios da Missão, formando com eles um pelotão de sete soldados e um cabo e um capi-tão, sob o meu comando" (2000: 113)

14. Ainda como diretor de Bacabal, frei Pelino de Castrovalva leva alguns índios para a cidade e registra que lá eles "tinham um certo comportamento altivo que parecei dizer: 'Nós somos os dominadores, vós não passais de espúrios, usurpa-dores de nossos direitos e nossos domínios"'. Afirma na ocasião "querer acender nos índios o desejo de formarem eles também uma cidade e em segundo lugar lhes fazer detestar a vida selvagem" (2000:105)

15. "Se venci os regatões, se derrotei os maçons, e fiz calar o próprio Governo, foi por uma ilimitada confiança que eu tinha em Deus, e ele sempre me ajudou e protegeu. Ele me tinha feito superar a perversidade do clima e me tinha ajudado a domar a gente selvagem e feroz, agora eu precisava novamente de ajuda para combater o Satanás, o qual vendo tantas almas arrancadas de suas unhas, procu-rava suscitar com ira o próprio Governo com o fim de obscurecer a fama do pobre capuchinho" (2000:150). Em outra passagem afirma: "A maçonaria é arbitra no Brasil. Derrotado o partido católico a Maçonaria triunfou".

16. "Não vos espantais por termos encontrado tanta oposição por parte desse tipo de gente; é por demais notório que, em todo tempo e em todos os lugares, os rega-tões foram e serão os inimigos mais obstinados dos Missionários e das Missões. Para vos convencer disto basta ler a história das Missões." (2000: 132).

17. "O pajé apenas visita o enfermo, pergunta onde sente dor. Então na presen-ça de toda família e de outras pessoas, indica o ponto onde se encontra a fratura e estando todos espantados, dá início a sua bufonesca operação. Antes de tudo acende um cigarro feito com tabaco por ele cultivado. Depois começa a fumar retendo o fumo na boca para defumar com insuflação a parte ofendida. Depois de ter consumido dois ou três cigarros, deste modo, o pajé com olhos turvos, fos-cos e fixos no alto, está como possesso, e irrompendo com certas ameaças inin-teligíveis abaixa-se precipitadamente sobre a parte enferma e não ligando a gran-de dor do doente começa a morder com força e grande agitação para sugar o malefício [...] depois retira-se cuspindo na terra com ímpeto e indignação um verme negro, curto e grosso (certamente já preparado por ele)" (2000: 206).

18. Reproduzo a seguir o episódio registrado no Relatório do Aldeamento de Bacabal, assinado por seu diretor, frei Pelino de Castrovalva: "Conforme as ordens de V. Exa. tendo eu de apresentar semestralmente informações sobre o estado da Missão do Bacabal [...].

Page 446: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Ordem Publica: Tem-se esta guardado inalteravel n estes últimos mezes. E com satisfação declaro a V. Exa., que graça a energia que me tem sido necessaria desenvolver e ajustado pelo pequeno distanciamento de indios, que com a intel-ligencia de V. Exa. tenho aqui formado, hei conseguido afastar da Missão quasi inteiramente os turbulentos regatões. Uns delles prendidos de noite em flagran-te, passarão pelos troncos; outros forão expulsos; outros que tentarão estabelecer-se nas vizinhanças mais próximas da Missão, forão expulsos também: servindo-me nisto da atribuição que dá o Regulamento das Missões.

Aos 19 de Maio ultimo deploramos na Missão uma desgraça. O indio Pangnacio Manne, acompanhado de seu tuxava e outros da mesma familia foi desde manhan a caçar na floresta fronteira a Missão da parte opposta do rio. Tendo-se-lhes no meio do mato apresentado alguns animaes de caça, os forão perseguindo em varias direcções. Depois de corridas varias horas, não podendo alcança-los, cansados e dispersos um do outro, se forão retirando da banda da beira, sendo 3 para as 4 horas da tarde. O indio Pangnacio na sua retirada, pas-sando perto de um igarapé, pareceu-lhe avistar um veado que se lavava na agua 3o dito igarapé. Certo, que fosse um veado, descarregou-lhe um tiro de espingarda. Porem aos gritos da vitima, depois do tiro, reparou Pangnacio, ser aquelle não um *eado, mas sim uma pobre mulher india que lá se lavava. Surprendido e confun-dido Pangnacio a tal incidente, correu a abraçar a desgraçada, repetindo-lhe dolo-rosamente: 'Minha irman, minha irman, eu cuidava que fosse um veado'. O marido da infeliz, que a pouca distancia estava pescando no mesmo igarapé àcudiu, acudiu também o tuxana e outros companheiros, porem a desgraçada, depois de poucos minutos, deu a alma ao Creador. Pangnacio no regresso, apre-sentou-se por primeiro a minha presença, e cheio de confusão me narrou o facto. Apresentarão-se depois o tuxana e outros companheiros, inclusive o marido da ieíuncta, e todos coincidirão no conto do facto. Examinei o corpo da finada, e vi qiifie realmente tinha sido morta com um tiro de espingarda: tres balinhas de diumbo encontrarão no corpo da infeliz; um com direcção á cabeça, e duas no Dotação. A mulher defuncta era de outra familia desta mesma Missão, chamava->t Anna Pessoa, casada com Joaquim Pessoa. Nenhum antecedente precedeu o caso: não houve odio, não houve ameaça, não houve briga ou cousa semelhante. W o contrario, tanto Pagnacio com ella em particular, como as duas familias em «ral. guardavão amistosas relações. O natural do Pangnacio é pacifico: desde o •tempo que eu o conheço (que correm cinco annos), nunca houve falta da parte íef le . Pelo que, considerando o caso com todas as circunstancias, julguei (salvo melhor juizo de V. Exa.), ser o acto absolutamente involuntário, e por isso incul-?wdo- com tudo, dias depois chamei Pangnacio, lhe fiz uma severa [ ], e porque «ora vez usasse maior cautela, o retive sete dias nos troncos.

Agora mesmo, estando escrevendo estas linhas e na vespera da minha partida á i Missão, venho a conhecimento de outro facto, do qual não quero deixar de dar ijpBte a V. Exa.. Este facto que vou narrar, deu-se na Missão no tempo de minha «wencia em Julho ou Agosto do anno passado.

Page 447: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Primeiro do que tudo V. Exa. deve saber; que um dos meus maiores empenhos nos cinco annos do meu apostolado n'esta Missão, tem sido apagar da cabeça dos indios inveteradas superstições, e especialmente aquellas que se oppunhão directamente à Religião e ao bem estar da sanidade. Ora uma das maiores superstições com que tenho tido que luctar, tem sido aquella do feitiço. O que não tenho dito, o que não tenho feito para arrancar dos corações d'elles tão perniciosa superstição? E quantas mortes não tem elles feito com estes mesmos princípios antes da fundação da Missão? Com tudo quando já pensava de te-los persuadidos a detestar este abominavel vicio, eis que um dia que lhes falta o Missionário, reproduzem os mesmos factos.

V. Exa. Está sciente que no anno passado eu desci a essa Capital para tractar algumas cousas d Missão. Ora bem, n aquelle tempo que eu faltei adoecerão e morerão na Missão varias pessoas [...] uns índios a gritar: 'E feitiço, é feitiço; pre-cisa matar os feiticeiros, que agora que não tem medo do Padre por elle não estar aqui, nos queriam matar a todos; precisa mata-los, precisa mata-los'. Designarão quatro moços da mesma Missão para serem immolados como feiticeiros: execu-tarão um chamado Ismael, os outros avisados em tempo, evadirão-se, voltando a Missão depois do meu regresso.

O rapaz foi matado com dous tiros de espingarda, acabando-o com pancadas na cabeça. Forão executar Silvano D' [ ], e outro rapaz (hoje defunto). Foi man-dante o Capitão José da Gama, que pela volta do meio dia do dia em que elle mandou matar a Ismael (o qual se achava na parte opposta a Missão, alem rio, e que no meio do mato), os seos enviados, que mandara de manhan, não voltarão, impaciente disse: Esta gente não presta para matar gente, vou eu! Quando lá che-gou, achou a vítima que estava já sacrificada: a satisfeito, com os seos companhei-ros voltarão a Missão, sem nem sequer dar interro ao corpo do morto, deixando-o a comida dos urubus.Hoje é que tenho conhecimento deste horrível facto". AC RJ (17-IV-11) Missão do Bacabal no Tapajós 14 de Agosto de 1876.

19. "Após esta notícia eu senti o meu coração se acender com um novo e vivo fogo, e ansiava por voar até aqueles novos selvagens para chamá-los à fé e à civi-lização" (2000: 184). Sobre o assalto dos mundurucu aos parintim e o ritual da caça às cabeças, ver capítulos XIX e XX.

20. Sobre o ritual da caça das cabeças: "Aquele que participou do confronto é no ano seguinte homenageado, honrado como herói no dia do aniversário da batalha. O mais ferido' dos guerreiros havia passado um ano sem cortar os cabelos, tempo que se confeccionou uma 'bela veste de penas variadíssimas e belíssimas de vários pássaros coloridos, unindo-os com fio de algodão formando um colar para a cabeça, com uma couraça de largas faixas e um cinto de enfeitado com dentes de selvagens e macacos formando também um colar de pendurar no pescoço. Diversas outras penas seriam enfiadas na orelha do herói. Os meus índios para melhor comemorar o dia haviam convidado todos os outros Mundurucus residen-tes em locais distantes, especialmente nos famosos Campos, os quais abando-nando suas malocas vieram em grande número, missão a missão, a qual alguns

Page 448: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

dias antes da dita festa, já regurgitava de selvagens. Pelas três da tarde da véspe-ra do aniversário da batalha, começaram a festa, com uma lavagem geral, feita com muita seriedade e respeito, sendo a sua conclusão no fim do dia. No princí-pio da noite os Mundurucus se reuniram na mais espaçosa cabana e ali com gran-de estrepito começaram o baile de máscara. Até tarde se toca, e dança e se embriaga com Tarubá (bebida espirituosa dos selvagens feita a base de mandioca fermentada). O herói da festa é colocado no centro. O chefe dos pajés ('sacerdo-te selvagem') vem purifica-lo, corta a navalha o cabelo. Depois segue o mesmo com a mulher. Herói é vestido com a veste de penas, arco e flecha. Chefe dança no meio do círculo na casa e depois pela rua da missão, acompanhado sempre pelo povo. A dança simula a batalha na selva. Assalto ao inimigo é canibal: lambe o sangue, o povo corta a cabeça". (2000: 197-9)

21. Sobre a festa do "Mãe do Queixada" e o complexo ritual dos mundurucu, ver: Murphy, Menget, Gonçalves Tocantins.

22. "Os pajés que eram os instigadores, já haviam indicado 6 ou 7 pobres índios jovens, como autores dos males. Deste modo deveriam ser trucidados no momen-to em que eu entrava na Missão. Felizmente só chegaram a matar um só. Os outros se refugiaram nos bosques e andavam errantes pelas florestas". (2000: 149)

23. Da mesma forma que uma jovem mulher mundurucu possuída pelo diabo não é o diabo; as forças do mal agem por meio dessa jovem, descrita como belís-sima e sedutora, que requer do missionário cuidados de exorcismo: "a protagonis-ta é uma jovem de dezenove anos, bonita e sedutora. Sendo bonita e sem pudor, era cortejada por todos os jovens desregrados e libertinos que viviam dentro e fora da missão". "Eu fazia sobre ela sinais de cruz às escondidas e invocava de todo coração a ajuda do Altíssimo [...] Finalmente começou a falar, cheia de tremor e medo, e parecia que houvesse alguém para bater nela. De qualquer maneira, fiz sobre ela uma espécie de exorcismo, esconjurando o demônio que se mantivesse afastado de mim, da jovem, da minha casa e reparei que ela recobrara ânimo para narrar [... seus diálogos com o demônio)." "[...] dei-lhe uma medalha da Virgem Imaculada para que levasse ao pescoço" (2000 : 232-3).

24. Para uma crítica recente aos limites da teoria de Mauss sobre o Sacrifício aplicada à análise do xamanismo ameríndio, ver Viveiros de Castro, 2002. Basicamente o autor opõe a prática xamânica do transformar-se em (animais, espí-ritos) à prática sacrificial. No sacrifício algum mediador — no caso o sacerdote — se interpõe entre esferas em comunicação; no xamanismo a comunicação se dá de forma direta, por meio da metamorfose dos corpos.

6. O código da cultura — o Cimi no debate da inculturação

1. O Cimi é uma instituição secular, carente de uma certa autonomia gozada pelos missionários de ordens e congregações religiosas católicas. Ele está direta-

Page 449: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

mente atrelado à presidência da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e é presidido por um bispo, eleito na Assembléia Geral da CNBB, cuja dio-cese ou prelazia abarque populações indígenas.

2. Uma análise sobre o Cimi deve, necessariamente, eleger um ponto de obser-vação, vista a magnitude dos contextos, relações e atividades da instituição. Para a problemática que nos interessa aqui, focaremos a discussão sobre uma fração dessa agência missionária, que é o seu aparelho central, referido informalmente como "Cimi Nacional". Vamos nos restringir, mais precisamente, à produção inte-lectual oriunda desse espaço que discute a relação entre evangelização e cultura. Não se trata, portanto, de uma análise etnográfica de alguma das experiências locais do Cimi, constituídas por mais de quatrocentos grupos de base, que atuam em contato direto com grupos indígenas.

3. Não temos espaço, aqui, para explorar essas transformações históricas por toda a primeira metade do século XX. Desenvolvemos alhures (2002: 22-93) os momentos principais daquilo que afirmamos ser um titubeante e lento processo de "redescoberta" e valorização dos fiéis leigos, que, no período de algumas déca-das, terminaram alçados a uma posição importante no projeto de evangelização do mundo. As movimentações políticas internas à Igreja que, ao longo da primei-ra metade do século XX, provocaram essa reorientação na estruturação da ação pastoral foram, em seus primeiros momentos, protagonizadas pela cúpula da hie-rarquia pontifícia, mas repercutiram drasticamente por toda a rede institucional católica. Ao aportar na Igreja brasileira, essa reorientação ganhou matizes pró-prios, incorporando questões específicas da realidade nacional.

4. A Opan atua, hoje, como Oparação Amazônia Nativa, nos moldes de uma orga-nização não-governamental, e desenvolve diversos projetos junto a povos indíge-nas das regiões Norte e Centro-Oeste do país.

5. Ver nota sobre a Ação Católica no glossário.

6. A III Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, mais conhecida como a Conferência de Puebla, referendou essa tomada de posição afirmando solenemente a opção preferencial pelos pobres.

7. O que produzirá efeitos reconhecíveis na pastoral indigenista brasileira em seus primeiros momentos, ao longo de toda a década de 1970.

8. O Vaticano II foi o único concilio ecumênico realizado no século XX; e em toda a história da Igreja foram apenas 21. A convocação de reuniões dessa natureza ocorre com muita parcimônia devido à ampla autoridade que possuem na regula-ção do funcionamento da Igreja e na formulação/reformulação de peças da dou-trina. Contrariamente aos sínodos dos bispos (mesmo que sejam universais) e às conferências episcopais regionais, a documentação de um concilio ecumênico torna-se referência compulsória e irrefutável sobre os temas que aborda. O temor ao extraordinário poder político ganho pelo episcopado quando em estado de con-

Page 450: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

cílio talvez tenha sido o responsável pela promulgação, em 1975, por João Paulo II, da constituição apóstolica Romano Pontifici Eligendo, que determina a suspen-são imediata do concilio ecumênico caso ocorra a morte do sumo pontífice durante sua realização.

9. João XXIII constituiu, em junho de 1960, dez comissões para a preparação de todo o concilio. Internas à Cúria Romana, essas comissões temáticas compulsa-ram as sugestões de mais de 2 mil listas de propostas encaminhadas por bispos de todo o mundo, como também as opiniões oriundas de faculdades teológicas, universidades católicas e congregações da Cúria. Entre as questões examinadas por essas comissões estavam problemas referentes aos seguintes temas: Escrituras, tradição, fé e moral; o trabalho dos bispos e o controle das dioceses; as ordens religiosas; as formas da liturgia e sua atualização; os seminários de for-mação e os estudos eclesiásticos; as missões; as igrejas do Leste; e o apostolado leigo. Uma comissão central coordenava os trabalhos dessas comissões temáticas e assessorava o papa não apenas na escolha das questões a serem debatidas como também nos procedimentos formais que regeriam o funcionamento das sessões.

10. As comissões preparatórias do concilio haviam sugerido, inicialmente, seten-ta decretos para debate na reunião. Esse número foi sendo gradativamente redu-zido até que, ao final do concilio, dezesseis documentos vieram à luz. Dentre eles, quatro possuem um significado fundamental, pois operam como espinha dorsal para o desenvolvimento das problemáticas presentes nos outros textos: as consti-tuições dogmáticas Lumen Gentium ("Sobre a Igreja") e Dei Verbum ("Sobre a revelação divina"), e as constituições pastorais Sacrosanctum Concilium ("Sobre a sagrada liturgia") e Gaudium et Spes ("Sobre a Igreja no mundo moderno").

11. Conforme a já desgastada referência a Mateus 28, 16: "Os onze discípulos caminharam para a Galiléia, à montanha que Jesus lhes determinara. Ao vê-lo, prostraram-se diante dele. Alguns, porém, duvidaram. Jesus, aproximando-se deles, falou: Toda a autoridade sobre o céu e sobre a terra me foi entregue. Ide, portanto, e fazei que todas as nações se tornem discípulos, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo e ensinando-as a observar tudo quanto vos ordenei. E eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos!"'.

12. Tradução livre.

13. Em Medellin, os bispos do continente partem de uma análise semelhante. Para eles, o trabalho pastoral da Igreja deve se pautar por uma premissa funda-mental: "A fé, e, por conseguinte, a Igreja, nascem e crescem em religiosidade culturalmente diversificada nos distintos povos. Fé que, embora imperfeita, pode encontrar-se ainda nos níveis culturais mais inferiores. Pertence precisamente à tarefa evangelizadora da Igreja descobrir nessa religiosidade a 'secreta presença de Deus' e a luz da verdade que ilumina a todos, a luz do Verbo presente, mesmo antes da encarnação ou da pregação apostólica, e fazer frutificar essa semente. Sem extinguir a mecha fumegante, a Igreja aceita com alegria e respeito, purifi-

Page 451: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

ca e incorpora à'fé os diversos elementos religiosos' que estão presentes nessa religiosidade como 'semente oculta' do Verbo e que constituem ou podem cons-tituir uma preparação evangélica" (Ceiam, 1984: 70).

14. Em Medellin, o tema da relação entre a Igreja e a questão social assume pro-porções maiores do que a discussão presente no Vaticano II. Apoiados em prece-dentes doutrinais das últimas décadas — que partem, como vimos anteriormen-te, de um novo momento no pensamento social cristão a partir de Leão XIII, com a promulgação da Rerum Novarum — os líderes eclesiásticos do continente cobram das Igrejas nacionais o estabelecimento de uma presença orgânica de seus cristãos na atuação sobre a as estruturas sociais: "A carência de uma cons-ciência política em nossos países torna imprescindível a ação educadora da Igreja, com vistas a que os cristãos considerem sua participação na vida política da nação como um dever de consciência e como o exercício da caridade em seu sentido mais nobre e eficaz para a vida da comunidade". (Ceiam, 1984: 18)

15. Um caso certamente interessante é o das Irmãzinhas de Jesus entre os tapi-rapé, já analisado por Shapiro (1981). Essa ordem, fundada em 1939, é uma con-trapartida feminina dos Irmãozinhos de Jesus, ordem fundada três anos antes. Formadas por missionários franceses, ambas as ordens, nascidas na Argélia, atuam em pequenos grupos, chamados de fraternidades, e perseguem o exemplo de vida de Charles-Eugène de Foucauld, oficial militar francês e explorador, con-vertido ao catolicismo em 1886, quando servia no Marrocos. A forma de atuação desses religiosos é interpretada como uma antecipação de algumas das inovações que seriam realizadas no Concilio Ecumênico Vaticano II. As fraternidades se dis-tribuem em pequenos grupos que se misturam entre aqueles que esperam evan-gelizar, assumindo os mesmos trabalhos e a forma de vida destes últimos, promo-vendo, portanto, uma versão pioneira do que seria chamado "encarnação". O Cimi identifica na experiência dessas missionárias entre os tapirapé um caso singular da missionação católica na época. Ao lançar a seção "diálogo religioso" no Porantim, em setembro de 1998, os missionários escolheram justamente esse exemplo para inaugurar a série de relatos que resgataria a história de experiências pastorais que propiciaram os surgimento de uma "nova face da Igreja": "Precisamos reconhecer o pioneirismo deste início, pois, em 1952, era quase impensável imaginar uma congregação de freiras vivendo sozinhas, numa aldeia indígena, sem capelão, sem missa diária e a três dias de viagem da vila mais pró-xima! Somente 20 anos depois, com a fundação do Cimi, este tipo de vida foi aceito e difundido". (Prezia, 1998: 14)

16. Para uma análise da experiência da Missão de Utiariti ver Silva (1999).

17 A Igreja latino-americana também estava atenta ao mesmo problema que tanto preocupara a Igreja universal na primeira metade do século XX: as articulações radicais de esquerda. Ela se preocupava com o apelo que as formulações teóricas e os planos de ação desses grupos exerciam sobre os católicos. (Rufino, 2002: 39)

Page 452: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Em sua discussão acerca da reforma política no continente, possibilidade aven-tada diante da situação de crise econômica e social nos países dessa região, ela faz um alerta: "Não se deve esquecer, tampouco, a existência de movimentos de todo tipo, interessados, cada vez mais, em aproveitar e exacerbar estas tensões. Portanto, se hoje a paz já é vista seriamente ameaçada, o agravamento automáti-co dos problemas provocará conseqüências explosivas". (Ceiam, 1984: 25)

18. Em seu artigo "O índio hiper-real", Alcida Ramos propõe analisar — a partir de um episódio envolvendo o desentendimento entre lideranças ticuna e um grupo de apoio — algumas representações criadas sobre os índios por parte dos parceiros e aliados do terceiro setor. Em algumas circunstâncias, a autora obser-va a construção de expectativas em torno da ação da liderança indígena que supõe, por parte dos aliados, uma maneira específica de romantização dos índios e de seu modo de proceder na luta política.

19. Veremos, no próximo tópico, que o paciente e lento trabalho de desconstru-ção desse simbolismo em favor da especificidade indígena será, no contexto bra-sileiro, um segundo momento na trajetória do Cimi, e estará diretamente relacio-nado ao tema da inculturação.

20. Lembremos, sob o risco da obviedade, que a encarnação de Cristo é um tema caro ao cristianismo. Além das diversas passagens do Novo Testamento que salientam esse ato (cf. Jo 1, 14; Hb 2, 11), devemos observar que muitos autores da literatura patrística nos primeiros séculos da era cristã estiveram mobilizados na defesa da dimensão humana de Cristo, como um fator de extrema significa-ção para o conjunto da fé cristã. (Pelikan, 1959)

21. "Antes de tudo, formação. E preciso que haja pequenos grupos bem adestra-dos, em cada ramo fundamental. Nada de improvisação, imediatismo ou espalha-fato. Não se deve começar com grandes aglomerações, mas sim, pequenos gru-pos que sejam "fermento na massa". [.-..] Que haja unidade orgânica. Coordenação em todas as associações. Um erro gravíssimo seria o de haver associações isoladas, pois dispensariam forças e energias'. (CNBB, 1946, grifo nosso.)

22. Vimos anteriormente que a ênfase missionária numa categoria genérica de indianidade, presente já na fundação do Cimi, atendeu a exigências de um con-texto histórico e político que torna essa operação inteligível.

23 O autor analisa a participação da Igreja no fenômeno da etnogênese de gru-pos indígenas no país, que, grosso modo, se refere ao resurgimento de grupos indí-genas que, por diversas razões, ocultaram (ou tiveram ocultadas) suas identidas indígenas ao longo da história.

24. Como na expressão "missão inculturada", o adjetivo passou a qualificar mui-tos outros nomes, como "teologia", "ação", "pastoral", "Igreja", "evangelização", "leitura", "presença", "compromisso", "prática" etc.

Page 453: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

25. Essas duas conferências, separadas por uma década, envolveram interesses e debates que fogem do escopo de nossa discussão. Puebla, por sua vez, expressa também uma articulação política complexa de reação a algumas conclusões de Medellin que não poderemos abordar aqui.

26. O missionário de maior evidência é certamente o teólogo Paulo Suess, ex-secre-tário nacional e assessor teológico do Cimi. Ele é um dos mais prolíficos autores da inculturação. São seus os primeiros artigos sobre o tema a aparecer na REB (Revista Eclesiástica Brasileira), como também os primeiros livros e coletâneas acerca do tema. Coordenou o programa de pós-graduação em missiologia na FAI (SP) e é o atual presidente da Associação Internacional de Missiologia.

27. A noção de dialogismo e intertextualidade propostas pelos estudos de semio-logia, especialmente nos trabalhos de Julia Kristeva e Bakthin, talvez possa nos ajudar a elucidar algumas questões a esse respeito. Guardadas as devidas propor-ções, é como se um pequeno repertório de autores fundamentais nos fornecesse a senha para interpretar toda uma escola intelectual, que, se não pode ser consi-derada prolífica quanto as suas proposições teóricas, certamente o foi quanto ao volume de publicações.

28. Com a exceção de alguns poucos casos isolados, em que a palavra incultura-ção aparece simplesmente assimilada ao conteúdo da teologia da libertação. Esses casos não nos interessam aqui, e os interpretamos como o reflexo previsí-vel da grande exposição do termo, que leva a uma ocorrência do mesmo em sen-tidos os mais diversos, distantes da discussão em questão.

29. São inúmeros os títulos que procuram despertar a consciência dos "excluídos" para a necessidade de se reconhecerem como uma força comum. Até mesmo documentos oficiais da Igreja no Brasil deixam notar essa presença marcante do marxismo em suas categorias de análise, como perceberemos neste sugestivo documento assinado por bispos da região Centro-Oeste:

"O processo histórico da sociedade de classes e a dominação capitalista condu-zem fatalmente ao confronto das classes. Embora seja isto um fato cada dia mais evidente, este confronto é negado pelos opressores, mas é afirmado também na própria negação. As massas oprimidas dos operários, camponeses e numerosos subempregados, dele tomam conhecimento e assumem progressivamente uma nova consciência libertadora. A classe dominada não tem outra saída para se libertar, senão através da longa e difícil caminhada, já em curso, em favor da pro-priedade social dos meios de produção. Este é o fundamento principal de gigan-tesco projeto histórico para a transformação global da atual sociedade numa sociedade nova, onde seja possível criar as condições objetivas para os oprimidos recuperarem a sua humanidade despojada, lançarem por terra os grilhões de seus sofrimentos, vencerem o antagonismo de classes, conquistarem por fim, a liber-dade." (Documento dos Bispos do Centro-Oeste, 6 de mail de 1973 — Sedoc, vol. 6, nfi 69, março de 1974, col. 1019 s)

Page 454: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

30. O termo inculturação ganhou aceitação ampla dentro da ordem a partir da 32a Congregação Geral da Sociedade de Jesus, ocorrida em dezembro de 1974 (Crollius, 1984: 2).

31. Em Jerusalém, em junho de 1981, realizou-se o seminário interdisciplinar "The nature and the demands of inculturation, as seen in the light of Holy Scripture and of the cultural developments of today". Dois anos depois, em Jacarta (Indonésia), ocorreu um segundo encontro, com o tema "Christ and cul-tures". Em 1985, em Tantur, ocorreu o simpósio "Inculturation: the Christian experience amidst changing cultures".

32. A missão, em Puebla, ainda deveria obedecer a alguns preceitos em seu tra-balho de evangelização que, uma década depois, irão soar deselegantes à missão inculturada: "Cristo enviou sua Igreja para anunciar o Evangelho a todos os homens, a todos os povos. Uma vez que cada um dos homens nasce no seio de uma cultura, a Igreja procura alcançar, por meio de sua ação evangelizadora, não só o indivíduo senão também a cultura do povo. Procura alcançar e transformar pela força do Evangelho os critérios de juízo, os valores determinantes, os pon-tos de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida da humanidade, que estão em contraste com a palavra de Deus e com o projeto da salvação. Poder-se-ia exprimir isso dizendo: importa evangelizar — não de maneira decorativa, como que aplicando um verniz superficial, mas de maneira vital, em profundidade, e isto até às suas raízes — a cultura e as cultu-ras do homem". (Ceiam, 1986: 187)

33 Paulo Suess, assessor teológico do Cimi, é um dos mais prolíficos autores do campo da inculturação, o que em parte explica sua atual posição de presidente da Associação Internacional de Missiologia. Os seus textos, publicados em livros ou em revistas especializadas de teologia e missiologia, estão entre os primeiros trabalhos sobre o tema da inculturação em língua portuguesa.

34. Alguns teólogos não entendem a inculturação como uma ruptura necessária da tarefa evangelizadora da Igreja com os seus compromissos históricos e cultu-rais em relação à civilização ocidental-européia. Théoneste Nkéramihigo S.J., por exemplo, critica as concessões excessivas que alguns católicos fazem ao contem-porizar com as correntes de pensamento que combatem a ação evangelizadora da Igreja. Para ele, a fé cristã não pode negar — sob o risco de ocultar suas raízes — o seu destino europeu, nem tampouco a consciência de que ela promoverá, necessariamente, transformações importantes nas culturas não-ocidentais. O mis-sionário, continua Nkéramihigo, precisa aceitar o argumento antropológico de que as culturas não constituem sistemas estáticos, fechados em si mesmos, e de que ele deve almejar por uma teologia que habilite e aceite o conflito cultural. (Nkéra-mihigo, 1984: 26)

35. Não pretendemos estabelecer uma classificação teórica na inculturação. A idéia de pensar o contraste entre uma "versão" da inculturação presente na argumenta-

Page 455: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

ção do Cimi e em outras formulações nos foi sugerida pela discussão feita por alguns cientistas e intelectuais brasileiros católicos sobre a bioética. Eles distin-guem a "bioética de fronteira" de uma "bioética do cotidiano". A primeira é o modo específico segundo o qual a ética pensa a vida nos países ricos, e está voltada para questões relativas à utilização de tecnologias de ponta na manipulação da vida, con-cedendo atenção especial à "autonomia" do paciente. Tal modelo nos faz ver a bioé-tica como "o fruto de uma sociedade que atingiu a democracia — com pleno exer-cício da cidadania e a afirmação do sujeito instruído — de uma sociedade pluralista e secularizada". Já a bioética do cotidiano enfatiza os problemas sociais vividos no Terceiro Mundo como ponto de partida para se abordar o tema. Nessa forma "pobre" de se pensar a bioética, os problemas centrais são o acesso aos recursos e a justa distribuição dos serviços médicos. Fazem parte do escopo da bioética coti-diana questões como a fome, o abandono, o racismo e a exclusão social — muito distantes da bioética de fronteira, (cf. Pessini e Barchifontaine, 1996)

7. Tradução e mediação: missões transculturais entre grupos indígenas

1. índios e islâmicos são os principais alvos do ideário missionário evangélico-fun-damentalista, o que pode ser observado na literatura das missões e nos seus mate-riais didáticos, principalmente norte-americanos. No primeiro caso, as socieda-des indígenas são índice de autenticidade da idéia (natural) de Deus, enquanto na segunda o islamismo é representativo do mal, do falso Deus, portanto, trata-se de uma religião inimiga.

2. No entanto, o trabalho de Barros (1993) pouco aborda a discussão em torno do tema da religião, limitação assumida pela autora. Na verdade, ela centra sua análise na técnica ("estilo" de lingüística, como define) da tradução, nas referên-cias científicas e nas relações institucionais com universidades e governos locais da América Latina.

3. As normas da ABS baseavam-se na British and Foreign Bible Society, cujo eixo central era o "teste de consistência" (check listfor consistence). Tal princípio bus-cava a uniformidade do vocábulo por todo o texto, principalmente os mais impor-tantes para a compreensão do cristianismo, como perdão, salvação, pecado etc. Em caso de palavras que não tivessem equivalents, como nome de lugares, plan-tas etc., optava-se por manter o termo original acompanhado de nota explicativa.

4. A confissão, o batismo de crianças, a infalibilidade papal, a universalidade da Igreja, a hierarquia eclesial, o purgatório, o mistério da transubstanciação, o culto aos santos e a Maria são dimensões da religiosidade católica, veementemente condenadas pelos fundamentalistas.

5. Baseio-me na análise de entrevistas e textos produzidos pelos missionários da MNTB e por ecumênicos como o católico Paulo Suess (Suess, 1991) — conside-rado um dos principais teólogos da inculturação no Brasil — e o luterano do GTME Roberto Szwetsch. (Szwetsch, 1997)

Page 456: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

6. "[...] na medida em que o operador totêmico', articulando diferenças na série cultural com diferenças na espécie natural, não é mais um elemento principal do sistema cultural. Mas deve-se questionar se não foi substituído por espécies e variedades de objetos manufaturados, os quais como categorias totêmicas têm o poder de fazer mesmo da demarcação de seus proprietários individuais um pro-cedimento de classificação social". (Sahlins, 1978: 196)

7. De fato, a suspeita tem sentido, basta lembrarmos da definição sociológica de seita e igreja. Esta seria uma instituição que se sobrepõe à ordem social enquanto aquela refere-se aos movimentos contrários aos valores religiosos hegemônicos. (Troeltsch, 1987; Weber, 1991)

8. Sob o manto do cristianismo: o processo de conversão palikur

1. Agradeço a Otávio Velho, Manuela Carneiro da Cunha e Oscar Calávia pelos comentários e sugestões à primeira versão deste texto apresentada no Seminário Missões Cristãs e Populações Indígenas — o problema da mediação cultural. Agradeço ainda a leitura atenta dos membros do Projeto temático Fapesp: "Missões Cristãs em Áreas Indígenas no Brasil".

2. Dentre estas as maiores são a Wycliffe Bible Translators (nome religioso do Summer Institute of Linguistics (SIL), cuja razão social no Brasil mudou de Instituto Lingüístico de Verão para Sociedade Internacional de Lingüística) fun-dada nos Estados Unidos no começo da década de 1930 (Barros, 1993) e a New Tribes Mission, fundada em 1942 e também de origem norte-americana (Fernandes, 1980: 130). Além dessas, existem em torno de 167 missões evangé-licas atuando em áreas indígenas no Brasil (Kahn, 1995).

3. Este texto refere-se à população de aproximadamente 1.011 pessoas (Funai/ADR-Oiapoque, 2002) localizada às margens do rio Urukauá, em território brasileiro.

4. A região do Uaçá corresponde a uma faixa de território de aproximadamente 500 mil hectares no extremo norte do estado do Amapá, dentro do perímetro do município do Oiapoque, é banhada pelos rios da bacia do Uaçá, constituída pelo rio Uaçá, tributário da margem direita do rio Oiapoque, e seus afluentes de mar-gem esquerda, o Curipi e o Urukauá. Essa área corresponde à Terra Indígena Uaçá, que abriga uma população indígena de aproximadamente 4.843 pessoas. (Funai/ADR-Oiapoque, 2002)

5. Um aspecto que atesta a antigüidade na relação com os jesuítas é o termo uti-lizado na língua palikur, o parikwaki, para designar padre; estes são chamados de muveg, um passarinho cuja principal característica é curvar-se para a frente emi-tindo um som parecido com uma oração. Dada a influência do patois do crioulo francês na introdução de neologismos, isso é um indício de que o termo foi

D L - U S N A A L D E I A 5 2 5

Page 457: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

cunhado na relação direta com os jesuítas, antes da difusão do paióis nas relações interétnicas da região.

6. Trata-se do diário pessoal escrito por Diana Green (1965-77), missionária lin-güista do SIL, sobre os doze anos em que conviveu em campo com os palikur. Esse diário me foi gentilmente cedido por Diana e seu esposo Harold. Quando me refe-rir a ele, utilizarei a palavra Diário, iniciada por uma maiúscula e em itálico.

7. Paulo Orlando é o principal agente da mediação missionários/palikur, um tra-dutor de mundos no processo de evangelização de seu povo.

8. Para uma descrição pormenorizada sobre as festas de santo e sua relação com o catolicismo cf. Vidal (1999) e Tassinari (2003).

9. A relação dos karipuna com o Turé se assemelha, em muitos aspectos, com o caso xocó analisado nesta coletânea por J. M. P. A. Arruti. Para uma análise do papel do Turé na região do Uaçá, cf. Capiberibe (no prelo).

10. Roque Penafort foi prefeito de Oiapoque.

11. Hoje, os karipuna ocupam uma situação ímpar, podem ser classificados tanto como "índios brabos" quanto como "não-índios civilizados", de acordo com três aspectos de sua organização sociocultural: o xamanismo, o catolicismo e o patois (Capiberibe, no prelo).

12. Ressalte-se que se trata de um repúdio no nível do discurso, o que não invia-biliza que na prática suas relações com os católicos da região ocorram em exce-lentes termos.

13. Em julho de 1996, convivi na aldeia de Kumenê durante quinze dias com Diana Green, que, após passar onze anos sem entrar na área, voltava para dar um curso de treinamento para professores índios. A citação acima faz parte de uma entrevista que fiz com ela em fevereiro de 1997.

14. A preocupação do governo brasileiro com as fronteiras nacionais foi uma forte barreira para os missionários evangélicos estrangeiros, vide o exemplo da disputa no noroeste amazônico entre padres salesianos e missionários evangélicos, na qual a intermediação do exército, solicitada pelos salesianos, termina por expul-sar alguns missionários estrangeiros, alegando proteção do patrimônio nacional. (Wright, 1998: 244-7)

15. Um dos principais articuladores da relação entre a academia e o SIL foi Darcy Ribeiro. Ribeiro via na instituição missionária uma possibilidade real de imple-mentar no Brasil a pesquisa lingüística de campo em sociedades indígenas e para isso agiu em prol da aceitação acadêmica do SIL. (Barros, 1993: 321)

16. Esse processo de reversão do apoio de governos ao SIL ocorreu em vários paí-ses da América Latina: "[...] Whether to give the U. S. Government a warning, court the opposition to their Indian policy or take a national security precaution,

Page 458: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

SILs sponsors started to revoke its contracts. By 1981 130 translation teams wan-dered an official wilderness in Brazil, Panama, México and Ecuador" (Stoll, 1982: 11). Para o caso brasileiro cf. também Barros. (1993: 359-99)

17. E preciso destacar que os trabalhos lingüísticos de Diana e Harold Green são referência nos estudos sobre língua aruak.

18. Embora a competência científica desses trabalhos nem sempre seja atestada, como afirmam Viveiros de Castro e Fausto: "[...] as avaliações especializadas da contribuição científica de instituições como o SIL estão muito longe de serem sempre positivas; ao contrário, a tendência geral é se ter o conhecimento produ-zido pelos lingüistas missionários, com as exceções de praxe, como de baixo valor e pouca profundidade, quando não totalmente distorcido". (1993: 6)

19. De acordo com uma lista de março de 1993 que relaciona toda a produção escrita na língua palikur, gentilmente fornecida por Diana Green.

20. O Diário também menciona a participação dos palikur nas festas de santo karipuna.

21. Termo regional para a bebida fermentada de mandioca.

22. As missões transculturais caracterizam-se por congregar membros de diferen-tes denominações evangélicas empenhados em difundir o Evangelho em socieda-des de tradição não cristã (Almeida, 2002: 10-11), para uma análise mais deta-lhada sobre missões transculturais ver R. de Almeida capítulo 7 nesta coletânea.

23. Fernandes coloca que um dos resultados da guerra civil norte-americana foi ter gerado um cisma nas grandes denominações religiosas do país. Nesse proces-so, de um lado ficaram as Igrejas tidas como mais "liberais" e chamadas de main Une — que, segundo Mafra (2001: 8) corresponde no Brasil ao que se chama pro-testantismo — localizadas principalmente no Norte do país; e, de outro, as igre-jas mais "conservadoras", subdivididas em evangelicais e fundamentalistas (1980: 140). Segundo Stoll, o que diferenciava entre si essas subdivisões era uma pos-tura menos sectária adotada pelas "evangelicais", em relação a outras doutrinas; enquanto as fundamentalistas rejeitavam e ridicularizavam qualquer doutrina religiosa diferente da sua. No entanto a postura dos "evangelicais" terminou por prevalecer e: "rather than excommunicate each other in doctrinal squabbles, they agreed to offer salvation to whoever would listen. By appealing to imperilled Gospel Truth, fundamentalist entrepreneurs marshelled the followings which now seem the dominant force in North American Protestantism". (Stoll, 1982: 3)

24. Não é de hoje a analogia entre missionários e xamãs. Um clássico exemplo disso é o caso dos históricos tupinambás. Contatados pelos missionários jesuítas em meados do século XVI, eles teriam relacionado os jesuítas aos seus caraís ou haraiba, honrando-os com esse título e considerando-os, por conta da "superiori-dade técnica dos brancos", como ainda mais poderosos que essa sorte de presti-giosos xamãs ou "profetas". (Clastres, 1978: 55)

Page 459: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

25. Termo ewe para designar o diabo.

26. Não é de se estranhar que uma sociedade com uma história de guerras e um arsenal de mitos bélicos como a dos palikures não tivesse uma atração especial pela parte guerreira da cosmologia cristã. Um exemplo disso pode ser sentido em relação às sessões de cinema realizadas na igreja, onde o filme com preferência absoluta é o que trata da história de Davi e Golias, por conta da luta travada entre eles; nesse momento a igreja entra em convulsão com os gritos da torcida pelo "pequeno Davi".

27. Como pode ser visto no relato sobre a história dos eventos da conversão (supra: 13).

28. A IEAD entra no Urukauá cerca de dois anos após o evento da conversão. Para um relato detalhado sobre como a IEAD se instalou entre os palikure, cf. Capiberibe, 2001: 162-6.

29. Desde a década de 1980, os palikur do Urukauá empreendem cruzadas evan-gelizadoras entre seus vizinhos indígenas. Seu primeiro feito foi introduzir o Evangelho entre os palikur residentes na Guiana Francesa e levar a IEAD para as aldeias de Caiena e Saint Georges, onde passaram a disputar os fiéis com a Igreja Adventista do Sétimo Dia (iASD) (Passes, 1998). Atualmente, estão levando sua missão aos karipuna católicos da aldeia Santa Isabel e apoiam o trabalho da Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB) entre os galibi-marworno.

30. Essas escrituras, junto com Marcos e Mateus, formam os chamados evan-gelhos sinóticos, que abrem o Novo Testamento, e com o quarto evangelho, o de São João, formam os "livros canônicos que narram a Boa Nova [sentido do termo "Evangelho"] que Jesus Cristo veio trazer" (Bíblia, 1993: 1827). E com-preensível que sejam estes os primeiros livros a serem traduzidos pelos missio-nários evangélicos. Assim ocorreu entre os palikur, sendo o evangelho de Marcos, o mais curto, o primeiro a ser traduzido com a ajuda de Paulo Orlando. (Diário, 1965-77)

31. Esse argumento é desenvolvido de modo mais detalhado em Capiberibe (2004).

32. Porém, a conexão entre o transe pentecostal e o xamânico não é condição para que um transe pentecostal se instale em uma sociedade não-ocidental. Joel Robbins (2004: 131), estudando o processo de conversão ao cristianismo entre os Urapmin, povo que vive no oeste das terras altas da Papua-Nova Guiné, mostra um caso em que o revivalismo — que se apresenta na forma de possessão, cura, sonhos, visões proféticas, falar em línguas e outras formas de "milagres" — se ins-tala em uma cultura sem tradição de possessão.

Page 460: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

9. A cultura como um caminho para as almas

1. Meruri é uma das onze aldeias bororo que se distribuem entre seis Terras Indígenas (T.I.) demarcadas em áreas descontínuas no estado de Mato Grosso. Hoje em uma área estimada em um trezentos avos do território ocupado em épo-cas passadas, os índios bororo se estendiam, a oeste, até a Bolívia (onde recente-mente equipe salesiana estabeleceu contato com moradores remanescentes); ao centro-sul de Goiás, ao leste; às margens da região dos formadores do rio Xingu, ao norte; e, ao sul, até a região do rio Miranda (Ribeiro, 1970). Segundo dados do Instituto Sócio-ambiental, a T.I. de Meruri (com 82.031 hectares, onde estão situadas as aldeias de Meruri e Garças), Perigara, SangradouroA/òlta Grande e Tadarimana estão registradas e homologadas. A T.I. de Jarudori, apesar de ter sido reservada à população indígena pelo Serviço de Proteção ao índio (SPl), foi pro-gressivamente invadida, a ponto de ter hoje em seu território uma cidade, proces-so que culminou com a expulsão dos bororos da região e a dispersão de sua popu-lação entre as aldeias. A T.I. Teresa Cristina está sob júdice, por sua delimitação ter sido abolida por decreto presidencial. Uma multiplicidade geográfica e ecoló-gica que se sobrepõe a diferentes histórias de contato com as frentes colonização branca, seja por ação missionária, intervenção estatal via SPI ou particulares, com-põe o universo bororo. Para um balanço histórico geral, ver A duras penas — Um histórico das relações entre índios hororo e "civilizados" no Mato Grosso FFLCH, USP, 1990, de Renate Brigitte Viertler, ou Os hororo na história do Centro-Oeste, do salesiano Mario Bordignon. E importante frisarmos que este texto se refere a um microcosmo desse universo que é Meruri, que, por contingências históricas, apre-senta uma série de configurações que a distinguem de outras aldeias. Para um balan-ço sobre a organização social do grupo, ver também, de Brigitte Viertler Renate, Aroe jAro: implicações adaptativas das crenças e práticas funerárias dos Bororo do Brasil Centra", sua tese de livre-docência defendida, em 1982, na USP, e sua tese de dou-torado As aldeias hororo: alguns aspectos de sua organização social, de 1973. Entre os autores estrangeiros, encontramos a melhor síntese em J. C. Crocker. Em portu-guês, vale a consulta de "Reciprocidade e hierarquia entre os Bororo Orientais". In: Schaden, Egon. Leituras de etnologia brasileira , 1976. Para uma história da formação da missão entre os bororo em Mato Grosso focado na região de Meruri, ver Os índios Bororo e os salesianos nas missões dos Tachos, de Maria Augusta de Castilho.

2. Processos documentados pela etnologia. Ver, por exemplo, o trabalho de Terence Turner sobre os kayapó e a formação de uma percepção nativa de socie-dade "como um produto da ação humana no tempo histórico"; a análise dos dis-cursos "ambientalistas" yanomami realizada por Bruce Albert também nos infor-ma sobre as contemporâneas estratégias político-simbólicas nativas. Para além das fronteiras nacionais, Marshall Sahlins, usando trabalhos de autores como David Pearson, Kay Warren, Jonh Watanabe e Jean Jackson, entre outros,

D I. I S N A A L D E I A 5 2 9

Page 461: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

demonstra que o fenômeno segue em escala mundial. Aproximando-se mais do contexto que será explorado neste texto, o trabalho de Caroline Graille ("Patri-moine et Identité Kanak en Nouvelle-Calédonie") nos possibilita interessante diálogo quando pensamos os papéis de instituições culturais no contexto de for-matação de uma luta política etnicitária frente a um Estado nacional colonial. Ainda na chave de patrimônios étnicos e políticas culturais, Anath Ariel de Vidas nos oferece a possibilidade de pensarmos os desafios da construção do que seria uma sociedade pluricultural no contexto mexicano.

3. Paulo Meriecureu é alternativa gráfica para o nome da liderança encontrada ao longo da pesquisa. Optamos pela primeira forma, a mesma que a organização indígena utiliza em documentos públicos.

4. O projeto foi habilitado pela Lei Rouanet/Minc, Pronac nü 041477 e conta com o apoio institucional de organizações como UNESCO, FAO e Iphan.

5. Para melhor contextualização do termo, ver "Utopias missionárias na América", de Paula Montero.

6. Sahlins, Marshall. "O pessimismo sentimental' e a experiência etnográfica. Por que a cultura não é um objeto em vias de extinção". Revista Mana, 3, 1997.

7. O padre e missionário Rodolfo Lunkenbein foi assassinado em Meruri em 1976, em decorrência dos conflitos fundiários na região. Interessante notar o constante diálogo católico entre mito e história. A morte do missionário alemão tornou-se marco da congregação em relação ao seu posicionamento indigenista. Contando com a pressão exercida pela embaixada alemã no país, o incidente aca-bou por acelerar o processo de demarcação de terra e a expulsão efetiva de bran-cos do território indígena. Pe. Rodolfo tornou-se o mártir de Meruri, aquele que deu a vida pela "salvação" dos bororo. Fotografias do religioso podem ser encon-tradas em diversas casas da aldeia e a sua importância é central na memória dos missionários em campo em Mato Grosso. Sobre o incidente, ver publicações sale-sianas. Obra de Ochoa, por exemplo.

8. Simão Bororo foi morto durante o mesmo episódio que vitimou pe. Rodolfo em 1976. Ambos foram fatalmente feridos diante do pátio central da missão, local onde está erguido um cruzeiro que se tornou para a comunidade católica do Meruri a lembrança do martírio humano e divino. Importante frisar a simbologia institucional: o nome de Simão na biblioteca remete ao fato de dezoito bororos terem entrado na universidade no mesmo ano da criação do centro, lembra Aivone.

9. Koge Ekureu foi o nome bororo dado ao pe. Rodolfo Lunkenbein, quando ele foi introduzido ritualmente como um membro do grupo. Independentemente da interpretação dada pelos nativos para esse evento (trata-se de investigar), os mis-sionários tomam o fato como um símbolo de uma aliança transcultural.

Page 462: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

10. Tais exemplares integram o acervo do centro, que possui um valiosíssimo con-junto de fotografias e imagens gravadas em vídeo.

11. A tradução grosseira em seqüência seria: espécies de trançado de palha, peças tecidas em algodão, suportes de palha e diademas de penas de arara.

12. A coleção é composta por exemplares de peças conhecidas como aigo buregi, baragara, powari mori, bokodorí inogi, ae, ba, baragara orogu, aâugo ilui. O conjun-to está associado ao último rito do ciclo funerário.

13. Brandão, Aivone Carvalho. O museu na aldeia: comunicação e transcultura-lismo :— O Museu Missionário Etnológico Colle Don Bosco e a aldeia bororo de Meruri em diálogo. PUC-SP. São Paulo. 2003.

14 Aivone é docente da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), instituição salesiana em Campo Grande (MS). É também consultora junto à Procuradoria Italiana das Missões Salesianas e trabalha como etnóloga do Museu Bom Bosco, de Campo Grande, onde coordena o Núcleo de Pesquisa em Etno-Comunicação. Ainda no museu, trabalha na transferência da instituição para sua nova sede con-comitante com a sua reformulação museológica e museográfica.

15. David, Aivone Carvalho Brandão. Tempo de aroe: simbolismo e narratividade no ritual funerário bororo. São Paulo: PUC, 1994.

16 "Quando eu estava na Itália o Darcy morreu. E aí eu fiz um pacto com ele. 'Olha, nós vamos lá [Meruri]! E até hoje nos meus momentos de apuro eu chamo por ele." Trecho de entrevista gravada em fevereiro de 2004.

17. Tal complexo, que conta ainda com prédios como a Basílica de Bom Bosco, pode ser considerado como o principal ponto geográfico da mística salesiana. Esse espaço foi o local onde nasceu e viveu são João Bosco, o fundador da con-gregação religiosa. Nos discursos dos salesianos, a referência a tal casa é recor-rente.

18. Brandão, Aivone Carvalho. Trecho extraído da tese O museu na aldeia: comu-nicação e transculturalismo... (2003: 27).

19. Entrevista gravada com Aivone Carvalho de Brandão, fevereiro de 2004.

20. Brandão, Aivone Carvalho. O museu na aldeia: comunicação e transculturalis-mo... (2003: 28).

21 "Este fato só foi possível através de um envolvimento carregado de significa-ção, tanto para os índios quanto para mim que fui inserida ritualmente na socie-dade como mulher bororo pertencente à metade dos Ecerae no clã dos Bokodori, com o nome de Kogebo Jokiudo (Rio de Peixe Dourado)", conta em nota de roda-pé na página 40 da sua tese de doutorado.

22. Idem (2003: 40).

23. Idem (2003: 40).

Page 463: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

24. Idem (2003: 41).

25. A leitura dos Boletins Salesianos, publicação da Congregação editado no Brasil a partir de 1902, fornece ótimas pistas para uma investigação histórica da mencio-nada relação entre ciência e religião. Acompanhar a acirrada polêmica dos religio-sos com um positivismo ateísta no início do século XX nos dá excelentes chaves para situarmos a produção científica salesiana dentro de sua mística salvacionista. Cabe lembrar também os debates travados na imprensa na passagem do século XIX para o XX sobre a adaptabilidade da Congregação frente à modernidade. Contando em seus quadros com homens habilitados nos saberes técnicos e científicos, os salesianos constituíram-se, para defensores da época, como as provas vivas da não-incompatibilidade entre fé e ciência. Passados cerca de cem anos, a relação se expressa em novas configurações: a 56a Reunião Anual da SBPC, por exemplo, rea-lizada em julho de 2004, na Universidade Federal de Mato Grosso, contou com a presença da Congregação, por meio do Museu Dom Bosco. A instituição levou ao evento científico exposição em homenagem a MS Jorge Bombled, salesiano, pro-fessor honoris causa da UFMT, metereologista e naturalista. O tema da mostra: "A contribuição salesiana para a ciência e para o ensino". Ainda sobre a interface entre os saberes religiosos e científicos para a constituição da trajetória salesiana no país, ver Os bororo na etnografia salesiana, de Paula Montero (mimeo).

26. Padre Gonçalo Ochoa Camargo, missionário salesiano residente em Meruri há mais de quatro décadas. Tem entre as suas principais atividades o laborioso trabalho de registro de cantos e mitos bororo. Entre as obras publicadas, ver Meruri na visão de um ancião bororo — Memórias de Frederico Coqueiro. Campo Grande Editora UCDB, 2001, e Processo evolutivo da pessoa bororo. Editora UCDB, 2001. Preparava em janeiro de 2004 uma coletânea de cantos em livro e CD.

27. Entrevista gravada com Aivone Carvalho de Brandão, fevereiro de 2004.

28. Contexto examinado nos artigos de José Maurício P. A. Arruti, Marcos Rufino e Melvina Afra Mendes Araújo.

29. Para um balanço sobre a visão do contato de Darcy Ribeiro, ver Os índios e a Civilização: a integração das populações no Brasil Moderno.

30. Referência ao padre Rodolfo Lunkenbein, assassinado em Meruri em 1976, em decorrência dos conflitos fundiários na região.

31. Enrevista gravada em fevereiro de 2004.

3 2 . 0 conceito de Homo religiosus, por exemplo, que acaba por estabelecer a reli-gião como uma naturalidade estrutural humana, é central para a tese. Entre as obras de Eliade de maior destaque para a argumentação da autora, estão Mito e realidade, Mito do eterno retorno e O sagrado e o profano.

33. A Escola Indígena do Meruri, até a redação final deste texto, estava sob a res-ponsabilidade da missão.

Page 464: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

34. Interessante registrar a forma de exposição dos objetos do Centro Cultural salesiano, agrupados segundo as primazias clânicas do grupo; segundo Aivone, uma sugestão do ancião Antônio Kanajó havia sido feita anos antes em São Paulo quando o mesmo Kanajó rejeitou a idéia de exibir no Núcleo de História Indígena e do Indigenismo da USP das peças desarticuladas de sua estrutura social clânica.

35. As primeiras oficinas que geraram o acervo do Centro Cultural "Pe. Rodolfo Lubenkein" foram detalhadamente descritas na tese de doutoramento de Aivone. Para uma análise detida sobre o aprofundamento dessas práticas como também o desenvolvimento de sua conceituação a partir da realização de uma segunda sessão de oficinas para exposição em Gênova ver "Deus e o Bope na Terra do Sol", dissertação de mestrado, FFLCH-USP, 2005. Vale frisar aqui o amadureci-mento da proposta de Aivone de estimular a criação de uma instituição capaz não apenas da conservação de peças, mas de suas técnicas de produção inserindo-as em novos contextos sociais.

36. Albisetti, C. e Venturelli, A. J. A Enciclopédia Bororo. Vv. I, II, III e IV. Campo Grande. Editora UCDB, 1962, 1969, 1976 e 2003.

37. Pesquisadores que tiveram a cultura bororo como foco de suas atenções foram convidados a doar cópias dos seus trabalhos ou "restituir" peças para aju-darem a fortalecer o acervo do recém-inaugurado centro de cultura.

38. Das famílias nucleares que compõem o núcleo inicial da nova aldeia, cinco homens são do clã baadojeba, duas mulheres do clã apiborege, uma do iwagudo, uma do baadojeba e uma é a esposa rikbaktsa de Paulo Meriecureu que será introduzida, segundo o líder, no clã aroroe. Fora esse núcleo, que garante a pre-sença de quatro dos oitos clãs bororo, o projeto conta com adesão de solteiros que serão distribuídos, segundo Paulo em entrevista gravada em 2005, pelas casas.

39. As associações e organizações indígenas como o Ideti (que não devem ser confundidas com organizações indigenistas) surgiram no Brasil a partir da déca-da de 1980. Com a Constituição de 1988, o numero de Ongs indígenas cresceu, pois a Carta possibilitou que organizações dessa natureza passassem a se consti-tuir como pessoas jurídicas, formando um canal institucional de representação política.

40. Endereço eletrônico: http://www.ideti.org.br.

41. Diretoria do Ideti em agosto de 2004, segundo site: Presidente: Jurandir Siridiwê (xavante); Vice-presidente: Leopardo Sales (kaxinawá); Secretário: Pedro Fernandes (guarani); Diretor Financeiro: Erliê Pedro Lacerda (krenak); Diretor de Relações Públicas: Paulo Meriecureu (bororo).

42. Interessante perceber que o locus privilegiado onde a simbologia bororo se projeta no espaço volta a operar, mas em um contexto marcado por uma objetiva-ção no qual os atores procuram materializar no real algo que só existia como uma representação desse real.

Page 465: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

43. Endereço eletrônico: http://www.cultura.gov.br/corpo.php.

44. Ver reportagem publicada em O Estado de S. Paulo, Caderno 2, no dia 24 de abril de 2004. "Eles já foram milhares, mas hoje são apenas 1.200. Vivem em casas de alvenaria, aos moldes daquelas do antigo BNH, assistem a novelas das 8 e na sua associação cultural ouvem num aparelho de som de última geração stan-dards de música americana tocados em flautas andinas. Cerca de 60% dos indi-víduos adultos são alcoólatras. Apesar de tudo isso, os índios bororos foram capa-zes de detectar o problema de aculturação do seu povo e formular uma solução inédita: a construção de uma aldeia-modelo igual aquelas em que viviam há 500 anos."

45. Paulo nasceu no dia 30 de novembro de 1961.

46. Segundo tradução de Paulo Meriecureu: Meri Ore, filhos do sol.

47. Gallois, Dominique. "Nossas falas duras". In Pacificando o branco. São Paulo, 2002.

48 Entrevista com Paulo Meriecureu, 22 de janeiro de 2004.

49. Trecho de reportagem publicada em abril de 2004 pelo Diário de Cuiabá é ilustrativo: "A proposta de auto-sustentabilidade quer resgatar a piscicultura, cria-ção de pequenos animais domésticos, apicultura e roça comunitária com introdu-ção de sementes originais como variedades de milho e mandicoca". O jornal trata de um resgate de certos conceitos e algumas formas de produção econômicas exógenas à organização econômica nativa tradicional.

50. Parafraseando Claude Lévi-Strauss em "Raça e história", in Antropologia Estrutural dois. Rio de Janeiro. Tempo Brasileiro, 1993.

51. Terminologia adotada genericamente pelos bororo para designar a pessoa que assume função de representante da aldeia. Em outras palavras, desempenha o papel de intermediação com a sociedade envolvente. Em Meruri, os caciques são eleitos por eleição direta. Uma liderança na qual a chefia política é claramente dissociada da chefia cerimonial.

52. Trecho extraído de entrevista de janeiro de 2004.

53. Albisetti, César e Venturelli, Ângelo. A Enciclopédia Bororo. Campo Grande. 1962, vol. I; 1969, vol. II. Os livros foram presenteados pelo Centro de Cultura "Pe. Rodolfo Lunkenbein" como forma de sinalizar cordialidade entre os dois pontos de rede merurense.

54. Grupo indígena do noroeste do Mato-Grosso, pertencente ao tronco macro-jê.

55. Na listagem de Aivone ela é classificada como baadojeba.

56. .Além de pessoas associadas aos vínculos matrimoniais em questão, foram registradas adesões independentes. E o caso do jovem Gilson, que participa das atividades culturais de apresentação de cantos e danças tradicionais organizadas

Page 466: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

por Paulo por meio da associação Pemo. Ele nos conta que, apesar de seus pais não quererem abandonar a aldeia, eles não interferem em sua decisão de viver conforme os antigos viviam. "Estou vendo como está sendo feito esse projeto. Acho que é um trabalho muito bom, porque eu sou jovem e tenho que aprender. E isso não é só pra mim. E pros outros jovens"; trecho de entrevista realizada em fevereiro de 2005.

57. Nos referimos especificamente a autores como Alcida Rita Ramos, Bruce Albert, Dominique T. Gallois e Terence Turner.

58. Gallois, Dominique. "Nossas falas duras". In Pacificando o branco. São Paulo, 2002. A autora nos indica a leitura de uma série de depoimentos transcritos por Alcida Rita Ramos ("Vozes Indígenas: o contato vivido e contado". Anuário Antropológico/87, 1990), que nos serve de ilustração do fenômeno.

59. Grupo indígena do noroeste do Mato-Grosso, pertencente ao tronco macro-jê.

60. Depoimento transcrito em site do MinC.

61. Não existem mais xamãs em Meruri.

62. Castro, Eduardo Viveiros de. "Etnologia brasileira". In Micelli, S. (org.) O que ler na ciência social brasileira (1970-1995). São Paulo: Sumaré, Anpocs, Capes, 2002.

63. Essa é a forma como seu nome é registrado no site do MinC. Ou seja, a fusão de Paulo Meriecureu e Paulo Bororo.

64. Montero, Paula. índios e missionaries no Brasil: Para uma teoria da mediação cultural, mimeo, 2004.

65. Sobre o assunto ver Os bororo na etnografia salesiana, de Paula Montero.

66. Sahlins, Marshall. "O pessimismo sentimental' e a experiência etnográfica. Por que a cultura não é um objeto em vias de extinção". Revista Mana, 3, 1997.

67. Rufino, Marcos. O código da cultura — o Cimi no debate da inculturação, mimeo, 2004.

68. Referência à atual invasão de terras promovida pelos xavantes, vizinhos da Reserva de São Marcos, que ultrapassam os limites entre as reservas com seus roçados e grandes queimadas.

69. Entrevista, janeiro de 2004.

70. Formulação obtida em conversa junto ao Ideti.

71. Sol é a tradução de Meri, personagem central na mitologia bororo. Irmão mais velho e mais forte de Ari, no tempo mítico andavam na terra em forma de gente. Personagem em eterna cobiça daquilo que não possui, sempre propõe troca a par-tir de seus objetos malfeitos e as impõe por meio de sua força. Como retribuição, Meri transforma o antigo possuidor em animal que tem uma característica que

Page 467: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

substitui a necessidade do artefato. Exemplo: transforma dono do arco em Kadagare (martim-pescador).

72. Terence Turner nos chama atenção para a centralidade que tecnologias de registro e documentação como fotografia e vídeo assumem para comunidades indígenas. Tecnologias auto-objetivantes vitais para grupos imersos em contexto de autoconscientização cultural.

73. Trecho da tese O museu na aldeia..., de Aivone Carvalho Brandão.

74. "Vendo-os tão entusiasmados, fiquei comovido e exclamei com força: se real-mente querei que o demônio não continue a reinar no meio de vós, ide buscar as machadas e a picareta e deitai aquele centro de todo o mal e pegai-lhe fogo"; tre-cho do relato divulgado no Boletim Salesiano, Ano XIV, vol. VI, n e 2, março/abril, 1915.

75. Sobre os aspectos funcionais do funeral bororo, ver, por exemplo, Aroe faro — Implicações adaptativas das crenças e práticas funerárias dos bororo do Brasil Central, tese de livre-docência de Renate Brigitte Viertler.

10. A produção da alteridade: o Toré e as conversões missionárias e indígenas

1. Concepção que serve de proposição central a esta coletânea, exposta no texto de Montero (neste volume), à qual devemos acrescentar, desde já, uma segunda, da mesma autora, que afirma a ação missionária contemporânea marcada, no plano da produção simbólica, pela substituição de uma gramática do religioso por uma gramática da cultura, na qual o código da salvação deixa de estar voltado ao espiritual (salvação da alma) para voltar-se ao cultural (resgate das tradições).

2. Esse contexto foi largamente trabalhado por Paula Monteiro (1994) e nesta coletânea é explorado mais diretamente na contribuição de Marcos Rufino.

3. Existem informações sobre demandas de um número indeterminado de grupos que ainda não foram devidamente registradas pela Funai, a maior parte delas no estado do Ceará, onde uma lista recente, divulgada pelo próprio movimento indí-gena, aponta 23 grupos, dos quais apenas quatro são oficialmente reconhecidos e seis têm processo de reconhecimento em curso no órgão.

4. Tais efeitos se manifestam também por meio da criação de novas entidades indi-genistas não governamentais e não confessionais, como a Associação de Apoio ao índio (Anaí) e a Comissão Pró-Indio (CPL), respectivamente nos anos de 1977 e 1978," como entidades de representação nacional, operando por meio de escritó-rios autônomos em vários estados. (Santos, 1989: 33-49)

5. De fato, o que ocorre é o xamã despertar de um sonho com o Encantado e des-cobrir em sua casa (em geral ao lado de sua cama) uma grande semente na qual

Page 468: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

ele reconhece a mesma imagem do sonho. Essa semente é depositada em um vaso de barro e enterrada no terreiro de seu exercício ritual, em posição só conhe-cida por ele (outro segredo).

6. Essa descrição é desenvolvida mais extensamente em outro local. (Arruti, 1999 — 2a ed. 2004)

7. De fato, em outro local (Arruti, 2002) foi possível descrever com detalhe o tra-balho prévio de um pequeno grupo de missionários sem o qual não seria possível compreender tal conversão pessoal e o surgimento da "Igreja dos Pobres" de Propriá. Um grupo de homens e mulheres cuja ligação com d. José B. de Castro era ambígua, oscilando entre a filiação mítica e a crítica política. Com isso há uma certa inversão de perspectivas: a implantação antecipada, autônoma e quase invisível de uma "Igreja dos Pobres" na base da hierarquia diocesana seria a sus-tentação daquilo que depois se configurou como uma conversão pessoal do bispo, e não o inverso, como prega o mito. O encontro entre o homem-santo e a palavra do povo teria surgido, na verdade, mediado por uma série de percursos biográfi-cos e teológicos marginais, que encontram na diocese de Propriá um ponto de fuga e conexão.

8. Vale notar que entre os missionários da diocese, aos quais nos referimos na nota anterior, existiam aqueles que, além de terem tido uma formação básica de classe média e terem passado por seminários importantes — em especial o Iter (Instituto de Teologia de Recife) — completavam sua formação, a esaa época, nos encontros nacionais e de formação teórica da Igreja católica capitaneada por d. Pedro Casaldáglia. Esses missionários, além do trabalho junto às comunidades, realizaram também um trabalho de formação teórica junto ao bispo e, algumas vezes, ajudaram a escrever seus discursos.

9. Cf. registros da imprensa organizados em Delia Cava (1985), que ajudam a documentar a escalada de violência e de ameaças da parte das elites locais a que a diocese de Propriá passaria a estar submetida, assim como teria contra si o novo arcebispo de Aracaju, d. Luciano Duarte, que várias vezes acusaria ou corrobora-ria as acusações de comunismo dirigidas a d. José.

10. Ao lado do que envolvia as famílias de ex-escravos da fazenda de Santana dos Frades.

11. A retomada do tema da linguagem cultural foi fundamental nessa reviravolta metodológica da missão na região sertaneja, mas, conforme chamam atenção Agnolin e Pompa (nesta coletânea), pensar a construção de uma linguagem de conversão com base nas práticas cotidianas e rituais (culturais) do outro sempre foi uma marca da prática missionária, desde sua formulação jesuítica. Há aqui, portanto, uma outra hipótese de trabalho a se desenvolver: a de uma formação discursiva de longo prazo e relativamente autônoma que, mais recentemente, contribuiria na configuração de discursos e práticas não missionárias, como a

Page 469: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)
Page 470: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

B I B L I O G R A F I A

Introdução

ALBERT, Bruce & RAMOS (org.). Pacificando o branco. Cosmologias do contato no Norte-Amazônico. São Paulo: Ed. Unesp, 2000.

BASTIDE, Roger. Estudos afro-brasileiros. São Paulo: Perspectiva, 1973.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. São Paulo: Difel, 1984.

Pierre Bourdieu. São Paulo: Atica, 1983.

Choses dites. Paris: Minuit, 1987.

Le sens pratique. Paris: Minuit, 1980.

CARNEIRO DA CUNHA, Manuela (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

GIANNOTTI, José A . "Benta ilusão". Novos estudos. São Paulo: Cebrap, nü 69, julho de 2004.

GLOCK, Hans-Johann. Dicionário Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

HAUBERT, Maxime. índios e jesuítas no tempo das missões. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

HEFNER, Robert W. (org.). Conversion to Christianity. Historical and anthropologi-cal perspectives on a great transformation. Un. of Califórnia Press, 1993.

PINTO, Louis. Pierre Bourdieu e a teoria do mundo social. São Paulo: FGV, 2000.

POMPA, Cristina. Religião como tradução. Missionários, tupi e tapuia no Brasil colo-nial. Edusc/Anpocs, 2003.

Page 471: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

SOUZA LIMA, A. C. "Indigenismo no Brasil: migração e reapropriação de um saber administrativo", in: DE ^ESTOILE, Benoit (org.) Antropologia Impérios e Estados nacionais. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Faperj, 2002.

VERNANT, J.-R Entre mito & política. São Paulo: Edusp, 2001.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas, trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Abril Cultural, 1977.

1. índios e missionários no Brasil: para uma teoria de mediação cultural

ALBERT, Bruce. Pacificando o branco. São Paulo: Editora da Unesp, 2002.

APPADURAI, Arjun. "Soberania sem territorialidade". Novos estudos. São Paulo: Cebrap, n2 49, 1997.

BARTH, Fredrick. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000.

"Grupos étnicos e suas fronteiras". In: Teorias da etnicidade. São Paulo: Editora da Unesp, 1998.

BOURDIEU, Pierre. "Esboço de uma teoria da prática". In: ORTIZ, R. (org.). Pierre Bourdieu. São Paulo: Atica, 1983.

O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989.

CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Antropologia do Brasil Mito, história e etnicidade. São Paulo: Brasiliense, 1987.

COMAROFF, Jean & John. Of revelation and revolution. Christianity; cololianism and consciouness in South África. Chicago: Chicago Un. Press, 1991.

_. Ethnography & the historical imagination. Westview Press, 1992.

CLIFFORD, James. Dilemas de la cultura. Barcelona: Gedisa editorial, 1995.

DIRLICK, Arif. "A aura pós-colonial na era do capitalismo global". Novos estudos. São Paulo: Cebrap, n2 49, 1997.

GASBARRO, Nicola. "Missioni: La civiltá cristiana in azione". Mimeo., 2003.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1976 (1973).

Local knowledge. Further essays in interpretive Anthropolgy. Nova York: Basic Books, 1983.

GIDDENS, Anthony. La teoria social hoy. México: Alianza, 1991.

G LU C KM AN, Max. "A organização social na Zululandia moderna, 1931-1932". In: A. ZALUAR (org.). Desvendando máscaras sociais. São Paulo: Francisco Alves, 1975.

GRENAND, Pierre e Françoise. "Em busca da aliança impossível. Os waiãpi e seus brancos". In: ALBERT, BRUCE. Pacificando o branco. São Paulo: Editora da Unesp, 2002.

Page 472: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

HALL, Stuart. Da diáspora. Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2 0 0 3 .

HOWARD, Catherine V. "A domesticação das mercadorias. Estratégias waiwai". In: ALBERT, B. Pacificando os brancos. São Paulo: Editora da Unesp, 2002.

KUPER, Adam. South África and the anthropologist. Londres 8c Nova York: Routledge 8c Kegan Paul, 1987.

MAZZOLENI, Gilberto. O planeta cultural: para uma antropologia histórica. São Paulo: Edusp, 1992.

MONTERO, Paula. "Questões para a etnografia em uma sociedade mundial". Novos estudos. São Paulo: Cebrap, nfi 36, julho, 1996.

RABINOW, Paul. Writing culture: the poetics and politics of ethnografy. Berkeley: Un. of Califórnia Press, 1986.

SAHLlNS,.Marshal. "Cosmologias do capitalismo: o setor trans-Pacífico do sistema mundial". Conferência, XVI Reunião da ABA, 1988.

Ilhas de história. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

"O pessimismo sentimental' e a experiência etnográfica: por que a cul-tura não é um objeto' em via de extinção (parte I e li)." Mana 3(1) e 3(2), 1997.

Esperando Foucault.... (ainda). São Paulo: Cosac8cNaify, 2004.

STOLER, Ann Laura. "Rethinking colonial categories: European communities and the boundaries of rules". In: DIRKS. Colonialism and culture. The University of Michigan Press, 1995.

Capitalism and confrontation in Sumatras Plantation Belt, 1870-1979. New Heaven: Yale Un. Press, 1985.

VELSEN, J. van. "A análise situacional e o método de estudo de caso detalhado". In: B. BIANCO, Antropologia das sociedades contemporâneas. São Paulo: Global, 1981.

2. Missões: a civilização cristã em ação

Fontes

ACOSTA, José de. Historia natural y moral de Ias índias. Sevilha, 1590.

BRESSANI, Francesco Giuseppe. Relation abregée de quelques missions des Pières de la Compagnie de fésus dans la Nouvelle France, traduit de 1'italien et augmen-té d'un avant-propos, de la biographie de Vauteur; et d'un gr and nombre de notes et de gravures, par le R. P. F. MARTIN s.j., em Les Jésuites-Martyrs du Canadá. Montreal: Compagnie d'imprimerie Canadienne, 1877.

Page 473: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

RAGUENEAU, Paul, S.J. Relation de ce qui ses passé de plus remarquable en la mis-sion des Pères de la Compagnie de Jésus aux Hurons, pais de la Nouvelle-France, depuis le mois de may de Vannée 1645 jusquau mois de mai deVannée 1646, in Monumenta Novaz Francise. (MNF), vol. VI, 1992

THWAITES, Reuben G. (org.). The Jesuit Relations andAllied Documents: Traveis and Explorations of Jesuit Missionaries in New France, 1610-1792, 73 vol., Cleveland (Ohio), 1896-1901; Lucien CAMPEAU s.j. (org.), Monumenta Novae Franciae (MNF), 9 vol., Québec e Roma, 1967-2003.

Estudos

AMSELLE, Jean-Loup. Logiques métisses. Anthropologie de 1'identité en Afrique et ailleurs. Paris: Payot, 1990.

AUGÉ, Marc, HERZLICH Claudine. Le sens du mal. Antropologie, histoire, sociologie de la maladie. Paris: Editions des archives contemporaines, 1983.

BERNAND, Carmen, GRUZINSKI, Serge. De 1'idolâtrie. Une archéologie des science religieuses. Paris: Seuil, 1988.

FEBVRE, Lucien. Le prohlème de 1'incroyance au XVI siècle. La religion de Rahelais. Paris: Albin Michel, 1968 (I a ed. 1942).

GASBARRO, Nicola. "Il linguaggio deiridolatria. Per una storia delle religioni cultu-ralmente soggettiva". Studi e Materiali di Storia delle Religioni, n.s. XX, 1/2, 1996.

La città delllslam e la città delia guerra, Milano, Giuffrè, 1991.

GRUZINSKI, Serge. La colonisation de Vimaginaire. Societés indigènes et occidenta-lisation dans le Mexique espagnol, XVI-XVIII siècle. Paris: Gallimard, 1988.

La pensée métisse. Paris: Fayard, 1999.

HABERMAS, Jürgen. Teorie des kommunikativen Handelns. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1981.

HUNTINGTON, Samuel P. The clash of civilizations and the remaking ofworld order. Nova York : Simon & Schuster, 1996.

JENNINGS, Francis. The invasion of America: Indians, colonialism, and the cant of conquest. Nova York: W. W. Norton, 1976.

Kl LAN I, Mondher. Linvention de 1'autre. Essais sur le discours anthropologique. Lausanne: Payot, 1994.

LATOUCHE, Serge. Loccidentalisation du monde. Essai sur la signification, la portée et les limites de luniformisation planétaire. Paris: La Découverte, 1989.

LATOURELLE René, S.J., François-Joseph Bressani, missionarie et umaniste. Montreal: Bellarmin, 1999.

Page 474: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

LAVENIA, Vincenzo. Ltnfamia e il perdono. Tributi, pene e confessione nella teolo-gia morale delia prima età moderna. Bolonia: II Mulino, 2004.

- LÉVI-STRAUSS, Claude. En relisant Montaigne, em Histoire de Linx, Paris, Plon, 1991.

LUZBETAK, Louis J. The church and cultures. New perspectives in missiological anthropology. Maryknoll: Orbis Books, 1988.

MELTZER, Josef (org.). America Pontifícia. Primi saeculi evangelizationis 1493-1592. Cidade do Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1991.

NAIPAUL, V. S.. Beyond belief: Islamic excursions among the converted peoples. Londres: Little, Brown, 1998.

PROSPERI, Adriano. Tribunali delia coscienza. Inquisitori, confessori, missio-nary.Turim: Einaudi, 1996.

REICHLER, Claude. "Littérature et anthropologie. De la représentation à 1'interaction dans une Relation de la Nouvelle-France au XVII siècle". L'Homme, 164, outubro/dezembro, 2002.

WOLF, Eric R. Europe and the people without history. Berkeley: University of Califórnia Press, 1982.

3. Para uma antropologia histórica

Fontes manuscritas

COCKLE, Jacques Carta ao P Geral Oliva, 20/11/1673. Arquivum Romanum Societatis Iesu (ARSI), Bras. 26, f. 32

NANTES, Bernard de — Relation de la Mission des Indiens Kariris di Brezil situés sur le grand fleuve du S. François du costé du Sud a 1 degrés de la ligne Equinotiale. Le 12 septembre 1702 por F. Bernard de Nantes, capucin predi-cateur missionaire apliqué. Biblioteca José Mindlin — São Paulo.

Sexennium Litterarum Brasilicarum ab anno 1651 usque ad 165 ARSI, Bras. 9, f. 17v.

Livros e artigos

AGNOLIN, Adone. "Jesuítas e Selvagens: o encontro catequético no século XVL". Revista de História (USP). São Paulo, v. 144, 2001, pp. 19-71.

BERNAND, Carmen e GRUZINSKI, Serge. De 1'idolatrie. Une archéologie des scien-ces religieuses. Paris: Seuil, 1988.

BRELICH, Ângelo. "Prolégomènes à une Histoire des Religions". In: PUECH, Henri-Charles (org.) Histoire des Religions, vol. I. Paris, 1970,

Page 475: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. "Da guerra das relíquias ao Quinto Império. Importação e exportação da história no Brasil". Noivos estudos. São Paulo: Cebrap, 1996, pp. 73-87.

CERTEAU, Michel de. Lecriture de Vhistoire. Paris: Gallimard, 1975.

CLASTRES, Hélène. La terre sans mal. Le prophétisme tupi-guarani. Paris: Seuil, 1975.

CLASTRES, Pierre. La société contre XEtat. Paris: Ed. de Minuit, 1974.

DABBEVILLE, Claude. História da Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas (1614). São Paulo-Belo Horizonte: Edusp-Itatiaia, 1975.

D'EVREUX, Yves, OFM. Viagem ao Norte do Brasil Trad. César Augusto Marques (1874). Rio de Janeiro, Livraria Leite Ribeiro, 1929.

EISENBERG, José. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno. Encontros culturais, aventuras teóricas. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2000.

FIRPO, Luigi (org.). Colombo — Vespucci — Verrazzano. Turim: Einaudi, 1965.

GASBARRO Nicola. "Religione e civiltà: F. Max Müller e E. B. Tylor". Storia, antro-pologia e scienze dei linguaggio, III, 2-3, 1988.

1992: "...apparve la terra". Milão:, Giuffré, 1992.

"II linguaggio delFidolatria". Studi e Materiali de Storia delle Religioni, vol. 62, 1997, pp. 189-221.

GEERTZ, Clifford. "A religião como sistema cultural". In idem: A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

GELLNER, Ernest. Antropologia e política. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

GUERREIRO, Fernão, S.J. Relação anual das coisas que fizeram os padres da Companhia de Jesus nas suas missões nos anos de 1600 a 1609. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1929.

KL LAN I, Mondher. Linvention de Vautre. Lausanne: Payot, 1994.

kuper, ADAM. Cultura: a visão dos antropólogos. Bauru: EDUSC, 2002.

LANTERNARI, Vittorio. Movimenti religiosi di liberta e di salvezza dei popoli oppres-si. Milão: Feltrinelli, 1960.

LATOUR, Bruno. Nous navons jamais été modernes. Essai danthropologie symétri-que. Paris: La Découverte, 1991.

LEITE, Serafim. Cartas dos primeiros jesuítas no Brasil (1538-1553). São Paulo: Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, 1954.

MAX MÜLLER, Frederich. Essay of comparative mythology. Oxford, 1856.

POMPA, Cristina. "Leituras e traduções: o padre Francisco Pinto na serra de Ibiapaba". Ilha Florianópolis, 1999, nfi 0, 1, 139-167.

Page 476: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

"Profetas e santidades selvagens: missionários e caraíbas no Brasil colo-nial". Revista Brasileira de História, v. 40, 21 (2001), 177-195.

Religião como tradução. Missionários, tupi e tapuia no Brasil colonial. Bauru: Edusc, 2003.

"O profetismo tupi-guarani. A construção de um objeto antropológico".

Revista de índias. Madri, 62, ne 220, 2004.

SABBATUCCI Dario. La prospettiva storico-religiosa. Milão: II Mulino, 1990.

SCHMIDT, Wilhelm. Der Ursprung der Gottesidee. Münster, 1926. SOUTO MAIOR, Pedro. "Fastos pernambucanos". Revista do Instituto Histórico

Geográfico Brasileiro, LXXVI, 1913.

THEVET, André. As singularidades da França Antártica (1557). Belo Horizonte: Itatiaia, 1978.

VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios. Catolicismo e rebeldia no Brasil Colonial São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

VASCONCELOS, Simão de. Crônica da Companhia de Jesus (1663). Petrópolis: Vozes, 1977.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac&Naify, 2002.

WRIGHT, Robin (org.). Transformando os deuses. Os múltiplos sentidos da conversão entre os índios do Brasil. Campinas: Unicamp, 1999.

4. Catequese e tradução. Gramática cultural, religiosa e lingüística do encontro catequético e ritual nos séculos XVI-XVII

Fontes documentais

ANCHIETA, José de, S. J. Arte de Grammatica da Lingoa mais vfada na cofta do Brafil. Feyta pelo padre Iofeph de Anchieta da Cõpanhia de IESV. Com licen-ça do Ordinário 8c do Prepofito geral da Companhia de IESV. Em Coimbra per Antonio de Mariz. 1595.

Diálogo da Fé. Texto tupi e português com introdução histórico-literária e notas do pe. Armando Cardoso, S. J., que inclui os textos fac-similares manuscritos classificados como APGSI N. 29 ms. 1730 e ARSI Opp. NN. 22 e sua cópia APGSI n. 33 ms. 1731. São Paulo: Loyola, 1988.

Doutrina Cristã — Tomo I: Catecismo brasílico. Com texto tupi e portu-guês. Introdução tradução e notas do Pe. Armando Cardoso, S. J. Incluindo o texto fac-similar (tupi) manuscrito classificado como APGSI N. 29 ms. 1730. São Paulo, Loyola, 1992(a).

Page 477: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Doutrina Cristã — Tomo II: Doutrina autografa e confessionário. Introdução histórico-literária, tradução e notas do Pe. Armando Cardoso, S.J. Incluindo o texto fac-similar manuscrito (em português) da Doutrina Autografa e texto (tupi) em ortografia moderna (traduzido). São Paulo, Loyola, 1992(b).

ARAÚJO, Antonio de, S.J. Catecismo na Lingoa Brasilica, no qval se contem a svmma da Doctrina Christã. Com tudo o que pertence ao Myfterios de noffafancta Fè & bõs cuftumes. Composto a modo de Diálogos por Padres Doctos, & bons lin-goas da Companhia de IESV. Agora nouamente concertado, ordenado, & acrefcentado pello Padre Antonio dAraujo Theologo 8c lingoa da mefma Companhia. Com as licenças neceffarias. Em Lisboa por Pedro Crasbeeck,

. ãno 1618. A cufta dos Padres do Brafil. Texto em reprodução fac-similar da Ia ed., com o título Catecismo na língua brasüica. Rio de Janeiro, Pontifícia Universidade Católica, 1952.

BETENDORF, João Felipe, S.J. Compêndio da Doutrina Christãa na Lingua Portugueza e Brasilica. Composto pelo P. João Filippe Betendorf, Antigo Missionário do Brasil. E Reimpresso de Ordem de S. Alteza Real o Príncipe Regente Nosso Senhor por Fr. José Mariano da Conceição Vellozo. Lisboa. M.DCCC. Na Offic. De Simão Thaddeo Ferreira.

LEITE, Serafim S.J. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa: Livraria Portugália — Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 10 vol., 1938-50.

MAMIANI, Luis. S.J. Catecismo Da Doutrina Christãa Na Lingua Brafilica Da Nação Kiriri. Composto Pelo P. Luis Vincencio Mamiani, Da Companhia de Jesus, Miffionario da Provincia do Brafil. Lisboa, Na Officina de Miguel Deslandes, Impreffor de Sua Mageftade. Com todas as licenças neceffarias. Anno de 1698. Citado na edição fac-similar. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1942.

MONTOYA Antônio Ruiz de. Tesoro de la lengua guarani [1639]. Madrid [edição fac-similar por Júlio Platzmann]. Leipzig, 1876. Prefácio .Viena/Paris, 1876.

Catecismo de la Lengva Gvarani, Compvesto por el Padre Antonio Ruyz de la Compania de Iesus. Dedicado a la purifsima Virgen Maria. Concebida fin mancha de pecado original Com Licencia. En Madrid, Por Diego Diaz de la Carrera, Ano M.DC.XXXX. Consultado na reedição "Publicada nuevamente sin alteracion alguna por Júlio Platzmann". Leipzig, B. G. Teubner. MDCCCLXXVI.

NANTES, Bernardo de. Katecismo Indico Da Lingva Kariris, Acrescentado de Varias Praticas Doutrinaes, & Moraes, Adaptadas ao Gênio, & Capacidade dos índios do Brafil, Pelo Padre Fr. Bernardo de Nantes, Capuchinho, Pregador, & Miffionario Apoftolico; Offerecido ao MuyAlto, e Muy Poderoso Rey de Portugal Dom Joaõ v, S. N. Que Deos Guarde. Lisboa, Na Officina de

Page 478: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Valentim da Costa Deslandes, Impreffor de Sua Mageftade. M.DCCIX. Com todas as licenças neceffarias. Que citaremos na edição fac-similar publica-da por Júlio Platzmann, Leipzig: B. G. Teubner, 1896.

NÓBREGA, Pe. Manuel da. Diálogo do Pe. Nóbrega sobre a conversão do gentio (1559). In: Manuel da Nóbrega, Cartas do Brasil, Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1988.

VIEIRA, Antonio. Visita, § 27, apud Serafim Leite S. J., História da Companhia de Jesus no Brasil Lisboa: Livraria Portugália - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 10 vol., 1938-50, vol. IV.

Sermões, Porto, 1959, vol. II.

Fontes impressas

AGOSTINHO, Santo. (Séc. v) De Catechizandis Rudibus. Citado segundo a edição italiana: tradução de G. Vigini. Milão: San Paolo ed., 1998.

Catechismo Tridentino. Catechismo ad Uso dei Parroci Pubblicato dal Papa S. Pio V per Decreto dei Concilio di Trento, que consultamos na mais recente tra-dução italiana do P. Tito S. Centi, O.P. Siena: Cantagalli, (ed. orig. de 1992) 3 a reimpressão 1996.

GARCIA, Gregorio. Origen de los indios dei Nuevo Mundo (1607).

GROTIUS, De Origine Gentium Americanarum (1642).

PEYRÈRE, Isaac de la. Praeadamitae (1655) .

Bibliografia

AGNOLIN, Adone. "A razão tênue' de Montaigne: introdução à nova tradução dos Ensaios de Montaigne". In: Michel de MONTAIGNE, Os Ensaios. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pp. XXI-XXXIII.

"Jesuítas e selvagens: o encontro catequético no século XVI". Revista de História da Universidade de São Paulo, nfí 144, lfi semestre de 2001, pp. 19-71.

O apetite da antropologia: o sabor antropofágico do saber antropológico. Alteridade e identidade no caso tupinambá. São Paulo: Humanitas, 2005.

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultu-ra nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Arquivo Nacional: Rio de Janeiro, 2003.

BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. Paris: Seuil, 1971. Trad. port.: São Paulo: Brasiliense, 1990.

CASTELNAU-LESTOILE. Charlotte de. Les ouvriers d'une vigne stérile: Les jésuites et la conversion des Indiens au Brésil — 1580-1620. Tese de Doutorado, defen-

Page 479: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

dida em janeiro de 1999, junto à Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris.

DAHER, Andréa. "Ecrire la langue indigène: la grammaire tupi et les catéchismes bilingües au Brésil (xvie. Siècle)". In: Mélanges de 1'École Française de Rome: Italie et Méditerranée. Roma: Mefrim, tome III — 1999 — 1.

DE CERTEAU, Michel. "Ethno-graphie. Loralité ou 1'espace de lautre: Léry". In: LÉcriture de Vhistoire. Paris: Gallimard, 1975; trad. port.: A escrita da histó-ria. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.

DUPRONT, Alphonse. Le Mythe de Croisade. Paris: Gallimard, 1997.

DELUMEAU, Jean. LAveu et le fardou: Les difficultés de la Confession (XlIIe.-XVIIÍe. siècle). Paris: Fayard, 1990.

ELIAS, Norbert. Üher den Prozess der Zivilisation. Basiléia, Haus zum Falken, 1939. Vol. 1. Trad. port.: O processo civilizador, Vol. 1: Uma história dos cos-tumes. Rio de Janeiro: Zahar ed., 1994.

ELLIOTT, John H. The old world and the new:; 1492-1650. Cambridge, 1970.

FERNANDES, Florestan. A organização social dos tupinambá. (Ia ed. 1948). São Paulo/Brasília: Huicitec/UnB, 1989.

A função social da guerra na sociedade tupinambá. São Paulo: Livraria Pioneira, (1952) 1970.

GARIN, Eugênio. Rinascite e Rivoluzioni: movimenti culturali dal XIVal XVIII seco-lo. Roma-Bari: Laterza, (1975) 1990.

GASBARRO, Nicola. 1492 ...e apparve la terra. Milão: Giuffré, 1992.

"II linguaggio deiridolatria: per una storia delle religioni culturalmente soggettiva". Studi e Materiali di Storia delle Religioni. Roma, vol. 62, n.s. XX, nfí 1/2, pp. 189-221, 1996.

GERBI, Antonello. O mundo novo: História de uma polêmica (1750-1900). São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

GOODY, Jack. La logique de lecriture. Paris, 1986.

GOTÔ, Souéo. "Les premières échanges de civilisation entre lextrême-orient et loccident dans les temps modernes". Revuede littérature comparée, VIII, 1928.

HANSEN, João Adolfo. "O nu e a luz: cartas jesuíticas do Brasil". Revista do Insti-tuto de Estudos Brasileiros, 38, 1995.

"Escrita da conversão: cartas jesuíticas do padre Manuel da Nóbrega e poesia tupi do padre José de Anchieta (século XVl)", comunicação apresen-tada ao Congresso Internacional da LASA, 1997.

KARNAL, Leandro. Teatro da Fé: representação religiosa no Brasil e no México do século XVL São Paulo: Hucitec, 1998.

Page 480: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

LESTRINGANT, Frank. "La littérature géographique sous le règne de Henri iv". In: Les lettres au temps d'Henri IV. Colloque dAgen-Nehac 1990. Pau, 1991.

MAZZOLENI, Gilberto. II pianeta culturale: per una antropologia storicamente fon-data. Roma, Bulzoni, 1986. Trad. port.: O planeta cultural: para uma antro-pologia histórica. São Paulo: Edusp, 1992.

MELIÀ, Bartomeu. La création d'un langage chrétien dans les Réductions des Guarani au Paraguay. 2 vols. Université de Strasbourg. 1969.

Elogio de la lengua Guarani: Contextos para una educación bilingüe en el Paraguay. Asunción dei Paraguay, Centro de Estúdios Paraguayos "Antonio Guasch", 1995.

MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

. Traduzindo tradições: gramáticas, vocabulários e catecismos em línguas nativas na América portuguesa, apresentado no XV Encontro Regional de História da ANPUH (realizado na USP), no dia 5 de setembro de 2000.

NAVARRO Eduardo de Almeida. Método moderno de tupi antigo: A língua do Brasil dos primeiros séculos. Petrópolis: Vozes, (2a edição) 1999 ( I a ed. 1998).

o' MALLEY, John W. The first Jesuits. Harvard College, 1993.

ONG, Walter. Orality and literacy: the technologizing of the word. Londres-Nova York: 1982.

PAGDEN, Anthony. The fali of natural man: The American Indian and the origins of comparative ethnology. Cambridge, University Press, 1982. Trad. it.: Turim: Einaudi, 1989.

PO-CHIA HSIA, Ronnie. The world of Catholic renewal (1540-1770). Cambridge: University Press, 1998; trad: It.: Bolonha: II Mulino, 2001.

POMPA, Cristina. Religião como tradução: Missionários, tupi e tapuia no Brasil colo-nial. Edusc/Anpocs, 2003.

PROSPERI, Adriano. II missionário. In: R. VILLARI (org.). Roma-Bari: Laterza, 1991;

"Conclusioni: la coscienza europea davanti alie scoperte geografiche dei '500". In: A. PROSPERI e W. REINHARD (orgs.), II Nuovo Mondo nella coscien-za italiana e tedesca dei Cinquecento, Bolonha: 11 Mulino, 1992;

Tribunali delia coscienza: Inquisitori, confessori, missionari. Turim: Einaudi, 1996.

II Concilio di Trento: una introduzione storica. Turim: Einaudi, 2001.

RAFAEL, Vicente. Contracting colonialism: translation and Christian conversion in Tagalog society under early Spanish rule. Ithaca/Londres: Cornell University Press, 1988.

Page 481: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

RODRIGUES, Aryon DalFIgna. Línguas brasileiras: para o conhecimento das línguas indígenas. São Paulo: Loyola, 1986.

ROMANO, Roberto. Introdução a Da liberdade do cristão (1520): prefácio à Bíblia, de Martinho Lutero. Trad. port. de E. J. Paschoal. São Paulo: Unesp, 1998.

ROSCIONI, Gian Cario. II desiderio delle indie: storie, sogni efughe di giovani gesui-ti italiani. Turim: Einaudi, 2001.

SABBATUCCI, Dario. Sui protagonisti di miti. Roma: La Goliardica, 1981.

La prospettiva storico-religiosa: fede, religione e cultura. Milão: II Sag-giatore, 1990.

Politeismo. 2 vol. [Vol. I: Mesopotamia, Roma, Grécia, Egitto; e Vol. II: Indo-iranici, Germani, Cina, Giappone, Corea]. Roma: Bulzoni, 1998;

TODOROV, Tzvetan. "Viaggiatori e indigeni". In: E. Garin (org.), Luomo dei Rinascimento. Roma-Bari: Laterza, (1988) 1998.

VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

5. A primeira missa. Memória e xamanismo na Missão Capuchinha de Bacabal (Rio Tapajós, 1872-82)

AMOROSO, Marta. "Capistrano de Abreu e os índios". Anuário Ciências Sociais Hoje, São Paulo, n2 00, 1996, pp. 182-96.

"Conquista do paladar: os kaingang e os guarani para além das cidade-las cristãs". Anuário Antropológico, Rio de Janeiro — Brasília, 2003.

ÂNGELO DE JAYR ANTONIO SYLVESTRE ( O F M C a p . ) . Capuchinhos. P r e f e i t u r a

Apostólica do Rio de Janeiro. Ms., 1978.

ANTONINO DE RESCHIO, OFMCap. Um ultrage vingado em defesa da Fé Catholica. Bahia, 1879.

BONTE-IZARD. Dictionnaire de léthnologie et de lánthropologie. Paris: PUF, Quadrige, 1991.

CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. "Lógica do mito e da ação. O movimento messiâ-nico canela de 1963". In: Antropologia do Brasil: Mito, história, etnicidade São Paulo: Brasiliense/Edusp, 1986.

CATÁLOGO DO ARQUIVO DA CUSTÓDIA DO RIO DE JANEIRO, MS.

CHARTIER, Roger. A aventura do livro. São Paulo: Ed. Unesp/Imprensa Oficial do Estado, 1999.

D AM ATA, Roberto. "Mito e antimito entre os Timbira". In: Mito e linguagem social. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, pp. 77-106.

Page 482: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

DESCOLA, Philippe. "Territorial adjustments among the Achuar of Ecuador". Social Science Information (SAGE, London and Beverly Hills), 2 1 , 2 , 1982, pp. 301-20.

FIDELIS MOTA DE PRIMÉRIO (O. F. M. Cap.). Os capuchinhos em terras de Santa Cruz nos séculos XV//, XV//J e XIX. Apontamentos Históricos. São Paulo, 1937.

GIUSEPPE DA CASTROGIOVANNI, O. F. M. Cap. Notizie storiche delia Missione Cap-puccina di Rio de Janeiro (1650-1910), Catania, 1910.

GONÇALVES TOCANTINS, Antonio Manuel. "Estudos sobre a tribo Mundurucu". RHGB, XL parte II, RJ, 1877, pp. 73-161.

JACINTO DE PALAZZOLO (o. F. M. Cap.). Crônica dos Capuchinhos do Rio de Janeiro. Petrópolis: Vozes, 1956.

Nas Selvas dos Vales do Mucuri e do Rio Doce. Como surgiu a cidade de Itambacuri, fundada por Frei Serafim de Gorizia, Missionário Capuchinho (1873-1952). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1973.

História da Cidade de São Fidélis fundada pelos missionários capuchinhos, 1963

LANTERNARI, Vittorio. As religiões dos oprimidos. São Paulo: Perspectiva, 1974 [1960].

LATOUR, Bruno. Reflexão sohre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches. Bauru, SP: Edusc.

LE GOFF, Jacques.. São Francisco de Assis. SP: Record2001

LUIS DE CIMITILE (o. F. M. Cap.). Notizie intorno ai Camés o Coroados che vivano nella Provincia dei Paraná. Nápoles: Rinaldi e Sellitto, Tip. Via Forcella. Pallazzo Municipale, 1888.

"Memória dos Costumes e Religião da Numerosa Tribo dos Camés que Habitam a Província do Paraná", in: Taunay, Visconde de. Entre os nossos índios. São Paulo: Editora Melhoramentos 1931.

MELATTI, Júlio Cezar. O messianismo krahó. São Paulo: Herder/Edusp, 1972. http ://geocities .com/j uliomelatti.

MELLO, Joaquim Guennes da Silva. Ligeiros traços sohre os Capuchinhos. Contendo a descrição do novo templo de N. S. da Penha que ora se levanta em Pernambuco. Recife: Tipographia M. Figueiroa e Filhos, 1871.

MENDES DE ALMEIDA, Cândido. Atlas do Império do Brazil. Comprehendendo as respectivas divisões administrativas, eclesiásticas, eleitorais e judiciárias. Rio de Janeiro: Lithografia do Instituto Philomathico, [1868] 2000.

MENGET, Patrick. "Notas sobre as cabeças mundurucu". In: Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro (orgs.) Amazônia. Etnologia e história indígena. São Paul: USP, FAPESP, 1993.

Page 483: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

METODIO DA NEMBRO, O. F. M. Cap. I Capuccinni nel Brasile. Milão: 1957..

1957 "Le missioni cappuccine nel Brasile durante il primo Impero e la Reggenza (1822-40)". Collectanea Franciscana 27, 385-415.

MURPHY, Robert F. Mundurucu religion. Berkeley/Los Angeles: University of Califórnia Press, 1958.

MURPHY, Robert e Yolanda. As condições atuais dos Mundurucu. Belém, Pará: Instituto de Antropologia e Etnologia do Pará (Museu Goeldi), 1954.

NIMUENDAJU, Curt. Cartas do Sertão de Curt Nimuendaju para Carlos Estevão de Oliveira. Lisboa: Assirius 8c Alvim, 2000.

PEDROSA, Mário. Dos Murais de Portinari aos Espaços de Brasília. São Paulo: Perspectiva, 1981.

PELINO DE CASTROVALVAS (o. F. M. Cap.). "Un missionário nel Brasile", Estr. da Annali Francescani Milão,. 14-15 [1883-1884].

Pequeno dicionário brasileiro da língua portuguesa, Rio-SP-Bahia, 1951.

O rio Tapajós, os Capuchinhos e os Mundurucus (1871-1883). São Luís do Maranhão, 2000.

PUETTER, Pancrácio, O. F. M. Cap. "A Missão entre os Mundurucús de Bacabal". Santo Antônio 4-5 (1945-1946).

"Frei Pelino de Castrovalva e seus Mundurucus". Santo Antônio 7, 1949.

RAFAEL DE TAGGIA, O. F. M. Cap. "Mappas dos índios Cherentes e Chavantes na nova povoação de Thereza Christina no Rio Tocantins e dos índios Charaós da Aldeia de Pedro Affonso". RIHGB 19, 1856, pp. 119-24.

REGNI, Piero V. Os Capuchinos na Bahia. Uma contribuição para a história da Igreja no Brasil. Salvador: Convento da Piedade, 1988.

SÁEZ, Oscar Calavia. "Campo religioso e grupos indígenas no Brasil". Antropologia em Primeira Mão, nQ 25 , U.FSC, PPGAS, 1998 .

SAVINO Dl RIMINI, O. F. M. Cap. Tra i selvaggi d'Araguaya. Memorie ilustrate dei miei 29 anni di missioe. Ancona, 1925.

SAVIO PIETRO. "Una nota darchivio sulle Missioni dei Cappuccini nel Brasile". Lítalia Francescana 7, 1932, pp. 306-14, 504-31.

SCHWARCZ, Lílian. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

SGANZERLA, Alfredo. A história de frei Mariano de Bagnaia: o missionário do Pantanal. Campo Grande: FUCMT, 1992.

TAUBATÉ, Modesto Resende de 8c PRIMÉRIO, Fidelis Mota de, O. F. M. Cap. Os mis-sionários capuchinhos no Brasil. Esboço Histórico. Tipografia do Semanário "La Squilla", São Paulo, 1929.

Page 484: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Os Missionários Capuchinhos no Brasil. São Paulo, 1930

TAYLOR, Anne-Christine. "Le modèles dmtelegibilité de Fhistoire". In: DESCOLA, LECLUD, SEVERI & TAYLOR (orgs.). Les idées de lanthropologie. Paris: Armand Colin Éditeur, 1988.

TAUNAY, Visconde de. Entre nossos índios. Chanés, terenas, kinikinaus, guanás, laianas, guatós, guaycurus, caingangs. São Paulo: Editora Melhoramentos, 1931.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem - e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac&Naify, 2002.

6. O código da cultura — o Cimi no debate da inculturação

Geral

AZEVEDO, Marcello de Carvalho, S. J. "Inculturation and the challenges of moder-nity". In: CROLLIUS, Ary A. Roest S. J. Inculturation: Working papers on living faith and cultures. Roma: Centre "Cultures and Religions" — Pontificai Gregorian University, 1982.

BARTH, Fredrik. Cosmologies in the making — A generative approach to cultural variation in inner New Guinea. Nova York: Cambridge University Press, 1987.

BEOZZO, Pe. José Oscar. Cristãos na universidade e na política — História daJUC e da AP. Petrópolis: Vozes, 1984.

La Iglesia y los indios — i500 anos de diálogo o de agresión? Quito: Ediciones Abya-Yala, 1989.

Brasil — 500 anos de migrações. São Paulo: Centro de Estudos Migratórios, Edições Paulinas, 1992a.

Evangelização e V Centenário — Passado e presente na Igreja da América Latina. Petrópolis: Vozes, 1992b.

BETIATO, Marco Antônio. Da Ação Católica à Pastoral de Juventude. Petrópolis: Vozes, 1985.

BETTO, Frei. O fermento na massa — O 4o encontro intereclesial das comunidades eclesiais de hase. Petrópolis: Vozes, 1981.

Cristianismo & marxismo. Petrópolis: Vozes, 1986.

BOFF, Leonardo. América Latina: Da conquista à Nova Evangelização. São Paulo: Ática, 1992.

CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Os direitos do índio — Ensaios e documentos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.

Page 485: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

. "Política indigenista no século XIX". In: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela

(org.)- História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

CELAM. Conclusões de Medellin. São Paulo: Edições Paulinas, 1984.

Conclusões da Conferência de Puebla. São Paulo: Edições Paulinas, 1986.

De una pastoral indigenista a una pastoral indígena. Bogotá: Demis,

1987.

. Documentos de pastoral indígena. Bogotá: Demis, 1989a.

. Pastoral indígena hoy, en la Amazônia. Bogotá: Demis, 1989b.

. Reflexões pastorais sobre a Nova Evangelização Continental. São Paulo: Loyola, 1991.

. Santo Domingo — Conclusões. São Paulo: Loyola, 1993.

CNBB. Carta de Pio XI ao episcopado brasileiro. Biblioteca do Instituto Nacional de Pastoral. Brasília: CNBB, 1946.

. Estatutos, regulamento geral, regulamentos especializados. Instituto Nacional de Pastoral. Brasíla: CNBB, 1956.

Relatório da IV Assembléia Ordinária. Goiânia, 3 a 11 de julho, mimeo, 1958.

"Declarações da Comissão Central da CNBB". REB, XXIV, junho, 1964.

COMBLIN, José. "Evangelização e inculturação: implicações pastorais". In: FABRI DOS ANJOS, Márcio. Teologia da inculturação e inculturação da teologia. Petrópolis: Vozes, 1995.

CONGAR, Yves. Christianisme comme foi et comme culture. [Evangelizzazione e Culture. Atti dei Congresso Internazionale Scientifico di Missiologia, vol. I, Roma, ott. 1975]. Roma, 1976.

CROLLIUS, Ary Roest, S.J. "What is so new about inculturation". In: Inculturation: Working papers on living faith and ciátures. Roma: Centre "Cultures and Religions" — Pontificai Gregorian University, 1984.

"Inculturation from the Babel to Pentecost". In: SURLIS, Paul et alii. Creative inculturation and the unity of faith. Roma, Centre "Cultures and Religions" — Pontificai Gregorian University, 1986.

DUSSEL, Enrique. Historia de la Iglesia en América Latina — 1492-1972 (dei colo-niaje à la liberación). Barcelona: Editorial Nueva Terra, 1973.

FORGET, J. "Holy Ghost". Catholic encyclopedia, vol. XII [Ia ed. 1911]. Nova York: Robert Appleton Company, 1999.

FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.

Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

GAGLIARDI, José Mauro. O indígena e a república. São Paulo: Hucitec/Edusp, 1989.

Page 486: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

GEEST, Sjaak van der. "Missionaries". Encyclopedia of cultural anthropology. Nova York: Henry Holt and Company, Inc., 1996.

GEERTZ, Clifford. The interpretation of cultures. Nova York: BasicBooks, 1973.

GRÜNBERG, Georg (coord.). La situacion dei indígena en America dei Sur — Aportes al estúdio de la friccion inter-etnica en los índios no-andino. Montevidéu: Tierra Nueva, 1972.

GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia de la liheración. Lima, s. n., 1971.

HIEBERT. Paul G. Anthropological insights for missionaries. Grand Rapids (Michigan): Baher Book House, 1985.

HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios — 1875-1914. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

The age of extremes — The history of the world, 1914-1991. Nova York: Vintage Books, 1994.

ISA. Povos indígenas no Brasil — 1996/2000 [editor Beto Ricardo]. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2000.

MARTINS, José de Souza. "Igreja face à política agrária do Estado". In: PAIVA, Vanilda. A questão agrária. São Paulo: Loyola, 1985.

O poder do atraso — Ensaios de sociologia da história lenta. São Paulo: Hucitec, 1994.

MATOS, Maria Helena Ortolan. O processo de criação e consolidação do movimen-to pan-indígena no Brasil (1970-1980). Dissertação de mestrado em antro-pologia. Brasília: UnB, 1997.

MAURER, Eugênio, S.J. "Inculturation or transculturation among the indians". In: CROLLIUS, Ary A. Roest, S. J. Effective inculturation and ethnic identity. Roma: Centre "Cultures and Religions" — Pontificai Gregorian University, 1982.

MESTERS, Carlos e SUESS, Paulo. Utopia cativa — Catequese indigenista e liberta-ção indígena. Petrópolis: Vozes, 1986.

MONTERO, Paula. "Tradição e modernidade: João Paulo II e o problema da cultura". Revista brasileira de ciências sociais, ne 20, ano 7. São Paulo, Anpocs, 1992.

"A universalidade da missão e a particularidade das culturas". In: MON-TERO, Paula (coord.). Entre o mito e a história — O V centenário do descobri-mento da América. Petrópolis: Vozes, 1996.

NKÉRAMIHIGO, Théoneste, S. J. "Inculturation and the specificity of christian faith". In: CROLLIUS, Ary A. Roest. What is so new about inculturation. Roma, Centre "Cultures and Religions" — Pontificai Gregorian University, 1984.

NOVAK, Michael. Will it liberate? — Questions about Liberation Tlieelogy. Nova York/Mahwah: Paulist Press, 1986.

Page 487: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

NYAMITI, Charles. "Ancestral kinship in the Trinity". In: CROLLIUS, Ary A. Roest. Effective inculturation and ethnic identity. Roma, Centre "Cultures and Religions" — Pontificai Gregorian University, 1982.

OPERAÇÃO ANCHIETA (OPAN). "História e linhas de ação da Operação Anchieta". In: OPAN (org.). Simpósio — Ação indigenista como ação política. Cuiabá: Opan, 1987.

ORTA, Andrew. "Syncretic subjects and body politics: Doubleness, personhood, and Aymara chatechists". American Ethnologist, nG 26. Washington DC: American Anthropological Association, 2000.

PAIVA, Vanilda. "Introdução". In: PAIVA, Vanilda. Igreja e questão agrária. São Paulo: Loyola, 1985.

PELIKAN, Jaroslav Jan. The riddle of Roman Catholicism. Nova York: Abingdon Press, 1959.

PESSINI, Léo e BARCHIFONTAINE, Christian P. Fundamentos da bioética. São Paulo: Paulus, 1996.

POGGI, Vincenzo. "Lmculturation au début de Fislam". In: POGGI S. J., Vincenzo 8c RYAN S.J., Patrick. Islam and culture. Roma, Centre "Cultures and Religions", Pontificai Gregorian University. Série "Inculturation — Working papers on living faith and cultures", editada por Ary A. Roest Crollius, S.J., 1984.

POLLOCK, David K. "Conversion and community in Amazônia". In: HEFNER, Robert W. Conversion to christianity — Historical and anthropological pers-pectives on a great transformation. Califórnia: University of Califórnia Press, 1993.

QUEIROGA, Pe. Gervásio. Conferência Nacional dos Bispos do Brasil — Comunhão e co-responsabilidade. São Paulo: Paulinas, 1977.

RAMOS, Alcida Rita. "Nações dentro da nação: Um desencontro de ideologias". Série Antropologia, nfí 147, Brasília: UnB, 1993.

"O índio hiper-real". Revista brasileira de ciências sociais, n2 28, ano X, junho. São Paulo: Anpocs, 1995.

RUFINO, Marcos Pereira. "Estes 500 e outros tantos". Ca demos de Campo — Revista dos alunos de pós-graduação em antropologia da Universidade de São Paulo, ano II, n2 2. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1992.

"A missão calada: pastoral indigenista e a Nova Evangelização". In: MON-TERO, Paula (coord.). Entre o mito e a história — O V Centenário do Descobrimento da América. Petrópolis: Vozes, 1996.

"Nem só de pregação vive a missão". In: ISA. Povos Indígenas no Brasil — 1996/2000. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2000.

Page 488: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Ide, portanto, mas em silêncio — faces de um indigenismo missionário católico heterodoxo. São Paulo: Universidade de São Paulo, tese de doutora-mento, 2002.

SAHLINS, Marshall. Islands of history. Chicago: The University of Chicago Press, 1985.

SANTOS, Beni dos. "Introdução a uma leitura do documento a partir da opção pre-ferencial pelos pobres". In: CELAM. Conclusões da Conferência de Puehla. São Paulo: Edições Paulinas, 1986.

SARTORI, Frei Luís Maria Alves. "Sugestões e bases para a ACB". REB, vol 12, março. Rio de Janeiro: REB, 1952.

SCHINELLER, Peter. "Ten summary statements of the meaning, challenge and sig-nificance of inculturation as applied to the church and Society of Jesus in the United States, in light of the global process of modernization". In: CROL-LIUS, Ary A. Roest, S. J. On heing church in a modem society. Roma, Centre "Cultures and Religions" — Pontificai Gregorian University, 1982.

SHAPIRO, Judith. "Ideologies of catholic missionary practice in a postcolonial era". Comparative studies in society and history, vol. 23, j r 1, 1981.

SIGMUND, Paul. Liheration theology at the crossroads — Democracy or revolution. Oxford: Oxford University Press, 1990.

SILVA, Joana Fernandes. "Utiariti — A última tarefa". In: WRIGHT, Robin M. (org.). Transformando os deuses — Os múltiplos sentidos da conversão entre os povos indígenas no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 1999.

SOUZA LIMA, Antonio Carlos. Um grande cerco de paz — Poder tutelar, indianida-de e formação do Estado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1995.

STACKHOUSE, Max L. "Missionary activity". In: ELIADE, Mircea (ed.). Th,e encyclo-pedia of religion. Nova York, McMillan Publishing Company, 1987.

SUESS, Paulo. Crônicas de pastoral e política indigenista. Petrópolis: Vozes, 1985.

A causa indígena na caminhada e a proposta do Cimi: 1972-1989. Petrópolis: Vozes, 1989.

"Desafios da Igreja missionária ao encontro de outras culturas". In: RUFI-NO, M. P. (org.). Dossier de imprensa — O V Centenário do Descobrimento da América. São Paulo: Universidade de São Paulo, mimeo, 1993.

"A história dos outros escritas por nós". Cehila, n2s 47-48, out-1993/mar-1994. São Paulo: Cehila, 1994.

"A disputa pela inculturação". In: FABRI DOS ANJOS, Márcio (org). Teologia da inculturação e inculturação da teologia. Petrópolis: Vozes, 1995.

SUESS, Paulo (org.). Em defesa dos povos indígenas — Documentos e legislação. São Paulo: Loyola, 1980.

D L U S A A L D E I A 5 6 5

Page 489: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Inculturação e libertação. São Paulo: Edições Paulinas, 1986.

TETLOW, Joseph A. "The inculturation of catholicism in the United States". In: CROLLIUS, Ary A. Roest, S.J. On being church in a modem society. Roma, Centre "Cultures and Religions" — Pontificai Gregorian University, 1982.

UCHÔA, Pe. Virgílio Leite. "A caminhada da Conferência Nacional dos Bispos no Brasil (CNBB) — Reflexões históricas", mimeo. (Trabalho apresentado na II Conferência Geral — História da igreja na América Latina e Caribe 1945-1995, realizada de 25 a 28 de julho de 1995 em São Paulo, SP, 2001. A ver-são atual foi modificada e atualizada.)

VIEIRA, Regina. O jornal Porantim e o indígena. São Paulo: Anablume, 2000.

YOKOI, Zilda Márcia Gricolli. Igreja e camponeses: Teologia da Libertação e movi-mentos sociais no campo — Brasil/Peru (1964-1986). São Paulo: Univer-sidade de São Paulo. Tese de Doutoramento, 1990.

WAGUA, Aiban. "Angigua y nueva evangelización de los indígenas". In: BOTASSO, Juan. La iglesia y los indios. Quito: Ediciones Abya-Yala/MLAL (Movimento Laicos para América Latina), 1989.

ZIZOLA, Giancarlo. A utopia do papa João. São Paulo: Loyola, 1983.

ZUERN, Theodore F., S.J. "The preservation of native identity in the process of inculturation, as experienced in American indian cultures". In: CROLLIUS, Ary A. Roest. On being church in a modem society. Roma, Centre "Cultures and Religions" — Pontificai Gregorian University, 1982.

ZWETSCH, Roberto E. "Documento: As igrejas protestantes e os povos indígenas". In: OPAN (org.). Simpósio —Ação indigenista como ação política. Cuiabá: Opan, 1987.

Publicações do Cimi

AMARANTE, Elizabeth Aracy Rondon. A mulher Myky na experiência religiosa de seu povo. s/l, Cimi/Andri, 1994.

ANDRI. Fundamentalismo: o desafio da modernidade. Belém: Cimi Norte II, 1994.

CIMI NACIONAL. Boletim do Cimi. nfí 1, Campo Grande: Cimi, 1972.

"Documento: Conselho Indigenista Missionário". In: OPAN (org.). Simpósio —Ação indigenista como ação política. Cuiabá: Opan, 1987.

. X Assembléia Geral do Cimi — Documento final Brasília: Cimi, mimeo, 1993.

. A violência contra os povos indígenas no Brasil — 1994-1995. Brasília: Cimi, 1996.

A violência contra os povos indígenas no Brasil em 1996. Brasília: Cimi, 1997a.

Page 490: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Relatório geral de avaliação do Cimi — contribuições <i$íem*n:z*h.ui± .1

tir das bases. Brasília: Cimi, 1997b.

CIMI NORTE II. O desafio da missão. Belém: Cimi Norte II. 1995.

CIMI SUL. Nandeayvu Peteia. s/l, Cimi Sul, 1993.

Nossa história, nossos direitos. Chapecó: Cimi Su l 1995. CIMI; CNBB. Evangelização a partir dos Povos Indígenas — Documento de Bo^id.

Brasília: CNBB-Cimi, 1986.

Somos povos somos nações — Subsídios didáticos sobre a questão indígemt. Série B, vol. 2, Brasília: Cimi, 1989.

Destruir a terra é destruir os filhos da terra — Em defesa da vida na Amazônia. Brasília: CNBB-Cimi, 1990.

A violência contra os povos indígenas no Brasil em 1993. Brasília: Cimi /CNBB, 1 9 9 3 .

Novo Estatuto Direito dos povos Indígenas — Projeto de lei 2.057/91.

Brasília: Cimi/CNBB, 1998.

DIAS, Apparecido José. Saiba quem entregou a Amazônia. Brasília: Cimi/CNBB, 1991.

GUIMARÃES, Paulo Machado. Demarcação das terras indígenas. Brasília: Cimi, 1995. KRAUTLER, Erwin. O compromisso da Igreja com os povos indígenas no contexto pós-

constituinte — diálogos e solidariedade. [Comunicado oficial do presidente do Cimi à 27a Assembléia Geral dos Bispos do Brasil — Itaici/sP, 5 a 14 de abril de 1989]. Brasília: Cimi-CNBB, 1989.

Testemunha de resistência e esperança — discursos de Itaici em defesa dos povos indígenas. Brasília: Cimi, 1991.

PAULETTI, M a u c i r ; SCHNEIDER, N e r e u ; MANGOLIM, O l ív io . Por que os guarani e

haiová se suicidam? Campo Grande: Cimi, 1997.

PREZIA, Benedito. "46 anos entre os Tapirapé". Porantim. rf 208, setembro. Brasília, 1998.

PREZIA, Benedito e HOORNAERT, Eduardo. Esta terra tinha dono. São Paulo: Cehila Popular — Cimi/Editora FTD, 1989.

VILLAS, Fábio Martins. A concepção e prática de formação dos agentes do Cimi. Brasília: Cimi, 1992.

Documentos pontifícios e conciliares

PAULO VI. Evangelii nuntiandi (A evangelização no mundo moderno), 1975.

VATICANO II (1962-1965). Ad gentes (Decreto sobre a atividade missionária).

Gauâium et spes (Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo moderno).

Lumen gentium (Constituição dogmática sobre a Igreja).

Page 491: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

7. Tradução e mediação: missões transculturais entre grupos indígenas

ALMEIDA, Ronaldo de. A universalização do Reino de Deus. Dissertação de mestra-do. Campinas: IFCH/Unicamp, 1996.

BARROS, Maria Candida M. Lingüística missionária: Summer Institute of Linguistics. Tese de doutorado. Campinas: Unicamp, 1993.

BENJAMIN, Walter. The task of the translator. Illuminations. Nova York: Schocken Books, 1969.

BÍBLIA. A Bíblia de Jerusalém. 6a ed. São Paulo: Edições Paulinas, 1993.

CAPIBERIBE, Artionka. Os palikur e o cristianismo. Dissertação de mestrado. Campinas: IFCH/Unicamp, 2001.

CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Pontos de vista sobre a floresta amazônica: xama-nismo e tradução. Mana, Rio de Janeiro, v. 4, n e 1, abril, 1998.

ELIADE, Mircea. A Provação do Labirinto (diálogos com Claude-Henri Rocquet). Lisboa: Dom Quixote, 1987.

FERNANDES, Rubem C. Um exército de anjos: as razões da Missão Novas Tribos. Religião e Sociedade, ne 6, Rio de Janeiro, 1980.

Os vários sistemas religiosos em face do impacto da modernidade. In: BINGEMER, M. C. (Org.) O Impacto da modernidade sobre a religião. São Paulo: Loyola, 1992.

gallois, Dominique T. Migração, guerra e comércio: os waiãpi na Guiana. São Paulo: USP, 1986. 348 p.

GALLOIS, Dominique T. & GRUPIONI, L. D. B. O índio na Missão Novas Tribos. In: WRIGHT, R. (org.). Transformando os deuses: Os múltiplos sentidos da conver-são entre os povos indígenas no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 1999.

HEFNER, Robert W. World Building and the rationality of conversion. In: (org.) Conversion to christianity: Historical and anthropological perspecti-ves on a great transformation. Berkeley: Univ. of Califórnia Press, 1993. pp. 3-44.

KAHN, Marina. Levantamento preliminar das organizações religiosas em áreas indí-genas. In: WRIGHT, R. (org.). Transformando os deuses: Os múltiplos sentidos da conversão entre os povos indígenas no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 1999.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O feiticeiro e sua magia / A eficácia simbólica. In: Antropologia estrutural. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1970.

. Totemismo hoje. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1976.

O pensamento selvagem. São Paulo: Ed. Nacional/Edusp, 1970.

Page 492: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

LIMA, Silas de. & LIMA, E. de O. Quem me dera conhecer a Deus. Londr inaPf . Descoberta Editora Ltda., 2001.

MONTERO, Paula. A universalidade da Missão e a particularidade das cukuras . In (org.). Entre o mito e a história: o v Centenário da Descoberta âã

América. Petrópolis: Vozes, 1996.

NEIL, Stephen. A history ofchristian missions. Londres: Penguin. 1964.

NEW TRIBES MISSION. Firm foundation: Creation to Christ. Florida: Saníord. 1991.

NIMUENDAJÚ, Curt. Os índios palikur e seus vizinhos. São Paulo: XHü/lSR 1926. (Manuscrito em fase de tradução por Thekla Hartmann)

ORTA, Andrews. Syncretic subjects and body politics: doubleness, personhood. and Aymara catechists. American ethnologist, v. 26, nfi 4, pp. 864-89, 2000.

POMPA, Maria C. Religião como tradução: missionários, tupi e "tapuia" no Brasil colonial. Tese de doutorado). Campinas: IFCH/Unicamp, 2001.

RUFINO, Marcos. A missão calada: pastoral indigenista e a nova evangelização. In: MONTERO, P. (org.). Entre o mito e a história: o V Centenário da Descoberta da América. Petrópolis: Vozes, 1996.

SAHLINS, Marshall. Cultura e razão prática. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

Cosmologias do capitalismo: o setor trans-Pacífico do 'sistema mundial'. In: XVI REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, 1 9 8 8 , C a m p i n a s . Anais...

Campinas: IFC/UNICAMP, 1988, pp. 47-105.

Ilhas de história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.

SHAPIRO, Judite. From Tupã to the land without evil: the Christiatization of Tupi-Guarani cosmology. American Ethnologist, The Journal of the Ethnological Society, v.14, n 2 l , fevereiro, 1987.

TASSINARI, Antonella. M. I. Contribuição à história e à etnografia do Baixo Oiapoque: a composição das famílias karipuna e a estruturação das redes de troca. Tese de doutorado. São Paulo: FFLCH/USP, 1998.

TAYLOR, Anne-Christine. The souls body and its states: An Amazonian perspecti-ve on the nature of being human. Journal ofthe Royal Anthrological Institute (N.S.), na 2, pp. 201-15, s.d.

God-weath: The Achuar and the missions. In: WHITTEN, n. e. (ed.) Cultural transformation and ethinicity un modem Ecuador. Illinois: University of Illinois Press, 1981.

TROELTSCH, Ernest. "Igreja e Seitas". Religião e Sociedade, 14/3, 1987.

VIDAL, Lux B. Os povos indígenas do Uaçá: karipuna, palikur e galibi-marworno. Uma abordagem cosmológica: O mito da Cobra Grande em contexto. Relatório à Fapesp do Projeto Temático "Sociedades Indígenas e suas Fronteiras no Sudeste das Guianas". São Paulo: NHll/uSP, 1996.

Page 493: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Galibi-marworno; galibi do Oiapoque Textos disponíveis em

mvw.socioambiental.org.br. Acesso janeiro de 2002.

VILAÇA, Aparecida. "Cristãos sem fé". Mana, Rio de Janeiro, v. 2, n a l , 1996.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem In: A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac&Naify, 2002.

WEBER, Max . "Sociologia da religião (tipos de relações comunitárias religiosas)" In: Economia e Sociedade. Brasília, UnB, 1991.

WRIGHT, Robin M. Apresentação./O tempo de Sophie: história e cosmologia da conversão Baniwa. In: (org.) Transformando os deuses: Os múltiplos sentidos da conversão entre os povos indígenas no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 1999, pp.7-17/155-216.

ZWETSCH, Roberto. Escolhas religiosas e cidadania. In: Novas faces da cidadania li: religiões e espaço público no Brasil. Cadernos de Pesquisa. São Paulo: Cebrap, abril, 1997.

8. Sob o manto do cristianismo: o processo de conversão palikur

ALMEIDA, Ronaldo de. Traduções do fundamentalismo evangélico. Tese de doutora-do defendida na FFLCH/USP, São Paulo, 2002.

AMOROSO, Marta. R. Mudança de hábito: catequese e educação para índios nos aldementos capuchinhos. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 13, rf 37, pp. 101-114, 1998.

ARNAUD, Expedito "Os índios palikúr do rio Urucauá: tradição tribal e protestan-tismo". Publicações avulsas do Museu Paraense Emílio Goeldi, nG 38, Belém, 82 pp., 1984.

"O sobrenatural e a influência cristã entre os índios do rio Uaçá (Oiapoque, Amapá): palikúr, galibi e karipúna". In: E. Jean Matteson LANG-DON (org.). Xamanismo no Brasil: novas perspectivas. Florianópolis: Editora da UFSC, pp. 297-331, 1996.

BARROS, M. C. D. Mendes. Lingüística missionária: Summer Institute of Linguistics. Introdução e primeira parte. Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação do IFCH/Unicamp, Campinas, 1993.

BÍBLIA. A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Edições Paulinas, 1993.

CAPIBERIBE, Artionka. Os palikur e o cristianismo. Dissertação de mestrado apre-sentada ao Departamento de Antropologia do IFCH/Unicamp, Campinas, 2001.

"Os palikur e o cristianismo: a construção de uma religiosidade". Transformando os Deuses vol. II: Igrejas Evangélica, Pentecostais e

Page 494: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Neopentecostais entre os Povos Indígenas no Brasil. Robin M. WRIGHT (org.). Campinas: Editora da Unicamp, 2004.

"Marcadores e concepções de indianidade na região do Oiapoque: lín-gua e religião em questão". In. Dominique GALLOIS (org.) Sociedades indíge-nas e suas fronteiras na Região Sudeste das Guianas. São Paulo: Ed. Humanitas/FFLCH-USP, no prelo.

CARNEIRO DA CUNHA, M . 8c VIVEIROS DE CASTRO, E. "Vingança e temporal idade: os tupinambá". Anuário Antropológico, 85, Tempo Brasileiro, pp. 57-78, 1985.

CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. "Pontos de vista sobre a floresta amazônica". Mana, v. 4, n2 1, 1998.

CEDI. Povos indígenas no Brasil. Amapá-Norte do Pará. Carlos Alberto Ricardo (editor). São Paulo, 1983.

CLASTRES, Hélène. A terra sem mal. Tradução: Renato Janine Ribeiro, ed. Brasiliense, São Paulo, 1978.

CRAPANZANO, Vincent Serving the Word: Literalism in America —from the pulpit to the hench. Nova York, N e w Press, 2000.

CSORDAS, Thomas J. The sacred self a cultural phenomenology of charismatic hea-ling. Berkeley: University of Califórnia Press, 1997.

FERNANDES, Eurico. "Contribuição ao estudo etnográfico do grupo Aruak (Excertos do livro Pariukur-Ienê, ainda inédito)". Acta Americana, VI, n2 3-4, México, pp.200-221, 1948.

FERNANDES, Rubem C. "Um exército de anjos: as razões da Missão Novas Tribos". Religião e Sociedade, n2 10, Rio de Janeiro, Ed. Campus, pp. 129-165, 1980.

FRESTON, Paul. "Uma breve história do pentecostalismo brasileiro: A Assembléia de Deus". Religião e Sociedade, v. 16, n2 3, Rio de Janeiro, pp. 104-129, 1994.

FUNAl/ADR-OIAPOQUE "Censo anual das Populações Indígenas do Uaçá". Manuscrito, Oiapoque, 2002.

GALLOIS, D. T. O movimento na cosmologia waiãpi: criação, expansão e transforma-ção do mundo. Tese de doutorado defendida na FFLCH/USP, São Paulo, 1988.

GEERTZ, Clifford. Observando el Islam: El desarrollo religioso em Marruecos e Indonésia. Tradução: Alberto López Cardín. Barcelona: Ediciones Paidós, 1994.

GREEN, Diana. "Usos da fala direta no discurso Palikur". Instituto Lingüístico de Verão, Mimeo. Biblioteca do Instituto Socioambiental, São Paulo, s/d.

"O sistema numérico da língua Palikur". Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. V. 10, n 2 2, Belém, 1994.

Page 495: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

GREEN, Harold. "Como se pergunta em Palikúr". Rev. Atual Indíg. Ano III, n c 17, Brasília, pp. 23-29, 1979.

GREEN, Diana & GREEN, Harold. Personal dairy of Harold and Diana Green. Manuscrito, 138 pp., 1965-1977.

"Programa Lingüístico e de Educação". Relatório de atividades 1965-1977. Biblioteca do Instituto Socioambiental, São Paulo, 1986.

Vocabulário experimental palikur; português, kheuol. Sociedade Internacional de Lingüística, Belém, Pará, 1996.

HEFNER, Robert W. Conversion to christianity. Historical and anthropological pers-pectives on a great transformation. Robert W. HEFNER (org.). Berkeley, Univ. of Califórnia Press, 1993.

HURAULT, J. Français et indiens en Guyane 1604-1972. Collection Bibliothèque 1018. França: Union Générale deditions, 1972.

INSTITUTO LINGÜÍSTICO DE VERÃO Uhokri Gannasan: o Novo Testamento na língua palikur. Brasília: Livraria Cristã Unida, 1982.

KAHN, Marina. "Levantamento preliminar das organizações religiosas em áreas indígenas". In. Robin M. WRIGHT (org.) Transformando os Deuses: Os múlti-plos sentidos da conversão entre os povos indígenas no Brasil Campinas: Editora da Unicamp, pp. 19-76, 1999.

LETTRES ÉDIFIANTES ET CURIEUSES concernant VAsie lÁfrique et VAmérique avec quelques relations nouvelles des missions et des notes geógraphique et histori-ques. A. Martin Ed. Paris: A. Desrrez, 2 v., 1839.

MAFRA, Clara Os evangélicos. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 2001.

MEYER, Birgit Translating the Devil: Religion and modernity among the Ewe in Ghana. African World Press, 1999.

NIMUENDAJÚ, Curt. Os índios palikur e seus vizinhos. Manuscrito em fase de tra-dução por Thekla Hartmann, NHLL/uSP, 1926.

PASSES, Alan. The hearer, the hunter, and the agouti head: aspects of intercom-munication and conviviality among the Parikwene (Palikur) of French Guiana. Tese de doutorado. University of St. Andrews, 1998.

POMPA, Cristina. Religião como tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil colonial São Paulo: EDUSC/Anpocs, 2002.

ROBBINS, Joel Becoming sinners: Christianity and moral torment in Papua New Guinea society. University of Califórnia Press, 2004.

SAHLINS, Marshall. Ilhas de história. Tradução: Bárbara Sette. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.

SOCIEDADE INTERNACIONAL DE LINGÜÍSTICA (SIL). A Sociedade Internacional de Lingüística: atuação em prol dos povos de um mundo de mudança. Folder do SIL, s/d.

Page 496: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

STEUERNAGEL, Valdir (editor). A evangelização do Brasil: uma tarefa inacabada. As principais palestras e seminários do Congresso Brasileiro de Evangelização. São Paulo: ABU editora, 1985.

STOLL, David. Fishers ofmen orfounders of empire? The Wyclijfe Bihle translators in Latin America. EUA,:Ed. Zed Press, 1982.

TASSINARI, Antonella M. I. No bom da festa; o processo de construção cultural das famílias karipuna do Amapá. São Paulo: Edusp, 2003.o, Edusp, 413 pp.

VIDAL, Lux B. "Outros viajantes: de Maná ao Oiapoque, a trajetória de uma migra-ção". Revista USP, n2 46, São Paulo, pp. 42-51, junho/julho/agosto de 2000.

"Verbete Galibi-Marworno". Instituto Socioambiental, São Paulo, 2001. (http://wv^.socioambiental.org/pib/epi/galibimarworno/gmarworno.shtm).

VILAÇA, Aparecida "Missions et conversions chez les wari': entre protestantisme et catholicisme". LHomme, 164, pp. 57-80, 2002.

VIVEIROS DE CASTRO, E. "O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selva-gem". Revista de Antropologia, FFLCH/USP, v. 35, São Paulo, pp. 21-74, 1992.

VIVEIROS DE CASTRO, E. e FAUSTO, C. Proselitismo religioso e pesquisa científica em áreas indígenas: resposta aAryon Rodrigues. Mimeo. Rio de Janeiro,:Museu Nacional — UFRJ, 1993.

WINTER, R. D. e HAWTHORNE, S. C. Missões transculturais: uma perspectiva estratégica. Tradução: Carlos Siepierski e Márcio Loureiro Redondo. São Paulo: Associação Religiosa Editora Mundo Cristão, 1987.

WRIGHT, Robin M. Cosmos, self and history in Baniwa religion: for those unborn. Ia edição. Austin: University of Texas Press, 1998.

Transformando os deuses: Os múltiplos sentidos da conversão entre os povos indígenas no Brasil Robin M. WRIGHT (org.). Campinas: Editora da Unicamp, 1999.

Transformando os deuses: Igrejas evangélicas, pentecostais e neopentecos-tais entre os povos indígenas no Brasil Vol. II. Campinas: Editora da Unicamp, 2004.

9. A cultura como um caminho para as almas

9AGNOLIN, Adone. "Catequese e tradução — gramática cultural, religiosa e lin-

güística do encontro catequético no séc. XVl". Mimeo, 2004. AGUILERA, Antônio Hilário. Currículo e cultura entre os bororo de Meruri.

Campo Grande. UCDB, 2001.

ALBERT, Bruce. "O ouro canibal e a queda do céu. Uma crítica xamânica da eco-nomia política da natureza (yanomami)". In: ALBERT, Bruce e RAMOS, Alcida R. Pacificando o branco. São Paulo: Editora Unesp, 2002.

Page 497: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

ALBISETTI, César e VENTURELLI, Ângelo. A Enciclopédia Bororo. Campo Grande: 1962, Vol. I; 1969, Vol. II; 1979, Vol. III e 2002, Vol. III-2.

ALBISETTI, César e PALHA, Luiz. Contribuições missionárias. Rio de Janeiro: Publicações da Sociedade de Antropologia e Etnologia, fevereiro, 1948.

ARRUTI, José Maurício P A. "A produção da alteridade: o toré como código das conversões missionárias e indígenas". Mimeo, 2004.

AZZI, Riolando. Os salesianos no Rio de Janeiro. Vol. 1. Os primórdios da obra salesiana (1875-1884). São Paulo: Ed. Salesiana Dom Bosco, 1982.

Os salesianos no Brasil: à luz da história. São Paulo: Ed. Salesiana Dom Bosco, 1982.

BARROS, Edir Pina. "Política indigenista, política indígena e suas relações com a política expansionista no II Império em Mato Grosso". Revista de Antropologia. USP. Volume 30/31/32, 1987/88/89.

BRANDÃO, Aivone Carvalho. O museu na aldeia: comunicação e transculturalismo (O Museo Missionário Etnologico Colle Bom Bosco e a aldeia bororo de Meruri em diálogo). Tese de Doutorado. PUC-SP, 2003.

BENSA, Alban. "O antropólogo e o arquiteto: a construção do Centro Cultural Tjibaou". In: L' ESTOILE, Benoit; NEIBURG, Federico e SIGAUD, Lygia (org.). Antropologia, impérios e Estados nacionais. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

BORDIGNON, Mário Enawuréu. Os bororo na história do Centro Oeste Brasileiro. Campo Grande: Missão Salesiana de Mato Grosso, 1987.

CAPIBERIBE, Artionka. "Os caminhos da evangelização entre os palikur do Urukauá: percursos de uma conversão". Mimeo, 2004.

CASTILHO, Maria Augusta. Os índios hororo e os salesianos na Missão dos Tachos. Campo Grande: UCDB, 2000.

CASTRO, Eduardo Viveiros de. "Etnologia brasileira". In: O que ler na ciência social brasileira (1970 — 1995). MICELI, Sérgio (org.). 2a edição. São Paulo: Editora Sumaré/Anpocs/Capes, 2002.

COLBACCHINNI, A & ALBISSETTI, C. Os bororos orientais. Orarimogodogue do pla-nalto de Mato Grosso. Companhia Editora Nacional, 1942.

CROCKER, Jon Cristopher. "Reciprocidade e hierarquia entre os bororo orientais". In: SCHADEN Egon. Leituras de Etnologia Brasileira. São Paulo. Companhia Editora Nacional, 1976.

CUNHA, Manuela Carneiro da. "Etnicidade da cultura residual, mas irredutível". In: Antropologia do Brasil. São Paulo: Brasiliense/Edusp.

GALLOIS. Dominique Tilkin. "Nossas falas duras. Discurso político e auto-repre-sentação Waiãpi". In: ALBERT, Bruce e RAMOS, Alcida R. Pacificando o bran-co. São Paulo: Editora Unesp, 2002.

Page 498: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

GIANNOTTI, José A. "Benta ilusão". Revista Novos Estudos. Cebrap. nQ 69, julho, 2004.

GLUCKMAN, Max. "A organização social na Zululandia moderna, 1931-1932". In: Desvendando máscaras sociais. A. ZALUAR (org.). São Paulo: Fco. Alves, 1975.

GRAILLE, Caroline. "Patrimoine et identité Kanak en Nouvelle-Calédonie". Revue Electronique Semestrielle — Centre d'Etudes et de Recherches Comparatives em Ethnologie. Miroirs Identitaires. nG 2. Primavera, 2001.

GRANERO, Fernando Santos. "Templos e ferrarias: utopia e re-invenção cultu-ral no oriente peruano". In: CASTRO, Eduardo Viveiros e CUNHA, Manuela Carneiro da (orgs.) Amazônia — Etnologia e história indígena. São Paulo: NHll-USP/Fapesp, 1993.

HALL, Stuart. Da diáspora. Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2003.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Triste trópicos. Paris, 1958.

As organizações dualistas existem?". In Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996.

O cru e o cozido (Mitológicas 1). São Paulo: Cosac&Naify, 2004.

MARQUES, Eduardo César. "Atores e relações na construção do Estado." In: Estado e redes sociais: permeabilidade e coesão nas políticas urbanas no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan/São Paulo: Fapesp, 2000.

MONTERO, Paula. Modernidade e cultura — para uma antropologia das sociedades complexas. Texto de sistematização crítica para obtenção do título de livre-docência em Antropologia. FFLCH/USP. São Paulo, 1992.

"Utopias missionárias na América". Revista Sexta-Feira. Número 6.

Utopias. São Paulo: Editora 34, 2001.

"A produção do outro na antropologia salesiana". Mimeo, 2004.

"Os bororo na etnografia salesiana". Mimeo, 2004.

"índios e missionários no Brasil: para uma teoria da mediação cultural". Mimeo, 2004.

"Tradução religiosa e mediação cultural — Estudos sobre missões cris-tãs e populações indígenas no Brasil. Mimeo, 2004.

NOVAES, Sylvia Caiuby. "A épica salvacionista e as artimanhas de resistência : as missões salesianas e os bororo de Mato Grosso". In: WRIGHT, Robin (org.). Transformando os deuses : os múltiplos sentidos da conversão entre os povos indígenas no Brasil. Campinas: Unicamp, 1999.

Jogos de espelhos — imagens da representação de si através dos outros. São Paulo: Edusp, 1993.

Page 499: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

OCHOA, Gonçalo Camargo. Padre Rodolfo Lukenbein: uma vida pelos índios de Mato Grosso. Campo Grande: Missão Salesiana de Mato Grosso. 1995.

POMPA, Cristina. "Para uma antropologia histórica das missões". Mimeo, 2004.

QUILES, Manuel Ignácio. Um estudo etnopsicológico do comportamento alcoólico entre os índios bororo de Meruri, Mato Grosso. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Saúde e Ambiente da Universidade Federal do Mato Grosso, 2000.

RIBEIRO, Berta G. "Museu e memória — reflexões sobre o colecionamento". Revista de Antropologia. USP. Volume 30/31/32, 1987/88/89.

RUFINO, Marcos Pereira. Ide, portanto, mas em silêncio —faces de um indigenis-mo missionário católico heterodoxo. Tese de doutorado. FFLCH/USP, 2002.

. "O código da cultura — o Cimi no debate da inculturação. Mimeo, 2004.

SAHLINS, Marshall. "O pessimismo sentimental' e a experiência etnográfica: por que a cultura não é um objeto em vias de extinção". Rio de Janeiro. Mana 3 (1), 1997.

Ilhas de história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.

"La pensée bourgeoise — a sociedade ocidental enquanto cultura". In: Cultura e Razão Prática. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

TURNER, Terence. "De cosmologia a história: resistência, adaptação e consciência social entre os kayapó. In: CASTRO, Eduardo Viveiros e CUNHA, Manuela Carneiro da (orgs.) Amazônia — Etnologia e história indígena. São Paulo: NHll-USP/Fapesp, 1993.

VIERTLER, Renate Brigitte. As aldeias bororo: alguns aspectos de sua organização social. Tese de doutoramento apresentada ao Departamento de Antrologia da FFLCH-USP. São Paulo, 1972.

AroeJAro — Implicações adaptativas das crenças e práticas funerárias dos bororo do Brasil Central. Tese de Livre Docência apresentada ao Departamento de Ciências Sociais da FFLCH/USP. São Paulo, 1982.

Vaca Louca: tendências no processo de mudança sócio-cultural dos Bororo, MT". Revista de Antropologia, USP. Vol. 33. São Paulo, 1990.

VIDAS, Anath Ariel de. "Identité de lautre, identité par 1'autre: La gestion du patri-moine culturel indien au nord-est du Mexique. Cahiers des Sciences Humaines. Vol. 30 (3), 1994.

Jornais consultados

O Estado de S. Paulo. Cardeno 2. Edição de 19 de abril de 2004. Reportagem de Jotabê Medeiros.

Diário de Cuiabá. Edição de abril de 2004. Sem assinatura.

Page 500: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Páginas eletrônicas

Ministério da Cultura. Reportagens internas sobre aldeia cultura bororo.

http://www.cultura.gov.br/corpo.php

Missão Salesiana de Mato Grosso

http://www.msmt.org.br (site geral da Missão).

http://www.ucdb.br/meruri/index.html (Jornal "Caderno Meruri", edição especial de junho de 2002; e livreto "Meruri (1902 — 2002) Missão Salesiana de Mato Grosso").

Documentos

Relatório sobre o serviço de Catequese da Missão Salesiana em MT — Período de 1912. Arquivo do Estado de Mato Grosso. Pasta 118.

Relatório sobre o serviço de Catequese da Missão Salesiana em MT — Período de 1915. Arquivo do Estado de Mato Grosso. Pasta 120.

Relatório sobre os trabalhos de cathequese da MS MT apresentado ao Gov. D. Francisco de Aquino Corrêa. Período de 1917. Arquivo do Estado de Mato Grosso. Pasta 121.

Congresso Regional dos Cooperadores Salesianos de MT. Período de 1919. Arquivo do Estado de Mato Grosso. Pasta 121.

Pe. Antonio Colbacchini, Pe. E. Carlette e Pe. J. Duroure. Heroes Authenticos.

Pe. César Albisetti. Motogeba — uma flor da floresta com quadros da vida Bororo. Imprimatur, 1962.

Pe. José Corazza. Cenos Históricos, s/d.

Pe. José Corazza. Carta Mortuária Missionária. I2 de dezembro de 1978. ISCG.

Pe. Thomas Ghiardelli. Uhe Wagúu. Imprensa Universitária do MT. 1982.

Breves noções de catecismo. Sem autor.

Missa em bororo. Sem autor.

Cinco lustros da Missão Salesiana em MT (Apreciações e apontamentos cronol.). Sem autor.

Actos do Capítulo Superior da Pia Soe. Salesiana. Sem autor. Salesianos defuntos da Insp. de MT e oeste de São Paulo nas bodas de diamante.

Sem autor.

A Missão Salesiana em MT e Goiaz no seu cinqüentenário (1898 — 1944). Sem autor.

Boletins Salesiano

Edição bras., 1902 a 1904. Leitura integral. A partir de 1904, dirigida às missões.

Page 501: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

10. A produção da alteridade: o Toré e as conversões missionárias e indígenas

ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo: Atica, 1989.

ARRUTI, José Maurício P. A. O reencantamento do mundo — Trama histórica e arranjos territoriais pankararu. Rio de Janeiro: PPGAS — Museu Nacional — UFRJ, 1 9 9 6 , 2 4 9 f .

. "Etnias federais": o processo de identificação de "remanescentes" indígenas e quilombolas no Baixo São Francisco. Tese de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional-UFRJ, 2002.

CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Identidade, etnia e estrutura social. São Paulo: Pioneira, 1976.

COUTINHO, Edilberto. Rondon, o civilizador da última fronteira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.

DÂMASO, Pe. Alfredo Pinto. O serviço de Proteção aos índios e a tribu dos carijós no sertão de Pernambuco. Rio de Janeiro (libreto), 1931.

DANTAS, Beatriz, LARANJEIRAS, Gus tavo e CARVALHO, Maria. O s p o v o s i n d í g e n a s

do Nordeste brasileiro — um esboço histórico. In: Os povos indígenas no Brasil. São Paulo: Companhia das letras/FAPESP/SMC, 1992.

HOORNAERT, Eduardo. O cristianismo moreno. Petrópolis: Vozes, 1990.

LIMA, Antônio Carlos de Souza. "A 'identificação' como categoria histórica". In: OLI-VEIRA, João Pacheco (org.) Indigenismo e territorializaçao: poderes, rotinas e saberes coloniais no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1998.

LINHARES, Lucy Paixão "Ação discriminatória: terras indígenas como terras públi-cas". In: OLIVEIRA, João Pacheco (org.) Indigenismo e territorializaçao: pode-res, rotinas e saberes coloniais no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1998.

MONTERO, Paula. "Tradição e modernidade: João Paulo II e o problema da cultu-ra". Revista Brasileira de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Anpocs/Relume Dumará,1992!

"O problema da cultura na Igreja Católica contemporânea". Estudos Avançados. USP, vol. 9, na 25, set/dez, 1995.

"A universalidade da Missão e a particularidade das culturas". In (coord.) Entre o mito e a história. Petrópolis: Vozes, 1996.

OLIVEIRA Fo., João Pacheco de. "A viagem da volta" — reelaboralção cultural e horizonte político dos povos indígenas no Nordeste. In: Atlas das Terras Indígenas do Brasil. Rio de Janeiro: Museu Nacional, 1993.

OLIVEIRA, Carlos Estevão. "Uma lenda tapuya dos apinagé do Alto Tocantins . Revista do Museu Paulista. São Paulo. Tomo XVII, 1931.

Page 502: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

OLIVEIRA, João Pacheco de. "Uma etnologia dos 'índios misturados'? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais". Mana — estudos de antropolo-gia social, 4/1, abril, PPGAS-MN-UFRJ, 1998.

PAIVA, Vanilda. "A Igreja moderna no Brasil". In: Paiva, V. (org.). A Igreja e a ques-tão agrária. São Paulo: Ed. Loyola, 1985.

PETI — PROJETO ESTUDOS SOBRE TERRAS INDÍGENAS. Atlas das Terras Indígenas do

Brasil. Rio de Janeiro: Museu Nacional, 1993..

QUEIROZ, Maria Izaura P. de. O campesinato brasileiro: ensaios sobre civilização e grupos rústicos no Brasil. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Ed. da USP, 1973.

RUFINO, Marcos P. "Algumas questões preliminares sobre a inculturação". Comunicação apresentada no Fórum de Pesquisa 14 da XXII Reunião da Associação Brasileira de Antropologia — Missões em áreas indígenas: fron-teiras e traduções, organizado por Paula Monteiro, Oscar Calavia e Marta Amoroso (Brasília: julho, 2000).

SANTOS, Silvio Coelho dos. O índio perante o direito. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1989.

STEIL, Carlos. "A Igreja dos Pobres: da secularização à mística". Religião e Sociedade, vol. 19, n2 2, out. 1998.

TURNER, Victor. O processo ritual: estrutura e anti-estrutura. Petrópolis: Vozes, 1974.

VELHO, Otávio "Culturas: uma perspectiva antropológica". In: Márcia PAIVA e Maria MOREIRA (coords.). Cultura. Substantivo plural. Rio de Janeiro: CCBB/São Paulo: Editora 34, 1996.

VEYNE, Paul. Acreditavam os gregos em seus mitos? Lisboa: Ed. 70, 1987 [1983].

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo "O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem". In: A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

11. Natal na maloca

"50 anos de D. Aldo Mongiano". Comunicado Mensal da CNBB, n2 472, junho/julho de 1993, pp. 1138-45.

ABREU, Stela. Aleluia: o banco de luz. Dissertação de Mestrado em Antropologia. Campinas: IFCH/Unicamp, 1995.

ANDRELLO, Geraldo. "Rumo Norte: migrações e profetismo taurepáng no século xx". Ciências Sociais Hoje, 1993.

ANDRELLO, Geraldo. "Profetas e pregadores: a conversão taurepáng à religião do Sétimo Dia". In: WRIGTH, Robin. Transformando os deuses: os múltiplos sen-

Page 503: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

tidos da conversão entre os povos indígenas no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 1999, pp. 285-308.

ARAÚJO, Melvina. Do corpo à alma: missionários da Consolata e índios Macuxi em Roraima. Tese de Doutorado em Antropologia Social. São Paulo: PPGAS/USP, 2003.

BARTH, Fredrik. "Por um maior naturalismo na conceptualização das sociedades". In: O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000, pp. 167-86.

CIDR. índios e brancos em Roraima. Coleção histórico-antropológica nfi 2. Diocese de Roraima, 1990.

GOW, Peter. Of mixed blood: kinship and history in peruvian Amazônia. Oxford: Claredon Press, 1991.

MONGIANO, Aldo. "A Igreja e a questão indígena". Comunicado mensal CNBB, nfí

467, novembro de 1992, pp. 2034-6.

"D. Aldo homenageado pelo Congresso. Entrevista concedida à impren-sa em 9 de agosto de 1990". Comunicado Mensal da CNBB, nfí 443 (1990-2), pp. 1164-7.

RIVIÈRE, Peter. Individual and society in Guiana. Cambridge: Cambridge University Press, 1984.

SANTILLI, Paulo. "Ocupação territorial macuxi: aspectos históricos e políticos". In: BARBOSA, Reinaldo Imbrozio (ed.). Homem, ambiente e ecologia no estado de Roraima. Manaus: INPA, 1997.

SANTILLI, Paulo. Fronteiras da república: história e política entre os macuxi no vale do Rio Branco. São Paulo: NHIl/FAPESP, 1994.

TURNER, Victor. O processo ritual: estrutura e antiestrutura. Petrópolis: Vozes, 1974.

Page 504: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

S O B R E O S A U T O R E S

ADONE AGNOLIN é formado em filosofia, com especialização em história das reli-giões, pela Universidade de Pádua (Itália). Obteve o doutorado em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), onde também desenvolveu seu pós-dou-torado em 2003, junto ao Departamento de História, com um projeto de inves-tigação sobre "Jesuítas e Selvagens: o encontro catequético do século xvi". Desde 2003 é professor de história moderna no Departamento de História da USP. Integra, desde 2002, os grupos temáticos « Missões cristãs e populações indíge-nas: o problema da mediação cultural", do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), "Dimensões do Império Português", do Departamento de História da USP. Tem vários artigos publicados em revistas nacionais e inter-nacionais. E autor dos livros O apetite da antropologia - o sabor antropofágico do saber antropológico: alteridade e identidade no caso Tupinambá (Humanitas) e Jesuítas e Selvagens: a negociação da fé no encontro catequético e ritual americano dos séc. xvi-xvii (no prelo). Organizou a edição brasileira da coleção História das religiões (Hedra).

ARAMIS LUIS SILVA, nascido em São Paulo (SP) em 1975, graduou-se em jornalis-mo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Libero e em ciências sociais pela Universidade de São Paulo, onde também obteve o mestrado em antropolo-gia social. Pesquisador do CEBRAP, atualmente desenvolve o doutorado, que dá seqüência à temática abordada na dissertação Deus e o bope na terra do sol — cul-turalismo na história de um processo de mediação.

ARTIONKA CAPIBERIBE é mestra em antropologia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e doutoranda pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde participa do Núcleo "Transformações Indígenas".

CRISTINA POMPA, doutora em ciências sócias pela Unicamp, é professora no curso de gestão de políticas públicas da USP e pesquisadora do CEBRAP, nas áreas de antropologia das religiões, história indígena e multiculturalismo. E autora de

Page 505: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

Religião como tradução - Missionários, Tupi e Tapuia no Brasil colonial (Edusc, 2003), prêmio ANPOCS de melhor tese em ciências sociais, e de numerosos artigos em revistas nacionais e internacionais.

JOSÉ MAURÍCIO P. A. ARRUTI é graduado em história pela Universidade Federal Fluminense e doutor em antropologia social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem desenvolvido pesquisas e publica-do sobre história e antropologia dos povos indígenas (Nordeste) e das populações quilombolas (Nordeste e Sudeste). Desde 2003, é pesquisador do CEBRAP.

MARCOS PEREIRA RUFINO é paulistano e bacharel em ciências sociais pela USP. Doutorou-se em antropologia pela mesma instituição, com uma monografia sobre a atuação da pastoral indigenista no país nas últimas três décadas. Foi pesquisa-dor do programa Povos Indígenas no Brasil, do Instituto Socioambiental, e pro-fessor da Fundação Escola de Sociologia e Política. Atualmente é professor de antropologia na Universidade Federal de São Paulo.

MARTA AMOROSO é doutora em Antropologia Social pela USP, onde atua desde 2000 como pesquisadora e docente. E membro fundador do Núcleo de História Indígena e do Indigenismo da USP. Sobre o tema das missões em áreas indígenas publicou Mudança de Hábito. Catequese e educação para índios nos aldeamentos capuchinhos do século xix (1998), Guerra e mercadorias — os kaingang nas cenas da Conquista de Guarapuava (2003) e Conquista do paladar — os kaingang e gua-rani para além das cidadelas cristãs (2003).

MELVINA ARAÚJO é doutora em antropologia social pela USP. E membro do CEBRAP e participa do projeto de pesquisa "Missões cristãs e populações indígenas: o pro-blema da mediação cultural".. Publicou vários artigos em periódicos especializa-dos e os livros Das ervas medicinais à fitoterapia (Ateliê) e Do corpo à alma (Humanitas). Foi pesquisadora do Groupe de Sociologie des Religions et de la Laícité/cNRS-EPHE, em Paris.

NLCOLA GASBARRO, graduado e especialista em ciências sociais e morais pela Universidade dos Estudos La Sapienza de Roma, foi pesquisador da cátedra de história das religiões dessa Universidade. Hoje é professor titular de história das religiões da Universidade dos Estudos da Universidade de Udine, Itália, e profes-sor titular de antropologia cultural no curso de especialização em lingüística da mesma universidade. Entre suas publicações destacam-se os livros Evoluzionismo e Sociohiologia; La "Città delllslam" e la "Città delia Guerra (1991) e 1492:... "apparve la terra" (1992) e o artigo "O Islã e nós", publicado no Brasil pela revis-ta Novos Estudos do CEBRAP.

Page 506: Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

PAULA MONTERO é professora titular do Departamento de Antropologia da USP e pesquisadora do CEBRAP. Lecionou em várias instituições no Brasil e no exterior. Especialista no estudo do campo religioso brasileiro, publicou, entre outros títu-los, Da doença à desordem — a magia na umbanda (1985) e Entre o mito e a his-tória — o V Centenário do Descobrimento da América (1996).

RONALDO DE ALMEIDA é professor do Departamento de Antropologia da UNICAMP e pesquisador do Cebrap e do Centro de Estudos da Metrópole. E mestre em antropologia pela UNICAMP e doutor na mesma área pela USP.