CENTRO FEDERAL DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA CELSO SUCKOW DA FONSECA - CEFET/RJ DIRETORIA DE ENSINO DEPARTAMENTO DE ENSINO SUPERIOR COORDENADORIA DE CURSOS DE PÓS -GRADUAÇÃO DISSERTAÇÃO TECNOLÓGICA MODERNIDADE, PÓS-MODERNIDADE E EDUCAÇÃO: REFLEXÕES SOBRE UM NOVO PARADIGMA SOCIAL. por Patricia Ferreira Santos JUNHO DE 1998
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MODERNIDADE, PÓS-MODERNIDADE E EDUCAÇÃO: REFLEXÕES SOBRE UM NOVO PARADIGMA SOCIAL.
Dissertação de Mestrado em tecnologia, CEFET-RJ. Apresenta reflexões sobre a construção dos paradigmas da modernidade contrapondo-o à crise moderna e a adoção de novos paradigmas pósmodernos.
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CENTRO FEDERAL DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA
CELSO SUCKOW DA FONSECA −−−− CEFET/RJ
DIRETORIA DE ENSINO
DEPARTAMENTO DE ENSINO SUPERIOR
COORDENADORIA DE CURSOS DE PÓS -GRADUAÇÃO
DISSERTAÇÃO TECNOLÓGICA
MODERNIDADE, PÓS-MODERNIDADE EEDUCAÇÃO: REFLEXÕES SOBRE UM
NOVO PARADIGMA SOCIAL.
por Patricia Ferreira Santos
JUNHO DE 1998
CENTRO FEDERAL DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA
CELSO SUCKOW DA FONSECA −−−− CEFET/RJ
DIRETORIA DE ENSINO
DEPARTAMENTO DE ENSINO SUPERIOR
COORDENADORIA DE CURSOS DE PÓS -GRADUAÇÃO
DISSERTAÇÃO TECNOLÓGICA
MODERNIDADE, PÓS-MODERNIDADE EEDUCAÇÃO: REFLEXÕES SOBRE UM
NOVO PARADIGMA SOCIAL.
Por Patricia Ferreira Santos
DISSERTAÇÃO TECNOLÓGICA SUBMETIDA AO CORPO DOCENTE DO
DEPARTAMENTO DE ENSINO SUPERIOR COMO PARTE DOS REQUISITOS
NECESSÁRIOS PARA A OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE EM
TECNOLOGIA.
Mírian Paura S. Z. Grinspun
ORIENTADORA
RIO DE JANEIRO, RJ - BRASIL
JUNHO DE 1998
CENTRO FEDERAL DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA
CELSO SUCKOW DA FONSECA −−−− CEFET/RJ
DIRETORIA DE ENSINO
DEPARTAMENTO DE ENSINO SUPERIOR
COORDENADORIA DE CURSOS DE PÓS -GRADUAÇÃO
DISSERTAÇÃO TECNOLÓGICA
MODERNIDADE, PÓS-MODERNIDADE EEDUCAÇÃO: REFLEXÕES SOBRE UM
NOVO PARADIGMA SOCIAL.
Patricia Ferreira Santos
DISSERTAÇÃO TECNOLÓGICA SUBMETIDA AO CORPO DOCENTE DO DEPARTAMENTO DE ENSINO
SUPERIOR COMO PARTE DOS REQUISITOS NECESSÁRIOS PARA A OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE
Em primeiro lugar, à minha família pelo incentivo recebido durante toda a
caminhada.
À orientadora Mírian por seu apoio gentil e pleno de sabedoria em todos
os momentos. E por dividir suas inquietações e conhecimentos sobre a educação,
instigando sempre a reflexão.
Aos mestres, colegas e amigos do CEFET-RJ que acompanharam este
trabalho, colaborando com suas idéias e críticas. E aos que, em preciosos
momentos de discussão, fizeram nascer e germinar essas idéias.
À colega Fátima Maria de Oliveira cuja leitura desta dissertação
demonstrou que uma das metas pretendidas foi alcançada, a de fomentar o
pensamento e a discussão sobre o mundo atual e a educação.
À equipe da Biblioteca Central do CEFET-RJ por sua colaboração e a
permanente disposição para ajudar.
ii
RESUMO
Este estudo analisa as críticas ao projeto de modernidade efetuada por
teóricos pós-modernos com vistas a subsidiar novas teorias educacionais que
acompanhem as transformações sociais percebidas na atualidade. Mudanças que,
por sua profundidade, são identificadas como sinais da substituição do paradigma
de pensamento moderno. Por esta razão, são inicialmente discutidos os diversos
conceitos de paradigma e sua importância para as estruturas societárias, assim
como para a determinação de consciências e percepções individuais. A relação
entre o Iluminismo, enquanto projeto de sociedade, e a modernidade é destacada
através da análise de seus fundamentos, assim como da investigação da
divergência percebida na concretização de suas metas em relação aos objetivos
iniciais. As críticas à modernidade apontam para duas possíveis direções de
mudança, que são sua reformulação ou superação. A pós-modernidade surge
como teoria, ainda em construção, que critica os fundamentos da modernidade
materializados nas ciências e nas relações sociais; a partir destas críticas, são
traçadas novas diretrizes que deverão guiar as ações futuras. A identificação de
objetivos educacionais mais adequados à nova realidade social apontam também
para duas direções principais: da adoção cada vez mais consciente das
determinações econômicas sobre as relações individuais ou coletivas e a da
percepção do homem como ser complexo, cuja formação depende de inúmeros
fatores. Aos educadores cabe a responsabilidade de formular planos educacionais,
definir novos objetivos e traçar estratégias de acordo com as escolhas realizadas
relativas às metas sociais mais gerais.
iii
RESUME
Cet étude analyse les critiques faites a l’égard du projet de la modernité pour des
théoriciens postmodernes, au but de fournir des subsides aux nouvelles théories en
éducation que suivent les transformations sociales de atualité. Ces changements, pour sa
portée, s’identifient avec le remplacement du paradigme de la pensée moderne. Pour
cette raison, les divers concepts de paradigme sont examinés au début, ainsi que leur
importance pour l’ensemble de la societé, et pour la détermination des consciences et
perceptions individuelles. La relation entre l’Illuminisme, comme projet de la societé, et la
modernité est détachée selon l’analyse des ses fondements, ainsi que la divergence
notée entre la matérialisation de ses objectifs et le projet original. Les critiques à la
modernité indiquent deux directions possibles pour les changements: une nouvelle
formulation ou son surpassement. La postmodernité sourde comme théorie, encore en
construction, qui critique les fondements de la modernité aperçus dans les sciences et
dans les relations sociales; à partir de ces critiques, les nouvelles orientations sont fixées
pour guider les actions à l’avenir. La recherche d’objectifs en éducation plus convenables
à la nouvelle realité sociale signale aussi deux directions principales: l’adoption de plus en
plus consciente des déterminations économiques pour les relations individuelles ou
collectives, et laquelle que tient l’homme pour un être complexe, de qui la formation
provient de plusieurs facteurs. Aux éducateurs la responsabilité de formuler les projets
d’education, de définir les nouveaux objectifs et de tracer des stratégies mises en accord
avec les choix concernées aux objectifs sociauxs plus générals.
iv
Sumário
INTRODUÇÃO 1
1. O PROBLEMA 12. OBJETIVOS E QUESTÕES PARA ESTUDO 73. ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO 8
CAPÍTULO I: ANTECEDENTES DO PROJETO MODERNO 10
4. CONSOLIDAÇÃO E SUPERAÇÃO DE PARADIGMAS 104.1. A SOCIEDADE MODERNA E SUA RELAÇÃO COM A CRISE DE PARADIGMAS 104.2. CONCEITUAÇÃO DE PARADIGMAS 114.3 A CIÊNCIA NORMAL E A VIGÊNCIA DE PARADIGMAS 144.4. A IMPORTÂNCIA DO PARADIGMA NA RELAÇÃO DO HOMEM COM O MUNDO 164.5. CRISE E MUDANÇA PARADIGMÁTICA 184.6. MUDANÇA DE PARADIGMAS NA CIÊNCIA: A FÍSICA NO SÉCULO XX 214.7. TENDÊNCIAS ATUAIS DE MUDANÇA PARADIGMÁTICA 23
5. MODERNIDADE , MODERNISMO E VANGUARDA ARTÍSTICA 276. O IDEAL ILUMINISTA 30
6.1. CARACTERÍSTICAS DO ILUMINISMO E DA MODERNIDADE 306.2. INDIVIDUALIDADE 356.3. AUTONOMIA 396.4. RACIONALIDADE 41
CAPÍTULO II: A CONCRETIZAÇÃO DO PROJETO MODERNO E A PÓS-MODERNIDADE 46
7. SÉCULO XX: A CONCRETIZAÇÃO DA MODERNIDADE 467.1. MODERNIZAÇÃO CAPITALISTA 467.2. DESCRENÇA NO FUTURO 497.3. A ARTE E A MULTIPLICIDADE DE LINGUAGENS E SISTEMAS DE REPRESENTAÇÃO 517.4. CRÍTICA À RAZÃO MODERNA EM HORKHEIMER 547.5. CRÍTICA À RACIONALIDADE E RACIONALIZAÇÃO EM HABERMAS 587.6. CRÍTICA À MODERNIDADE EM NIETZSCHE 64
8. A PÓS-MODERNIDADE 708.1. DEFINIÇÃO DO CONCEITO DE PÓS-MODERNIDADE 708.2. A PÓS-MODERNIDADE E OS JOGOS DE LINGUAGEM 728.3. CARACTERÍSTICAS DA PÓS-MODERNIDADE 778.4. CONTRIBUIÇÕES DA PÓS-MODERNIDADE ÀS NOVAS TEORIAS SOCIAIS 84
CAPÍTULO III: EDUCAÇÃO 90
9. REPENSANDO A EDUCAÇÃO 9010. PÓS-MODERNIDADE E EDUCAÇÃO 9511. NOVOS OBJETIVOS EDUCACIONAIS 10012. IMPORTÂNCIA DO DIÁLOGO PARA A NOVA PRÁTICA EDUCATIVA 10613. REFORMULAÇÃO DOS CURRÍCULOS 11014. MODERNIZAÇÃO E QUALIDADE EDUCACIONAL 11315. ORIENTAÇÕÈS PARA NOVAS TEORIAS EDUCACIONAIS 117
CONCLUSÃO 120
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 124
Introdução
1. O problemaPercebe-se, atualmente, nos meios de comunicação e em publicações e
discussões no meio acadêmico, preocupação com as mudanças sociais que têm
ocorrido devido ao desenvolvimento e uso extensivo da tecnologia em todos os
setores. A situação desta sociedade é descrita, comumente, como resultado da
decadência da sociedade moderna, manifesta pela descrença nas instituições
políticas, judiciárias, religiosas e pedagógicas que regulam a vida social. Existe o
consenso de que os ideais modernos, inaugurados com o Iluminismo no mundo
ocidental, passam por grave crise, e por isso, a sociedade tecnologizada e
informatizada é tema constante de debates. Esta sociedade é fruto de um paradigma,
inaugurado com a ciência moderna, que por alguns séculos tem predominado no
mundo ocidental, caracterizando-se por grandes avanços na ciência e na técnica, pela
industrialização crescente, pela crença no mito do progresso contínuo e melhoria da
qualidade e expectativa de vida.
Tópico constante nestas discussões é o estágio de crise que a sociedade
atravessa, facilmente percebido na deterioração das relações humanas, na freqüência
e alcance dos conflitos e atos de violência, e na proliferação da miséria; e ainda por
“indicadores de desemprego, marginalização e
deterioração dos serviços públicos de Saúde e de Educação,
inclusive nos países mais ricos do centro capitalista. No
entanto, evidencia-se ainda mais profundamente na inquietante
quebra de valores solidários, quebra essa manifestada no
reaparecimento do racismo, da xenofobia e da múltipla
expressão da violência social. (…) o ‘outro’ aparece cada vez
mais como alguém que incomoda, que é preciso afastar,
ignorar ou destruir.” (PLASTINO, 1994, p. 43)
1
Paralelamente, novas descobertas científicas têm posto em dúvida alguns
conceitos e fundamentos básicos que ajudam o homem a se situar no mundo e a
compreendê-lo. A interpretação da crise como momento de transformação
paradigmática resultando em tensionamento nas relações sociais − claramente
perceptível no dia-a-dia por seus efeitos destruidores e alienantes − remete à
necessidade de identificação dos valores fundantes desta mesma sociedade. O
enfraquecimento da fé no progresso da ciência e da técnica, assim como a ameaça às
liberdades individuais são responsáveis pela descrença no progresso contínuo típica
da era moderna, e que se anuncia, muitas vezes, como descrença generalizada,
niilista. A própria noção de progresso dissolve-se em pontos de vista político-
ideológicos diversos. Rouanet (1993) afirma:
“O que está em crise é o projeto moderno da civilização
elaborado pela ilustração européia a partir de motivos da
cultura judeo-clássico-cristã e aprofundado nos dois séculos
subseqüentes por movimentos como o liberal-capitalismo e o
socialismo”. (p. 9)
Afirmar que a modernidade já está superada, e que é necessária nova
estruturação social é, ainda, tema contraditório. Os elementos constituintes da
sociedade moderna, como a racionalidade, individualidade e emancipação, são
criticados por diversos autores − que se apresentam como pós-modernos − por terem
se tornado, na prática, ferramentas a serviço do totalitarismo em suas diversas
manifestações (HARVEY, 1989, p. 23 ss).
Santos (1996) apresenta a tese de que a modernidade foi estruturada antes do
capitalismo ter se tornado dominante, de modo semi-independente e está sendo
questionada em um momento em que o capitalismo atinge sua maior expressão e
alcance. Isto ocorre através de um processo, ao mesmo tempo, de obsolescência e
superação. Parte dos valores que a modernidade defendia foram concretizados, com
conseqüências nem sempre desejáveis, e parte se perdeu ao longo do tempo. Alguns
2
destes mantêm sua atualidade − como a igualdade e justiça para todos − enquanto
outros são revistos.
O projeto da modernidade, a partir do século XIX, tornou-se vinculado ao
desenvolvimento do capitalismo, respondendo com mudanças internas a cada uma de
suas fases. Para Santos (op. cit.) a situação atual é a de um “capitalismo
desorganizado”, a que corresponde uma sociedade desequilibrada, que cumpriu, em
parte, os objetivos do projeto, e aponta como a única forma de resgatar os ideais
ainda considerados válidos, a emergência de paradigma diferente, que possibilite
nova significação desses valores. O mesmo autor entende que este momento de
transição é denominado pós-modernidade na falta de um nome melhor, uma vez que
a contemporaneidade das transformações impede a visão clara de suas
características. O século XX apresenta-se como um século frágil, infeliz, que
“tem-nos vindo a convencer … que, em vez de um século-
prodígio, nos coube um século idiota, dependente dos pais [os
séculos XVIII e XIX], incapaz de montar casa própria e ter uma
vida autônoma”. (SANTOS, op. cit., p. 75)
Rouanet (op. cit.), ao defender os ideais iluministas, afirma que a modernidade
não chegou a se concretizar plenamente, embora já existam correntes que a rejeitem
em busca de novo modelo. Ainda outros autores − como Habermas (1975), e, de certa
forma, Harvey (op. cit.) — quando evita comprometer-se radicalmente com o
paradigma pós-moderno e parte para a análise das contribuições de ambos os
modelos para a constituição de nova estrutura social − defendem a posição de que
não se trata de superar a crise provocada pela modernidade, mas sim de corrigir o
desvio ocorrido em sua implantação. Santos (op. cit.) aceita contribuições da
modernidade, mas defende sua reformulação, pregando a rejeição de alguns dos
ideais modernos e a reelaboração de seus conceitos e valores. Lyotard (1988) é mais
radical, e nega todas as idéias modernas. O Iluminismo e a modernidade contribuem
para a formulação de novo paradigma na medida em que seus fundamentos são
3
compreendidos como potencialmente danosos, ou apenas fruto de desvios em sua
concretização.
“A posição a tomar depende de como se explica o ‘lado
sombrio’ da nossa história recente e do grau até o qual
atribuímos aos defeitos da razão iluminista, e não à falta de sua
correta aplicação”. (HARVEY, op. cit., p. 24)
Santos (op. cit.) destaca que a complexidade do projeto da modernidade já traz
em si aspecto contraditório, derivado da tensão entre seus diversos objetivos. A
construção paradigmática e abstrata de valores como identidade, liberdade e
autonomia em oposição a outros como solidariedade, igualdade e justiça, cria a
necessidade de mútuas concessões e “compromissos pragmáticos” (p. 78), uma vez
que o projeto inicial visa, necessariamente, à concretização destes ideais.
Mesmo entre os que vislumbram um modelo pós-moderno de civilização, não
existe, até o momento, quadro conceitual consistente assinalando a superação dos
fatores crísicos que ameaçam o equilíbrio das sociedades e a manutenção da paz e
da justiça. Valores que, frutos do Iluminismo, ainda não perderam sua vigência.
Quer apontemos para uma sociedade pós-moderna quer para o resgate dos reais
valores modernos, a crise identifica-se com uma ruptura no tecido da cultura ocidental.
Seja qual for a posição adotada − e, principalmente, para que se possa escolher uma
posição conscientemente − é necessária a revisão do projeto de vida e de sociedade
ocidentais, o que levará a uma posição neomoderna de resgate do Iluminismo, ou à
sua erradicação total − tendência seguida por Lyotard (op. cit.) − com a instauração da
cultura pós-moderna.
Neste contexto em que a aplicabilidade de um paradigma é questionada sem a
existência de um sucedâneo, percebe-se a importância da educação: uma construção
social cujo objetivo primeiro tem sido o de transmitir conhecimentos e valores para as
gerações, formando os elementos que compõem o conjunto da sociedade.
Reconhecendo que a educação tem seu fundamento nas relações sociais mais
4
amplas e que seu objetivo principal é integrar o indivíduo a seu meio, torna-se
necessária a investigação das vertentes de pensamento que apontam para a
instauração de novo paradigma. Especialmente em sua contribuição para uma
educação mais eficaz; incluindo-se, ainda, a discussão da própria noção de eficácia.
“O alcance dos objetos que simbolizam o progresso se
expressa sempre em termos de eficácia — consegui-los
realmente — e de eficiência — não apenas conseguir os
objetos simbólicos, mas fazê-lo mediante o melhor uso dos
meios. A troca ... provém do fato de que os objetos desejados,
os que simbolizam o progresso, estão, por um lado, sempre
mudando — o culto do novo — e, por outro, a maneira de
consegui-los também está em permanente mudança.”
(CASASSUS, 1993, p. 7)
A discussão sobre a substituição de um modelo moderno de sociedade, ou
educação, por um outro pós-moderno será relevante por fornecer indícios do tipo de
mudanças que têm ocorrido.
Em uma leitura rápida e mesmo assistemática da produção literária específica da
área educacional, percebe-se a profusão de temas relacionados à Modernidade e
Qualidade em Educação, à Modernização e Tecnologia Educacional, e a outros
correlatos. Temas que retratam a inquietação de todos os envolvidos com os atuais
rumos do processo educativo, e a preocupação em preparar os educandos para uma
sociedade profundamente tecnologizada e complexa, e ainda, em modernizar a
educação buscando sua inserção em uma sociedade global composta por diferenças
culturais marcantes que caminha no sentido da integração cultural, social e
econômica; e, ainda, pensando na modernização técnica da prática educacional ou,
em outro sentido, na visão da educação como meio para a melhoria das condições
sociais, encarando a modernização como o caminho para a construção de uma
sociedade referenciada no futuro, conforme aponta Casassus (op. cit.) e Demo (1993,
5
p. 20): “Modernizar significa o desafio que o futuro acena para as novas gerações, em
particular seus traços científicos e tecnológicos”.
Outras vertentes apontam para uma pedagogia crítica que desvele as relações de
dominação provocadas pelos discursos hegemônicos típicos da modernidade, e
alertam para o potencial niilismo resultante da radicalização das idéias pós-modernas,
como em Giroux (1993) e Silva (1993).
Por outro lado, a quantidade de informações e estímulos a que estão sujeitos
todos os membros de uma sociedade cresce a cada dia, e não é possível negar seu
potencial educador pela atração que exerce sobre todos. A cultura do espetáculo, da
massificação dos sentidos, levanta novas questões sobre o significado ético ou moral
do que é transmitido pelos meios de comunicação de massa, e problematiza a
questão dos valores éticos sobre os quais a sociedade é construída.
Ao educador é necessário reconhecer as mudanças e repensar o processo
educacional tendo em vista as diversas influências externas sobre o educando que o
avanço dos meios de comunicação possibilita. Com atenção especial ao sentimento
de impotência que as afirmações pós-modernas sobre a fatuidade da realidade e do
próprio sujeito produzem.
Esta análise leva a dois rumos paralelos de reflexão. Um deles, iniciado nos
Estados Unidos já há algum tempo, busca “vincular a formação escolar com formas
específicas de produtividade, na teoria e na prática” (ASSMANN, 1993, p. 3), em
estreito relacionamento com a ideologia do Mercado Total, resultando em correntes
que defendem a modernização da prática educacional. Outro, que destaca o papel da
educação como “formadora de sujeitos humanos (ibid., p. 12), preocupando-se com a
formação da cidadania e da própria identidade. Estas duas tendências partem de uma
realidade dada e, ao interpretá-la, buscam significar a ação educativa, com resultado
diverso e, por vezes, oposto.
Um terceiro aspecto da relação educação-sociedade surge ao analisá-la
criticamente para, se necessário, atuar de forma a modificá-la, através da percepção
6
de que não é apenas necessário adaptar a educação às condições da realidade, mas
de rediscutir a própria educação como um todo, como destaca Assmann (op. cit.),
além de se discutir o conceito de realidade. E procurar um modo de responder a
questões que as atuais teorias educacionais − e as de ciências correlatas − não
atendem, ou, mesmo, levantar questões inéditas. O que reconduz à reflexão sobre a
mudança de paradigma que suscita estas questões, assim como o entendimento do
processo que levou a sociedade moderna ao atual estado crísico em que se encontra,
questionando todas as “manifestações e expressões de vida pública” como afirma
Giroux (op. cit., p. 42) e redefinindo o significado de escolarização.
Neste estudo os princípios básicos da modernidade deverão ser identificados e
verificada a forma como ocorre a interação entre educação e as demais práticas de
uma sociedade moderna.
2. Objetivos e Questões para estudo
A relação estreita das metas educacionais com as expectativas da sociedade
tornam necessária a compreensão destas últimas a fim de que se possa definir as
primeiras.
A vida em um mundo tecnológico implica novas relações com o cotidiano e com o
trabalho, e ambas implicam renovadas demandas educacionais. Sendo assim este
estudo buscará inicialmente identificar na estrutura formadora do pensamento
moderno os pontos críticos que se colocam como obstáculos para o desenvolvimento
das relações sociais, entendidas no sentido da melhoria de qualidade de vida dos
homens em geral, e a partir desta identificação, destacar os fatos que apontam para
uma mudança paradigmática nas relações sociais. E, por fim, identificar as novas
tendências educacionais que atendem ao paradigma social que se configura.
Para refletir sobre os objetivos declarados acima, as questões que se apresentam
são: Quais os princípios formadores da sociedade moderna? Tais princípios foram
concretizados plenamente de acordo com seu projeto original? De que forma são
7
constituídas as teorias sociais propostas como substitutas ao paradigma da
modernidade? Quais as teorias e metas educacionais propostas que se adequam às
tendências identificadas no novo paradigma social?
3. Organização do trabalho
Esta dissertação será dividida em três momentos principais, tendo a sua
construção um foco de interesse no estudo que vai desde a discussão sobre a
modernidade, até a análise da educação segundo a abordagem que se apresenta na
sociedade atual.
O primeiro capítulo relaciona-se à definição de conceitos primordiais para o
encaminhamento da discussão central deste estudo, que é a nova sociedade fruto da
substituição ou transformação paradigmática, o que será tema dos quatro itens
iniciais. O primeiro deles aborda os diversos significados que o termo paradigma
assumiu em diferentes momentos históricos, assim como seu sentido mais comum,
ligado ao campo científico. Ainda no primeiro item será discutido o modo como os
paradigmas são constituídos e legitimados, e sua relevância para o homem e suas
relações; e, por fim, as tendências percebidas para a construção do paradigma pós-
moderno. O segundo item, visa esclarecer a diferença entre termos usados
comumente com sentidos muito próximos, e que serão bastante discutidos ao longo
do estudo: modernidade, Modernismo e vanguarda. No terceiro, é traçado um
histórico das características fundamentais que compõem o projeto da modernidade,
originadas no Iluminismo.
O segundo capítulo é composto de dois itens: no primeiro, examina-se o modo
como os princípios modernos foram concretizados na realidade, e a forma como o
capitalismo tornou-se conceito indissociável da sociedade moderna, juntamente com
idéias de autores que defendem e criticam o projeto moderno. No último item, são
destacados os pontos principais que caracterizam as novas teorias de tendência pós-
moderna.
8
O terceiro e último capítulo trata da teoria e prática educativas, seus fundamentos
e críticas, e a avaliação dos rumos teóricos percebidos para o futuro. A análise será
realizada pela comparação entre a idéia moderna sobre o que constitui a educação,
as mudanças decorrentes da adoção das tendências sociais pós-modernas, e a
configuração paradigmática que se assinala para a adequação da educação à nova
realidade social que se concentra em duas principais orientações: a modernização
educacional, enfocando o que se entende por modernização, e a formação do
indivíduo integral, com ênfase na valorização do diálogo.
Ao final, são apresentadas conclusões sobre o estudo, e apontadas algumas
linhas de investigação teórica para dar prosseguimento às transformações
educacionais necessárias ao novo quadro social apresentado.
9
Capítulo I: Antecedentes do Projeto Moderno
4. Consolidação e superação de paradigmas
4.1. A sociedade moderna e sua relação com a crise de paradigmas
A situação de crise configura-se por um desgaste das relações sociais e está
relacionada a qualquer alteração na normalidade de um processo, correspondendo a
“um aumento da desordem e da incerteza no seio de um
sistema (individual ou social). Essa desordem é provocada por
e provoca o bloqueio de dispositivos organizacionais
reguladores, determinando neles rigidez e desbloqueio de
virtualidades até então inibidas”. (MORIN, 1984, p. 154)
Na definição acima, revelam-se dois pontos importantes para reflexão: o primeiro
relaciona-se ao desconforto dos indivíduos frente à alteração das situações
cotidianas, oriundo da desordem do sistema ; e o segundo, ao surgimento de novas
relações que passam a ordenar o corpo social. Este último, em especial, fornece os
elementos para a superação das situações de crise que, eventualmente, as
sociedades atravessam, oferecendo a possibilidade de análise e renovação deste
processo, não implicando sempre desorganização, mas também reorganização. Kuhn
(1982), assim como Morin (op. cit.), identifica as situações crísicas com momentos de
busca de novas soluções, pontos de origem de possíveis evoluções no conhecimento
científico e nas relações sociais, e atividades criativas. Tomando como exemplo a
negação dos fundamentos da ciência, no século XVII, temos como resultado o
acréscimo de conhecimento e explosão de novas teorias que serviram para fecundar
ainda mais sua prática.
A crise contemporânea é universal, atua em todos as áreas − política, moral,
ciência, técnica, arte e religião −, revela-se em todos os meios de comunicação e nas
conversas cotidianas, afetando o homem tanto individual quanto coletivamente,
configura-se como crise que afeta todas as certezas e relações humanas. Em
10
especial, num dos aspectos mais visíveis da sociedade que se identifica como
tecnológica e/ou da informação: sua base científica. O desgaste nas relações sociais,
por sua gravidade e extensão, indica mudança profunda em seus moldes básicos,
atuando sobre o próprio fundamento da sociedade, de acordo com o paradigma
adotado.
4.2. Conceituação de paradigmas
O termo paradigma, originalmente, significa modelo ou padrão, e assume na
filosofia sentidos diferenciados.
Desde as mais antigas culturas, o homem tem buscado se libertar do jugo do
acaso através da elaboração de categorias de conhecimento, que ora buscam a
compreensão, ora a previsão e o relativo controle dos eventos naturais a que está
sujeito. Estas categorias assumiram primitivamente caráter mítico, suprindo a
necessidade básica de entender o mundo, e foram estabelecidas a partir de intuições
da realidade e expressas através de narrativas simbólicas. Já nesta etapa a função do
mito é a de estabelecer os ritos sociais e ordenar as atividades humanas, adotando,
desde então, sentido modelar.
Na Grécia, as questões se voltam para o fundamento de todas as coisas, não se
concentrando apenas nas relações e nos eventos, mas na própria essência de cada
objeto ou fenômeno natural. As respostas não são encontradas através de intuições,
mas na estrutura mais complexa do pensamento. Pelo uso da razão, os gregos
buscaram compor estruturas lógicas baseadas em conceitos bem definidos e
coerentemente articulados, freqüentemente sujeitos à discussão como forma de
manter sua coerência e verdade. A veracidade de uma teoria respondia, então,
apenas à sua lógica constitutiva.
A visão de mundo encontrada em Platão relaciona todos os objetos a modelos
ideais: conceitos que existem a priori da nossa percepção não sendo construídos pela
11
razão, mas por ela reconhecidos como a própria essência de cada ente do mundo da
matéria. É modelo puramente abstrato.
Analisando mais profundamente este sentido, Plastino (op. cit.) alerta para a
relação etimológica existente entre visão e idéia, que tem origem, em grego, no verbo
ver; estendendo o conceito à percepção dos objetos, tanto na forma como esta ocorre
quanto no aspecto oferecido por estes mesmos objetos. Consideração que remete ao
sentido moderno de paradigma centrado na observação do real. Em Platão, ao
contrário, a idéia pura é inatingível, pode apenas ser concebida pela mente, de forma
imperfeita.
Descartes seguiu a orientação platônica das formas puras, embora acreditasse
que o exercício da racionalidade estaria sempre ligado a utilidades práticas, visando
ao controle da natureza, e deveria concorrer para a felicidade e bem-estar terrenos:
“Pois elas [noções gerais relativas à Física] me fizeram crer
que é possível chegar a conhecimentos que sejam muito úteis
à vida, e que … poderíamos empregá-los da mesma maneira
em todos os usos para os quais são próprios e assim nos
tornar como que senhores e possuidores da natureza”.
(DESCARTES,1983, p. 63)
Toda a sua teoria volta-se para objetivos práticos: o de conduzir os estudos
científicos e ordenar as ações humanas. É através da obediência a um método
determinado que o pensamento pode alcançar o conhecimento verdadeiro, livre das
ilusões e desvios ocorridos quando da percepção direta das coisas. O paradigma
cartesiano, elaborado a partir das “idéias claras e distintas”, consiste em universo
finito, contínuo e sujeito a leis uniformes no qual os conhecimentos seriam somente
alcançáveis através da racionalidade guiada pelo método anunciado.
Em Descartes, o paradigma assume duas conotações distintas: a primeira
associada a um modelo de universo construído na teoria e a segunda está ligada ao
próprio sentido de método, um modelo para toda investigação científica. Estas duas
12
significações do termo até hoje se confundem na determinação do que seja o
paradigma. Para as ciências, de modo especial, ambas são igualmente relevantes. O
modelo cartesiano de universo foi refutado, em parte, durante o processo de
constituição da ciência moderna − especialmente quanto à sua dependência de um
Deus criador onipotente, e a ausência das relações temporais de causa e efeito entre
os eventos −, mas sua estruturação lógica e coordenada de conceitos fundantes
tornou-se vital para o desenvolvimento da ciência até os dias de hoje.
Nos séculos XVI e XVII, com a Revolução Científica, o conceito de paradigma
identificou-se mais com o conhecimento teórico sobre os objetos e suas relações do
que com suas características imanentes; radicando-se no sujeito conhecedor, numa
racionalidade subjetiva. As bases da nova ciência foram fundadas “no próprio
indivíduo, em sua natureza sensível e racional” (MARCONDES, 1994, p. 19). Uma
característica importante deste novo paradigma é seu aspecto investigativo,
questionador, que o diferenciou dos anteriores baseados na tradição. Para tanto fazia-
se necessária a autonomia da consciência individual.
No Iluminismo, o novo tipo de relação do homem com o mundo atingiu seu ápice,
com a razão, a autonomia e a subjetividade embasando todo o pensamento iluminista
e, posteriormente, moderno. Esta nova racionalidade iria privilegiar a experiência e os
sentidos, determinando um modelo de mundo quantitativamente definido. A laicização
do saber, conjugada à matematização dos fenômenos naturais inaugura nova etapa
de produção de conhecimento, configurando ruptura de paradigma.
Diversas teorias surgem para definir o método de investigação na ciência,
privilegiando a dedução, a indução ou a analogia, todas estas entretanto baseiam-se
em modelos teóricos, sujeitos à experimentação.
4.3 A ciência normal e a vigência de paradigmas
Para Kuhn (op. cit.), uma das características determinantes da ciência “normal” é
a sua relação com um modelo norteador que possibilita a própria investigação
13
científica: “A ciência normal … é baseada no pressuposto de que a comunidade
científica sabe como é o mundo” (p. 24). Ciência normal, para o autor, é a ciência
desenvolvida durante o período de vigência de um paradigma. Neste sentido, irá
consistir em: “realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum
tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de
praticantes de uma ciência” (ibid., p. 13); ou, ainda, “uma comunidade científica
consiste em homens que partilham um paradigma” (p. 219).
Percebe-se, assim, que o paradigma se revela como construção teórica, baseada
em fenômenos materiais, que depende da aceitação de um grupo de indivíduos para
que possa manter-se, até a ruptura para o surgimento de um novo paradigma. Nesta
interpretação, apresenta-se com conotação ideológica e valorativa relevante. Atinge
radicalmente a relação do homem com o mundo, não apenas em uma reinterpretação
da natureza à luz de novas regras, mas de verdadeira reconstrução da maneira como
se dá a percepção, pois esta é, também, definida pelo paradigma:
“Alguma coisa semelhante a um paradigma é um pré-requisito
para a própria percepção. O que um homem vê depende tanto
daquilo que ele olha, como daquilo que sua experiência visual
prévia o ensinou a ver. (KUHN, op. cit., p. 148)
É razoável supor que a aceitação de um novo paradigma não é imediata, faz-se
necessário testar a nova teoria em diferentes situações para que sua validade seja
reconhecida. Neste ínterim, a existência de teorias conflitantes é natural. No estudo da
história das ciências, Kuhn (op. cit.) estabelece que houve, em várias épocas, a
coexistência entre paradigmas opostos e mesmo contraditórios, somente no momento
em que uma teoria responde a maior número de questões, sendo aceita pela maioria,
é que ela converte-se em paradigma.
Esta aceitação não depende unicamente de critérios científicos, a sociedade
como um todo, e o cientista enquanto membro desta sociedade, devem estar prontos
para a mudança paradigmática. Segundo Morin (op. cit.), a “certeza objetiva” oriunda
14
de um sistema teórico alia-se a um “compromisso subjetivo”, que provoca a defesa
fervorosa das novas “verdades” estabelecidas. Uma vez aceito o novo paradigma,
todas as pesquisas subseqüentes são realizadas em seu âmbito: o novo conjunto de
conceitos define, por extensão, novo conjunto de questões a serem estudadas, que
compõe o quadro da produção científica, de acumulação de conhecimentos. Aqui, o
paradigma resulta em conjunto de critérios determinando o tipo de questões que se
deve investigar, correspondendo a regras de investigação, ainda que sujeitas a
diferentes interpretações. E é este sentido que predomina nas ciências.
Segundo Kuhn (op. cit., p. 60):
“um paradigma pode até mesmo afastar uma comunidade
daqueles problemas sociais relevantes que não são redutíveis à
forma de quebra-cabeças, pois não podem ser enunciados nos
termos compatíveis com os instrumentos e conceitos
proporcionados pelo paradigma”.
Devido a esta característica, entre outras, o cientificismo − entendido como a
crença no poder da ciência para resolver todos os problemas da humanidade e
satisfazer a todas as suas necessidades − pôde se desenvolver tão plenamente a
partir do século XVII. A ciência moderna tornou-se eficiente no tipo de questões a que
se propôs responder, não obstante suas conseqüências danosas em outros aspectos
da vida humana.
Na definição platônica, o modelo ideal, ligado à essência dos objetos, assumia
caráter normativo que excluía qualquer possibilidade de superação ou ausência de
paradigmas. No conceito de Kuhn (op. cit.), entretanto, um determinado paradigma
não é definitivo. Com o tempo surgem novas questões a que o paradigma anterior não
consegue responder. A exigência da mudança paradigmática é fruto, então, da
inadequação da teoria aos fatos. Esta inadequação pode se dar de duas formas:
através de causas internas decorrentes de desenvolvimento teórico e metodológico,
ou causas externas, devido a mudanças na sociedade e cultura. Há que se notar,
15
ainda, que o desenvolvimento científico provoca acréscimo em saber tecnológico que,
por sua vez, incrementa este mesmo desenvolvimento; e as mudanças científico-
tecnológicas afetam a cultura e a sociedade onde ocorrem, vindo a sofrer a influência
destas modificações sócio-culturais. Existe, então, uma dinâmica de interação sempre
presente entre a produção científica, a tecnologia e a sociedade.
4.4. A importância do paradigma na relação do homem com o mundo
Os paradigmas assumem tal importância que mudanças em sua composição
correspondem a revoluções, em paralelo com as revoluções políticas. Estas são
sempre precedidas por períodos de insatisfação com as instituições vigentes: “o
sentimento de funcionamento defeituoso, que pode levar à crise, é um pré-requisito
para a revolução” (KUHN, op. cit., p. 126). Da mesma forma, a falta de padrão
conhecido que possa ajudar o homem a compreender as interações a que está
sujeito, com a natureza e com os outros homens, provoca profunda insegurança: a
ameaça do “acaso” torna a aparecer.
A substituição de um paradigma corresponde à renúncia a verdades até então
determinantes nas relações do cientista com o mundo físico; e do homem com seu
meio. O “silêncio dos espaços infinitos” que apavorava Pascal ilustra perfeitamente
este sentimento, assim como, neste século, a afirmação de Einstein quanto à
realidade da nova Física:
“Era como se o solo tivesse sido retirado de sob nossos
pés, sem que se conseguisse vislumbrar qualquer base sólida
sobre a qual pudéssemos erguer alguma coisa”.
(EINSTEIN apud CAPRA, 1983, p. 47)
A perplexidade advinda da ausência de um modelo de mundo − ou do sistema de
crenças que constituem este modelo −, leva os homens a buscar algum aspecto que
possa garantir minimamente sua segurança.
16
A consolidação e superação de paradigmas resulta em insegurança radical que
permeia todas as relações humanas. Pelo enfoque da psicologia, vemos que a
adoção de um novo paradigma não é suficiente para restabelecer no homem a
confiança na razão como instrumento para sua interação com o mundo. Existe a
possibilidade de que estes novos paradigmas também sejam superados
posteriormente. Não se trata somente da substituição de uma verdade por outra mais
eficiente, mas da forma como o homem vivencia esta situação.
Neves (1994) relaciona a angústia experimentada nestes momentos com a
reativação dos “medos básicos” do homem: “medo do retorno ao estado confusional
inicial de sua vida”, “medo do ataque do novo” e “medo da perda do que já estava
estabelecido” (p. 50). O paradigma não tem somente a função de permitir a
compreensão do mundo exterior, mas, também, o autoconhecimento. Na própria
formação e consolidação das culturas, os modelos ou ritos sociais assumiram papel
de relevo, proporcionando aos homens a segurança que advém do conhecimento da
posição que ocupam no mundo e das relações a que estão sujeitos, e como
responder a elas.
Estabelecido o quadro de crise, o homem irá procurar superá-lo de duas possíveis
maneiras, ainda segundo a autora citada acima: “pela transferência da
responsabilidade da veracidade da crença para o peso da fundamentação teórica …
e/ou pela transferência dessa responsabilidade para o outro” (idem). E aponta para
uma terceira, do homem tornar-se “sujeito conhecedor, a partir de uma posição crítica
sobre os paradigmas que se estão instaurando” (p. 51).
Qualquer uma destas formas deve permitir a comunicação entre os homens,
sendo necessária uma base comum que permita sua efetivação. Esta é outra função
do paradigma, prover os homens de um modelo com o qual se identifiquem e a partir
do qual a relação interpessoal possa se dar.
17
4.5. Crise e mudança paradigmática
No século XVI, a inadequação do paradigma ligava-se à incongruência
encontrada entre a observação da natureza e as verdades estabelecidas, então, pela
fé religiosa quanto ao sistema de mundo. Esta revolução, a mais marcante na
constituição da sociedade moderna, começa pela construção de um novo modelo de
mundo, indo além da consideração de fenômenos puramente físicos, sendo
“sobretudo uma crise metodológica, que afeta uma
concepção tradicional de método científico, bem como uma
crise de visão de mundo, de concepção da natureza e do lugar
do homem, enquanto microcosmo, nesta natureza, o
macrocosmo.” (MARCONDES, op. cit., p. 18)
A natureza, assim como a cultura, era explicada, anteriormente, sobre base
transcendental. A visão do Deus criador de Descartes, que justifica a existência e
permanência de todas as coisas, é substituída pela de um Deus que dota sua criação
de leis naturais que mantêm em funcionamento a máquina do mundo. Este sistema de
mundo, não hierarquizado, provoca mudanças em todas as esferas: éticas, estéticas,
religiosas, etc.
Em Kuhn (op. cit.), a crise está ligada à ocorrência de “anomalias” na pesquisa
científica, o fracasso em encontrar soluções novas no âmbito do paradigma em vigor.
Seu significado “consiste exatamente no fato de que … é chegada a ocasião para
renovar os instrumentos” (ibid., p. 105). Kujawski (1988) a identifica como sendo crise
do cotidiano, no qual as nossas relações e ações normais − que classifica como:
trabalhar, habitar, comer, passear e conversar − são exercidas. A estranheza dessas
atividades comuns produz, então, o desconforto típico das situações crísicas, que se
desdobra em três aspectos: “a crise de identidade do homem contemporâneo”, “a
crise de familiaridade com o mundo” e a “crise de segurança”. Estas categorias têm
significados bem próximos aos dos “medos básicos” assinalados por Neves (op. cit.).
18
A humanidade tem sempre passado por modificações em sua forma de ver e
viver o mundo. Estas mudanças são naturais e inerentes à natureza humana e suas
estruturas sociais. A crise provoca ruptura revolucionária quando não apresenta
alternativa ao conjunto de certezas que abala.
A transição entre diferentes paradigmas, como já foi mencionado anteriormente,
não é isenta de conflitos. No período em que um novo paradigma ainda não foi
totalmente aceito, outras teorias surgem, provocando, comumente, a disputa entre
seus partidários, o que é explicado pela não existência de categoria superior na qual
os diferentes paradigmas sejam analisados e comparados. Sua defesa é feita a partir
de suas próprias definições, que abrangem desde o tipo de questões a que o
paradigma deve responder, até a forma como as respostas são alcançadas. Nesta
etapa, muitas teorias diferentes, e até mesmo contraditórias, são enunciadas, todas
potencialmente válidas:
“Na ausência de um paradigma ou de algum candidato a
paradigma, todos os fatos que possivelmente são pertinentes ao
desenvolvimento de determinada ciência têm a probabilidade de
parecerem igualmente relevantes.” (KUHN., op. cit., p. 35)
E, até que alguma delas prove ser a verdadeira, está configurado o quadro
crísico. A própria decisão de superar um paradigma já traz em si a decisão de aceitar
outro, a ciência não sobrevive sem seus modelos norteadores, sempre baseados no
que consideram certo e verdadeiro. Qualquer fenômeno que questione o conjunto de
conceitos aceitos e já comprovados na prática, é profundamente investigado, a partir
destes mesmos conceitos, até a exaustão.
Ainda na mesma obra, Kuhn conclui com importante reflexão a respeito do
progresso da ciência. Durante a maior parte do período moderno, a ciência, enquanto
fruto dileto da razão, foi aceita como a fonte das respostas que permitiriam ao homem
alcançar grau mais avançado de conforto e bem-estar. Mas, se a ciência não é
acumulativa, passando por momentos de ruptura e revoluções, o progresso só é
19
positivo durante a vigência de um paradigma estável, e somente quando avaliado de
acordo com seus parâmetros. Portanto, o significado de progresso e evolução da
ciência perde o sentido: “o que poderiam significar ‘evolução’, ‘desenvolvimento’ e
‘progresso’ na ausência de um objetivo especificado?” (KUHN, op. cit., p. 215). A
ciência moderna instituiu um modo de atuação que isolou a comunidade científica das
preocupações com os problemas sociais: sua responsabilidade e incumbência única
vinculavam-se à acumulação de conhecimentos científicos, validados por sua lógica
interna e em conformidade com a experimentação.
Esta realidade concreta, perceptível na análise da sociedade atual, não é a única
acepção possível do conceito de paradigma, apenas a feição que assumiu
historicamente. O determinismo científico advindo, principalmente da Física, permitiu a
fixação de leis universais que explicassem o presente, conseqüência do passado, e o
futuro, através das interações do presente. Desta forma, as mudanças faziam parte de
um mesmo sistema, em constante evolução, mas sem rupturas marcantes. A própria
Física é, em grande parte, responsável pela transformação deste modo de ver o
mundo − assim como ocorreu nos séculos XVI e XVII − pela introdução de novos
conceitos que abalam a estrutura estável e bem montada da concepção de mundo em
vigor. No tópico a seguir, será analisado como a nova concepção da Física resulta em
mudança de paradigmas para toda a ciência.
4.6. Mudança de paradigmas na ciência: a Física no século XX
Capra (1983) apresenta quadro analítico sobre a mudança de paradigma
perceptível na Física que se constrói no século XX, através de seis critérios de
pensamento aplicáveis a todas as ciências. Critérios estes provenientes de sua
reflexão sobre as últimas realizações científicas.
O primeiro diz respeito à relação entre as partes e o todo. Na Física clássica,
apoiada em Descartes, existiam elementos fundamentais componentes de todos os
objetos e fenômenos perceptíveis na realidade. Para a compreensão de qualquer
20
sistema mais complexo, era necessário dividi-lo em suas partes elementares. Na
Física moderna, as partes só têm sentido quando inseridas no todo, através de
relação dinâmica: o fundamento é o todo. Esta é a direção geral dos paradigmas que,
atualmente, defendem a visão holística da natureza e do homem.
O segundo assinala a mudança de enfoque do pensamento, transferido da
estrutura para o processo. Toda a investigação científica definida anteriormente pela
busca das estruturas fundamentais volta-se agora para o desvelamento das relações
processuais, de quem as primeiras são apenas padrões ou manifestações. Esta
interpretação dos objetos à luz de relações dinâmicas, introduz o sujeito, ou
observador, como elemento definidor dos padrões − que é o terceiro critério citado por
Capra −, pois, “o que você vê depende de como você olha para ele” (op. cit., p. 245).
Introduz-se, assim, mudança essencial no paradigma, pois a ciência física não é mais
puramente objetiva, independente do sujeito e processo de conhecimento, mas deriva
do próprio sujeito. O entendimento da relação entre realidade e sujeito é fruto do
pensamento filosófico do final do século XIX e início do século XX, como sugere
Plastino (op. cit., p. 33):
“o tempo, o sujeito e a história se transformam em fatores
imprescindíveis para a compreensão do ser e da
transformação, parâmetros ineludíveis para a construção do
conhecimento”.
O quarto critério, diz respeito à metáfora da ciência como construção, ou
edificação humana, alicerçada sobre bases sólidas e construídas bloco a bloco com a
aquisição de novos conhecimentos. Esta é substituída pela “metáfora da rede”, em
que cada nó se interrelaciona com os demais, num todo contínuo, e interdependente.
Como a percepção da realidade se faz através de um corte, efetuado pelo observador,
na “teia de relações”, a realidade não pode mais ser totalmente apreendida. Não
existem verdades a serem alcançadas pelo pensamento, apenas descrições parciais
da mesma, e este é o quinto critério de pensamento.
21
No último critério, o autor apresenta a idéia de que para a superação dos atuais
problemas causados pela tecnologia, a única saída será substituir a “atitude de
dominação e controle da natureza, incluindo os seres humanos, para um
compromisso cooperativo e de não-violência” (op. cit., p. 247).
Não é sem motivos que essa mudança paradigmática tem trazido tensões tão
fortes para o seio da sociedade, já que conceitos básicos são derrubados e
substituídos por teorias aproximadas e de difícil compreensão quando analisadas
segundo o paradigma anterior e baseadas na experiência dos sentidos.
Da mesma forma como havia ocorrido anteriormente, as mudanças no campo da
Física influenciam diversas outras áreas, tanto nas ciências quanto na filosofia, pondo
em questão a própria existência de um mundo objetivo estável, sujeito a evolução
constante, o qual a teoria descreve e explica. Não é apenas crise metodológica, mas
epistemológica. A teoria, ou a busca de conhecimentos, é percebida como
historicamente produzida, sua formulação depende das circunstâncias do sujeito
conhecedor, sua prática social, suas “opções éticas” (PLASTINO, op. cit., p. 46).
4.7. Tendências atuais de mudança paradigmática
Nos campos da ciência dedicados ao estudo do homem, como a Antropologia, os
novos modelos e teorias científicas implicam maior complexificação oriunda da
introdução de elementos como a “indeterminação, a desordem e o acaso como
fatores de organização superior” (MORIN, op. cit., p. 29) das estruturas societárias
humanas.
Plastino (op. cit.) aprofunda mais o debate ao introduzir a discussão sobre a
própria conceituação de paradigmas, baseado no questionamento da crise como “de
paradigmas” ou “dos paradigmas”. A superação do paradigma, aponta para dúvida
mais profunda: da própria possibilidade de existência de um paradigma hegemônico
constituinte do pensamento teórico. Se a realidade não é dada em si mesma, mas
fruto da intervenção de um observador, como determinar um modelo que abarque
22
todas as possíveis relações? Para esta questão, são apontadas inúmeras respostas,
uma delas, já mencionada acima, refere-se a um paradigma que privilegie as relações
de um todo não redutível a partes componentes elementares. Outra, derivada da
compreensão do paradigma como possibilidade de interação do homem com o
mundo, indica caminhos de ação, não devendo cristalizar-se em normas rígidas e
imutáveis, posto que se trata de construções teóricas para aproximação do real:
“esses paradigmas devem ser vistos como modelos
apenas balizadores, essenciais à construção que o homem
está realizando do real ou de si próprio, mas nunca tomados
com a investidura de absolutos, cristalizados.”
(NEVES, op. cit., p. 52)
Essa concepção engloba a teoria de que o saber é historicamente construído,
associado intimamente à experiência e aos valores defendidos pelos homens, e não
determinado por realidade externa autônoma. Kujawski (op. cit.), igualmente, aponta
para a função orientadora do paradigma, que relaciona à utopia:
“Aquela atitude de querer realizar formalmente a utopia na
vida, princípio de todo radicalismo…tem de ceder à disposição
essencialmente heurística para com a utopia, fazendo dela uso
regulativo…” (p. 28).
Todas estas teorias apontam nova direção, mas nenhuma delas está ainda
suficientemente estabelecida para guiar as ações humanas e garantir a saída para os
problemas hoje enfrentados em todas as sociedades. Mas este é um fator que pode
ser usado positivamente, como foi citado no início deste capítulo, para a discussão
das alternativas e a consideração dos valores que são necessários para a consecução
dos objetivos almejados. E, ainda, a definição mesma destes objetivos.
Em relação aos sinais do novo paradigma, Santos (op. cit.) identifica três áreas de
interesse principais: “conhecimento e subjetividade, padrões de transformação social,
poder e política” (p. 327).
23
Na primeira área, o novo paradigma aponta para diversas formas de
conhecimento em oposição a uma única, hegemônica, que é característica da
modernidade. A ciência moderna sustenta e é sustentada por um tipo específico de
organização social, que valoriza o aspecto econômico das relações sociais e
necessita, cada vez mais, de implementos tecnológicos para sua manutenção e
desenvolvimento. Logo, a outros tipos de organização corresponderiam novas formas
de conhecimento; algumas destas preexistentes e marginalizadas ao longo do tempo.
A busca de alternativas epistemológicas passa pelo resgate de práticas sociais das
minorias — qualquer que seja sua identidade —, e não tem o sentido de preservar as
culturas alternativas, mas de possibilitar a emergência de modos de conhecimento
que venham a compor paradigmas alternativos que possam concorrer entre si.
A adoção de um ou outro paradigma depende de sua capacidade de
convencimento que, por sua vez, é fruto da habilidade argumentativa de seus
defensores. Sendo assim, a linguagem e a forma de organização de pensamentos
assumem papel de destaque; o discurso argumentativo torna-se ponto complexo na
elaboração dos paradigmas, pois diferentes grupos culturais dispõem de diferentes
signos para efetuar a comunicação. Daí a necessidade de abrir mão, primeiramente,
da hegemonia do discurso científico moderno para tentar compreender e analisar
discursos alternativos. Isto implica abrir mão de uma característica fundamental
daquele discurso, que é sua pretensão à validade universal e conseqüente
intemporalidade. A primeira conseqüência desta mudança de atitude frente à
diversidade cultural é a superação da idéia de que existem conhecimentos primitivos e
desenvolvidos, oriundos de culturas assim classificadas; todos são complexos em sua
estruturação, apenas com enfoque e valores diferenciados.
Ainda outra característica recorrente do novo paradigma é a reabilitação dos
sentimentos e paixões como elementos necessários à toda mudança social. O
sentimento pessoal de engajamento e compromisso com as transformações que se
fazem necessárias só pode ser desenvolvido através da construção de uma nova
24
subjetividade. Esta deverá ser multidimensional para atender às diversas solicitações
que o sujeito recebe em diferentes momentos de interação social, o que implica a
superação da racionalidade instrumental como a única fonte de verdade. A razão
deverá tornar-se, portanto, novamente plena, englobando seus sentidos ético e
estético.
Acima de tudo, a mais importante tendência do novo paradigma, é a afirmação
positiva de suas intenções, ou seja, passar do campo da abstração modernista para a
ação efetiva: construir o sujeito livre e feliz que o projeto da modernidade apenas
idealizou. Somente assim poderá o novo paradigma ser uma alternativa real de
solução para os problemas atuais.
Quanto à outra área de interesse, a dos padrões de transformação social, Santos
(op. cit.) identifica duas tendências principais: a do “paradigma capital-expansionista”
e do “eco-socialista” (p. 335). Estas tendências têm ramificações que afetam as
relações de poder, uma vez que implicam a modificação de relações sociais vitais,
como a política e a econômica. A primeira tendência é reconhecida como a que tem
imperado durante a maior parte do tempo de vigência da modernidade; a segunda,
ainda não totalmente desenvolvida, prega o equilíbrio entre as necessidades humanas
individuais e coletivas, seguindo a mesma orientação, citada anteriormente, de
legitimidade enquanto formas alternativas de organização social.
A terceira área de interesse dos novos paradigmas é a do poder e política, a mais
vital para a realização da transformação paradigmática. Devido à variedade de origens
dos modelos alternativos de sociedade, a organização a nível do poder estabelecido
sobre como promover a competição entre os diferentes padrões torna-se muito
complexa. As soluções que se apresentam devem, para se tornarem eficazes, ter
alcance global, embora sua origem seja localizada. Sendo assim, o papel do poder e
da política é o de permitir a livre manifestação de todos os movimentos para que
possam, através da defesa de seus argumentos, legitimar-se; em suma, assumem
papel mediador. Por si só, a abertura do poder estabelecido a novas formas de
25
legitimação já traduz mudança na orientação da sociedade capitalista moderna,
fundamentalmente autoritária. Santos (op. cit.) aponta como característica do novo
paradigma, a democratização em todos os níveis de relação social, através de
domínios de autoridade partilhada.
Todas as tendências que os novos paradigmas seguem, devem ser investigadas
e discutidas à exaustão para que possam atender às demandas de um número cada
vez maior de membros da sociedade. O fórum por excelência para estas discussões
são as instituições de ensino e pesquisa, no sentido em que a educação adquira papel
de fecundar idéias mais do que o de transmiti-las.
5. Modernidade, Modernismo e Vanguarda Artística
A mudança de conceitos e hábitos que compõem a modernidade são mais
claramente percebidos na arte, cujas obras sempre prenunciam ou materializam
tendências ainda imperceptíveis na sociedade.
“O debate da modernidade é principalmente uma discussão
de ordem cultural, na qual predomina a preocupação pelo
problema da estética e da filosofia. Seus temas são a arte e a
sua crítica, o progresso e as crenças em torno dele, a
racionalidade e a progressiva fragmentação do conhecimento
como forma de compreender o mundo.” (CASASSUS, 1993, p. 7)
Na leitura de textos de autores que abordam temas relativos à modernidade,
existe indefinição sobre os conceitos de vanguarda, modernismo e modernidade. Por
vezes estes termos são usados indiferentemente com o mesmo sentido; em outras
vezes, são aplicados em contextos específicos. Para melhor elucidar a significação
dos termos para uso neste estudo, eles serão discutidos a seguir, de modo a manter
coerência com a formulação usualmente aceita.
Em arte, vanguarda significa o conjunto de atividades que tem a finalidade de
reagir contra algo que está estabelecido; quando, por sua vez, esta vanguarda é
26
assimilada pela maioria, vem a compor o novo estilo. É, pois, processo de
transformação mais ou menos acelerado. O Modernismo identifica-se com um estilo
artístico, sendo anunciado também como extremamente dinâmico e mutável, porém
com características próprias e período determinado. Já a modernidade implica um
movimento de bases teóricas mais elaboradas, que diverge fundamentalmente de
algum período anterior; e é na divergência que firma sua identidade, na oposição a
uma época histórica passada.
A idéia da modernidade como processo, que constitui a diferença inaugurada
após o Iluminismo, implica transformação contínua — “o moderno não tem fim, é um
vórtice” (KARL, 1985, p. 23) — que põe em perigo a ordem em vigor, ao mesmo
tempo em que acena com aspecto progressista: “é moderno o que todos querem ser,
mas também é aquilo que deve ser rejeitado” (ibid.). Em Sócrates e Platão, a idéia do
moderno foi rejeitada por sua ligação com a arte, que seduz a alma, minando a
autoridade e ampliando a influência do irracional.
O termo moderno, em si, − derivado do latim modernus − significa aquilo que
ocorre no tempo presente, em oposição a um tempo passado, embora abranja
complexidade muito maior, uma vez que o presente está sempre em mudança. Os
que confundem o moderno com progresso, em sua conotação materialista, limitam o
termo a uma questão de tecnologia. Este sentido foi plenamente utilizado na Inglaterra
no século XIX, que se destacava justamente neste campo de atuação; atualmente,
porém, possui significado muito mais amplo:
“A palavra moderno tem, nos últimos cem anos, exercido
tantas funções, se tornado parte de tantos desejos em conflito,
tem-nos dividido de tantas maneiras complexas que ela não se
pode distinguir de nosso jeito de viver. (…) A idéia tornou-se
orgânica.” (KARL, op. cit., p 24)
As idéias modernas suscitam rejeição mesmo nos movimentos que se utilizam de
seu desenvolvimento para se constituírem, por conterem, em si, elementos para sua
27
própria superação. O medo do novo é combatido, freqüentemente, pelo resgate da
tradição, baseada na história, na tecnologia ou no misticismo, ou em uma combinação
dos três.
A complexificação do moderno aparece na arte com a revolução na linguagem,
escrita ou formal, que acontece em momentos variados na história. Esta
transformação prefigura mudanças profundas de percepção, ligadas também a
transformações paradigmáticas. Na época do Iluminismo, a mudança de linguagem
decorrente de nova percepção do mundo e materializada na atividade artística
baseava-se na crítica e negação da história, e continha em si sentimento de
despertar, de passar da escuridão para a luz. Da mesma forma no final do século XIX
e início do século XX, as teorias freudianas relativas ao inconsciente e aos sonhos
apontam para esta conotação de despertar.
No Renascimento, o humanismo defendia-se contra o frio racionalismo cartesiano
e procurava, novamente, conexão com o período anterior da história para a partir daí
introduzir novo impulso criativo na arte. Com Baudelaire, poeta e crítico francês do
século XIX, o Modernismo − movimento artístico − torna-se claramente movimento
destrutivo, que nega o presente em busca do futuro que está sempre mais adiante, e
rejeita a autoridade:
“Assim, o artista moderno ver-se-á capturado no meio de
pelo menos duas pressões iguais: o sentimento de que a
história não importa mais, de que só o presente deve ocupá-lo;
e uma consciência de que o presente é efêmero, um momento
que passa quando a arte tenta dirigir-se a ele. O moderno
devora o presente, de maneira que, inevitavelmente, o moderno
devora a si mesmo.” (KARL, op. cit., p. 35)
A transitoriedade e a mudança constituem a mais forte característica da
modernidade, que desenvolve-se através de movimentos radicais, de vanguarda,
formados sobre os escombros de movimentos anteriores, negando qualquer
28
encadeamento histórico coerente: para criar um novo mundo é necessário antes
destruir algum aspecto do anterior.
“Os pensadores iluministas acolheram o turbilhão da
mudança e viram a transitoriedade, o fugidio e o fragmentário
como condição necessária por meio da qual o projeto
modernizador poderia ser realizado”. (HARVEY, op. cit., p. 23)
No plano material, os projetos de renovação urbana exemplificam perfeitamente
esta diretiva, com Haussman, arquiteto francês, em Paris e Pereira Passos no Rio de
Janeiro. Os marcos de vida social consagrados pela tradição são destruídos em prol
de um grau maior de eficiência organizacional, também em nome do bem-estar dos
indivíduos que vivem e agem em uma coletividade a cada dia mais dinâmica e
diversificada. Os modernistas viram as transformações espaciais como determinantes
das relações sociais, e o planejamento para novos centros urbanos foi usado, no
século XX, como forma de controlar e otimizar as relações humanas.
No item a seguir, serão abordadas algumas questões sobre o Iluminismo que são
consideradas, neste estudo, relevantes para a identificação da modernidade.
6. O Ideal Iluminista
6.1. Características do Iluminismo e da modernidade
A gênese da modernidade está ligada às aspirações do projeto iluminista. Este
consistiu em “movimento secular que procurou desmistificar e dessacralizar o
conhecimento e a organização social para libertar os seres humanos de seus grilhões”
(HARVEY, op. cit., p. 23). O projeto do Iluminismo era bastante otimista, no sentido
em que apontava para uma maior compreensão do mundo que assegurasse o
progresso material e moral e, até mesmo, a felicidade de todos os homens. O
Iluminismo traria a luz “afugentadora da ignorância e da superstição” (PERRY, 1981,
p. 394).
29
O projeto de civilização moderna que se constrói a partir da teoria iluminista, −
construção teórica que agrega conceitos oriundos da Reforma e da Ilustração,
gerando diferentes movimentos, como o Liberalismo, o Socialismo e a Modernidade −
é constituído de três principais ingredientes: a individualização, a racionalidade e a
autonomia, todos permeados por um sentido profundo de universalidade. A
transposição da idéia de igualdade entre os homens, típica do cristianismo, para o
terreno material, da política e filosofia, provocou mudanças teóricas de grande
alcance, como a condenação de particularismos em prol da universalidade em todos
os campos. Este universalismo baseava-se no princípio de que todos os homens
possuíam as mesmas tendências afetivas e emocionais, e a mesma capacidade para
alcançar o entendimento através da razão. O Humanismo fez o homem voltar-se para
o mundo, buscar nele sua realização e propósito, voltando as costas ao sobrenatural
ou divino. A Reforma contribuiu ainda mais neste sentido, com o individualismo
religioso vindo somar-se ao intelectual.
O movimento do Liberalismo concorreu para a recomposição do valor da pessoa
humana, ao defender a primazia da liberdade individual em relação ao Estado, ao
mesmo tempo em que reconheceu no trabalho a forma de realização plena do
indivíduo.
O universalismo liberal pregava a autonomia de todos os indivíduos, em todas as
culturas, independente de diferenças particulares. Em princípio, todos os homens e
todos os povos possuiriam a mesma capacidade evolutiva. Na prática, entretanto, a
hierarquização das culturas de acordo com seu desenvolvimento científico e
tecnológico − assim como a hierarquia de classes − permitiu a proliferação de teorias
eurocêntricas e de cunho racista até o século XX. A prática que existia anteriormente
de levar aos povos primitivos a luz da fé cristã é substituído pela opção de alimentar a
luz da razão, mas as duas formas abrigam em si aspecto autoritário de imposição
cultural.
30
O individualismo liberal sofreu transformações ao longo do tempo, resultando,
atualmente, em massificação que provoca conformismo e dissolve o indivíduo no todo
“liberando o homem do mais difícil privilégio da modernidade, o de pensar e agir por si
mesmo, com base em princípios gerais e abstratos” (ROUANET, op. cit., p. 22), ao
mesmo tempo em que suscita sentimentos de negação desta coletividade assumindo
aspecto de um hiperindividualismo que objetiva proporcionar ao homem os elementos
materiais que o distinguem da massa popular, inserindo-o em um subgrupo. A busca
da felicidade confunde-se com o desejo do prazer efêmero, superficial, atendido por
uma indústria cultural que apresenta produtos sempre novos que criam outras
necessidades, ao mesmo tempo em que as atendem.
Rouanet (op. cit.) define muito bem cada um dos aspectos que a teoria iluminista
pretendeu incorporar a seu projeto de civilização no trecho reproduzido a seguir
(p. 33), em que realça a capacidade racional do homem:
“todos os homens e mulheres, de todas as nações,
culturas, raças e etnias, desprendendo-se da matriz coletiva e
passando por processos crescentes de individualização, devem
alcançar a autonomia intelectual, ou seja, o direito e a
capacidade plena de usar sua razão, libertando-se do mito e da
superstição, sujeitando ao crivo da razão todas as tradições,
seculares ou religiosas, problematizando todos os dogmas,
criticando todas as ideologias, e desenvolvendo livremente a
ciência, o pensamento especulativo e a criatividade artística, o
que pressupõe um sistema cultural que tenha institucionalizado
e dado condições efetivas de exercício à liberdade de
pensamento e de expressão, a autonomia política, ou seja, o
direito e a capacidade plena de participar dos processos
decisórios do Estado, o que pressupõe um sistema político que
tenha institucionalizado e dado condições efetivas de
funcionamento à democracia e aos direitos humanos, e a
31
autonomia econômica, ou seja, o direito e a capacidade plena
de obter, sem prejuízo para os outros indivíduos e sem danos
para o meio ambiente, os bens e serviços necessários ao
próprio bem-estar, o que pressupõe um sistema econômico que
tenha institucionalizado e dado condições efetivas de
funcionamento aos direitos dos agentes econômicos, dentro
dos limites compatíveis com os objetivos superiores da justiça
social e da preservação da natureza.”
Nesta definição, o autor cita diretamente, em leitura atual, todos os pontos que
constituem tema de debate sobre a configuração da sociedade moderna, destacando
os mais criticados: a perda de liberdade provocada pela elitização dos conhecimentos,
a alienação política impedindo a participação efetiva no controle das relações sociais,
a divisão da sociedade segundo fatores econômicos que definem cidadãos plenos e
aqueles que só possuem o mínimo indispensável à sobrevivência − ou ainda menos
−, e a destruição da natureza através da extensiva exploração material. Rouanet (op.
cit.) procura ainda evidenciar que mesmo que os condicionantes que anuncia não
tenham sido diretamente abordados pelos iluministas, por sua pouca relevância na
época − como os danos ao meio-ambiente, que ainda não se faziam sentir −, ou
mesmo por posições ideológicas particulares, estão intrinsecamente ligados à própria
idéia de liberdade, igualdade e felicidade, que concorrem para o bem estar moral e
físico de todos os homens.
O debate sobre a superação ou não destes ideais, centra-se na possibilidade de
concretização dos mesmos sem os prejuízos que ocorreram no passado. Enquanto
modelo para a busca de aperfeiçoamento crescente por parte dos homens, o ideal
iluminista tem sua validade assegurada pelos neomodernistas, no entanto, como
construção histórica com características inalienáveis é conceito esgotado para os pós-
modernos. A posição antimodernista apresenta como indissociáveis da teoria os
aspectos negativos demonstrados em sua materialização.
32
Rouanet (op. cit.) baseia sua defesa do Iluminismo, primordialmente, nos
universais. A estes, os críticos contrapõem particularidades diversas, que assumem
qualidades históricas, sociais ou somáticas — como limites geográficos, estruturas
econômicas de classe e diferenças devido ao sexo ou raça —, justificadas pela visão
de mundo que nega a existência de verdades além da capacidade de percepção
humana, o que constitui a forma de pensamento típica da modernidade. O
racionalismo pressupõe a transparência total entre pensamento e realidade, sendo a
própria realidade determinada pela razão, radicada na razão. A importância desta
perspectiva particularista − ou historista, como a denomina o autor − está em sua
aceitação hegemônica no Brasil e no mundo. A recusa aos ideais modernos, que
redundaram em fracasso se comparados com suas intenções iniciais, resulta em
negação total, ocasionando a busca de seus opostos: os particularismos.
Ao defender o universal, Rouanet (op. cit.) pretende resgatar seu sentido primeiro,
crítico, como pretendiam os iluministas: estudar o particular para inferir o universal.
Não reside aí, intrinsecamente, nenhuma conotação dominadora. Assim como, o
universal pode ser usado − e, em vários momentos, o foi − como forma de imposição
de valores de uma cultura sobre outras, o particularismo também o faz, retirando
qualquer possibilidade de recurso, uma vez que não há instância superior, ou comum,
à qual recorrer. A aspiração à universalidade assumiu aspectos diferenciados, como a
busca de uma razão universal, de um homem universal e uma moral universal.
Procurando eliminar qualquer barreira imposta por diferenças culturais, religiosas ou
étnicas.
A seguir serão apresentadas as principais características que vêm a compor o
ideal iluminista: a individualidade, a autonomia e a racionalidade. Todas com
aspirações à universalidade.
33
34
6.2. Individualidade
A sociedade iluminista seria formada por indivíduos autônomos dotados de iguais
direitos e obrigações. A individualização é característica básica nesta teoria, não
pressupõe, entretanto, negação da coletividade, mas reconhece a necessidade de
socialização; embora sinalize para o perigo da alienação provocada pela massificação
dos sujeitos, e para uma volta à organicidade das culturas primitivas, na qual o todo
tem prioridade sobre suas partes componentes. A individualidade iluminista,
entretanto, é conquista da razão. A personalidade é construída por escolhas
realizadas ao longo da história individual de cada um, independente de determinações
provenientes de seu nascimento:
”Para o Iluminismo o indivíduo constrói sua própria
identidade, em vez de herdar dos pais uma identidade pré-
fabricada. Seu estatuto étnico, cultural ou nacional resulta de
uma escolha adulta, não do fato aleatório, pelo qual ele não é
responsável, de ter nascido num certo país, dentro de uma
cultura determinada”. (ROUANET, op. cit., p. 36).
Na prática, o modelo de homem universal do Iluminismo assumiu a característica
de privilegiar particularidades de determinada cultura − a européia − e de buscar a
generalização a partir destas. Assim, o universalismo é apontado como forma de
opressão das culturas não ocidentais através de valores impostos − oriundos de uma
elite branca e masculina − sobre todos os cantos do globo, alcançáveis graças à
avançada tecnologia de transportes e comunicações. Identificando-se, ainda, com o
internacionalismo produzido pela burguesia capitalista, na criação do mercado
mundial, o que levou ao exercício de nova forma de poder social. O desenvolvimento
do capitalismo, com a conseqüente industrialização, acarretou perda de liberdade ao
instrumentalizar, de certa forma, o homem, avaliando-o apenas enquanto força de
trabalho. O indivíduo tornou-se abstração, reduzido a “mero ter” (HORKHEIMER,
35
1975, p. 102). A uniformização de suas qualidades, na prática, relaciona-se às
necessidades de mercado: a coletividade constitui-se de indivíduos capazes de
participar da produção de bens. A injustiça social é eternizada pela imobilidade das
relações sociais estabelecidas pelo industrialismo, que contribuiu para a objetivação
dos homens:
“O que é feito a todos por poucos, perfaz-se sempre pela
subjugação de alguns por muitos: a opressão da sociedade
exibe sempre, ao mesmo tempo, os traços da opressão
exercida por um coletivo. É essa unidade de coletividade e
dominação, e não a imediata generalidade social, a
solidariedade, que se sedimenta nas formas do pensamento.”
(HORKHEIMER, op. cit., p. 110)
A coletividade torna-se sujeito de atitudes que estão além do controle dos
indivíduos, que se sentem indefesos e não responsáveis diante do todo. O sentimento
de angústia diante desta situação é claramente percebido atualmente; incluindo-se
nele o medo da destruição total da vida na Terra.
Há que se notar, entretanto, que o humanismo que está embutido na adoção de
um modelo de homem universal, é o mesmo que permite falar em direitos universais
do homem, e a condenação de atitudes consideradas injustas mesmo quando
firmadas pela tradição ou exercidas em defesa de particularidades, como o apartheid,
a escravidão, as lutas religiosas, os campos de concentração, etc. Pois, o homem
universal é o indivíduo “sujeito de direitos imprescindíveis, independentemente de
circunstâncias de tempo e de lugar” (ROUANET, op. cit., p. 64).
“O Iluminismo não exclui a diferença, mas exclui a diferença
como ideologia. A diferença é um fato, não uma virtude, e nem
sempre esse fato merece ser idealizado”. (ibid., p.69)
O homem universal é indivíduo dotado de razão autônoma e igualdade de
direitos. Como, na prática, esta igualdade e autonomia não chegaram a se cumprir,
36
tornaram-se ponto de questionamento por parte dos críticos da modernidade. A
individualidade passou a ser combatida em nome da maior união entre os homens, no
sentido da imersão no todo, no coletivo; tanto na busca de comunhão com a natureza
para elidir os prejuízos a ela causados, quanto, mais negativamente, na massificação
inerente à sociedade moderna.
“Por meio das inúmeras agências de produção e de cultura
de massa, os modos de comportamento sujeitos a normas são
inculcados no indivíduo como os únicos naturais, decentes e
racionais”. (HORKHEIMER, op. cit., p. 114)
Ao mesmo tempo, luta-se pelo respeito às diferenças particulares como raça,
religião, nação e gênero que são exaltadas como forma de respeito aos indivíduos,
ainda que sirvam, às vezes, de justificativa para repetidos atos de violência contra
outros indivíduos com particularidades distintas.
Os males que o Iluminismo pretendia combater assumem nova face e se
perpetuam na sociedade. A opressão opera, agora, em nome da liberdade individual e
da democracia. A angústia de pensar os problemas sociais é transferida para o grupo,
do qual emanam as opiniões já formadas.
“A violência contra o pensamento não se manifesta mais
como proibição de pensar, mas como liberdade de pensar, o
que nas condições atuais de condicionamento invisível
significa a liberdade de pensar o que todos pensam.”
(ROUANET, op. cit., p. 98)
O indivíduo dotado de razão do Iluminismo obedeceria, em suas relações, a uma
moral universal. O desenvolvimento desta moral ocorreria segundo categorias
uniformes entre indivíduos de sociedades distintas: indo de uma categoria pré-moral,
típica da infância, até estágios de estabelecimento de princípios éticos universais.
Quanto ao conteúdo, alguns são recorrentes, como a liberdade e a fraternidade.
37
A moralidade universal é defendida a partir do reconhecimento de que existem
valores que devem ser respeitados por todos os homens; valores absolutos, como a
vida e a liberdade. Esta é uma opção que só pode ser adotada se os homens forem
considerados como indivíduos com direitos próprios, e sua validade relaciona-se à
capacidade de assumir comportamentos diferenciados nas situações que vivencia, de
acordo com o código moral adotado, pressupondo, ainda, que seja capaz de conter
suas inclinações naturais e introjetar os valores da coletividade na qual se insere. Daí
deriva a necessidade de elaboração de uma ética universal, em que todos são
capazes de desenvolver “competência moral irrestrita” (ROUANET, op. cit., p. 83) e
podem
“relacionar-se com o mundo normativo de um modo
autônomo, sem submissão cega às autoridades, e com plena
consciência de que as regras são transformáveis, desde que as
modificações se façam por acordo entre as partes
interessadas, e levando em conta os pontos de vista de todos”.
(idem)
Esta capacidade de desenvolver estrutura moral complexa, não resulta em iguais
conteúdos morais. Diferenças culturais podem levar a julgamentos opostos sobre o
certo e o errado, sobre bem ou mal. Desta forma, a moralidade universal fica restrita a
noções mais gerais intimamente relacionadas ao conceito de homem universal do
Iluminismo, como aquele dotado de razão autônoma e liberdade individual para tomar
suas próprias decisões.
Na prática, a forma como a ciência identificou-se com a modernidade,
substituindo a religião na realização de milagres, instaurou nova categoria de valor,
legitimando a busca e utilização do conhecimento em si mesmo. Assim, tanto a
ciência quanto a moral são unidas em torno à razão, levando a um sentimento forte de
que o progresso humano, material ou moral, está a ela associado:
38
“Tudo quanto é belo e nobre é o resultado da razão e do
cálculo. O crime, cujo gosto o animal homem hauriu no ventre
da mãe, é originalmente natural. A virtude, ao contrário, é
artificial, sobrenatural, já que foram necessários, em todas as
épocas e em todas as nações, deuses e profetas para ensiná-la
à humanidade animalizada, e que o homem, por si só, teria sido
incapaz de descobri-la. … Tudo quanto digo da natureza como
má conselheira em matéria de moral, e da razão como
verdadeira redentora e reformadora, se pode transpor para a
ordem do belo.” (BAUDELAIRE, 1996, p. 56)
Mesmo nas diferentes acepções sobre a forma como o sentido moral é
desenvolvido pelo homem − se por alguma característica externa ligada à lei natural
(Rousseau), ao aspecto sensorial (Locke) ou a categorias internas (Kant) − a razão é
determinante no processo. A moralidade moderna é, essencialmente, racional e
secular.
Estudos atuais sobre a moralidade apontam para a organização de valores
consensuais, desta forma baseiam-se na premissa de que existe a possibilidade de
estabelecer conteúdo mínimo comum entre atores diversos. Os partidários da pós-
modernidade acreditam que este consenso será sempre limitado e temporário, devido
às mudanças que são parte integrante da condição pós-moderna, e a seu caráter
multifacetado, como será visto no item 8 deste estudo.
6.3. Autonomia
Para a Ilustração o caráter emancipatório de todas as ações deveria ser
preponderante, fosse através da concepção de “uma sabedoria de elite” (HARVEY,
op. cit., p. 24) ou através de “alguma teleologia inerente em ação (talvez até de
inspiração divina) a que o espírito humano estava fadado a responder” (idem). Sob o
aspecto racional, a busca da autonomia está ligada à liberação dos homens da
submissão imposta pela religiosidade, aliada à objetivação da natureza e à
39
organização das instituições sociais permitida pelo desenvolvimento da ciência; é,
ainda, autonomia individual, posto que o homem na sociedade iluminista não existe
apenas como parte da coletividade.
O capitalismo, por exemplo, adota a forma liberal de liberdade individual: o
indivíduo é capaz de alcançar sua emancipação plena no sistema capitalista desde
que exerça o poder social proporcionado pela posse de valores monetários. A
princípio − ou por princípio − todos os homens têm condições de elevar-se a posições
sociais superiores através do esforço pessoal e do trabalho.
Na sociedade assim constituída, a objetivação do mundo atinge seu apogeu, uma
vez que todas as coisas são valoradas de acordo com seu poder de troca. As ações e
relações humanas não são mais medidas por valores transcendentais, mas “passam a
ser concebidas como realidades pertencentes ao mundo dos objetos. … e este é o
fenômeno universal em todas as dimensões das sociedades burguesas…”
(OLIVEIRA, 1995, p. 15).
Problematizando a questão da ideologia, o socialismo contribuiu para aumentar
as possibilidades de realização da autonomia de fato e de direito. Ela atinge todos os
aspectos da vida humana e seria fruto da emancipação frente a particularismos
limitantes ou hábitos culturais. A razão é, novamente, primordial para a efetivação
desta meta, desde que livre da falsa consciência imposta pela ideologia.
A validação da razão, ou da ciência, em si mesma revoluciona o sentido moral
das ações humanas. E sua relação com o poder elimina a possibilidade de ação
emancipatória positiva: a identificação da razão com a dominação leva a uma situação
contraditória, em que qualquer avanço em relação ao progresso material corresponde
à redução das liberdades individuais:
“A violência contra a vontade popular não se exerce mais
pela tirania, mas por um sistema democrático cujas regras
formais de funcionamento impedem uma verdadeira
contestação do poder existente. Nos países industrializados, a
40
coação não atua mais a partir da escassez, mas a partir da
abundância.” (ROUANET, op. cit., p. 98)
A autonomia − intelectual, política e econômica − é atacada, atualmente, de
diversas maneiras: pelo misticismo cada vez mais presente nas relações sociais, até
mesmo entre governantes de diversos países; por ditaduras mantidas à força ou
apoiadas em figuras carismáticas; e pelo grande desequilíbrio na distribuição de renda
pelo mundo.
Quando são analisadas posições tão opostas entre teoria e prática, percebe-se
claramente o nível das tensões na vida moderna, e a conseqüência mais notável é a
“total falta de esperança …” (OLIVEIRA., op. cit., p. 17), que resulta, cada vez mais,
em dificuldades para o exercício da autonomia individual.
6.4. Racionalidade
A problemática quanto à existência de uma razão universal liga-se ao
questionamento da forma de racionalidade assumida pelo paradigma de mundo no
Ocidente, em contrapartida ao de culturas não ocidentais.
Com Descartes e Galileu, o objeto do pensamento transferiu-se da investigação
do ser das coisas para a sua função ou relação com outras: sua quantificação e
representação, vindo a relacionar-se apenas a objetivos práticos: do desenvolvimento
do conhecimento humano até a busca da felicidade terrena. Desta forma justifica-se a
instrumentalização da racionalidade, devido ao poder absoluto sobre a natureza: “a
onisciência, através de uma razão cujo desdobramento não conhece limites de direito,
e a onipotência através da técnica.” (ROUANET, op. cit., p. 63). A forte tendência
ideológica desta posição é claramente percebida em seu desenvolvimento histórico.
“O racionalismo iluminista implica, positivamente, a fé na
razão, em sua capacidade de compreender o mundo físico e de
ter acesso à verdade moral, e mais especificamente a fé na
ciência, como instância habilitada a conhecer a natureza e
transformá-la para satisfazer às necessidades materiais dos
41
homens. Negativamente significa o desencantamento, a
denúncia do mito e da superstição, o questionamento da
autoridade dogmática e o exame crítico da tradição.”
(ibid., p. 409)
As instituições sociais são legitimadas através do consenso generalizado advindo
de uma “crença total comum em certa concepção da vida e do mundo” (KUJAWSKI,
op. cit., p. 135), esta crença comum constitui a própria realidade. Nas sociedades
tradicionais, a legitimação ligava-se à sacralização, fundando-se no religioso; já nas
sociedades modernas, dá-se ao nível da eficácia. Mais precisamente, na ação eficaz:
a modernidade se realiza através de ações práticas, realizações materiais. A filosofia,
no século XIX, reflete bem esta nova tendência em pensadores como Marx, que vê na
teoria filosófica um modo de modificar as relações no mundo.
A vertente, que enxerga como a característica maior da modernidade a busca da
eficácia, entretanto, dá primazia à influência do Liberalismo sobre a Ilustração, cujos
conceitos sobre economia, religião e política são absorvidos e desenvolvidos
posteriormente no processo de modernização das sociedades.
Mas a própria Ilustração contribuiu com novos aspectos para a composição da
visão moderna de mundo, voltando-se para o consumo e o prazer, ao invés de apenas
para o trabalho; para a autonomia, e não somente para a eficácia. A razão recebe
nova incumbência, a de contribuir para a emancipação do homem, adquirindo função
ética, pois, para bem exercer sua função, torna-se crítica.
42
“Para a modernização funcional, racionalizar significa injetar a
razão instrumental nos mecanismos decisórios da empresa e do
Estado. Para a modernização iluminista, racionalizar significa,
também, injetar a razão emancipatória no próprio tecido da
organização social”. (ROUANET, op. cit. p. 122)
É claramente perceptível a influência que fatores sócio-culturais exercem sobre o
desenvolvimento intelectual dos sujeitos (ibid., p. 72ss.). A racionalidade universal,
entretanto, admite um mínimo de aptidão cognitiva sempre presente em qualquer
indivíduo de qualquer sociedade, desenvolvendo-se de modo uniforme, através de
categorias de discurso teórico e empírico.
O Iluminismo apresenta a idéia de que existem conhecimentos verdadeiramente
universais em seu conteúdo, cuja validade é medida por critérios específicos ligados à
predição, à explicação e ao controle, categorias definidas pelo paradigma em vigor. O
que não implica a impossibilidade de desenvolvimento de outras teorias racionais, que
atendam às necessidades de determinada cultura, como é o caso dos relatos
mitológicos tradicionais. A veracidade da teoria, entretanto, é medida por sua
característica explicativa, pois a racionalidade, no Iluminismo
“considerava axiomática a existência de uma única resposta
para qualquer pergunta. Seguia-se disso que o mundo poderia
ser controlado e organizado de modo racional se ao menos se
pudesse apreendê-lo e representá-lo de maneira correta”.
(HARVEY, op. cit., p. 35)
Admitida a busca da verdade na natureza como objetivo principal da ciência,
apresenta-se esta, então, como neutra em questões de valoração. Embora os críticos
neguem a suposta neutralidade da ciência, baseados no princípio de que o propósito
dela é sempre de intervir e dominar a natureza, constituindo-se, desta forma, a priori,
em tecnologia. Além disso, não lhe é possível pôr de lado certa faceta ideológica, uma
vez que se baseia em métodos e critérios avaliativos elaborados segundo paradigma
43
ou modelo de mundo. Hoje em dia, porém, o debate já evoluiu, e mesmo entre os
cientistas se admite a necessidade de preocupação ética e social mais profunda.
A tecnologia configura-se como danosa à vida humana, mas isto ocorre porque o
mundo mudou, as necessidades mudaram. Para o Iluminismo, sua função era garantir
a melhoria de vida para todos, no sentido do aumento de bem-estar e libertação da
tirania da natureza. Esta função foi realizada, não se pode negar que a vida hoje é, de
modo geral, mais confortável do que há cem anos. As conquistas tecnológicas, no
entanto, já estão banalizadas pelo uso, não impressionam mais o homem comum, o
que ele quer agora é a resposta aos problemas ainda não resolvidos, como a aliança
da modernidade com as forças de dominação, reconhecida por todos seus defensores
ou críticos em diferentes correntes teóricas, ou sua capacidade para a destruição
lenta, ou potencialmente instantânea, da natureza através da aplicação de técnicas
destrutivas ou máquinas de guerra.
“ …a pretensão originária de uma civilização da razão, hoje
mostra uma ilusão, ou seja, que nossa razão parece emergir
como racionalidade perversa, dominadora, a racionalidade ter-
se-ia tornado cínica, pois sobre a máscara do esclarecimento e
da liberdade, na verdade, o que é marca característica de
nossa epocalidade é a experiência da perda de sentido da vida,
através da institucionalização e concretização de uma razão
que é antes desrazão, perversa, instrumental, não somente
dominando a natureza e os homens, mas ameaçando a própria
vida humana em sua sobrevivência.” (OLIVEIRA, op. cit., p. 6)
A ciência perde o prestígio enquanto fornecedora de verdades sobre o sistema de
crenças que compõe o nosso mundo, mas, em si mesma, continua vigorosa e atuante
na busca de suas respostas, que relacionam-se apenas a seu próprio campo de
atuação.
A crítica à modernidade, no século XX, prende-se à forma como a racionalidade
assumiu importância destacada sobre todos os demais aspectos pretendidos pelos
44
iluministas, e como foi fragmentada, desligando-se de sua vocação emacipatória. A
saída para esta situação é identificada geralmente com uma reelaboração do conceito
de razão, ou como afirma Oliveira (ibid., p. 12):
“elaborar um conceito de razão, que seja capaz de dar
conta das experiências da crise da modernidade e tornar
possível uma crítica de fundo ao reducionismo da modernidade,
para recuperar, numa dimensão superior, seu momento de
verdade”. (ibid., p. 12)
O modo como a modernidade foi se afastando dos ideais iluministas, e as críticas
que são feitas ao reducionismo da razão serão analisadas no capítulo seguinte, assim
como as orientações teóricas para um paradigma pós-moderno.
45
Capítulo II: A Concretização do Projeto Modernoe a Pós-Modernidade
7. Século XX: A concretização da modernidadeNos séculos XIX e XX, a distância entre a modernidade e o projeto original
iluminista se aprofundou, levando à perda de identificação com suas origens. É a
partir deste momento que os pós-modernos neste século procuram construir sua
teoria, baseados nas inúmeras críticas feitas a respeito dos ideais modernos, ou dos
aspectos que se materializaram; deste modo, faz-se necessário destacar estes
aspectos.
7.1. Modernização capitalista
Foi no século XIX, que se iniciou a atrofia do projeto da modernidade, com a
supervalorização dos princípios reguladores de mercado sobre os da comunidade e
do Estado. A oposição a esta tendência foi dada pela reação romântica que pregava
um retorno às origens, e pelos movimentos radicais socialistas que buscavam
resgatar o sentido de comunidade e igualdade que vinha sendo substituído pelo
individualismo e pela pseudo-liberdade atrelada a fatores econômicos. Ambos
mantinham a esperança no resgate dos objetivos iniciais daquele projeto. Em
momento posterior, a singularização de alguns de seus aspectos torna-se mais forte,
sendo então reduzido aos fatores que se acreditava serem factíveis, relegando a
segundo plano os objetivos classificados como utópicos:
“o projeto da modernidade cumpre-se assim em excesso
porque em tudo o que cumpre excede todas as expectativas
(basta ver o fulgurante avanço do conhecimento científico) e
em tudo que não cumpre é suficientemente convincente para
negar que haja algo ainda a cumprir.” (SANTOS, op. cit., p 86)
O autor, citado acima, divide o desenvolvimento capitalista no século XX, em
períodos bem definidos, com características próprias. O primeiro período é o da
46
expansão do capitalismo, de forma intensa e, por vezes, agressiva, e o do
crescimento vertiginoso da ciência e da tecnologia. Paralelamente a essa expansão,
ocorreu o fortalecimento social e político dos cidadãos através das organizações de
classe e sindicatos, ainda que sujeitos ao poder econômico. A autonomia individual
liga-se, indelevelmente, à posse de dinheiro, pois:
“Como poder social passível de ser detido por pessoas
individuais, ele forma a base de uma liberdade individual muito
ampla, uma liberdade que pode ser empregada no nosso
desenvolvimento como indivíduos livres-pensadores, sem-
referência aos outros. O dinheiro unifica precisamente através
de sua capacidade de acomodar o individualismo, a alteridade
e uma extraordinária fragmentação social”.
(HARVEY, op. cit., p. 100)
Assim, a justiça, a solidariedade e a liberdade são limitadas pelas necessidades
da produção capitalista, de forma deliberada.
“Que esta forma de compatibilização é uma entre outras, e
apenas é preferida por ser a que permite a consolidação das
relações sociais da produção capitalista, é simultaneamente
evidente e trivial, pois a crescente hegemonia social desta
forma de compatibilização torna todas as demais indesejáveis
ou mesmo impensáveis.” (SANTOS, op. cit., p. 85)
O próximo momento, ainda na periodização de Santos, se inicia nos anos
sessenta deste século, o que coincide com os primeiros sinais do que se
convencionou chamar como movimento pós-moderno. Em algumas análises, a
estrutura atual surge como a de um “capitalismo desorganizado” (ibid., p. 87), embora
o mesmo autor assinale que essa classificação é deficiente e inadequada, fruto da
perplexidade frente a uma situação que não se compreende muito bem, e pode ser
sinal de novas formas de organização. Caracteriza-se pelo crescimento da
industrialização pelo globo, criando novas relações produtivas facilitadas pela melhoria
47
e barateamento dos transportes e comunicações. A contração do espaço-tempo,
como indica Harvey (op. cit.), aliada à disseminação da informação, acelera ainda
mais a expansão do capital.
A organização da sociedade em movimentos de classe, a ingerência do Estado
sobre as atividades produtivas, assim como a estrutura industrial capitalista, nenhuma
destas ordenações parece capaz de contribuir como forma eficaz de regulação que
garanta a estabilidade. Todas as relações individuais apresentam-se fragilizadas, e
contribuem para o choque entre a rigidez das estruturas vigentes e a flexibilidade nos
intercâmbios sociais mais amplos:
“Tudo parece negociável e transformável ao nível da
empresa ou da família, do partido ou do sindicato, mas ao
mesmo tempo nada de novo parece possível ao nível da
sociedade no seu todo ou da nossa vida pessoal enquanto
membros da sociedade”. (SANTOS, op. cit., p. 89)
A não concretização dos ideais emancipatórios do projeto moderno redundou,
neste período, em desesperança quanto a sua efetivação, possibilidade afastada
pelas necessidades da estrutura econômica. A modernização que é imposta neste
momento aos países menos desenvolvidos − na América Latina a princípio e nos
países da Europa Central em momento posterior − exemplifica bem o processo
reducionista que sofreu o projeto moderno, assumindo cada vez mais caráter
totalitário e dominador.
“A modernização científico-tecnológica e neoliberal alastra
hoje, paradoxalmente, na mesma medida em que alastra a sua
crise, certificada por aquilo que parecem ser as suas
conseqüências inevitáveis: o agravamento da injustiça social
através do crescimento imparável e recíproco da concentração
da riqueza e da exclusão social, tanto a nível nacional como a
nível mundial; a devastação ecológica e com ela a destruição
48
da qualidade e mesmo da sustentabilidade da vida no planeta.”
(ibid., p. 91)
A impotência diante de todas as dificuldades provocadas pelo processo de
modernização, da forma como ocorreu, provoca nos indivíduos tendências ao
individualismo e indiferença frente aos problemas globais, esquivando-se de sua
responsabilidade.
“Os sinais de futuro estão na crescente convicção de que
esse défice de mundo é irremediável dentro do projeto da
modernidade e de que, portanto, a opção radical e cada vez
mais incontornável é entre enfrentar a possibilidade de este
projecto estar exausto, incumprível no que dele não foi
cumprido até agora, ou continuar a confiar na sua possibilidade
de regeneração e de continuar a esperar pela sua completude
com a mesma determinação com que Samuel Beckett nos
ensina a esperar por Godot.”
(SANTOS, op. cit., p. 92)
Diante destes problemas, surgem teorias que sugerem o estabelecimento de uma
ética da responsabilidade pessoal e social. Assim como também surgem movimentos
que buscam recuperar a subjetividade e a solidariedade, agora em bases mais
concretas: a regulação jurídica dos direitos humanos e sociais, e a autonomia das
diferentes culturas. Entretanto, todas estas iniciativas são ainda incipientes.
7.2. Descrença no futuro
A tecnologia surgiu, inicialmente, como produtora de maravilhas, atendendo ao
espírito aventureiro e à curiosidade inata aos homens. Este sentimento é claramente
perceptível na literatura de Verne, por exemplo, com a esperança na capacidade
humana de realizar conquistas até então apenas sonhadas, como a ida à Lua, ao
centro da Terra ou ao fundo do mar. Estas esperanças são realizadas com o tempo,
mas os problemas que acarretam transformam-nas em fonte de angústias.
49
“Ser moderno é encontrar-se num ambiente que promete
aventura, poder, alegria, crescimento, transformação de si e do
mundo − e, ao mesmo tempo, que ameaça destruir tudo o que
temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos.”
(BERMAN apud HARVEY, op. cit., p. 21)
Esta situação provoca o que Rouanet (op. cit.) chamou de “Mal-estar na
modernidade”, causando ressentimento que leva à “contestação teórica e prática de
cada elemento do projeto iluminista de civilização” (p. 98).
A utopia do progresso inevitável que solucionaria todos os problemas,
irrevogavelmente, é a grande responsável pela insegurança que permeia todas as
relações, na medida em que não passa, mesmo, de uma utopia, irrealizável por
definição. A estranheza do mundo leva à irrupção de extremismos que visam à
profanação dos valores até então em vigor. A violência contra o outro tem por alvo sua
liberdade, o irracionalismo não é justificado em si mesmo, mas apenas como oposição
ao racional. A “Crise do Século XX”, como a denomina Kujawski (op. cit.), resulta na
destruição da utopia modernista, que visava construir um futuro que proporcionasse a
todos os homens garantias de bem-estar, com a transferência da ação humana
voltando-se novamente para o presente e suas características particulares.
Santos (op. cit.) identifica a perda de esperança no futuro com a substituição do
pensamento utópico pelo cientificista, inteiramente realista:
“Não será que a morte do futuro que hoje tememos foi
anunciada há muito pela morte da utopia? Não será que a
perda da inquietação e busca de uma vida melhor contribui
para a emergência da subjectividade conformista que considera
melhor, ou pelo menos inevitável, tudo o que for ocorrendo só
porque ocorre e por pior que seja? … Será que a recusa da
utopia não acabou por redundar na recusa das idéias por
realizar?” (ibid., p. 323)
50
A utopia é necessária ao homem para o desenvolvimento e aperfeiçoamento de
suas potencialidades. Cabe, então, encontrar nova função para a utopia, que pode ser
a de conduzir as ações humanas, proporcionando-lhes um objetivo a alcançar. A
presente crise determina a mudança do tipo de razão que deve ser exercida, não mais
puramente utópica, mas perspectiva, fundada na experiência do real. Ainda que o real
seja conceito também em discussão, dependente da percepção individual e dos
sistemas de representação utilizados.
7.3. A arte e a multiplicidade de linguagens e sist emas de representação
Outro aspecto a considerar na sociedade moderna que se estabelece no século
XX é a aceleração na aquisição de conhecimentos, que corresponde a uma outra no
ritmo de vida e na alteração do ritmo urbano, provocando a necessidade de criação e
recriação constante de novas modas, novos objetos de desejo, ou sinais
diferenciadores no meio da massificação produzida pela vida urbana. Harvey (op. cit.)
percebe a modernidade, e também a pós-modernidade, como momentos de
transformação na estrutura do tempo-espaço, com causas diferenciadas, que
provocam alterações nas experiências cotidianas de vida. Baudelaire (op. cit.)
descreve a modernidade como a junção entre tendências diversas como o “eterno” e o
“transitório”. A busca das verdades eternas em meio a tanta fragmentação e mudança
assumiu a forma da experiência estética: a apresentação do imutável, a beleza,
através do transitório, as formas. A ligação da modernidade com a experiência
estética, entretanto, data do século XVIII, quando o sentimento adquiriu status
autônomo como forma de cognição.
A análise deste movimento estético que é o Modernismo, permite a visão clara
das características da modernidade no século XX. O caráter criativo-destrutivo
embutido em sua formulação é levado a extremos, e os artistas adquirem papel de
relevo na produção cultural da modernidade, iniciando o processo de mudança. Ainda
no século XIX, o movimento romântico abraçou a nova diretiva e elegeu a
51
subjetividade, a individualidade e o lirismo como suas características principais
ligando, assim, a percepção individual de cada homem sobre o mundo à forma como
o representavam, alterando a definição da essência eterna e imutável das coisas.
Tratava-se de “tirar da moda o que esta pode conter de poético no histórico, de extrair
o eterno do transitório” (BAUDELAIRE, op. cit., p. 24).
Os artistas perceberam a necessidade de buscar uma nova linguagem que
permitisse a representação do “eterno a partir do transitório”. Desta maneira, no
século XIX a velocidade com que linguagens diversas, adotadas por grupos de
artistas com visões de mundo diferentes, são construídas e destruídas aumenta de
forma exponencial. Haja vista a pletora de escolas e tendências diversas que
podemos identificar na História da Arte desde então.
Da mesma forma, a crença iluminista de que só havia uma resposta a cada
questão foi superada em prol da valorização de diferentes sistemas de representação.
Cada artista interpreta o mundo através de sua percepção individual, extraída da
experiência cotidiana, e deseja reproduzir esta visão em sua produção. Sendo assim,
os artistas no Modernismo preocuparam-se desde o início com a linguagem, tornando-
se, muitas vezes, auto-referenciais.
A ruptura com a idéia iluminista de verdade absoluta não se restringiu ao domínio
artístico, mas provocou reflexos muito fortes também na ciência − como na física
relativista de Einstein. Não se tratava, no entanto da negação da existência de uma
realidade única, mas apenas na multiplicidade de representações possíveis, a “busca
do eterno” ainda constituía a base do pensamento modernista. O que seria modificado
com o pensamento de Nietzsche , para quem a própria existência da verdade única
tornou-se questionável.
Na segunda metade do século XX, as obras de artistas de vanguarda foram
elitizadas a tal ponto, como conseqüência de seu próprio hermetismo lingüístico, que
não permitiram mais o acesso da camada popular. Essa elitização provocou o
52
esgotamento das forças criativas, já que a experimentação e busca de novas formas
de arte tornou-se cada vez mais difícil.
“A arte, a arquitetura, a literatura, etc., do alto Modernismo
tornaram-se artes e práticas do establishment numa sociedade
em que uma versão capitalista corporativa do projeto iluminista
de desenvolvimento para o progresso e a emancipação
humana assumira o papel de dominante político-econômica”.
(HARVEY, op. cit., p. 42)
A reação a esse quadro ocorreu através dos movimentos ditos de “contracultura”,
que agiram contra o establishment, valorizando a realização pessoal. Esses
movimentos atingiram seu auge no final da década de 60, mais exatamente em 1968.
“Foi quase como se as pretensões de universais de
modernidade tivessem, quando combinadas com o capitalismo
liberal e o imperialismo, tido um sucesso tão grande que
fornecessem um fundamento material e político para um
movimento de resistência cosmopolita, transnacional e,
portanto, global, à hegemonia da alta cultura modernista”.
(HARVEY, op. cit., p. 44)
Todas essas correntes artísticas, certamente, reagiram a transformações na
sociedade em que foram geradas. O Modernismo, que surgiu no início do século XX,
respondeu a mudanças profundas nas relações sociais de produção, circulação e
consumo de mercadorias, e mostrou-se, ainda, movimento essencialmente urbano. As
relações ocorridas nas grandes cidades são determinantes do sentido de alteridade
predominante no mundo moderno, pois a necessidade de organização deste espaço
mais complexo que são os centros urbanos, instrumentalizam as relações
interpessoais. A própria experiência do tempo-espaço deve também se render à nova
organização racional e econômica.
No período entre guerras, assolado por problemas econômicos e sociais graves, o
homem teve que procurar um novo modelo de sociedade, na qual pudesse sobreviver
53
e que lhe garantisse a segurança prometida, mas não cumprida, pelo Iluminismo. Um
mito que resgatasse a esperança e confiança no futuro, apontando a saída da difícil
situação em que se encontrava. Este mito é identificado, por uma ala dos
modernistas, com o poder e a lógica das máquinas; outros foram buscar na história
seu mito redentor − como ocorreu com o fascismo. A função do mito continua a
mesma: salvar o homem do domínio do acaso impulsionando-o para a ação social
positiva. Estes mitos, entretanto, não foram suficientes para impedir a eclosão de nova
guerra mundial, e foram substituídos, após 1945, por uma vinculação ao modelo
capitalista de sociedade. A modernização assumiu, desde então, conotação positivista
e tecnocêntrica; sendo orientada por planejadores especializados que detinham o
conhecimento e o poder de organizar e transformar as relações econômico-sociais.
7.4. Crítica à razão moderna em Horkheimer
Horkheimer (op. cit.) afirma que as idéias do Iluminismo sempre estiveram muito
próximas à de dominação. Seu desenvolvimento dificilmente poderia ter seguido outro
rumo, uma vez que a ligação com o autoritarismo está presente em seus
fundamentos:
“Desde sempre o Iluminismo, no sentido mais abrangente
de um pensar que faz progressos, perseguiu o objetivo de livrar
os homens do medo e de fazer deles senhores.
(HORKHEIMER, op. cit., p. 97)
No Iluminismo, o saber esteve sempre ligado ao poder: “o que os homens querem
aprender da natureza é como aplicá-la para dominar completamente sobre ela e sobre
os homens” (ibid., p. 98). Neste aspecto, Horkheimer critica o Iluminismo pela atitude
de relegar a verdade a segundo plano, privilegiando o “proceder eficaz” (idem).
A ciência moderna, inicialmente, preocupou-se mais com fórmulas que
enquadrassem os fenômenos no âmbito do conhecido, do que com o sentido real
destes mesmos fenômenos. Desta forma, a matéria tornou-se inerte em suas mãos,
54
possibilitando a seleção das qualidades que permitissem sua melhor apreensão e
compreensão, e considerando como suspeitas as demais. A análise dos fenômenos
partia então de alguns aspectos visíveis, e ocultava, por vezes, a relação entre
fenômenos diversos. O Iluminismo aparece assim como totalitário e também
reducionista, pois: “A multiplicidade das figuras é reduzida a posição e ordenação; a
história, ao fato; as coisas, à matéria” (ibid., p. 100). A abstração científica que
transforma fenômenos em números e fórmulas serve à negação das qualidades
únicas, transformando tudo em unidades equivalentes.
A dominação sobre a natureza só é possível através do distanciamento, ou
alienação, do homem com relação a ela: só é necessário o conhecimento sobre o que
pode ser usado para a produção. O distanciamento que ocorre, então, é o
distanciamento existente entre o dominador e a coisa dominada, a natureza resume-
se apenas a seu aspecto utilitário. Da mesma forma, os indivíduos tornam-se não
diferenciados: as qualidades que os tornam únicos, como sentimentos e sensações,
são relegadas a segundo plano. A massificação é necessária para o incremento da
produção, e age sobre os desejos, necessidades e ações. Neste quadro, a linguagem
científica posta a serviço da dominação elimina qualquer possibilidade de
manifestação dos excluídos. Primordialmente em busca de validade universal, os
conceitos, teorias e signos da ciência moldam a realidade, assumindo papel
metafísico:
“Ao tornar-se, no procedimento matemático, a incógnita de
uma equação, o desconhecido fica assim caracterizado como
um velho conhecido, mesmo antes de se ter determinado o seu
valor” (HORKHEIMER, op. cit., p. 112).
Para ordenar os processos e as ações práticas, o Iluminismo procurou não
questionar o pensamento, mas fundar-se nele. Ritualizando os métodos e processos,
e restringindo o conhecimento à repetição do já conhecido, o Iluminismo identifica-se
com o mito do qual procurou se libertar desde o início, posto que ele possui a função
55
de prover o homem de explicações para os fenômenos conhecidos e, mesmo, de
respostas a questões que ainda não surgiram. Da mesma forma, o aspecto de
previsão que está irrevogavelmente ligado à estrutura da ciência moderna, procura
explicar tanto os fenômenos conhecidos quanto os desconhecidos, e assegurar a
existência do homem pela certeza de repetição das leis naturais. A repetição liberta o
homem de seus medos básicos; assim como a apropriação dos fenômenos através de
símbolos, lingüísticos ou matemáticos.
“O princípio de imanência, de explicação de todo acontecer
como uma repetição, sustentado pelo Iluminismo contra o
poder da imaginação mítica, é o princípio do próprio mito. A
sabedoria ressequida, para a qual nada de novo vige sob o sol,
desde que, no jogo sem sentido, todas as cartas já foram
jogadas, e os grandes pensamentos, todos eles já pensados,
que as possíveis descobertas podem ser antecipadamente
construídas, e que os homens estão comprometidos a se
autoconservarem pela adaptação − essa sabedoria ressequida
limita-se a renovar a sabedoria fantástica que justamente
rejeita: sanção do destino que reproduz incessantemente por
retaliação o que sempre já era.” (ibid., p. 103)
A defesa dessa situação na sociedade moderna é feita pela crença de que a
mudança levaria, fatalmente, à ruína. Se só existe uma verdade, essa se reflete em
uma sociedade estruturada em conformidade com ela. A racionalidade eleita como
guia para todas as relações e ações humanas não é flexível o suficiente para permitir
o aparecimento de novos valores, ao contrário, vê a irracionalidade como o maior dos
perigos, o retorno da barbárie.
Ao mesmo tempo, com a estruturação da sociedade sob o molde dos ideais
burgueses, o uso da razão iluminista pelos indivíduos torna-se perigoso, pois a
sociedade igualitária perfeita preconizada pelos socialistas e também pelos liberais
torna-se abstração incômoda, no sentido em que gera inconformismo. Para
56
Horkheimer (op. cit., p. 117), “a essência do Iluminismo é a alternativa cuja
inevitabilidade é a dominação”. A dominação, por sua vez, implica degeneração das
qualidades humanas, do servo pela alienação do produto final de seu trabalho, e do
senhor, pelo afastamento da experiência direta de produção:
“Enquanto suas habilidades e conhecimentos se diferenciam
pela divisão do trabalho, a humanidade é coagida a retroceder
a suas etapas antropologicamente mais primitivas, pois, com a
existência facilitada pela técnica, a permanência da dominação
condiciona a fixação dos instintos por uma opressão mais forte.
A fantasia é atrofiada”. (ibid., p. 119)
A atrofia reflete-se na incapacidade de encontrar respostas às novas questões, e
produzir pensamentos originais destacados da coletividade indistinta.
A racionalidade, entretanto, reencontra seu espaço na época atual, a fase de
acreditar em mecanismos naturais ocultos que regiam as relações econômicas já foi
superada. Hoje, as decisões sobre os rumos da economia global partem de alguns
dirigentes e se refletem por toda parte. No entanto, esta racionalidade não está
disponível, ainda, para todos: “os dominados aceitam como intocável e necessário o
desenvolvimento que, a cada aumento de custo de vida decretado, os torna ainda
mais impotentes” (ibid., p. 121). Existe o conhecimento para suprimir a desigualdade e
acabar com a miséria, mas ele é incompatível com a sociedade racional
estabelecida.
Para Horkheimer (op. cit.), apesar das limitações do Iluminismo, nele se encontra
a possibilidade de desnudar as relações de dominação e corrigir os prejuízos que
ocasionaram:
“Pois o conceito não se limita a distanciar, enquanto ciência,
os homens da natureza, mas nos permite medir ainda a
distância que eterniza a injustiça, justamente enquanto auto-
reflexo do pensar que se mantém acorrentado, na forma da
ciência, à cega tendência econômica”. (ibid., p. 123)
57
7.5. Crítica à racionalidade e à racionalização em Habermas
A racionalização, segundo Habermas (1975), está ligada ao “agir racional-com-
respeito-a-fins” tanto no sentido de um “agir instrumental”, quanto na escolha entre
alternativas, um “agir estratégico” correspondendo à orientação liberal-iluminista da
busca da eficácia. O primeiro baseia-se em “regras técnicas”, enquanto o segundo em
“estratégias baseadas no saber analítico”. Desta forma, não são apenas componentes
técnicos, neutros, que influem na ação, mas também valores pré-definidos e máximas
universais que constituem esse saber. Já o “agir comunicativo” é regido por normas
consensuais entre os sujeitos que, com o uso, tornam-se sanções; não sendo,
necessariamente, construções apriorísticas.
Com o desenvolvimento do capitalismo e das formas de produção, o crescimento
econômico foi institucionalizado, resultando no questionamento e rejeição do tipo de
legitimação tradicional. A modernização provoca mudanças no equilíbrio entre as duas
formas de ação, com a ação instrumental tornando-se preponderante em todos os
domínios da vida. O planejamento para aumentar a eficácia das relações é
característico da modernidade, e liga-se ao acelerado progresso técnico-científico. O
incremento do âmbito de ação da razão instrumental, implica o abandono de outras
formas de legitimação que não a racional. Desta forma, a razão não age mais como
critério para a crítica que permitiria a libertação do homem da dominação legitimada
pela tradição, mas torna-se, ela própria, nova fonte de legitimação.
A dominação racional tem caráter político uma vez que inibe a discussão sobre os
objetivos e interesses da sociedade, pois as atividades se atêm à organização
baseada em regras pré-definidas. O caráter político da dominação, quando legitimada
por razões técnicas, torna-se irreconhecível, embora esteja presente já na própria
constituição da técnica, que se prende a objetivos determinados a priori. A legitimação
é dada pela racionalidade do mercado: “o quadro institucional é imediatamente
58
econômico; é só de uma maneira mediata que ele é político” (HABERMAS, op. cit., p.
315), e é neste sentido que encara a técnica como ideologia.
A crescente ligação da ciência à técnica que ocorreu no desenvolvimento das
formas de produção neste século, produziu fonte de legitimação direta, posto que a
constante inovação é necessária ao crescimento econômico. As ações das grandes
organizações são condicionadas por métodos mais eficazes de “ação racional-com-
respeito-a-fins”, enquanto o comportamento dos indivíduos é controlado por normas
que visam também à eficácia do sistema, e não mais à interação através de um agir
comunicativo de ordem moral.
Deste modo, para transformar as relações sociais estabelecidas pela tecnologia,
faz-se necessário revolucionar a própria estrutura da ciência que a determina.
Habermas (op. cit.), no entanto, destaca que o desenvolvimento da técnica seguiu
encaminhamento lógico que visava à substituição, ou ao aperfeiçoamento dos órgãos
humanos na execução de tarefas e, portanto, torna-se difícil encontrar projeto
alternativo, e muito mais difícil ainda renunciar aos confortos que a tecnologia, no
nível em que está, pode proporcionar. Aponta então para novo tipo de racionalização,
que liberte o “domínio comunicativo” das imposições originadas no agir racional-com-
respeito-a-fins. Proporcionando a possibilidade de adoção de normas interiorizadas
flexíveis e sujeitas à reflexão.
“Não creio que ainda seja adequada ao capitalismo a
concepção de que há potencial tecnologicamente transbordante
que não se esgote dentro de um quadro institucional mantido
por repressão (…) A questão não é a de saber se conseguimos
esgotar um potencial disponível ou a ser ainda desenvolvido,
mas a de saber se escolhemos aquilo que podemos querer
para os fins de uma pacificação e satisfação da existência.”
(HABERMAS, op. cit., p. 331)
59
O agir racional consiste, em parte, de habilidades sobre as quais o homem não
tem controle, ou que são exercidas sem necessidade de elaboração mental. Mas,
para o autor citado, a ação racional deve permitir a formulação consciente da maior
parte do conhecimento habitual: “a função da razão prática é fornecer argumentos que
apoiem as crenças subjacentes às decisões de agir” (INGRAM, 1993, p. 40).
No âmbito individual, o agir objetiva o atendimento às necessidades pessoais,
segundo as crenças próprias sobre os tipos de ação. No tocante aos agentes sociais,
pressupõe a argumentação e o consenso entre diferentes indivíduos. A ação racional
não é exclusivamente instrumental, mas implica o atendimento a parâmetros morais e
legais:
“Assim, a ação racional é guiada não só pelas crenças
factuais, cuja pretensão à verdade pode ser objeto de
argumentação, mas também por crenças normativas,
expressivas e avaliativas que pretendem ter correção,
sinceridade, autenticidade e propriedade.”
(INGRAM, op. cit., p. 40)
Para a validade plena da argumentação entre diferentes agentes sociais, é
necessária a existência da “situação ideal do discurso”, em que todos os agentes têm
a mesma possibilidade de apresentar e rebater argumentos. Desta maneira, é
refutada a principal crítica a respeito do agir racional, que não estaria, por princípio,
limitado a seu aspecto instrumental e dominador, mas pressuporia a liberdade e
igualdade entre os agentes:
“A racionalidade de uma ação é função da extensão em que
pode ser justificada. Implícita ou explicitamente, as ações têm
pretensões à verdade, à correção moral, à propriedade, à
sinceridade e à compreensibilidade”. (ibid., p. 43)
60
As pretensões enumeradas por Ingram ( op. cit.) são enunciáveis e passíveis de
questionamento e reorganização, e localizam-se em universo conhecido, objetivo, no
qual as ações são praticadas. O modo como é exercida a racionalidade no mundo
moderno, está intimamente relacionado com sua referencialidade, que se divide nos
domínios objetivo, subjetivo e social.
“As reivindicações de validade das crenças apontam para
diferentes domínios da realidade; as pretensões à verdade
dizem respeito ao mundo dos objetos no espaço-tempo; as
pretensões à correção e justiça fazem referência ao mundo das
normas sociais; as pretensões à sinceridade e autenticidade
pertencem ao mundo pessoal dos sentimentos e desejos.”
(ibid., p. 50)
Neste ponto Habermas coloca-se como partidário da superioridade da
racionalidade moderna sobre as mítico-tradicionais, por sua capacidade de propor
enunciados verdadeiros quanto à constituição do mundo objetivo. Este pensamento
não implica irracionalidade de todas as culturas que diferem da ocidental, mas
comprova sua superioridade no nível cognitivo; a qual advém, ainda, de uma maior
flexibilidade, favorável à progressão de conhecimentos.
A racionalização cultural do ocidente, teve como resultado a autonomia das
diferentes esferas de valor − verdade, bem e beleza −, contribuindo para a
secularização do conhecimento e, também, da atividade artística:
“Assim como o desenvolvimento da tecnologia permitiu que
os empreendedores e administradores conduzissem suas
respectivas atividades com base no cálculo impessoal,
independentemente de considerações religiosas e morais,
assim também a libertação da arte do domínio da Igreja
apressou seu ingresso no mercado, permitindo a busca
desenfreada de ideais materialistas.” (INGRAM, op. cit., p. 69)
61
A arte é, ainda hoje, um dos mais evidentes campos de atuação em que se pode
perceber a mudança de ideais. A vanguarda artística teve relevante posição em todos
os momentos de consolidação dos valores modernos, assim como na atualidade
aponta para sua superação.
A libertação do domínio da Igreja ocasionou, ainda, a dissociação entre ética e
direito, cuja fundamentação é destituída do aspecto religioso. Quando o contrato
social passa a legitimar as ações, substitui a autoridade tradicional por leis impessoais
e imparciais, o julgamento sobre a validade destas leis prende-se, cada vez mais, à
eficácia de sua aplicabilidade. As descobertas científicas que proporcionam visão
coerente e racional do mundo, e produção de invenções que têm por finalidade
aumentar o conforto e a qualidade de vida humanas, adquirem importância cada vez
maior e são elevadas ao status de verdade única e absoluta.
“Embora a liberdade de consciência seja agora protegida de
pressões sociais e políticas, ela tem um papel cada vez mais
marginal na vida quotidiana. Até mesmo o desejo de alcançar
uma visão significativa do cosmos parece satisfeito pelo êxito
da ciência moderna.” (INGRAM, op. cit., p. 73)
Como a ciência e a tecnologia não respondem a questões que estão fora de seu
campo imediato de ação, apresentam-se para Weber (1992), por princípio,
desprovidas de sentido, uma vez que as várias esferas de valor do mundo − como o
bom, o belo e o verdadeiro − são irreconciliáveis. Assim, a razão surge como
irremediavelmente fragmentada, e os valores que defende, de eficiência e verdade
factual, não podem ser justificados racionalmente em comparação a outros valores.
Também em Habermas (1990) a rejeição dos mitos, assim como a burocratização
e mecanização produtiva levaram, realmente, à perda de sentido para a vida humana,
mas esta situação é contrabalançada por maior autonomia frente à tradição e pela
possibilidade do surgimento de novas formas de expressão e sentido, a partir da
comunicação entre indivíduos: “o direito representa um reino da liberdade individual
62
em que é permitido fazer tudo o que é compatível com a mesma liberdade dos outros”
(INGRAM, op. cit., p. 73). E também pelo fato de que o processo formador deste
quadro foi fruto da institucionalização da razão fragmentada, conseqüência do modo
de evolução histórica do capitalismo, podendo, portanto, ser revertido. A integração
entre as diversas orientações − cognitivo-instrumentais, moral-práticas e estético-
expressivas − da razão deve ocorrer em todas as ações, de forma não antagônica.
Toda a ação reflete a complexidade de referências − objetivas, sociais e pessoais −
que compreendem a racionalidade humana.
No capitalismo, a ampliação dos meios de comunicação de massa substitui, de
certa forma, a ação comunicativa pessoal, e libera os indivíduos da necessidade de
reagir a todos os estímulos, criando domínios de discurso especializados. Esta
situação engloba aspecto negativo e positivo: de um lado permite manipulação de
alguns agentes sobre a maioria e, por outro, permite consenso sobre problemas que
afetam grande número de indivíduos.
Habermas (op. cit.), em alguns momentos, identifica o progresso com a crescente
capacidade de resolução de problemas, mas isto pressupõe alguma forma de
comparação entre seus diferentes tipos e, mesmo, a definição do que corresponderia
a uma solução, o que pode assumir diferentes conotações em culturas diversas. A
diversidade apontada por Habermas (op. cit.) possibilita a identificação da
generalização do conceito de progresso, com o de dominação. Analisando o
pensamento de Weber, Ingram (op. cit.) afirma que:
“A racionalização do mundo vivo leva a três ‘ilusões’: que a
linguagem ordinária é um meio de conhecimento verídico e
transparente; que a interação comunicativa se caracteriza pela
pura reciprocidade; que os indivíduos são plenamente
conscientes dos seus motivos, que funcionam como
pressupostos contrafactuais à ação comunicativa”. (p. 156)
63
Os tipos de dominação, puros, que Weber (op. cit.) descreve − de caráter
racional, tradicional e carismático − são tipos ideais, que não ocorrem isolados uns
dos outros na realidade, mas prestam-se à aproximação conceitual. Dentre os três, o
que possui maior relevância na modernidade é o de caráter racional, exercido com
base em leis e regras instituídas racionalmente de acordo com valores pré-
determinados a que todos os membros do grupo devem obedecer a fim de que sejam
aceitos como partícipes em suas interações.
7.6. Crítica à modernidade em Nietzsche
A existência de uma verdade absoluta, às vezes sobrenatural, é o fundamento de
filosofias diversas desde Platão, e é inerente ao pensamento moderno, pois possibilita
o exercício da racionalidade na tentativa de compreensão do mundo.
Nietzsche (1991) questiona esta verdade da “coisa em si”, assim como
problematiza também, por princípio, a oposição de valores que eleva a verdade e o
não-egoísmo ao invés do engano e das atitudes egoísticas: “A falsidade de um juízo
ainda não é para nós nenhuma objeção contra esse juízo” (p. 50).
Rejeita o cogito cartesiano que contém em si diversas afirmações nas quais
baseia sua pretensão à verdade − como a existência de um eu pensante, e a
identificação desta atividade como um pensar −, possuindo portanto fundamentação
frágil. A racionalidade moderna é questionada logo no seu fundamento mais básico: a
própria existência e independência do pensamento, pois
“aquele ‘eu penso’ pressupõe que eu compare meu estado
no instante com outros estados que conheço em mim, para
assim estabelecer o que ele é: dada essa remetência a um
‘saber’ de outra procedência, ele não tem para mim, em todo
caso, nenhuma certeza imediata”. (ibid., p. 51)
A instância da consciência como conhecedora do mundo fundar-se-ia em
preconceito moral, dando à verdade valor maior que à aparência, e tornando-a, em si,
64
enganosa. A realidade seria então em Nietzsche, apreendida do mesmo modo como
agem nossas emoções: através da ação recíproca e orgânica entre “impulsos”.
“Suposto que nada outro está ‘dado’ como real, a não ser
nosso mundo dos apetites e paixões, que não podemos descer
ou subir a nenhuma outra ‘realidade’, a não ser precisamente à
realidade de nossos impulsos − pois pensar é apenas uma
proporção desses impulsos entre si −: não é permitido fazer o
ensaio e perguntar a pergunta, se esse dado não basta para, a
partir de seu semelhante, entender também o assim chamado
mundo mecânico (ou ‘material’)”? (ibid., p. 54)
O fundamento passa a ser, assim, a emoção, e não mais a razão pura e fria. A
ação da vontade só pode ser dada sobre a própria vontade. Baseando-se neste
princípio, Nietzsche (op. cit.) supõe ser a “vontade” a causa primeira e única dos
fenômenos percebidos, apresentando “o mundo visto de dentro” (p. 55) como
“vontade de potência” apenas.
O sentido de todas as coisas seria dado por esta “vontade de potência” que se
apropria de algo preexistente e lhe impõe um uso. O progresso seria mais uma
transformação de formas e sentidos que um desenvolvimento natural de um processo
qualquer: “é, pelo contrário, a sucessão de processos mais ou menos profundos, mais
ou menos independentes um do outro…“ (op. cit., p. 88). O progresso não seria
natural e inevitável como afirmava “o gosto do tempo” (idem) pela voz dos
modernistas, mas corresponderia, antes, à ação da vontade. As leis naturais
descobertas pela investigação científica seriam apenas “arranjo ingenuamente
humanitário e uma distorção de sentido” (ibid., p. 52) visando à implantação dos ideais
modernos de igualdade e democracia; trata-se da ideologia, da tentativa de
materialização de uma “vontade”.
A nova compreensão do mundo, livre dos preconceitos que a relacionam,
univocamente, à busca da verdade, exige o surgimento de novos filósofos de “espírito
65
livre”. Liberdade diversa da preconizada pelo ideal moderno, como condição, ao
mesmo tempo, moral e intelectual. A crítica de Nietzsche é veemente, e provoca
reviravolta na interpretação então corrente de liberdade, como vinculada à igualdade
iluminista:
“Não passam, em suma, de niveladores, esses falsamente
chamados ‘espíritos livres’ − escravos loquazes e
escrevinhadores do gosto democrático e de suas ‘idéias
modernas’; (…) bravos rapazes desajeitados, aos quais não se
deve negar coragem nem costumes respeitáveis, só que são,
justamente, não-livres e ridiculamente superficiais, sobretudo
com sua propensão fundamental a ver nas formas da velha
sociedade que existiu até agora mais ou menos a causa de
toda miséria e fracasso dos homens (…) suas duas cantigas e
doutrinas mais fartamente cantadas se chamam ‘igualdade de
direitos’ e ‘simpatia por tudo o que sofre’ − e o próprio sofrer é
tomado por eles como algo que é preciso abolir.” (ibid., p. 55)
É realmente esta a intenção do Iluminismo em qualquer de seus movimentos
componentes: contribuir para um estado de bem-estar que pudesse ser compartilhado
por todos os homens; e o progresso caminharia neste sentido. Nietzsche (op. cit.)
afirma, ao contrário, que todo o desenvolvimento deve-se a situações adversas e
perigosas, onde a “vontade de vida” cresce e manifesta-se com grau maior de
eficiência. Seu “espírito livre” é liberto também destes objetivos, é pura “vontade de
potência”, com características estéticas marcantes e pleno de criatividade.
A superficialidade nas idéias modernas, que caracteriza um de seus pontos fracos
estaria ligada, para Nietzsche (op. cit.), ao instinto de conservação dos homens, que
imaturos não podem “chegar à posse da verdade cedo demais” (p. 58); desta forma,
os artistas seriam “crianças escaldadas” (p. 57) para quem o falseamento da realidade
tem o propósito de escamotear aquela verdade. Neste sentido, a religiosidade tem,
também, a mesma finalidade: da “inverdade a todo preço” (idem). Esta, entretanto,
66
age no sentido de direcionar o pensamento para uma força supranatural, enquanto os
modernos buscam deduzir a verdade última de todas as coisas através de suas
relações naturais, sem aprofundar o pensamento na pesquisa de sua essência.
A igualdade preconizada pelos iluministas também é criticada por Nietzsche (op.
cit.), tanto nos anarquistas e socialistas − “broncos filosofastros e fanáticos de
irmandade” (p. 62) − quanto nos democratas − “pacífico-laboriosos” (idem) −,
atribuindo a todos a defesa de uma sociedade que se diz livre, embora esteja, no
íntimo, ligada à “moral de animais-de-rebanho” que assolaria a Europa:
“unânimes … na fundamental e instintiva hostilidade contra
toda outra forma de sociedade que não a do rebanho autônomo
(…) ; unânimes na tenaz resistência contra toda pretensão
particular, todo direito particular e privilégio (…); unânimes na
desconfiança contra a justiça penal (…) ; mas igualmente
unânimes na religião da compaixão, na simpatia que se estende
a tudo que sente, vive, sofre (…) ; unânimes todos eles na
gritaria e na impaciência da compaixão, no ódio mortal contra o
sofrimento em geral, na quase feminina inaptidão para
permanecer espectador, para deixar sofrer; … unânimes na
crença na moral da compaixão em comum, como se ela fosse a
moral em si, fosse a altura, a altura alcançada do homem, a
única esperança de futuro, o meio de consolidação dos
presentes, a grande remissão de toda culpa desde sempre: −
unânimes todos eles na crença em uma comunidade como
redentora, no rebanho, portanto, em ‘si’…” (idem)
A moral desvenda-se, assim, como forma de coação disfarçada em doutrina do
bem e do mal que se justifica em si mesma. Este nivelamento dos homens diante de
uma moral igualitária significa, para Nietzsche (op. cit.), seu “apequenamento” ou
“mediocrização”, com a perda ou desperdício de algumas qualidades individuais
diferenciadoras; assim como ocorre também com a compaixão pelos fracos, pois
67
acredita que somente através do sofrimento e da luta constante é que o homem pode
se fortalecer e alcançar grau mais alto de realização individual. A mudança destes
valores só se realizaria diante de “novos filósofos”, “espíritos fortes e originais”,
realmente livres. Estes são os interlocutores procurados, ou desejados, por Nietzsche.
N’A genealogia da moral, Nietzsche (1993) distingue fortemente os valores
advindos de uma “moral de escravos” e os oriundos da “moral de senhores”. A moral
de escravos visa ao futuro e à mudança, o bem relaciona-se às ações que objetivam a
melhoria das condições de vida dos que sofrem. Para o segundo tipo, o bem
confunde-se com o nobre, e o homem nobre é “criador de valores” (op. cit., p. 72): é
uma moral que glorifica o indivíduo, liga-se, intimamente, ao passado e à tradição.
Aos nobres são destinadas as intenções mais elevadas, de aperfeiçoamento individual
e felicidade plena, enquanto aos escravos designa inveja, vingança e ressentimento,
aliados a certa dose de subterfúgios que tornam essa classe cada vez mais esperta −
esperteza que tem por finalidade lutar contra as adversidades naturais que atingem a
todos os “escravos”. Sua crítica ao homem moderno prende-se à oposição entre a
distinção pessoal buscada pelo nobre, e a igualdade perseguida pelos escravos, e
defendida pelo Iluminismo e pela modernidade:
“o apequenamento e igualamento do homem europeu
aninha nosso maior perigo, pois essa visão cansa … Não
vemos hoje nada que queira se tornar maior, pressentimos que
tudo vai cada vez mais para trás, para trás, para o mais diluído,
mais chinês, mais cristão − o homem, sem dúvida nenhuma, se
torna cada vez ‘melhor’… Aqui justamente está a fatalidade da
Europa − com o medo ao homem perdemos também o amor a
ele, a veneração por ele, a esperança nele, e até mesmo a
vontade dele. A visão do homem agora cansa − o que é hoje
niilismo, se não é isso? … Estamos cansados do homem …“
(op. cit., p. 83)
68
A crítica de Nietzsche não deixa de lado nenhum dos aspectos privilegiados pelo
ideal modernista; quanto à ciência, afirma que sua preponderância significa o
“empobrecimento da vida”: “as emoções tornadas frias, o tempo tornado lento, a
dialética no lugar do instinto, a seriedade impressa nos rostos e gestos…“ (ibid., p.
101).
Denuncia ainda a falta de um ideal que norteie a atividade científica, retirando
qualquer possibilidade de enriquecimento vital e espiritual, que seria o objetivo dos
“novos filósofos”. E aponta a objetividade e a cientificidade como estando
relacionadas ao ceticismo que atravessa a sociedade de alto a baixo, decorrente de
paralisia da vontade:
“a ciência é hoje um esconderijo para toda espécie de
desânimo, descrença, verme corrosivo, despectio sui, má
consciência − ela é a própria intranqüilidade da ausência de
ideal, o sofrimento com a falta do grande amor, a insatisfação
de uma involuntária frugalidade.” (ibid. p. 97)
Todas as críticas à modernidade realizadas por Nietzsche colaboraram para a
reflexão sobre fundamentos até então admitidos como verdade absoluta, como era a
pretensão iluminista e moderna. A partir de então, novas possibilidades de
pensamento são percebidas e, quando somadas às demais críticas realizadas no
século XX sobre problemas provocados pelo desenvolvimento capitalista, começam a
apontar em direção a novas teorias filosóficas e sociais, ditas pós-modernas.
8. A pós-modernidade
8.1. O conceito de Pós-modernidade
Diversos autores ao tratar da nova orientação social que está sendo construída,
referem-se a ela como pós-modernismo, e outros como pós-modernidade. Tendo já
definido, no item 5 deste trabalho, que o termo Modernismo seria utilizado para o
movimento artístico que surgiu no início do século XX, e o termo modernidade para a
69
teoria que fundamenta esse movimento e a estrutura e as práticas sociais neste
século, seria mais adequado procurar diferenciação semelhante para os termos pós-
modernidade e pós-modernismo. No entanto, devido à grande indefinição que ainda
ocorre nesta área, esse posicionamento torna-se complexo e, até mesmo, inútil, posto
que as reflexões sobre a pós-modernidade podem levar à conclusão de que ela não
configura construção teórica independente da modernidade. Não é objetivo deste
trabalho apresentar posição final sobre tema tão controvertido, deste modo, o primeiro
termo será utilizado preferencialmente, salvo quando houver a necessidade de
respeitar a opção de algum dos autores estudados.
A pós-modernidade surge, em alguns momentos, como estruturação social e, em
outros, como construção teórica alternativa. Ambos os sentidos serão abordados de
acordo com a ênfase que recebem de cada autor citado, assim como sua importância
para o questionamento subseqüente sobre sua relação com a educação.
Após todas as críticas sobre a concretização do projeto de modernidade baseado
no Iluminismo, torna-se necessário analisar as correntes téoricas pós-modernas a fim
de estabelecer se representam efetivamente outra direção para os objetivos modernos
iniciais ou rompimento radical na direção de nova estruturação conceitual. Qualquer
que seja a orientação seguida, a pós-modernidade sempre se afirma pela negação da
modernidade, seja a negação de seus princípios ou apenas da forma como foi
concretizada. Para alguns trata-se de movimento resultante da evolução natural dos
conceitos modernos, a que passamos sem ruptura, como conseqüência das
mudanças sociais acarretadas pela evolução do capitalismo e da tecnologia.
“O Modernismo está longe de estar morto − suas categorias
centrais estão simplesmente sendo escritas no interior de uma
pluralidade de narrativas que estão tentando enfrentar o novo
conjunto de configurações sociais, políticas, técnicas e científicas
que constituem a era atual.” (GIROUX , 1993, p. 47)
70
O termo pós já insinua que a nova teoria tem continuidade com a precedente:
“qualquer tradição que se identifica como pós-algo está também aceitando a
importância básica da tradição que se propõe superar” (BURBULES, 1993, p. 179).
Outros autores, no entanto, crêem em modificação profunda, e anunciam nova
conformação paradigmática, como Lyotard. Mas não se apóiam em nenhum princípio
básico que sustente uma teoria e que sirva como argumento para convencer outros
indivíduos de sua veracidade, acontecendo justamente o inverso: a pós-modernidade
em Lyotard (op. cit.) nega qualquer princípio universal. Devido a essas diferenças,
Harvey (op. cit.) defende que a perplexidade frente às mudanças conceituais
contemporâneas só permite afirmar que se trata de uma “reação ao ‘Modernismo’ ou
de afastamento dele” (p. 19). E Silva (op. cit., p. 123) afirma:
“Assim, o pós-modernismo é definido por idéias mais
gerais sobre a caracterização social, econômica e cultural de
nossa época (a ‘condição pós-moderna’) e por uma negação
daqueles pressupostos epistemológicos que são descritos
como tendo caracterizado a análise e o pensamento modernos
(a crença na razão e no Progresso e no poder emancipatório da
Ciência, uma concepção ‘realista’ do conhecimento e da
linguagem, a confiança nas metanarrativas).”
O projeto alternativo, resultante da não concretização integral dos ideais
modernos, encontra-se esgotado, embora seus elementos sirvam de guia para a
busca de novas soluções para os conflitos sociais, pois compõem a base da
sociedade ou, de acordo com Santos (op. cit.):
“são eles que constituem a nossa contemporaneidade e é
deles que temos de partir para imaginar o futuro e criar as
necessidades radicais cuja satisfação o tornarão diferente e
melhor que o presente.” (p. 102)
Apesar da variedade de teorias existentes, ditas pós-modernas, a crítica à
modernidade que caracteriza todas elas se concentram em torno de afirmações
71
comuns, como a negação das metanarrativas e a irrealidade do conhecimento que se
baseia em percepções mutáveis e realidades múltiplas.
8.2. A Pós-Modernidade e os jogos de linguagem
A análise de Lyotard (op. cit.) é desenvolvida essencialmente em torno do
problema da linguagem, que difere da concepção aceita na modernidade. Na
sociedade moderna, o privilégio da razão instrumental sobre todos os outros aspectos
da razão, levou a um tipo de discurso específico para definir e regular as ações, o
científico, que o mesmo autor conceitua:
“Usarei o termo moderno para designar qualquer ciência
que legitime a si mesma com referência a um metadiscurso
desse tipo, fazendo um apelo explícito a alguma grande
narrativa, tal como a dialética do Espírito, a hermenêutica do
significado, a emancipação do sujeito racional ou trabalhador
ou a criação de riqueza.” (p. xxii)
O discurso científico admite tipos diferentes de enunciados: o primeiro,
denotativo, tem como característica a autoridade do remetente para estabelecer
conceitos, devendo apenas basear-se em regras que definem o que é um enunciado
válido, estas regras formam o conjunto maior do “metadiscurso”; sob outro aspecto,
assumem a forma de enunciados de desempenho, verificáveis através de algum tipo
de experimentação cujas regras são previamente definidas pelo discurso denotativo.
O segundo tipo de enunciado são as prescrições, que indicam a autoridade do
remetente para emitir ordens e a predisposição do destinatário para obedecer, ou
reconhecer esta autoridade.
Já nas sociedades tradicionais, predomina o tipo de discurso narrativo, baseado
em regras pragmáticas. Histórias sobre a experiência de heróis são transmitidas de
um indivíduo para outro através de relatos que determinam as experiências positivas e
negativas para todo o grupo social, tanto no sentido da eficácia das ações quanto de
sua validade moral.
72
“Os relatos determinam os critérios de competência e/ou
ilustram a sua aplicação. Eles definem assim o que se tem o
direito de dizer e de fazer na cultura e, como também eles são
uma parte desta, encontram-se legitimados.”
(LYOTARD, op. cit., p. 42)
A orientação seguida na estruturação do conhecimento científico na modernidade
− seja por acúmulo ou através de seguidas revoluções − foi fruto de escolhas prévias,
que configuraram um paradigma e que também determinaram os estatutos éticos e
políticos adotados. É vital para a compreensão do estado fragmentado da pós-
modernidade, especialmente em Lyotard (op. cit.), o entendimento de que existem
regras que determinam a validade de qualquer enunciado científico e que dependem
da legitimidade da linguagem utilizada, assim como dos agentes envolvidos:
remetentes e destinatários. E, na pós-modernidade, a característica desta legitimação
seria a de um “jogo”, em que os lances são feitos por diferentes atores e validados
através de contratos temporários, explícitos ou não.
“ O primeiro princípio que alicerça todo nosso método: é
que falar é combater, no sentido de jogar, e que os atos de
linguagem provém de uma agonística geral. … segundo
princípio que lhe é complementar e norteia nossa análise: é que
o vínculo social observável é feito de ‘lances’ de linguagem”.
(LYOTARD, op. cit., p. 17)
O saber para este autor não é limitado ao conhecimento científico, mas engloba
também um “saber-fazer”, “saber-viver” e “saber-escutar” (ibid., p. 36), e contribui para
a formação do indivíduo e suas competências. A validade dos diferentes saberes é
medida por sua aceitação consensual, que constitui uma cultura. O consenso não
constitui a verdade, mas a possibilidade de supor que a realidade comporta-se de
uma ou outra maneira. A crise no saber científico, que ocorre no século XX, deriva “da
erosão interna do princípio de legitimação do saber” (ibid., p. 71). O conhecimento
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científico é definido por regras que não têm competência para definir se as ações
práticas dele decorrentes são justas ou não, trata-se de diferentes competências, pois
“Nada prova que se um enunciado que descreve uma
realidade é verdadeiro, o enunciado prescritivo, que terá
necessariamente por efeito modificá-la, seja justo.” (ibid., p. 72)
A ausência de uma metalinguagem que permita a legitimação do saber científico
introduz a necessidade de sistemas “formais e axiomáticos” (ibid., p. 79) capazes de
garantir a verdade de um enunciado. Neste momento, as técnicas adquirem caráter
exemplar, pois obedecem a critério de “otimização das performances” (ibid., p. 81).
Para a ciência, entretanto, a melhoria das performances não é o objetivo inicial, posto
que implica o controle sobre todas as variáveis do sistema, o que descobertas como
as da física atômica e da mecânica quântica, por exemplo, provaram ser irrealizável.
Existe sempre um limite para o controle e, até mesmo, o conhecimento de todas as
variáveis envolvidas.
A própria natureza da comunicação transforma-se na passagem da Modernidade
para a pós-modernidade, pois o primeiro identificava univocamente o conceito e seu
signo, enquanto os últimos destacam a importância dos agentes envolvidos na
comunicação que irão determinar tanto o significado quanto a própria possibilidade de
comunicação, dependente do sentido que remetente e destinatário designam para
cada signo lingüístico.
Além disto, os pós-modernos também admitem a variação constante destas
relações significado-significante pela intermediação dos diferentes agentes, e pela
mutabilidade das percepções da realidade. A impossibilidade de estender o alcance
de uma comunidade interpretativa a outras reflete-se na impraticabilidade de um
projeto global de ação, que se restringe a determinismos locais.
“O Modernismo dedicava-se muito à busca de futuros
melhores, mesmo que a frustração perpétua desse alvo
levasse à paranóia. Mas o pós-modernismo tipicamente
74
descarta essa possibilidade ao concentrar-se nas
circunstâncias esquizofrênicas induzidas pela fragmentação e
por todas as instabilidades que nos impedem até mesmo de