1 Saúde Suplementar e Modelos Assistenciais Autora: Deborah Carvalho Malta 1 Introdução Nas últimas décadas ocorreram inúmeros avanços relativos às políticas setoriais públicas, em especial no setor saúde no Brasil. O movimento da "Reforma Sanitária" constituiu-se em um movimento político em torno da remodelação do sistema de atenção à saúde, tendo a compreensão da saúde como um direito do cidadão e dever do Estado. Este movimento aglutinou diversos atores sociais, formando uma ampla coalizão política em torno de princípios que sustentavam a criação do Sistema Único de Saúde e que resultaram no arcabouço jurídico da Constituição Federal de 1988 e da Lei Orgânica da Saúde - 8080, de 1990, que definiram as diretrizes de universalidade, integralidade e equidade (BRASIL, 1988; BRASIL, 1990). A política de saúde no Brasil seguiu, nos anos 80, uma trajetória paradoxal: de um lado, a concepção universalizante, de outro, obedecendo às tendências estruturais organizadas pelo projeto neoliberal, concretizaram-se práticas caracterizadas pela exclusão social e redução de verbas públicas. Em função dos baixos investimentos em saúde e conseqüente queda da qualidade dos serviços, ocorreu uma progressiva migração dos setores médios para os planos e seguros privados (MALTA, 2001). A expansão da Saúde Suplementar nas últimas décadas foi significativa, estimando-se segundo os dados da PNAD/98, em 38,7 milhões o número de brasileiros cobertos por pelo menos um plano de saúde, o que corresponde a 24,5% da população do País (IBGE, 2000). Esses números expressam as profundas alterações que a prestação dos serviços de saúde vem sofrendo, colocando na agenda governamental a necessidade do estabelecimento de um ordenamento jurídico legal para o setor, que incorpore a regulamentação desse mercado privado e a definição das suas responsabilidades. Essa regulamentação iniciou-se em 1998, mediante a Lei 9656/98, mas, ainda existe um grande percurso na sua consolidação (BRASIL, 1998). Convive-se com uma grande heterogeneidade nos padrões de qualidade do setor, fragmentação e descontinuidade da atenção, que comprometem a efetividade e a eficiência do sistema
48
Embed
MODELOS ASSISTENCIAIS EM SAÚDE SUPLEMENTAR · coalizão política em torno de princípios que sustentavam a criação do Sistema Único de Saúde e que resultaram no arcabouço jurídico
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
1
Saúde Suplementar e Modelos Assistenciais
Autora: Deborah Carvalho Malta1
Introdução
Nas últimas décadas ocorreram inúmeros avanços relativos às políticas setoriais
públicas, em especial no setor saúde no Brasil. O movimento da "Reforma Sanitária"
constituiu-se em um movimento político em torno da remodelação do sistema de
atenção à saúde, tendo a compreensão da saúde como um direito do cidadão e dever
do Estado. Este movimento aglutinou diversos atores sociais, formando uma ampla
coalizão política em torno de princípios que sustentavam a criação do Sistema Único
de Saúde e que resultaram no arcabouço jurídico da Constituição Federal de 1988 e
da Lei Orgânica da Saúde - 8080, de 1990, que definiram as diretrizes de
universalidade, integralidade e equidade (BRASIL, 1988; BRASIL, 1990).
A política de saúde no Brasil seguiu, nos anos 80, uma trajetória paradoxal: de um
lado, a concepção universalizante, de outro, obedecendo às tendências estruturais
organizadas pelo projeto neoliberal, concretizaram-se práticas caracterizadas pela
exclusão social e redução de verbas públicas. Em função dos baixos investimentos em
saúde e conseqüente queda da qualidade dos serviços, ocorreu uma progressiva
migração dos setores médios para os planos e seguros privados (MALTA, 2001).
A expansão da Saúde Suplementar nas últimas décadas foi significativa, estimando-se
segundo os dados da PNAD/98, em 38,7 milhões o número de brasileiros cobertos por
pelo menos um plano de saúde, o que corresponde a 24,5% da população do País
(IBGE, 2000). Esses números expressam as profundas alterações que a prestação dos
serviços de saúde vem sofrendo, colocando na agenda governamental a necessidade
do estabelecimento de um ordenamento jurídico legal para o setor, que incorpore a
regulamentação desse mercado privado e a definição das suas responsabilidades.
Essa regulamentação iniciou-se em 1998, mediante a Lei 9656/98, mas, ainda existe
um grande percurso na sua consolidação (BRASIL, 1998). Convive-se com uma
grande heterogeneidade nos padrões de qualidade do setor, fragmentação e
descontinuidade da atenção, que comprometem a efetividade e a eficiência do sistema
2
como um todo, atingindo as redes de cuidados básicos, especializados e hospitalares,
que atendem a clientela de planos de saúde.
A chamada “assistência médica supletiva” adquire inúmeros formatos na prestação da
assistência e esses inúmeros aspectos devem ser mais bem conhecidos. O atual
trabalho procura abrir o debate sobre os diferentes Modelos Assistenciais praticados
na Saúde Suplementar, visando o maior conhecimento do setor e orientação da ação
regulatória do Estado.
Características dos segmentos da Saúde Suplementar
A Saúde Suplementar é composta pelos segmentos das autogestões, medicinas de
grupo, seguradoras e cooperativas.
Denomina-se “autogestão” os planos próprios patrocinados ou não pelas empresas
empregadoras, constituindo o subsegmento não comercial do mercado de planos e
seguros. As autogestões totalizam cerca de 300 empresas e aproximadamente 4,7
milhões de beneficiários. O grupo é heterogêneo, incluindo as grandes indústrias de
transformação (Volkswagen), entidades sindicais, empresas públicas, até empresas
com pequeno número de associados. Cerca de 50% é administrada por instituições
sindicais ou entidades jurídicas paralelas às empresas empregadoras, como as caixas
de assistência, caixas de previdência e entidades fechadas de previdência. Integram
sua administração, representantes dos trabalhadores e patronais. Percentual
significativo é administrado por departamentos de benefícios/recursos humanos da
própria empresa. Os planos de autogestão organizam suas redes de serviços,
fundamentalmente, mediante o credenciamento de provedores (CIEFAS, 2000; BAHIA
2001; ABRAMGE, 2002).
O subsegmento comercial compreende as cooperativas de trabalho médico –
UNIMED’S e cooperativas odontológicas, as empresas de medicina de grupo (incluindo
as filantrópicas) e as seguradoras.
As seguradoras, vinculadas ou não a bancos, representam a modalidade empresarial
mais recente no mercado de assistência médica suplementar, com 16% do
contingente de pessoas cobertas através de planos privados de saúde. Esse segmento
1 Médica, Doutora em Saúde Coletiva (Planejamento e Administração em Saúde), Professora Adjunta EE/UFMG
3
utiliza-se da lógica atuarial para o cálculo das prestações dos planos e realiza uma
seleção de riscos mais rigorosa, dado que se referenciam na lógica securitária
(CORDEIRO, 1984; BAHIA 2001).
As cooperativas de trabalho médico, as UNIMED’S possuem 25% dos clientes de
planos de saúde e se organizaram, a partir da iniciativa de médicos, com a
argumentação da ameaça de perda da autonomia da prática médica e da
mercantilização da medicina.
As medicinas de grupo, constituídas inicialmente por grupos médicos aliados ao
empresariado paulista, são atualmente responsáveis por quase 40% dos beneficiários
da assistência médica supletiva. Esse segmento se organizou em torno de
proprietários/acionistas de hospitais, criando redes de serviços e credenciando
hospitais e laboratórios, dado que existia um comprador de serviços que lhes garantia
um mercado seguro. O surgimento do setor deu-se a partir de meados da década de
1960, com o denominado convênio-empresa entre a empresa empregadora e a
empresa médica (medicina de grupo), estimulados pela Previdência Social, que
repassava subsídios per capita pelo serviço prestado, prática essa que foi decisiva no
empresariamento da medicina (OLIVEIRA & TEIXEIRA, 1986, MÉDICI, 1992).
A extensão do mercado da Saúde Suplementar
Apresentaremos uma breve descrição sobre a extensão da Saúde Suplementar no
Brasil, no que se refere à cobertura, abrangência geográfica, dados sobre o
financiamento, número de operadoras, dentre outros, possibilitando maior
aproximação do objeto estudado. Apesar do grande número de fontes consultadas,
torna-se muitas vezes difícil comparar as informações, pois os dados encontram-se
dispersos, com discrepâncias significativas para um mesmo ano, além de nem sempre
existirem dados da mesma fonte para todos os anos. Os dados das fontes oficiais,
como os do Ministério da Saúde e IBGE, são ainda limitados na abrangência e
apresentam descontinuidade temporal. Grande parte das informações disponíveis é
produzida pelas operadoras através de suas entidades representativas, ou, por firmas
de consultorias contratadas pelas mesmas. A maioria dos estudos e pesquisas
acadêmicas sobre a Saúde Suplementar trabalham com dados secundários oriundos
das fontes mencionadas. Diante dessas dificuldades, os estudos que pretendem
esboçar um panorama necessitam de esforço considerável para a organização e
4
produção de informações consistentes, além de demandar adaptações metodológicas
para utilização adequada das informações disponíveis (BAHIA, 1999; KORNIS &
CAETANO, 2002). Mesmo diante dessas limitações iremos nos apoiar nessas fontes
para a caracterização da Saúde Suplementar.
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD, do IBGE, tem por finalidade a
produção de informações básicas para o estudo do desenvolvimento socioeconômico
do País. A amostra de domicílios possibilita investigar diversas características
socioeconômicas (educação, trabalho, rendimento e habitação), e outras com
periodicidade variável, como as informações sobre migração, fecundidade,
nupcialidade, saúde, nutrição. A primeira Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
foi realizada em 1967 e a partir de 1971, os levantamentos passaram a ser anuais,
sendo interrompidos nos anos dos Censos Demográficos de 1970, 1980 e 1991. Em
1998 foi realizada investigação sobre saúde obtendo informações de morbidade
percebida, acesso e utilização de serviços de saúde, cobertura por plano de saúde e os
gastos com saúde (IBGE, 2000).
A PNAD estimou em 38,7 milhões o número de brasileiros cobertos por pelo menos
um plano de saúde, correspondendo a 24,5% da população do País, cobertura menor
que nos países europeus e nos Estados Unidos (que é da ordem de 84%). Destes 75%
estavam vinculados a planos de saúde privados (operadoras comerciais e empresas
com plano de auto-gestão) e 25% estavam vinculados a planos de instituto ou
instituição patronal de assistência ao servidor público civil e militar (IBGE, 2000).
A cobertura de planos de saúde é expressivamente maior nas áreas urbanas (29,2%),
do que nas áreas rurais (5,8%). O IBGE calcula que 25,7% das mulheres e 23,0% dos
homens brasileiros estejam cobertos por um plano de saúde. Em relação às faixas
etárias, o percentual da população brasileira que possui um plano de saúde, oscila de
20,7% entre pessoas até 18 anos, a 29,5% entre pessoas na faixa etária de 40 a 64
anos. Acima de 65 anos a cobertura atinge 26,1% para os homens e 28,2% para as
mulheres. A cobertura é maior também entre aqueles que avaliam seu estado de
saúde como muito bom e bom (25,9%), reduzindo para 14,5% entre aqueles que
avaliam seu estado de saúde como ruim ou muito ruim (IBGE, 2000).
5
Aqueles que apresentam renda familiar inferior a 1 salário mínimo, tem cobertura de
planos de saúde de apenas 2,6%, aumentando progressivamente com o crescimento
da renda, até atingir 76% de cobertura entre aqueles que recebem 20 salários
mínimos e mais (IBGE, 2000).
Segundo a mesma pesquisa, cerca de 60% dos planos de saúde no País são pagos
pelo empregador do titular, de forma integral (13,2%) ou parcial (46,0%). A
modalidade de contrato mais freqüente é abrangente e inclui serviços ambulatoriais,
hospitalares e exames diagnósticos e terapêuticos. O co-pagamento é uma prática
observada em 20% dos planos de saúde do País (IBGE, 2000).
Existe uma alta correlação positiva entre acesso ao médico e o poder aquisitivo da
população. Enquanto 49,7% das pessoas de menor renda familiar declararam ter
consultado médico nos últimos 12 meses, esse valor sobe para 67,2% no caso
daquelas pessoas com mais de 20 salários mínimos de renda familiar. Segundo o
IBGE, as pessoas sem rendimento foram as que apresentaram o maior coeficiente de
internação hospitalar (11,5 por 100 pessoas no grupo).
Em síntese a PNAD/98 apontou os seguintes problemas de acesso aos serviços de
saúde no País: a) cerca de um terço da população brasileira não tem um serviço de
saúde de uso regular; b) o acesso à consultas médicas e odontológicas aumenta
expressivamente com a renda e é maior nas áreas urbanas; c) cerca de um quinto da
população brasileira nunca foi ao dentista e esse percentual cresce para 32% entre os
residentes da área rural; d) aproximadamente 5 milhões de pessoas referiram ter
necessitado mas não procuraram um serviço de saúde, sendo que a justificativa mais
freqüente desta atitude foi a falta de recursos financeiros; e) entre as pessoas
atendidas, cerca da metade teve seu atendimento realizado através do SUS e,
aproximadamente, um terço das pessoas referiu ter utilizado plano de saúde para
receber este atendimento; f) do total de atendimentos, cerca de 16% implicaram em
algum pagamento por parte do usuário; g) o atendimento recebido foi bem avaliado
pelas pessoas que usaram serviços de saúde, tanto públicos como privados (IBGE,
2000).
O IBGE concluiu que os planos de saúde atuam no sistema de saúde brasileiro
introduzindo mais um elemento de geração de desigualdades sociais no acesso e na
utilização de serviços de saúde, na medida em que cobrem uma parcela seleta da
6
população brasileira na qual predominam: pessoas de maior renda familiar, inseridas
em determinados ramos de atividade do mercado de trabalho e que avaliam seu
estado de saúde como muito bom ou bom (IBGE, 2000).
1.1.1 Outras fontes na caracterização da Saúde Suplementar
Iremos nos apoiar em dados de literatura, nas fontes oficiais (Agencia Nacional de
Saúde Suplementar - ANS) e nos sites das operadoras, para a caracterização do
mercado de planos de saúde no Brasil.
A fonte oficial sobre o mercado da Saúde Suplementar é o Cadastro de Beneficiários
da ANS, de preenchimento obrigatório por parte das operadoras e que em abril de
2002, contabilizava 32,7 milhões de beneficiários, distribuídos da seguinte forma:
Medicina de Grupo (33,6%), Cooperativa Médica (25,0%), Autogestão (14,6%),
Seguradora (16,2%), Odontologia de Grupo (5,3%), Filantropia (2,7%) (Tabela 1)
(BRASIL, 2002a).
Distribuição de beneficiários da saúde suplementar por segmento, Brasil 2002
Faixa deBeneficiários
Beneficiáriosativos Beneficiário
s %Operadora
s
%
Medicina de GrupoCooperativa MédicaAutogestãoOdontologia de GrupoCoop. OdontológicaAdministradoraSeguradoraFilantropia
11.011.7688.209.6974.782.9431.728.578
823.06132
5.288.272883.868
33,625,014,65,32,5
016,22,7
627315285284148
113
102
35,317,716,016,08,3
0,060,75,7
Total 32.728.219 100,0 1.775 100
Fonte: Cadastro de Beneficiários - abril de 2002 (BRASIL, 2002a)
Dados do mesmo cadastro em novembro de 2002 contabilizavam 35,5 milhões de
beneficiários (BRASIL, 2002b). O Cadastro da ANS não inclui os beneficiários
vinculados aos sistemas de Previdência Pública Estadual, por não serem incluídos na
obrigatoriedade da Lei 9656/98, quanto à apresentação do cadastro à ANS e também
não incluí, eventualmente, operadoras que obtiveram liminares na justiça,
desobrigando-as do fornecimento de seus dados cadastrais.
7
A ABRAMGE estima que o mercado de planos de saúde compreenda cerca de 41
milhões de clientes, divergindo dos dados oficiais. Cabe esclarecer que a ABRAMGE
trabalha com estimativas e não com cadastro real (ABRAMGE, 2002). Para fins desse
trabalho consideraremos os números de cobertura oficiais.
O Cadastro da ANS contabilizava em abril de 2002: 13 seguradoras, 627 Empresas de
Medicina de Grupo, 102 Filantrópicas, 285 Autogestões, 315 Cooperativas Médicas,
148 Cooperativas odontológicas, 284 Odontologias de Grupo e 1 Administradora
(BRASIL, 2002a) (Tabela 1).
Os dados do cadastro mostram a concentração dos beneficiários em grandes
operadoras: são 752 operadoras com até 2000 beneficiários, ou 1,58% e 54
operadoras somam mais de 17 milhões, ou 52% dos beneficiários (Tabela 2).
A maioria das empresas de medicina de grupo e UNIMED’S são de pequeno porte
(menos de 100.000 beneficiários) e com coberturas mais localizadas. Ao contrário, as
seguradoras possuem planos com mais de 100.000 beneficiários e concentrados em
um pequeno número de empresas (Figura 1).
Tabela 1. Distribuição das faixas de beneficiários por operadoras,
Fonte: Cadastro de Beneficiários abril de 2002 (BRASIL, 2002a)
A implantação da regulação pública na Saúde Suplementar
O debate sobre o tema da regulação na Saúde Suplementar é ainda muito incipiente
no Brasil, dado o recente tempo de efetiva publicação da Lei 9.656/98, que constituiu
um importante instrumento de regulação pública. A Lei introduziu novas pautas no
mercado como: a ampliação de cobertura assistencial, o ressarcimento ao SUS, o
registro das operadoras, o acompanhamento de preços pelo governo, a
10
obrigatoriedade da comprovação de solvência, reservas, técnicas, a permissão para a
atuação de empresas de capital estrangeiro, dentre outras.
Segundo Bahia (2001), existem divergências quando se discute qual é o objeto e a
intensidade dessa regulação. Para alguns, a regulamentação visa corrigir/atenuar as
falhas do mercado com relação à assimetria de informações entre clientes, operadoras
e provedores de serviços. A regulação deveria então atuar minimizando a seleção de
riscos, por parte das empresas de planos, que preferem propiciar cobertura aos riscos
“lucrativos” e por parte de clientes, que tendem a adquirir seguros/planos, em razão
de já apresentarem alguma manifestação do problema de saúde pré-existente.
Os grandes embates posteriores à criação da ANS têm se dado em função da
ampliação da cobertura e ameaças de quebra das operadoras de menor porte, face às
exigências de demonstração de solvência.
As críticas produzidas dentre os diversos atores variam conforme a sua origem,
inserção social e defesa dos interesses que representam. Nesse sentido, os órgãos de
defesa dos consumidores, como o Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC),
pontuam, por exemplo, a “armadilha aos idosos”, apontada como a permissão da
adoção de preços diferenciados entre os mais jovens e mais velhos, e a permissão de
não coberturas. Os órgãos de defesa do consumidor conjuntamente com as entidades
médicas, questionam a não cobertura de todas as patologias, a autonomia na
solicitação dos procedimentos, a remuneração dos profissionais, dentre outros. As
cooperativas médicas questionam os prazos de adaptação às Leis, a obrigatoriedade e
constitucionalidade do ressarcimento, as dificuldades impostas aos pequenos planos e
empresas regionais, no que se refere às exigências de coberturas. As medicinas de
grupo pontuam os prazos de adaptação às Leis, a ilegalidade quanto à retroatividade,
as inúmeras exigências que levam ao aumento dos custos dos produtos. As
seguradoras criticam que o modelo criado tornou-se muito expandido com regras de
difícil execução (FIGUEREDO, 2002).
Os embates sobre a regulamentação pública se estenderam para dentro do aparelho
de estado, enquanto o Ministério da Fazenda defendia uma regulação governamental
de menor intensidade através da SUSEP, onde o centro era a regulação econômica e
financeira, o Ministério da Saúde defendia uma ação mais efetiva do Estado,
colocando a regulação também no aspecto assistencial. O modelo da regulação
11
bipartite, feita pela SUSEP e pelo MS se arrastou até a criação da ANS, através da Lei
9961/00, que definiu por um órgão regulador único, saindo vitoriosa a tese do
Ministério da Saúde (BRASIL, 2000c; MESQUITA, 2002).
A Agência de Saúde Suplementar (ANS) foi criada com autonomia orçamentária e
decisória e assemelha-se às demais agências reguladoras quanto a estrutura
organizacional e autonomia. Sua criação significou um importante passo na regulação
do mercado, revelando diversos abusos das operadoras contra os clientes e ampliando
o papel de regulação e controle da assistência. Ainda permanecem muitas lacunas no
processo regulatório que precisam ser aperfeiçoadas.
Um grande avanço nos mecanismos de regulação constituiu-se na implantação do
ressarcimento ao SUS, em 2000. Este foi concebido para desestimular o atendimento
de clientes de planos de saúde em estabelecimentos da rede pública e privada
conveniada. A cobrança tem se dado através de uma terceira tabela para a
remuneração dos procedimentos, a Tabela Única Nacional de Equivalência de
Procedimentos (TUNEP), que foi concebida com valores intermediários entre os
praticados pelas operadoras e pelo SUS (BRASIL, 2000a). O ressarcimento ainda é
polêmico entre as operadoras, que se defendem dizendo que seus clientes optam
espontaneamente pelo SUS e por isso estariam desobrigadas em ressarcir tais
despesas. Ainda existem inúmeras dificuldades no processo de retorno do recurso
desembolsado aos cofres públicos, demonstrados pelos dados de desempenho do
ressarcimento: dos 364.242 procedimentos identificados até dezembro de 2002,
193.014 haviam sido impugnados, 145.349 cobrados e apenas 33.935 efetivamente
pagos (BRASIL, 2003).
O processo de regulação ainda é incipiente e torna-se necessário o enfrentamento de
temas mais complexos e estruturantes como o desafio de entender a natureza dessa
regulação, seus avanços e limites, a dimensão da organização do subsetor, o
financiamento da oferta de serviços, as modalidades assistenciais, suas redes e a
complexidade dessas relações.
A compreensão do Modelo Assistencial praticado só se faz na medida que entendemos
o processo de regulação existente. Modelo Assistencial e regulação são as duas faces
da mesma moeda. Visando facilitar a compreensão da dimensão do processo
regulatório, buscamos a contribuição de Cecílio (2003), que propõe um diagrama para
facilitar a visualização da cartografia do campo regulatório da ANS, possibilitando o
mapeamento dos campos de intervenção e abrindo a discussão de como atuar visando
a transformação na melhoria da atenção à saúde (Figura 2).
Cecílio (2003) designa o campo A (regulação da regulação ou macroregulação), como
o campo constituído, pela legislação e regulamentação (Legislativo, Executivo/ANS,
CONSU), ou seja, a Lei 9656/98 e 9.961/2000, as resoluções normativas,
operacionais, instruções, dentre outras, ou seja, "O braço do Estado que se projeta
sobre o mercado" (BRASIL, 1998; BRASIL, 2000b).
O campo B constitui o campo da auto-regulação ou regulação operativa, isto é, as
formas de regulação que se estabelecem entre operadoras, prestadores e
compradores/beneficiários. Sendo que no espaço relacional 1, ocorrem as relações
entre operadoras e prestadores, o espaço relacional 2 é aquele onde se estabelecem
as transações entre as operadoras e os compradores/beneficiários, o espaço relacional
3 marca o encontro dos beneficiários com os prestadores.
Figura 2 A cartografia do campo regulatório da ANS
ANS Operadoras
Campo A - Regulação da Regulação
re
1
2
3
12
Fonte: Cecílio (2003)
Compradores/ Beneficiários
Campo B - auto-
gulação operativa
13
14
Mapeando essas relações torna mais fácil a caracterização do espaço regulatório.
Discutiremos as hipóteses do estudo, visando a compreensão do modelo regulatório e
do modelo de assistência praticado. Essas hipóteses são fruto de um trabalho coletivo,
de um grupo de pesquisadores da Saúde Suplementar2 (JORGE; 2003; CECÍLIO,
2003).
As hipóteses do estudo
A regulação pública praticada atualmente na Saúde Suplementar tem ocorrido, em
geral, a partir da premissa da regulação da saúde financeira das operadoras, ou seja,
da capacidade de se estabelecer no mercado, honrando os compromissos na
prestação da assistência à saúde dos seus beneficiários, conforme o que foi
contratado, sob a perspectiva do direito dos consumidores. Esse modelo de regulação
tem sido praticado nos diversos países, inclusive no Brasil, mesmo que timidamente e
ele se refere à regulação no Campo A, do diagrama proposto por Cecílio (2003).
Após a aprovação da Lei 9656/98, abriu-se uma disputa dentro do aparelho de
estado, onde alguns setores defendem uma nova perspectiva no processo regulatório
do Estado, entendendo uma nova atribuição no papel regulatório, ou seja, a regulação
da produção do cuidado à saúde. Esses setores entendem que as operadoras podem
ser gestoras da saúde dos seus beneficiários, ou não, e que essa prática precisa ser
regulada pelo Estado. Essa perspectiva abre uma nova frente de ação do Estado. No
que se praticava até então no processo regulatório, amplia-se para o entendimento
que se deve intervir também na regulação do cuidado à saúde, praticado pelas
operadoras. Coloca-se um outro patamar de intervenção, onde as políticas públicas
indicam as diretrizes desse novo formato regulatório, ou seja, intervir também no
campo B, ou no campo da auto-regulação ou regulação operativa.
A regulação do Estado nesse nível deverá ser precedida por um processo de
apreensão dessa dimensão, compreendendo como esses mecanismos assistenciais
ocorrem no cotidiano. Existe um déficit de conhecimento e de incorporação de
ferramentas que fundem essa nova perspectiva de intervenção.
2 As pesquisas são: "Estudo e desenvolvimento de modelos e garantias assistenciais para a ANS" e “Mecanismos de regulaçãoadotados pelas operadoras de planos de saúde no Brasil”.
15
O processo brasileiro é de tal complexidade, que não se consegue enxergar
completamente o subsetor Saúde Suplementar, criando limites na eficácia do processo
regulatório. O mercado tem atuado livremente, e uma nova prática do estado implica
em se adquirir saberes e competências que subsidiem essa nova forma de operar.
Uma outra hipótese importante levantada é que, para fazer frente à Lei 9656/98, as
operadoras e prestadores têm desenvolvido mecanismos micro-regulatórios para
sobreviver ao mercado e à regulação da ANS. Alguns desses mecanismos são
conhecidos, como a instituição de protocolos, de mecanismos de referência e fluxos
que dificultam a solicitação de alguns procedimentos, o co-pagamento, fatores
moderadores, dentre outros. Ainda há muito que se investigar para melhor
compreensão desses mecanismos.
A existência desses mecanismos de micro-regulação resultam na fragmentação do
cuidado, que se tornam centrados na lógica da demanda e da oferta do que foi
contratado e não na lógica da produção da saúde, do cuidado. O modo de operar a
assistência passa a se tornar centrado na produção de atos desconexos, não
articulados. Assim as operadoras trabalham, não com a produção da saúde, mas sim
com a idéia de “evento/sinistralidade”. Assim a saúde torna-se para o mercado um
produto e não um bem. Mesmo quando se investe em atividades de promoção e
prevenção, esse componente entra mais como produto de marketing do que como
diretriz do modelo assistencial, visando de fato o cuidado à saúde.
Neste contexto, quando se avalia a hipótese de que as operadoras/prestadores na
Saúde Suplementar podem ser gestores do cuidado e que isso pode ser regulado pelo
estado, verifica-se que esta idéia não se sustenta a partir da atual configuração do
mercado de saúde brasileiro e da prática regulatória vigente na Saúde Suplementar,
que atua basicamente no espaço da macro-regulação. Para a viabilização desta nova
perspectiva de regulação há que se repensar e intervir sobre as práticas assistenciais
vigentes, instituindo uma nova forma de operar o processo regulatório, intervindo no
campo B.
Isso implica, portanto, investigar essas relações, mapear como as operadoras estão
impondo os seus mecanismos regulatórios ao mercado (gestão por pacote, glosas,
auditorias), como os prestadores reagem à esses mecanismos, buscando maior
eficiência, produzindo redução de custos, ampliando a competitividade entre si ou a
16
sobrevivência no mercado. Assim estamos nos referindo a como entender o espaço
relacional 1 (Figura 2).
Ainda no campo B (Figura 2), cabe também mapear o espaço relacional
beneficiários–prestadores, ou o espaço relacional 2, principalmente considerando o
micro espaço de encontro entre o usuário e a equipe de saúde, em especial, a relação
médico-paciente. Cabe, portanto, compreender como os prestadores/médicos estão
reagindo e instituindo outros mecanismos de microregulação, ou seja, atuando
centrados no poder médico. Cabe indagar se essa relação busca se pautar pela
produção da qualidade em saúde, pelo processo de informação do usuário/
beneficiário e de produção de sua autonomia, ou ao contrário, em função da pressão
das operadoras, se a relação entre os prestadores/médicos e clientes tem-se pautado
pela redução de custos, restrição de exames e procedimentos. Nesse espaço cabe
indagar se essa relação pode se pautar por uma lógica mais “cuidadora”, mais
relacional e “resolutiva”, ou por outro modelo relacional mais autoritário.
No espaço relacional beneficiários-operadoras, ou espaço 3, o debate central passa
por temas como a seleção de riscos (ou barreiras à entrada dos segurados no
sistema, excluindo os de alto risco), risco moral ou moral hazard (aumento da
utilização de serviços pelos usuários, quando coberto), a quebra da integralidade do
cuidado por parte da operadora, não garantindo o cuidado contratado, e a busca da
garantia de direito, por parte dos usuários (ALMEIDA, 1998).
Constata-se um grande esforço regulatório da ANS na construção de uma agenda da
regulação, concentrada no campo A, cabe ao Estado discutir também a atuação sobre
o campo da regulação operativa, ou no campo B. Esse último constitui o centro de
reflexão do atual trabalho, ou seja, como ampliar a compreensão sobre as questões
que ocorrem no cotidiano dessas relações (Campo B), visando ampliar o olhar do
Estado/ANS, para que estabeleça uma nova intervenção nesse espaço, atuando sobre
o Modelo de Assistência praticado (Figura 2).
Poderíamos sintetizar as seguintes hipóteses frente às características do modelo
assistencial praticado pela Saúde Suplementar no país:
1. As operadoras podem se constituir enquanto gestoras do cuidado.
2. As operadoras e os prestadores têm desenvolvido mecanismos micro-regulatórios
para sobreviver ao mercado e à regulação da ANS.
17
3. A existência de mecanismos de regulação resulta na fragmentação do cuidado
centrado na lógica dos contratos.
4. Para o consumidor estes mecanismos resultam na não integralidade da assistência.
5. O mercado em Saúde Suplementar não trabalha com o conceito de produção da
saúde, mas com a idéia de evento/sinistralidade.
6. A hipótese de que as operadoras podem ser gestoras do cuidado e que isto pode
ser regulado, não se sustenta na atual configuração do mercado e na prática
regulatória vigente na Saúde Suplementar.
7. As atividades de promoção à saúde, realizadas pelas operadoras, não são
estratégias para intervenção na perspectiva de um modelo mais integral de atenção,
mas predominantemente estratégias de marketing.
8. As operadoras estão operando com mecanismos de seleção de riscos, apesar da Lei
9656/98.
9. O mercado opera com variáveis para identificação de riscos, que não são as
mesmas da saúde pública, dando prioridade aos cálculos econômicos e financeiros.
(JORGE, 2003).
A importância desse mapeamento consiste na caracterização das tendências dos
atores em cena, seus tensionamentos, e disputas, fundamentando uma nova
intervenção do Estado nessa relação. Pretende-se construir competência para exercer
a regulação no campo da regulação operativa (que é fortemente auto-regulada), ou
seja, atuar no espaço da micro-regulação do mercado de saúde. Esse campo se
apresenta como um campo de disputas e negociações, configurando um território
instável e em constantes deslocamentos (CECÍLIO, 2003). Implica aproximar-se do
objeto em questão, e propiciar o diálogo com as hipóteses formuladas. Para esse
percurso, iremos buscar discutir o conceito de Modelo Assistencial, enfocando as
disputas colocadas, o desenho da linha de cuidado esperada e a micropolítica do
trabalho em saúde. A revisão pretende ampliar a compreensão dos atores em disputa,
possibilitando a perspectiva futura de atuar no processo de micro-regulação da
produção do cuidado, visando a melhoria do acesso, da integralidade e da qualidade
da assistência prestada.
18
Modelo Assistencial na Saúde Suplementar
Modelo Assistencial, na literatura que trata especificamente da Saúde Suplementar, é
um assunto pouco discutido e investigado, embora a temática esteja presente na
legislação que regulamenta o subsetor, onde o modelo assistencial aparece como
atribuição do Conselho Nacional de Saúde Suplementar (CONSU). A Lei 9656/98 traz
no seu "Art. 35", o seguinte texto: "Fica criado o Conselho Nacional de Saúde
Suplementar – CONSU, órgão colegiado integrante da estrutura regimental do
Ministério da Saúde, com competência para deliberar sobre questões relacionadas à
prestação de serviços de Saúde Suplementar nos seus aspectos médico, sanitário e
epidemiológico e, em especial: I - regulamentar as atividades das operadoras de
planos e seguros privados de assistência à saúde, no que concerne aos conteúdos e
modelos assistenciais, adequação e utilização de tecnologias em saúde” (BRASIL,
1998).
Na Lei 9.961/00, alterada pela MP No. 2.097-36, de 26.01.01, o tema de modelos
assistenciais aparece novamente, no Capítulo I - artigo 4o. que trata da competência
da ANS, há o seguinte texto: “XLI – fixar as normas para constituição, organização,
funcionamento e fiscalização das operadoras de produtos de que tratam o inciso I e o
parágrafo 1o. do art. 1o. da Lei 9656, incluindo: a) conteúdos e modelos assistenciais”
(BRASIL, 2000b).
Verifica-se, portanto, que é objeto tanto do CONSU, quanto da ANS, a regulação dos
modelos assistenciais da Saúde Suplementar, embora os textos publicados, que
tratem do tema, se preocupem, principalmente, com as discussões relacionadas ao
financiamento, gestão e regulação geral. A despeito desta situação, a Saúde
Suplementar não deixa de determinar e operar modelos de atenção.
Modelo assistencial consiste na organização das ações para a intervenção no processo
saúde-doença, articulando os recursos físicos, tecnológicos e humanos, para enfrentar
e resolver os problemas de saúde existentes em uma coletividade. Podem existir
modelos que desenvolvam exclusivamente intervenções de natureza médico-curativa
e outros que incorporem ações de promoção e prevenção; e ainda há modelos em que
seus serviços simplesmente atendem às demandas, estando sempre aguardando os
casos que chegam espontaneamente ou outros que atuam ativamente sobre os
usuários, independentemente de sua demanda (PAIM, 1999).
19
Autores como Merhy et al (1992) discutem a dimensão articulada dos saberes e da
política na determinação da forma de organizar a assistência:
"Modelo Técnico Assistencial constitui-se na organização da produção de serviços
a partir de um determinado arranjo de saberes da área, bem como de projetos
de ações sociais específicos, como estratégias políticas de determinado
agrupamento social. Entendemos desse modo, que os modelos tecno-
assistenciais estão sempre apoiados em uma dimensão assistencial e
tecnológica, para expressar-se como projeto de política, articulado a
determinadas forças e disputas sociais” (MERHY et al, 1992).
Merhy et al (1992) consideram que os modelos tecno-assistenciais se apresentam
como projetos de grupos sociais, formulados enquanto projetos tecno-assistenciais,
para serem implementados enquanto estrutura concreta de produção de parte das
ações de saúde, realizando-se de forma “pura” ou incorporando propostas de outros
projetos. Esses projetos tecno-assistenciais apóiam-se em conhecimentos e saberes
que definem o que é problema de saúde, como devem ser as práticas de saúde, para
que servem e como devem ser organizadas tais práticas, quais serão os trabalhadores
necessários e para quais pessoas estão dirigidas.
A conformação desses modelos expressa uma dada forma de poder político e,
portanto, uma dada conformação do Estado e de suas políticas, que pressupõem a
construção de uma visão dos outros modelos, seja para a disputa enquanto projeto,
seja como estratégia de sua manutenção.
Campos (1992) considera “modalidade assistencial” ou “modelos tecnológicos”, como
partes integrantes de um certo modelo tecno-assistencial.
“Por sua vez, “modalidades assistenciais” ou “modelos tecnológicos” se prestarão
para designar as várias partes constitutivas de um dado modo de produção,
sempre combinadas segundo um sentido determinado pela totalidade do modelo.
Combinações que, por sua vez, tenderiam alterar as características arquetípicas
(tipos ideais) de cada modalidade ou modelo tecnológico: clínico ou
epidemiológico, estatal ou privado, produção de serviços segundo a lógica liberal
ou assalariado, da pequena produção ou de empresas etc” (CAMPOS, 1992:37).
Para efeito desse trabalho adotaremos a compreensão de Merhy et al (1992),
assumindo que os modelos assistenciais incorporam uma dimensão articulada de
20
saberes e tecnologias de dados grupos sociais que, apoiados na dimensão política,
disputam dada forma de organizar a assistência.
Visando analisar os modelos assistenciais a partir da sua matriz discursiva, tomamos
os autores Silva Jr (1998) e Reis (2002) que se referenciam na compreensão de
Merhy et al (1992) sobre o tema. O primeiro analisando os modelos tecno-
assistenciais formulados pelo campo da Saúde Coletiva Brasileira (SILOS - Bahia,
“Cidade Saudável” de Curitiba e “Em Defesa da Vida” do LAPA - UNICAMP), estabelece
uma comparação com o modelo tecno-assistencial hegemônico (liberal-
privatista/neoliberal) e propõe uma matriz analítica. Nessa matriz, o autor compara os
modelos segundo as seguintes dimensões: concepção da saúde e doença,
integralidade na oferta das ações, regionalização e hierarquização de serviços e
articulação intersetorial.
Reis (2002), por sua vez, analisa os modelos tecno-assistenciais em Belo Horizonte,
desde o início do século XX e propõe uma matriz analítica com o objetivo de
caracterizar cada um dos modelos ao longo desse período, abordando o ator (quem
institui o modelo), os objetivos, as políticas, saberes e tecnologias, organização e
assistência. Na visão do autor, a matriz proposta, não pode ser tomada como um
somatório de partes que caracterizam os modelos tecnoassistenciais. Essas dimensões
não teriam vida própria, mas constituiriam práxis sociais, de sujeitos sociais, em
constante processo de interação (disputas, criação de consensos, hegemonia). As
dimensões se interpenetram e se condicionam mutuamente, constituindo articulações
concretas, sociais e históricas, das dimensões política, tecnológica, organizativa e
assistencial que possibilitam analisar os modelos tecnoassistenciais constituídos.
Visando analisar os modelos assistenciais em Saúde Suplementar propõe-se uma
matriz comparativa dos segmentos (Cooperativas Médicas, Empresas de Medicina de
Grupo, Auto-gestões e Seguradoras), que aborda o ator (quem institui o modelo), os
objetivos, as políticas, saberes e tecnologias, organização e assistência prestada.
O Quadro 1 apresenta a matriz com as dimensões analíticas propostas. Os objetivos
são entendidos como a definição dos propósitos que instituem o segmento. A
dimensão da política pretende caracterizar os atores implicados em cada segmento e
seus interesses disputantes, estabelecendo um mapa das relações entre os diversos
atores e verificando os graus de tensão entre os mesmos e as pactuações existentes
21
que incidem sobre a modelagem dos serviços de saúde. Os modelos assistenciais
incorporam também uma dimensão articulada de saberes e tecnologias na sua
configuração, sendo importante caracterizar os saberes que sustentam e direcionam
essa organização. A dimensão organizativa aborda a maneira de operar em função
dos pressupostos e saberes, considerando a forma de gestão/ gerência, os recursos
financeiros empregados, o número de operadoras, o número de beneficiários, a
abrangência geográfica, a cobertura, as facilidades do acesso, as portas de entrada
(atendimento telefônico, call center), os fluxos e direcionalidades aos usuários, a
definição de referência/contrareferência, a hierarquização da rede. A dimensão
assistencial caracteriza ss redes assistenciais constituídas, as diferentes modalidades
da atenção especializada, a assistência à alta complexidade e à saúde mental,
considerando-se os equipamentos existentes, hospitais e leitos, a existência de
práticas de prevenção (educação para a saúde), assistência farmacêutica, atividades
domiciliares e outras.
O preenchimento dessas dimensões deu-se em função dos dados disponíveis na
literatura, portanto tivemos dificuldades no sentido da padronização das fontes, o que
fez com que utilizássemos diversas fontes e anos distintos para a obtenção das
dimensões propostas.
A matriz (Quadro 1) serve como exercício de aproximação do objeto, possibilitando
abordar o macro ator (no caso, quem institui) e a sua forma de operar no respectivo
segmento, os principais objetivos do segmento, as principais disputas, os saberes e
tecnologias determinantes do campo, a macro organização para operar a assistência e
o quantitativo de alguns procedimentos realizados por segmento. São aproximações
iniciais que possibilitam um recorte ainda imperfeito. O aprofundamento no tema
implicaria em outros instrumentos, outros desenhos metodológicos, possibilitando
novos olhares. A seguir apresentamos o Quadro 1 e a caracterização geral dos
segmentos da saúde suplementar e uma aproximação do modelo assistencial
praticado.
22
Quadro 1- Caracterização do Modelo Técnico Assistencial da SaúdeSuplementar implantado por segmento
Dimensão doMTA
Cooperativas Médicas Medicina de Grupo Autogestão Seguradoras
I- Objetivos
Valorizar o trabalho médico eprover soluções de saúde,assegurando a satisfação dosseus clientes (UNIMED/BH,2003).
Prestar assistência àsaúde através dosserviços próprios oucredenciados aosbeneficiários dos planoscoletivos e dos planosindividuais.
Proporcionarassistência àsaúde atrabalhadoresde empresaspúblicas ou desetoresestratégicos daeconomia,através desistemas desaúdesupletivos quesãoadministradosdiretamentepela instituiçãopatrocinadoraou por umainstituiçãoassistenciale/ouprevidenciáriadiretamenteligada a ela.
Prestarassistência àsaúde porsistemasupletivo desaúde através deuma formaparticular deintermediaçãofinanceirasegundo a qual aempresaseguradora pagadiretamente aoprestador doserviço deatenção médicacredenciado oureembolsa asdespesas feitaspelo seguradosob regime delivre escolha.
23
II Política:-Atoresinstituídos eInteressesdisputantes
Confederação das UnimedsDireção da entidade:representação e defesa dosinteresses das operadorasassociadasMédicos Cooperados:interesses na proteção dotrabalho médico em primeirolugar, remuneraçãosatisfatória e liberdade paraexercer sua atividade e mantera prática liberal.Rede prestadora –maximização dos lucros,expansão do mercado.Usuários (plano individual) –acesso a serviço de qualidadee menor custo.Usuário/empresa contratante(plano coletivo) – acesso aserviço de qualidade,satisfação do seu trabalhador,pronto restabelecimento,redução do custo.
ABRAMGE; SINAMGE;CONAMGE -representação e defesados interesses dasoperadoras associadas.Operadoras ou empresasde Medicinas de Grupo-capitalização emaximização dos lucros,disputa pela ampliação domercadoRede prestadora -maximização dos lucros,expansão do mercado. Usuários (planoindividual) - acesso aserviço de qualidade emenor custo.Usuário/empresacontratante (planocoletivo) – acesso aserviço de qualidade,satisfação do seutrabalhador, prontorestabelecimento, reduçãodo custo.
Clínica,Planejamento,Economia da saúde,promoção à saúde,Epidemiologia
Clínica, Planejamento,Economia da saúde.
IV - OrganizativaNo deBeneficiáriosNo deOperadoras
8,2 milhões declientes; 315UNIMEDsSingulares(BRASIL, 2002).2 Confederação e34 Federações
18,2 milhões debeneficiários, 800operadoras(ABRAMGE,2002)ou- 11 milhões debeneficiários e627 operadoras(Medicina deGrupo) e 883 milbeneficiários e102 operadoras(filantrópicas) –cadastro ANS(BRASIL, 2002a)
11 milhões debeneficiários (em2000 e 364empresas ouentidades(TEIXEIRA, et al2002).4,7 milhões debeneficiários e 285empresas (BRASIL,2002a)
5 milhões de beneficiários e40 operadoras de seguro-saúde em 1998, (BAHIA,2002).5,2 beneficiários e 13operadoras de seguro-saúde(BRASIL, 2002)
Recursosfinanceiros
Faturamento 5bilhões(ABRAMGE,2002)
Faturamento 6,2bi (ABRAMGE,2002)
Faturamento: 5,74bilhões de reais em1997 (KORNIS &CAETANO, 2002)
Faturamento - cerca de 6bilhões de reais (FENASEG,2003)
Financiamento
O custeio dosplanos érealizado pelosbeneficiários(planoindividual), oupelas empresasparcial ouintegralmente(plano coletivo).
O custeio dosplanos érealizado pelosbeneficiários(planoindividual), oupelas empresasparcial ouintegralmente(plano coletivo).
O custeio dosplanos é co-participação entreempresas eempregados(80,7%). Em14,5% dasempresas o custeioé integralizadopelos usuários ouentidades,enquanto que emapenas 4,8% éintegralizado pelasempresasmantenedoras dosplanos (CIEFAS,2000).
O custeio é realizado pelosbeneficiário (planoindividual) ou pagamento daempresa parcial ouintegralmente (Planocoletivo). Operam com umsistema de pre-pagamentoem que o contratante pagaantecipadamente pelosserviços e tem direito àcobertura dos eventosprevistos no contrato
Abrangêncianacional,estadual ouregional,dependendo daoperadora. 57%dos beneficiáriosresidem noestado de SãoPaulo, 17% noRio de Janeiro e10% no RioGrande do Sul.
O acesso se dápor demandaespontânea àrede de médicoscooperados eserviços deprontoatendimento.AlgumasUNIMEDs temimplantadodiretrizes deregulação como:protocolosclínicos,estímulosfinanceiros aosmédicos queseguem oprotocolo), callcenter,autorizaçãoprévia dedeterminadosprocedimentos,co-pagamento.
O padrão de oferta deserviços é muitoheterogêneo entre asdiversas operadoras.Algumas apresentammecanismossistemáticos deatenção gerenciadapara regulação doacesso e da utilizaçãode serviços, como:call center,atendimento on line,autorização prévia deprocedimentos, co-pagamento,referenciamento derede, protocolos.
O acesso se dáprioritariamentepor mecanismosde regulaçãocomo call center,atendimento online, centrais deatendimentos 24horas ou mesmomédico-reguladorpara autorizaçãoprévia deprocedimentos
26
IV OrganizativaAcesso –facilidades,atendimentotelefônico, callcenter, porta deentrada,referência-contrareferência,hierarquização
O acesso se dápor demandaespontânea àrede de médicoscooperados eserviços deprontoatendimento.AlgumasUNIMEDs temimplantadodiretrizes deregulação como:protocolosclínicos,estímulosfinanceiros aosmédicos queseguem oprotocolo), callcenter,autorizaçãoprévia dedeterminadosprocedimentos,co-pagamento.
O padrão de oferta deserviços é muitoheterogêneo entre asdiversas operadoras.Algumas apresentammecanismossistemáticos deatenção gerenciadapara regulação doacesso e da utilizaçãode serviços, como:call center,atendimento on line,autorização prévia deprocedimentos, co-pagamento,referenciamento derede, protocolos.
O acesso se dáprioritariamentepor mecanismosde regulaçãocomo call center,atendimento online, centrais deatendimentos 24horas ou mesmomédico-reguladorpara autorizaçãoprévia deprocedimentos
Gestão/gerência
O Sistema deGestão daUNIMED éformado pelosseguintesórgãos:ÓRGÃOSSOCIAISI - A AssembléiaGeral;II - O ConselhodeAdministração;III - O ConselhoFiscal;IV - O ConselhoTécnico.
A gestão dos planos éfeita por cada umadasempresas/operadoras,que constituemorganizaçõesindependentes.
Administração dosplanos: 24% éfeita através dosdepartamentosdas empresas,21% porfundações, 21%por associações,13% por caixas deassistência, 5%por caixasprevidenciárias,2% por sindicatose 14% por outrasmodalidades(CIEFAS, 2000).
A gestão dosplanos é feitapelasseguradoras, ouBancos(acionistas)
V Assistencial RedesAssistenciais,(No deequipamentos,hospitais, leitos)
V - AssistencialEspecialidades,altacomplexidade,saúde mental
Ofertam especialidades médicas,algumas cooperativas ofertam deserviços de alta complexidade,pouco freqüente a disponibilidadede serviços de saúde mental.
Ofertam especialidades médicas.Algumas operadoras têm oferta deserviços de alta complexidade narede própria e/ou credenciada,sendo pouco freqüente adisponibilidade de serviços desaúde mental.
4,7 consultas per capita/ano e50,2 milhõesconsultas/ano; 968.000internações/ano ou 0,091 internaçõesbeneficiários, em 1997(KORNIS & CAETANO,2002)
95,3 milhões de consultas,5,18consulta/beneficiário/ano,2,14 milhões de internações,82,65 milhões de exameslaboratoriais, 13,60 milhõesde exames radiológicos, 5,4milhões de Ultra-som,394.000 partos, 13,33milhões de sessões defisioterapia, 150.000quimioterapias, 1 milhão deradioterapias (ABRAMGE,2002)
3,15 consultas per cano e2,22 exames/consul(CIEFAS, 2000)28 milhões deconsultas/ano ou 3,5consultas/beneficiárimil internações/ano,0,113internações/ano/beno, em 1997, (KORNICAETANO, 2002)
Atividades de Promoção àSaúde: através depropagandas de bonshábitos, veiculadas para osbeneficiários e sites dasentidades. (ex: use acamisinha, aproveite asférias e leve seu filho aooftalmologista). AlgumasUNIMEDS ofertamatividades domiciliares(como por ex. o programaUnibaby com visitas daenfermeira à puérpera ebebê nos primeiros mesesde vida). Algumasfornecem medicamentos apreço de custo aosusuários.
As maiores operadorasoferecem programas deassistência farmacêuticatanto para aquisição demedicamentos a menorescustos como pararessarcimento de algunsmedicamentos de usocrônico. Recentemente estãosendo desenvolvidosprogramas de prevenção dedoenças comoacompanhamentosambulatoriais de grupos derisco, puericultura, vacinação
Atendimento domicilpós-desospitalização59,5% dos planos, aterapia ocupacional e54,8% e o atendimedomiciliar de urgêncconcedido em 38,1%planos de saúde. Alédisso, 74,4% dos plaofertam também bencomo farmácia, 48,8remoção aérea, 44,7aparelhos ortopédico39,5% serviço de ótDesenvolvem tambéações preventivas sodoenças e agravos ade orientação e prev(CIEFAS, 2000)
MÉDICI, A.C.. Incentivos governamentais ao setor privado de saúde no Brasil.
Revista Administração Pública. Rio de Janeiro: 26(2): 79-115. Abr/jun de 1992.
MERHY E.E. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em saúde.
In: Merhy, E.E. & Onocko, R.(orgs). Agir em Saúde. Um desafio para o público.
São Paulo: HUCITEC. Buenos Aires: Lugar Editorial, 1997a.
MERHY, E.E. O SUS e um dos seus dilemas: mudar a gestão e a lógica do processo de
trabalho em saúde (um ensaio sobre a micropolítica do trabalho vivo). In: Fleury, S.
(org). Saúde e Democracia, a luta do CEBES. São Paulo: Lemos, 1997b.
MERHY, E.E. Saúde: A cartografia do trabalho vivo. Hucitec, 2002.
MERHY, E.E., CECÍLIO, L.C.O., NOGUEIRA, R.C. Por um modelo tecno-assistencial da
política de saúde em defesa da vida: contribuição para as Conferências de Saúde.
Cadernos da 9ª Conferência Nacional de Saúde, Descentralizando e
Democratizando o Conhecimento. Vol. 1. Brasília, 1992.
MERHY, E.E.; CECÍLIO, L.C.O. A Integralidade do cuidado como eixo da gestão
hospitalar. Mimeo. Campinas: UNICAMP, 2003.
MESQUITA, MAF. A regulamentação da assistência da Saúde Suplementar: legislação
e contexto institucional. In: Regulação e Saúde. Estrutura, evolução e perspectivas
da assistência médica suplementar. Agência Nacional de Saúde Suplementar.
Ministério da Saúde, Rio de Janeiro, 2002.
MOTA, E.LA; CARVALHO, D.M. Sistemas de Informação em Saúde. In ALMEIDA &
ROUQUAYROL, Epidemiologia e Saúde. RJ: MEDSI, 1999.
48
OLIVEIRA, J. A. A, TEIXEIRA, S. M.F. e (Im)previdência Social - 60 anos de
história da Previdência Social no Brasil, Petrópolis, Vozes, 1986.
PAIM, J.S. Políticas de descentralização e atenção primaria a saúde. In: Rouquayrol
& Almeida. Epidemiologia & Saúde. 5ª Edição. MEDSI, Rio de Janeiro, 489 – 503,
1999.
PEREIRA, M.G. Epidemiologia Teoria e prática, Guanabara Koogan, Rio de janeiro,
2000.
REIS, AT. Modelos tecnoassistenciais em Belo Horizonte, de 1897 a 1964: em direção
à uma compreensão sobre a produção de serviços de saúde. Dissertação
(mestrado). Faculdade de Medicina, UFMG. 2002.
SILVA, JR. A.G. Modelos tecnoassistenciais em Saúde, o debate no campo da
Saúde Coletiva. Ed. Hucitec, São Paulo,1998.
UNIMED. Textos Unimed.www.unimedbh.com.br. Acessado em janeiro de 2003.
VICTORA, C.G. Infant mortality due to perinatal causes in Brazil: trendes, regional
patterns and possible interventions. São Paulo Rev. Paul Med.119 (1) 33-42. 2001.
WHO, World Health Organization. Apropriate technology for birth. Lancet:2 436-7,
1985.
i Vários elementos desse trabalho são oriundos da Pesquisa "Estudo e desenvolvimento de modelos e garantias assistenciais para a ANS", da qualparticipam os pesquisadores: Alzira de Oliveira Jorge, Túlio Batista Franco e Mônica Aparecida Costa