Recebido em 05 de março de 2013. Aprovado em 20 de agosto de 2013 • 59 Modelo Social da Deficiência: uma ferramenta sociológica para a emancipação social Tiago Henrique França* Resumo: Este artigo tem por objetivo apresentar o ainda pouco conhecido Modelo Social da Deficiência. Ao compreender a deficiência como uma construção social, o modelo subsidiou a luta pela integração social das pessoas com deficiência. Além de sua definição clássica, críticas e parte de seus desenvolvimentos teóricos também serão tratados. Com ênfase na abordagem materialista da questão, os mecanismos sociais que orientam a discriminação das pessoas com deficiência serão expostos. Palavras-chave: Modelo Social da Deficiência; participação social; opressão; materialismo. The Social Model of Disability: a sociological tool for social emancipation Abstract: This article presents the as yet little known Social Model of Disability, as well as part of its theoretical development. By understanding disability as a social construct, the model has supported the struggle for the social integration of disabled people. In addition to defining it, the article discusses criticisms of the model and part of its theoretical development. The social mechanisms that orient discrimination against people with deficiency are exposed, based on a materialist analysis of the issue. Keywords: Social Model of Disability; participation; oppression; materialism. Introdução As pessoas com deficiência sofrem diversas restrições cotidianamente e se encontram, em grande parte, marginalmente inseridas na sociedade. A deficiên- cia é comumente entendida como um fenômeno do corpo, no qual a ausência de partes ou limitações funcionais são elementos definidores. Contudo, por meio de uma elaboração essencialmente sociológica nomeada Modelo Social da Deficiência, a questão pode ser tratada de modo inovador e político, resultando *Doutorando em Sociologia – Relações de Trabalho, Desigualdades Sociais e Sindicalismo – pela Universidade de Coimbra, Portugal. End. Eletrônico: [email protected]
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Recebido em 05 de março de 2013. Aprovado em 20 de agosto de 2013 • 59
Modelo Social da Deficiência: uma ferramenta sociológica para a emancipação social
Tiago Henrique França*
Resumo:Este artigo tem por objetivo apresentar o ainda pouco conhecido Modelo Social da Deficiência. Ao compreender a deficiência como uma construção social, o modelo subsidiou a luta pela integração social das pessoas com deficiência. Além de sua definição clássica, críticas e parte de seus desenvolvimentos teóricos também serão tratados. Com ênfase na abordagem materialista da questão, os mecanismos sociais que orientam a discriminação das pessoas com deficiência serão expostos. Palavras-chave: Modelo Social da Deficiência; participação social; opressão; materialismo.
The Social Model of Disability:a sociological tool for social emancipation
Abstract:This article presents the as yet little known Social Model of Disability, as well as part of its theoretical development. By understanding disability as a social construct, the model has supported the struggle for the social integration of disabled people. In addition to defining it, the article discusses criticisms of the model and part of its theoretical development. The social mechanisms that orient discrimination against people with deficiency are exposed, based on a materialist analysis of the issue. Keywords: Social Model of Disability; participation; oppression; materialism.
Introdução Aspessoascomdeficiênciasofremdiversasrestriçõescotidianamenteeseencontram,emgrandeparte,marginalmenteinseridasnasociedade.Adeficiên-ciaécomumenteentendidacomoumfenômenodocorpo,noqualaausênciade partes ou limitações funcionais são elementos definidores.Contudo, pormeiodeumaelaboraçãoessencialmentesociológicanomeadaModeloSocialdaDeficiência,aquestãopodesertratadademodoinovadorepolítico,resultando
*Doutorando em Sociologia – Relações de Trabalho, Desigualdades Sociais e Sindicalismo – pela Universidade de Coimbra, Portugal. End. Eletrônico: [email protected]
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ModeloMédicodaDeficiência OModeloMédico(ouBiomédico)daDeficiênciaacompreendecomoumfenômenobiológico.Segundotalconcepção,adeficiênciaseriaaconsequêncialógicaenaturaldocorpocomlesão,adquiridainicialmentepormeiodeumadoença,sendoumacomoconsequênciadesta.Adeficiênciaseriaemsiainca-pacidadefísica,etalcondiçãolevariaosindivíduosaumasériededesvantagenssociais.Umavezsendoidentificadacomoorgânica,parasesanaradeficiência,dever-se-iafazerumaoumaisintervençõessobreocorpoparapromoverseumelhorfuncionamento(quandopossível)ereduzirassimasdesvantagenssociaisaseremvividas. OprincipaldocumentoquecristalizaaconceituaçãoeadinâmicaenvolvidaentreosconceitosdoModeloMédicoéintituladoClassificaçãoInternacionaldeDeficiências,IncapacidadeseDesvantagens:ummanualdeclassificaçãodasconsequênciasdasdoenças(CIDID).ElaboradocomopartecomplementardaClassificaçãoInternacionaldeDoenças(CID)pelaOrganizaçãoMundialdaSaúde(OMS)comopropósitodeclassificarascondiçõescrônicasdesaúdedecorren-tesdedoenças,aCIDIDdatadaoriginalmenteem1976oferecesuasprópriasconcepçõesdedeficiência, incapacidadeedesvantagem(disability, impairment e handicap, nostermosoriginais). —Deficiência (Impairment):qualquerperdaouanormalidade,temporáriaoupermanente de uma estrutura física ou funçãofisiológica, psicológica ouanatômica.“Representaaexteriorizaçãodeumestadopatológico,refletindoumdistúrbioorgânico,umaperturbaçãonoórgão”(Amiralianet al.,2000:98).Nessa
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perspectiva,adeficiênciaé,portanto,algoqueestácompletamentenodomíniodocorpo. —Incapacidade(Disability):restriçãooutotalincapacidadededesempenharumaatividadedemaneiraconsideradanormaloudentrodeum limiteassimtambémconsideradoparaumserhumano.Aincapacidadeéconsequênciadeumadeficiência. —Desvantagem (Handicap): limitaçãoou impedimentododesempenhodospapéissociaistidoscomonormaisparaoindivíduo.Éoresultadodeumadeficiênciaouincapacidade,edependediretamentedasatribuiçõesculturaisesociaisesperadasparaumdeterminadoindivíduodeacordocomseuperfilsocial. Mesmoque formalmente tenha surgidonomesmomomentohistórico1 queoModeloSocial, a formalizaçãodosconceitosdoModeloMédico feitapelaCIDID,de algummodoexpressao entendimento comumque se tinha(eaindasetem)dadeficiência,comoalgopertencenteaodomíniodocorpoacausardesvantagenssociais.SegundooesquemacausalapresentadonaCIDID,adesvantagemvividapelaspessoascomdeficiênciaseriaconsequênciasomentedaslimitaçõesfísicas,sejamelasnaestruturadocorpo(deficiência)ouemseufuncionamento(incapacidade). Hoje,odocumentojánãomaiséutilizado2.Algumascríticasestruturais,comosituarasdeficiênciasnecessariamentecomodecorrênciadeumadoença,e atribuir à incapacidade e àdeficiência a existênciadedesvantagens sociais,levaramaoseuabandonocomoreferênciaparaaclassificaçãomédica(Diniz,2007).Porém,ésobreotipodepensamentoqueelerepresenta,hegemôniconaatualidade,queaoposiçãocríticaseedificou.ArevisãoeodescartedaCIDIDforamrealizadosporumcorpodeespecialistasparatornarmaisprecisoopro-cessodeclassificação.Nessesentido,odescréditoformaldodocumentonãorepresentanecessariamenteumamudançadeconcepçãodoqueéadeficiêncianumadimensãosocialmenteampla. Porsuavez,osagentesinteressadosemdesnaturalizaradeficiênciacomoentendidapeloModeloBiomédicocontrapuseramseusprincípioseofereceram
1De fato, a origem do Modelo Médico é imprecisa e pode ser considerada tão antiga quanto o próprio interesse da medicina moderna sobre as deficiências (Stiker, 1999). Contudo, como um arcabouço conceitual formalizado e ideologicamente contrastante com a proposta do Modelo Social, são ambos contemporâneos.2Seu substituto intitulado Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) tem por objetivo classificar as condições de saúde dos indivíduos (OMS, 2002), e constitui uma tentativa de incorporar os preceitos do Modelo Social, proclamando-se como o Modelo Biopsicossocial da Deficiência (Farias; Buchalla, 2005).
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OModeloSocialdaDeficiência AdvémdosociólogoPaulHunt(1966)aprimeirapublicaçãoelaboradaporpessoascomdeficiência,queteveporobjetivodebateraslimitaçõessociaisvividasporessaspessoasparaalémdasquestõesautobiográficaseprincipalmentemé-dicas.ÉtambématribuídaaHuntapioneiraarticulaçãopolíticadepessoascomdeficiêncianaInglaterra,emtornodoqueficouposteriormenteconhecidocomomovimentodaspessoascomdeficiência(BarneseMencer,1996).Nessecontexto,nasceuaUPIAS-The Union of the Physically Impaired Against Segregation-entidaderesponsávelpelaconcepçãodedeficiênciacomoumfenômenodenaturezasocial. Comooriginalmentepensados,osconceitosquetraduzemasexperiênciasvivenciadas pelas pessoas comdeficiência distinguem-se emduas diferentesesferas.Pormeiodasecçãoentreodomíniofísicoesocial,aUPIASreelaborouosconceitosdelesão(impairment)edeficiência(disability):
As principais premissas que acompanham essa definição de deficiênciapostulamque:adeficiênciaéumasituação,algoquesistematicamenteacontecedurante a interação social; a deficiência deve ser erradicada; as pessoas comdeficiênciadevemassumirocontroledesuasprópriasvidas;osprofissionaiseespecialistasquetrabalhamcomaquestãodevemestarcomprometidoscomoidealdaindependência.Portanto,oModeloSocialéuminstrumentoessencial-mentepolíticoparaainterpretaçãodarealidadecomfinsdetransformaçãosocial(UPIAS,1976). Aessadefiniçãodedeficiência,queacompreendecomoumestilodevidaimpostoàspessoascomdeterminadaslesõesnocorpo,marcadoprincipalmen-tepelaexclusãoeopressãovivenciadas,foidadoonomedeModeloSocialdaDeficiência.Comoadventodesse título, tambémfoidenominadocomoseuopostooModeloMédicodaDeficiênciaquelegitimariaaopressãodaspessoascomdeficiência.
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Noplanoideológico-filosófico,aIdeologiadaNormalizaçãoquepreconizaaintervençãofísicanocorpodapessoacomdeficiência,paraquesuasvidasseaproximemdeumasupostanormalidade,éabertamentecombatidapeloModeloSocial(Oliver,1994).Paraaquelesquesealinhamaomodelo,aprincipalinter-vençãodeveserfeitanasociedadeparagarantiraparticipaçãodaspessoascomdeficiênciaquenecessitamdeterseuacessofacilitadooudesimpedido.Oliver(1996)destacaqueaideologiaportrásdoModeloSocialnegaporcompletoanormalizaçãoemfavordoidealdecelebraradiferençaeasdiversasexperiênciasdevida,aoinvésdabuscadanormalidadepadronizada.NaspalavrasdeFrencheDepoy,“adeficiênciaévistacomopartedadiversidadehumanaenãocomoumtraçoindesejadoasercuradooucorrigido”(French;Depoy,2000:2). Asprincipais críticas destinadas aoModelo Social foram realizadas porestudiososepensadorescujointeresseresume-seemampliarseushorizontesexplicativos.Umadessas críticas residena ideia de uma sobrevalorizaçãodadiscriminaçãocomofatorúnicodedistinçãodaspessoascomdeficiência(Crow,1992).Emoutrostermos:quemseriamaspessoascomdeficiênciaqueteriamsuasvidasintegradasaocernedasociedade,baseadasemmudançasessencialmenteexternas,semnecessidadesdeintervençãonocorpo?Existemdiversaslimita-çõeselesõesnoâmbitofísico,e,àprimeiraleitura,oModeloSocialseadaptamelhoràssituaçõesmenoslimitadoras.Afaltademençãoaosestadosdesaúde,incluindodoençaseenfermidades,induzàcrençaqueadeficiêncianãoestariarelacionadaaosprocessosdeadoecimentoouàfaltadehigidez,oquemuitasvezesnãoéverdade. Alémdisso,pordesconsiderararelaçãoentresaúdeedeficiência,oModeloSocialdefinecomoindependentealesãodadeficiência,criandoumaparente-mentecontrassensonumquadroemqueadeficiênciaindependedalesãofísica,mesmosendoessacondiçãonecessáriaparaamanifestaçãodadeficiência.EmdefesadoModeloSocial,Oliver(1996)respondetaiscríticasreforçandoadefini-çãoortodoxadomodeloaodestacaroâmbitosobreoqualaelaboraçãooriginaldizrespeito:
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Por suaoriginalidade, acaba exercendo grande impactonaspessoas que, emcomumsofremdiscriminaçãoemfunçãodadeficiência,mesmoquepossuamlesõesdistintas.ÉcomumperceberoencontrodosindivíduoscomoModeloSocial traduzindo-se numa tomadade consciência, sendopossível encontrarrelatospessoaisdessaexperiênciaentreostextosdosteóricosdoModeloSocial,inclusivedaquelesquedesejamseudesenvolvimentoecomplexificaçãoteórica,comoLizCrow(1996)ePaulAbberley(1987). AscríticasaoModeloSocialindicamque,suaintençãoinicialdeserumaferramentaparaodesenvolvimentodadeficiência,comoumaquestãopolíticapo-deriaserinterpeladapelafaltaderobustez.Nessesentido,éimportantedistinguiroModeloSocialdadeficiênciacomoumamaneiradepensaradeficiência(eosproblemasaelaatrelados)dosconstructosteóricosbaseadosnoModeloSocial.Comoideia,oModeloSocialpretende-sesimples.Porseuturno,aselaboraçõesteóricasbaseadasnomodelosãomaiscomplexasenascemdanecessidadedese compreendermelhor como a dinâmica perversa denunciada pelomodeloatua,assimcomodefinirsociologicamentesuaorigem.Alémdisso,respostasàscríticasmaiscomplexas,comoopapeldocorponomodelo,tambémtemlugarnodesenvolvimentodosestudossociaisdadeficiência.Nessesentido,aselaboraçõesdeLizCrow(1996)sobreadimensãoorgânicadadeficiência,alesão(impairment)temdestaque.
O Modelo Social da Lesão OModeloSocialdaLesão(Social Model of Impairment)éaexpressãoutilizadaparadefinirpartedodesenvolvimentoteóricodoModeloSocialdaDeficiên-cia,aoincorporaraesseoreconhecimentodalesãocomofatorderestriçãoàparticipaçãosocialepostularcomoalesãoeadeficiênciaserelacionam.Comoprecursora edefensorada ideia,LizCrow (1996) compreendequeocultar alesãoesuasimplicaçõesétambémencobrirpartedasrestriçõessociaisvividaspelaspessoascomdeficiência.Paraaautora,algumasrestriçõesdocorpodefatodesencadeiamdiretamenterestriçõessociais,comonacapacidadedecomunicarvisualmentenocasodepessoascegas,porexemplo.Noentanto,aindanessescasoshaveriaespaçopararestriçõesadvindasdasrelaçõessociais. Essaelaboraçãoteóricaindicaqueasociedadeconstróisuasprópriasre-presentaçõesdalesão,cujosignificadotranscendeoâmbitodabiologia,comoadifundidaideiadetragédiapessoal.Oargumentocentralafavordainclusãodalesãonumaperspectivaanalíticasociológicaéanecessidadedenotaracorres-pondênciaentreasrepresentaçõesacercadeumcorpocomlesõeseareaçõessociaiscorrespondentes. Crow(1996)destacaqueasociedadepossuirespostasespecíficasàslesões,
Dessemodo,críticascomo“seadorfísicadeumapessoaéarazãopelasuainfelicidade,entãonãohánadaqueomovimentodaspessoascomdeficiênciapossafazerarespeito”(Vasey,1992:43apudOliver,1996:44)podemsertratadastambémnoâmbitosocialepolítico.Aodeterminarnecessidadesespecíficasquepodemagirsobreasrestriçõesfísicaseporquaisrazõeselasnãosãocontempla-das,questõespolíticasesociaiscomoadesigualdadeediscriminaçãopoderiamfigurarcomofatoresdeterminantesdosproblemasbaseadosnocorpo. Paraalémdopapeldocorpo,oModeloSocial,comooriginalmentepensado,tambémsuscitoureflexõesdenaturezateóricaacercadeseupoderexplicativo.Ascríticasmaissignificativaspodemsertraduzidasemafirmaçõescomo:notaraopressãosocialvividanãoéexplicarsuaorigemouoqueseriaimportanteparacombatê-la;e,saberquedeficiênciaimpedeaparticipaçãointegraldaspessoasnãoindicacomoestasseinseremnasociedade(Finkelstein,1989). Movidos por esses questionamentos, duas vertentes teóricas inspiradasnoModeloSocialforamdesenvolvidas.Teóricosdeabordagemculturalistaeamaterialistaelaborarampropostasquetencionamdecifraraorigemdaexclusãovivenciadapelaspessoascomdeficiência.Juntas,asduascorrentesindicammaiscomplementaridadequeconcorrêncianaexplicaçãodosfenômenos.Aseguir,ambasserãoapresentadas,comdestaqueàabordagemmaterialista,pordiscutirdiretamenteaposiçãodaspessoascomdeficiênciafrenteaosistemaprodutivo,oqueseconsolidoucomoprincipalbandeiradelutadosmovimentossociaisrelativosàquestão.
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A abordagem culturalista Comoumadasprincipaisreferênciasdaabordagempós-modernista,TomShakespearesededicouàbuscapelaraizdopreconceitoparacomaspessoascomdeficiência.Parasocialemnívelmicrossocial,comimplicaçõestambémemnívelmacro.Aorevisarestudosfeministasqueapontamaobjetificaçãodocorpofemininocomoelementodefinidordaopressãovividapelasmulheres,oautorafirmaqueaspessoascomdeficiênciasofremdeexploraçãosemelhante.Poresseprisma,alesãooualimitaçãofuncionalvisívelseriaomeiopeloqualaspessoascomdeficiênciasãoobjetificadas,oquelevariaàprevalênciasocialdalesãonaidentidadeeinteraçãosocial.Umacaracterísticacomumdessaobjetificação,queacabaporresumiraexistênciadaspessoasàsuapróprialesãofísica,éimputaràspessoascomdeficiênciasimilartraçossemelhantesdepersonalidade.Dessemodo,ossignificadosdalesãoedaincapacidadeemdeterminadaculturaseriamdeterminantesparaasvidasdaspessoas,devendoassimserlevadosemcontanotratamentoteóricoepolíticodaquestão:
O materialismo e o conceito de opressão SegundoVicFinkelstein(2002),omaterialismodevesercentralnacompre-ensãodaexclusãosocialdaspessoascomdeficiência,eespecialmentenecessáriopara alterar a realidadeque asdesfavorece.Ao reconheceromercado comoinstituiçãocentraldasociedadeondevive,oautorcompreendequeasuperaçãodaexclusãosomenteseriapossívelseenvolvertalinstituição,essencialmentepormeiodalutadeclasse:
Abberley(1987)argumentaqueosestereótiposfundamentalmenteconsoli-dadosemtornodasimagensdejovensqueenfrentamproblemasequeprecisamdeajudacriamumaidentificaçãonãofidedignadapessoacomdeficiência.Ofatoridadesistematicamenteignorado,associadoaoocultamentodaaltaocor-rênciadaslesões,seriamosresponsáveispelaelaboraçãodaimagemdistorcidaeopressoradaspessoascomdeficiência.Oprimeiromodopeloqualissoacon-teceriaseriaporsituaradeficiênciacomoalgoexcepcional,aoinvésdecomum(devidosuagrandeocorrência),ouatémesmoesperado(quandoconsideradoopassardosanos).Baseadonoerrôneocaráterexcepcional,noqualapopulaçãojovemtemdestaque,consolidou-seumareaçãoopressoradaspessoascomlesãocujapreocupaçãoestarianaadministraçãodapresumidaimprodutividade,oquejustificariatambémaimposiçãodeprocessosdenormalizaçãodoscorpos. Porfim,conformeAbberley (1987),parasecompreenderaexistênciaeperpetuaçãodaopressãovivenciadapelaspessoascomdeficiênciaénecessáriodefinirquemseriaobeneficiárioeporqualmeiosebeneficiariadaopressão.Osociólogodefineosistemacapitalistacomoobeneficiáriodessadinâmica,aomanterumprocessoprodutivonocivoàcustadaintegridadefísicadosindiví-duosquesistematicamenteédegradadanoprocesso,numaequaçãoemqueamitigaçãodoriscoàlesãoeolucropoderiamfigurarcomoelementosopostos. Contudo, a atribuição do processo de produção comobeneficiário dadeficiêncianãoéalgosimplesdeserfeito,lógicapoucoplausíveldeseaplicaratodososcasos,comoporexemplo,daspessoasqueadquiriramlesãoporde-corrênciadeumprocessomédiconecessário.Outrogrupopoucotratadopeloautorsãoaspessoasqueportodaavidapossuíramdeficiência,nascendocomelaouadquirindo-alogonainfância. Reconheceressegrupocomominoritárioéessencialparaalógicaempregada
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porAbberley(1987),noentanto,sãoessaspessoasquepossivelmentemelhorconhecemomododevidamarcadopeladeficiência.Sobreessegrupo,oautorcompreendequenãoestãoisentosdasforçassociaisquelevamàaquisiçãodedeficiência,principalmentenoquedizrespeitoàdistribuiçãosocialderecursospreventivos.Se,porumlado,adesigualdadedeacessoataisrecursospodeserentendidacomoconsequênciadocapitalismo,poroutro,poucoserelacionadefatocomoprocessodeproduçãoincapacitante,elementodegrandeimportâncianateorizaçãodoautor.Emoutrostermos,alesão(impairment) nuncaserácom-pletamenteextinta,mesmoapóssereduzidoaomáximoosriscosassociadosàprodução (Abberley,1999).Porém, tantopelaviadaprodução,quantoemdecorrênciadadistribuiçãodesigualderecursos,oimperativocapitalistamanter--se-iacomoforçadegrandeimportâncianaproduçãodalesão. AlgunsquestionamentosouressalvasdevemserrealizadosarespeitodapropostadeAbberley.Devidoàsuaabordagemmaterialista,oautorcentraaanálisenalesão(imapirment), todavianãoparecehavernecessáriacorrespondênciaentrepossuirumalesãoesersocialmentereconhecidocomoumapessoacomdeficiência. OutroquestionamentoàteorizaçãodePaulAbberleyconsistenaaparentefaltadesoluçãoparaasuperaçãodaopressãoàspessoascomdeficiência.Oautortemnocapitalismoomotordaproduçãodalesãoedadeficiência(noâmbitodadiscriminação),assimcomoomaiorbeneficiadodesuaexistência.Noentanto,asuperaçãodocapitalismonãoseriagarantiadeerradicaçãodadeficiência.Dessamaneira,seriadentrodadinâmicadoprópriosistemavigentequesoluçõesparaaquestãodevemserdesenvolvidas.ComoadvogaFinkelstein(2001),seriane-cessárioincorporarasdemandasdaspessoascomdeficiêncianalutadeclasses,pormeiodeaçãodiretanomercado,comefeitonomercadodetrabalho. Nessesentido,umaaparentecontradiçãoseedifica.Porumladosereconhe-ceosistemaprodutivocomogeradordelesõesediscriminadordoslesionados,perpetuandoadeficiência(comoentendidapeloModeloSocial).Poroutro,otrabalhofiguracomoelementocentralnarelaçãoentreindivíduoesociedade,relaciona-se com a autonomia e integração social.Aomenos três discursospodemserextraídosdesseparadoxo:i.aspessoascomdeficiênciadevemserprotegidasouemancipadasdotrabalho;ii.aspessoascomdeficiênciadevemteracessointegralaotrabalho,eassimalteraremtantoapercepçãosocialsobresi,quantoascondiçõesdetrabalho(UPIAS,1976);iii.otrabalhodeveseadaptaroutransformar,novosmodosdetrabalhodevemserreconhecidoseacentralidadedotrabalhoquestionada(Barnes,2012).Naprática,nãoépossíveltraçarlimitesexatosentreessasdiferentesmanifestaçõesdepensamento,porémtendênciaspodemserpercebidas.
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Oprimeirotipodediscursonãoéfrequentenaacademia,contudo,porvezespodeseridentificadonoâmbitopolítico.Aproteçãoquereforçaadependência,econsequentementeaexclusãodotrabalhoéexatamenteoquefoicontestadopelomovimentodaspessoascomdeficiênciaquedeuorigemaoModeloSocial. Umexemplonocampopolíticododiscursoprotetivodesqualificadorseencontranadecisãoanunciadaem2004peloTribunalSuperiorEleitoral(TSE)doBrasilquetornariafacultativoovotodepessoascomdeficiência3.Nessecaso,enquantoajustificativanadificuldadedeacessoaoslocaisdevotaçãosoacomomododefacilitaravidadepessoascomdeficiência,oConselhoNacionaldosDireitosdaPessoaPortadoradeDeficiência(CONADE)entendeucomoumaformadediscriminaçãoeumdesincentivoàpromoçãodoacessoaoslocaisdevotação,assimcomoaoexercíciododireitoaovoto,repudiandopublicamenteamedida,queporfimpassouaserválidasomenteparaaspessoastidascomoimpossibilitadasdevotar.Dinâmicasemelhantemotivariaaproteçãoaotrabalhoeaprioridadedaassistênciasocial,noquetangeàspolíticassociaisdestinadasàspessoascomdeficiência,nasquaisaajudaoubenefícioreforçariaadependência,aoinvésdereformularasociedadeparatorná-lafavorávelàparticipaçãosocial,nos sistemas educacionais e, principalmente, nomundodo trabalho.Assimalegaomovimentodaspessoascomdeficiênciaresponsávelpelomodelosocial(UPIAS,1976). Demodogeral,osespecialistasdosestudossociaisdadeficiênciasãocríticosaessemodelodeproteção,aopassoquepreconizamaintegraçãodaspessoascomdeficiência,especialmentepormeiodotrabalho.Nessesentido,seriaválidoquestionaroquãopróximopoderiaestarademandapormaioraberturanocampodotrabalhodaideologiamodernaqueorogacomoummeiofundamentalparaarealizaçãohumana,incluindooamadurecimentofísicodosindivíduos(Oliver,1990).Noentanto,paraaspessoascomdeficiência,otrabalhoétambémpartecrucialdalutaporigualdade(Abberley,1999),assimcomofoi(ouaindaé)paraasmulheres. Emsuaanálisesobreotrabalho,Abberley(1999)indicaqueastransfor-maçõesquevemsofrendo,tornando-omaisprecárioeinseguroemtermosdecontratoseproteçãolegal,podeterumimpactoaparentementefavorecedoràspessoascomdeficiência.Contudo,issodependerádasoportunidadeseducacionaiseacessoàsnovastecnologiase,casoessaestruturanãosejagarantida,astrans-formaçõesdomundodotrabalhodevempropiciarumaaindamaiorrestriçãoàspessoascomdeficiência.Oautortambémparececertoquesemantendofora
Aabordagemmaterialistaestábaseadaemelaboraçõesdesenvolvidasparauma sociedade industrial, típica damodernidade inglesa.Atualmente, outrasperspectivas pós-modernas, que contemplam a crise do trabalhonaEuropaOcidentaleareestruturaçãoprodutivaquedeslocaacentralidadedotrabalhoindustrialpodemviracolaborarparaumamelhorcompreensãododilemaqueseapresentaàspessoascomdeficiência,entreosqueestariamaptosainserçãoprofissionaleaquelesque,porlimitaçõesfísicas,nãopoderiam.
Consideraçõesfinais Abuscapor diretrizes suficientemente amplas para teorias da opressãovivenciadapelaspessoascomdeficiênciaéapenasumdosentravesemtornodoModeloSocial.Suaprioridade,referenciarideiasepropostasemancipadorasarespeitodadeficiência,principalmenteemâmbitopolíticoétido,hoje,comoestagnadoemseupaísdeorigem.Osmovimentossociaisdaspessoascomde-ficiênciaquederamorigemaomodelosãoconsideradosporFilkenstein(2001),Oliver eBarnes (2006) comodesviados de seus princípios, tendo-se focadoprincipalmentenaconquistadedireitosesendoincorporados,emparte,pelogoverno.Essaaproximaçãotrouxeresultadosinsuficientesnoquedizrespeitoàautonomia,assimcomonaremoçãodebarreiraseconômicasesociais,naopiniãodessesespecialistasdefensoresdomodelo. Porseuturno,noâmbitoacadêmico,oModeloSocialdaDeficiênciapodesertidocomoinovadorepoucoconhecido.Comoobjetosociológico,adeficiênciatempotencialparafomentarimportantesdebateserevelarosmeiospelosquaisoprincípionormalizadorpermeiaasociedade,portantopossuigrandepotencialanalítico.Contudo,naprática,aincapacidadedetranscenderoimperativodocorpoeperceberadeficiênciacomoumdesviosocialéumdesafioparaaapro-priaçãodesseobjetoeodoarcabouçoteóricosobreeledesenvolvido(Barnes;
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Oliver, 1993).Amanutençãododistanciamento sociológico sobre aquestãocontribuiparaapermanênciadadeficiênciacomoumassuntorestritoaoses-pecialistas,comênfaseàsciênciasdasaúde,oquecolaboraparainvisibilidadeenaturalizaçãodaopressãovividapelapessoacomdeficiência.
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