Mitos, Deuses e Heróis Gregos
Mitos, Deuses e Heróis Gregos
Mitos, Deuses
e
Heróis Gregos
Claudio Blanc
Mitos, Deuses e
Heróis Gregos
Sindicato dos Padeiros
de São Paulo
Supervisão editorial Editora Avalon
Capa Olavo Bernardes
Projeto Gráfico Olavo Bernardes
Revisão Silvio Siqueira
Claudio Blanc Mitos, Deuses e Heróis Gregos
Primeira edição – fevereiro de 2013
Sindicato dos Padeiros
de São Paulo
Índice
1. O Mundo Grego 11
2. A Religião dos Gregos 29
3. Cosgomonias 45
4. Deuses 54
5. Heróis 100
Notas 1XX
Sobre o Autor 147
À Julia e à Lívia
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
9
1
O Mundo Grego
ergulhar no universo dos gregos é assistir à epopeia
de um povo de pastores que, em cerca de mil e qua-
trocentos anos, construiu uma das mais importantes
civilizações da História, cujos ecos ainda hoje ressoam em
alto e bom som nos alicerces da civilização ocidental. É
conhecer uma cultura que se espalhou por todo o mundo
antigo, mudando para sempre a face da humanidade. Bra-
vos guerreiros, sob Alexandre, o Grande, os gregos subju-
garam o mais poderoso exército do seu tempo e estabele-
ceram o maior império constituído até então; inspirados
filósofos, investigaram os céus, levantaram hipóteses so-
bre a origem do Cosmos, conceberam o átomo, aperfeiço-
aram a matemática e a geometria, deixaram, enfim, sua
profunda marca, estabelecendo a pedra fundamental da
civilização ocidental.
M
Projeto Cultura e Memória
A Grécia Antiga, porém, não era o que hoje entendemos
apenas como o país Grécia. O termo é usado para descre-
ver os povos que falavam grego e que compartilhavam
uma religião comum. Geograficamente, a área ocupada
por esses povos era bem maior do que a atual península
grega. Compreendia, também, regiões de cultura helênica
colonizadas pelos gregos antigos: Chipre, a costa egeia da
Turquia – então chamada de Ionia –, a Sicília e o sul da
Itália, ou Magna Grécia, e colônias espalhadas nas costas
das atuais Albânia, Bulgária, Egito, sul da França, Líbia,
Romênia, Catalunha e Ucrânia.
Os povos que vieram constituir a civilização helênica che-
garam à península grega em várias ondas migratórias, a
partir do terceiro milênio antes de Cristo. Aqui, receberam
grande influência da civilização minóica, estabelecida na
ilha de Creta.
Creta
A civilização minóica se desenvolveu na ilha de Creta entre
2600 e 1375 a.C. Exímios marinheiros, durante cerca de
quatro séculos os cretenses prosperaram, negociando com
o Egito e a Grécia Continental. A civilização de Creta che-
gou ao seu apogeu por volta de 1600 a.C., dominando com
seus navios e sua cultura o Mar Egeu. Os minóicos se sen-
tiam seguros com a proteção do mar. Viviam em cidades
não fortificadas, próximas ao litoral e em terrenos pouco
elevados. Foi seu contato com a Grécia continental que
introduziu mercadorias, tecnologias e conhecimentos do
Egito e das civilizações mais desenvolvidas do Oriente Mé-
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
11
dio na Europa durante a Idade do Bronze. Então, no século
14 a.C., os minóicos deixaram de ser influentes.
Os Micênicos
Ao mesmo tempo em que a civilização minóica se desen-
volvia, chegava ao seu apogeu e decaía, povos arianos de
língua indo-europeia se estabeleciam na península grega.
As montanhas da Macedônia, ao norte, ainda eram habi-
tada por um povo que mais tarde se fundiu aos futuros
gregos, os pelasgos. Mas o centro da península, o Pelopo-
neso, e o extremo sul, a Ática, haviam sido dominados
pelos aqueus, os quais os gregos consideravam seus ante-
passados. Os aqueus eram mais desenvolvidos que os pe-
lasgos e constituíram uma civilização de fato. Pastores de
ovelhas e guerreiros, haviam se estabelecido ali a partir de
2.500 a.C. Conheciam o uso da quatriga – uma carruagem
de guerra com quatro rodas – e davam mais importância
ao homem do que à mulher na sociedade. Seus objetos de
culto diferem muito dos objetos das religiões centradas
em deidades femininas, como era comum no Oriente Mé-
dio e na própria região do Mar Egeu, antes da sua chega-
da1.
O centro dessa civilização foi Micenas, um assentamento
no Vale do Peloponeso. A influência da civilização de Creta
sobre eles foi fundamental, e Micenas se desenvolveu. A
partir de 1600 a.C., durante cinco ou seis séculos, essa
civilização se espalhou pela maior parte da Grécia conti-
nental, estabelecendo as fundações da futura cultura he-
lênica. Na verdade, foi um aprimoramento da organização
Projeto Cultura e Memória
tribal, sob o comando de reis. Sua cultura não se baseava
em um único sistema político, mas era compartilhada por
vários principados, dos quais Micenas era o mais impor-
tante2.
Arte Minóica (Palácio de Cnossos, Creta)
Por conta da influência dos cretenses, os micênicos acaba-
ram conquistando a supremacia comercial do Mar Egeu,
em aproximadamente 1400 a.C., contribuindo com a de-
cadência de Creta. Mas com a entrada de um novo povo
no palco da Grécia, os dóricos, a cultura de Micenas aca-
bou se extinguindo entre os séculos 12 e 11 a.C.
Os Helenos
No século 8 a.C., a Grécia, dividida em várias comunidades
independentes, começou a emergir da sua Idade das Tre-
vas, como ficou conhecido o obscuro período histórico que
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
13
se seguiu à queda de Micenas. A literatura e a escrita mi-
cênicas se perderam, mas, em aproximadamente 800 a.C.,
os gregos, ou helenos, como esse povo chamava a si mes-
mo, adaptaram o alfabeto fenício3. Era o começo de uma
nova civilização. Os próprios helenos traçaram o início da
sua cronologia nessa época, estabelecendo os primeiros
Jogos Olímpico, em 776 a.C., como o seu início.
Com o desenvolvimento da nova civilização, a população
cresceu além dos limites da capacidade da sua terra ará-
vel. Povo de destemidos marinheiros, os gregos iniciaram,
a partir de 750 a.C., um período de expansão que durou
cerca de 250 anos. Expedições de diferentes cidades esta-
beleceram diversas colônias em lugares tão distantes um
do outro como a Espanha e a Ucrânia. A costa do Egeu da
atual Turquia, a ilha de Chipre, a costa sul do Mar Negro, a
Albânia, a Sicília, a Córsega, o sul da Itália e da França, o
nordeste da Espanha, o norte da África e até mesmo a
atual Ucrânia, abrigaram colônias gregas, abrindo essas
regiões para sua influência. Por volta do século 6 a.C., os
helenos tinham expandido sua língua e cultura a uma área
bem maior do que o Peloponeso.
Embora mantivessem laços religiosos e comerciais, as co-
lônias gregas não eram controladas politicamente pelas
cidades que as fundaram. As comunidades independentes
era uma característica dos helenos. A polis, como era
chamada essa comunidade, se aproxima mais da nossa
ideia de Estado do que de cidade. Ela não incluía todos os
habitantes da cidade e cercanias. Consistia, antes, dos
seus cidadãos: os guerreiros que defendiam a polis. Escra-
Projeto Cultura e Memória
vos, mulheres e artesãos estrangeiros, chamados de méti-
cos, não podiam ser cidadãos.
No início, muitas polis eram governadas por reis, os basi-
leus4, mas os registros históricos mostram que a partir do
século 7 a.C. elas já eram governadas por aristocratas, ou
“pessoas melhores”5. Os aristocratas eram proprietários
de terras, suficientemente ricos para possuírem armas,
equipamentos de guerra e cavalos – o que os transforma-
va em líderes militares.
Com o desenvolvimento do comércio, artesãos estrangei-
ros se estabeleceram nas cidades, fazendo surgir uma
próspera classe mercantil. As tensões sociais resultantes
logo afloraram em conflitos. A partir de 650 a.C., os aristo-
cratas tiveram de enfrentar os líderes populistas. Muitos
deles foram bem sucedidos em assumir o controle das
cidades. Eram os Tyrranoi6, ou tiranos, cujo significado
original difere do seu sentido moderno.
No século 6, os horizontes da civilização helênica já esta-
vam bem definidos. As cidades de Atenas, Esparta, Corinto
e Tebas emergiram como principais centros de influência.
Elas controlavam as áreas rurais e pequenas aldeias ao seu
redor. Atenas e Corinto tinham se tornado grandes potên-
cias marítimas e mercantis. Mas, no campo político, as
rédeas estavam nas mãos de duas cidades rivais, Esparta e
Atenas.
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
15
A Vida nas Cidades
Atenas tinha uma posição privilegiada no mundo grego do
século 6 a.C. Em meados do século 7 a.C., o povo da cida-
de se rebelou, apoiado por uma nova classe intermediária
de ricos comerciantes que exigia participação no governo.
Através dos esforços de homens como Drácon, Sólon, Pi-
sístrato e Clístenes, a aristocracia perdeu muitos dos seus
privilégios e importantes avanços se amalgamaram na vida
social e política de Atenas. Essas reformas acabaram cul-
minando no estabelecimento da primeira democracia do
mundo. O poder estava, agora, nas mãos de todos os cida-
dãos do sexo masculino.
Em Atenas, o coração da cidade era uma grande praça, a
ágora, onde havia um altar dedicado aos doze deuses o-
límpicos. Cercada de numerosos pórticos e de vários edifí-
cios públicos, da ágora partiam as principais estradas da
Ática. Na ágora ficava também o grande mercado de Ate-
nas – o centro nevrálgico da cidade, onde se reuniam os
cidadãos para discutir política, tratar de negócios ou as-
suntos legais7.
O dia-a-dia em Atenas era bem simples. A maioria das
pessoas tinha casas pequenas, feitas de argamassa fina,
branqueadas de cal. As residências maiores tinham vários
quartos, dispostos ao redor de um pátio central, para onde
todas as janelas se abriam. A família patriarcal praticava,
sob a direção do dono da casa, o culto religioso diário e o
culto aos antepassados8.
Projeto Cultura e Memória
A ágora da cidade de Atenas (J. Bühlmann, 1881)
Quando algum membro da família morria, o corpo era
exposto sobre um leito e depois enterrado. Sobre a sepul-
tura, era erguida uma lápide de pedra, a estela, que, às
vezes, era ornada com baixos-relevos representando as
ocupações que o morto tivera em vida. No mês de feverei-
ro era celebrado o dia de finados. Nessa data, cada família
deixava lugares vazios à mesa, em homenagem aos mor-
tos.
As mulheres só saiam para os festejos religiosos. No resto
do tempo, permaneciam em casa, ocupadas com tarefas
domésticas. Quando aparecia algum visitante, elas se re-
colhiam ao gineceu, a parte da residência reservada exclu-
sivamente às mulheres. A maior parte das mulheres de
Atenas recebia apenas educação básica. As mais educadas
eram as hetairas9, ou cortesãs, que frequentavam escolas
especiais. Já os homens passavam a maior parte do tempo
fora de casa. Logo cedo, tratavam dos seus compromissos
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
17
e negócios e, em seguida, dedicavam-se aos esportes, às
conversas nos ginásios, ao cultivo das artes e às reuniões
políticas. Os banquetes à noite eram comuns. Nessas oca-
siões, os homens se reclinavam sobre divãs cobertos com
almofadas e, apoiando o cotovelo em pequenas mesas,
comiam, bebiam e se divertiam ouvindo música, poesia e
assistindo a espetáculos de dança. As refeições cotidianas
eram, porém, frugais. Quase sempre, consistiam de peixes
ou aves, cereais, legumes, frutas, queijo, mel e vinho diluí-
do em água.
As roupas dos atenienses também eram muitos simples –
outro reflexo de uma das principais características dos
gregos: a praticidade. Semelhantes tanto para os homens
como para as mulheres, eram panos retangulares de linho,
no verão, e lã, no inverno, enrolados ao redor do corpo,
preso aos ombros por alfinetes e à cintura por um cordão.
Os atenienses, em particular, e os gregos, de modo geral,
priorizavam o convívio e a conversa. Um antigo ditado
recomendava: “seis horas diárias bastam para o trabalho;
as restantes, dedica-as à vida10”.
Esparta
A cidade que dividia a liderança política da Grécia antiga
com Atenas era sua rival Esparta. A aristocracia local ga-
rantiu o poder em aproximadamente 650 a.C., através da
Constituição de Licurgo, que deu a Esparta um regime
militar permanente e uma dupla monarquia. Esparta do-
Projeto Cultura e Memória
minava todas as outras cidades do Peloponeso, exceto
Argo e Achaia.
Esparta havia sido fundada pelos invasores dórios, que
dominaram as populações primitivas. Como eram muito
menos numerosos que os vencidos, os dórios tiveram de
permanecer sempre bem organizados e militarmente dis-
ciplinados. Essa necessidade acabou resultando numa
cultura diferente das outras cidades-estados gregas.
Desde meados do século 6 a.C., os espartanos haviam se
isolado completamente das outras polis, proibindo não só
a entrada de estrangeiros na cidade, mas também a saída
de seus cidadãos. A partir dessa época, Esparta foi mais
um acampamento militar do que propriamente uma cida-
de.
O objetivo da educação espartana era produzir disciplina-
dos cidadãos-soldados dispostos ao sacrifício pessoal e
voltados à simplicidade. A vida das pessoas não pertencia
a elas, mas à cidade. Os meninos eram obrigados a deixar
suas casas aos sete anos. A partir de então, viviam em
quartéis supervisionados por uma hierarquia militar, de
quem recebiam treinamento severo. Apesar de aprende-
rem a ler e a escrever na escola, esses conhecimentos não
eram tidos como importantes. O principal objetivo era
desenvolver a habilidade guerreira. Os meninos andavam
descalços, dormiam no chão ou em camas duras e pratica-
vam esportes. Aprendiam a ter orgulho de enfrentar a dor.
Música e dança também faziam parte da educação espar-
tana, mas seu caráter era absolutamente militar.
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
19
Propositalmente mal alimentados, os meninos eram esti-
mulados a roubar. Se fossem pegos, porém, eram severa-
mente punidos. Um relato que sobreviveu até nossos dias
dá conta de um garoto que havia roubado uma raposa
viva, da qual pretendia se alimentar. Quando viu os solda-
dos se aproximando dele, escondeu o animal debaixo das
suas roupas. Ao ser interrogado, para não ser punido, ele
deixou que a raposa o mordesse de tal forma que o feriu
mortalmente, sem, no entanto, permitir que seu rosto
traísse qualquer sinal de dor11.
Jovens Espartanos Exercitando-se, (Edgar Degas, c. 1860)
Entre 18 e 20 anos, os rapazes espartanos tinham de pas-
sar num difícil teste de resistência, habilidade militar e
liderança. Os que passavam se tornavam soldados espar-
tanos, mas aqueles que falhavam viravam perioikos, ou
Projeto Cultura e Memória
membro da classe dos mercadores e artesão que, embora
pudessem ter propriedades e negócios, não tinham direi-
tos políticos e não eram considerados cidadãos.
Os cidadãos de Esparta não podiam sequer tocar em di-
nheiro. Isso era problema dos perioikos. Os cidadãos con-
tinuavam o serviço militar e a viver em quartéis até os
sessenta anos, mesmo que fossem casados e tivessem
família. Só depois dessa idade os soldados podiam se reti-
rar do exército e viver com os seus.
Com as mulheres as coisas não eram muito diferentes,
mas paradoxalmente, Esparta era a cidade onde elas ti-
nham mais liberdades em toda a Grécia antiga. Ao contrá-
rio das outras cidades-estado gregas, as meninas esparta-
nas recebiam uma educação que ia além das artes domés-
ticas. Seu treinamento não era muito diferente daquele
dos meninos. A partir dos sete anos, viviam em quartéis e
aprendiam a arremessar dardos, discos, táticas militares e
a lutar. O duro treinamento, provavelmente igual ao dos
meninos, vinha da crença de que mulheres fortes produ-
zem filhos fortes. Aos 18 anos, elas eram submetidas a um
teste de resistência física. As que passavam eram designa-
das a um marido. As que eram reprovadas, porém, perdi-
am o direito de cidadania e se tornavam perioikos. As es-
partanas, diferentemente das outras mulheres gregas, não
eram confinadas às suas casas. Em Esparta, elas tinham
liberdade de movimento e gozavam de grande liberdade,
uma vez que seus maridos não viviam com elas, mas nos
quartéis.
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
21
Escravidão
Um aspecto fundamental na Grécia antiga era a escravi-
dão, influindo em praticamente todos os aspectos da civi-
lização grega: da vida doméstica à famosa frota naval ate-
niense. Eram os escravos que forneciam a mão de obra
que impulsionava a próspera economia grega.
Havia nas cidades gregas, provavelmente, um número de
escravos igual ao de cidadãos livres12. Alguns autores afir-
mam que um quarto da população de Atenas eram escra-
vos13. Eles serviam em todos os lugares: nas casas, lojas,
fábrica, minas, navios. Até a força policial de Atenas era
constituída de escravos. Suas vidas não diferiam muito das
vidas dos gregos mais pobres. Havia diversas maneiras
diferentes através das quais se tornava um escravo no
mundo grego. Os filhos dos escravos já nasciam nessa
condição, mas muitos eram prisioneiros de guerra, escra-
vizados quando sua polis foi tomada. Outros eram aban-
donados ainda bebês, nas portas das cidades, por pais que
não os desejavam. Muitas famílias necessitadas também
vendiam seus filhos como uma forma de sobreviver. Em
geral, as filhas, menos úteis que os filhos, é que eram ven-
didas.
Os escravos eram tratados de forma diferente, dependen-
do do trabalho que realizavam. Os domésticos eram, em
geral, tidos praticamente como membros da família e po-
diam participar dos sacrifícios e rituais familiares. Eram
supervisionados pela dona da casa, que procurava mantê-
los ocupados o tempo todo. No entanto, mesmo os escra-
Projeto Cultura e Memória
vos domésticos não podiam frequentar os ginásios ou a
Assembleia Pública. Não podiam usar seu próprio nome,
mas apenas aquele dado pelos seus amos. Ao contrário
dos escravos domésticos, os designados para trabalhar nas
minas ou como tripulantes de navios tinham uma vida
dura e perigosa. Dificilmente sobreviviam muito tempo.
Quase sempre, esses escravos eram criminosos condena-
dos à morte.
A Expansão dos Gregos
No período clássico (500 – 338 a.C.), a civilização grega
atingiu seu apogeu. As cidades-estados se uniram para
enfrentar os persas, os senhores do maior império da épo-
ca. Os persas haviam tomado várias colônias gregas na
Ásia Menor, deflagrando as Guerras Persas (492 – 490 e
480 – 479 a.C.). Os gregos se uniram para por um fim à
ameaça. Os atenienses bateram os persas em Maratona,
Salamina e Plateia, enquanto os espartanos foram venci-
dos nas Termóplitas. Afastado o perigo da invasão persa e
buscando garantir sua soberania, as cidades gregas se
uniram na Liga de Delos, sob a liderança de Atenas. Por
conta da liderança da liga, Atenas passou a controlar todo
o Mediterrâneo e as rotas de abastecimento da Ásia.
Por conta disso, as cidades gregas sentiram-se ameaçadas
com o crescente imperialismo econômico ateniense. Cor-
cira, uma colônia da cidade de Corinto, o segundo centro
comercial da Grécia, foi apoiada militarmente por Atenas
para resolver um conflito com a metrópole. Corinto, por
sua vez, pediu ajuda de Esparta. Organizando a Liga do
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
23
Peloponeso, Esparta aliou-se a Corinto, Mégara e Tebas.
Foi o começo das guerras do Peloponeso (431 – 421 e 415
– 404 a.C.), que acabou com a vitória de Esparta e seus
aliados sobre Atenas.
Durante trinta anos, de 404 a 371 a.C., Esparta impôs seu
domínio às cidades gregas. A dureza do regime espartano,
porém, provocou novas lutas internas. Tebas conseguiu
vencer o exército de Esparta e, entre 371 e 362 a.C., impôs
seu próprio domínio sobre a Grécia. A hegemonia tebana,
por sua vez, provocou novos conflitos, e uma coligação de
cidades acabou por enfrentar Tebas e derrotá-la.
As cidades gregas ficaram enfraquecidas com a guerra do
Peloponeso e as sucessivas lutas que se seguiram, o que
levou Felipe da Macedônia a dominar toda a Grécia (338
a.C.). Os macedônios, embora fossem um povo de raça
helênica, eram bem menos adiantados. Felipe discordava
dos regimes políticos independentes das cidades-estados
gregas e conseguiu unir toda a Grécia – exceto Esparta –
sob sua coroa. O próximo passo planejado por Felipe era
atacar o império persa, mas ele foi assassinado antes de
realizar seu intento. Ao filho de Felipe, Alexandre, coube a
conquista do império persa. Em dez anos de campanhas
fulminantes – entre 333 e 323 a.C. –, Alexandre expandiu a
cultura helênica da península grega à Índia.
Projeto Cultura e Memória
Alexandre na Batalha de Isso, 333 a.C. (mosaico romano séc. 1 d.C.)
Quando Alexandre morreu inesperadamente em 323 a.C.,
sem deixar sucessores, seu império começou a se frag-
mentar em reinos governados por monarcas todo-
poderosos. A nova instituição política marcou o fim das
cidades-estado gregas, o que fez com que muitos gregos
emigrassem para os novos reinos, fundindo sua cultura à
oriental. A partir de então, os modos e maneiras helênicos
dominaram o mundo.
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
25
Notas do Capítulo
1 – A Shorter History of the World – J.M. Roberts, 2000, p.
150
2 – Um Estudo Crítico da História – Helio Jaguaribe, Paz e
Terra, 2001, p. 183
3 – A Shorter History of the World – J.M. Roberts, p. 175
4 – Ibid.
5 – Ibid., p. 177
6 – Ibid.
7 – História da Civilização – Sérgio Buarque de Hollanda,
Companhia Editora Nacional, 1977, p. 74
8 – A Cidade Antiga – Fustel de Coulanges, Martins Fontes,
2000, p. 15
9 – Greeks - Encyclopædia Britannica, 2006, in
www.britannica.com
10 – História da Civilização – Sérgio Buarque de Hollanda,
p. 76
11 – Daily Life in Ancient Greece, in
www.members.aol.com/Donnclass/Greeklife.html
12 – Encyclopedia Britannica Online,
Projeto Cultura e Memória
13 – Everyday Life in Ancient Greece, 4th Century BC,
EyeWitness to History, www.eyewitnesstohistory.com
(2001).
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
27
2
A Religião Grega
s gregos, como todos os povos antigos, eram profun-
damente religiosos. Em sua visão, o universo espiritual
permeava todos os aspectos da vida. Qualquer ativi-
dade tinha uma implicação mística. O historiador Helio
Jaguaribe se refere a isso ao afirmar que a religião da Gré-
cia “se mantém dentro dos limites da ideia imanente do
divino”1. Através da guerra conquistava-se honra e glória,
o que divinizava os homens; as artes e ofícios promoviam
conhecimento e sabedoria; o cultivo da terra revelava os
mistérios da Vida; a família mantinha estreito contato com
os ancestrais mortos. Tudo o que se fazia, por mais corri-
queiro que fosse, estava imbuído do sagrado. O mistério
que envolve todas as coisas e ações era representado a-
través de mitos, ou “metáforas”, conforme o mitologista
americano Joseph Campbell2. Assim, a luz da ciência e da
música era Apolo, o conhecimento técnico que conduz à
sabedoria, Atena, a mágica que faz a semente brotar, De-
O
Projeto Cultura e Memória
méter, e os ancestrais a tudo assistiam. Na visão grega,
deuses, daemons, demônios e forças da natureza regiam o
Cosmos, isto é, a “ordem sagrada das coisas”.
A religião dos gregos era um amálgama de diferentes con-
ceitos e práticas. Segundo Hélio Jaguaribe, ela era consti-
tuída de cinco níveis distintos. O primeiro era o nível das
famílias, isto é, dos deuses domésticos e do culto dos an-
tepassados; o segundo, o nível cívico dos deuses das cida-
des. Depois havia o nível mitológico do Olimpo, a religião
dos mistérios e o nível filosófico3. Tantas camadas teológi-
cas resultaram no fato de os gregos não possuírem um
conjunto claro de doutrinas, nem igreja, nem clero. Possu-
íam, antes, sacerdotes e adivinhos, com funções mais res-
tritas do que um membro do clero de outra cultura teria;
possuíam mitos, crenças e visões de mundo que buscavam
exclusivamente explicar a profunda experiência humana.
Lançavam-se devotadamente na procura pela inter-
relação com o sagrado, o misterioso. Interagiam com os
antepassados e os deuses por meio de rituais. A crença na
vida após a morte, o rito do fogo sagrado, as iniciações nos
“Mistérios”, onde o segredo da existência era revelado ao
aprendiz através da sabedoria expressa nos processos
naturais de germinação, crescimento, morte e renasci-
mento – presentes em tudo, da vida das plantas ao ciclo
das estações. Os sacerdotes e adivinhos gregos interpreta-
vam presságios e, consultando oráculos, ouviam as men-
sagens dos deuses – deuses especiais. Embora fossem
cultuados em todo o mundo grego irrestritamente, cada
cidade tinha seu deus ou deusa nacional, homenageado
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
29
em festivais nos quais os rituais religiosos e sacrifícios se
mesclavam com jogos e atuações teatrais4.
Iniciação nos Mistérios (detalhe de afresco romano, sec. 1 d.C.)
Apesar de a religião grega ser a sedimentação final de um
processo sincrético que fundiu as religiões indo-europeias
com as crenças anteriores da Grande Deusa e, mais tarde,
asiáticas e egípcias5, o cerne da sua herança religiosa é
composta basicamente pela interação de duas mitologias:
a herança pré-homérica da Idade do Bronze e a mitologia
olímpica, repleta de autoconhecimento humanístico. Em
seu livro O Nascimento da Tragédia, publicado em 1872, o
filósofo Friedrich Nietzsche afirma: “a glória da visão trági-
ca grega está no reconhecimento da reciprocidade dessas
Projeto Cultura e Memória
duas ordens de espiritualidade, nenhuma das quais ofere-
ce individualmente mais do que uma experiência parcial
do valor humano”6.
A Religião Doméstica
Nos estratos mais antigos da herança religiosa e que veio a
constituir a mitologia clássica está a crença na vida após a
morte e o culto aos ancestrais. O historiador Fustel de
Coulanges relata que “as mais antigas gerações (dos gre-
gos), muito antes ainda da existência dos filósofos, acredi-
tavam já em uma segunda existência passada para além
desta nossa vida terrena. Encaravam a morte não como
uma decomposição do ser, mas como simples mudança de
vida”7. Mas ao contrário da teoria de metempsicose, que
sustenta que o espírito evade um corpo para dar vida a
outro, ou da moderna crença de que a alma passa a habi-
tar as regiões celestiais depois de uma vida virtuosa, os
gregos diziam que a alma permanece na terra, perto dos
homens. Acreditavam, também, que a associação entre o
espírito e o corpo continuava, mesmo depois do sepulta-
mento. Por isso, os objetos necessários, como roupas e
armas, eram enterrados juntos com o morto. “Derramava-
se vinho sobre o seu túmulo para lhe mitigar a sede; dei-
xavam-lhe alimentos para apaziguar sua fome; degolavam-
se cavalos e escravos pensando que estes seres, enterra-
dos com o morto, o serviriam no túmulo, como o que ha-
viam feito durante a sua vida”8. As oferendas eram repeti-
das em dias específicos ao longo do ano. Os túmulos gre-
gos tinham até mesmo um local destinado à imolação da
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
31
vítima e à colocação da sua carne – alimento exclusivo do
morto.
No seu A Cidade Antiga, Fustel de Coulanges cita um texto
de Píndaro (518 – 438 a.C.) sobre essa antiga crença dos
gregos. Trata-se da história de Frixo que, fugindo da Grécia
pela madrasta que o queria matar9, morreu em Cólquida.
No entanto, mesmo morto, Frixo desejava ardentemente
voltar à sua terra natal. Seu espectro apareceu, então, a
Pélias e lhe pediu que fosse à Cólquida para dali trazer sua
alma de volta à Grécia. “Sua alma sentia sem dúvida a
saudade do solo pátrio, do túmulo da família; mas vivendo
ligada aos seus restos corporais, evidentemente que não
poderia abandonar a Cólquida sem os trazer consigo”10.
Essa crença implica da necessidade de se construir uma
sepultura, um lugar de repouso para a alma. Do contrário,
ela passaria a vagar errante, na forma de larva ou como
fantasma, em busca de um local de descanso. Sem receber
oferendas e alimentos de que precisa, cedo ou tarde essa
alma se torna má e passa a atormentar os vivos, enviando-
lhes doenças e os assombrando como forma de reivindicar
uma tumba. Não era pela dor da perda que se enterrava o
morto e se realizava cerimônias fúnebres, mas para apazi-
guar a alma. Temia-se menos a morte do que a privação
da sepultura.
Independentemente dos seus atos em vida, os gregos a-
creditavam que os mortos se tornavam “deuses subterrâ-
neos”, os manes. Os túmulos, com seus altares sacrificais,
eram os templos dessas divindades. Coulanges sustenta
Projeto Cultura e Memória
que o culto aos mortos é a primeira manifestação de reli-
giosidade não só dos gregos, mas de todos os povos indo-
europeus. “Antes de conceber e de adorar Indra ou Zeus, o
homem adorou os seus mortos; teve-lhes medo e dirigiu-
lhe preces. Parece que o sentimento religioso do homem
começou com este culto. Foi talvez por ver a morte que o
homem pela primeira vez teve a ideia do sobrenatural e
quis tomar para si mais do que lhe era legitimo esperar da
sua qualidade de homem. A morte teria sido o seu primei-
ro mistério, colocando o homem no caminho de outros
mistérios. Elevou seu pensamento do visível ao invisível,
do transitório ao eterno, do humano ao divino”11.
Com a evolução da civilização grega, porém, o destino
imaginado da alma sofreu alterações. Os gregos concebe-
ram uma região subterrânea, mas infinitamente maior do
que o túmulo, aonde todas as almas iam viver juntas, re-
cebendo penas e recompensas conforme a conduta que
tiveram em vida. Esse lugar era o Hades, onde os mortos
se transformavam em sombras imateriais. Os bons passe-
avam pelos os Campos Elíseos, mas sem qualquer poder12.
Outra corrente sustentava que o espírito imortal teria um
destino melhor ou pior, depois da morte terrena, confor-
me o morto fosse ou não um iniciado na religião dos mis-
térios. Alguns filósofos sofisticaram esse conceito, associ-
ando o destino da alma após a morte às virtudes e quali-
dades que a pessoa praticou em vida. No período helenís-
tico, essa ideia se popularizou e preparou o terreno para a
concepção cristã do Paraíso e do Inferno.
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
33
O Fogo do Lar
Além do culto aos antepassados, outro aspecto importan-
te da religião doméstica dos gregos é o culto ao Fogo Sa-
grado. Toda casa grega possuía um altar, onde o chefe da
família tinha a obrigação de conservar acesso o Fogo Sa-
grado. As chamas deveriam ser alimentadas apenas com a
madeira de árvores santificadas. Oferendas de flores, fru-
tos, incenso, vinho eram feitas ao Fogo, enquanto a ele se
pedia proteção, saúde, riqueza e felicidade. O Fogo era a
divindade soberana do lar, a Providência da família. Era,
enfim, um poder tutelar, cuja importância era tão grande
que, quando se rezava a um deus qualquer, começava-se e
acabava-se com uma prece ao Fogo do Lar. Os Jogos Olím-
picos – a mais sagrada celebração de toda a Grécia – eram
iniciados com um sacrifício ao Lar. Só depois se sacrificava
em honra a Zeus13. O Fogo representava para os gregos o
ser invisível e divino que há em nós, a força moral e pen-
sante que anima e conduz nossas ações.
Era o Lar quem presidia as refeições. Ele é quem preparava
e transformava o alimento. Por isso, antes de comer, de-
positava-se sobre o altar um pouco de alimento, e antes
de beber, vertia-se vinho sobre o Fogo. Era a parte do
deus. Também se fazia uma oração no começo e outra no
final de cada refeição. Através do alimento, o homem e o
deus entravam em comunhão.
Projeto Cultura e Memória
Os Olímpicos
Além desses traços da religião grega, há ainda a caracterís-
tica mais notória desse corpo de crenças: a mitologia o-
límpica, repleta de autoconhecimento humanístico. Fustel
de Coulanges distingue “duas religiões” entre os gregos. A
primeira tomou seus deuses da alma humana e a segunda
da natureza física14. As duas correntes acabaram se amal-
gamando e se complementando, embora o culto dos deu-
ses do Olimpo e o dos mortos nunca tenham tido nada em
comum.
Tétis apelando a Zeus (Stanislaw Wyspianski, c. 1896)
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
35
Com a evolução da religião grega, os deuses concebidos a
partir da crença da vida após a morte foram personifica-
dos, receberam nomes e forma humana. O Fogo do Lar
não fugiu à regra. Encarnado numa divindade feminina,
passou a se chamar Héstia. Surgiu também o culto aos
heróis. Homens excepcionais eram divinizados como for-
ma de reconhecimento público e exemplo a ser seguido,
com templos e sacerdotes a serviço da sua memória.
A religião da natureza, personificada nos mitos, também
se desenvolveu através dos tempos, modificando pouco a
pouco sua literatura e doutrinas. De modo geral, os deuses
habitavam o monte Olimpo, inclusive os deuses cósmicos,
divindades menores, como as musas e as ninfas, e os mor-
tos divinizados, os heróis. Contudo, os deuses olímpicos
eram apenas doze, cada qual com uma área especial de
influência, com atributos correspondentes a esse poder.
Zeus era a divindade suprema; seus irmãos, Posêidon e
Hades, eram senhores do mar e do reino dos mortos; Ares
controlava a guerra; Ártemis, as florestas e os animais
selvagens; Demeter fazia os grãos brotarem; Hefestos, o
deus do fogo, da forja e dos ferreiros; Atena, a deusa do
conhecimento; Hera, esposa de Zeus e deusa do casamen-
to e da maternidade; Hermes, o mensageiro dos deuses;
Dionísio, o deus do vinho e do êxtase; Apolo, também
chamado de Febo, era o deus das artes, da saúde e das
profecias; Afrodite, a deusa do desejo. Alguns autores
incluem Héstia, a personificação do Fogo do Lar, entre os
deuses olímpicos, mas as opiniões são divergentes quanto
a isso.
Projeto Cultura e Memória
A Religião dos Mistérios
A religião dos mistérios representa uma das dimensões
mais importantes da religiosidade grega. Tratava-se de
ritos de iniciação secretos. Estreitamente ligados às ideias
de vida após a morte, de modo geral, pretendiam assegu-
rar uma existência feliz após a passagem terrena15.
Havia três principais mistérios na Grécia, os eleusinos, os
dionísicos e os órficos. Os mistérios eleusinos eram prati-
cados em honra a Demeter, inicialmente na cidade de
Eleusis. Seus ritos fazem referência aos esforços que De-
meter empreendeu à procura de sua filha, Perséfone, rap-
tada por Hades. O mistério celebrava a morte como garan-
tia da vida, assim como a semente que “morre” – ou seja,
é enterrada e desce aos infernos – para gerar uma nova
planta.
Os mistérios dionísicos celebravam os poderes de êxtase
de Dionísio. De acordo com o mito órfico, o homem era
um composto das cinzas de Dionísio e dos Titãs. A alma, o
“fator Dionísio”, era divina, mas o corpo, o “fator Titã”, a
prendia16. Os mistérios celebravam a imortalidade da al-
ma, ritualizando a morte e a ressurreição de Dionísio17.
Esses ritos incluíam a ingestão de carne crua e o casamen-
to sagrado, ou Hiero Gamos.
Os mistérios órficos, que teriam sido fundados por Orfeu,
eram mais complexos. Joseph Campbell afirma que Orfeu
remonta os períodos mais arcaicos da cultura grega18. Os
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
37
mistérios órficos envolviam toda uma literatura e uma
visão doutrinária, além dos rituais. Os praticantes deviam
seguir um padrão ético elevado, o que aproximava o or-
fismo do cristianismo. Os órficos acreditavam na metemp-
sicose (isto é, na transmigração da alma de um para outro
corpo), e nas punições e recompensas que a alma recebia
após a morte, conforme seus méritos em vida.
Morte de Orfeu (Albrecht Durer, 1494)
Projeto Cultura e Memória
Os conceitos órficos acabaram se desdobrando nos ensi-
namentos de filósofos como Pitágoras – que combinava
uma religião mística baseada na crença da metempsicose
com uma sofisticada competência matemática – e Platão –
que propôs que as essências, isto é, as ideias, representa-
das precariamente no mundo sensível, são, de fato, a rea-
lidade efetiva. A filosofia passou a explorar as concepções
religiosas em outro nível, mais racional, que, com o passar
do tempo, foi se aproximando cada vez mais daquilo que
hoje entendemos como ciência. Conforme o filólogo Wer-
ner Jaeger (1888 – 1961), “precisamos interpretar o cres-
cimento da filosofia grega como um processo pelo qual as
concepções religiosas originais do universo, a concepção
implícita no mito, foram crescentemente racionalizadas”
19.
A Religião das Cidades
Assim como o altar doméstico reunia à sua volta os mem-
bros da família, também a cidade era uma reunião de ho-
mens que tinham os mesmos deuses protetores e cumpri-
am o ato religioso no mesmo altar. Cada polis tinha o seu
hestia patroi20, sua divindade patronal, quase sempre um
deus olímpico, como acontecia em Atenas com Atena e
em Argos e Samos com Hera.
No entanto, apesar dos nomes iguais, as divindades não
eram as mesmas. A Hera de Argos tinha atributos diferen-
tes da Hera de Samos. Dessa forma, o hestia patroi era
exclusivo de cada cidade. “A urbe que possuía uma divin-
dade sua não queria que esta protegesse os estrangeiros,
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
39
tampouco permitia que a deusa fosse adorada por estes
estrangeiros”, escreveu Fustel de Coulanges21. Quase
sempre, um templo só era acessível aos cidadãos daquela
polis. Para se entrar no templo de Atena, em Atenas, por
exemplo, era imprescindível que se fosse ateniense.
Cada cidade tinha, também, seu corpo de sacerdotes. Eles,
porém, não mantinham qualquer ligação com os sacerdo-
tes de outra urbe. Não havia comunicação ou troca de
preceitos ou de rituais. Cada cidade tinha o seu conjunto
de orações e práticas, sempre mantidas em segredo. As-
sim, o nível cívico da religião era totalmente local, particu-
lar, em cada cidade. Os cidadãos só respeitavam e honra-
vam os deuses da sua polis, nada temendo ou devendo
aos de outra cidade. Para que o deus velasse somente por
uma determinada cidade, era indispensável que recebesse
seu culto somente dela. Sendo honrados só por essa cida-
de, esperava-se que o deus fizesse favores somente àque-
le povo.
Do deus cívico, esperava-se proteção. Apenas ele ou ela
era invocado em caso de perigo. Os cidadãos garantiam
isso através de intermináveis oferendas depositadas no
templo do seu hestia patroi. O culto consistia em alimen-
tar o deus com tudo o que lhe agradasse os sentidos: car-
nes, bolos, vinho, perfumes, vestidos, joias, dança e músi-
ca. Em troca, a divindade deveria garantir benefícios e
proteção. Se a cidade fosse derrotada em uma guerra, a
culpa era do deus, que não cumpriu seu dever de defensor
da cidade. Frequentemente, tinha seus templos e altares
destruídos pelos cidadãos. Se a cidade fosse vencida, a-
Projeto Cultura e Memória
creditava-se que os seus deuses também haviam sido ven-
cidos e, consequentemente, se tornavam cativos. Outra
visão atesta que, se a cidade foi vencida, é porque seus
deuses a abandonaram, mudando-se dali. Muitos acredi-
tavam, ao tentar invadir uma cidade, que era preciso antes
fazer com que o deus abandonasse a cidade. Para tanto,
eram empregadas invocações especiais, as quais o deus
não poderia resistir. Em muitas ocasiões, em vez de usa-
rem a fórmula para atrair o deus, os gregos preferiam rou-
bar sua estátua. Por isso, os sitiados as escondiam cuida-
dosamente. Algumas vezes, eles prendiam a estátua do
deus protetor com correntes para que ele não desertasse.
Havia, também, festas religiosas das quais faziam parte
jogos e competições atléticas, procissões e espetáculos
musicais e teatrais. Em Atenas, por exemplo, celebrava-se
as Panateias, em honra a Atena, e as Dionísicas, em honra
a Dionísio. Havia também festas que eram realizadas em
santuários pan-helênicos, isto é, comum a todos os gregos.
A mais famosa delas eram os Jogos Olímpicos, celebrados
de quatro em quatro anos na cidade de Olímpia, em honra
a Zeus. Sua importância era tal, que os primeiros Jogos
Olímpicos marcavam o início do calendário grego.
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
41
Notas do capítulo
Um Estudo Crítico da História – Hélio Jaguaribe, Paz e Ter-
ra, São Paulo, 2001, p. 324
The Power of Myth – Joseph Campbell, Anchor Books,
New York, 1991, p. 67.
Um Estudo Crítico da História –p. 325
A Shorter History of the World – J.M. Roberts, Ediouro, Rio
de Janeiro, 2000, p. 183
Um Estudo Crítico da História –p. 324
citado em The Masks of God – Occidental Mythology, Jo-
seph Campbell, Arkana, New York, 1991, p. 141
A Cidade Antiga – Fustel de Coulanges, Martins Fontes,
São Paulo, 2000, p. 7
A Cidade Antiga – Fustel de Coulanges, p. 9
Dicionário da Mitologia Grega – Ruth Guimarães, Cultrix,
São Paulo, 1993, p. 157
A Cidade Antiga – Fustel de Coulanges, p. 9
A Cidade Antiga – Fustel de Coulanges, p. 18
Um Estudo Crítico da História – Hélio Jaguaribe, p. 328
A Cidade Antiga – Fustel de Coulanges, p. 24
A Cidade Antiga – Fustel de Coulanges, p. 127
Projeto Cultura e Memória
Um Estudo Crítico da História – Hélio Jaguaribe, p. 327
The Masks of God – Occidental Mythology, Joseph Camp-
bell, p. 183
The Golden Bough – James G. Frazer, Gramercy Books,
New York, 1981, i p. 324
The Masks of God – Occidental Mythology, Joseph Camp-
bell, p. 184
citado em Um Estudo Crítico da História – Hélio Jaguaribe,
p. 330
Um Estudo Crítico da História – Hélio Jaguaribe, p. 325
A Cidade Antiga – Fustel de Coulanges, p. 161
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
43
3
Cosmogonias
á dois autores fundamentais na compilação e preser-
vação da mitologia grega. Um deles é Homero (século
8 a.C.), o lendário rapsodo que seria o autor da Ilíada
e da Odisseia. Nas duas obras, Homero menciona detalhes
do relacionamento entre os homens e os deuses, além de
outros aspectos da tradição religiosa grega. Hesíodo (sécu-
lo 8 a.C.), tido como o “pai da poesia didática grega”1, é o
outro autor fundamental. O poeta detalha em sua obra
Teogonia (cerca de 750 a.C.) os poderes e atributos dos
deuses e a cosmogonia mitológica concebida pelos gregos.
Mais que uma coleção de histórias fantásticas sobre a
origem e a evolução do Universo, trata-se de uma tentati-
va de se estabelecer uma visão da natureza e da realidade.
O Mito de Criação dos Pelasgos
No princípio, tudo o que havia era o Caos – a possibilidade
de vir a ser do universo. Então, Eurinome, a Deusa de To-
H
Projeto Cultura e Memória
das as Coisas, emergiu nua do Caos. Como não tivesse
onde apoiar seus pés, Eurinome separou o mar do céu, e
se pôs a dançar solitariamente sobre as ondas. Ela dançou
em direção ao Sul, criando o vento com seu movimento.
Dançando e rodopiando, Eurinome segurou o vento e o
esfregou entre as mãos, criando a grande serpente Ofião.
Eurinome continuou sua dança, girando cada vez mais
rapidamente para se aquecer, até que Ofião – o princípio
masculino – foi tomado de desejo e se enrodilhou no sa-
grado corpo da deusa para amá-la. Grávida da semente de
Ofião, Eurinome se transformou numa pomba, e botou o
Ovo Universal sobre as ondas do mar cósmico. Ao coman-
do da deusa, Ofião se enrodilhou ao redor do ovo, dando
sete voltas ao redor dele com seu corpo. Assim, o ovo foi
chocado, partindo-se em duas metades. Desse ovo univer-
sal, saíram todas as coisas existentes: o sol, a lua, as estre-
las, os planetas e a Terra, com seus rios, mares, monta-
nhas, árvores, plantas e criaturas vivas – os filhos da gran-
de deusa Eurinome.
Depois disso, Eurinome criou os sete poderes planetários,
cada um deles sob o comando de um titã e de uma titânia.
Em seguida, nasceu o primeiro homem – Pelasgo, ances-
tral dos pelasgos. Ele brotou do chão da Arcádia, junto
com outros homens, a quem Pelasgo ensinou a construí-
rem choupanas, a cultivar grãos e a fazer roupas de pele
de porco2.
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
45
O Mito de Criação Órfico
Os seguidores de Orfeu ensinavam que a Noite, uma deu-
sa a quem até mesmo Zeus respeitava profundamente, foi
cortejada pelo Vento. Repleta do amor do deus, Noite
botou um ovo de prata no útero da Escuridão. Quando o
ovo chocou, dele saiu Eros – o deus Amor, que colocou o
universo em movimento. Eros tinha os dois sexos, asas
douradas e quatro cabeças. A deusa Noite, manifestando-
se na tríade Noite, Ordem e Justiça, vivia numa caverna
com seu divino filho. Eros criou, então, a Terra, o céu e a
Lua. Mas era a deusa tripla, mãe de Eros, quem governava
o Universo, até que passou o cetro de poder a Urano.
O Mito de Criação Olímpico
No princípio, Gaia, a Mãe Terra, emergiu do Caos e, en-
quanto dormia, deu à luz seu filho Urano. Observando a
mãe do alto das montanhas, Urano se encheu de desejo e
verteu sobre ela uma chuva fértil que a fez se cobrir de
filhos: ervas, flores, árvores, animais, aves e insetos. A
mesma chuva fez surgir rios, lagos e oceanos. Então, Gaia
gerou seus primeiros filhos de forma semi-humana. Brira-
eu, Giges (ou Egeon) e Coto eram gigantes de cem braços
e cinquenta cabeças, os hecatônquiros. Em seguida, a Mãe
Terra teve Bronteu, Estérope e Argeu, ciclopes de um lho
só, que correspondem ao trovão, ao relâmpago e ao raio3.
Urano logo se desentendeu com seus filhos e os aprisio-
nou no Tártaro, um lugar sombrio no Mundo subterrâneo,
tão distante da Terra, como esta é do céu. Depois, engra-
Projeto Cultura e Memória
vidou sua mãe-esposa novamente. Dessa vez, Gaia deu à
luz os titãs, seis do sexo masculino – Oceano, Ceos, Crio,
Hiperião, Jápeto e Crono – e seis, do feminino. Eram seres
monstruosos e, à medida que nasciam, Urano os encerra-
va nas profundezas da Terra.
Gaia, como toda mãe, não se conformou com o destino
que o filho-marido reservou à sua prole e imaginou uma
forma de se vingar de Urano. Do próprio seio, Gaia tirou o
aço com o qual, ajudada pelos filhos, forjou uma foice.
Com a arma, Gaia incitou os titãs e se voltarem contra
Urano. No entanto, eles estavam por demais apavorados
para lutar contra seu poderoso pai. O único que tomou a
foice e enfrentou Urano foi Crono, o filho caçula.
Enquanto Urano dormia, Crono se aproximou sorrateira-
mente e o castrou, agarrando os genitais com a mão es-
querda e os lançando ao mar junto com a foice. Algumas
gotas do sangue de Urano caíram sobre Gaia, e ela gerou,
ainda, as três Erínias, as Fúrias que castigam os crimes que
perturbavam a ordem social e, principalmente, a família:
Aleto, Tisífone e Megera. Os titãs libertaram, então, os
ciclopes e os hecatônquiros do Tártaro e fizeram de Crono
soberano da Terra. Vendo-se como senhor supremo da
Terra, Crono tomou como companheira sua irmã Reia e,
temendo resistência ao seu poder, tornou a encarcerar os
ciclopes e os hecatônquiros no Tártaro.
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
47
A castração de Urano – Giorgio Vasari, c. 1560 (detalhe)
Crono é Destronado
A posição de Crono, porém, não era segura. Enquanto
agonizava, Urano havia profetizado que Crono seria des-
tronado por um dos seus próprios filhos – exatamente
como ele havia feito com o pai. Gaia também previra a
mesma coisa. Temendo o mesmo destino de Urano, Crono
passou a devorar os filhos que gerou em Reia. Primeiro foi
Héstia, depois Deméter e Hera; finalmente, Hades e Po-
seidon. E como sua mãe Gaia antes dela, Reia se enfureceu
com o tratamento que Crono dedicou aos seus filhos.
Guardou em segredo sua nova gravidez e, retirando-se
para um lugar ermo, na calada da noite, teve Zeus. Reia
banhou seu filho no rio Neda e entregou a criança aos
cuidados da sua avó. Depois disso, ela enrolou cueiros em
uma pedra e a deu ao irmão-marido. Crono pensou tratar
de um dos seus filhos e engoliu a pedra sem titubear.
Projeto Cultura e Memória
Gaia por sua vez levou o pequeno Zeus a Lictos, na ilha de
Creta, onde o escondeu numa caverna, sob a responsabili-
dade das ninfas Adrasteia, de sua irmã Io e da cabra Amal-
téa. O berço de Zeus foi amarrado numa árvore, assim
Crono não o encontraria nem na terra, nem no mar e nem
no céu. Alimentado com mel e com o leite de Amalteia,
Zeus era protegido pelos curetes, filhos de Reia. Para que
Crono não ouvisse os choros da criança sagrada, os cure-
tes batiam suas lanças nos escudos e gritavam enquanto
executavam loucas danças de guerra.
Zeus cresceu entre os pastores do Monte Ida. Quando
chegou à idade adulta, traçou um plano para se vingar do
pai. Com essa intenção, foi à procura da titânia Métis, a
Prudência. Métis aconselhou Zeus a procurar Reia e a pe-
dir sua ajuda para destronar Crono. E assim ele fez. Reia o
colocou a serviço de Crono como seu copeiro e deu a ele
uma poção para misturar à bebida do pai. Crono bebeu
sofregamente e vomitou – primeiro a pedra que tinha
engolido no lugar do filho e, em seguida, os irmãos e irmãs
de Zeus. Eles saíram intactos das entranhas de Crono e
pediram que Zeus os liderasse numa luta contra os titãs,
os seguidores de Crono. Liderados por Atlas, pois Crono já
estava velho para comandar uma guerra, durante dez anos
os titãs se engalfinharam com Zeus e seus irmãos numa
guerra pelo controle do Cosmos. A vitória não pendia a
favor de nenhum dos lados. Mas Gaia profetizou que seu
neto Zeus venceria a disputa, se ele se aliasse aos ciclopes
e hecatônquiros, traiçoeiramente presos no Tártaro por
Crono.
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
49
Crono devorando seu filho (Peter Paul Rubens, c. 1630)
Audaciosamente, Zeus desceu ao Tártaro e matou Campê,
a monstruosa carcereira dos ciclopes e hecatônquiros. De
posse das chaves da prisão, Zeus libertou seus novos alia-
dos e os fortaleceu, alimentando-os com comida e bebida
divinos. Em gratidão, os ciclopes deram a Zeus e seus ir-
mãos armas com as quais poderiam vencer a luta. Zeus
recebeu o raio; Hades, um capacete de invisibilidade; e
Poseidon, um tridente. Os três irmãos se reuniram num
conselho de guerra e estabeleceram um plano.
Invisível com seu capacete, Hades entrou nos aposentos
de Crono e roubou suas armas. Então, surgiu Poseidon,
ameaçando-o com o tridente. Distraído por Poseidon,
Crono não percebeu Zeus, que o acertou com um raio. Os
Projeto Cultura e Memória
hecatônquiros também entraram em cena, arremessando
saraivadas de pedras com seus cem braços sobre os titãs
que ainda combatiam. Sem conseguir resistir ao ataque de
Zeus e de seus aliados, os titãs foram derrotados. Crono e
seu exército acabaram encarcerados no Tártaro e vigiados
pelos hecatônquiros. Atlas, o líder das forças inimigas,
recebeu um castigo exemplar. Por toda a eternidade, ele
tinha de sustentar o céu sobre seus ombros.
Os três irmãos vencedores dividiram entre si o poder so-
bre o mundo. A Hades coube o mundo subterrâneo; a
Poseidon, o mar; e Zeus passou a reinar sobre o céu. A
vitória de Zeus e de seus irmãos marcou o alvorecer de um
novo tempo – a era dos olímpicos.
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
51
Notas do capítulo
1 – Hesiod – Encyclopædia Britannica. 2006. Encyclopædia
Britannica Premium, in www.britannica.com/eb/article-
9040276
2 – Greek Myths – Robert Graves, Penguin Books, London,
1984, p. 10
3 – Dicionário de Mitologia Grega – Ruth Guimarães, Cul-
trix, São Paulo, 1993, p. 104
Projeto Cultura e Memória
4
Os Deuses
eus, o Pai do Céu, chamado de Júpiter pelos romanos,
é o senhor do raio e do trovão. Foi Zeus, depois da
vitória sobre seu pai Crono, quem ordenou os corpos
celestes, promulgou leis, presidiu sobre juramentos e es-
tabeleceu os oráculos. É ele quem mantém a ordem e a
harmonia do mundo. Deus supremo do panteão helênico,
Zeus reúne em si todos os atributos divinos. Dispensador
do bem e do mal, Zeus era também piedoso. Amante viril,
gerou muitos filhos em deusas, musas e mulheres mortais.
Sua primeira aventura amorosa foi com Métis, a titânia.
Zeus se apaixonou por Métis quando foi pedir a ela a po-
ção que fez Crono vomitar seus filhos intactos. Métis, po-
rém, procurou fugir de Zeus, assumindo diferentes formas.
Mas Zeus finalmente conseguiu dominá-la, fez dela sua
mulher e a engravidou. Um oráculo de Gaia, a Mãe Terra,
previu que a criança seria uma menina e que, mais tarde,
Z
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
53
Métis conceberia um menino, que destronaria Zeus da
mesma forma como ele havia destronado Crono, e este
Urano. Temendo seu futuro, Zeus seduziu Métis com pala-
vras gentis, convidando-a se deitar com ele. Quando Métis
se aproximou, porém, Zeus abriu sua boca e a devorou.
Métis passou, então, a viver dentro da barriga do deus, de
onde o aconselhava.
Atena
Depois de ter devorado Métis, Zeus foi acometido de uma
terrível dor de cabeça. Seu sofrimento era tanto que o
deus urrava de dor e de raiva, fazendo a Terra e o céu
tremerem. Percebendo o desconforto de Zeus, Hemes, o
mensageiro dos deuses, chamou Hefésto, o deus do fogo,
e o persuadiu a abrir uma fenda no crânio de Zeus com
seu martelo de ferreiro. Essas trepanações eram comuns
na Antiguidade. Os cirurgiões egípcios eram mestres em
abrir uma “janela” no crânio através da qual a doença
sairia1. E assim fez Hefesto, aliviando imediatamente a dor
de cabeça de Zeus. No entanto, não foi doença que saiu
através da abertura no crânio do deus, mas a filha que ele
havia gerado em Métis, a deusa Atena, que nasceu vestida
e armada, dançando uma dança bélica e lançando brados
de guerra que estremeceram o firmamento.
Embora fosse uma deusa guerreira, Atena – cultuada em
Roma como Minerva – não tinha prazer nas batalhas, mas
sim na solução das disputas através da lei e de meios pací-
ficos. Ela trouxe civilização aos homens. Inventou a flauta,
a cerâmica, o arado, a rédea, a carroça e o navio. Foi Atena
Projeto Cultura e Memória
quem ensinou aos homens a ciência dos números e todas
as artes das mulheres. Embora fosse misericordiosa, Ate-
na, guardiã e protetora dos heróis2, nunca perdia uma
batalha, mesmo contra Ares, o deus da guerra.
Atena e Heracles (taça ática, c. 470 a.C.)
Muitos deuses e titãs desejavam Atena, mas ela desprezou
a corte de todos eles e permaneceu virgem. Mesmo assim,
ela acabou tendo um filho. Conta-se que certa vez, Atena
pediu a Hefesto, o ferreiro dos deuses, que fabricasse ar-
mas para ela. Hefesto concordou, afirmando que faria o
trabalho por amor. Atena não percebeu a intenção dissi-
mulada nessas palavras e planejou visitar o deus do fogo
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
55
na sua oficina infernal. Ao saber disso, Poseidon, senhor
do mar, armou uma peça contra Hefesto. Disse-lhe que
Atena queria ser possuída com selvageria. Hefesto acredi-
tou em Poseidon, e assim que Atena entrou em sua oficina
ele tentou violentá-la. A deusa se desvencilhou, mas não
conseguiu evitar que Hefesto lançasse seu sêmen sobre
sua coxa. Revoltada, ela se limpou com um pedaço de lã,
que atirou em seguida no chão. O que Atena não contava
é que, ao cair no chão, o sêmen de Hefesto engravidou
Gaia, a Mãe Terra. Gaia se revoltou com a afronta e se
manifestou, dizendo que não aceitaria qualquer responsa-
bilidade sobre a criança. Movida de misericórdia, Atena
adotou o bebê, a quem deu o nome de Erictônio. Para
evitar que Poseidon soubesse do sucesso da sua trama,
Atena encerrou Erictônio numa arca e o entregou às filhas
do rei de Atenas, Cécrope, ele mesmo um filho de Gaia.
Com o tempo, Erictônio, o filho adotivo de Atena, se tor-
nou rei de Atenas, o primeiro a introduzir carros de guerra,
o uso de dinheiro e as Panateneias, festas em homenagem
a Atena.
Zeus e Hera
Reia havia confiado sua filha Hera, irmã mais velha de
Zeus, reverenciada pelos romanos como Juno, aos cuida-
dos das Horas – as divindades que representam as esta-
ções do ano –, depois de Hera ter sido vomitada por Cro-
no. Zeus desejava a irmã. Dizem que o amor dele por Hera
é muito antigo, do tempo em que Crono ainda reinava
sobre o Universo.
Projeto Cultura e Memória
Depois de ter banido Crono, Zeus foi procurar Hera para
cortejá-la. Zeus tentou seduzi-la de inúmeras formas, mas
sem sucesso. Hera não se deixava impressionar. Finalmen-
te, Zeus assumiu a forma de um passarinho – um cuco –
ferido. Compadecida, Hera pegou a frágil criatura e a ani-
nhou entre seus seios para aquecê-la. Foi então que Zeus
voltou à sua forma original, e Hera, sentindo-se vexada,
aceitou se casar com ele. Todos os deuses trouxeram pre-
sentes valiosos ao divino casal. Gaia presenteou a neta
com uma macieira de frutos de ouro, que foi replantada
no Jardim das Hespérides. A noite de núpcias de Zeus e
Hera, em Samos, durou trezentos anos. Hera deu a Zeus
três filhos: Ares, o deus da guerra, Hefesto, o deus do fo-
go, e Hebe, a Juventude. Algumas fontes, porém, susten-
tam que Hera gerou Hefesto sozinha, através de parteno-
gênese. De acordo com essa versão, Zeus não acreditou na
história. O desconfiado marido prendeu Hera numa cadei-
ra mecânica de onde só a libertou depois que ela jurou
pelo deus-rio Estige que tinha gerado Hefesto sem a ajuda
de nenhum imortal ou mortal.
Por ser a esposa do deus supremo, Hera era tida como a
protetora dos maridos, mesmo vivendo em eterno conflito
com Zeus. Hera não tolerava as infidelidades do esposo e
frequentemente perseguia os filhos que ele teve com ou-
tras imortais e mortais. A paixão de Zeus era tão grande
que o deus não havia poupado nem mesmo sua mãe, Reia.
Prevendo os problemas que o desejo desenfreado do filho
acarretaria, Reia o repreendeu. Zeus enfureceu-se e ame-
açou violentar a mãe. A resposta de Reia veio na forma de
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
57
uma serpente, na qual ela se transformou para se defen-
der do filho. No entanto, Zeus fez valer sua ameaça: trans-
formou-se numa serpente macho, enrodilhou em Reia e a
amou. Essa foi sua primeira aventura extraconjugal. De-
pois, Zeus teve vários filhos com diversas amantes.
Zeus e Hera (Jupiter e Juno), Annibale Carracci, séc. 17
Certa vez, Hera o admoestou pelas suas infidelidades, e
Zeus tentou justificar seu comportamento explicando que,
quando ele e Hera compartilhavam o leito, a esposa – por
ser da natureza das mulheres – tinha muito mais prazer do
Projeto Cultura e Memória
que ele. Hera não aceitou a explicação. Para resolver a
disputa, os dois resolveram chamar o sábio Tirésias, que,
embora nascido homem, já havia sido transformado em
mulher e voltado a ser homem. “Se o prazer pudesse ser
dividido em dez partes”, declarou o sábio na presença dos
deuses, “eu daria nove partes à mulher, e somente uma ao
homem”. Hera ficou tão enfurecida com o sorriso triunfan-
te no rosto de Zeus que, como vingança, cegou Tirésias.
Zeus, porém, se compadeceu de Tirésias e lhe deu a visão
interior, isto é, o dom da profecia, e estendeu sua vida por
sete gerações.
Mas as disputas de Hera e de Zeus não se resumem so-
mente a problemas de infidelidade. Dizem que o Poder é
um dos maiores inimigos dos homens e dos deuses, pois
tende a dominar quem o conquistou. O poder de Zeus
acabou cegando-o, impedindo-o de ver qualquer coisa
além da sua própria glória. Sua petulância se tornou tão
intolerável que Hera – com ajuda de Poseidon, Apolo e de
todos os outros olímpicos, exceto Héstia, tramou contra o
marido. Cercando-o em sua cama, enquanto Zeus dormia,
os imortais o amarraram com tiras de couro cru, de forma
que ele não pôde se mover. Enfurecido, Zeus ameaçou
eliminar a todos, mas os conspiradores haviam colocado o
raio, sua arma, fora do seu alcance e apenas riram da situ-
ação do deus supremo. Enquanto celebravam a vitória,
começaram a discutir quem sucederia Zeus, e conflitos
começaram a aparecer. Tétis, a nereida, temendo que a
discussão acabasse numa guerra entre os olímpicos, liber-
tou Zeus. Ele, então, voltou sua fúria contra Hera, pois
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
59
havia sido ela que liderara a rebelião. Como castigo, Zeus
pendurou a esposa no teto do céu, com uma bigorna presa
a cada tornozelo. Temendo Zeus, os outros deuses não se
atreveram a tentar libertar Hera. Mas apesar do seu cará-
ter instável Zeus gostava da esposa e, no final, resolveu
libertá-la. Para tanto exigiu que os olímpicos jurassem que
nunca mais se rebelariam, o que fizeram prontamente.
Poseidon e Apolo também foram punidos. Enviados para
servir ao rei Laomedonte, construíram para ele a cidade de
Tróia3.
Poseidon
Depois de destronarem seu pai Crono, Zeus, Poseidon e
Hades fizeram um sorteio para ver quem iria governar o
céu, os mares e o mundo subterrâneo – a Terra seria co-
mum aos três. Tirando a sorte no capacete de Hades, Zeus
ficou com o céu, Hades com o mundo subterrâneo e Po-
seidon com o mar.
Poseidon, embora menos poderoso do que Zeus, é igual
ao irmão em dignidade. Em seu palácio submarino, Posei-
don – venerado pelos romanos como Netuno – mantém
estábulos repletos de cavalos brancos que, ao se aproxi-
marem de uma tempestade, fazem-na cessar instantane-
amente. Sua consorte é Anfitrite, a personificação femini-
na do mar. Com ela Poseidon teve três filhos, Tritão, Rodes
e Bentesícime (certas fontes sustentam que o casal não
gerou filhos). No entanto, Poseidon despertou tanto ciúme
na esposa, como seu irmão Zeus provocou em Hera, ge-
rando diversos filhos em diferentes amantes – quase todos
Projeto Cultura e Memória
violentos e cruéis. Algumas tradições registram que entre
seus muitos rebentos, Poseidon também é o pai de uma
das figuras mais conhecidas da mitologia grega, o cavalo
alado Pégaso4.
Poseidon e Anfitrite, Jacob de Gheyn II (c. 1565 - 1629)
Ansioso por estender seus domínios à Terra, Poseidon
racha ao meio montanhas, formando ilhas com os roche-
dos rolados para o mar. Por conta da ambição de aumen-
tar seus domínios, Poseidon se desentendeu com muitos
deuses. Certa vez enfrentou Atena numa disputa pela Áti-
ca. A lenda conta que o senhor do mar se apossou da Áti-
ca, fincando seu tridente na acrópole, em Atena. Imedia-
tamente um poço de água salgada se abriu no lugar onde
o tridente tocara. Dizem que o poço ainda está lá para ser
visto. Tempos depois, durante o reinado de Cécrope, cujas
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
61
filhas criaram o enteado de Atena, Erictônio, Atena tomou
posse da Ática ao dar aos homens um presente melhor:
ela plantou a primeira oliveira ao lado do poço. Encoleri-
zado com a afronta, Poseidon surgiu rasgando o mar em
sua carruagem dourada puxada por cavalos brancos e a
desafiou para um combate singular. Zeus, porém, interfe-
riu, ordenando que a disputa fosse resolvida pelo julga-
mento dos deuses. Como se tratava de um conflito entre
seu irmão e sua filha, Zeus se absteve de votar. Os olímpi-
cos se dividiram – todos os deuses apoiaram Poseidon,
enquanto as deusas escolheram Atena. Assim, por uma
diferença de apenas um voto, Atena teve direito de gover-
nar Atenas.
Hades
Hades, que em Roma era cultuado com o nome de Plutão,
governa o mundo subterrâneo, o Tártaro, para onde vão
os espíritos dos mortos. Os fantasmas chegam trazendo
uma moeda, que piedosos parentes colocaram debaixo da
língua do seu cadáver. Com esse dinheiro, eles pagam a
Caronte, o barqueiro infernal, para atravessar o rio Estige,
de fogo e lava. Os espíritos que não têm a moeda ficam
eternamente esperando na margem. Uma vez do outro
lado, os mortos passam pelo guardião do Inferno – o cão
de três cabeças Cérbero – e entram no reino de Hades.
Cérbero abana a cauda para os que entram, mas devora
impiedosamente as almas que tentam escapar5.
Projeto Cultura e Memória
Hades e sua consorte Perséfone (taça ática, séc. 5 a.C.)
Na primeira região do Tártaro há um jardim triste, os
Campos de Asfódelo, onde as almas esvoaçam sem rumo,
como morcegos. Sua única alegria são as oferendas e os
sacrifícios de sangue feitos a eles pelos vivos. Quando
comem, esses fantasmas se sentem quase vivos de novo.
Além desses campos está o Érebo – o Campo da Verdade,
onde nem a mentira, nem a calúnia podiam se aproximar –
e o palácio de Hades e de sua consorte, Perséfone. Aqui,
as almas eram julgadas por três filhos que Zeus gerou em
Europa, Minos, Radamanto e Éaco. As almas que não eram
nem boas nem más deviam voltar aos Campos de Asfóde-
lo; os fantasmas dos maus eram confinados no campo de
punição do Tártaro; e os espíritos dos virtuosos passavam
aos jardins dos Campos Elísios. Nessa região, banhada de
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
63
sol e de luz, reinava uma primavera eterna. As almas dos
bons que ali habitavam viviam em completo descanso,
sempre jovens, sem qualquer perturbação ou dor. Dormi-
am sobre leitos de flores ou de relva macia. Os heróis que
lá chegavam conservavam seus corpos e passavam seu
tempo ouvindo os cantos de louvor que os poetas escrevi-
am em sua homenagem.
Hades dificilmente deixava seu palácio para visitar o mun-
do superior. Na verdade, ele mal sabia – e não se importa-
va em saber – o que acontecia nos outros reinos. Seu bem
mais precioso é o capacete que o torna invisível, um pre-
sente dos ciclopes quando ele e seus irmãos os libertaram
do jugo de Crono. Hades também é senhor de todas as
pedras e metais preciosos entranhados na terra.
Perséfone e Deméter
A consorte de Hades é uma das mais antigas e importantes
personagens mitológicas. Perséfone, também chamada de
Core e, pelos romanos, de Proserpina, era filha de Demé-
ter – irmã de Zeus e deusa da terra cultivada – e sua histó-
ria remete ao ciclo das plantas, que tanto influenciou as
primeiras sociedades agrícolas. Em Roma, Deméter era
celebrada como Ceres, nome que originou a palavra cere-
al.
Conta-se que, numa manhã de sol, Perséfone colhia flores
numa campina quando, de repente, a terra se abriu, e
Hades surgiu numa carruagem reluzente. Hades se apai-
xonara pela sobrinha e pedira o consentimento de Zeus
Projeto Cultura e Memória
para se casar com ela. Zeus sabia que não podia concor-
dar, pois magoaria a irmã se deixasse Hades levar Perséfo-
ne para viver com ele no sombrio submundo. Zeus, porém,
também temia se desentender com o irmão. Por isso, ele
disse a Hades que não poderia consentir, mas também
não poderia proibi-lo de tomar Perséfone para si. Hades
quis entender a resposta de Zeus como uma permissão e
tratou de realizar o seu intento.
Passando pela jovem deusa como um raio, Hades agarrou
Perséfone e a levou consigo para as regiões infernais. Os
berros da jovem encheram o ar, e Zéfiro, o Vento, carre-
gou os gritos de desespero através do mundo. Deméter
ouviu as súplicas da filha e, vestida de luto, saiu a sua pro-
cura. Ela cruzou rios, mares e montanhas em busca da
filha perdida. No décimo dia, encontrou Hecate, a deusa
Nutriz que concede o dom da prosperidade material. He-
cate a levou a Hélios, o Sol. Hélios, a divindade que tudo
vê, contou a Deméter sobre o rapto de Perséfone. Disse,
também, que Hades tinha o consentimento de Zeus para
fazer o que fez. Sentindo-se traída, Deméter jurou que só
devolveria a fertilidade da terra depois que sua filha lhe
fosse devolvida. Ela voltou, então, a vagar pelo mundo,
proibindo as sementes de brotarem e as árvores de pro-
duzir.
A mágoa de Deméter devastou a Terra. Os homens aravam
os campos e os semeavam, mas nada nascia. As árvores
frutíferas secavam. Não havia trigo, uvas ou olivas, e a
humanidade começou a padecer. Ao saber disso, Zeus
ordenou às moiras – as três irmãs que personificam o Des-
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
65
tino – que fossem ter com Hades e o ordenassem a liber-
tar Perséfone. O deus dos mortos concordou. Hermes, o
mensageiro dos deuses e guia das almas, a levou à mãe.
Deméter encheu-se de alegria ao ter a filha de volta. Sua
felicidade se irradiou pelo mundo, devolvendo a fertilida-
de aos campos.
Demeter (cópia romana de original grego do séc. 4 a.C.)
Hades, porém, tinha um trunfo escondido. Ele havia de-
terminado que Perséfone poderia voltar à superfície desde
que ela não tivesse comido nada no Tártaro. Para garantir
que Perséfone retornaria a ele, o apaixonado Hades havia
dado a ela uma semente de romã antes que ela partisse. A
jovem deusa teve, então, de voltar àquele reino sinistro.
Projeto Cultura e Memória
Uma vez mais Deméter se desesperou com a ausência da
filha e amaldiçoou a Terra. Vendo aquele estado de coisas,
Zeus, que a tudo ordena e harmoniza, interveio. O deus
supremo decretou que Perséfone deveria passar um terço
de cada ano com sua mãe e o restante do tempo com seu
consorte, Hades6. Graciosa e misericordiosa, Perséfone é
fiel a Hades. No entanto, ela não lhe deu filhos e, na ver-
dade, prefere a companhia de Hecate à do marido.
Tanto Perséfone como Deméter são personificações do
grão. Deméter é a velha semente, produzida no ano ante-
rior; Perséfone, por sua vez, é a semente plantada no ou-
tono e os brotos nascidos na primavera. O período em que
a semente permanece sob a terra corresponde ao tempo
que Perséfone passa com Hades no submundo7. Deméter
também se apresenta de diferentes formas. A Deméter
Negra personifica a terra improdutiva do inverno; a Demé-
ter Verde é a deusa dos brotos; e a Deméter Amarela é a
divindade da colheita.
Apesar de as sacerdotisas de Deméter terem sido respon-
sáveis por iniciar as noivas e os noivos nos segredos da
alcova, a deusa não tinha nenhum consorte.
Afrodite
Afrodite – a Vênus dos romanos – surgiu das águas, nasci-
da da espuma do mar, e, acompanhada de Amor e de De-
sejo, cavalgou as ondas numa concha até a Ilha de Chipre.
O mundo nunca tinha visto nada como ela: a perfeição
manifestada como mulher no apogeu da criação. Bela
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
67
como a existência, seu perfume de fêmea acelerou o tem-
po, embriagando o vento. Ela caminhou nua pela praia até
um rochedo – flores brotando do chão onde seus pés pisa-
vam. Então, ascendeu ao Olimpo, galgando o ar numa
revoada de pombos e pardais, e sentou-se no seu trono
junto aos outros deuses. As nuvens enrodilharam-se de
prazer saudando a deusa do Desejo e da Paixão.
Zeus a deu em casamento a Hefesto, o manco deus ferrei-
ro, e logo Afrodite o presenteou com três filhos: Fobos (o
Medo), Deimos (o Espanto) e Harmonia. Acontece que
nenhum dos três era, na verdade, filhos de Hefesto, mas
sim de Ares, o deus da Guerra. Hefesto só descobriu que
sua esposa o traía quando os dois amantes se demoraram
na cama, e Hélios, o Sol, os surpreendeu ao se erguer nu-
ma manhã. Hélios contou a Hefesto o que estava aconte-
cendo, e o deus do fogo planejou um meio de se vingar.
Para tanto, o ferreiro do Olimpo fabricou uma rede de
caça de bronze, tão fina quanto uma teia de aranha, mas
impossível de se quebrar. Secretamente, ele afixou a rede
sobre a cama e disse a Afrodite que iria fazer uma viagem
até a ilha de Lemnos. Afrodite, é claro, não se ofereceu
para acompanhar o marido na viagem, e assim que Hefes-
to virou as costas, ela correu para os braços de Ares. Os
dois se amaram a noite toda no leito da deusa, mas ao
amanhecer eles se viram presos na rede de caça – nus e
sem poder fugir. Era a hora esperada por Hefesto. O deus
do fogo os surpreendeu e chamou todos os olímpicos para
testemunhar sua desonra. Encolerizado, Hefesto afirmou
que só iria libertá-los depois que Zeus lhe devolvesse os
Projeto Cultura e Memória
presentes que havia recebido dele pela mão de sua filha
adotiva.
Os deuses todos correram para ver a situação dos aman-
tes, mas as deusas, por uma questão de delicadeza, fica-
ram em suas casas. Apolo perguntou a Hermes se ele se
importaria em estar no lugar de Ares. Hermes jurou que
não se incomodaria, mesmo que estivesse preso com três
redes e com todas as deusas a observá-lo. Mas enquanto
Apolo e Hermes riam divertidos, Zeus permanecia grave e
contrariado. Tendo uma especial predileção pela filha ado-
tiva, disse que não interferiria, nem devolveria os presen-
tes. Poseidon, por sua vez, procurou contemporizar, apoi-
ando Hefesto. “Já que Zeus se recusa a interferir”, disse
ele, “proponho que Ares pague o equivalente aos presen-
tes de casamento para ser libertado”. Hefesto concordou
com a ideia, mas impôs uma condição: “se Ares não pagar,
então você deve tomar o lugar dele na rede”. Poseidon
concordou: “se Ares não devolver os presentes, estou
pronto para pagar o debito e me casar com Afrodite”.
Assim, os amantes foram libertados. Ares foi para a Trácia,
enquanto Afrodite tratou de renovar sua virgindade, ba-
nhando-se no mar, como sempre fazia depois de usufruir o
amor. Lisonjeada pelo que Hermes havia dito sobre ela,
Afrodite foi procurá-lo e ofereceu-lhe uma noite de prazer,
da qual resultou em Hermafodito, um ser com os dois
sexos. Depois, agradecida pela intervenção de Poseidon, a
deusa do Desejo lhe deu dois filhos: Rodis e Herófilo.
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
69
Marte desarmado por Vênus e as Três Graças (Jacques-Louis David, 1824)
Eros
Algumas tradições contam que Eros, nascido do ovo uni-
versal, foi o primeiro deus, pois sem ele – o Amor – ne-
nhum outro mortal ou imortal poderia ter sido criado.
Outras fontes, porém, sustentam que Eros é filho de Afro-
dite com Hermes, ou Ares ou até mesmo com seu próprio
pai adotivo, Zeus.
Chamado pelos romanos de Cupido, a imagem universal
do deus Amor é a de um menino com asas douradas que
voa pelo mundo disparando flechas que incendeiam de
paixão o coração dos amantes. Uma versão diferente do
nascimento de Amor é contada pelo filósofo Platão, no seu
O Banquete.
Projeto Cultura e Memória
O Amor e Psique (William-Adolphe Bouguereau, 1889)
No palácio de Zeus, uma ceia foi preparada para receber a
recém-ascendida Afrodite e os deuses abandonaram-se à
celebração. Os brindes de néctar eram muitos, e logo es-
tavam todos entregues aos seus desejos. Dionísio embria-
gava-se de vinho; Hermes trapaceava no jogo de dados;
Apolo emanava música com sua lira. Mas a atmosfera lú-
brica da festa vinha de Afrodite que enfeitiçava a todos,
enchendo-os de lascívia. Recurso, filho de Prudência, tam-
bém estava no banquete e bebeu como nunca. Embriaga-
do, cambaleou até o jardim do palácio, deitou-se na grama
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
71
e dormiu. No entanto, não estava só. Entorpecido daquele
jeito, não percebeu que Pobreza esmolava no jardim as
sobras do banquete. Ela viu Recurso adormecido e achou
que poderia tirar vantagem da situação. Pensou um pouco
e achou que seria proveitoso ter um filho dele. E, como
uma lua no cio, deitou-se nua ao seu lado, beijando-o e
despindo-o, e os dois saciaram-se um com o outro. E as-
sim, desse encontro no jardim de Zeus, Pobreza concebeu
Amor, aquele que quer para si o bom e o belo.
Por causa da sua origem, a natureza de Amor é ambígua.
Como a mãe, ele é sempre pobre, necessitado, carente e
sem lar. O tempo todo na estrada, desabrigado, acompa-
nhado de sua eterna amiga, Necessidade. Mas como o pai,
Recurso, tem muito a oferecer. Decidido, enérgico, cheio
de trunfos e possibilidades. Paradoxal, está entre a sabe-
doria e a ignorância; o sofrimento e o êxtase. Busca a re-
conciliação dos opostos, renovando-os, criando uma coisa
nova dessa união. Nem mortal nem imortal, no mesmo
dia germina, vive, morre e de novo ressuscita. E por não
ser nem homem nem deus, Amor passou, então, a ser o
mensageiro entre imortais e mortais, habitando o coração
dos homens. Amor nem enriquece nem empobrece, por-
que aquilo que consegue sempre lhe escapa 8. Tal é a na-
tureza de Eros.
Hermes
O infiel Zeus gerou filhos em muitas ninfas – as descen-
dentes dos titãs –, deusas e, depois da criação do homem,
até mesmo em mulheres mortais. Com Maia, a mais jovem
Projeto Cultura e Memória
das sete filhas de Atlas, as Plêiades, Zeus teve um filho
excepcionalmente esperto e eloquente: Hermes, também
venerado pelos romanos como Mercúrio. Quando Hermes
nasceu, sua mãe o enrolou com faixas, como se fazia com
os bebês gregos. No entanto, o pequeno deus cresceu com
velocidade estonteante. Assim que Maia terminou de en-
volvê-lo, ele já era um menino, e, tão logo a mãe virou as
costas, Hermes escapuliu em busca de aventura. A primei-
ra coisa que fez o futuro deus dos ladrões foi roubar. Sua
vítima foi Apolo, de quem subtraiu doze vacas, cem novi-
lhas e um touro. Para não ser apanhado, Hermes amarrou
ramos de carvalho nos rabos do gado. Assim, a manada
roubada foi apagando seus rastros na medida em que
caminhava. Hermes também sacrificou duas novilhas aos
deuses do Olimpo e com suas tripas fez cordas para um
instrumento que inventou.
Apolo descobriu o roubo, mas foi enganado pelo truque
de Hermes. Sem poder encontrar as pegadas que levariam
ao seu gado, Apolo se viu obrigado a oferecer uma recom-
pensa a quem lhe entregasse o ladrão. Os sátiros – lúbri-
cas entidades da natureza, meio bodes, meio homens –
atenderam ao chamado de Apolo e se espalharam em
grupos pelos quatro cantos do mundo. Mas não tiveram
sucesso. Muito tempo se passou até que um desses gru-
pos de sátiros passou pela Arcádia e ouviu uma intrigante
música, vinda da entrada de uma caverna. A ninfa Cilene,
que estava ali perto, contou-lhes que o som vinha de um
instrumento inventado por uma criança extraordinária, da
qual ela estava cuidando. Amarrando as tripas das novi-
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
73
lhas sobre uma carapaça de tartaruga, Hermes havia fabri-
cado a primeira lira. Vendo duas peles de novilhas sendo
curtidas fora da caverna, os sátiros desconfiaram de que
tinham achado o gado roubado. Nesse instante, Apolo
apareceu. Furioso, entrou na caverna, acordou Maia, con-
tou-lhe do roubo e exigiu que Hermes devolvesse seu ga-
do. Maia apontou para o menino, que dormia tranquila-
mente em seu berço, com as faixas ainda enroladas ao
redor do seu corpo, e perguntou indignada como Apolo
ousava acusar uma criança de roubo. Mas Apolo já havia
reconhecido as peles das novilhas. Ele pegou Hermes pelas
mãos e o levou ao Olimpo, onde o acusou formalmente de
roubo, mostrando as peles como evidência. Como Maia,
Zeus também não quis acreditar que seu filho recém-
nascido fosse um ladrão. Apolo, porém, tanto fez e insistiu
que Hermes acabou confessando. “Venha comigo”, disse o
deus-menino, “e eu lhe devolverei o gado. Sacrifiquei ape-
nas duas novilhas, mas o fiz em honra aos deuses do Olim-
po, realizando o primeiro holocausto jamais feito”.
Os dois deuses voltaram ao Monte Cilene, onde ficava a
caverna em que Hermes vivia com a mãe, e o deus pegou
sua lira de carapaça de tartaruga. Apolo quis saber o que
era aquele estranho objeto, e, em reposta, Hermes tocou
uma canção. Em seguida, levou Apolo ao local onde havia
escondido o gado. Mas Apolo tinha ficado tão fascinado
com a lira que ofereceu seu gado em troca do instrumen-
to, o que Hermes aceitou imediatamente.
Enquanto Apolo se divertia com a lira, Hermes cortou ca-
niços e com eles fez uma flauta de pã. Ouvindo o novo
Projeto Cultura e Memória
instrumento, Apolo se encantou de novo. Ansioso para
possuir a flauta, Apolo ofereceu seu cajado de ouro em
troca dela. Hermes, porém, não aceitou de pronto. Disse
que sua flauta valia mais do que o cajado de ouro, mas
concordou em trocá-la se Apolo lhe desse também o dom
da profecia. “Isso eu não posso fazer”, respondeu Apolo.
“No entanto, minhas velhas amas, as Trias, ensinarão vo-
cê”. Assim, o cajado de ouro de Apolo passou às mãos de
Hermes.
Depois, Apolo voltou com o menino para o Olimpo e con-
tou a Zeus o que acontecera. O deus supremo não pôde
deixar de se divertir e, orgulhoso, elogiou o filho. “Então
faça de mim seu arauto e eu serei responsável pela segu-
rança da propriedade divina e nunca direi mentiras, apesar
de não poder prometer dizer sempre toda a verdade”,
pediu Hermes. Zeus concordou. “Sua tarefas também in-
cluirão proteger os tratados, o comércio, os ladrões e os
viajantes em qualquer estrada do mundo”, determinou o
Zeus, presenteando o filho com um chapéu para protegê-
lo da chuva e sandálias com asas, que o fariam veloz como
Zéfiro, o Vento. Hades também o convidou para ser seu
arauto, convocando os moribundos ao tocar suas frontes
com o cajado de ouro.
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
75
Atena e Hermes (Bartholomäus Spranger, c. 1585)
Logo depois, Hermes foi ter com as Trias, que lhe ensina-
ram a ver o futuro observando como pedregulhos se de-
positavam no fundo de uma vasilha de água. O inventivo
Hermes aperfeiçoou o método, criando um jogo de ossos e
a arte de adivinhação através deles. Ajudado pelas Moiras,
Hermes também inventou o alfabeto, a astronomia, a es-
cala musical, os pesos e as medidas, além do boxe e da
ginástica. A ele também é associado o planeta Mercúrio (o
nome do deus na mitologia latina), por causa da rápida
velocidade com que orbita o sol e da dificuldade em se
observá-lo9.
Projeto Cultura e Memória
Apolo
Com Leto, divindade da Noite, filha do titã Céu e de Febe,
Zeus teve Apolo e Ártemis. Leto precisou fugir da fúria de
Hera por toda a Grécia. Buscando um lugar onde pudesse
dar à luz seus filhos, Leto acabou encontrando um abrigo.
Sua irmã Astéria, por ter resistido às investidas de Zeus,
fora transformada numa ilha flutuante. Foi nessa ilha que
Apolo e Ártemis nasceram. Durante nove dias e nove noi-
tes, Leto esteve em trabalho de parto, dilacerada por do-
res terríveis. Todas as deusas estavam ao seu redor naque-
le momento difícil, menos Ilícia, a deusa dos partos felizes,
retida pela conversa de Hera. A esposa traída estava pos-
suída de ciúme doentio, pois sabia que a bela Leto daria à
luz um filho poderoso. As outras deusas, porém, enviaram
Íris – a deusa do arco-íris – para trazer Ilícia, prometendo
dar à divindade dos partos felizes um cordão de ouro se
ela viesse sem demora.
Quando Ilícia chegou, Ártemis, a irmã gêmea de Apolo já
havia nascido e ajudava a mãe no parto do irmão. Final-
mente, quando Apolo nasceu, Zeus desceu do Olimpo para
receber seus rebentos. A Apolo, o deus supremo deu uma
mitra de ouro, uma lira e uma carruagem puxada por cis-
nes brancos. Mas enquanto os imortais se regozijavam
com o nascimento, Hera ardia de ciúme e raiva. A vingati-
va deusa dirigiu a ira de Píton, uma gigantesca serpente
incumbida de guardar o oráculo de Gaia, contra a infeliz
Leto. Píton não a deixava em paz, perseguindo Leto até os
confins da terra. Apenas quatro dias depois do seu nasci-
mento, Apolo se armou com um arco e flechas feitos para
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
77
ele por Hefesto e foi em captura do inimigo mortal da sua
mãe. Ao chegar no monte Parnaso, onde a serpente o
espreitava, Apolo feriu Píton com uma saraivada de fle-
chas. O monstro buscou refúgio no oráculo de Gaia, em
Delfos, mas Febo, como Apolo era chamado em Roma, o
seguiu até lá e o matou impiedosamente. Depois de se
purificar do contato com a serpente, Apolo se apoderou
do oráculo e nele consagrou um tripé onde uma sacerdoti-
sa se sentava e recebia as mensagens divinas.
Certa vez, Febo desdenhou de Eros, que passava o dia
flechando o coração de homens e imortais. Disse que aqui-
lo não passava de uma brincadeira. Eros, então, feriu o
deus com uma das suas flechas da paixão e, ao mesmo
tempo, flechou Dafne – uma ninfa da montanha, compa-
nheira da sua irmã Ártemis – com uma seta de aversão.
Movido de amor e desejo, Apolo tentou abordar a solitária
ninfa, mas Dafne fugiu como uma gata que escapa da chu-
va. Apolo suplicou em vão que parasse, pois quem a per-
seguia era o deus da luz, filho do próprio Zeus, que des-
vendava o futuro aos homens. Apolo chegou mesmo a
alcançá-la, mas Dafne pediu ajuda a Gaia. Imediatamente,
a terra se abriu, e a ninfa desapareceu nas entranhas da
Grande Mãe. No lugar onde Dafne desapareceu, surgiu um
loureiro – que passou a ser a árvore privilegiada por Apo-
lo.
Projeto Cultura e Memória
Apolo Perseguindo Dafne (detalhe) – Carlo Maratti, 1681
Dafne não foi a única experiência amorosa infeliz de Febo.
O deus, porém, teve muitas outras amantes, as quais não
lhe resistiram. Ao contrário, deram-lhe muitos filhos, entre
eles Orfeu, o fundador dos Mistérios Órficos, e Asclépio, o
deus da medicina. Certas lendas o colocam até mesmo
com pai de Pitágoras. Como presidisse o cortejo das Mu-
sas, Apolo teve muitas amantes entre elas. Mas o deus da
luz não se limitava a amar somente mulheres. Uma vez,
ele se apaixonou por Jacinto, um adolescente dono de
estonteante beleza, filho do rei Amiclo, de Esparta. Um
dia, Apolo lançava discos às margens de um rio. Movido
pelo ciúme, o Vento Oeste, que também se apaixonara
pelo jovem príncipe espartano, desviou o disco e o fez
atingir o crânio de Jacinto, matando-o. Desconsolado,
Apolo o transformou na flor jacinto.
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
79
Outro amante do deus foi o mortal Ciparisso. O jovem
matou sem querer um gamo de chifres dourados consa-
grado às ninfas e, desconsolado pelo sacrilégio que come-
teu, acabou se suicidando. Comovido, Febo o transformou
em cipreste.
Apolo era também o deus da música10. Certa vez, Atena
inventou uma flauta de dois tubos e se pôs a tocar na as-
sembleia dos deuses. Apesar de a música agradar a todos,
Hera e Afrodite, suas rivais, riam-se divertidas. Atena des-
ceu ao mundo, então, e tocou a flauta nas margens de um
rio, observando o reflexo do seu rosto nas águas. Perce-
bendo o quanto parecia ridícula soprando aqueles tubos
com as bochechas inchadas, a deusa jogou a flauta fora e
voltou ao Olimpo. Marsias, um mortal que passava por ali,
achou a flauta e começou a tocá-la. Talvez porque o ins-
trumento estivesse imbuído da sabedoria da deusa, ou
talvez porque Marsias tivesse sido inspirado, a música que
saiu da flauta encantou homens e feras. Os camponeses
ignorantes começaram a dizer que Marsias tocava melhor
que o próprio Apolo – um boato que o incauto flautista
não cuidou de desmentir. Quando aquela afronta chegou
aos ouvidos do deus, ele desceu imediatamente à terra e
desafiou Marsias para uma competição. Quem vencesse
poderia infligir o castigo que bem entendesse ao perde-
dor. No entanto, nenhum dos músicos conseguia superar
ao outro. Apolo resolveu propor outro desafio: eles teriam
de tocar com as flautas invertidas e ao mesmo tempo can-
tar. Marsia não conseguiu vencer seu desafiante. O vinga-
tivo deus da música puniu Marsias exemplarmente: esfo-
Projeto Cultura e Memória
lou o músico vivo e pendurou sua pele num pinheiro, pró-
ximo da nascente do rio que desde então leva o nome do
infeliz flautista.
Os atributos de Febo-Apolo como deus da luz, da música,
da harmonia que rege a natureza, da profecia, da inspira-
ção poética, da medicina o tornam uma das mais impor-
tantes divindades do panteão grego. É provável que, origi-
nalmente, ele não fosse um, mas muitos deuses que aca-
baram se fundindo. Há indicações de que Apolo tenha sido
um deus solar originário da Ásia, cujo caráter teria se a-
malgamado ao de um deus campestre do norte da Grécia,
a divindade principal dos dórios.
Ártemis
Quando Ártemis, a divindade lunar, deusa das florestas e
da caça, cultuada em Roma como Diana, era ainda criança,
seu pai Zeus lhe perguntou o que ela queria de presente.
“Dê-me eterna virgindade”, pediu ela, “tantos nomes
quanto meu irmão Apolo, arco e flechas como os dele, a
tarefa de trazer a luz, uma túnica de caça que chegue aos
meus joelhos, sessenta ninfas do oceano como damas de
honra e vinte ninfas do rio para cuidar dos meus cães de
caça, todas as montanhas do mundo e apenas uma cidade
que me honre, pois pretendo viver nas montanhas a maior
parte do tempo”. Zeus riu e concedeu seus pedidos. Mas
em vez de apenas uma cidade, ele lhe deu trinta e, além
disso, a fez guardiã das estradas e dos portos.
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
81
Em seguida ela foi ao Oceano, escolher as ninfas que a
acompanhariam, e visitou os ciclopes. Deles, ela recebeu
um arco de prata e flechas. Pã, o deus dos pastores e dos
rebanhos, também presenteou a jovem deusa. Deu-lhe
dez cães de caça rápidos como o pensamento e capazes de
vencer até mesmo leões.
Ártemis, a eterna virgem, desejou ser livre dos caprichos
dos homens. Certa vez, o deus-rio Alfeu se apaixonou por
ela e a perseguiu por toda a Grécia. Quando ele estava
quase a alcançando, Ártemis sentou-se às margens de um
rio e cobriu seu rosto com lama, ordenando às suas ninfas
que fizessem o mesmo. Dessa forma. Alfeu não pôde mais
distinguir quem era a deusa e a deixou em paz.
Em outra ocasião, foi um mortal que ousou perturbar Ár-
temis. Actéon a surpreendeu nua, banhando-se num rio.
Não bastando isso, o incauto Actéon, em vez de se retirar,
aproveitou o prazer de observar a nudez da deusa. Árte-
mis, percebendo a presença do homem, transformou-o
num cervo e fez com que seus cães o estraçalhassem.
A severa Ártemis exigia a mesma castidade das suas nin-
fas. Quando seu pai seduziu uma delas, Calisto, Ártemis
percebeu e a transformou num urso, atiçando sua matilha
de cães de caça contra ela. Calisto teria sido despedaçada,
se Zeus não tivesse intercedido. No momento em que os
cães se atiravam sobre ela, Zeus a levou os céus e a trans-
formou numa constelação11.
Projeto Cultura e Memória
Diana (Artemis) Como Personificação da Noite - Anton Mengs c. 1765
Ares
O “deus que ama o sangue”, filho legítimo do casamento
de Zeus e Hera, é dotado de uma coragem cega e brutal,
cheio de fúria sanguinária. Na Ilíada, Homero conta que
Zeus definiu o próprio filho com estas palavras: “de todos
os deuses que habitam o Olimpo, você é o mais odioso,
uma vez que você não ama outra coisa senão a discórdia, a
guerra, os combates. Você tem o espírito intratável e in-
dócil da sua mãe, Hera, que muito me custa reprimir com
palavras”12. De fato, a não ser por Afrodite, sua eterna
amante, em quem Ares gerou Harmonia, Hades, que se
apraz ao receber as almas dos guerreiros mortos em bata-
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
83
lha, e sua irmã Eris, a Discórdia, Ares era odiado por seus
pares olímpicos.
O deus da guerra, chamado de Marte em Roma, combatia
a pé ou num carro de guerra puxado por quatro cavalos.
Nas batalhas, era auxiliado por quatro demônios-
escudeiros: seus dois filhos, Deimos, o Espanto, Fobos, o
Terror, e ainda Éris e Enio, o “destruidor de cidades”. Era
também acompanhado das Queres, lúgubres divindades,
sedenta do sangue dos guerreiros agonizantes.
Ares representava a força bruta, aquela que se opõe à
coragem inteligente e refletida, personificada no panteão
olímpico por Atena. Assim, Ares e Atena estavam sempre
numa luta constante. Mas é Atena quem sempre sai ven-
cedora – isto é, a inteligência sobre a força desmedida –,
como aconteceu na guerra de Tróia. Homero conta que
Ares lutou ao lado do príncipe troiano Heitor. Numa bata-
lha, Ares atacou o herói grego Diomedes. Ele não contava,
porém, que Atena, tornada invisível pelo capacete de Ha-
des, estava ao lado de Diomedes, protegendo-o. Atena
desviou o golpe de Ares e dirigiu a lança do mortal contra
o deus, ferindo-o. Ares soltou um grito pavoroso, que pa-
ralisou os dois exércitos combatentes, e se retirou da bata-
lha, fugindo para o Olimpo. Zeus recebeu o filho queixoso
e permitiu que Apolo lhe preparasse uma beberagem que
lhe acalmasse as dores.
Projeto Cultura e Memória
Detalhe de O Combate de Marte e Minerva (Jacques-Louis David, 1824)
Em outra ocasião, Ares enfrentou Heracles, por conta de
uma luta que o herói travou contra Cicno, filho do deus.
Destino havia determinado que Heracles não seria morto
por ninguém. Era Cicno, portanto, quem deveria padecer
na contenda, e Ares não aceitou. Cheio de fúria, armou-se
e saiu para defender o filho. Atena tentou chamá-lo de
volta à razão, lembrando que nem mesmo os deuses po-
dem interferir nas decisões de Destino. Ares, naturalmen-
te, não a escutou. Estava, como de costume, cego de raiva.
Durante a luta, Heracles o feriu na coxa, e o deus fugiu
vergonhosamente.
Ares também foi o primeiro réu a ser julgado por assassi-
nato. Conta-se que o deus da guerra surpreendeu Halirró-
cio, filho de Poseidon, tentando violentar sua filha Alcipe.
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
85
Como não poderia deixar de ser, Ares o matou. Poseidon,
porém, levou o caso ao tribunal dos deuses. Ares alegou
que agira em defesa da sua filha. E como não havia teste-
munhas, os deuses o absolveram.
Hefesto
O deus ferreiro, sobre quem Hesíodo afirma ser “entre
todos os filhos do Céu, o mais habilidoso em qualquer
arte”13, era feio, coxo e mal-humorado. Hesíodo conta que
Hera, por ter se desentendido com Zeus, o concebeu sozi-
nha, sem se unir ao marido ou a qualquer outro mortal ou
imortal. Mas Hefesto, cultuado em Roma como Vulcano,
era tão fraco e feio ao nascer que Hera, tentando se livrar
do embaraço, o jogou do alto do Olimpo – afinal, o infanti-
cídio não era uma prática incomum na Grécia antiga. He-
festo, porém, sobreviveu à queda. Ele caiu no mar e foi
salvo por Eurinome e Tétis. As duas deusas cuidaram dele
numa caverna submarina, onde Hefesto montou sua pri-
meira oficina. Grato à bondade das amas, o deus lhes fa-
bricava joias e objetos úteis de presente.
Nove anos se passaram assim. Um dia, Hera encontrou
Tétis e não pôde deixar de notar o belo broche que a ne-
reida usava. “Onde você conseguiu essa rara joia?”, quis
saber a rainha dos imortais. Tétis hesitou, mas acabou
contando toda a história. Fosse pelo interesse nos dons do
filho, fosse por ter se arrependido, Hera quis, então, se
reconciliar com Hefesto e o trouxe de volta ao Olimpo,
onde montou para ele uma nova oficina, muito maior e
Projeto Cultura e Memória
melhor equipada que a anterior. Além disso, ela providen-
ciou arranjos para casar o filho com Afrodite.
Apolo na Oficina de Vulcano (Diego Velásquez, 1630)
Ao que parece, mãe e filho se entenderam perfeitamente
bem. Tanto que Hefesto ousou reprovar Zeus, quando o
deus supremo pendurou Hera pelos pulsos do Olimpo, por
ocasião da revolta dos deuses, liderada por Hera. Irado,
Zeus jogou Hefesto do Olimpo pela segunda vez. O deus
passou um dia todo caindo e, ao atingir o chão, quebrou as
duas pernas. Passada sua fúria, Zeus o perdoou e o trouxe
de volta ao Olimpo. Hefesto, apesar de imortal, ficara coxo
com a queda. A partir de então, ele só podia andar com
muletas de ouro que ele mesmo fizera para si.
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
87
Dionísio
Quase sempre, pensa-se em Dionísio – o Baco romano –
apenas com o deus do vinho. Na verdade, a metáfora que
ele abrange é muito maior. Dionísio é, também, um deus
das árvores e da vegetação, o que consequentemente
encerra nessa divindade os mistérios da vida e da morte.
Patrono das árvores frutíferas – foi Dionísio quem desco-
briu todas elas –, os agricultores sempre colocavam uma
estatua de Dionísio em seus pomares e ofereciam ao deus
preces pedindo frutos em abundância. E entre todas as
árvores, o pinheiro era a que mais o representava14.
Dionísio era também o deus protetor dos maridos – do
homem comum que cumpre seu ciclo de existência, dei-
xando sua marca no trabalho e em outras ações e atitudes
humanas – e do êxtase místico – um atributo relacionado
aos efeitos do vinho.
Como outros deuses da vegetação, Dionísio teve uma mor-
te violenta, mas foi trazido à vida novamente. Nos seus
ritos, os fieis representavam o sofrimento, a morte e a
ressurreição do deus. Dionísio trazia em seu mito e ritual a
doutrina da imortalidade da alma – era a versão grega do
deus egípcio Osíris e do sumério Tamuz. O culto de Dioní-
sio era uma parte importante dos Mistérios Órficos. De
acordo com o mito órfico, o homem foi criado a partir das
cinzas de Dionísio e dos titãs. A alma, isto é, Dionísio, era
divina, mas o corpo, representado pelos titãs, a mantinha
presa. A alma só seria libertada através de práticas ascéti-
cas15.
Projeto Cultura e Memória
Dionísio era, como muitos olímpicos, filho bastardo de
Zeus com Sêmele, uma mortal fulminada pelo ciúme de
Hera. A esposa de Zeus, ao saber que Sêmele daria um
filho ao seu marido, apareceu à mortal transfigurada numa
velha. Hera elogiou sua avançada gravidez e sugeriu mali-
ciosamente que Sêmele pedisse ao seu amante que ele se
mostrasse a ela em toda a sua glória. A infeliz mortal não
suspeitou da perfídia de Hera e aceitou o conselho. Pri-
meiro fez Zeus jurar que a atenderia; depois pediu. Numa
intensidade apocalíptica, Zeus se transformou em luz e
raios. Sêmele não suportou a visão e tombou fulminada.
Mas a criança em seu ventre não morreu. Hermes retirou-
a do útero da mãe morta e a costurou na coxa de Zeus,
pois ainda faltava algum tempo para ela nascer. No devido
tempo, Dionísio veio ao mundo. (Em outra ocasião, Dioní-
sio desceu aos infernos para resgatar Sêmele e a levou ao
Olimpo, onde ela foi imortalizada).
Hera, porém, continuou a nutrir seu ódio pelo filho do
marido. Numa antiga versão cretense do mito de Dionísio,
Zeus teve de se ausentar e preparou Dionísio para ficar em
seu lugar. Assim que ele partiu, Hera imaginou uma forma
de se livrar do bastardo indesejável. A deusa ludibriou
Dionísio com palavras doces e o entregou aos titãs, os
quais o desmembraram ainda vivo e o devoraram. Atena,
porém, vendo o que havia acontecido ao seu irmão, guar-
dou seu coração. Quando Zeus voltou ao palácio, Atena
contou a ele o que havia acontecido e entregou-lhe o co-
ração de Dionísio. Como vingança, Zeus torturou os titãs
até a morte. Desolado, Zeus encerrou o coração de Dioní-
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
89
sio numa arca que, por sua vez, colocou num templo cons-
truído em honra do filho. Logo depois do seu sepultamen-
to, Dionísio ergueu-se dos mortos e ascendeu aos céus,
onde assumiu seu lugar, à direita de Zeus pai.
Detalhe de Baco (Caravaggio, 1593/4)
Héstia
Filha de Reia e de Crono, Héstia – ou Vesta, na mitologia
romana – é a personificação da antiga divindade protetora
do lar, o Fogo do Lar. Héstia é a única entre os deuses o-
límpicos que nunca participou de guerras e disputas. Como
Ártemis e Atena, Héstia não teve consortes ou amantes.
Ela resistiu a todas as propostas feitas a ela. Dizem que
Projeto Cultura e Memória
depois que Crono foi destronado, Poseidon e Apolo vieram
propor se casar com ela. Os rivais se exaltaram, e Héstia,
para pôr um fim à disputa, jurou por Zeus que permanece-
ria virgem para sempre. Por conta de ter preservado a paz
entre os olímpicos, a partir de então, Zeus a premiou com
a primeira vítima de qualquer sacrifício público.
Detalhe de Sacrifício à Deusa Vesta (Sebastiano Ricci, início séc. 18)
Como deusa do Fogo do Lar, Héstia também personifica a
proteção e misericórdia que os lares das pessoas repre-
sentam. Ela era cultuada em todas as casas gregas como a
mais branda, caridosa e elevada entre os deuses olímpi-
cos.
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
91
A Revolta dos Gigantes
Depois de Zeus, Hades e Poseidon terem destronado Cro-
no eles puderam assumir a ordem do Universo e estabele-
cer suas harmonias. Mas os que os olímpicos não espera-
vam era uma revolta dos antigos inimigos. A raiva que os
gigantes – filhos de Gaia fecundada pelo sangue de Urano,
quando Crono o mutilou – nutriam por Zeus e seus irmãos
por terem prendido seus irmãos, os titãs, no Tártaro, não
podia ser mitigada. Sem qualquer aviso, os 24 gigantes se
ergueram no cume das montanhas mais altas e bombar-
dearam o Monte Olimpo com rochas e enormes árvores
em chamas. Os imortais se viram presas da ameaça dos
gigantes. Hera profetizou que os gigantes não poderiam
ser mortos por nenhum deus, apenas por um único mortal
vestindo uma pele de leão; e até mesmo Heracles, o mor-
tal em questão, não poderia fazer nada a não ser que os
olímpicos se tornassem invulneráveis pelo efeito de certa
erva que crescia num lugar secreto. Zeus ordenou Atena
que fosse chamar Heracles, enquanto ele mesmo iria pro-
curar a tal erva. Para que os gigantes não o vissem, o deus
proibiu que Hélios – o Sol –, Eos – a deusa que descerra as
pálpebras do dia – e Selene – a Lua – de brilharem, en-
quanto ele empreendia a busca. Sob a luz das estrelas,
Zeus encontrou a erva da invulnerabilidade e a trouxe de
volta aos céus. Finalmente, os olímpicos estavam prontos
para o combate.
Heracles disparou a primeira seta contra Alcioneu. O líder
dos gigantes tombou ferido, mas não morreu. Ergueu-se
furioso e prosseguiu a batalha, pois havia sido atingido na
Projeto Cultura e Memória
sua terra natal, Palena, onde nada poderia afetá-lo. Atena
mandou, então, que Heracles arrastasse o gigante para
outras terras, onde poderia ser morto. O herói combateu o
gigante até a Trácia, onde o matou com sua clava.
Entrementes, o gigante Porfírio havia empilhado monta-
nhas e rochedos, formando uma grande pirâmide, através
da qual chegou aos céus, onde os olímpicos combatiam.
Imediatamente, Porfírio avançou sobre Hera – os dedos de
pedra a estrangular a deusa. Eros, indo ao socorro de He-
ra, atirou uma de suas flechas no fígado de Porfírio. O
gigante foi, então, tomado de lascívia e, em vez de liquidar
Hera, tentou possuí-la. Foi quando Zeus entrou em cena,
descarregando sobre Porfírio a fúria de todos os raios do
céu. Porfírio caiu neutralizado. No entanto, como Hera
havia predito, nenhum deus conseguiria abater qualquer
gigante. Porfírio se ergueu novamente, mas foi apenas
para ser atingido por umà flechada letal de Heracles.
O herói se virava de um lado para outro disparando setas
sem parar, ajudando os deuses a abater os gigantes. Elfia-
tes, que havia instigado em seus irmãos o ódio contra os
olímpicos, tinha derrubado Ares. O deus da guerra jazia de
joelhos, prestes a receber o golpe de misericórdia, quando
Apolo o salvou, cravando uma flecha no olho esquerdo de
Elfiates. Heracles terminou por abater o gigante com outrà
flechada.
Perdidos com a morte dos seus líderes, os invasores fugi-
ram, perseguidos pelos deuses. Atena lançou uma enorme
rocha sobre Encélado. O gigante ficou sepultado sobre a
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
93
gigantesca laje, a qual veio a ser a Sicília. Até hoje, seus
habitantes dizem que quando Encélado se vira em sua
tumba, a ilha toda treme.
Poseidon fez a mesma coisa com Polibotes. O deus do mar
perseguiu o gigante até Cós, onde fincou seu tridente na
terra, arrancando um enorme pedaço da ilha. Poseidon
lançou, então, a rocha sobre Polibotes, matando-o e for-
mando a ilhota de Nisiros.
Os gigantes que restaram tentaram se abrigar em Batos,
mas foram alcançados e executados por seus perseguido-
res com a ajuda de Heracles. Todos os deuses haviam par-
ticipado da luta, exceto Héstia e Demeter, que permane-
ceram aflitas assistindo sua família derrotar os terríveis
gigantes16. A guerra estava ganha. Os olímpicos se cobri-
ram de glórias. Agora, poderiam restabelecer a ordem do
Cosmos, que tinha sido abalada. Assim imaginavam. No
entanto, um perigo ainda maior iria logo ameaçá-los no-
vamente.
Tífon
Gaia, a Mãe Terra, chorou a morte de seus filhos, e sua
mágoa se solidificou em raiva. Buscando apaziguar sua dor
na vingança, Gaia deitou com Tártaro – o elemento pri-
mordial do mundo17 – e gerou seu filho mais novo, Tífon.
Nada havia sido criado, até aquele momento, tão mons-
truoso e poderoso quanto Tífon. Meio homem, meio ser-
pente, sua força rivalizava com a do próprio Zeus. Era e-
norme: sua cabeça tocava as estrelas, e seus braços se
Projeto Cultura e Memória
estendiam do nascente ao poente. Dos seus ombros, er-
guiam-se centenas de cabeças de serpentes, todas sibilan-
do gigantescas línguas de fogo, enquanto os milhares de
olhos do monstro dardejavam chamas. Suas muitas vozes
produziam sons que os deuses compreendiam, mas tam-
bém rugiam, mugiam, latiam, baliam e sibilavam com uma
intensidade que fazia as montanhas ruírem18.
Tífon se voltou para o Olimpo, buscando assumir o contro-
le do Cosmos. Vendo-se ameaçados por aquela criatura
apocalíptica, os deuses fugiram para o Egito, onde, para se
disfarçar, assumiram a forma de animais. A corajosa Atena
foi a única que ficou para enfrentar o monstro, acusando
Zeus de covardia. As palavras da filha trouxeram o deus
supremo de volta a si. Zeus assumiu sua forma verdadeira
e lançou um raio sobre Tífon, seguido de um golpe da
mesma foice usada para castrar Urano. Tífon fugiu para o
Monte Casio, com Zeus nos calcanhares. Quando o deus
alcançou seu inimigo, os dois se engalfinharam. Tífon se
enrodilhou em torno de Zeus, o desarmou e cortou com a
foice os tendões das suas mãos e pés. Em seguida, enrolou
os tendões em uma pele de urso e levou seu prisioneiro
para uma caverna, deixando-o sob a guarda de sua irmã
Delfines – como ele, meio cobra, meio mulher.
Zeus fora derrotado. Com os tendões cortados, não podia
se mexer. Os deuses ficaram ainda mais desanimados.
Tífon poderia, agora, controlar o Cosmos. Mas Hermes e
Pã – o deus dos pastores e dos rebanhos – não aceitaram a
derrota. Os dois entraram secretamente na caverna onde
Zeus jazia prisioneiro, e Pã, com um grito terrível, assustou
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
95
Delfines. Aproveitando a distração da monstruosidade,
Hermes pegou os tendões de Zeus da pele de urso e os
reimplantou em seu pai. Em seguida os três fugiram para o
Olimpo.
Zeus combatendo Tífon (detalhe de ânfora grega, c. séc. 5 a.C.)
Mal se recuperou dos ferimentos, Zeus retornou à luta.
Cruzando os céus num carro de guerra puxado por cavalos
alados, o deus supremo voltou a atacar Tífon com seus
raios. O monstro, por sua vez, atirava montanhas inteiras
sobre Zeus. A batalha dilacerava Gaia – a Mãe Terra –,
rasgando o chão, abrindo vales e moldando uma nova
paisagem na deusa. Finalmente, Zeus conseguiu ferir Tífon
gravemente. Buscando sobreviver, Tífon se refugiou na
Sicília. Mas foi em vão. Zeus o liquidou, esmagando-o sob
uma enorme laje de pedra, que veio a ser o Monte Etna19.
Projeto Cultura e Memória
Notas do Capítulo
1 – Ortopedia Brasileira – Momentos, Crônicas e Fatos –
Claudio Blanc e Mânlio Napoli, SBOT, São Paulo, 2000, p.
10
2 – The Masks of God: Occidental Mythology – Joseph
Campbell, Arkana, New York, 1991, p. 150
3 – Greek Myths – Robert Graves, Penguin Books, London,
1981, p. 16
4 – Dicionário da Mitologia Grega – Ruth Guimarães, Cul-
trix, São Paulo, 1993, p. 262
5 – Theogony – Hesíodo, Online Medieval and Classical
Library Release #8, 2006, in
http://omacl.org/Hesiod/theogony.html, versos 767 - 774
6 – Crete & Pre-Helenic Myths and Legends – Donald A.
Mackenzie, Studio Editions, London, 1995, pp. 178-180
7 – The Golden Bough – James G. Frazer, Gramercy Books,
New York, 1981, vol. II pp. 44-48
8 – Os Pensadores vol. III – Diálogos, Platão, Abril Cultural,
São Paulo, 1972, p. 41
9 – The Hutchinson Dictionary of Symbols – Jack Tresidder,
Helicon, Oxford, 1997, p. 132
10 - Theogony – Hesíodo, versos 75-103
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
97
11 - Greek Myths – Robert Graves, p. 34
12 – citado in Dicionário da Mitologia Grega – Ruth Guima-
rães, p. 67
13 – Theogony – Hesíod versos 924-929
14 - The Golden Bough – James G. Frazer, vol. I pp. 321
15 – The Masks of God: Occidental Mythology – Joseph
Campbell, Arkana, New York, 1991, p. 183
16 - Greek Myths – Robert Graves, Penguin Books, London,
1981, p. 46
17 - Dicionário da Mitologia Grega – Ruth Guimarães, Cul-
trix, São Paulo, 1993, p. 282
18 – The Masks of God: Occidental Mythology – Joseph
Campbell, p. 23
19 – Greek Myths – Robert Graves, p. 47
Projeto Cultura e Memória
5
Heróis
s heróis gregos são figuras emblemáticas, muitas ve-
zes baseadas em lendários homens de ação – reis,
líderes, guerreiros, poetas, músicos, atletas. Alguns
deles, como Heracles, foram divinizados e elevados à con-
dição de imortais. A disposição que os levou a realizar seus
feitos era observada como um ideal a ser buscado. Os
heróis são imagens que modelam decisivamente a vida
das pessoas, inspirando-as e orientando-as – mesmo hoje,
uma época em que os mitos foram reduzido a estereóti-
pos. Ser um herói é o que todos almejam – no Brasil mo-
derno ou na Grécia clássica –; tornar-se herói é, simboli-
camente falando, a realização maior que um homem ou
uma mulher podem atingir no seu ciclo de existência. É
uma iniciação – a grande iniciação.
As aventuras vividas pelos heróis em suas sagas se basei-
am na fórmula representada nos rituais de passagem – os
O
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
99
ritos que iniciam uma pessoa nas diversas fases da vida,
como o bar mitzvá judaico ou a primeira comunhão dos
católicos –, isto é, separação, iniciação, retorno. “Um herói
vindo ao mundo cotidiano se aventura numa região de
prodígios sobrenaturais; ali encontra fabulosas forças e
obtém uma vitória decisiva; o herói retorna de sua miste-
riosa aventura com o poder de trazer benefícios a seus
semelhantes”1.
As narrativas dos mitos e lendas de praticamente todas as
culturas – grega, romana, egípcia, suméria – obedecem
quase sempre ao padrão que o mitologista norte america-
no Joseph Campbell (1904 – 1987) chamou de Ciclo do
Herói. Na imensa maioria das histórias, o ponto inicial da
trama é a falsa estabilidade em que o protagonista se en-
contra. De repente, são detonados acontecimentos que
levam o herói rumo a seus maiores potenciais, numa via-
gem que vai da luz de volta à luz, através da sombra da sua
alma. É a jornada pela qual Psique passou para reconquis-
tar o amor do deus Eros, ou que Jasão empreendeu para
se apoderar do Velo de Ouro.
Logo no início das histórias, o mundo do protagonista é
virado de cabeça para baixo por um erro vindo de desejos
e conflitos reprimidos. Isso faz com que o personagem
perca totalmente o controle da situação. Outras vezes é
um acontecimento externo, como uma tragédia, que colo-
ca em movimento um processo que fará do protagonista
um herói. Campbell chamou esse momento de Separação,
o começo da descida rumo ao reino da noite, do desco-
nhecido.
Projeto Cultura e Memória
A partir de então, a instabilidade é constante e a tensão
cresce à medida que uma crise se soma à outra, desafian-
do o protagonista a superá-las, num crescendo que culmi-
nará no clímax da história. Essa parte da epopeia Campbell
batizou de Descida. É quando surge o Guia para orientar o
protagonista. Esse guia pode ser qualquer coisa que con-
duza o herói na sua aventura: um artigo de jornal, uma
situação ou uma pessoa. No mito do Minotauro, o guia
que aparece para Teseu é Ariadne, que lhe propõe que se
case com ela em troca de um meio para voltar das trevas:
um novelo de lã que, desenrolado na entrada do labirinto,
permitiria a Teseu segui-lo de volta à luz, depois de ter
matado o monstro.
A jornada inicia seu período mais crítico com a entrada do
protagonista no reino da noite, onde tudo é absolutamen-
te desconhecido. Isso é marcado com o surgimento de um
novo personagem, que é o guardião do Limiar entre os
reinos da luz e da sombra, os reinos do conhecido e do
desconhecido: o Antagonista. A batalha que se trava entre
eles leva o protagonista ao que Campbell chamou de Inici-
ação. Embora inimigos, o protagonista e o antagonista são
dois aspectos opostos da mesma verdade, cuja união ofe-
rece a complementação daquilo que o herói é verdadei-
ramente. Esse encontro, portanto, busca completar o per-
sonagem foco, pois o antagonista é e possui o que o herói
não é e não tem. Esses valores serão adquiridos através do
conflito.
As dificuldades aumentam exigindo que o protagonista
busque meios para responder a elas, até que a tensão –
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
101
física, psicológica, do ambiente – acaba por esgotá-lo: o
ponto onde tudo parece perdido. É quando Tífon corta os
tendões de Zeus e aprisiona o deus numa caverna, ou
quando Ares, derrotado em combate pelo gigante Elfiates,
está para receber o golpe de misericórdia. Nesse momen-
to agentes externos interferem para o bem do herói, ou
então o protagonista consegue encontrar um reservatório
de energia psíquica que lhe dá recursos até então desco-
nhecidos para superar a crise, para dar a resposta mais
eficiente, para vencer ou renunciar. Quando Zeus jaz prisi-
oneiro de Tífon, Hermes e Pã surgem para libertá-lo; antes
que Elfiates matasse Ares, uma flecha de Apolo derruba o
gigante – e o herói vence. É o que Campbell chamou de
Iniciação. Na história de Heracles, essa iniciação pode ser
representada pela pele de leão – sua armadura e símbolo.
Quando o herói enfrentou o Leão de Nemeia, dentro do
covil da fera, e as armas do herói se mostram inúteis. A
clava não teve efeito contra os duros ossos do animal, as
flechas mal roçaram a pele impenetrável. Heracles teve de
bloquear uma das saídas da cova e lá entrar para comba-
ter com as mãos nuas, terminando por estrangular o leão.
Depois, a iniciação: Heracles tira a pele e faz dela sua ar-
madura. É por isso que o herói é sempre representado
envolto na pele do Leão de Nemeia: sua recompensa, seu
principal trunfo. Ela representa a força do antagonista que
ele conquistou, aquilo que foi buscar ao fazer a jornada e
que o transforma em herói. É esse o sentido do ato cani-
bal, comum entre os antepassados dos índios brasileiros,
de devorar o inimigo para absorver suas forças.
Projeto Cultura e Memória
Depois do triunfo há o Retorno, a volta para a posição
inicial da história, onde tudo se conhece e se controla.
Agora, porém, o protagonista é um herói, achou, como
Jasão, um tesouro e volta para casa libertar o seu povo do
jugo do tirano usurpador.
É, portanto, essa estrutura narrativa que reflete a força do
herói. Assim, a figura do herói é cultuada como uma metá-
fora dos valores encarnados por uma sociedade e uma
inspiração e orientação para os homens e mulheres dessa
cultura.
Herói e Heroína (detalhe de afresco de Jacques Iverny, c. 1420)
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
103
Os Doze Trabalhos de Heracles
Eracles, uma das figuras mais ricas e complexas da
mitologia ocidental, é hoje mais lembrado pelo seu
nome romano, Hércules. Suas lendas, contadas e re-
contadas em todo o mundo greco-romano, estiveram em
constante evolução desde a época pré-helênica até o final
da Antiguidade. Talvez Heracles tenha sido uma figura
histórica, um civilizador que introduziu modos e conceitos
entre os povos que vieram a formar os gregos, ou talvez
tenha sido um guerreiro ou líder militar que realizou proe-
zas que o tornaram lendário. Essa hipótese, porém, se
perde nos séculos, sem poder ser provada.
Heracles havia nascido de uma das muitas aventuras amo-
rosas de Zeus. Sua mãe, Alcmena, rainha de Tebas, era um
mulher de beleza sem igual; e além de bela, Alcmena per-
meava com sua graça todos que dela se aproximavam.
Zeus havia decidido gerar um herói tão forte e virtuoso
como jamais houvera e resolveu que Alcmena seria a mãe
ideal para seu filho. Mas a rainha era esposa virtuosa e
não trairia Anfitrião, seu marido, nem mesmo com Zeus. E
para cumprir seu intento, mais uma vez o deus supremo
lançou mão de um estratagema. Quando o rei estava lon-
ge de casa, travando uma guerra, Zeus se transfigurou em
Anfitrião e, sob essa forma, entrou no seu palácio. Todos
os receberam como o senhor de Tebas e nem mesmo
Alcmena desconfiou. A rainha ficou feliz em receber notí-
H
Projeto Cultura e Memória
cias de que sua campanha tinha sido bem sucedida e parti-
lhou seu leito com o marido, recebendo em si o entusias-
mo da vitória que seu suposto senhor trazia para casa. A
noite de amor durou três dias, pois Zeus havia ordenado a
Hélios, o Sol, que não se erguesse a não ser depois de
transcorrido esse tempo.
Depois de usufruir da união com a mortal, Zeus partiu, e
Anfitrião chegou em seguida. Alcmena surpreendeu-se ao
ver o marido de volta tão rapidamente. E espantou-se
mais ainda quando Anfitrião disse não se lembrar nada
dos carinhos que dedicara à esposa na (longa) noite ante-
rior. O rei, por sua vez, também se alarmou quando soube
que Alcmena já conhecia todos os incidentes da campanha
que acabara de empreender. Desconfiado, Anfitrião foi
consultar Tirésias, o vidente. O velho cego lhe revelou o
estratagema de Zeus. Anfitrião ficou enfurecido. Buscando
vingança, mandou amarrar Alcmena numa estaca em meio
a uma pilha de lenha. No entanto, quando o rei ordenou
que a pira fosse acesa, uma forte chuva desabou, apagan-
do as chamas. Anfitrião entendeu a vontade de Zeus e
desistiu da vingança. Calou e aceitou o filho que o deus
gerara em sua esposa. Tomou-o como seu e o chamou de
Palemon.
Zeus zelava, de fato, para que o filho fosse um prodígio,
um homem perfeito. A seu pedido, Atena o escondeu nu-
ma fenda, na muralha de Tebas, e casualmente convidou
Hera para dar uma caminhada. Sem que Hera desconfias-
se, Atena a levou até onde estava o pequeno Heracles. Ao
ver o bebê abandonado, Hera ficou condoída e, estimula-
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
105
da por Atena, ofereceu seu peito, que ainda tinha leite, ao
menino. Heracles sugou com tanta força, que o leite de
Hera jorrou no espaço, criando a Via Láctea. Ao perceber o
estratagema, já era tarde. Heracles havia sido alimentado
com seu leite sagrado e agora ele se tornaria o homem
mais forte do mundo.
Hera, porém, não aceitou a criança. A deusa estava decidi-
da a destruir mais aquele bastardo – além de tudo, ela se
sentia humilhada por sua rival ser uma mortal. Quando
Heracles tinha oito anos, Hera buscou realizar sua vingan-
ça. Ela fez aparecer duas serpentes na cama do menino.
Mas em vez de se tornar vítima, Heracles, revelou seu dom
de herói. Agarrando as serpentes, ele estrangulou as duas.
A tentativa falhou, mas Hera não desistiria da vingança.
Heracles estrangulando as serpentes (gravura florentina, c. 1600)
Projeto Cultura e Memória
Assistido pelos mais ilustres mestres, o menino teve a
melhor educação que se poderia ter. Lino, filho do deus
Apolo, ensinou a Heracles a arte das letras; Eurito, um
arqueiro tão bom que era considerado filho de Apolo, o
arqueiro divino, ensinou o futuro herói a manejar essa
arma; e com Eumolpo, um músico que rivalizava com o
próprio Orfeu, Heracles aprendeu a tocar cítara e a cantar.
Dizem que Heracles também aprendeu filosofia e astro-
nomia, mas não se sabe quem foram seus professores.
Além disso, era versado na interpretação de augúrios.
Apesar da educação voltada para as artes e literatura,
Heracles se revelou mesmo um guerreiro e um arqueiro
como jamais houvera outro. O próprio rei Anfitrião, seu
pai adotivo, ensinou o enteado a conduzir o carro de guer-
ra.
E foi durante sua educação que a natureza ariana de Hera-
cles aflorou pela primeira vez. Uma vez, Lino zombou dele
por ter escolhido um tratado sobre culinária para estudar.
Enfurecido, o adolescente Heracles arremessou sua lira na
cabeça do mestre. Heracles, porém, não conhecia sua
força, e a violência do golpe acabou matando o tutor. Anfi-
trião puniu seu enteado, mandando-o trabalhar como
pastor, nas montanhas, onde ficou até completar dezoito
anos.
Naquela região, havia um leão atacando as ovelhas e fa-
zendo vítimas até mesmo entre os aldeões. A fera, chama-
da de Citaeron, espalhara pânico e destruição para além
do reino de Anfitrião, até Téspia. Depois de cumprir o cas-
tigo determinado por Anfitrião, Heracles quis acabar com
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
107
a ameaça do leão Citaeron e foi em busca do seu covil. No
caminho, ele se hospedou no palácio do rei Téspio, senhor
do reino da Téspia, onde foi muito bem recebido. Tendo
ouvido falar do prodigioso filho de Zeus, Téspio fizera pla-
nos para Heracles. O rei tinha cinquenta filhas e temendo
que alguma delas se cassasse com alguém sem valor, re-
solveu que cada uma delas teria um filho de Heracles.
Assim, Téspio fez com que Heracles passasse cinquenta
noites em seu palácio, cada uma delas em companhia de
uma das suas filhas. Algumas versões, porém, dizem que
Heracles possuiu as cinquenta filhas de Téspio numa só
noite. Apenas uma delas recusou Heracles e permaneceu
virgem, servindo como sacerdotisa no templo do herói até
a morte. Assim, Heracles gerou cinquenta e um filhos nas
princesas de Téspia. A mais velha delas, Procris, e a mais
nova lhe deram gêmeos. Esses netos de Téspio não morre-
ram. Quando chegou o tempo de sua passagem para o
outro mundo, dormiram um sono profundo, eterno. Seus
corpos não se corromperam e nem foram enterrados.
Depois dessa aventura, Heracles finalmente deixou o palá-
cio de Téspio e foi abater Citaeron, o que não lhe custou
muito trabalho. Seja como for, esse foi seu primeiro feito
heroico.
Ao voltar para o palácio do seu padrasto, Heracles cruzou
com uma embaixada de um reino próximo, Orcomeno. Os
membros da comitiva desdenharam do rapaz e informa-
ram que estavam indo a Tebas, cobrar um tributo devido
por um antigo crime. Seu rei Climeno havia sido morto
numa disputa com os tebanos. Ergino, filho de Climeno,
Projeto Cultura e Memória
vingou a morte do pai sitiando e derrotando Tebas. Então,
exigiu que a cidade pagasse um tributo anual de cem bois
durante trinta anos. Do contrário, Ergino cortaria as ore-
lhas, o nariz e as mãos de todos os tebanos. Heracles es-
tava cheio de si depois de ter matado o leão e de ter sido
celebrado como herói em Téspia e, ao ser informado das
intenções dos orcomenianos, resolveu expressar em nome
de todos os tebanos – inclusive de seu rei, Anfitrião – que
eles não aceitariam imposições. E Heracles fez isso não
com palavras, mas com ação. Ele cortou o nariz, as orelhas
e as mãos de todos os membros da comitiva e os mandou
de volta, como uma mensagem viva do que aconteceria
aos orcomenianos se voltassem a cobrar tributos dos te-
banos.
Ao saber do que aconteceu à sua embaixada, Ergino, rei de
Orcomeno, exigiu que os tebanos lhe entregassem Hera-
cles. O herói, porém, conclamou Tebas a resistir. Ele per-
correu os templos da cidade e recolheu todas as armas,
escudos, armaduras e capacetes que haviam sido oferta-
dos aos deuses como espólio de guerra. Com esse equi-
pamento, armou e treinou os cidadãos de Tebas – e bem a
tempo. Ergino já ordenara que seu exército marchasse
sobre Tebas. Não contava, porém, que enfrentaria um
homem de força sem igual, filho do próprio Zeus. Heracles
e seus homens emboscaram as forças de Ergino num desfi-
ladeiro. Derrotados, os orcomenianos bateram em retira-
da, mas Heracles os perseguiu e matou Ergino à flechadas.
Os tebanos exultaram. Finalmente tinham se livrado do
jugo de Orcomeno. No entanto, a vitória teve seu preço.
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
109
Entre as baixas de Tebas estava o padrasto de Heracles, o
rei Anfitrião.
Depois de bater as forças de Ergino, Heracles entrou em
Tebas como herói. Ele, que havia sido banido como um
criminoso, condenado a viver entre os pastores numa al-
deia distante, retornava agora em triunfo. O novo rei, Cre-
on, lhe deu o título de Protetor da Cidade e a mão da sua
filha mais velha, Megara. Sua lenda começava a ser soli-
damente construída, e Heracles cuidou de acrescentar
mais andares ao seu templo de fama.
O Grande Hércules (Hendrick Goltzius, c. 1595)
Projeto Cultura e Memória
Depois de gerar filhos em Megara – algumas fontes falam
de dois, outras de oitos –, chamados Alcaides, Heracles se
voltou contra os eubeus, tradicionais inimigos de Tebas.
Como não poderia deixar de ser, o herói os derrotou, mas
horrorizou toda a Grécia com o castigo que impôs a Pira-
ecmus, rei de Eubeia: fez com que dois cavalos o puxas-
sem até desmembrar seu corpo, o qual deixou insepulto às
margens do rio Heracleio.
Os 12 Trabalhos de Heracles
O barbarismo de Heracles chocou não só o mundo civiliza-
do, mas também os deuses – exceto, claro, Ares e seus
pares. A velha raiva de Hera pelo filho bastardo de Zeus se
acendeu de novo. Os excessos de Heracles justificavam
uma intervenção divina, especialmente porque ele era um
herói, um exemplo para todos os gregos. Hera o puniu,
então, com a loucura. Tomado de uma fúria cega, Heracles
viu inimigos em sua própria família e matou seus próprios
filhos, cujos corpos ele queimou numa enorme pira, dei-
xando suas almas para sempre sem lar.
Quando recuperou a razão, Heracles se fechou dentro de
si mesmo. Deprimido, retirou-se para uma câmara escura
e sem janelas, onde permaneceu trancado e sem nenhum
contato com o mundo exterior durante vários dias. Ao sair
do retiro, foi purificado pelo rei Téspio – o rei-sacerdote
em cujas filhas Heracles tinha gerado cinquenta e um fi-
lhos. Depois, Heracles viajou até Delfos, consultar o orácu-
lo de Apolo, buscando saber o que poderia fazer para
compensar a hediondez que havia praticado.
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
111
O oráculo de Delfos ficava num promontório, cercado por
bosques sagrados. Depois de sacrificar um bode para Apo-
lo à entrada do templo, Heracles foi recebido pelos sacer-
dotes do deus e fez sua pergunta. Então, foi conduzido até
o interior do templo, onde a pítia aguardava. Um dos sa-
cerdotes sussurrou a pergunta do herói no ouvido da sa-
cerdotisa, e a mulher se preparou para encontrar o deus.
Sentou-se num banco de carvalho entalhado colocado
sobre uma fenda na rocha, por onde vazavam vapores.
Logo, ela entrou em transe. Ergueu-se e começou a dançar
uma coreografia louca, falando, vez por outra, frases sol-
tas que pareciam não fazer sentido. No entanto, os sacer-
dotes prestavam cuidadosa atenção ao que ela dizia. De
repente, a pítia parou e caiu – só não se estatelou no chão
porque um dos sacerdotes a segurou a tempo. O mais
velho dos sacerdotes se certificou de que a sacerdotisa
estava bem e foi até Heracles interpretar a confusa men-
sagem de Apolo.
Em vez de Palemon, o nome que recebera de Anfitrião, a
pítia lhe havia dado um novo nome, Heracles, isto é, “Glo-
ria de Hera”, e o instruía a ir a Tirinto, onde deveria servir
ao rei Euristeu por doze anos, realizando qualquer missão
ou tarefa que ele lhe desse – custasse o que custasse. Em
troca ele se tornaria imortal. Heracles, que já estava abati-
do, ficou ainda mais desanimado. Seu orgulho o impedia
de servir a um homem sabidamente inferior a ele; por
outro lado, Heracles jamais desobedeceria à vontade dos
deuses, expressa pelo oráculo.
Projeto Cultura e Memória
Mas o herói não estava só; tinha a simpatia dos olímpicos
– menos de Hera. Ao partir para sua longa jornada, Hera-
cles recebeu de Apolo um arco e flechas guarnecidas com
penas de águia; de Hermes, uma espada; de Hefesto, um
peitoral dourado; Poseidon lhe deu uma parelha de cava-
lo; Zeus, um escudo que jamais se partiria; e Atena lhe
ofereceu um manto. Além disso, Atena o abençoou com a
promessa do gozo dos prazeres simples, e Hefesto, com a
proteção contra os perigos da guerra. Heracles partiu,
então acompanhado de seu escudeiro, o sobrinho Iolau,
expiar as ofensas que seu orgulho o levaram a cometer
contra o Cosmos – a Ordem Harmoniosa das Coisas2.
Os 12 Trabalhos de Heracles (Pietro da Cortona, meados séc. 17)
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
113
O Leão de Nemeia
Euristeu decidiu que daria dez trabalhos impossíveis de
serem realizados a Heracles. A primeira tarefa que o rei
exigiu de Heracles, mal o herói chegou a Tirinto, foi matar
e esfolar o leão de Nemeia – uma fera enorme, cuja pele
não podia ser violada por nenhuma arma. Sem demora,
Heracles foi para Nemeia, mas tantos haviam sido mortos
pelo leão, que o herói não encontrou ninguém na região.
Também não encontrou rastros da criatura – nem nos
arredores das aldeias, nem nas montanhas. Um dia, depois
de muito procurar, Heracles surpreendeu a fera voltando
ao seu covil. O leão – presas lambuzadas de sangue – an-
dava pesado com a recente vítima que devorara. Heracles
disparou uma saraivada de flechas, mas elas mal roçaram
a pele dura do leão. Desembainhando a espada que Her-
mes lhe dera, Heracles investiu de novo. O herói golpeou o
leão diversas vez. A arma, porém, quebrou, sem ferir a
fera. E num instante Heracles estava atacando novamente,
dessa vez com a clava. A bordoada que Heraces desferiu
na cabeça do leão o atordoou um pouco – o bastante para
que ele entrasse no seu covil. Então, Heracles despiu o
peitoral que recebeu de Hefesto e pôs de lado o escudo
que Zeus lhe dera. Dali em diante, suas armas eleitas seri-
am mesmo o arco e flechas e a clava de madeira de olivei-
ra; sua armadura, ele estava prestes a conquistar.
Fechando uma das entradas da caverna que servia de covil
ao leão, Heracles entrou de mãos nuas para buscar a fera.
Sabia que a única forma de vencer era estrangulando o
animal. E assim fez. Durante a luta, o leão arrancou um
Projeto Cultura e Memória
dos dedos de Heracles, mas o herói apertou ainda mais as
mãos, até que finalmente estrangulou o oponente. Vitori-
oso, Heracles levou a carcaça a Tirinto e a depositou aos
pés do rei. Euristeu ficou apavorado. Jamais esperava que
Heracles voltasse vivo e, temendo pela sua segurança e de
sua capital, proibiu-o de entrar em Micenas novamente.
Dali por diante, ele deveria exibir os frutos dos seus traba-
lhos do lado de fora das muralhas da cidade.
A Hidra de Lerna
O segundo trabalho que Euristeu confiou a Heracles foi
destruir a Hidra de Lerna, um monstro gerado por Tífon –
o arqui-inimigo dos deuses – e Equidna – uma criatura
meio mulher e meio serpente. Quando a hidra nasceu,
Hera decidiu usá-la na sua vingança contra Heracles, e a
criou.
Heracles mal descansou da sua primeira missão e já partia
para Lerna, uma fértil região no litoral, bem perto da cida-
de de Argos. Há anos, a hidra aterrorizava Lerna. O covil da
besta – um estranho ser com enorme corpo de cachorro
dotado de centenas de cabeças de serpentes venenosas,
sendo que uma delas era imortal – ficava numa árvore na
nascente do rio Amimone. De lá, a fera assombrava o e-
norme manguezal de Lerna – o túmulo de muitos viajantes
desavisados. O veneno destilado pelas milhares de presas
tinha tal potência que até mesmo o hálito da hidra era
fatal. Heracles só venceria com a ajuda dos deuses. E ele a
tinha.
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
115
Atena – a gentil senhora das vitórias – esperava Heracles
em Lerna, pronta para dirigir suas ações. Quando o herói
chegou em seu carro de guerra, conduzido pelo sobrinho
Iolau, a deusa lhe mostrou onde era o covil da hidra. Ela
também instruiu Heracles sobre a melhor forma de com-
bater o monstro. Seguindo o conselho de Atena, Heracles
atacou a criatura com uma saraivada de setas incandes-
centes. A hidra saiu da sua cova sob a árvore – as cabeças
de cobra cuspindo peçonha, matando todas as coisas vivas
que ainda restavam a seu redor. Heracles prendeu a respi-
ração e atacou a aberração com sua clava – em vão. Para
cada cabeça que o herói esmagava, duas ou três outras
surgiam no lugar, vomitando ainda mais pestilência.
Para piorar ainda mais as coisa, Hera fez um gigantesco
caranguejo sair do mangue em auxílio à hidra. A criatura
agarrou os pés de Heracles com suas pinças, tentando
desequilibrá-lo. Heracles esmagou a carapaça do caran-
guejo com sua clava, mas não conseguiria vencer a hidra
sem ajuda. Gritando por Iolau, Heracles prendeu a respira-
ção de novo e voltou a atacar o monstro, esperando que o
sobrinho viesse em seu socorro. Ioulau ateou fogo a um
bosque adjacente e, munido de tochas, entrou no comba-
te. Enquanto Heracles esmagava as cabeças com a clava,
Ioulau cauterizava o ferimento com a tocha. Assim, sem o
sangue para nutri-las, as cabeças pararam de se reprodu-
zir. Heracles e seu escudeiro foram abrindo caminho na-
quela selva ululante de cabeças de serpentes, até que
finalmente restou apenas uma – a imortal, parte da qual
era de ouro. Acossada, a hidra se tornou ainda mais feroz,
Projeto Cultura e Memória
lançando veneno e sibilando. Heracles decepou a última
cabeça e a enterrou, ainda cuspindo peçonha, debaixo de
uma grande pedra. Depois, abriu a carcaça do monstro e
mergulhou a ponta de suas flechas na sua bile. A partir de
então, um mínimo arranhão das suas já letais setas seria
mortal.
Mais uma vez, Hera lamentou a vitória do seu desafeto.
Em homenagem ao caranguejo esmagado por Heracles,
ela colocou sua imagem nas estrelas, como a constelação
de Câncer. Hera também advertiu Euristeu para não con-
tar aquele trabalho como completado, pois Iolau tinha
ajudado Heracles.
Herácles contemplativo depois de abater a hidra (Ludovico Caracci, fin. séc. 18)
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
117
A Corça de Cirineu
Euristeu ordenou, então, que Heracles lhe trouxesse viva a
maravilhosa corça do Monte Cirineu. Era um animal raro:
veloz como o pensamento, seus cascos eram de bronze e
seus chifres, de ouro. No entanto, quem capturasse a cor-
ça estaria cometendo um sacrilégio, pois o animal era con-
sagrado à Ártemis. Certa vez, quando a deusa caçadora
ainda era criança, ela viu cinco corças pastando próximo a
um regato. O sol dardejava em seus cascos de bronze, e a
luz refletida pelo ouro dos chifres cegava quem tentasse
distinguir as criaturas por trás daquele brilho. Desejando-
as, Ártemis perseguiu as corças e as capturou com as pró-
prias mãos – todas menos uma, a qual Hera havia feito a
corça fugir para o Monte Cirineu, planejando usá-la em
seu plano contra Heracles.
Como temesse ferir a corsa, o herói perseguiu sua presa
pacientemente durante um ano. Com Heracles em seu
encalço, o animal fugiu para o norte longínquo, para a
terra dos hiperbóreos – os quais muitos acreditam ser os
celtas. Sem descanso, a corça continuou a fuga, voltando
para a Grécia. Ao chegar às margens do rio Ládon, na Ar-
cádia, o animal estava exausto. Heracles teria, agora al-
guma chance de capturar a veloz corsa. Enquanto o animal
corria, Heracles trespassou suas pernas dianteiras com
uma flecha. A corça não foi ferida, pois Heracles fez a seta
passar entre os ossos e os tendões, sem derramar sequer
uma gota de sangue. O herói colocou a corça sobre os
ombros e partiu para Tirinto, mas Ártemis surgiu em seu
encalço. Estava irada por ele ter capturado um animal
Projeto Cultura e Memória
consagrado a ela. Heracles a apaziguou, dizendo que ele
não tivera escolha e que a culpa era de Euristeu. Ártemis,
inspirada por Atena, acabou deixando que o herói levasse
a corça para Tirinto e cumprisse mais um desafio.
O Javali de Erimanto
Nas encostas cobertas por florestas do Monte Erimanto
havia um javali que espalhava a ruína entre os pastores. A
brutalidade da besta parecia ser uma punição divina, al-
gum capricho de Ares, senhor dos javalis3. E foi no terceiro
ano da servidão de Heracles que Euristeu resolveu ordenar
que o herói capturasse o javali de Erimanto e o trouxesse
vivo a Micenas.
No caminho para Erimanto, Heracles passou pela Élida,
assombrada pelo bandido Sauro. O “Lagarto” emboscava
os viajantes nas estradas, os roubava e assassinava. Hera-
cles aproveitou sua passagem por aquela terra para livrá-la
de Sauro – a quem liquidou facilmente. Em seguida, hos-
pedou-se na casa do centauro Folo, seu velho amigo.
Os centauros – seres monstruosos e brutais, metade ho-
mem e metade cavalo – viviam nas montanhas e se ali-
mentavam de carne crua. Essas criaturas haviam sido ge-
radas pela lubricidade de Ixion. Esse rei mortal, depois de
ter assassinado brutalmente a esposa, se arrependeu e foi
perdoado por Zeus. Mas ao ser recebido no Olimpo, Ixion,
bêbado, tentou violentar Hera. Zeus fez uma nuvem as-
sumir a forma da deusa, e foi essa nuvem que Ixion possu-
iu, nela gerando os centauros.
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
119
Folo, porém, não era descendente de Ixion, mas de Sileno
– o filho do deus dos pastores Pã – e de uma ninfa5. Ele
recebeu Heracles na sua casa e o serviu com hospitalida-
de: para o herói carne assada; para ele, crua. Folo descul-
pou-se, porém, por não servir vinho. Ele explicou que só
havia uma jarra, mas não poderia abri-la porque era co-
munal – um presente de Dionísio para todos os centauros.
Heracles insistiu, dizendo para Folo não temer. No entan-
to, quando o anfitrião abriu a jarra e serviu seu conteúdo,
os centauros farejaram o aroma do forte vinho e, enraive-
cidos, armaram-se e correram até a casa de Folo. Enquan-
to Folo se escondia assustado, Heracles recebeu os cen-
tauros à flechadas. O herói os teria derrotado imediata-
mente, mas Néfele, a Nuvem, intercedeu em favor de seus
netos e fez cair uma pesada chuva, prejudicando a ponta-
ria de Heracles. Os centauros fugiram, com Heracles em
seu encalço, e se refugiaram no palácio de Quíron, seu rei.
Quíron, o mais sábio de todos os centauros, um imortal,
filho de Crono, que havia ensinado diversas artes a deuses
e heróis, era velho amigo de Heracles. Mas Heracles esta-
va cego de fúria e perseguiu os centauros até a casa de
Quíron. Uma das suas flechas – envenenada com a bílis da
hidra de Lerna – trespassou o braço do centauro Elato, e
cravou no joelho de Quíron. Como Quíron era imortal, o
veneno da hidra não o matou. Sua imortalidade não impe-
diu, porém, que ele padecesse de dores lancinantes. Quí-
ron, que tinha ensinado a medicina ao próprio Asclépio – o
deus dessa arte –, não podia nem se curar, nem morrer.
Projeto Cultura e Memória
(Depois, quando Zeus perdoou Prometeu por ter roubado
o fogo do céu e o entregado aos homens, Quíron aceitou
substituir Prometeu no Hades. Assim ele se livrou das do-
res terríveis o ferimento de Heracles lhe causara)
Apesar de Folo não ter participado da luta, ele se sentiu
culpado por ter oferecido o vinho comunal dos centauros
a Heracles, começando, assim, a disputa. Consternado,
Folo cuidou de enterrar seus congêneres. Mas ao retirar
uma flecha envenenada do corpo de um deles, Folo deixou
acidentalmente a flecha cair, trespassando seu pé. Conta-
minado com o poderoso veneno, o centauro morreu em
seguida. Heracles, que já havia partido em busca do javali
de Erimanto, retornou para se encarregar do funeral do
amigo, realizando uma cerimônia magnífica em sua home-
nagem.
Capturar o javali vivo foi uma tarefa difícil – mesmo para
Heracles. O herói desentocou o animal assustando-o com
berros. Em seguida, Heracles o perseguiu, levando a fera
Monte Erimanto acima, até uma funda ravina, cheia de
neve. Com as patas afundadas na neve, o javali ficou im-
pedido de correr. Heracles aproveitou o momento e pulou
sobre o dorso do animal, agarrando-o e o imobilizando
com correntes. Depois, colocou-o sobre os ombros e o
levou de volta a Micenas.
Ao chegar na cidade, Heracles ouviu falar da expedição
dos Argonautas, que partiam, liderados pelo herói Jasão,
em busca do Velo de Ouro. Heracles foi tomado pelo im-
pulso de se juntar a eles e sem esperar por outras ordens
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
121
de Euristeu – o qual havia covardemente se escondido
com medo do herói –, deixou o javali na entrada do mer-
cado4 e seguiu com os Argonautas em busca de aventura.
A Estrebaria de Áugias
O quinto trabalho que Euristeu deu a Heracles foi limpar a
estrebaria do rei Áugias em apenas um dia. Áugias, rei de
Élis, no Peloponeso, filho de Hélios, o Sol, era o homem
que possuía o maior rebanho da terra. Por decreto divino,
seus animais não ficavam doentes nunca, além de serem
extremamente férteis. Há anos sua estrebaria não era
limpa, e, embora os animais fossem imunes às doenças
produzidas pela sujeira, o esterco acumulado veio a espa-
lhar uma pestilência fatal através de todo o Peloponeso.
Euristeu divertia-se antecipando a humilhação de Hera-
cles: o filho de Zeus teria de encher cestos mais cestos de
estrume e carregá-los nos ombros. Heracles se comprome-
teu com Euristeu a realizar a missão em apenas um dia,
mas, ao chegar a Élis, pediu a Áugias a décima parte do
seu rebanho como pagamento pelo trabalho. A reação de
Áugia foi incredulidade. O rei não acreditava que Heracles
fosse capaz de remover a sujeira de seus rebanhos, mes-
mo que levasse a vida inteira se dedicando à tarefa. Por
isso, Áugias concordou com o preço pedido por Heracles.
Mandou que seu filho mais velho, Fileu, servisse de teste-
munha do trato. Fileu pediu que Heracles jurasse que
cumpriria a missão no prazo estabelecido. O herói jurou –
a primeira e única vez em sua vida que Heracles se subme-
teu a um juramento.
Projeto Cultura e Memória
Ajudado pelo sobrinho Iolau, Heracles lançou mãos à obra.
Primeiro eles abriram duas frestas nos muros da gigantes-
ca estrebaria e em seguida desviaram os rios Alfeu e Pe-
neu de maneira que suas águas corressem através da es-
trebaria, arrastando toda a imundície acumulada. Dessa
forma, Heracles cumpriu a tarefa em um dia e, além de
tudo, sem sequer sujar as mãos.
Entrementes, Áugias soube que Euristeu havia ordenado a
Heracles que ele realizasse aquele trabalho. Quando o
herói apareceu para reclamar seu pagamento, o rei, sen-
tindo-se ludibriado, se recusou a pagá-lo e até negou que
tivesse feito um trato com ele. Heracles não se deu por
vencido e exigiu que o caso fosse julgado por um tribunal.
No entanto, quando Fileu testemunhou em favor de Hera-
cles, seu pai se ergueu enfurecido do trono e, dizendo que
o trabalho tinha, na verdade, sido feito pelos deuses-rios
Alfeu e Peneu e não por Heracles, baniu o filho e o herói
de Élis. Euristeu, por sua vez, afirmou que Heracles estive-
ra a serviço de Áugias e fôra ajudado por Iolau e não con-
tou aquela tarefa entre as dez que exigiria de Heracles.
Os Pássaros de Estinfalo
Junto ao Pântano de Estinfalo havia um bando de aves
monstruosas consagradas a Ares que se alimentavam de
carne humana. Seus bicos, garras e asas eram de bronze;
suas penas, setas mortais que disparavam contra homens
e animais, vitimando-os. O excremento das aves era i-
gualmente mortal, destruindo as plantações e poluindo
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
123
rios e fontes. Euristeu desejou que Heracles livrasse a re-
gião do Pântano de Estinfalo daquela ameaça.
Ao chegar ao seu destino, Heracles se viu impedido de
cumprir a missão: os pássaros eram muito numerosos para
serem abatidos à flechadas. O herói quedou-se pensativo
na extremidade do pântano, sem saber ao certo o que
fazer. E, mais uma vez, os deuses intercederam por ele.
Atena apareceu a Heracles e lhe entregou um par de cím-
balos de bronze feitos por Hefesto. Heracles soou os cím-
balos, os quais produziram um som tão alto que os pássa-
ros assassinos se ergueram tontos de pavor numa revoada
infernal. Heracles aproveitou para abater um grande nú-
mero deles à flechadas. O restante fugiu para Ilha de Ares,
no Mar Negro, onde os Argonautas os encontraram, tem-
pos depois.
Hércules abatendo os pásaros de Estinfalo (Albrecht Dürer)
Projeto Cultura e Memória
O Touro de Creta
Para provar a seus irmãos seu direito ao trono, Minos, o
rei de Creta (e criador da pederastia), disse que era capaz
de fazer aparecer do mar o touro mais majestoso que ja-
mais surgira. Orando a Poseidon, Minos prometeu ao deus
sacrificar o magnífico touro, tão logo ele surgisse. Posei-
don fez o que Minos lhe pedira, mas o rei, ao ver criatura
tão majestosa, resolveu se apossar do touro e sacrificou
um animal inferior ao deus. A ganância de Minos o impe-
diu de ver Poseidon não se deixaria enganar facilmente.
Enfurecido, o deus do mar lançou um maldição sobre Mi-
nos. Primeiro, Poseidon fez a esposa de Minos, a rainha
Pasifae, se apaixonar perdidamente pelo touro surgido do
mar. A pobre mulher pediu a Dédalo, o inventor de Minos,
que a ajudasse a consumar sua paixão. Dédalo construiu
uma vaca, dentro da qual Pasifae entrou para ser coberta
pelo touro de Poseidon, gerando assim uma criatura hedi-
onda – um homem com cabeça de touro, o Minotauro. Em
seguida, para completar sua vingança contra Minos, Po-
seidon transformou o belo touro branco que fizera sair do
mar numa criatura ensandecida. O animal se tornou uma
ameaça a Creta. Soltando fogo pelas ventas, passou a des-
truir pomares, plantações, animais e pessoas. O sétimo
trabalho de Heracles era destruir o Touro de Creta.
Ao chegar à ilha, Minos ofereceu toda ajuda possível a
Heracles, mas ele escolheu agarrar o touro à unha – o que
conseguiu depois de uma batalha titânica. Como fez com a
corça de Cerineu e o javali de Erimanto, Heracles levou o
touro de Creta vivo para Micenas e o entregou ao rei. Eu-
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
125
risteu, então, dedicou o animal à deusa Hera e soltou o
magnífico touro branco. Mas Hera odiou a homenagem.
Não poderia se comprazer numa oferenda vinda a ela a-
través de um feito glorioso de Heracles, o odiado bastardo
de Zeus. Marcando a terra com sua fúria, ela fez o touro
correr por toda a Grécia, espalhando terror e destruição
por onde passava, até que o herói Teseu o capturou e o
levou a Atenas, onde ofereceu o touro em sacrifício à deu-
sa Atena.
As Éguas de Diomedes
Podargo, Lâmpon, Xanto e Deino eram animais demonía-
cos. Éguas carnívoras, com afiados cascos de bronze e
presas de leão. Seu dono, Diomedes, filho de Ares e rei da
Trácia, tinha o odioso costume de alimentar suas éguas
com a carne dos estrangeiros que se atreviam a entrar no
país.
No oitavo ano a serviço de Euristeu, Heracles foi incumbi-
do de roubar esses animais de Diomedes e levá-los vivos
para Micenas. Heracles zarpou para a Trácia com um
grande número de voluntários, visitando no caminho seu
velho amigo Admeto, rei de Feres, na Tessália, e compa-
nheiro de Heracles na expedição dos Argonautas. Quando
chegou, o herói encontrou a cidade de luto – as lamenta-
ções das carpideiras ecoando por toda a parte. Soube,
então que a rainha, Alceste, havia morrido. Encontrando
Admeto sufocado de dor pela perda da esposa, Heracles
se comoveu e resolveu descer aos infernos em busca de
Projeto Cultura e Memória
Alceste, de onde a trouxe de volta, mais bela e mais jovem
do que nunca.
Finalmente, Heracles chegou à Trácia e imediatamente
roubou as éguas de Diomedes. Enquanto ele as levava
para seu navio, para embarcá-las a Micenas, os súditos de
Diomedes o atacaram. Heracles deixou os animais aos
cuidados de Abdero, um dos filhos do deus Hermes, e se
preparou para combater os habitantes do país. Ele contava
com poucos homens e teria de usar astúcia em lugar de
força. Rapidamente, Heracles mandou cavar um canal,
fazendo com que o mar invadisse a planície por onde os
homens de Diomedes avançavam, alagando-a. Fugindo das
águas, os inimigos se puseram em retirada, e Heracles e
seus homens aproveitaram para persegui-los. O próprio
Heracles se encarregou de Diomedes. Derrubando-o com
um golpe de clava, Heracles o arrastou até seu navio e o
deu como repasto às suas próprias éguas. Euristeu teve
seu desejo realizado, mas a um preço alto: a morte do
filho de Hermes. Enquanto Heracles lutava contra Diome-
des, Abdero havia sido morto e devorado pelas éguas.
O Cinturão de Hipólita
Admetes, filha de Euristeu e sacerdotisa de Hera, desejou
um prêmio raro e especial, o cinturão de Hipólita, rainha
das amazonas, dado a ela pelo próprio Ares. Euristeu en-
carregou, então, Heracles de trazê-lo à filha. O herói partiu
acompanhado de uns poucos voluntários, entre eles seu
sobrinho Iolau e Teseu, o grande herói ateniense que ha-
via matado o minotauro.
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
127
As amazonas eram um povo guerreiro, descendente de
Ares, composto exclusivamente de mulheres. Em sua capi-
tal, Temiscira, às margens do rio Termódon, na Capadócia,
os homens eram impedidos de entrar, a não ser uma vez
por ano, quando as amazonas se uniam aos gargarenos,
seus vizinhos. Das crianças que nasciam desse encontro,
elas mantinham as meninas; os meninos, elas os matavam
ou os entregavam aos pais. Dizia-se que essas filhas de
Ares, costumavam suprimir o seio direito para melhor
poder manejar o arco. Por isso eram chamadas de amazo-
nas, isto é, “mulheres sem um seio”. Poderosas, as ama-
zonas haviam fundado várias cidades e chegaram a invadir
a Ática para vingar a morte de Antíope, irmã da sua rainha,
Hipólita, assassinada por Teseu. Conta-se que todos os
anos, os atenienses ofereciam sacrifícios aos manes, ou
espíritos, das inimigas tombadas nesse combate.
Quando Heracles chegou a Temiscira, Hipólita o recebeu
pacificamente. Ela foi visitá-lo em seu navio, ancorado no
rio Termódon, buscando descobrir o que Heracles viera
fazer em seu reino. O herói não ocultou nada. Enquanto
ele explicava sua missão, Hipolita o observava e ficou en-
cantada pelo corpo forte de Heracles. Ela lhe disse que
daria o cinturão de Ares a ele, como prova de amor.
Mas as coisas não seriam assim tão fáceis para Heracles.
Hera havia se transfigurado em uma amazona e, enquanto
Heracles e Hipólita se amavam, ela espalhou o boato entre
as mulheres guerreiras de que o herói viera raptar sua
rainha. Enfurecidas, as amazonas se armaram, montaram
seus cavalos e atacaram o barco de Heracles. Achando que
Projeto Cultura e Memória
Hipólita tinha armado tudo para atacá-lo de surpresa, He-
racles a matou imediatamente e arrancou seu cinturão.
Em seguida, armou-se com o machado de guerra de Hipó-
lita e saiu para combater as amazonas. Apesar de as guer-
reiras serem em grande número, Heracles e seus homens
as massacraram e puseram as sobreviventes em fuga. As-
sim, o herói pôde levar o prêmio de Admetes de volta a
Micenas.
Heracles e Hipólita (Luca Penni, 1ª metade séc. 16)
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
129
O Gado de Gerião
Gerião era o ser mais forte de todo o mundo. Era um gi-
gante de três cabeças, seis braços e três torsos unidos na
cintura. Gerião vivia numa ilha longínqua na Espanha, Erí-
cia, e possuía enorme rebanho de gado vermelho, tão belo
quanto raro. Essa imensa riqueza era guardada por um dos
filhos de Ares, Eurícion, e pelo cachorro de duas cabeças
Ortro, irmão de Cérbero, o cão de guarda do inferno.
Euristeu cobiçava o gado de Gerião e, convencido de que
Heracles poderia satisfazer também esse seu desejo, man-
dou que o herói o roubasse. Heracles partiu, então, à Es-
panha, enfrentando e destruindo diversos monstros por
onde passou. Ao chegar a Tartesso, Heracles separou a
África da Europa, cavando um profundo canal, e erigiu
duas gigantescas colunas, uma em cada continente – as
Colunas de Heracles. Mas o calor escaldante o perturbou.
Irritado, o filho de Zeus armou seu arco com uma flecha
envenenada e disparou contra Hélios, o Sol. Irado com a
insolência, Hélios ordenou que Heracles se acalmasse, o
que o herói fez prontamente, desculpando-se pelo mau
humor. Hélios não quis ser menos cortês do que Heracles
e abrandou a intensidade dos seus raios. Ainda por cima,
emprestou a Heracles a taça de ouro em forma de lírio
que, quando Hélios desce do céu, o conduz por baixo da
terra até o ponto onde ele deve subir novamente. Foi na-
vegando nessa taça que Heracles chegou a Erícia.
Em busca do gado de Gerião, Heracles subiu num promon-
tório. Ortro, porém, farejou o herói e o atacou, apenas
Projeto Cultura e Memória
para ter suas duas cabeças esmagadas pela clava de Hera-
cles. Alertado pelos latidos de Ortro, Eurícion correu em
seu socorro, mas seu destino foi o mesmo que o do cão.
Heracles reuniu o gado vermelho e estava começando a
embarcá-lo na taça de Hélios quando Gerião, avisado por
outros pastores, surgiu e o desafiou para uma luta até a
morte. Heracles armou seu arco e, posicionando-se de
frente para o flanco do gigante, disparou uma única flecha
que varou os três corpos de Gerião. Então, Hera se mani-
festou, buscando ajudar Gerião. Heracles, porém, não se
deixou intimidar pela figura divina. Ele a flechou no seio
direito, ferindo-a e a fazendo fugir.
Parte do caminho, Heracles venceu usando a taça de Hé-
lios, a qual devolveu na primeira oportunidade. Pelo traje-
to da Espanha à Grécia, Heracles fundou diversas colônias,
entre elas as cidades de Pompeia e Herculano, na Itália.
Quando cruzou os Pirineus, Heracles cortejou a princesa
Pirene, que empresta seu nome às montanhas. Suas faça-
nhas entre s gauleses foram eternizadas nas canções dos
seus melhores bardos, e o herói passou a ser cultuado
também entre aquele povo.
Heracles precisou igualmente enfrentar, ao longo do ca-
minho, inimigos que desejavam o raro gado de Gerião.
Numa das batalhas, ele se viu sem flechas e desarmado.
Ajoelhando-se em desespero – lágrimas correndo pelo
rosto –, ele pediu socorro ao seu pai. Zeus o ajudou pron-
tamente, fazendo cair uma chuva de pedras.
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
131
Continuando a tanger o gado até a Grécia, sempre se en-
volvendo com os habitantes das regiões por onde passava,
Heracles finalmente se aproximou da Grécia. Mas Hera fez
valer sua vingança, mandando um gigantesco moscardo
que enlouqueceu o gado, dispersando-o por todo o país.
Depois de muito esforço, Heracles conseguiu reunir a mai-
or parte do rebanho e o levou até Micenas.
Os Pomos de Ouro
Heracles havia realizado suas dez missões em oito anos e
um dia, mas Euristeu não considerou o segundo e o quinto
trabalhos – a derrota da hidra de Lerna e a limpeza dos
currais de Áugias –, pois Heracles havia recebido ajuda.
Por isso, ele estabeleceu mais duas tarefas para Heracles
realizar antes de liberá-lo de seus serviços. Euristeu temia
Heracles. Sabia que o humilhava e não se sentia seguro
com relação à atitude do herói depois que sua expiação
terminasse. Pensou, então, em dois trabalhos impossíveis
de se realizar. O primeiro era uma clara provocação à He-
ra, cujo ódio a Heracles o colocara naquela situação. O
filho mortal de Zeus teria de roubar uma das maçãs de
ouro que cresciam no Jardim das Hespérides. A árvore
havia sido o presente de casamento que Gaia, a Mãe Ter-
ra, dera a Hera. Ela gostou tanto do presente que o plan-
tou no seu jardim divino, guardado pelas filhas da Noite,
as ninfas Hespérides. As maçãs de ouro também eram
vigiadas por um filho de Tífon: o dragão de cem cabeças
Ládon.
Projeto Cultura e Memória
Heracles confrontando um dragão (Antonio Tempesta, c. 1608)
No entanto, ninguém sabia onde era o Jardim das Hespé-
rides. Heracles foi buscar conselho com as ninfas do deus-
rio Erídano, que também não sabiam dizer, mas lembra-
ram ao herói que Nereu, o velho do mar, conhecia todos
os segredos do céu, da terra e das águas. Nereu, filho de
Ponto, o Mar, e de Gaia, já era ancião quando Poseidon
começou a governar os mares. Heracles decidiu capturar o
velho para obrigá-lo a dizer onde ficava o misterioso jar-
dim. Ele esperou Nereu dormir, agarrou-o e o amarrou,
dizendo que só o soltaria quando ele revelasse o caminho
para as maçãs de ouro. Como outras divindades marinhas,
o velho do mar podia se transmutar numa série de criatu-
ras – e foi o que fez, tentando escapar. Ele se transformou
num leão, mas as correntes que Heracles havia usado para
prendê-lo estavam apertadas demais; então, Nereu assu-
miu a forma de uma enorme serpente – igualmente sem
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
133
resultado–; finalmente o velho virou uma labareda. Hera-
cles, porém, não se deixou intimidar, e Nereu foi obrigado
a revelar o segredo.
Heracles viajou até os confins do Ocidente, até encontrar
os portões de ouro do jardim. Ao seu lado, Atlas, o titã,
sustentava a abóbada celeste. O dragão Ládon guardava a
entrada do jardim, e Heracles perguntou a Atlas qual era a
maneira pela qual ele conseguiria roubar as maçãs. Para
sua surpresa, Atlas se ofereceu para ir buscá-las, desde
que Heracles ficasse no seu lugar, sustentando o firma-
mento. O herói concordou e assumiu o lugar do titã. Atlas
voltou pouco depois, com as maçãs, mas tinha gostado da
sua liberdade e, tentando estendê-la ao máximo, disse que
queria ir ele mesmo entregá-las a Euristeu. Heracles esta-
va numa situação delicada: não podia simplesmente largar
o céu... Pediu apenas que Atlas sustentasse um pouco o
firmamento, enquanto ele conseguia um apoio para não
machucar a cabeça. Atlas voltou a segurar o fardo, mas
Heracles se apossou das maçãs e, com um irônico adeus
ao titã, partiu para entregá-las a Euristeu. O rei, temendo
a ira de Hera, tratou de consagrar os frutos a Atena, a
qual, agindo de acordo com sua dignidade emblemática,
as devolveu às hespérides.
A Captura de Cérbero
Decidido a se livrar de Heracles, Euristeu lhe deu a última
e mais difícil tarefa: capturar Cérbero, o cão de três cabe-
ças que guarda a entrada do inferno. Antes de partir, o
filho de Zeus buscou purificação e viajou a Eleusis, onde
Projeto Cultura e Memória
pediu para ser iniciado nos Mistérios. Depois de ter sido
purificado pelo sangue que derramara ao longo de suas
aventuras, Heracles pôde finalmente descer ao reino de
Hades. Hermes, o guia das almas, e Atena o acompanha-
ram na jornada. Intimidado pela presença de Heracles,
Caronte atravessou-o em seu barco através do rio de fogo
e lava, o Estige.
Heracles capturando Cérbero (gravura renascentista)
Ao entrar no Tártaro, Heracles foi direto ao palácio de
Hades, o senhor dos mortos, e lhe disse o que queria. Ha-
des, admirando a bravura daquele mortal, concordou,
desde que Heracles capturasse Cérbero de mãos limpas.
Isso não foi difícil. Heracles agarrou o monstruoso cão e o
sacudiu com tanta violência, que Cérbero passou a segui-
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
135
lo como se fosse seu novo dono. E foi assim que Heracles
apareceu no palácio de Euristeu, com Cérbero a segui-lo.
No entanto, ao ver o cão de três cabeças de Hades, Euris-
teu ficou tão aterrorizado que ordenou que Heracles o
devolvesse ao seu legitimo dono6. Heracles havia final-
mente cumprido sua penitência. Tinha conquistado a i-
mortalidade e estava livre agora para voltar a Micenas. Os
trabalhos a Euristeu haviam terminado, mas ainda teria
muitas aventuras para viver.
Projeto Cultura e Memória
Os Argonautas
izem que o poder é um dos maiores inimigos do ho-
mem sábio, pois depois de conquistado ele se volta
contra seu detentor, enchendo-o de cobiça, deixando-
o ainda mais sedento de poder, impedindo-o de distinguir
o certo e o errado. O rei Pelias, embora filho de um imor-
tal, não foi exceção.
O rei Pelias, filho de Poseidon, era um homem poderoso,
mas cobiçava ainda mais poder. Mesmo velho, ainda ten-
cionava estender seu domínio sobre toda a Tessália. E
pensando que o fim justifica os meios, usurpou o trono da
próspera cidade de Iolco, governado pelo seu meio irmão
Aeson, a quem manteve prisioneiro. Depois, Pelias assas-
sinou tantos aliados de Aeson quanto conseguiu deitar
mão. Alcimede, esposa de Aeson, tinha um filho, Jasão,
legítimo herdeiro do trono de Iolco. Ostentando luto e
dor, ela fingiu que a criança tinha morrido e, em segredo,
a entregou a Quíron, o sábio rei dos centauros, para que
ele a criasse. Alcimede temia que Pelias matasse o menino
se soubesse de sua existência. Mas Pelias, desconfiou e
consultou um oráculo que o avisou para ter cuidado com o
homem que surgisse vestindo apenas um pé de sandália.
Quíron iniciou Jasão em todas as artes civilizadas, e quan-
do seu mestre disse que já não havia mais nada a lhe ensi-
nar, ele partiu de volta a Iolco, reclamar o que era seu por
D
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
137
direito. Jasão chegou às margens do Anauro e estava pres-
tes a entrar na cidade, mas ao ver uma pobre velha que
implorava aos passantes para ajudá-la a atravessar o rio,
Jasão ofereceu para carregá-la à outra margem, sem saber
que a velha era a deusa Hera. Ao sair do rio, Jasão havia
perdido um pé do seu par de sandálias. A deusa agradeceu
a ajuda e o abençoou, sabendo o que esperava pelo jo-
vem.
Na cidade, Jasão, acompanhando um grupo de príncipes
aliados, juntou-se a Pelias num sacrifício a Poseidon. Mas
quando o rei viu aquele jovem com um só pé de sandália,
temeu. Perguntou, então, a Jasão o que ele faria se fosse
confrontado com o homem que traria a sua queda. Sem
perceber a intenção de Pelias, Jasão respondeu que o
mandaria em busca do Velo de Ouro. O tosão de lã de um
carneiro de ouro alado sacrificado a Zeus – um emblema
de sabedoria e iluminação que conferia poder e prosperi-
dade – era consagrado num templo florestal de Zeus, na
longínqua Cólquida. Havia tantos perigos no caminho que
buscar o velo era uma missão quase impossível de ser
cumprida.
Pelias quis, então, saber quem era aquele rapaz e o que
fazia em seu reino. Jasão revelou ser o filho do rei Aeson e
que viera reivindicar o trono que era seu por direito. Peli-
as, conhecendo a ilegitimidade de sua própria posição,
consentiu, mas colocou uma condição para abdicar em
favor do príncipe: Jasão deveria lhe trazer o Velo de Ouro.
Ele achava que dessa forma poderia se livrar do sobrinho.
Projeto Cultura e Memória
Jasão, porém, tratou de garantir o seu sucesso. Em vez de
partir sozinho, convidou os maiores heróis da Grécia anti-
ga para acompanhá-lo na aventura. Ao todo, cinquenta
deles, entre os quais Heracles, os gêmeos Castor e Poli-
deuces – filhos de Zeus e de Leda –, Atalanta – a caçadora
virgem – e o próprio Orfeu atenderam ao chamado de
Jasão. A pedido do jovem, Argos, o armador, construiu
uma nau de cinquenta remos, o Argo. A própria Atena, a
patrona das artes e ofícios, dirigiu a construção do navio.
Dizem que foi a deusa que forneceu a peça da proa da
embarcação, um tronco de carvalho sagrado do templo de
Zeus em Dodona, o qual conferiu à embarcação o dom da
palavra e da profecia. Hera também abençoou a expedi-
ção. A deusa tinha uma cisma com Pelias, pois ele não a
honrara, negligenciando os sacrifícios a ela.
E assim, os tripulantes do Argo, agora chamados de argo-
nautas, partiram numa manhã de outono, rumo à ilha de
Lemnos7, sua primeira parada. Quando chegaram, foram
recebido com uma oferenda de alimentos e vinho, enviada
pela rainha Hipsipile. Os argonautas souberam, então que
a ilha era habitada exclusivamente por mulheres. As lem-
nianas haviam faltado com seus sacrifícios a Afrodite, e a
deusa as castigou, fazendo com que cheirassem tão mal
que seus maridos passaram a recusá-las. Um ano antes da
chegada dos argonautas, eles abandonaram as esposas e
foram viver com concubinas que sequestraram na Trácia.
Iradas, as mulheres de Lemnos se rebelaram e mataram
todos os homens da cidade. Agora, com a chegada dos
argonautas, Hipsipile achou que seria uma boa oportuni-
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
139
dade de repovoar a população masculina e ofereceu seu
trono e sua cama a Jasão, o líder da expedição. Embora
Jasão não tenha aceitado a coroa, compartilhou de bom
grado o leito de Hipsipile. Assim fizeram também os outros
argonautas com o restante das mulheres de Lemnos. Ao
que parece, o cheiro das lemnianas não era assim tão
mau. Após duas semanas na ilha, os argonautas finalmen-
te partiram, deixando em Lemnos uma geração de futuros
heróis.
Depois de alguns dias no mar, Jasão aportou o Argo na ilha
de Misia e mandou alguns homens à terra, para se reabas-
tecerem de água e alimentos. Entre eles estavam Heracles
e seu servo Hilas. O jovem se afastou do grupo, indo a um
regato ali perto buscar água. As ninfas do riacho se encan-
taram com Hilas, e o puxaram para o fundo de suas águas.
Enquanto isso, os homens que haviam desembarcado já
estavam a bordo do Argos novamente, e Hilas tardava.
Heracles decidiu ir a sua procura e, se embrenhando na
mata, também ele demorava a voltar. Jasão foi obrigado a
ordenar a partida, deixando Heracles e Hilas para trás8.
Sem encontrar seu servo, Heracles voltou a Micenas, para
terminar de cumprir seu termo servindo o rei Euristeu.
Em busca do caminho para Cólquida, onde deveriam en-
contrar o Velo de Ouro, os argonautas pararam em Salmi-
desso, onde foram recebidos pelo rei-profeta Fineu. O
próprio Apolo, o deus da profecia, havia concedido esse
dom ao rei. Mas Fineu começou a revelar as deliberações
dos deuses aos homens, o que irritou profundamente os
imortais. Além de cegá-lo, Zeus infestou suas terras com
Projeto Cultura e Memória
criaturas imundas, enormes aves com cabeça de mulheres,
as harpias. Todas as noites, quando Fineu se sentava para
jantar, as criaturas tomavam o céu, invadiam o palácio,
roubavam a comida e cobriam a mesa do rei com excre-
mentos. Impedido de comer, Fineu definhava cada vez
mais.
Jasão resgatando Fineu (Bernard Picart, 1731)
O rei propôs revelar o caminho a Cólquida se os argonau-
tas o livrassem das harpias. Dois tripulantes do Argo, Calais
e Zetes, os filhos alados de Boreas, o Vento do Norte, se
lançaram ao ar, assumindo a missão. Os irmãos persegui-
ram as harpias e mataram muitas delas à flechadas. As que
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
141
sobreviveram, fugiram para tão longo que nunca mais
voltaram a incomodar Fineu. Agradecido, o rei revelou,
então, o caminho a Cólquida e como cruzar as Simplega-
des, as ilhas que se entrechocam.
O Argos passando pela Simpleglades (B. Picardt, 1731)
A única forma de chegar a Cólquida era passando através
das Simplegades – dois enormes rochedos que batiam um
no outro sempre que uma embarcação tentava navegar
entre eles. Fineu disse a Jasão que se ele fizesse com que
um pássaro voasse entre as rochas, precipitando-as,
quando elas começassem a se afastar novamente, eles
poderiam remar a toda velocidade e passar antes que as
Projeto Cultura e Memória
ilhas se entrechocassem pela segunda vez. Foi o que os
argonautas fizeram. O Argo passou quase intacto, tendo
apenas um pequeno pedaço da popa atingido, quando as
pedras voltaram a se chocar.
Cólquida
Cólquida era um reino bárbaro, localizado nos confins do
mundo civilizado. O rei Eteu e seus súditos não toleravam
estrangeiros e os sacrificavam aos deuses os poucos ousa-
dos (ou desavisados) aventureiros que entravam no país.
O único estrangeiro a ser poupado por Eteu foi Frixo, e
mesmo assim, em condições especiais. Frixo chegou ao
país montado num carneiro alado de lã dourada. Frixo
fugia de sua madrasta que o perseguia e como encontrara
refugio em Cólquida, sacrificou o carneiro em agradeci-
mento a Zeus. Depois, Frixo pendurou a lã de ouro no alto
de uma árvore, numa floresta sagrada, e encarregou Eteu
de guardá-la.
Jasão foi recebido com reservas por Eteu; mas o rei não
ousou fazer nada contra os argonautas – os maiores heróis
de toda a Grécia. Ao ouvir do capitão do Argo o motivo
que trazia os arganautas ao seu reino, Eteu concordou em
ceder a eles o Velo de Ouro. Ele temia a tripulação do Ar-
go, mas não queria, também, que aquele objeto sagrado
saísse dos bosques das suas terras. Por isso ele concederia
o tosão em troca de alguns favores, que eram, na verdade,
praticamente impossíveis de se realizar. Jasão se sentiu
desencorajado ante a dificuldade das tarefas. Ele não sabi-
a, porém, que Atena e Hera, suas benfeitoras, tramavam
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
143
em seu favor. As duas deusas pediram que Eros, o deus
Amor, cravasse uma das suas flechas de amor na princesa
Medeia, filha de Eteu, iniciada nas ciências ocultas por sua
tia Circe, a feiticeira. Cega de paixão por Jasão, Medeia
propôs ajudá-lo a realizar as tarefas impossíveis ordenadas
pelo pai, se ele se cassasse com ela. Jasão aceitou.
Primeiro, o líder dos argonautas teria de arar um campo
com touros que soltavam fogo pelas ventas. Medeia deu a
ele um unguento que o protegeria das chamas. Assim,
Jasão pôde prender a parelha de bois no arado e arar o
campo. Em seguida, Jasão semeou as sementes de dragão
que Eteu lhe dera. O que o herói não sabia é que cada
semente germinava num guerreiro armado quase que
instantaneamente. Quando deu por si, Jasão estava cerca-
do por todo um exército inimigo. Mais uma vez, foi Me-
deia quem o salvou. Dessa vez, a princesa não usou mági-
ca, mas a inteligência. Seguindo sua sugestão, Jasão atirou
uma pedra no meio do exército. O guerreiro atingido pen-
sou que tinha sido atacado por seu vizinho e revidou, es-
palhando uma briga entre as fileiras. No final, os guerrei-
ros deram cabo uns dos outros sem que Jasão precisasse
fazer qualquer outra coisa.
Embora Jasão tivesse cumprido as missões que Eteu havia
lhe dado, o rei não quis entregar o Velo de Ouro e plane-
jou um meio de liquidar os argonautas. Mais uma vez, foi
Medeia quem livrou os heróis do perigo. À noite, ela levou
Jasão até a árvore de onde pendia a lã dourada. Um dra-
gão de fogo guardava o local, mas Medeia o fez dormir
Projeto Cultura e Memória
com sua magia. E naquela mesma madrugada, ela fugiu
com os argonautas, levando consigo o Velo de Ouro9.
Jasão encontra o Velo de Ouro (B. Picart, 1731)
Percebendo a fuga, Eteu lançou sua frota em perseguição
do Argo. Na escaramuça, Atalanta foi gravemente ferida.
Os homens de Eteu ganhavam vantagem. Medeia, então,
matou seu próprio irmão, Apsirto, esquartejou o cadáver e
começou a arremessar pedaços do corpo no mar. Para não
deixar seu filho insepulto – e, consequentemente, seu
manes sem um lar – Eteu ordenou que os barcos abando-
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
145
nassem a perseguição e recuperassem as partes de seu
filho. Em seguida, Medeia curou Atalanta.
Medeia esquartejando Apsirto (René Boyvin e Leonard Thiry, 1563)
Mas a viagem de retorno não foi fácil. Zeus, em punição
pelo crime de Medeia, rasgou o céu e o mar com tempes-
tades. A nau perdeu o rumo. Foi Argo, que tinha o dom da
fala e da profecia, que avisou sua tripulação que eles de-
veriam buscar purificação pelo assassinato de Apsirto com
Circe, a feiticeira, tia de Medeia.
Depois de passarem algum tempo em Ea, a ilha onde vivia
Circe, executando rituais de expiação, os argonautas parti-
ram novamente.
Projeto Cultura e Memória
O Argo passou pelo pequeno arquipélago de Sireno – um
lugar fantasmagórico, pontuado com as carcaças de navios
naufragados. Os heróis navegavam atentos às traiçoeira
rochas. De repente, uma música doce e hipnotizante co-
meçou a encher o ar. Eram as sereias que viviam naquelas
ilhas; seu canto tirava os marinheiros de si e os fazia mer-
gulhar no mar, onde as águas os tragavam. Ao ouvir a es-
tranha música, Orfeu, patrono de todos os músicos e poe-
tas, começou a tocar sua lira e o fez tão maravilhosamente
que as sereias se calaram para ouvir aquele som celestial.
O Argo pôde, então, passar através do arquipélago.
Ao se aproximarem de Creta, os argonautas foram ataca-
dos por Talo, um gingante de bronze. Talo era o último
representante da raça de bronze, antecessora dos homens
atuais, e servia a Minos, o rei de Creta, vigiando a cidade.
Talo tinha uma única veia que ia do pescoço ao tornozelo,
protegida por uma cavilha. Quando Talo avistou o Argo
surgindo no horizonte, começou a arremessar pedras e-
normes contra a embarcação. De novo, Medeia se inter-
pôs; com sua mágica ela fez com que a veia de Talo se
rompesse, e o gigante sangrou até morrer.
Finalmente, o Argo retornou a Iolco. Os argonautas cobri-
am a Tessália de glória com seus feitos. O povo os saudava
nas ruas, e os rapsodos já começavam a dar forma épica às
suas aventuras, narrando suas histórias em versos nas
praças dos mercados de toda a Grécia. Todos se rejubila-
vam, exceto Pelias. Apesar de Jasão ter voltado com o Velo
de Ouro, o rei relutava em abdicar o trono de Iolco. Foi
Medeia quem resolveu a questão, livrando-se de Pelias.
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
147
Ela disse às filhas do rei que poderiam tornar seu pai jo-
vem de novo, se elas cortassem o seu corpo e o fervessem
num caldeirão com ervas mágicas. Para provar que isso
era possível, ela desmembrou um carneiro, que cozinhou
numa poção. Depois de um tempo, o animal pulou para
fora do caldeirão. Não era mais um carneiro, de fato, e sim
um cordeiro de poucos dias. As filhas de Pelias fizeram o
mesmo com o pai. Médeia, porém, não adicionou as ervas
mágicas, e Pélias encontrou, dessa forma, seu fim.
Jasão não pôde, entretanto, assumir o trono. Acasto, filho
de Pélias, acusou-o e a Medeia de assassinarem o rei. Os
dois foram condenados ao exílio e se estabeleceram em
Corinto, onde receberam asilo do rei Creonte. Ali, Jasão
buscou fortalecer seus laços com o rei. O rumo dos acon-
tecimentos havia mudado, e Jasão, esquecendo que fora
graças a Medeia que ele conquistara o Velo de Ouro, ago-
ra via na companheira a fonte de seus problemas. Ele não
hesitou, então, em se casar com Gláucia, filha de Creonte
e princesa de Corinto. Mas Medeia não aceitou calada a
traição de Jasão. Fingindo concordância, ela deu a Gláucia
um vestido de casamento. Quando a infeliz mulher vestiu
o presente, o vestido se agarrou à sua pele e ardeu em
chamas. Creonte correu para ajudar a filha e morreu ele
também consumido pelo fogo. Cega de raiva, Medeia ain-
da matou os filhos que tivera com Jasão e fugiu para Ate-
nas.
A traição de Jasão havia lhe trazido a ruína. Ajudado por
Peleu, pai de Aquiles, o herói da Guerra de Tróia, ele re-
conquistou o trono de Iolco, mas havia perdido o favor de
Projeto Cultura e Memória
Hera por ter quebrado sua promessa a Medeia. Jasão ter-
minou seus dias infeliz, sem amigos e amaldiçoado pelos
deuses. Certa noite, quando dormia saudoso sob a popa
do Argo, a madeira apodrecida cedeu e caiu sobre ele,
matando-o instantaneamente. Quanto a Medeia, dizem
que ela nunca morreu. Tornou-se uma imortal e reina nos
Campos Elíseos, onde se casou com o herói Aquiles10.
Sindicato dos Padeiros de São Paulo
149
Notas do Capítulo
1 – O Herói de Mil Faces – Joseph Campbell, Cul-
trix/Pensamento, São Paulo, 1997, p. 36
2 – Todos os Nomes da Deusa – J. Campbell, Editora Rosa
dos Tempos, Rio de Janeiro, 1997, p. 92
3 – The Hutchinson Dictionary of Symbols – Jack Tresidder,
Helicon, Oxford, 1997, p. 28
4 – Argonautica – Apollonius Rhodius, Online Medieval
and Classical Library Release #27b, 2006, versos 122 - 132
– In http://omacl.org/Argonautica/
5 – Dicionário de Mitologia Grega – Ruth Guimarães, Cul-
trix, São Paulo, 1993, p. 155
6 – Greek Myths – Robert Graves, Penguin Books, London,
1984, pp. 142 - 172
7 - Argonautica – Apollonius Rhodius, versos 592 – 608
8 – Argonauts – Wikipedia, 2006, in
http://en.wikipedia.org/wiki/Argonauts
9 – The myth of Jason, the Argonauts and the Golden
Fleece – Myth Web, 2006, in
http://www.mythweb.com/heroes/jason/
10 – Greek Myths – Robert Graves, p. 215
Projeto Cultura e Memória
Sobre o Autor
Claudio Blanc é escritor e tradutor, autor de cerca de 600
artigos sobre História, Ciência, Literatura e Filosofia, publi-
cados em revistas como Discovery Magazine, Filosofia
Ciência & Vida, Revista do Explorador e Grandes Líderes
da História. É autor de Uma Breve História do Sexo, O Lado
Negro da CIA e de O Homem de Darwin. Entre seus livros
infanto-juvenis estão Histórias Sopradas no Tempo e De
lenda em Lenda se Cruza Fronteiras, indicado como Alta-
mente Recomendável pela Fundação Nacional do
Livro Infanto-Juvenil. Claudio Blanc também assina a
tradução de 35 obras nos mesmos campos de conhe-
cimento sobre os quais escreve, entre elas os best-
sellers Fumaça e Espelhos, de Neil Gaiman, e O Rela-
tório da Cia – como será o mundo em 2020?
Sindicato dos Padeiros
de São Paulo
Direito reservados: Sindicato dos Padeiros de São Paulo, 2013 Este artigo pode ser reproduzido para fins educativos;
a fonte deve ser citada