Capítulo 3 – Alf Leila we Leila Naquela sextafeira eu peguei um trem de Alexandria de volta ao Cairo, para comprar cadernos, uniforme e outras coisas que eu precisaria para a escola. As aulas começariam no domingo, já que no Egito o fim de semana é na sexta e no sábado (a sextafeira é o dia sagrado para os muçulmanos, é como o domingo daqui). A escola era um prédio laranja e roxo de arquitetura duvidosa, todo empoeirado. No primeiro dia de aula eu encontrei uma menina chamada Salma, que havia viajado com o AFS para o Alaska. Ela também era uma aluna nova no colégio, então tive companhia e alguém para conversar. Durante algumas semanas eu não fiz muita coisa a não ser ir para a escola. Como eu ainda não falava bem o árabe, não saía muito do Moqattam, mas mesmo por lá pude desenvolver um pouco minhas habilidades no idioma. Comecei a ir comprar algumas coisas para a minha família, como pão, leite, queijo... Eu ia principalmente a dois lugares: no Koshk embaixo do meu prédio e na pequena banca de frutas do outro lado da rua. Koshk é uma palavra egípcia para um pequeno estabelecimento que vende desde sucos e refrigerantes até itens como arroz, macarrão e farinha. Estão espalhados por todo o Cairo, alguns
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Capítulo 3 – Alf Leila we Leila
Naquela sexta-‐feira eu peguei um trem de Alexandria de
volta ao Cairo, para comprar cadernos, uniforme e outras
coisas que eu precisaria para a escola. As aulas começariam no
domingo, já que no Egito o fim de semana é na sexta e no
sábado (a sexta-‐feira é o dia sagrado para os muçulmanos, é
como o domingo daqui).
A escola era um prédio laranja e roxo de arquitetura
duvidosa, todo empoeirado. No primeiro dia de aula eu
encontrei uma menina chamada Salma, que havia viajado com
o AFS para o Alaska. Ela também era uma aluna nova no
colégio, então tive companhia e alguém para conversar.
Durante algumas semanas eu não fiz muita coisa a não ser ir
para a escola.
Como eu ainda não falava bem o árabe, não saía muito do
Moqattam, mas mesmo por lá pude desenvolver um pouco
minhas habilidades no idioma. Comecei a ir comprar algumas
coisas para a minha família, como pão, leite, queijo... Eu ia
principalmente a dois lugares: no Koshk embaixo do meu
prédio e na pequena banca de frutas do outro lado da rua.
Koshk é uma palavra egípcia para um pequeno estabelecimento
que vende desde sucos e refrigerantes até itens como arroz,
macarrão e farinha. Estão espalhados por todo o Cairo, alguns
ficam no meio da calçada e vendem apenas salgadinhos,
biscoitos, sucos e cigarros, outros tem um estoque mais
completo como um mercadinho. Assim era o Koshk que ficava
embaixo do meu prédio, e eu sempre conversava com o dono,
Masa3oud, que se tornou meu amigo.
A pequena banca de frutas na frente da minha casa era de
uma família de Asyut, cidade do sul do Egito, que como
milhares de outros egípcios haviam migrado para o Cairo em
Masa3oud 1
busca de melhores oportunidades. Comprando frutas e
vegetais lá eu descobri o sabor das frutas egípcias. Todas vem
de fazendas de pequeno e médio porte no interior do país;
frutas frescas, de sabor incrível. Laranjas saborosas, romãs
enormes e vermelhas, melões e melancias suculentos... Uma
variedade incrível de frutas e vegetais plantados e colhidos da
mesma maneira a cinco mil anos.
Lá na banca de frutas também descobri um costume
egípcio: o de se referir a pessoas pelos filhos quando você não
tem intimidade com elas. A família que vendia frutas era
composta do pai, da mãe e dos filhos. O filho mais velho se
chamava Hassan, então todos chamavam os pais de Om Hassan
e Abo Hassan, que literalmente significa ‘Mãe de Hassan’ e ‘Pai
de Hassan’.
Nos dias de calor, eu gostava de ir até Om Hassan e
comprar uma romã bem grande e suculenta, deixar na
geladeira um pouco, e depois comê-‐la com suco de limão e
folhas de menta. Era especialmente refrescante.
E eu fui me acostumando com a minha nova vida.
Lentamente ia aprendendo novas palavras em árabe e comecei
a interagir mais com as pessoas do meu bairro. Todo dia eu ia
para a escola com uma pequena van que buscava os
estudantes do meu bairro, as 7 da manhã. Passado algum
tempo, eu comecei a ficar entediado com a vida escolar; as
aulas eram desorganizadas e eu não tinha muita coisa para
fazer durante as aulas. Minha escola era particular, o que
significava que os alunos eram de classe média alta. Não era a
melhor nem a mais cara escola (longe disso) mas ainda sim os
estudantes vinham de famílias com bastante dinheiro. Os meus
irmãos e irmãs estudavam/estudaram todos em escolas
públicas.
Com o tempo eu fui percebendo algumas coisas sobre
meus colegas na escola e sobre alguns egípcios jovens das
classes mais altas: grande parte deles eram extremamente
mimados pelos pais, e viviam numa ‘bolha’, ignorando
completamente a situação do país, estando alheios a todos os
acontecimentos. Claro que nem todos eram assim, conheci
muitas pessoas que se preocupavam com o Egito e com os
problemas que estão acontecendo, mas na minha escola não
consegui ter muitas conversas com os colegas sobre assuntos
que me interessavam. Em certo momento decidi que a escola e
os meus colegas não seriam tão importantes, e me foquei em
explorar o país novo que estava vivendo.
Minha relação com a família também começou a mudar;
no começo eu ainda me sentia coma uma visita na casa nova,
ainda estranhando o novo ambiente e as pessoas. Naquele
momento porém, depois de algumas semanas, eu comecei a
me sentir em casa, como se sempre tivesse morado ali.
Lembro-‐me que por volta dessa época comecei a chamar meu
pai e minha mãe hospedeiros de ‘Mama’ e ‘Baba’, como meus
irmãos faziam, ao invés de chamá-‐los pelo nome. A partir desse
momento me senti realmente como um membro da família,
também tendo que seguir às regras que meus irmão e irmãs
seguiam: avisar Mama e Baba aonde ia quando saísse de casa,
sempre pedindo permissão antes de sair, nunca voltar depois
das 23 horas (eu cheguei em casa depois da meia noite apenas
em três ocasiões, no ano novo e em aniversários de amigos),
entre outros.
Por mais que eu me sentisse entediado na escola e não
gostasse muito das pessoas de lá, eu interagia com algumas
pessoas de lá; Salma, a garota que havia viajado com o AFS,
Sherif, que foi a única pessoa que eu encontrei na escola que
realmente ia aos protesto de Tahrir, e uma outra menina
chamada Claudia. Eles eram legais comigo e um dia me
chamaram para jantar com eles.
Iria ser a primeira vez que eu sairia sozinho do Moqattam;
minha mãe hospedeira ficou muito preocupada e chamou um
ligue-‐táxi para me levar. De qualquer jeito, eu me perdi no
meio do caminho, pois nunca havia ido para Masr el Gedida,
aonde eu havia combinado de jantar com os meus amigos.
Estar perdido com um taxista estranho foi um momento meio
tenso, mas após alguns telefonemas e instruções eu consegui
chegar ao local.
Seriam muitas as vezes que eu me perderia no Cairo em
um taxi, mas a situação não era totalmente ruim. Os taxistas
egípcios tem uma fama mundial por causa do seu jeito louco de
dirigir e das artimanhas que usam para conseguir dinheiro de
turistas, e mesmo entre os egípcios eles são vistos como
mesquinhos. Porém eu devo muito à essas pessoas, pois acho
que meus “passeios” de taxi foram um dos momentos em que
eu mais aprendi a língua árabe durante o meu intercâmbio.
Bem, os taxistas egípcios não gostam de ficar em silêncio, e
começavam a falar dos mais diversos assuntos, de política até
música. Eram poucos os que falavam inglês, normalmente os
taxistas das áreas mais turísticas, então eu acabava falando
bastante em árabe ao me locomover pela cidade. Encontrei
todo o tipo de gente dirigindo taxis no Cairo, alguns eram bem
entediantes, alguns eram super-‐religiosos e ficavam ouvindo
transmissões do Qur’an no rádio, outros não falavam nada e
outros eram pessoas muito amigáveis que me contavam
histórias dos lugares que passávamos, corrigiam meu árabe
quando eu falava e discutiam a situação política do país.
Lembro-‐me de ter pego um taxi cujo taxista sabia tudo sobre a
fundação de Brasília e era um grande admirador de Juscelino
Kubitschek.
Depois da minha primeira aventura de taxi, eu comecei a
ir cada vez mais longe da minha casa. Comecei a falar com
gente na rua, pedir informação quando não precisava, puxava
assunto com o Masa3oud do mercadinho e com a família do
Hassan que vendia frutas... Tudo para treinar o árabe e falar o
mais possível, e assim meu domínio da língua foi melhorando.
Percebi que em determinado momento, as coisas que eu havia
aprendido no Brasil durante as aulas de árabe começaram a se
juntar na minha cabeça, fazendo com que eu tivesse mais
facilidade em relação aos outros intercambistas.
Outra coisa que eu acho que me ajudou um pouco foi o
fato de que os sons na língua portuguesa são mais parecidos
com os sons da língua árabe do que o Inglês, Holandês e
Dinamarquês, as línguas dos outros estudantes. Eu tinha bem
mais facilidade com a pronúncia, e se eu me concentrasse,
conseguia disfarçar meu sotaque relativamente bem; ainda
sim, sempre perguntavam se eu era de algum país da Europa
depois de falar um pouco comigo, talvez devido ao fato de eu
ainda usar roupas de turista naquela época.
Depois de mais ou menos um mês de que eu havia
chegado, o AFS me telefonou para me avisar de que todos os
intercambistas precisavam renovar os vistos, que iriam vencer
logo, e obter extensões de estadia. Como o serviço público
egípcio estava mais desorganizado do que nunca depois da
revolução, o AFS nos disse para pegar um visto de estadia
temporária para fins turísticos.
Já no dia seguinte nos encontramos na Midan el Tahrir no
centro no Cairo para irmos ao prédio central do governo, a
Mogamma3, aonde ficava o controle de imigração. Felizmente
o AFS havia enviado um voluntário egípcio para nos ajudar com
o que parecia uma tarefa simples, mas na verdade era um
pouco mais complicado.
A Mogamma3 era enorme, e bem antiga. Tivemos que
deixar nossas câmeras no guarda-‐volumes, pois fotos não eram
permitidas, e passamos por detectores de metal várias vezes. O
lugar era muito grande e muito cheio, um verdadeiro labirinto
de corredores e salas que se estendiam para todos os lados de
maneira muito confusa.
Era como um microcosmo da sociedade egípcia em si:
pessoas usando as tradicionais galabeyyas árabes, vendedores
de comida e refrescos gritando pelos corredores do prédio,
mulheres de niqab, pessoas fumando pelos corredores, pessoas