Militantes, atores políticos e biografados: Abdias do Nascimento e Lélia Gonzalez. MÍRIAN CRISTINA DE MOURA GARRIDO As relações raciais brasileiras e as formas como elas se consolidaram no Brasil estão no foco das discussões acadêmicas e políticas no país. O confronto não é novo, mas a forma como tem sido debatido e a visibilidade que tem ganhado são um fenômeno novo e, em grande medida, fruto de uma militância aguerrida que emergiu na década de 1970 para denunciar o mito da democracia racial e o efeito danoso que ele causa na sociedade brasileira. Abdias do Nascimento (1914-2011) e Lélia Gonzalez (1935-1994) possuem, com toda a certeza, um espaço privilegiado nesse novo movimento negro combativo politicamente e que enxergou na esfera política o meio privilegiado de reverter o preterimento do negro no país. Vinte e um anos de diferença separam o nascimento de Abdias ao de Lélia, as experiências e os contextos em que viveram também são caracterizados por essa distância, contudo ambos se unem em prol de um bem comum: a denúncia e a superação dos danos materiais e simbólicos causados pelo racismo. O artigo que por ora se apresenta no XXVIII Simpósio Nacional de História é parte de discussões mais amplas que serão o produto final do doutoramento da autora. Efetivada a ressalva, espera-se que se compreendam as limitações do texto delineado. Mas ao mesmo tempo, que o escrito possa contribuir para o alargamento das discussões sobre raça e racismo. Para tornar o intento mais didático e a fim de explorar a relação entre os biografados, os contextos de suas vivências e como influíram num processo maior – o da ampliação de direitos dos negros brasileiros -, o texto está dividido em 2 partes: a primeira com considerações metodológicas e caracterização dos autores das obras a segunda uma explanação sobre a apreensão das visões de mundo dos dois militantes dispostas nessas obras. Biografias e autobiografia: breve incursão. A década de 1990 caracterizou um boom editorial, desde então, o gênero tem se manifestado amplamente nos catálogos das editoras porque são, sem sombra de dúvida, uma literatura que agrada o público, inclusive o acadêmico. O salto quantitativo das produções já foi alvo de reflexões e vale aqui apontar algumas das considerações elencadas por elas. Doutoranda em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP/Assis, Agência Financiadora: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP.
18
Embed
Militantes, atores políticos e biografados: Abdias do ... · PDF file2 O historiado e especialista em biografias Benito Bisso Schmidt (1997) propõe no texto em questão...
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
Militantes, atores políticos e biografados: Abdias do Nascimento e Lélia Gonzalez.
MÍRIAN CRISTINA DE MOURA GARRIDO
As relações raciais brasileiras e as formas como elas se consolidaram no Brasil estão
no foco das discussões acadêmicas e políticas no país. O confronto não é novo, mas a forma
como tem sido debatido e a visibilidade que tem ganhado são um fenômeno novo e, em
grande medida, fruto de uma militância aguerrida que emergiu na década de 1970 para
denunciar o mito da democracia racial e o efeito danoso que ele causa na sociedade brasileira.
Abdias do Nascimento (1914-2011) e Lélia Gonzalez (1935-1994) possuem, com toda
a certeza, um espaço privilegiado nesse novo movimento negro combativo politicamente e
que enxergou na esfera política o meio privilegiado de reverter o preterimento do negro no
país. Vinte e um anos de diferença separam o nascimento de Abdias ao de Lélia, as
experiências e os contextos em que viveram também são caracterizados por essa distância,
contudo ambos se unem em prol de um bem comum: a denúncia e a superação dos danos
materiais e simbólicos causados pelo racismo.
O artigo que por ora se apresenta no XXVIII Simpósio Nacional de História é parte de
discussões mais amplas que serão o produto final do doutoramento da autora. Efetivada a
ressalva, espera-se que se compreendam as limitações do texto delineado. Mas ao mesmo
tempo, que o escrito possa contribuir para o alargamento das discussões sobre raça e racismo.
Para tornar o intento mais didático e a fim de explorar a relação entre os biografados,
os contextos de suas vivências e como influíram num processo maior – o da ampliação de
direitos dos negros brasileiros -, o texto está dividido em 2 partes: a primeira com
considerações metodológicas e caracterização dos autores das obras a segunda uma
explanação sobre a apreensão das visões de mundo dos dois militantes dispostas nessas obras.
Biografias e autobiografia: breve incursão.
A década de 1990 caracterizou um boom editorial, desde então, o gênero tem se
manifestado amplamente nos catálogos das editoras porque são, sem sombra de dúvida, uma
literatura que agrada o público, inclusive o acadêmico. O salto quantitativo das produções já
foi alvo de reflexões e vale aqui apontar algumas das considerações elencadas por elas.
Doutoranda em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” –
UNESP/Assis, Agência Financiadora: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo –
FAPESP.
2
O historiado e especialista em biografias Benito Bisso Schmidt (1997) propõe no texto
em questão analisar como se constituiu a volta da produção do gênero e demarcar
aproximações e distanciamentos entre o produto do historiador para o do jornalista. A
vitalidade da biografia no jornalismo está segundo o autor associado ao movimento chamado
new journalism que, resumidamente, define-se pela aplicação de técnicas ficcionais a textos
que não são ficção, tais como a história de vida. No caso da história, a biografia ganha folego
com o enfraquecimento do paradigma estruturalista na academia.
Partindo da concepção de estruturalismo como uma forma de visualizar a história em
seus mecanismos mais amplos, ligados geralmente aos aspectos econômicos, era difícil de
fato na historiografia brasileira emplacar um estudo que tomasse por objeto a vida de um
indivíduo. Mesmo porque a biografia antes de 1960, ao menos no Brasil, ainda carregava o
fardo de uma visão positivista da História no qual os biografados eram os homens
excepcionais, tais como os grandes líderes políticos.
Benito Schmidt afirma que o desenvolvimento da biografia feita por historiadores foi
favorecida pelo “recuo da história quantitativa e serial e o avanço dos estudos de caso e da
micro-história” (1997, p.5). Soma-se a esse cenário, tanto no jornalismo como na história, a
aproximação desses campos com a literatura. Mas as diferenças mais elementares na produção
das duas áreas seriam: (a) o cuidado com as fontes, não apenas no seu levantamento
incansável, caso dos jornalistas, mas na transposição dessas informações ao leitor,
identificando o que pode ser obtido ou não com determinadas fontes; (b) a liberdade ficcional
maior ao jornalista, ao passo que o historiador quando deseja supor algo que não se encontra
na fonte é necessário efetivar a ressalva que o fato “talvez”, “possivelmente” deve ter se
desenrolado como o narrado; (c) o objetivo da biografia em história, em geral, associado a
apreensão de contextos e questões mais amplas do que a trajetória individual, sendo esta uma
forma de compreender parte desse objetivo.
Apenas para exemplificar essa liberdade ficcional nos textos selecionados, quando
Sandra Almada – jornalista – descreve como era viver em Franca no período próximo ao fim
da escravidão afirma “Era um privilégio poder ver através dos olhos de Abdias, que assistira
àquele momento tão significativo, e tão de perto, como transcorria a existência negra naquele
início de século” (2009, p.24 – grifos da autora).
Para Ângela de Castro Gomes (2004) “Cartas, diários íntimos e memórias, entre
outros, sempre tiveram autores e leitores, mas na última década, no Brasil e no mundo,
3
ganharam um reconhecimento e uma visibilidade bem maior, tanto no mercado editorial,
quanto na academia” (p.8). O fenômeno é apontado como resultado de três fatores: o gosto
dos leitores; a expansão de uma historiografia que aborda preocupações da esfera política,
cultural e social, e que tem se ocupado em desvendar as práticas de escrita e leitura; a
constituição de centros de pesquisa e documentação que armazenam diversos documentos
privados e públicos e que, portanto, estimulam discussões sobre a guarda e uso desses
materiais, dos quais exemplifica o CPDOC centro de pesquisa do qual é integrante.
Para Gomes estaria na preocupação do historiador ligado a escrita de si não “o que
realmente aconteceu” mas “a ótica assumida pelo registro e como seu autor a expressa” (2004,
p.15), no caso da história de vida de militantes – seja de qualquer ordem, movimento social
negro, feminista, ambientalista, etc. – o registro de sua vida se dá exatamente pela sua ligação
ao movimento social e, nada mais natural, que a narrativa seja construída em torno dessa
preocupação do biografado, no caso, como perceberam o racismo e o que os levaram a militar
em prol de uma mudança das relações raciais em âmbito internacional, inclusive.
De acordo com Schmidt “penso ser importante destacar uma das tarefas fundamentais
do gênero biográfico na atualidade é recuperar a tensão, e não a oposição, entre o individual e
o social” (1997,p.16 – grifos do autor), a definição, vai ao encontro do que se espera das
biografias dos militantes. Nelas o indivíduo é focalizado, mas a grande questão é como eles
apreenderam as relações raciais que os transformaram, então, em militantes.
A metáfora do historiador francês Philippe Artières (1998) ilustra parte das
preocupações daquele que faz uso de biografias:
[...] Em toda família, existe com efeito o hábito de dedicar regularmente
longas tardes a reunir e a organizar as fotos relacionadas com a vida de cada
um dos seus membros. Um casamento, um nascimento, uma viagem são
objeto de uma ou de várias páginas. Não colocamos qualquer foto nos nossos
álbuns. Escolhemos as mais bonitas ou aquelas que julgamos mais
significativas; jogamos fora aqueles em que alguém está fazendo uma careta,
ou em que aparece uma figura anônima. E depois as ordenamos esforçando-
nos para reconstruir uma narrativa. Quando a foto é muito enigmática,
acrescentamos um comentário. Quando uma visita chega, começa a
cerimônia das fotos, fazem-se observações, viram-se algumas páginas
rapidamente. Acontece também, com o tempo, de algumas fotos serem
retiradas, porque são comprometedoras, porque não são condizentes com a
imagem que queremos das de nós mesmos e da nossa família. Pois o álbum
de retratos constitui a memória oficial da família; só raramente os amigos
tem lugar nele. O essencial é que em alguns minutos, uma hora no máximo,
possamos justificar o tempo passado e sua coerência. [...] (p.14)
4
Portanto, aquele que se propõe a arquivar a sua própria vida preocupa-se – consciente
ou inconscientemente – primeiro a organizar aquilo que acredita ser relevante; hierarquizar e
selecionar, determinando assim o grau de relevância que o indivíduo atribui a determinado
objeto de arquivamento; e se responsabiliza por guardar esses arquivos. Mais do que
produtores de memórias: “Sempre arquivamos as nossas vidas em função de um futuro leitor
autorizado ou não (nós mesmos, nossa família, nossos amigos ou ainda nossos colegas)”
(ARTIÈRES, 1998, p.34).
No caso dos militantes negros, suas biografias são produzidas muitas vezes por
indivíduos também envolvidos no movimento negro e, portanto, simpáticos as causas dos
biografados. Flávia Rios, por exemplo, construiu sua trajetória acadêmica dentre os temas
raciais e as lutas anti-racistas1 e, é autora de textos biográficos de outros 3 indivíduos
relacionados ao movimento negro ou a identidade negra (Thereza Santos, Hamilton Cardoso,
Carolina de Jesus) ; e Sandra Almada, declaradamente militante do movimento negro e
estudiosa das relações raciais2, também autora do livro que narra a trajetória de 4
personalidades femininas do meio artístico ligadas a luta contra a discriminação.
As duas biografias utilizadas são fruto da Coleção Retratos do Brasil Negro, uma
iniciativa do Grupo Summus publicada pelo Selo Negro – uma das editoras do grupo – e, cujo
objetivo é abordar a vida e obra de figuras fundamentais da cultura, da política e da militância
negra, segundo o site da editora. Os livros são, portanto, obras encomendadas com um
objetivo pré-estabelecido e seus autores, ao que tudo indica, selecionados pela proximidade de
pesquisa ou de vivência com a militância negra, dos selecionados nenhum é historiador. Faz
parte da coleção até o momento biografias de Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez, Sueli
Carneiro, Nei Lopes, Cruz e Souza, João Candido, Luiz Gama, Lima Barreto, e a história do
Centro de Cultura e Arte Negra (CECAN) do qual são provenientes parte importante dos
indivíduos que formaram o Movimento Negro Unificado em 1978.
O livro de Abdias do Nascimento, com coautoria de Elé Semog, selecionado como
uma das fontes de discussão para esse texto consiste numa autobiografia, para a qual estou
atenta sobre a constituição do documento, sabendo que “Numa autobiografia, a prática mais
acabada desse arquivamento [da própria vida], não só escolhemos alguns acontecimentos,
1 Informação obtida em: Grupo Summus. Disponível em: