Top Banner

of 264

MHN_Livro - Miolo - 19mai14

Jul 06, 2018

Download

Documents

Bruno Brulon
Welcome message from author
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
  • 8/17/2019 MHN_Livro - Miolo - 19mai14

    1/264

    MUSEU HISTÓRICO NACIONAL

    RIO DE JANEIRO | 2014

    90 ANOS DO MUSEU HISTÓRICO NACIONALem debate (1922-2012)

  • 8/17/2019 MHN_Livro - Miolo - 19mai14

    2/264

    Presidenta da República

    Dilma Vana Rousseff 

    Ministra da CulturaMarta Suplicy

    Instituto Brasileiro de Museus

    Presidente Angelo Oswaldo de Araújo

    Santos

    Museu Histórico Nacional

    Diretora Vera Lúcia Bottrel Tostes

    Livros do Museu Histórico Nacional

    Editor Vera Lúcia Bottrel Tostes

    Coleções e Colecionadores:

    90 anos do Museu Histórico Nacional

    em debate (1922-2012)

    Organização

    Aline Montenegro Magalhães

    Rafael Zamorano Bezerra

    Revisão

    Fernanda Maria Santos Silveira e 

    Cristina Loureiro de Sá

    Diagramação

    Avellar e Duarte Serviços Culturais

    Produção Editorial

    Avellar e Duarte Serviços Culturais

    M188

    90 anos do Museu Histórico Nacional: em debate / organização: Aline Montenegro

    Magalhães, Rafael Zamorano Bezerra – Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2013.

    272 p. : il.; 22,5 cm. – (Livros do Museu Histórico Nacional)

      Livro baseado no Seminário Internacional: 90 anos do Museu Histórico Nacional em debate

    (1922-2012), de 01 a 03 de outubro de 2012.

      ISBN: 978-85-85822-20-0

      1. Museus. 2. Memória. 3. Patrimônio. 4. Coleções. 5. Colecionadores.

    I. Título. II. Magalhães, Aline Montenegro. III. Bezerra, Rafael Zamorano. IV. Série.

    CDD 069

    As opiniões e conceitos emitidos nesta publicação são de inteira responsabilidade de seus autores,

    não reetindo necessariamente o pensamento do Museu Histórico Nacional.

    É permitida a reprodução, desde que citada a fonte e para ns não comerciais.

  • 8/17/2019 MHN_Livro - Miolo - 19mai14

    3/264

    90 ANOS DOMUSEU HISTÓRICO

      NACIONALem debate (1922-2012)

  • 8/17/2019 MHN_Livro - Miolo - 19mai14

    4/264

    Sumário 

     APRESENTAÇÃO

     ApresentaçãoVera Lúcia Bottrel Tostes

    página 7

    Os museus e a modernização: o lugar dosseminários internacionais do MHN Aline Montenegro Magalhães e Rafael Zamorano Bezerra

    página 10

     VISÕES SOBRE 1922

    O contexto historiográfco de criação do MuseuHistórico Nacional: cientifcidade e patriotismona narrativa da história nacional Angela de Castro Gomes

    página 14

    O Rio e a Exposição do CentenárioRuth Levy

    página 31

    Evocações sobre o Morro do Castelo: de berço dacidade a obstáculo ao progresso

    Cesar Augusto Ornellas Ramospágina 49

    MUSEU HISTÓRICO NACIONAL –HISTÓRIA, ACERVO

    Fazendo história em um museu de história –Noventa anos de aquisição e interpretação no

    Museu Histórico Nacional José Neves Bittencourtpágina 72

    O Museu Histórico Nacional e seu conjuntoarquitetônico: preservação e resgateVera Lúcia Bottrel Tostes

    página 95

    O poder político vem do cano de uma arma Adler Homero Fonseca de Castro

    página 109

    MUSEUS E PATRIMÔNIO

     A Inspetoria Estadual de Monumentos Nacionaisdo estado da Bahia: do discurso à ação (1927-

    1938)Suely Moares Ceravolo

    página 122

    Um prelúdio pernambucano: a inspetoria demonumentos entre 1928 e 1930Rodrigo Cantarelli

    página 143

    De objetos de notável valor a monumentoshistóricos: a letra e a ação preservacionista daInspetoria de Monumentos Nacionais (1934-1937) Aline Montenegro Magalhães

    página 157

    Museus e a preservação do patrimônio no BrasilLetícia Julião

    página 173

    Projetos nacionais de preservação do patrimônio:promoção, divulgação e turismo nos sítiosurbanos patrimonializados durante a gestão deRodrigo Mello Franco de AndradeLeila Bianchi Aguiar 

    página 187

    Para descolonizar museus e patrimônio: reetindosobre a preservação cultural no BrasilMárcia Chuva

    página 195

  • 8/17/2019 MHN_Livro - Miolo - 19mai14

    5/264

    DO CURSO DE MUSEUS À ESCOLA DEMUSEOLOGIA – 80 ANOS

    Institucionalização das práticas museológicas:

    oitenta anos do Curso de MuseusIvan Coelho de Sá

    página 221

     ANEXO

    Programa do Seminário Internacional 90 anos

    do Museu Histórico Nacional em debate (1922- 2012)página 262

    Cultura e diversidade: patrimônio e museus na

    urbs contemporâneaCêça Guimaraens

    página 209

    O nascimento da Museologia: conuências e

    tendências do campo museológico no BrasilBruno Brulon Soares, Luciana Menezes de Carvalho e Henrique de

    Vasconcelos Cruz

    página 242

  • 8/17/2019 MHN_Livro - Miolo - 19mai14

    6/264

  • 8/17/2019 MHN_Livro - Miolo - 19mai14

    7/264

    MUSEU HISTÓRICO NACIONAL 77

     APRESENTAÇÃO

     Apresentação

     Vera Lúcia Bottrel Tostes*

    Ao completar noventa anos de existência, o Museu Histórico Nacional (MHN)se vê inserido na dinâmica do mundo moderno, anado com as demandasdo seu tempo. O desao da produção e divulgação do passado em diferentessuportes, como as exposições e as publicações, nos impulsiona a estabelecerdiálogos cada vez mais amplos e constantes com a sociedade, de um modo

    geral, e as instituições de cultura, ensino e pesquisa, mais especicamente.O Seminário Internacional é um dos principais espaços de realização desses diálogos. Com

    edição anual, sempre em outubro, momento em que o MHN comemora seu aniversário deinauguração, reúne professores, pesquisadores, técnicos, prossionais das mais diversas áreas doconhecimento, estudantes e público geral para apresentação de trabalhos, debates e reexões sobrediversos assuntos, desde os ligados à história e à museologia até os mais especícos, relacionados aalguma data comemorativa. O evento de 2012 não poderia deixar de ser dedicado aos noventa anos

    de criação do MHN, por um longo tempo também chamado Casa do Brasil .Realizado entre os dias 1 e 3 de outubro de 2012, o Seminário Internacional 90 anos do Museu Histórico Nacional em debate (1922-2012) não se dedicou apenas à análise da trajetóriainstitucional do museu. Conforme mostra a organização do livro e o programa do evento a que oleitor terá acesso nesta publicação, houve a preocupação em abordar o momento histórico no qual

    * Museóloga. Diretora do Museu Histórico Nacional. Professora da Escola de Museolgia da Unirio.

  • 8/17/2019 MHN_Livro - Miolo - 19mai14

    8/264

    MUSEU HISTÓRICO NACIONAL88

    o MHN foi criado, as iniciativas que antecederam e sucederam à sua criação em ações pioneiras,

    como a preservação do patrimônio – com a Inspetoria de Monumentos Nacionais, entre 1934 e1937 –, bem como as que signicaram uma continuidade de iniciativas pioneiras do MHN – comoa Escola de Museologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), oriunda doCurso de Museus criado no MHN em 1932.

     Nessa perspectiva, o presente livro foi organizado em dossiês temáticos que procuraramacompanhar o curso de realização do seminário. Em Visões sobre o ano de 1922 apresentamoso artigo da conferência de abertura proferida por Angela de Castro Gomes sobre o contexto

    historiográco desse momento. Sendo o MHN um lugar de escrita de história, nada maisenriquecedor do que contrapor Gustavo Barroso, seu primeiro diretor, com os autores e asconcepções de história do tempo de sua criação. Em seguida, Ruth Levy assina um estudo sobrea Exposição Comemorativa do Centenário da Independência, cujo conjunto arquitetônico sobo qual o MHN foi criado gurou entre os pavilhões, o das Grandes Indústrias. Cesar AugustoOrnellas Ramos, nas suas  Evocações do Morro do Castelo..., analisa a história deste que,considerado o berço da cidade do Rio de Janeiro, após uma grande polêmica que teve lugar naimprensa, veio abaixo justamente em 1922.

    O dossiê  Museu Histórico Nacional – história, acervo  apresenta os artigos de José NevesBittencourt, uma análise sobre os noventa anos de trajetória institucional, um texto de minhaautoria sobre a preservação do conjunto arquitetônico que abriga o MHN, um estudo de AdlerHomero Fonseca de Castro sobre nossa coleção de canhões.

    O seguinte trata do assunto  Museus e patrimônio.  Contém trabalhos de Suely Ceravolo

    sobre a Inspetoria de Monumentos da Bahia, e de Rodrigo Cantarelli a respeito da Inspetoria deMonumentos de Pernambuco – ambas criadas na década de 1920, em âmbito estadual, que sóagora têm recebido atenção devida dos estudiosos. Em seguida, Aline Montenegro escreve sobre aInspetoria de Monumentos Nacionais, analisando o descompasso entre sua legislação e sua ação.Letícia Julião aborda o papel dos museus na história da preservação do patrimônio nacional. Jáno âmbito do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), atual Instituto doPatrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), Leila Bianchi Aguiar analisa a relação entre a

     preservação do patrimônio cultural das cidades ditas “históricas” e o desenvolvimento do turismo,e Márcia Chuva propõe uma reexão sobre a atribuição de valor aos objetos de museus, focando oMuseu das Missões no Rio Grande do Sul como um estudo de caso. Fechando este dossiê temos oartigo de Cêça Guimaraens, uma análise sobre o papel dos museus no espaço urbano.

     Do Curso de Museus à Escola de Museologia é dedicado à análise do ensino da museologiano Brasil, iniciativa pioneira na América Latina, levada a cabo no Museu Histórico Nacional com

  • 8/17/2019 MHN_Livro - Miolo - 19mai14

    9/264

    MUSEU HISTÓRICO NACIONAL 9

    a criação do Curso de Museus em 1932. Voltado para formar prossionais especializados para o

    trabalho nos museus, os então chamados conservadores, o curso funcionou no MHN até 1979,quando foi transferido para a Universidade do Rio de Janeiro (Unirio),2 onde, até hoje, como Escolade Museologia, forma museólogos que atuam em diversas instituições no Brasil e no exterior. Neste último dossiê contamos com dois artigos que analisam a trajetória do Curso de Museus esuas transformações. Um de autoria do professor Ivan Coelho de Sá e outro dos autores BrunoBrulon, Luciana Menezes de Carvalho e Henrique de Vasconcelos Cruz.

    A todos que colaboraram com esta edição, em especial aos autores, o nosso agradecimento por

    enviarem generosamente seus estudos. Graças a essa contribuição é possível a leitura crítica dosnoventa anos da trajetória do Museu Histórico Nacional e da história dos museus e da preservaçãodo patrimônio no Brasil.

    Parabéns à Escola de Museologia pelos oitenta anos existência! Parabéns ao Museu Histórico Nacional pelos noventa anos de atividades ininterruptas. Que o dinamismo e a troca continuemsendo as marcas dessas duas instituições exemplares.

    A todos que nos leem, desejamos boas reexões!

    2 Atual Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

  • 8/17/2019 MHN_Livro - Miolo - 19mai14

    10/264

    MUSEU HISTÓRICO NACIONAL1010

    Os museus e a modernização: o lugar dos semináriosinternacionais do MHN

     Aline Montenegro Magalhães*

    Rafael Zamorano Bezerra**

    Em uma época em que diversos museus tornaram-se centenários, ou próximos disso, fala-se

    muito sobre o papel a ser ocupado por essas instituições em um futuro próximo, marcado peloadvento das tecnologias de informação e pelas crescentes demandas por uma democracia mais participativa e plural, em termos sociais e étnicos. Comenta-se, especialmente, sobre a necessidadede modernização das instituições museológicas, a m de adaptarem-se à realidade contemporânea. Nesse aspecto, duas imagens de modernização são recorrentes no campo museológico e vamoschamá-las aqui, improvisadamente, de “modernização tecnológica” e de “modernização política”.

    A “modernização tecnológica” pode ser pensada em dois aspectos. O primeiro diz respeito ao

    acesso à informação, que se torna mais eciente na medida em que a tecnologia melhora e agilizaa produção e a recuperação de dados sobre o acervo museológico, a partir da indexação de temase de periodizações, das catalogações, dos inventários e dos demais dispositivos de controle daciência da informação. O segundo aspecto é o expográco, em que exposições virtuais, recursosmultimídia, aplicativos para  smartphones, monitores touch screen  nos circuitos expositivos etodas as inovações das primeiras décadas do século XXI são incorporados como recurso didáticoe interativo a m de atrair público e aproximar a linguagem museográca às novas tecnologias de

    informação e comunicação (TICs).A sociedade contemporânea é marcada pela proliferação de dispositivos digitais, como jogos,

    tablets, mobiles, entre outros. Neste contexto, os museus poderiam ser um contraponto a esse modelode sociedade: um lugar onde crianças e jovens pudessem desenvolver uma melhor noção do tempo*  Historiadora e coordenadora da pesquisa no Museu Histórico Nacional. Doutora em História Social (PPGHIS/UFRJ). Professora naUniversidade Estácio de Sá e pesquisadora associada do PROARQ/UFRJ.** Historiador no Museu Histórico Nacional (MHN/Ibram). Doutorando em História Social (PPGHIS/UFRJ).

  • 8/17/2019 MHN_Livro - Miolo - 19mai14

    11/264

    MUSEU HISTÓRICO NACIONAL 11

    OS MUSEUS E A MODERNIZAÇÃO: O LUGAR DOS SEMINÁRIOS INTERNACIONAIS DO MHN

    ao conhecer objetos estranhos ao seu cotidiano, outrora tão úteis como os dispositivos digitais

    atuais. O objeto antigo, nessa perspectiva, pode se tornar uma novidade, e os museus não devem terreceio de serem locais de coisas velhas. É conhecida, no meio museológico, a história de um jovemque, ao ver uma máquina de escrever, exclamou: “Nossa! Um computador que imprime ao mesmotempo em que digitamos!” O contato com artefatos de outros tempos suscita curiosidade, instigaa imaginação e provoca questionamentos inocentes, como o do lho pequeno do historiador MarcBloch que arguiu o pai sobre a utilidade da História, questão que foi o mote para suas clássicasreexões sobre o ofício do historiador,1 ou as inquietações do personagem do lme do aclamado

    diretor alemão Werner Herzog, sobre a história de Kaspar Hauser, um adolescente do século XIXque cresceu num porão escuro sem nunca ter tido contato com outros homens, mas que ao ser“civilizado” fazia questionamentos inocentes e inquietantes, improváveis de serem elaborados poralguém enquadrado nos padrões de sociabilidade de sua época.2 Tais perguntas, passíveis de serem provocadas por meio dos objetos nas exposições, levam a crer que o espetáculo da tecnologia porsi mesma não traz grandes avanços aos museus em termos expográcos.

    A “modernização tecnológica” nos parece ser mais útil quando é usada como ferramenta paraa formulação de novas perguntas e para a ampliação do acesso à informação sobre o acervo, suadivulgação pública e gratuita para pesquisa, assim como para a melhora da qualidade e da agilidadenas consultas.

    Outra imagem é a “modernização política” e diz respeito às transformações no uso político dosmuseus, como espaços de consagração da memória e de produção de esquecimento. Trata-se dediscursos museográcos visando ao “resgate”, à celebração ou à rememoração das memórias queforam oprimidas, esquecidas ou apagadas no jogo político da dominação, no qual a produção dememórias é uma das principais estratégias de poder.

    Os museus sempre tiveram um papel fundamental nas ideologias políticas, na construção dasidentidades nacionais e no sentimento de pertencimento a uma história, sociedade, comunidadeou nação. Os tradicionais museus nacionais, como o MHN, serviram durante anos como temploda história-memória3  nacional, onde os grandes homens e suas realizações eram celebrados. Ahistória-memória construída nesses museus vincula-se às elites nacionais e aos seus interesses,

    deixando grande parte da população e suas manifestações culturais fora do cânone estabelecido pelas elites. É claramente um museu suscetível ao uso político e ideológico.

    1 BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.

    2 O ENIGMA de Kaspar Hauser [título em alemão:  Jeder für sich und Gott gegen alle]. Direção Werner Herzog. Produção: Henning VonGierke. Intérpretes: Bruno Schleinstein, Walter Ladengast e outros. Roteiro: Werner Herzog, Jakob Wassermann. Alemanha: 1974. DVD.3 NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: Projeto história. Revista do programa de estudos de Pós-graduaçãoem História e do Departamento de História. São Paulo, n.10, p. 7-29, 1981.

  • 8/17/2019 MHN_Livro - Miolo - 19mai14

    12/264

    MUSEU HISTÓRICO NACIONAL12

     ALINE MONTENEGRO MAGALHÃES E RAFAEL ZAMORANO BEZERRA 

    A contraproposta a esse museu, que se revela em algumas ocasiões em processos que estamos

    chamando aqui de “modernização política”, inverte o jogo, porém usa a mesma estratégia. Nele,o elemento minoritário e historicamente excluído do cânone é representado em objetos dísparese ordinários, que remetem ao homem comum, o chamado “povo”. Embora essas propostasapresentem um caráter democratizante da memória, uma vez que incorporam segmentosmarginalizados da memória nacional, estão sujeitas às oscilações políticas, características dorevezamento de poder das democracias.

    A construção de qualquer identidade pressupõe um processo de exclusão e inclusão. Os espaços

    ideais para tais construções são as festas e feiras populares, práticas musicais e esportivas, rituaisreligiosos etc., em suma, as manifestações culturais mais espontâneas e orgânicas e, portanto,menos suscetíveis às inuências políticas dos grupos de poder, como ocorre nas instituições públicas de memória. Por isso, consideramos que os museus, principalmente os museus nacionais,como o Museu Histórico Nacional ou o Museu Nacional de Belas Artes, deveriam se distanciardas responsabilidades de serem os “representantes da diversidade cultural brasileira”, “guardiãesda memória nacional” ou os “representantes da nossa identidade”, como se arma enfaticamente.Em outras palavras, os museus devem se distanciar do papel de serem lugares de construçãode memória e identidade, para se tornarem espaços privilegiados para o estudo da construção etransformação dos “lugares de memória” e das identidades nacionais. Assim, as funções básicasde um museu (preservação, comunicação e pesquisa) , deveriam ser orientadas por objetivosmuito claros, baseadas em linhas de pesquisa, com suas escolhas divulgadas e problematizadas emações educativas, artigos acadêmicos publicados em periódicos etc. Assim, os museus atuariam na promoção de um pensamento crítico sobre os processos de construção de identidade, memória eesquecimento, cujo caminho seria orientado, de acordo com seu acervo, historicidade e público-alvo, assumindo assim o caráter de laboratório da história,4 constituindo-se em locais de produçãoe reexão crítica, e não somente espaços de celebração e armação de identidades.

    Claramente, o trabalho de pesquisa seria primordial. Não somente a pesquisa aplicada, voltada aolevantamento de dados e à autenticação de acervo. Essa pesquisa é fundamental e necessária. Porém,acreditamos que a pesquisa cientíca e acadêmica deveria ter um espaço estratégico na atividade

    museológica. Apesar de várias ciências terem se desenvolvido nos museus, como a mineralogia, a botânica, a antropologia, a arqueologia e a própria museologia, ao longo dos anos as pesquisas cientíca eacadêmica foram esvaziadas da grande maioria dos museus, que aos poucos foram sendo deslegitimadoscomo lugares de produção de conhecimento, papel assumido atualmente por universidades, centros de4 MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Do teatro da memória ao laboratório da história: a exposição museológica e o conhecimento histórico.

     Anais do Museu Paulista. São Paulo, v. 2, n. 1, p. 9-42, 1994 Disponível em: . Acesso em: 19. mar. 2014.

  • 8/17/2019 MHN_Livro - Miolo - 19mai14

    13/264

    MUSEU HISTÓRICO NACIONAL 13

    OS MUSEUS E A MODERNIZAÇÃO: O LUGAR DOS SEMINÁRIOS INTERNACIONAIS DO MHN

     pesquisa e museus ligados à área de ciência, tecnologia e inovação. Isso se estrutura no próprio

     planejamento da gestão pública de vários museus federais, que, vinculados ao Ministério da Cultura,não são enquadrados, tampouco reconhecidos, como instituições de ciência e tecnologia. Ao se posicionarem apenas como instituições de representação de identidades, entretenimento e turismo, osmuseus acabam por se tornar instituições mais políticas do que cientícas, portanto mais suscetíveisàs disputas e às pressões por representação e memória, que se tornam aspectos limitadores nas políticas de aquisição de acervo, nas pesquisas e nos projetos educativos e de exposição.

    Assim, consideramos que o que chamamos aqui de “modernização tecnológica” e de

    “modernização política” deveriam ser baseadas no fortalecimento da pesquisa aplicada, cientícae acadêmica, promovendo uma rede entre as atividades do chamado “tripé museológico”. Ou seja,os museus deveriam ter linhas de pesquisa vinculadas às políticas de aquisição de acervos e aos programas educativos e de exposições, tornando a instituição museológica uma interface entreo conhecimento técnico, cientíco e escolar e a sociedade. Um museu nacional, por exemplo, poderia, em vez, de se propor a representar o nacional, ser um espaço de reexão e pesquisa sobreas representações da nação ao longo dos anos, não pensando nelas como algo essencial, mas simcomo algo negociado, inventado, disputado e construído dia após dia. Linhas de pesquisa também poderiam ser criadas a partir das características tipológicas e semânticas dos objetos em coleções,atualizando os tradicionais estudos de cultura material, como a heráldica, a numismática e aourivesaria, disciplinas fundamentais à classicação e identicação de determinados artefatos. Issonão implica o retorno à museologia tradicional, voltada ao estudo das coleções e dos objetos, masuma retomada de tais conhecimentos, buscando neles as técnicas necessárias a um trabalho maisobjetivo e mais bem embasado das coleções.

    Esses processos de modernização deveriam incluir publicações cientícas e de divulgação, noformato de anais, revistas ou jornais, com avaliação cientíca baseadas em sistemas de arbitragem por pares e indexadas nas bases nacionais e internacionais de divulgação cientíca. Esse trabalho de produção e divulgação daria lastro ao caráter cientíco dos museus e aos estudos de suas coleções,sendo as publicações umas das interfaces entre os museus e as universidades e os centros de pesquisa.

    Portanto, o seminário internacional 90 anos do Museu Histórico Nacional em debate (1922-

    2012), e a publicação dos artigos relativos aos temas apresentados no evento, constituem espaçosnos quais as propostas de modernização baseadas em pesquisas cientícas e acadêmicas se mostramviáveis por possibilitarem a reunião de trabalhos especializados sobre as práticas preservacionistase museológicas a partir da celebração dos 90 anos de existência do MHN. Ou seja, a experiênciadesse seminário mostra a viabilidade de se usar uma data comemorativa para promover a produção,a troca e a divulgação do conhecimento.

  • 8/17/2019 MHN_Livro - Miolo - 19mai14

    14/264

    MUSEU HISTÓRICO NACIONAL14

     VISÕES SOBRE 1922

    O contexto historiográfico de criação do Museu HistóricoNacional: cientificidade e patriotismo na narrativa dahistória nacional

     Angela de Castro Gomes*

    Inicio agradecendo o honroso convite a mim dirigido pelo Museu Histórico Nacional (MHN),

    em data tão signicativa, atribuindo-o à admiração e ao carinho que tenho pela instituição, o queespero ter demonstrado em eventos anteriores, sempre enriquecedores. Certamente, contrariandoas expectativas do público, inicio declarando que as reexões que se seguirão querem ser modestas,mas honestas. Por isso, não pretendo trazer nada de propriamente novo, e muito menos fazerqualquer incursão sobre a história desse prestigioso museu, uma vez que estaria ensinando missaao vigário. Dessa forma, é bom começar explicando que tais considerações têm como ponto de partida uma preliminar que precisa car clara para resguardar as escolhas da conferencista.

    Essa preliminar diz respeito ao desao contido em um convite para se falar sobre o ano de 1922,uma vez que ele é considerado o momento de “início” da história do MHN. De fato, tal ano já seconsolidou em nossa memória histórica como uma data simbólica dos processos de transformação pelos quais passava o Brasil, após três décadas de República. O ano de 1922 é, antes de tudo,lembrado como o das comemorações do Centenário da Independência, que, para ser devidamenteassinalado, envolveu mais uma das grandes reformas urbanas que a capital federal vivenciou noséculo XX. Desenhado o cenário, a grandiosidade do evento repercutiu em todo o país e também

    no exterior como um marco da nacionalidade que armava sua grandeza econômica e cultural, enão apenas suas belezas naturais. É a esse monumental acontecimento, e não por acaso, que estãoligadas diversas iniciativas políticas – públicas e privadas – de teor memorial, como o retorno dosrestos mortais do imperador Pedro II, ainda em 1921; as grandes festas promovidas em São Pauloem torno do Museu Paulista ou do Ypiranga, que assume sua face histórica; a própria criação do* Professora Titular da Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre e doutora pelo Iuperj. Pesquisadora 1A do CNPq.

  • 8/17/2019 MHN_Livro - Miolo - 19mai14

    15/264

    MUSEU HISTÓRICO NACIONAL 15

    O CONTEXTO HISTORIOGRÁFICO DE CRIAÇÃO DO MUSEU HISTÓRICO NACIONAL: CIENTIFICIDADE E PATRIOTISMONA NARRATIVA DA HISTÓRIA NACIONAL

    Museu Histórico Nacional; e também a abertura do Museu Mariano Procópio, em Juiz de Fora,

    outra instituição voltada para a história pátria. Tudo isso, além de outras festividades ocorridas nosestados, ainda pouco contempladas pelas pesquisas acadêmicas, ao contrário das aqui citadas.

    Mas 1922 foi igualmente o ano da Semana de Arte Moderna, em São Paulo, cujosdesdobramentos são duradouros e decisivos para a cultura brasileira, embora não tenham sidotão imediatos. O movimento modernista, que foi plural e não só paulista, articulava-se a umasérie experimentações culturais, em especial vivenciadas no Rio de Janeiro, ainda que com outrosformatos e diapasão. Unindo essa multiplicidade de propostas modernizadoras e como uma questãocomum o desejo de transformar a sociedade e a cultura brasileiras mediante estratégias que podiamser: ou mais nacionalistas ou mais internacionalistas; ou mais ligadas às vanguardas estéticas daépoca ou mais inclinadas a um diálogo com a tradição do país, o que evidenciava a variedade de projetos modernistas existentes e sua competição por espaço no campo político e cultural.

    Se não bastasse, 1922 foi também o ano da fundação do Partido Comunista do Brasil, o PCB,que não tinha então nem organização nem condição de produzir maior impacto na vida política,

    sendo lembrado, nessa enumeração, muito mais em função de uma visão teleológica de sua própriahistória, ou talvez da história do anticomunismo no Brasil, ambas responsáveis por profundasmarcas na cultura política republicana do século XX. Ainda no campo político, o ano de 1922 eos seguintes assinalaram a irrupção de inúmeros movimentos de propaganda nacionalista, bemcomo de rebeldia política, civil e militar, entre os quais o maior destaque é o chamando movimentotenentista, que teve papel central na eclosão da Revolução de 1930 e nos acontecimentos do imediato pós-1930. Nesse caso, de modo amplo e geral, essas são mobilizações que criticam duramente a

    face política da experiência Primeira República, cada vez mais considerada fracassada, não só emsua prática (a violência nas eleições, o voto de cabresto, as fraudes no reconhecimento dos eleitos),como principalmente em seus princípios, já que o liberalismo, cada vez mais identicado com ofederalismo, via-se atacado e desacreditado.

    Além disso, a década de 1920 é assinalada pela organização da Associação Brasileira deEducação (ABE), em 1924, que deu suporte institucional às ideias da Escola Nova, outro movimentode caráter político-cultural que queria modernizar o país por meio de um instrumental sólido e

    seguro: a educação de seu povo, a começar pela da “infância”. Os anos 1920 são igualmente os damenos lembrada, porém não menos importante, reforma da Constituição, ocorrida em 1926, queapontava para uma tendência de fortalecimento da União perante os estados, já que evidenciava arealização de ajustes ao modelo de liberalismo e federalismo adotado pela Constituição de 1891.A essa altura está absolutamente claro que seria uma temeridade e quase inutilidade insistir em umtipo de exposição com tal objetivo, pela dimensão e pela profundidade que exigiria.

  • 8/17/2019 MHN_Livro - Miolo - 19mai14

    16/264

    MUSEU HISTÓRICO NACIONAL16

     ANGELA DE CASTRO GOMES

    Assim, tal percurso foi realizado como preliminar para se chegar a uma observação de fundo.

    A de que é no contexto dos anos 1920 – marcado por esse grande conjunto de eventos que luta pelamodernização do país e, ao mesmo tempo, vai realizando efetivamente essa modernização –, que aPrimeira República começa a “envelhecer”. Ou seja, quero destacar essa dupla direção do processode mudança político-social que se vivia, combinando projetos de modernização em vários campos – política constitucional, movimentos sociais, artes plásticas, literatura, educação, ciência etc. – e,não paradoxalmente, pela mesma razão, fortalecendo o diagnóstico de que a Primeira Repúblicaestava não só comprometida, precisando se reformar ou “se republicanizar”, como estava igualmente

    ultrapassada em seus princípios e arquitetura. Por essa última avaliação, tornava-se uma repúblicaindesejada, e, por tal motivo, outro modelo devia ser articulado e experimentado como seu reverso. No caso, um modelo antiliberal e de teor crescentemente autoritário. Quer dizer, o que os anos1920 trazem de distinto, considerando-se as críticas que a Primeira República vinha recebendo hádécadas, é que, para boa parte dos políticos e intelectuais, não se tratava mais de pensá-la na óticade um “horizonte de expectativas” liberal, capaz de se aperfeiçoar; mas sim de um novo horizonteque se devia abrir, segundo os novos parâmetros que circulavam internacionalmente, dando a ver

    outro tipo de futuro para os projetos de modernização do Brasil. Como se sabe, nesses momentosda história, dependendo do futuro imaginado, os atores do presente que por ele lutam olham parao passado com lentes diferentes, dependendo dos objetivos que querem alcançar, ou seja, do graue do tipo de mudanças que desejam implementar. Por isso, podem colocar-se como herdeiros desuas tradições, respeitando e valorando seu legado; ou podem apresentar-se como uma ruptura,como um ponto zero, que precisa se separar desse passado, até mesmo negando-o radicalmente, emqualquer dimensão de positividade.

    Foi nesse tempo de extrema riqueza de produção de ideias e da crença em sua realização,foi nessa ambiência sociocultural que abrigava novas iniciativas de construção de futuros e de passados que o MHN foi criado. Um tempo de possibilidades e de incertezas políticas, evidenciado pelos embates que passam a recorrer às armas e não apenas às palavras. É certamente devido aosavanços dessa perspectiva historiográca, que acentua a ebulição e indeterminação dessa década,valorando a experiência dos atores políticos, que os anos da Primeira República vêm passando

     por uma espécie de revival . Dessa forma multiplicam-se o número de historiadores e cientistassociais que se dedicam a estudar seus diferentes aspectos, assinalando a riqueza do período. Nesseamplo e novo conjunto de trabalhos, e observa-se que a Primeira República tem sido retomada emuma chave distinta daquela que a consagrou como uma república “velha”. Cada vez mais procura-se desnaturalizar esse “adjetivo”, que data justamente dos anos 1920, consagrando-se no Estado Novo. Nomear fatos, personagens etc. nada tem de ingênuo, comportando classicações repletas

  • 8/17/2019 MHN_Livro - Miolo - 19mai14

    17/264

    MUSEU HISTÓRICO NACIONAL 17

    O CONTEXTO HISTORIOGRÁFICO DE CRIAÇÃO DO MUSEU HISTÓRICO NACIONAL: CIENTIFICIDADE E PATRIOTISMONA NARRATIVA DA HISTÓRIA NACIONAL

    de juízos de valor, como a antropologia de Levi Strauss e a história dos conceitos de Koselleck

    nos advertem. Por isso, essa nova literatura destaca a historicidade desse vocabulário, as batalhasde memória que ele evidencia, reetindo sobre as razões de sua duração e de seu deslizamento docampo da luta político-ideológica dos anos 1920/1940 para os livros acadêmicos e escolares dasdécadas de 1950 e seguintes. Para além do enfrentamento dessa questão, tais estudos investem nouniverso de debates e de movimentos políticos, sociais e culturais então ocorridos para demonstrar ariqueza de possibilidades que se abria aos múltiplos projetos existentes, apontando para a dimensãoda participação política e não mais se atendo apenas ao espaço da representação política, mesmo

    considerando-se seus limites. Enm, a Primeira República, com destaque os anos 1920, é um campofértil e aberto a pesquisas, não podendo car aprisionada pela expressão República Velha.

    O que os trabalhos mais recentes também ressaltam é que havia entre eles, ao menos, um pontoem comum. As circunstâncias eram as do pós-Primeira Guerra Mundial e Revolução Russa, comofatos conhecidos e consumados. Naquela época, nenhum intelectual duvidava de que o mundo setransformara radicalmente, e que nunca mais seria o mesmo. Os modelos políticos conhecidosestavam abalados; os nacionalismos, alguns radicais e xenófobos, na ordem do dia; e as demandas pela extensão de direitos políticos e sociais crescendo, e anunciando a realidade do que então sechamava sociedade de massas. Os tempos eram de crise, e categorias como decadência e atraso  passavam a circular no vocabulário político internacional e nacional de modo intenso. Temposde crise são tempos de modernização nos quadros mentais e políticos de um país, praticamenteimpelidos a imaginar projetos de futuro. Pelo mesmo motivo, tempos de crise são tempos deincursões ao passado.

     No caso do Brasil, vale lembrar que a virada do século XIX para o XX fora marcada pela aboliçãoda escravatura e pela instalação do regime republicano, que exigiram a criação (ou recriação) deuma história e memória nacionais, segundo os parâmetros de uma cultura política republicana,que tinha de investir em novos símbolos, rituais, festas e heróis nacionais para sua legitimação. APrimeira República e os anos 1920, com as comemorações do Centenário da Independência, são,assim, um período estratégico para a conformação de uma escrita da história no e do Brasil, bemcomo para a delimitação do perl do historiador, o que só poderia acontecer por meio de debates e

    disputas sobre o que é e para que “serve” a História, como modo de conhecimento das sociedades.Foi em razão dessa longa preliminar e das duas questões anteriormente mencionadas, que

    minha opção foi fugir dos anos 1920 e me deslocar para as décadas anteriores, situando algunsdebates que demarcam uma história da história do Brasil e que, a meu ver, conectam-se diretamentecom o clima cultural e historiográco de criação do MHN. Um museu que devia ser, por denição,uma instituição cultural destinada a narrar a história da nação brasileira, e só poderia fazê-lo em

  • 8/17/2019 MHN_Livro - Miolo - 19mai14

    18/264

    MUSEU HISTÓRICO NACIONAL18

     ANGELA DE CASTRO GOMES

    articulação com os parâmetros do que se entendia e praticava como saber disciplinar de sua época.

    Assim, escolhi autores e textos que me propiciassem situar o que se dizia nesse campo de fronteirasainda tão uidas sobre o status e o valor do conhecimento histórico, relacionando-o com a temáticada educação, em especial por meio de uma literatura voltada para um público mais amplo, no qualse destacam as crianças. Começo, portanto, com uma questão central para os historiadores do mdo século XIX e da primeira metade do XX: a da cienticidade e “utilidade” da História. 1

     *

      Considerando o caráter disciplinar da História, arduamente construído a partir do séculoXVIII (para alguns estudiosos) e vitorioso no século XIX (para todos os historiadores), a primeira parte de meu percurso ressalta alguns parâmetros no interior dos quais a cienticidade dessadisciplina foi sendo pensada no Brasil republicano, no contexto de suas primeiras décadas. Paraisso recorro aos discursos ocorridos à sombra da instituição de consagração dos historiadores desdemeados do século XIX: o Instituto Histórico e Geográco Brasileiro (IHGB). Mais precisamente,

    à contribuição apresentada pelo jurista e historiador Pedro Lessa, quando aceito como sócio, poisela tem algumas características preciosas para os ns de minha reexão.

     O trabalho que Lessa apresentou tinha como título “Reexões sobre o conceito da História” e,segundo nota que o precedeu no número da Revista do IHGB que o publicou em 1908, já aparecera“alhures”. A intenção da Comissão de Redação que o examinara era permitir sua leitura “aos quenão puderam ainda apreciar as esclarecidas considerações sobre o conceito de História e aos quedesejarem de pronto relê-las.”2 Na verdade, esse ensaio fora produzido para outra situação. Nacapa do folheto que o divulgara isoladamente tinha outro título – “É a História uma ciência?” –,seguido do esclarecimento: “O estudo reproduzido nesse opúsculo foi escrito e publicado comointrodução à História da civilização na Inglaterra, de Buckle, traduzida para o vernáculo pelo Sr.Adolfo J. A. Melchert.”3 Quer dizer, por motivos pessoais, embora membro do IHGB desde 1901,só foi possível a Pedro Lessa tomar posse em 10 de junho de 1907. Na oportunidade, o mineiro,

    1 Esse texto foi escrito para ser lido como uma conferência, beneciando-se, em especial nessa parte, do livro: GOMES, A. C. A República,a História e o IHGB. Belo Horizonte: Fino Traço, 2009 (segunda impressão).

    2 O texto está publicado na  Revista do Instituto Histórico e Geográco Brasileiro, t. 69, v. 114, 1906, p. 193-285 (publicado em 1908). Odiscurso de posse de Pedro Lessa está na RHIGB, t. 70, v. 116, 1907, p. 716-22 (publicado em 1908).

    3 Trata-se de uma edição de 108 páginas, feita pela Tipograa da Casa Eclética, situada na Rua Direita, n. 6, em São Paulo, no ano de 1900,o mesmo das comemorações do Quarto Centenário do Descobrimento. O opúsculo consultado por mim está na Biblioteca Nacional, e foidedicado, pelo autor, ao Dr. José Carlos Rodrigues, proprietário da coleção comprada por Benedito Ottoni. Contudo, não consegui consultaro livro traduzido de Henry Thomas Buckle.

  • 8/17/2019 MHN_Livro - Miolo - 19mai14

    19/264

    MUSEU HISTÓRICO NACIONAL 19

    O CONTEXTO HISTORIOGRÁFICO DE CRIAÇÃO DO MUSEU HISTÓRICO NACIONAL: CIENTIFICIDADE E PATRIOTISMONA NARRATIVA DA HISTÓRIA NACIONAL

    nascido na cidade do Serro em 1859, encontrava-se em plena fase de consagração intelectual e

     política. Naquele mesmo ano, fora nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), e trêsanos depois entraria para a Academia Brasileira de Letras (ABL).

    Algo que chama a atenção nesse texto é a sugestiva alteração de seu título, realizada peloIHGB, naturalmente com conhecimento do autor. Em lugar de uma pergunta direta sobrea cienticidade da história, algumas reexões sobre seu conceito. Para mim, a razão para talmudança, que certamente foi bem pensada, está no tipo de resposta dada por Lessa à questãotítulo. Ela também explicaria o tipo de leitura do famoso livro de Buckle, recém-traduzido para o

     português, o que certamente lhe deu muito mais visibilidade, retirando-o de um circuito de iniciadosna língua inglesa.4 O ensaio publicado na Revista do IHGB tem 90 páginas e foi muito elogiado por sua erudição. Possui 162 notas de rodapé e muitos são os autores e livros citados. Entre osautores, guram nomes de historiadores como Langlois e Seignobos, do Introduction aux étudeshistoriques,5 Michelet, Fustel de Coulanges, Mommsen e Oliveira Martins (mas não Ranke); etambém nomes de “lósofos e pensadores” como Schopenhauer, Maquiavel, Montesquieu, StuartMill, Taine, entre outros.6

    Como o texto foi escrito por volta de 1900, ano de sua primeira publicação, o discurso realizadono IHGB em 1907 rearma suas ideias principais sobre o que era a história e qual deveria ser otrabalho do historiador “moderno”. Começando pelo m e antecipando a resposta de Pedro Lessaà questão-chave − “É a história uma ciência?”−, verica-se que ela é negativa: a história não era, etalvez nunca se tornasse uma ciência. Portanto, o autor discordava das intenções e das respostas deBuckle, que acreditava ser possível tornar a história uma ciência, considerando-a fundada em umadoutrina na qual a natureza tinha grande centralidade. A resposta negativa de Lessa, que o leitorencontra apenas no nal do texto, só ganha sentido quando se entende o que o autor “dene” porciência e por história, naturalmente em diálogo com as concepções de seu tempo.

    4 Sobre Buckle e também sobre a recepção da Introdução de Pedro Lessa ao livro traduzido para o português, ver ALVES, João Luiz. Oconceito de história para Pedro Lessa, A Manhã, suplemento Autores e Livros, Ano IV, 23/07/1944, p. 56. Trata-se de um texto “resenha”,no qual o autor acompanha cada parte da monograa de Lessa. O jornal também indica que foi pronunciado como Discurso Acadêmico naABL, v. 5.

    5 Chales-Victor Langlois era um medievalista e Charles Seignobos um modernista, sendo que ambos escreveram para a famosa coleção,

    coordenada por Ernest Lavisse,  Histoire de France. Essa coleção, bem como o livro mencionado, são marcos reconhecidos da chamadaEscola metódica ou histórica, de forma frequente e equivocada, conhecida também como “positivista”. No livro  Introduction aux étudeshistoriques, Hachette, cuja primeira edição é de 1898, os autores procuram denir o método da disciplina histórica, conforme a Escolametódica ou histórica. Essa escola dominou a historiograa francesa e inuenciou a historiograa, internacionalmente, até os anos 1930,quando da emergência da Escola dos Annales. Uma de suas características foi o reconhecimento da contribuição dos historiadores alemães,entre os quais Mommsen, citado e elogiado por Pedro Lessa em seu ensaio, escrito logo depois do lançamento dos  Études.

    6 Em quase todos os casos, Pedro Lessa menciona o nome do autor e do livro sem qualquer outra referência; algumas vezes, contudo, indicaa página de uma citação. No caso das citações de Buckle, ele as faz de uma tradução de Baillot, sobre a qual não fornece maiores indicações.

  • 8/17/2019 MHN_Livro - Miolo - 19mai14

    20/264

    MUSEU HISTÓRICO NACIONAL20

     ANGELA DE CASTRO GOMES

    O século XIX era considerado, já no início do XX, como de grande importância intelectual,

    tanto pelos avanços das ciências naturais como pelos avanços das ciências sociais e da história.Essas últimas, inclusive, não mais poderiam ignorar os conhecimentos estabelecidos pelas primeiras nem se abster de trabalhar com os métodos cientícos da “observação e da comparação”,dessa feita voltados para os “acontecimentos humanos”. Fica assim explícita a importância dacontribuição das ciências naturais, bem como seu impacto no compartilhamento de uma concepçãode ciência vigente no mundo europeu dos séculos XVI ao XIX, aproximadamente, que postulaque o mundo físico e também o social são regulados por leis ou, como aparece na nomenclatura

    de Pedro Lessa, por “relações constantes”. Uma concepção de ciência, vale lembrar, presente emdiversos “cienticismos” que circulavam internacionalmente, e com os quais o “pensamento social brasileiro”, ao menos até as décadas de 1920/1930, precisou dialogar continuamente, quer aderindoa eles em alguns aspectos quer negando-os, mais ou menos radicalmente. Posto isso, é interessanteexaminar os tipos de reexões que Lessa tece sobre o que entende serem as relações da históriacom as ciências sociais e, em especial, com a sociologia, considerada “a ciência social geral”,capaz de construir “relações constantes”.7 

    Vê-se então que, para ele, a história deveria concentrar sua aspiração na tarefa de “conhecera sociedade”, o que só era possível trabalhando-se com duas séries de processos lógicos (osindutivos e os dedutivos), examinando-se e comparando-se “fatos singulares”, mediante o uso de“documentos”. Essa era, por excelência, a missão da história. O modo pelo qual se conectava comas ciências sociais, também voltadas para o conhecimento das sociedades, era muito particular, pois o ideal das ciências sociais era outro e bem distinto: produzir generalizações, investigando o presente, não o passado. Buscando denir o que era a história, distinguindo-a da sociologia, Lessaigualmente ressaltava que ela não devia ser confundida com a “losoa da história”, já que estatambém buscava – embora de maneira distinta – estabelecer princípios gerais sobre as sociedadesno tempo. Ou seja, Pedro Lessa, desejando identicar e delimitar o que fazia a história, segundoos “modernos parâmetros” cientícos de seu tempo, que eram os da nascente escola metódicafrancesa, nega cienticidade a esse tipo de “conhecimento do social”, na medida em que não lheseria possível estabelecer “leis” ou mesmo “relações constantes”. Dito de outra maneira, paraLessa, como a história trabalhava com acontecimentos que não se repetiam, que eram complexose possuíam causas múltiplas, ela não permitia o traçado de generalizações e, nesse sentido preciso, justamente para armar a necessidade de um método especíco para a história, ele optava pornegar sua cienticidade, segundo o paradigma da época.

    7 A sociologia se relacionaria com as ciências sociais especiais, como a antropologia e a economia, por exemplo, do mesmo modo que a biologia se relacionava com a botânica e a zoologia, no caso das ciências naturais, segundo Pedro Lessa.

  • 8/17/2019 MHN_Livro - Miolo - 19mai14

    21/264

    MUSEU HISTÓRICO NACIONAL 21

    O CONTEXTO HISTORIOGRÁFICO DE CRIAÇÃO DO MUSEU HISTÓRICO NACIONAL: CIENTIFICIDADE E PATRIOTISMONA NARRATIVA DA HISTÓRIA NACIONAL

    Certamente com tal conclusão, o ensaio de Pedro Lessa suscitou aplausos e discordâncias,

    dentro e fora do IHGB, que perduraram durante a década de 1900. É o que se constata pelo discursode recepção, proferido por Clóvis Beviláqua, outro grande nome do Direito brasileiro, quando daentrada de Lessa na ABL, exatamente em 1910.8 Nesse sentido, é importante remarcar que Beviláquatambém era sócio do IHGB, desde 1906, portanto quando Pedro Lessa foi aceito pela sociedadede discurso que então reconhecia e consagrava aqueles que eram identicados como historiadores. Nela, inclusive, ele percorre uma trajetória – sócio correspondente, honorário, benemérito –, até setornar, em 1943, grande sócio benemérito. Quem recebe Pedro Lessa, por conseguinte, é alguém

    com atributos de mesmo tipo e de mesma e pública qualidade.Fazendo o elogio ao jornalista, político e magistrado, caracterizado como possuidor de uma

     posição “empirista” em relação ao Direito, Beviláqua reserva uma parte de sua saudação paracomentar as concepções de Lessa sobre a questão da cienticidade da história. Considerandoduas variáveis – o passar do tempo e o que entende como um “tom dubitativo” da conclusão doensaio de 1900 –, ele expressa sua crença de que Lessa pudesse ter alterado sua maneira de pensar,reconsiderando sua recusa de cienticidade à história.

    Em dez anos, as ideias, que se não petricam na intransigência do sectarismo, podem sofrermodicações, e vós fechastes o trabalho de então, como quem não considera o caso irrevogavelmente julgado [...]. [...] Dissestes que “a História coleciona e dispõe, metodicamente, os materiais, em cujaobservação e comparação haurem suas induções ciências diversas. O método descritivo, aplicado pelo historiador, é um excelente instrumento”, acrescentastes, “para a aquisição de verdades geraisda Sociologia e seus ramos especiais”. [...] Este pensamento é justo [...]. Mas, se assim é, forçosose faz reconhecer que o historiador, para apanhar a verdadeira expressão dos fatos e a sua natural

    liação, tem de penetrar-lhes o âmago e descobrir as inuências físicas, econômicas, étnicas,morais e até individuais, de cujo concurso resultaram. Não será um simples narrador [...]. E nessatarefa, sem dúvida escabrosíssima, há os elementos de uma ciência, não de leis ou de noções, masde fenômenos, que se expõem metodicamente, coordenados, segundo a relação da casualidade. 9

      Está aí, muito claramente, o desejo de armar um caráter cientíco para a história em novos parâmetros, que não eram mais o das “verdades gerais”, próprios às ciências sociais. Tal distinção,contudo, não tornava o historiador um “simples narrador”, já que o rigor do “método descritivo”

    que utilizava e a complexidade do objeto que enfrentava asseguravam à sua exposição metódicados fenômenos sociais “os elementos de uma ciência”. Beviláqua, certamente reverberando debates8 Clóvis Bevilácqua (1859-1944) era cearense e foi autor do anteprojeto do Código Civil Brasileiro em 1901 a convite do presidente EpitácioPessoa. Atuou pouco na ABL, apesar de ter sido um de seus sócios fundadores, sendo seu discurso de recepção a Pedro Lessa consideradosua maior peça oratória nessa Casa.

    9 Discurso de recepção de Clóvis Beviláqua, proferido em 6 de setembro de 1910. Em ABL, sessão do acadêmico Clóvis Beviláqua http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=8389&sid=179, acesso em: 10/06/2012.

  • 8/17/2019 MHN_Livro - Miolo - 19mai14

    22/264

    MUSEU HISTÓRICO NACIONAL22

     ANGELA DE CASTRO GOMES

    e demandas que eram travados em torno do estatuto cientíco da história como disciplina, xava

    sua especicidade, tanto em face das ciências sociais como da literatura, pois a escrita da história,mesmo não produzindo leis, não era obra de cção, ainda que recorresse à arte narrativa. Nessesentido, embora acompanhando as reexões de Lessa, chegava a uma conclusão distinta: a de quea história devia ser uma ciência.

     No Brasil dos anos 1910, pode-se aventar que os princípios da escola metódica já fossemmais conhecidos e compartilhados, o que absolutamente não implicava diminuição do prestígio dediversos cienticismos de matriz sociológica. Algo bem perceptível quando da entrada de Oliveira

    Vianna para o IHGB, em 1924. Credenciado pelo seu livro de estreia −  Populações meridionaisdo Brasil , de 1920 −, esse autor colaborara para o Dicionário Histórico, elaborado pelo IHGB na passagem do Centenário da Independência, escrevendo o verbete sobre etnograa, e intitulando-o“o tipo étnico brasileiro”. O que me interessa em particular, nesse caso, é ressaltar de que modoum intelectual identicado com um modelo de ciência social “cienticista” está sendo recebido econsagrado como historiador. Seu discurso de posse é valioso, pois nele faz apreciações sobre ocaráter cientíco da história, conectando-a com sua “utilidade” como saber ensinável.10 Nele, Vianna

    defende uma argumentação que arma o caráter cientíco da história, situando sua especicidadee importância por sua vinculação com uma “missão pedagógica”. Seguindo seu vocabulário, ahistória tinha um “valor pragmático” bem singular que as demais ciências sociais não possuíam, oque era de extrema importância para os Estados nacionais.

    Distintamente de Pedro Lessa, Oliveira Vianna postulava que a “nova” história podia seruma ciência, realizando generalizações, desde que adotasse procedimentos que garantissem aneutralidade e a objetividade do conhecimento, características das “modernas” ciências sociais.

    O sociólogo/historiador defendia, claramente, que, se a história desejasse alcançar o estatutode “ciência moderna”, precisava buscar uma forte associação com a sociologia. O trabalhocom os “testemunhos de arquivos”, como Viana dizia, precisava ser acrescido de “experiênciascomplementares”, trazidas pelas ciências sociais, para que a história se tornasse cientíca,realmente. Uma proposta que, como se pode vericar, nem seguia as ponderações de ClóvisBeviláqua nem agradava historiadores, então muito respeitados, como Capistrano de Abreu. Esteé incisivo em sua crítica à solução dada por Vianna à questão da cienticidade da história, quando,em carta ao amigo Lúcio de Azevedo, escreve: “A impressão deixada por seu primeiro escrito sobreas populações meridionais do Brasil é que conhece melhor Le Play que nossa terra.”11 

    10 Todas as referências são do discurso de posse Oliveira Vianna, Revista do IHGB, t. 96, v. 150, 1924.

    11 ABREU, C. de. Correspondência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977. Carta a João Lúcio de Azevedo, “SãoLourenço, 7 de maio” (colocada entre as cartas de 1926), v. 2, p. 355.

  • 8/17/2019 MHN_Livro - Miolo - 19mai14

    23/264

    MUSEU HISTÓRICO NACIONAL 23

    O CONTEXTO HISTORIOGRÁFICO DE CRIAÇÃO DO MUSEU HISTÓRICO NACIONAL: CIENTIFICIDADE E PATRIOTISMONA NARRATIVA DA HISTÓRIA NACIONAL

    Contudo, essa demanda por cienticidade, segundo padrões sociológicos, não impediu que

    Vianna reconhecesse na história uma “bela arte narrativa” e que, por isso, identicasse nessadisciplina um “valor pragmático”, um teor educativo, muito especial e especíco. Para Vianna,a história não “servia” apenas a um círculo “limitado, privativo, circunscrito e especializado” de pessoas, como a maioria das outras ciências sociais, inclusive a sociologia. Ela possuía um públicomuito mais amplo e diversicado, e só o “encantava” por seu poder de “arte de cção”, ou seja, denarrativa literária. Na história, o estudo e a narrativa do passado não se faziam por mera curiosidade,comparável à das viagens ou das memórias.

    A história possuía um “alto valor pragmático” em duplo sentido. Em primeiro lugar, porque oconhecimento do passado é uma maneira de corrigir concepções acerca do presente, produzindouma base segura para se projetar o futuro. No caso de países novos, como o Brasil, esse valorera fundamental, pois nossa história, diferentemente da dos países velhos, não trazia “lições deresignação”, mas sim “de entusiasmo”. Por isso a história interessa (e devia interessar) a todos oshomens, tendo como “utilidade prática” a criação de “um sentimento de patriotismo” e de uma“consciência coletiva”, formados pela admiração despertada por um passado comum. Era pela

    história, particularmente se servindo da arte de narrar, que se aumentava o respeito nutrido porum povo por seus antepassados, e pelo patrimônio por eles legado, unindo-os através do tempo. Ahistória, aproximando o passado do presente, impulsionava o futuro, tornando-se “uma maravilhosaescola de educação cívica”.

    Mas não era essa a única utilidade da história “moderna”. Justamente por ela possibilitar, comociência objetiva, o conhecimento dos “elementos estruturais de um povo, as condições íntimas deseu viver, as particularidades fundamentais da sua mentalidade, da sua sensibilidade”, tornava-se

    essencial “à ação de todos que exercem uma função dirigente na sociedade, principalmente osque têm o encargo de direção política”.12 Portanto, se a evolução de um povo tem condicionantesfortíssimos, sendo “o papel reservado à ação da vontade consciente modestíssimo”, mais umarazão para potenciar os efeitos dessa ação pela ciência, o que tornava o “culto ao passado” um ponto de partida para a intervenção do homem na história.

    Oliveira Vianna não poderia ser mais claro ao demarcar os objetivos patrióticos da históriaem sua dimensão educativa, quer para o povo quer para as elites governantes. Portanto, em seudiscurso, ele está compatibilizando uma concepção de história cientíca, segundo o modelo dasnovas ciências sociais, com uma concepção de história ensinável, cujo valor educativo e político,chamado por ele de pragmático, deixa evidente a função cívico-patriótica da disciplina. Suanarrativa não devia temer as artes da cção, da boa literatura, já que era por meio da emoção

    12 Ibidem, p. 450-1.

  • 8/17/2019 MHN_Livro - Miolo - 19mai14

    24/264

    MUSEU HISTÓRICO NACIONAL24

     ANGELA DE CASTRO GOMES

    que se criava uma comunidade nacional, composta dos que estão vivos, dos que já morreram e

    dos que ainda vão nascer, na fórmula conhecida do pensamento conservador. Por conseguinte, ocienticismo sociologizante de Oliveira Vianna não o impedia, muito ao contrário, de defender aimportância do ensino da história, não só porque aí se radicava uma de suas especicidades comociência social, como porque era a História uma das principais encarregadas da educação cívica do povo, isto é, da formação dos cidadãos e de seus dirigentes.

    Acompanhando-se os discursos de Pedro Lessa, Clóvis Beviláqua e Oliveira Vianna é possívelver como o debate sobre o estatuto de cienticidade da história era algo fundamental nas décadas

    do início do século XX, e como ele não pode ser separado das preocupações sobre a importânciado conhecimento histórico para as sociedades “modernas”. Por isso, é fundamental atentar paraa conuência existente no IHGB no reconhecimento da “função educativa” da disciplina, o quecertamente já ocorria sob a Monarquia, mas ganhava contornos mais militantes com a República,uma vez que o novo regime reconhece o “povo” como interlocutor e ator da história. Nesse sentido,os autores, além de nos possibilitarem situar a diversidade de concepções de história que convivemno IHGB no início do século XX, evidenciam que tanto os que se orientavam por uma matriz que

    seguia, em tese, os procedimentos da escola metódica francesa, realizando uma escrita da históriacomo memória da nação, como os que se pautavam por modelos cienticistas, conhecendo e seapropriando da literatura sociológica, conuíam ao armar o valor educativo da história comomatéria a ser ensinada a todos.

     No caso dos que seguiam a matriz cienticista, apesar da diversidade que comporta, o que podecausar estranheza é o fato de ela, mesmo postulando determinismos (é certo que em graus variados)e valorizando os fenômenos naturais, objetivos e coletivos, defender uma “função pragmática” para

    a disciplina. Vale então lembrar que o paradigma cienticista raramente era imune à ação humana, pois se havia uma evolução da humanidade já traçada, seu ritmo cava dependendo da intervençãodos grandes e sábios homens. Portanto, como Oliveira Vianna ilustra tão bem, o valor educativo dahistória era insubstituível quando a matéria era criar o amor à pátria, pelo conhecimento do passado, pela criação de uma “mentalidade” comum. Uma convergência, de um lado surpreendente, mas deoutro compreensível, pois se pautava no que singularizava a história e a diferenciava das demaisciências sociais.

    Desse modo, no Brasil, como também ocorreu em outras experiências nacionais, houveuma convivência entre concepções diferenciadas de história que se orientavam pelos maiscompartilhados paradigmas que dividiam e disputavam espaço durante toda a primeira metade doséculo XX. Mas, como igualmente ocorreu em outras experiências nacionais, esses paradigmasdesembocavam em uma proposta de história ensinável interessada na construção de uma pátria

  • 8/17/2019 MHN_Livro - Miolo - 19mai14

    25/264

    MUSEU HISTÓRICO NACIONAL 25

    O CONTEXTO HISTORIOGRÁFICO DE CRIAÇÃO DO MUSEU HISTÓRICO NACIONAL: CIENTIFICIDADE E PATRIOTISMONA NARRATIVA DA HISTÓRIA NACIONAL

    como comunidade de sentimentos, fundada no conhecimento de um passado comum, povoado

     por grandes homens e feitos, e habitado por um povo de muitas qualidades. Uma história comobjetivos cívico-patrióticos que mobilizava a razão, mas principalmente as emoções, pois eramestas que tornariam o passado “vivo” (ressuscitado), construindo um vínculo afetivo e duradouroentre os cidadãos de uma nação republicana.

    *

      O período entre 1890 e 1920 pode assim ser considerado decisivo no que se refere aoestabelecimento das bases de uma historiograa no Brasil, quer pelo reconhecimento de métodosque caracterizam o ofício  do historiador quer pela armação do “valor pragmático”, ou seja,cívico-patriótico da história. Esse é, portanto, um período estratégico na prossionalização dos praticantes da disciplina, o que se vinculou a preocupações com a rotinização de seus conteúdos“eruditos/cientícos”, tendo-se em vista alcançar um amplo e diversicado público, adulto einfantil, por meio das mídias mais modernas, como os jornais, as revistas e os manuais escolares.

     Não é casual, assim, que também entre 1890 e 1920 o Brasil tenha assistido à conformaçãode uma literatura infantil, e que ela tenha se articulado fortemente aos projetos nacionalistas emodernizadores então vigentes.

    Ao longo dessas décadas, a educação foi entendida como um dos recursos mais poderosos parase produzir transformações sociais profundas e duradouras no país, em especial quando voltada paraa “infância”, pois era nesse momento que os valores e as crenças dos futuros cidadãos republicanosseriam “moldados”. O livro e a leitura, bem como um conjunto de práticas e equipamentos culturais

     – como os museus, as exposições e as festas cívicas –, eram vetores estratégicos para o aprendizadode um nacionalismo republicano, que devia se traduzir em uma escrita da história de teor cívico- patriótico que narrava episódios, exaltava guras históricas e divulgava costumes de grupos quecompunham a nação brasileira. Em 1890, apenas um ano após a proclamação da república, dois livrossão exemplares dessa tendência que somente faria crescer ao longo da primeira década do séculoXX, ganhando o mercado editorial e conquistando novos autores, que escreviam para crianças ouse preocupavam com as condições de seu aprendizado na escola e fora dela.13 Rero-me ao famoso

    13 Tenho total consciência das questões que cercam a difícil denição do que é literatura infantil e foram enfrentadas, por exemplo, pelaComissão Nacional de Literatura Infantil do MES, em 1936. Entretanto, para os objetivos deste texto, estou aproximando o gênero literaturainfantil (aquele intencionalmente produzido para a criança, usando o critério da ccionalidade) e os livros escolares, ou seja, os textos comexplícitos objetivos didáticos e programáticos, considerando a época, o que é distinto do que hoje são os “livros didáticos”. Entendo que,entre 1890 e 1930, essas fronteiras eram uidas, em especial quando se tratava de uma narrativa cívico-patriótica presente em manuaisescolares de educação cívica; em livros de história do Brasil para os ensinos primário e secundário; e em “livros de histórias” com elementosmaravilhosos e também intenções morais.

  • 8/17/2019 MHN_Livro - Miolo - 19mai14

    26/264

    MUSEU HISTÓRICO NACIONAL26

     ANGELA DE CASTRO GOMES

    texto de José Veríssimo, cuja segunda e mais conhecida edição é de 1906,  A educação nacional , 

     publicado pela editora Livraria Francisco Alves; e ao manual de Silvio Romero, prefaciado por JoãoRibeiro, A história do Brasil ensinada pela biograa de seus heróis, da Livraria Alves e Cia.

    Minha intenção,  aqui, é destacar o vínculo efetivo que uma espécie de pedagogia danacionalidade estabelece com a construção de uma cultura política republicana, e como essanova cultura política necessitava “imaginar” um passado, com destaque para um passadohistórico nacional, que devia ser ensinado por meio de uma narrativa acessível que mobilizassemeios capazes de agradar a um amplo público, em especial o infantil. A dimensão pedagógica e

     patriótica dessa literatura era de grande importância, pois por intermédio dela eram conquistadasa aprovação do Estado – quando os livros eram adotados nas escolas – e também a do mercado,

     já que o público infantil despontava como um segmento consumidor de potencialidade. Comtais estímulos, ocorreu a especialização de editores e também de autores de literatura infantil,um gênero que devia apelar para a imaginação das crianças e transmitir valores morais,adequando-se aos programas escolares, se visasse alcançar esse mercado especíco. No campoda literatura para crianças, seja nos “livros de literatura infantil” seja nos “livros escolares”(que podiam se confundir em um só), a incorporação de guras e episódios históricos, aliada àconstrução de uma narrativa de moral cívico-patriótica, é uma constante.

    Algo que pode ser observado facilmente, a partir de alguns títulos, entre inúmeros exemplosque poderiam ser citados desde os anos 1890: Lições de História do Brasil , de 1895, do literatoe folclorista Basílio Magalhães; Porque me ufano de meu país, do conde Afonso Celso, sóciodo IHGB, de 1900;  História do Brasil adaptada ao ensino primário e secundário, de João

    Ribeiro, de 1900; Contos pátrios, de Olavo Bilac e Coelho Neto, de 1904, e Pátria brasileira,de 1909; Histórias de nossa terra, de Júlia Lopes de Almeida, de 1906; As nossas histórias, de 1907, e Os nossos brinquedos, sobre a temática do folclore, de Alexina de Magalhães Pinto,de 1908; Através do Brasil , de Olavo Bilac e Manoel Bonm, de 1910; Minha terra, minha

     gente,  de Afrânio Peixoto, de 1915;  A pátria brasileira,  de Coelho Neto, de 1916;  Nossa pátria: narração dos fatos da História do Brasil, através de sua evolução com muitas gravurasexplicativas, de Rocha Pombo, de 1917; História do Brasil e Noções de História do Brasil , de 

    Osório Duque Estrada, autor da letra do Hino Nacional, de 1918; Contos da História do Brasil ,de Viriato Corrêa, de 1921, e A lha da oresta, de Tales de Andrade, também de 1921.

    Todos esses livros, como os títulos deixam claro, podem ser classicados como manuaiscívico-patrióticos, um tipo de literatura muito valorizada e utilizada nas escolas de vários paísesna primeira década do século XX. O patriotismo era, no vocabulário pedagógico e político daépoca, a palavra/sentimento que fazia com que a história se aproximasse da educação, mas com sua

  • 8/17/2019 MHN_Livro - Miolo - 19mai14

    27/264

    MUSEU HISTÓRICO NACIONAL 27

    O CONTEXTO HISTORIOGRÁFICO DE CRIAÇÃO DO MUSEU HISTÓRICO NACIONAL: CIENTIFICIDADE E PATRIOTISMONA NARRATIVA DA HISTÓRIA NACIONAL

    especicidade, que era a de trabalhar “através do tempo”. Entretanto, se para muitos educadores

    a educação cívica não se confundia com a disciplina da história, ultrapassando-a, pois devia estar presente no ensino de todas as disciplinas, cabia à história um lugar muito especial na produção deum sentimento de amor à pátria, pois esse amor devia fundar-se fortemente no conhecimento e navalorização de um passado comum. A pátria não devia ser confundida com o Estado, nem mesmocom a nação e suas leis, em sua dimensão político-administrativa. A pátria era e devia ser entendidae sentida como uma comunidade afetiva, como uma entidade suprema e sagrada, objeto do respeitoe do amor dos cidadãos, sobretudo dos cidadãos republicanos.

     No entanto, como Patrícia Hansen vem observando em seus estudos sobre Olavo Bilac, “aocontrário do que aparenta, a literatura cívico-patriótica da Primeira República não é um conjuntode textos ideologicamente homogêneo. A análise de uma de suas principais características, oufanismo, presente em vários textos em maior ou menor grau, demonstra que não é sempre queo orgulho exacerbado da pátria oblitera a consciência das deciências nacionais.”14  Segundo aautora, já haveria na Primeira República uma espécie de clivagem nessa literatura, havendo duasorientações em convivência:

    A primeira, excessivamente otimista, entendia que o futuro grandioso prospectado para o Brasilseria uma consequência óbvia da “pujança virtual” associada à grandeza territorial e às riquezasnaturais do país. A outra, na qual se incluem os textos de Bilac, condicionava o futuro nacional auma completa transformação mental, moral e até física, do homem brasileiro. Nesta perspectiva, eranecessário executar uma ação de caráter pedagógico, que zesse das crianças e jovens brasileiros,homens cientes dos problemas e obstáculos ao progresso do país e capazes de superá-los peloadequado aproveitamento dos inegáveis recursos da terra pátria.15

     É essa segunda variante que desejo destacar, porque acredito que ela era mais compartilhadado que se imagina, tendo ganhado força no pós-1930 e permanecido vigente após 1945. Nessaconcepção, o orgulho exacerbado da pátria não era uma virtude, pois ele escondia os males oudeciências nacionais, além de minimizar e até ignorar os sentimentos de convivência pacícaentre as nações, o que se tornou uma preocupação internacional após a Primeira Guerra Mundial,voltando a estar na ordem do dia no contexto da Segunda Guerra.

    Se a enumeração anterior foi longa e cansativa, ela cumpriu a tarefa de deixar evidente asistemática produção dessa literatura cívico-patriótica e a importância de seus autores, muitos dos

    14 HANSEN, P. S.  Bilac e a literatura infantil: civismo e ideologia nos primeiros livros para crianças brasileiras, um dos resultados doProjeto de Pesquisa de Pós-Doutorado, Olavo Bilac, ideólogo do nacionalismo, nanciado pela Faperj/Capes e desenvolvido no CPDOC/FGV, 2010, mimeo.

    15 Idem.

  • 8/17/2019 MHN_Livro - Miolo - 19mai14

    28/264

    MUSEU HISTÓRICO NACIONAL28

     ANGELA DE CASTRO GOMES

    quais grandes nomes da literatura para adultos, em prosa e verso. Os editores são um capítulo à parte e

    merecem reexão cuidadosa, pois entre eles estão a Livraria Francisco Alves, a Livraria Castilho, degrande sucesso no mercado de livros para crianças, além da Editora Melhoramentos, com particular prestígio nos meios educacionais já nos anos 1920. Toda essa gama de atores do campo intelectual,sejam editores sejam autores que se dedicam à tarefa de escrever para um público amplo, nesse casoo público infantil, estão sendo aqui muito valorizados e entendidos como “mediadores culturais”.Trata-se, contudo, de utilizar essa categoria em sentido forte e sem qualquer conotação negativa ou pejorativa, afastando-se uma excessiva dicotomia entre a escrita dos historiadores “propriamente

    ditos” (identicados com o espaço do IHGB e, no pós-1930, com o das universidades), e a dessesmediadores culturais. Eles costumam ser taxados como intelectuais “menores” pelo valor atribuídoà sua produção, quer em termos de conteúdo, que seria simples e mesmo simplista, na chave dodivertir e ensinar; quer por causa das mídias utilizadas, menos “nobres” que o livro, sendo efêmerasem grande parte, como é o caso dos periódicos e dos manuais escolares.

    Para reverter esse tipo de apreciação, muito consolidada, é bom ressaltar dois pontos. Em primeiro lugar, tais vetores culturais têm sido tratados pela literatura que trabalha com história

    do livro e da leitura e também com história de intelectuais como um dos meios mais seguros dese acessar formas de representações coletivas do passado, sendo assim entendidos como “vetoresde memória”: como instrumentos estratégicos para se compreender a construção de memóriashistóricas nacionais. Em segundo lugar, os avanços da prossionalização e institucionalizaçãoda pesquisa histórica mantêm, no Brasil e no mundo, sólidas conexões com a preocupação dadivulgação desse tipo de saber, podendo ou não estar encarnada no mesmo indivíduo (historiadore divulgador). Como diversos estudos de historiograa vêm assinalando, não há como se entendero processo de institucionalização e consolidação da disciplina sem relacioná-lo com as múltiplasestratégias de sua divulgação, em especial com aquelas voltadas para uma “pedagogia danacionalidade”, que envolveria também as instituições museais e as práticas festivas, sobretudoas de teor cívico patriótico. Os vínculos entre essa escrita da história para um grande públicoe os projetos políticos de Estados nacionais são por demais óbvios para serem ignorados, masnunca se deve considerar qualquer tipo de texto um mero instrumento de “manipulação político-ideológica”, minimizando a dinâmica dos processos de recepção cultural, ou deixando deconsiderar o grau de liberdade ou autoritarismo de governos, nessa área especíca, em momentoshistóricos determinados.

    Os anos 1920, como se tem assinalado nos estudos de literatura infantil, são de inexão nessegênero em razão do aparecimento dos trabalhos de Monteiro Lobato, considerado um marco narenovação do que até então se escrevia para a infância. Sem absolutamente questionar o lugar

  • 8/17/2019 MHN_Livro - Miolo - 19mai14

    29/264

    MUSEU HISTÓRICO NACIONAL 29

    O CONTEXTO HISTORIOGRÁFICO DE CRIAÇÃO DO MUSEU HISTÓRICO NACIONAL: CIENTIFICIDADE E PATRIOTISMONA NARRATIVA DA HISTÓRIA NACIONAL

    desse autor, o que me interessa nessa incursão que relaciona historiograa, ensino de história e

    literatura para crianças é chamar a atenção para um dos pontos da crítica que Lobato desenvolvesobre o que até então se praticava, visando, entre outros objetivos, valorizar sua própria produção.Mas, ressalvo desde logo que ele não estava sozinho na elaboração de tais considerações, masmuito bem acompanhado e há muito tempo. Uma constatação que, pelo menos, evidencia quemuitos literatos e educadores já vinham se dando conta das insuciências dos livros destinados àscrianças, sobretudo ante a importância da leitura realizada nesse momento da vida, reconhecidacomo decisiva por sua inuência e duração.

    Em artigo de 1921,16

      Lobato faz um diagnóstico que aponta para o fato de as crianças brasileiras aprenderem a ler na escola à força e em “livros horrorosos”, inclusive gracamente.Além disso, neles a infância era apresentada ao que chamava de uma “pátria pedagógica”, em estilomelodramático e ufanista que acabava por afastá-la da leitura e, acrescento eu seguindo a lógicade Lobato, do desejado amor à pátria. Em sua linguagem “o didatismo cívico” da literatura infantilexistente acabava por “secar as crianças”, que cavam apenas conhecendo um patriotismo “besta”(Lobato gostava de usar esse adjetivo).

    Vale lembrar que, nesse mesmo ano de 1921, Lobato publicava seu primeiro livro de literaturainfantil, Narizinho arrebitado, anunciado no catálogo de sua editora Revista do Brasil, em 1922,como uma “obra fora dos moldes habituais e escrita de modo a interessar profundamente ascrianças, poupando trabalho aos professores e pais”. E nalizando: “Adapta-se para o uso dasescolas de São Paulo, da Paraíba e de outros estados”.17  Ou seja, ele anunciava um livro quequeria ser (e foi) inovador, mas também que se voltava para o mercado de livros escolares, oque garantia circulação e bons rendimentos. Como os estudiosos de literatura infantil assinalam,

    Lobato, de fato, inovou muito o repertório literário infantil, criando personagens de tipo novo ecuidando da apresentação gráca dos livros, até porque foi, durante um bom tempo, seu próprioeditor. Contudo, compreensivelmente, não rompeu inteiramente com as características da literatura“cívico-patriótica” então produzida. Esta se vinculava, mais ou menos diretamente, ao mercadoescolar e aos objetivos nacionalistas da ação educativa – que podiam ser ufanistas ou não –, o queevidentemente impunha “adaptações”, como ele mesmo explica na propaganda de Narizinho.

    As críticas de Lobato à má qualidade gráca do livro infantil/escolar e ao seu estilo enfadonhonada tinham de novas, sendo conhecidas há muito, como o texto de José Veríssimo,  A educaçãonacional , já mencionado, evidencia muito bem. De todo modo, o que desejo ressaltar é que,

    16 Estou citando artigo de Lobato de A onda verde, no qual é discutida a questão da formação de leitores, a partir de SOARES, G. P. Semearhorizontes: uma história da formação de leitores na Argentina e no Brasil (1915-1954). Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007. p. 180-2.

    17 SOARES, G. P. Op. cit., citação na p. 185.

  • 8/17/2019 MHN_Livro - Miolo - 19mai14

    30/264

    MUSEU HISTÓRICO NACIONAL30

     ANGELA DE CASTRO GOMES

    inclusive Lobato, embora com recursos literários bem distintos dos autores do início do século XX,

    também se inseriu nessa vertente de escritores que se dedicaram a explorar a dimensão históricaao se voltarem para o público infantil. Mesmo não caindo em um “patriotismo besta”, ele tambémescreveu sobre fatos e personagens da história, tratando igualmente de folclore brasileiro.

    Por m e para concluir, insisto na riqueza desse contexto de debates, com inovações e críticas,que envolvia o campo da história do Brasil, quer em seu locus mais erudito quer nas múltiplas possibilidades de escrita que as mídias impressas ofereciam para se ganhar um público mais amplode leitores, divertindo-os e instruindo-os no amor à pátria. Foi nesse tempo que o MHN foi criado,

     por determinação do então presidente Epitácio Pessoa, na ocasião das comemorações do Centenárioda Independência. Abrigado no Pavilhão das Grandes Indústrias da “Exposição Internacional de1922”, o núcleo inicial do museu devia não apenas evocar os acontecimentos históricos do passadonacional brasileiro, mas igualmente voltar-se para a instrução pública, vale dizer, buscar alcançarum público de não iniciados. Um grande desao, já que implicava construir uma linguagem musealque articulasse os dois valores da disciplina da história tão propagados: o cientíco e o pragmático,apelando para a razão e a emoção dos que o visitassem. Um desao que ainda permanece e este

    seminário procura, mais uma vez, enfrentar.

  • 8/17/2019 MHN_Livro - Miolo - 19mai14

    31/264

    MUSEU HISTÓRICO NACIONAL 31

    O Rio e a Exposição do Centenário

    Ruth Levy∗

    O Rio de Janeiro foi cenário, em 1922, de um grande espetáculo: a Exposição InternacionalComemorativa do Centenário da Independência. A obra, descrita como “um trabalho hercúleo,

    executado no curto espaço de alguns meses”, armando “solenemente a nossa atividadeempreendedora”1, ocupou, com seus palácios e pavilhões uma grande área do centro da cidade,que ia do Passeio Público à Ponta do Calabouço e de lá se estendia pelo espaço recém-conquistadocom a demolição do Morro do Castelo.

    A ideia da comemoração já vinha desde alguns anos antes. Em 1916, foi apresentado à Câmaraum projeto de autoria dos deputados José Bonifácio e Bueno de Andrada, que acabou arquivado.Em 3 de junho de 1920, o projeto do deputado Costa Rego, autorizando o Poder Executivo a promover a comemoração, foi apresentado e, depois de sofrer diversas emendas, nalmente aceitocom a redação que consta do Decreto Legislativo no 4.175, de 11 de novembro de 1920.

    Foi imediatamente constituída uma comissão para organizar o programa para a comemoração, publicado em 30 de janeiro de 1921, que incluía em seu primeiro artigo a realização de umaExposição Nacional, “compreendendo as principais modalidades do trabalho no Brasil, atinentes à

    * Formada em Arquitetura e Urbanismo pela UFF e em Museologia pela Unirio. É doutora e mestre em História da Arte pela EBA/UFRJ

    e pós-graduada em História da Arte e Arquitetura no Brasil pela PUC-RJ. Como pesquisadora tem se dedicado ao estudo da arquitetura donal do século XIX e primeiras décadas do século XX, com especial interesse na produção arquitetônica realizada para exposições. É autorade vários artigos e de dois livros sobre o tema:  Entre palácios e pavilhões: a arquitetura efêmera da Exposição Nacional de 1908. Rio deJaneiro: EBA/UFRJ, 2008, e A Exposição do Centenário e o meio arquitetônico carioca no início dos anos 1920. Rio de Janeiro: EBA/UFRJ,2010. Atuou como arquiteta responsável pela conservação e coordenação de serviços de restauração na Igreja da Venerável Ordem Terceira doCarmo, realizou estágio na Corcoran Galery em Washington, DC, e trabalha como museóloga da Fundação Eva Klabin desde 1993.

    1 LIVRO DE OURO comemorativo do Centenário da Independência do Brasil e da Exposição Internacional do Rio de Janeiro. Rio deJaneiro: Laemmert, 1923. p. 303.

    RUTH LEVY

  • 8/17/2019 MHN_Livro - Miolo - 19mai14

    32/264

    MUSEU HISTÓRICO NACIONAL32

    RUTH LEVY 

    lavoura, à pesca, à indústria extrativa e fabril, ao transporte marítimo, uvial, terrestre e aéreo, aos

    serviços de comunicações telegrácas e postais, ao comércio, às ciências e às belas artes”.2

    O programa determinava que a Exposição seria realizada no edifício do antigo Arsenal deGuerra e em suas dependências, bem como em terrenos vizinhos, pertencentes ao Estado e aoMunicípio, que pudessem ser cedidos. Ali seriam construídos os pavilhões necessários e aproveitadosedifícios existentes que pudessem ser cedidos e adaptados convenientemente. As construções e asadaptações deveriam ser projetadas por uma comissão de arquitetos, nomeada pelo governo, e,depois de aprovadas por este, seriam contratadas mediante concorrência pública. Além disso, o

    Programa previa também que uma área contígua à Exposição Nacional fosse reservada e cedidaaos governos e industriais estrangeiros que se propusessem a erguer, por conta própria, pavilhõesdestinados a exibir seus produtos.

    Além da Exposição, o programa previa uma série de realizações, como a inauguração demonumentos e estátuas, a inauguração do Museu da Independência, que seria instalado em uma parte do palácio da Quinta da Boa Vista, a cunhagem de medalhas, a emissão de um selo postal, paradas militares, recepções, celebração de jogos olímpicos, festas infantis, ornamentação e

    iluminação da cidade, concertos por bandas musicais em praças públicas, festejos populares, entreoutras. A execução do programa seria promovida e scalizada por uma Comissão Executiva, tendoà frente o prefeito do Distrito Federal, Carlos Sampaio.

    Em 4 de fevereiro de 1921, a Comissão Executiva começa a realizar uma série de reuniões,em um total de 95 sessões, tendo sido a última realizada em 28 de julho de 1922. Nas primeirasreuniões, ainda em fevereiro, foram traçados os planos de propaganda da Exposição e tomadas providências relativas à desapropriação dos prédios e terrenos situados na área destinada ao evento.

    Em seguida, foram discutidos e aprovados os croquis e planos com o arruamento da área e aimplantação dos pavilhões. O prefeito Carlos Sampaio cou encarregado do preparo do terreno, dascalização da obra e da execução de todos os projetos.

    Após algumas modicações no plano original, a área ocupada pela Exposição acabou sendo aque ia do Palácio Monroe, ao lado do qual foi colocada a Porta Principal, até a Ponta do Calabouçoe, deste, estendia-se até o Mercado Municipal. O Livro de ouro assim descreve o espaço:

    Do velho Passeio Público, o lindo e histórico jardim, até a ponta do Calabouço e daí demandando,após leve e graciosa curva, a esplanada do Mercado, estende-se a exposição por mais de dois mile quinhentos metros, que o visitante percorre entre deslumbrantes monumentos arquitetônicos. Nasua primeira parte, inteiramente reta, constitui a Avenida das Nações, em que se alinham os palácios

    2 PROGRAMA PARA A COMEMORAÇÃO DO CENTENÁRIO DA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL. Rio de Janeiro: Ministério daJustiça e Negócios Interiores, 1921.

    O RIO E A EXPOSIÇÃO DO CENTENÁRIO

  • 8/17/2019 MHN_Livro - Miolo - 19mai14

    33/264

    MUSEU HISTÓRICO NACIONAL 33

    O RIO E A EXPOSIÇÃO DO CENTENÁRIO

    das representações estrangeiras, e que será mais tarde um dos trechos mais famosos da nossaincomparável urbs. Ao m dessa avenida, marcando o ângulo da curvatura, levanta-se o torreão doantigo forte do calabouço, transgurado em portentosa obra de arte. Mais para além, feita a curva, econsistindo já na segunda parte do certamen, abre-se a magníca praça em torno da qual se erigem

    os palácios brasileiros, mostruários majestosos de nossa riqueza e de nossa capacidade de trabalho.3

    Foi aberto concurso entre arquitetos para uma Porta Monumental, que deveria ser em “estilocolonial brasileiro”, concurso este vencido pelo arquiteto Morales de los Rios; entretanto, essa porta acabou não sendo construída.

    O projeto foi, então, substituído pelo da Porta Principal, de autoria de Edgar Vianna e MarioFertin, que foi edicada entre o jardim do Palácio Monroe e um terreno particular em frente. Naoutra extremidade da exposição foi construída a Porta Norte, de autoria de Raphael Galvão, quedava entrada diretamente para a seção brasileira. Além dessas duas portas monumentais, existiamoutros pontos de acesso à área da Exposição: um portão para carros situado no começo da Av. das Nações e dando para a Av. Beira-Mar; uma porta para pedestres entre os Pavilhões de Honra dePortugal e da Bélgica; uma porta para carroças entre o Pavilhão das Pequenas Indústrias e o das

    Indústrias Particulares; o desembarcadouro construído na antiga doca do Mercado, em frente aoPavilhão de Caça e Pesca, além de dez portas de serviço, dando todas, direta ou indiretamente, paraa Rua Santa Luzia.

    Em junho de 1921, cou resolvida a criação de uma seção na Praça Mauá, destinada às GrandesIndústrias, devido à exiguidade de espaço na área da Exposição. Àquela altura, alguns paísesestrangeiros já haviam conrmado sua participação e o espaço previsto inicialmente ia mostrando-se insuciente. Por conta, aliás, da adesão de vários países estrangeiros, seria alterada depois, pelo

    Decreto no 15.509, de 22 de julho de 1922, a denominação da