1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X METADE CARA, METADE MÁSCARA: UMA AFIRMAÇÃO DAS IDENTIDADES ETNO-POLÍTICAS DA MULHER INDÍGENA Jéssica Emanuelli Pereira da Cunha 1 Resumo: Este artigo tem por intuito discutir a representação da identidade indígena a partir de uma perspectiva étnico- política, tomando como base de análise a obra Metade Cara, Metade Máscara da escritora Eliane Potiguara. Para este fim, considero nessa empreitada os conflitos existente entre a representação do indígena, mais especificamente da mulher indígena, na literatura hegemônica e colonial, colocando em perspectiva as representações narrativas criadas para os indígenas e aquelas criadas pelos próprio indígenas. Através de uma análise da referida obra, procuro perceber as construções narrativas do texto que vão de encontro ao cânone literário e que questionam a construção da identidade indígena estereotipada, colocando em evidência a construção de um discurso desde um lugar da mulher indígena. Sob uma perspectiva dos estudos descoloniais, busco compreender através da narrativa de Eliane Potiguara a construção da identidade da mulher indígena em relação ao estado-nação, aos movimentos globais, e como a construção de narrativas pode vir a ser utilizada como uma ferramenta de afirmação identitária frente à esses processos. Palavras-chave: Literatura Indígena, Autoria Feminina, Descolonialidade, Processos Identitários. Ao estudarmos a literatura de autoria indígena no Brasil, percebemos que podemos dividi-la analiticamente em dois momentos singulares: o período clássico, que se refere à tradição oral (coletiva) que perpassa os períodos históricos com as narrativas míticas, como as narrativas dos povos Pemons, Macuxis, So’tos, que influenciaram as produções literárias canônicas no Brasil (Sá, 2012) e o período contemporâneo, como as narrativas de Eliane Potiguara, Daniel Munduruku, Yaguarê Yamã, Ren~e Kithãulu e Olívio Jekupé, baseado na escrita individual e coletiva que se manifesta na poesia e na “contação de histórias” com base também nas narrativas míticas e nas experiências individuais e coletivas no cotidiano desses povos, entrelaçando também com a narrativa ficcional (Graúna, 2013). No entanto, essa literatura indígena está permeada de complexidades no que diz respeito à produção e circulação das obras no contexto nacional. Almeida afirma que “a supremacia da produção intelectual indígena brasileira está com a região Norte (Amazonas, Tocantins, Pará, Roraima, Rondônia, Amapá, Acre)” (Almeida, 1999, p.18). Embora no período da pesquisa de Almeida os povos indígenas de outras regiões já tivesse publicado livros, a afirmação da autora aponta o apagamento dos índios das demais regiões do país, sobretudo no Nordeste. Tal fato aponta que a literatura indígena não é homogênea pelo fato de ser produzida por povos indígenas. Essa grande classificação de “literatura indígena” engloba uma série de complexidades e diferenças, 1 Mestranda em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará. Reside em Fortaleza – CE, Brasil.
12
Embed
METADE CARA, METADE MÁSCARA: UMA AFIRMAÇÃO DAS … · Escrito por Eliane Potiguara, Metade Cara, Metade Máscara foi publicado em 2004, contendo contos, crônicas poesias e relatos
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
1
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
METADE CARA, METADE MÁSCARA: UMA AFIRMAÇÃO DAS IDENTIDADES
ETNO-POLÍTICAS DA MULHER INDÍGENA
Jéssica Emanuelli Pereira da Cunha1
Resumo: Este artigo tem por intuito discutir a representação da identidade indígena a partir de uma perspectiva étnico-
política, tomando como base de análise a obra Metade Cara, Metade Máscara da escritora Eliane Potiguara. Para este
fim, considero nessa empreitada os conflitos existente entre a representação do indígena, mais especificamente da
mulher indígena, na literatura hegemônica e colonial, colocando em perspectiva as representações narrativas criadas
para os indígenas e aquelas criadas pelos próprio indígenas. Através de uma análise da referida obra, procuro perceber
as construções narrativas do texto que vão de encontro ao cânone literário e que questionam a construção da identidade
indígena estereotipada, colocando em evidência a construção de um discurso desde um lugar da mulher indígena. Sob
uma perspectiva dos estudos descoloniais, busco compreender através da narrativa de Eliane Potiguara a construção da
identidade da mulher indígena em relação ao estado-nação, aos movimentos globais, e como a construção de narrativas
pode vir a ser utilizada como uma ferramenta de afirmação identitária frente à esses processos.
Palavras-chave: Literatura Indígena, Autoria Feminina, Descolonialidade, Processos Identitários.
Ao estudarmos a literatura de autoria indígena no Brasil, percebemos que podemos dividi-la
analiticamente em dois momentos singulares: o período clássico, que se refere à tradição oral
(coletiva) que perpassa os períodos históricos com as narrativas míticas, como as narrativas dos
povos Pemons, Macuxis, So’tos, que influenciaram as produções literárias canônicas no Brasil (Sá,
2012) e o período contemporâneo, como as narrativas de Eliane Potiguara, Daniel Munduruku,
Yaguarê Yamã, Ren~e Kithãulu e Olívio Jekupé, baseado na escrita individual e coletiva que se
manifesta na poesia e na “contação de histórias” com base também nas narrativas míticas e nas
experiências individuais e coletivas no cotidiano desses povos, entrelaçando também com a
narrativa ficcional (Graúna, 2013).
No entanto, essa literatura indígena está permeada de complexidades no que diz respeito à
produção e circulação das obras no contexto nacional. Almeida afirma que “a supremacia da
produção intelectual indígena brasileira está com a região Norte (Amazonas, Tocantins, Pará,
Roraima, Rondônia, Amapá, Acre)” (Almeida, 1999, p.18). Embora no período da pesquisa de
Almeida os povos indígenas de outras regiões já tivesse publicado livros, a afirmação da autora
aponta o apagamento dos índios das demais regiões do país, sobretudo no Nordeste. Tal fato aponta
que a literatura indígena não é homogênea pelo fato de ser produzida por povos indígenas. Essa
grande classificação de “literatura indígena” engloba uma série de complexidades e diferenças,
1 Mestranda em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará. Reside
em Fortaleza – CE, Brasil.
2
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
visto que os povos indígenas não são uma entidade única, mas são diversos e complexos em suas
particularidades.
Assim, o fato de a literatura dos indígenas da região Norte possuir uma maior relevância no
cenário nacional do que as obras produzidas pelos indígenas do Nordeste revela a concepção
estanque do que é ser índio, presa a imagem feita do indígena como habitante originário, portador
das características observadas ainda no contato colonial, impossibilitado de reconfigurar seus
códigos culturais e assimilar aspectos relativos à outras culturas.
O apagamento dos povo indígenas do Nordeste como grupos étnicos presente na
contemporaneidade se deve, como afirma Oliveira (2004), a uma concepção cristalizada sobre os
elementos que constituem uma identidade indígena, ou seja, no imaginário coletivo o referencial
que distingue um sujeito como indígena ou não está baseado em um modelo étnico estereotipado
que remete aos grupos étnicos habitantes da floresta amazônica. Os índios do nordeste, por terem
passado por um processo de “mistura”, ou seja, terem incorporado de forma mais evidente a cultura
do colonizador a partir de um contato mais intenso, inserindo-se de forma mais acentuada na
economia e nas sociedades regionais, são analisados a partir de uma “etnologia das perdas e das
ausências” (Oliveira, 2004, p.32), sendo relatados pelo que foram no passado e pelo que “perderam”
no processo de “aculturação”.
No entanto, a população indígena no Nordeste cresce cada vez mais a partir de um processo
de emergência étnica e de reconstrução cultural, em que esses povos vêm se organizando a partir de
fatos de natureza política, como a demanda por terra e reconhecimento de suas identidades. No
âmbito do diálogo com o Estado, os grupos étnicos entram em um processo de territorialização
(Oliveira, 2004), no qual se constituem em uma coletividade organizada capaz de forjar
mecanismos de representação e tomada de decisões, reelaborando códigos culturais e formulando
uma identidade étnica própria e diferenciadora.
Dentro desse contexto de invisibilização e apagamento situa-se o povo Potiguara. De acordo
com Graça Graúna:
O nome Potiguara, de origem Tupi, significa ‘comedores ou catadores de camarão’.
No século XVI, esse povo habitava o litoral do Nordeste brasileiro, mas em contato
com o mundo dos ‘brancos’ veio a diáspora e os Potiguara se dispersaram entre o
Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte e outros estados brasileiros. Hoje, grande
parte dos remanescentes sobrevive nas 22 aldeias nos municípios Baía da Traição,
Marcação e Rio Tinto, na Paraíba. (GRAÚNA, 2013, p. 95)
3
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
O povo potiguara por muito tempo foi tido como extinto, como totalmente assimilado ou
dizimado pela colonização. É possível perceber tal fato pela pouca produção sobre a etnia, e pela
referência a esse povo sempre em relação ao passado. Mesmo sabendo que essa etnia não foi
extinta, esse estereótipo pode ser encontrado ainda hoje em sítios e enciclopédias virtuais como a
Wikipédia, que apesar de não confiável, do ponto de vista acadêmico, reproduz a imagem dos
Potiguara como extintos: “Foi uma das etnias tupis notáveis por ser capaz de resistir por tanto
tempo utilizando um complexo sistema de alianças com ingleses e principalmente franceses
comerciantes de pau-brasil2.”
Apesar de ter sido perseguida e oprimida por questões religiosas e fundiárias, a etnia
potiguara resiste.
Tal mobilização está interligada com o processo de retomada da Terra Indígena
Potiguara (TI), que segundo a FUNAI ocupa o espaço de 33.757 hectares. A ação
de retomada foi inaugurada em 1983 quando se demarcou o total de 21.238
hectares como TI presente nos municípios de Rio Tinto, Marcação e Baia da
Traição. No ano de 1993, homologou-se a TI Jacaré de São Domingos, com 5.032
hectares. A TI Potiguara de Monte-mor ainda apresenta uma área de 7.487 hectares
que está em questão judicial (BARCELLOS, 2010,p.5).
É nesse contexto que se insere a escrita de Eliane Potiguara. Com o desaparecimento de seu
avô, por questões de terra, Eliane e a família se deslocaram para o Rio de Janeiro, onde ela vive até
hoje. Embora a escritora não tenha nascido na aldeia, segundo aponta em entrevista dada para a
Tese de doutorado de Daniel Munduruku, disponibilizada em seu blog, nunca deixou de ser
Potiguara: “[...]gosto de ser identificada sempre como indígena que é a força maior que eu tenho na
minha família, que é minha identidade enquanto povo indígena, povo Potiguara de origem indígena
potiguara” (Potiguara, 2009)
Metade Cara, Metade Máscara – análise de uma obra
Eliane Potiguara (Eliane Lima dos Santos) é escritora, professora formada em Educação e
Letras, conselheira da Fundação Palmares, membro da organização internacional ASHOKA. Criou
a primeira organização de mulheres indígenas do país, o GRUMIN, atual Rede de Comunicação