Memórias de Liza, uma cadelinha abandonada Introdução Meu nome hoje é Liza, mas esse é o último nome que recebi em minha vida. Como vocês poderão notar no desenrolar de minhas memórias, eu tive vários donos e vários nomes.
Memórias de Liza, uma cadelinha abandonada
Introdução
Meu nome hoje é Liza, mas esse é o último nome que recebi em minha vida.
Como vocês poderão notar no desenrolar de minhas memórias, eu tive vários donos e
vários nomes.
Sou uma cadela viralata de porte médio, cor predominante preta, com alguns
detalhes em branco. Tenho hoje 56 anos na idade dos cachorros. O que dá 08 anos na
idade dos seres humanos.
Resolvi escrever minhas memórias, como uma forma de mostrar um pouco aos
seres humanos que nós os cachorros, assim como todos os animais, temos sentimentos.
E assim conscientizálos sobre questões como maus tratos, violência, abandono etc.
Capítulo 1
Meu nascimento, minha família e uma tragédia.
Sou filha de uma cachorra, viralata de cor
preta completa, que era acompanhante de um
homem, morador de rua. Meu pai não sei
quem era. Sabe como é né... Mamãe era
cachorra de rua. Dormia e vivia na rua, e em
tempo em que ficava no cio, era um Deus nos
acuda. Eu fui um dos filhotes da sua 10ª
gravidez. Devo ter dezenas de irmãos
espalhados por ai.
Meus sofrimentos começaram logo que nasci. Minha mãe e meus irmãos que
nasceram comigo, ao todo seis, morreram dias depois do nosso nascimento. Morreram
junto com nosso dono. Ele, como eu disse, era morador de rua, e bebia para esquecer os
problemas da vida e se aquecer nas noites frias. Certa noite estávamos todos deitados
junto dele, acomodados num pedaço de papelão, e uma coberta velha de algodão.
Quando de repente se aproximaram uns jovens rindo alto e vinham chutando sacos de
lixo que se encontravam nas ruas. Ao se aproximarem de nós, um deles falou;
_Olha só esse bebum sujo, deixando nossa cidade feia.
Outro disse;
_Vagabundo! Suma daqui!
E chutou nosso dono, que não reclamou, nem se defendeu.
Mas mamãe não! Mamãe avançou para cima dos jovens, rosnando, latindo e mostrando
seus dentes afiados.
Os meninos correram. Então voltamos a nos acomodar em nossa cama de rua, e
adormecemos.
O que aconteceu depois, foi muito rápido, eu me lembro apenas de alguns
detalhes. Só não esqueço da voz daquele jovem quando disse;
_Manda sua cachorra morder agora seu bêbado vagabundo!
Senti então aquele cheiro forte de gasolina. O menino havia jogado o liquido em
toda nossa cama. Nosso dono, minha mãe e meus irmãos estavam todos ensopados. Eu
só não fui atingida, pois dormindo havia rolado para os pés da cama. Então o rapaz
acendeu um fósforo e jogou em cima de nós. Um fogo enorme começou. Corri como
louca pára escapar. Um dos meninos correu atrás de mim e me pegou pelo rabo.
Caminhava em direção ao fogo, onde pude ainda ver aquela cena horrível, com meu
dono, mamãe e meus irmãos se debatendo no meio das chamas. Quando ele ia me
atirando no meio do fogareiro, uma sirene da policia o assustou e ele me largou e saiu
correndo.
Tentaram apagar o fogo, mas era tarde... Tarde demais para todos. A policia me
encaminhou para a Zoonoses da cidade. Nunca soube se prenderam aqueles selvagens
que mataram minha família.
Capítulo 2
À procura de um dono
O Centro de Zoonoses tinha um
local, onde ficavam os cachorros e
gatos abandonados que eram
encontrados na cidade. Tinha de tudo
lá. Cães velhos, doentes, filhotes,
cachorras prenhas, gatos nas mesmas
condições. Quem tinha sorte podia ser adotado, mas essa sorte não chegava aos idosos e
doentes, que acabavam sendo sacrificados.
Fiquei na Zoonoses uns 6 meses. Um dia, a cidade resolveu diminuir a
quantidade de internos, criando uma campanha de adoção de animais. Ainda me lembro
daquele dia. Nós nunca recebíamos carinho, nenhum contato humano a não ser quando
o veterinário vinha fazer uma inspeção pra avaliar a saúde dos animais. Às vezes ele
trazia auxiliares que demonstravam algum sentimento com a gente. Naquele dia da
campanha de adoção, eu e os filhotes éramos os mais propícios a sermos adotados.
Então nos deram banho, escovaram nossos pelos. E nos levaram a uma grande praça na
cidade, onde dentro de uma enorme tenda ficamos expostos para a população. Muita
gente chegava dizendo.
_Olha que gracinha!
Crianças dizendo;
_Mãe eu quero esse! Leva! Leva!
Fiquei ansiosa para ir com uma daquelas crianças...
Mas infelizmente, um homem, de rosto sisudo que dava até medo, me escolheu
antes. Pensei, quem sabe está me levando para seu filho ou filha... Mas não. Era para ele
mesmo. E o homem de cara brava era solteiro.
Chegando em sua casa amarrou uma corda em meu pescoço. Uma corda mesmo,
não uma coleira. A corda apertava minha garganta ainda pequena, eu tinha menos de um
ano de vida, era mansa. Não tinha por que me prender daquele jeito.
O homem me chamava pelo nome de Pintada, por causa de eu ser preta e ter
algumas manchas brancas em meus pelos, sendo uma destas bem na minha testa.
Os primeiros dias foram até normais. Eu passava a maior parte deles sozinha. O
homem saia cedo para trabalhar, e voltava tarde da noite. Muitas vezes esquecia de
deixar água e comida. Acostumeime a esperar. Eu tentava chamar sua atenção latindo,
tentava brincar. Um dia inventei de pular em suas pernas para brincar com ele, ver se
ganhava um pouco de atenção. E ganhei a atenção. Que veio em forma de um chute na
minha barriga que me jogou longe. Enquanto o ser desprezível de rosto sisudo dizia;
_Não arrumei cachorro pra brincadeiras! E sim pra guardar a casa! Trate de virar um
cão bravo, ou te jogo na rua sua peste!
Virar um cão bravo? Mas por quê? Eu não queria ser uma cadela brava! Eu
queria só carinhos, alguém pra coçar minha barriga... Enfim, eu queria uma família. E
não um emprego!
Passei os demais dias planejando minha fuga daquele lugar horrível. Foi então
que percebi que eu era um cachorro e aquela corda poderia ser destroçada facilmente
por meus dentes afiados. Foi como pensei... Em minutos roí a corda e me soltei. Acabei
bem na hora que o grandalhão de mau humor chegou. Assim que ele abriu o portão, eu
corri e passei bem, no meio de suas pernas. Ouvi ao longe o homem me xingando de
vários nomes feios que não vou colocar aqui em respeito ao caro leitor. O importante é
que eu estava livre! Bom, eu tinha ainda um pedaço de corda amarrada no meu pescoço.
Mas era livre pra ir bem longe daquele lugar.
Eu tinha que encontrar uma família, um dono pra cuidar de mim. Mas precisava
também de água e comida. E confesso, eu nunca tive de procurar essas coisas. Sempre
tinha alguém que cuidava disso.
Era estranho andar livre nas ruas. Dava um pouco de medo quando alguns
cachorros chegavam latindo e depois de me cheirar se afastavam. Nem os bonitinhos me
davam muita bola. Acho que era por que fui castrada na Zoonoses e não ficava no cio
nem podia engravidar. Isso era bom de um lado, pois se evitava ficar grávida, mas
também afastava bons partidos de namoro. Mas como a prioridade era outra, isso não
me entristecia muito. Eu queria era o carinho de um dono.
Continuando minha história. Eu ia pelo caminho procurando ainda o que comer,
quando um homem, que estava na porta de um bar, se ao me ver, se agachou e me livrou
daquela corda que apertava ainda meu pescoço. Ele estava comendo um salgado Fiz a
melhor cara de piedade, fome e de bicho carente que eu podia fazer... Ele jogoume
então o salgado, que comi tão rápido que não lembro se era de carne ou frango o
recheio. Fiz festa para o homem, lati, pulei em suas pernas, ele me fez carinho na
cabeça, brincou comigo. Eu estava tão feliz, tão feliz... Afinal, era o primeiro contato
humano de verdade que eu recebia. Não como do médico com suas auxiliares, nem
como do brucutu que me adotou... Mas era um contato de verdade. Como eu sempre
havia sonhado. Pensei comigo que havia encontrado meu dono. Mas logo descobri que
não. O homem bondoso pagou o dono do bar e entrou num carro. Eu corri e tentei entrar
também, mas ele fechou a porta antes. Ligou e saiu pela rua indo embora. Eu corri, corri
como louca atrás daquele carro, no meio do trânsito, no meio de carros em alta
velocidade que buzinavam e seus motoristas gritavam como doidos;
_Sai da rua viralata!
Por fim, perdi o carro daquele bom homem de vista e desisti da busca. Voltei a
caminhar pelas ruas da cidade, precisava encontrar um lugar para ficar, logo ia
escurecer.
Encontrei alguns cachorros perto de um casal de moradores de rua, mas as
lembranças de minha família queimada naquela fatídica noite me fizeram ir procurar
outro lugar. Dormi aquela noite debaixo de um banco do ponto de ônibus de frente a
uma padaria 24 horas. O movimento ali, me dava segurança e acalmava meus medos.
Enquanto o sono não vinha eu ficava olhando as pessoas que entravam e saiam do lugar.
Pensava nas famílias a que pertenciam, se tinha algum bichinho de estimação. Quem
sabe, alguma daquelas pessoas pudessem ser bons donos para mim.
O dia clareou. Eu havia dormido à prestação, mas estava com as forças
renovadas, embora com muita fome. Matei a sede bebendo um pouco de água numa
poça na calçada e segui adiante em minha missão. O centro da cidade não parecia ser
um lugar bom para encontrar um dono, então segui para os bairros da periferia.
Passando perto de uma casa de quintal enorme, vi que o portão estava aberto. Curiosa,
resolvi entrar. De repente aquele cachorro veio latindo e rosnando atrás de mim. Era um
Pitbul bravo enorme. O cão vinha babando, nos olhos avermelhados eu podia ver a raiva
que ele estava sentindo por eu ter invadido sua casa.
Corri feito louca. Ele estava quase me alcançando. Se me pega me mata! Pensei.
Foi então que uma senhora vendo minha situação abriu o portão de sua casa e me
chamou;
Vem pra cá cachorrinha!
Não pensei duas vezes... Entrei feito um foguete passando pelo meio das pernas da
velhinha que correu fechar o portão. O malvado Pitbul ficou latindo como doido lá fora,
enquanto minha heroína me afagava a cabeça enquanto carregavame para dentro da
casa. Já acomodada, num cantinho da sua cozinha, ela me deu água fresca, e um
pratinho com uma comida deliciosa. Nossa como eu estava com fome! Comi e logo
dormi de tão cansada que estava.
Capitulo 3
Conhecendo os novos donos
Quando acordei na casa da boa senhora que me havia
salvado a vida, a casa estava cheia de gente. E estavam
falando sobre mim.
Um homem magro, alto de rosto fino dizia;
_Mas mamãe, a senhora está velha e cansada. Cheia de
doenças, precisa se cuidar, tomar um monte de remédios.
Não dá pra cuidar de cachorro.
_Não se preocupe meu filho. Eu dou conta.
Dizendo isso, chamou um menino, era seu neto.
;
_Venha conhecer a Pretinha, Gustavo. Olha como ela é bonitinha.
O neto da senhora tinha oito anos. Chegou perto, me fez um carinho na cabeça.
Nisso, sua mãe gritou da sala. Pode lavar bem essa mão depois menino! Vai saber onde
andou essa virala.
_Amanhã vou dar banho na Pretinha. Disse a boa velhinha. Dona Cida era seu nome.
Eu estava feliz. Apesar das reações do filho e da nora de dona Cida, parecia que
eu havia enfim encontrado um lar. Bom aquilo já era melhor que o perigo das ruas, ou a
solidão da Zoonoses. No dia seguinte, dona Cida me deu um bom banho. Eu nunca
gostei muito de banho, mas bem que eu estava precisando. De tarde a perua escolar
trouxe seu neto que ficava com ela, até seus pais chegarem do trabalho, quando vinham
buscálo. Ela nos dava o almoço, e depois de tomar seus remédios deitavase para
dormir. Foi então que descobri que crianças podem ser mais perigosas do que as ruas.
Gustavo fazia cada coisa comigo... Uma vez me colocou dentro da gaveta do
guardaroupa e fechou as portas. Quase morri sufocada no meio daquelas roupas. Em
outro dia inventou que ia me mandar de presente para um amigo no Japão. E para isso
me colocou dentro de uma caixa de papelão, fechou com fita adesiva e escreveu “Made
in Japão” na tampa. Pior... Isso foi perto da hora de seus pais o buscarem. Acreditam
que ele me deixou lá? Sim! Presa, quase sem ar... Largou a caixa fechada comigo dentro
perto da caixa do correio no portão. Eu escutava Dona Cida me chamando da sala. Mas
meus latidos abafados pela caixa lacrada de fitas, não eram suficientes para que a
velhinha me escutasse.
_Pretinha cadê você?
_Venha cá meu amorzinho...
_Onde anda essa cadelinha? Será que o Gustavo deixou o portão aberto e ela fugiu?
Foi então que Dona Cida veio até o portão verificar se estava aberto. Ao perceber sua
presença. Me debati dentro da caixa. Quase matei a velhinha de susto, mas deu certo.
Dona Cida me libertou e retribui com muitas lambidas em seu rosto assim que me vi
solta do cárcere. No dia seguinte ela deu uma bronca no neto.
Tive outras aventuras com o Gustavo, mas apesar de tudo, só de fazer parte de
uma família, valia à pena o sacrifício.
Capítulo 4
Mais uma tragédia e o retorno à Zoonoses
Fiquei na casa de Dona Cida por dois anos, eu já
estava com 21 anos na idade dos cachorros, 3 na idade
dos seres humanos. Mas num fatídico dia, quando
acordei, esperei dona Cida levantar, pois ela abria a
porta para que eu fosse ao quintal fazer minhas
necessidades. As horas passavam, e nada da velhinha
levantar. Fui até o quarto, subi na cama, ela estava
ainda deitada. Voltei para cozinha, eu estava
apertada, mas não ia fazer xixi na cozinha. Voltei ao quarto e lati perto da cama de Dona
Cida. Lati várias vezes e nada. Até que desisti. Não agüentei e fiz meu xixi num
cantinho da cozinha mesmo, dona Cida que me desculpase , mas não deu para
agüentar. À tarde, a perua da escola chegou. Gustavo entrou pelo portão, mas as portas
da casa ainda estavam trancadas por dentro e ele não tinha a chave. Chamou, tocou a
campainha e nada de dona Cida acordar. Nesse ponto eu já estava começando a
entender o que havia acontecido. A velhinha era muito doente, tomava diversos
remédios todos os dias. Passado algum tempo o menino voltou com seu pai. Este
chamou algumas vezes, e logo arrombou a porta. Ele correu para o quarto com o filho
ao lado. Gritando;
_Mamãe! Mamãe!
Mas infelizmente dona Cida havia partido.
Sem dona Cida, o casal tomou duas providências...
O menino saia da escola e ia para um curso extracurricular na parte da tarde...
E eu...
Bom, eu fui enviada para a Zoonoses novamente.
Capítulo 6
A Fuga
Eu havia experimentado uma vida
familiar. Não conseguia mais aceitar
aquela vida de abandono e solidão da
Zoonoses. Tinha que dar um jeito de
fugir daquele lugar. Tracei um plano
infalível. Foi num domingo, em que
havia apenas um empregado no local, que vinha fazer uma inspeção no lugar.
Quando o homem chegou perto do portão onde eu ficava junto com outros três
cachorros, me fingi de morta. Deitei numa posição toda torta para que chamasse a
atenção dele. E deu certo. O homem ao chegar e me ver naquela situação estranha,
com uma perna torta para um lado, a outra para o outro lado, a cabeça jogada para
trás, em cima do pote de água com uma das orelhas mergulhada dentro... O sujeito
correu abrir a porta do lugar e se aproximou. Nisso, eu disparei por entre suas pernas
e corri feito doida...
Sucesso completo minha fuga. Duas outras cadelas que estavam no mesmo local que
eu, aproveitaram e fugiram também, o que me deu mais chances de sumir no
mundo.. Pois o homem não sabia atrás de qual cachorro correr atrás. Se bem que
estava mesmo era com raiva de mim.
Capítulo 7
O retorno à rua e o encontro com a Associação Protetora dos Animais
A vida nas ruas não era fácil, gente ruim que
maltrata animais como diversão, cachorros
criados para atacar até seus semelhantes, frio,
fome, sede... Mas enfim, havia o bônus da
liberdade. A gente aprende a se virar. Tem
gente ruim, mas tem muita gente de bom
coração que deixa um pratinho de comida,
água para os animais de rua. Tem pessoas
bondosas que recolhe um gatinho aqui, um cachorro ali. Pessoas que se preocupam
com nós. E um dia um destes, já passados três anos deste que havia fugido da
Zoonoses, alguns destes seres humanos de verdade me encontrou. Era de uma tal de
associação protetora dos animais que recolhe animais abandonados e os leva para
tratar e enviar para adoção. Mas bem diferente da Zoonoses da prefeitura aquele
lugar gelado e frio na questão do relacionamento com a gente. Na Associação, fui
bem tratada, recebi alem de comida e remédios, muito carinho.
Escrevi minhas memórias, para você saber que nós animais temos sentimentos. E
para que quando você for adotar um animal de estimação, lembrese que ele já viveu
muitas aventuras. Talvez tenha sofrido como eu sofri, e esteja precisando de um lar
com muito carinho e amor. Talvez você precise até se esforçar para ganhar sua
confiança... Mas quando conseguir isso pode ter certeza... Você ganhará um amigo
companheiro e fiel!
Hoje me chamo Liza, sou já bem velhinha, 56 anos na
idade dos cachorros. O que dá 08 anos na idade dos seres
humanos. Mas ainda posso brincar, dar carinho e ser boa
companheira. E estou prontinha para ser adotada.
E ai?
Quer ser meu dono? Meu amigo?
Quer ser minha família?
FIM
Marcelo Bancalero