Personagens No Memorial do Convento existem personagens históricas (como D. João V, D. Ana Maria Joseha, Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão e Domenico Scarlatti) e pe rsonagens fictícias (Baltasar Mateus e Blimunda de Jesus). D. João V D. João V é rei de Portugal de 1706 a 1750. De carácter vaidoso, magnificente e megalómano pretende deixar uma obra que ateste a grandeza da sua riqueza e do seu poder – Convento de Mafra -, ainda que para tal se tenha que sacrificar o povo (sacrificou todos os homens válidos e a riqueza do país). Este é construído sob o pretexto de que cumpre uma promessa feita (se no espaço de um ano a sua mulher lhe desse um filho varão este construiria o convento). É um “marido leviano”, cuja relação com a rainha se rege, essencialmente, pelo cumprimento de “deveres reais e conjugais”. Dado aos prazeres da carne e a destemperos vários (teve muitos bastardos e a sua amante favorita era a Madre Pauta do Convento de Odivelas). A caracterização do rei é feita predominantemente através da descrição das suas acções e dos seus pensamentos – de modo indirecto. Durante algum tempo apoiou o projecto do Padre Bartolomeu Gusmão (a “passarola”). D. Ana Maria Josefa De origem austríaca, a rainha, surge como uma pobre mulher cuja única missão é dar herdeiros ao rei para glória do reino e alegria de todos, vive um casamento baseado na aparência, na sexualidade reprimida e no falso código ético, moral e religioso. A rainha representa a mulher que só pelo sonho se liberta da sua condição aristocrática para assumir a sua feminilidade, sentindo uma atracção incestuosa pelo cunhado D. Francisco. É símbolo do papel da mulher da época: submissa, simples procriadora, objecto da vontade masculina.
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Personagens
No Memorial do Convento existem personagens históricas (como D. João V, D. Ana
Maria Joseha, Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão e Domenico Scarlatti) e pe
rsonagens fictícias (Baltasar Mateus e Blimunda de Jesus).
D. João V
D. João V é rei de Portugal de 1706 a 1750. De carácter vaidoso, magnificente e
megalómano pretende deixar uma obra que ateste a grandeza da sua riqueza e do seu
poder – Convento de Mafra -, ainda que para tal se tenha que sacrificar o povo
(sacrificou todos os homens válidos e a riqueza do país). Este é construído sob o
pretexto de que cumpre uma promessa feita (se no espaço de um ano a sua mulher lhe
desse um filho varão este construiria o convento). É um “marido leviano”, cuja
relação com a rainha se rege, essencialmente, pelo cumprimento de “deveres reais e
conjugais”. Dado aos prazeres da carne e a destemperos vários (teve muitos
bastardos e a sua amante favorita era a Madre Pauta do Convento de Odivelas).
A caracterização do rei é feita predominantemente através da descrição das suas
acções e dos seus pensamentos – de modo indirecto.
Durante algum tempo apoiou o projecto do Padre Bartolomeu Gusmão (a “passarola”).
D. Ana Maria Josefa
De origem austríaca, a rainha, surge como uma pobre mulher cuja única missão é dar
herdeiros ao rei para glória do reino e alegria de todos, vive um casamento
baseado na aparência, na sexualidade reprimida e no falso código ético, moral e
religioso. A rainha representa a mulher que só pelo sonho se liberta da sua
condição aristocrática para assumir a sua feminilidade, sentindo uma atracção
incestuosa pelo cunhado D. Francisco. É símbolo do papel da mulher da época:
submissa, simples procriadora, objecto da vontade masculina.
Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão
O padre Bartolomeu, tem por alcunha “O Voador”, vive com a obsessão de “elevar-se
um dia no ar, onde até agora só subiram Cristo, a Virgem e alguns santos eleitos",
daí o seu projecto da “passarola”, apoiado por el-rei D. João V, que mostra-se
muito empenhado no progresso do seu invento.
Mantém laços de profunda amizade com Baltasar e Blimunda, que formam o trio que
vai pôr em prática o sonho de voar, e com quem, segundo as suas palavras, formam
“uma trindade terrestre, o pai, o filho e o espírito Santo (XVI)”. Assim, o
trabalho físico e artesanal, de Baltasar, liga-se à capacidade mágica de Blimunda
e aos conhecimentos científicos do padre. Acaba por ter de se refugiar em Toledo
(Espanha) devido à perseguição da Inquisição, que o acusa de bruxaria, por isso
deixa o seu sonho/projecto nas mãos de Baltasar.
A sua obsessão de voar domina-o de tal forma, que ele não se inibe de integrar no
seu projecto um casal não abençoado pela Igreja e de aceitar e usufruir das
capacidades heréticas de Blimunda (“bruxaria”), que farão a passarola voar. A
passarola, símbolo da concretização do sonho de um visionário, funciona de uma
forma antagónica ao longo da narrativa: é ela que une Baltasar, Blimunda e o padre
Bartolomeu, mas também é ela que vai acabar por separá-los.
A sua caracterização é feita predominantemente de forma indirecta.
Domenico Scarlatti
É um músico italiano, que veio para Portugal como professor do irmão de D. João V,
o infante D. António, passando depois a ser professor da infanta D. Maria Bárbara.
É um homem de completa figura, rosto comprido, boca larga e firme, olhos afastados
(XVI). Scarlatti é cúmplice silencioso do projecto da passarola ("Saiu o músico a
visitar o convento e viu Blimunda, disfarçou um, o outro disfarçou, que em Mafra
não haveria morador que não estranhasse, e (...) fizesse logo seus juízos muito
duvidosos").
Na história, a sua música tem poderes curativos que libertaram Blimunda da sua
estranha doença, permitindo-lhe cumprir a sua tarefa de recolher as “vontades”
("Durante uma semana (...) o músico foi tocar duas, três horas, até que Blimunda
teve forças para levantar-se, sentava-se ao pé do Cravo, pálida ainda, rodeada de
música como se mergulhasse num profundo mar, (...) Depois, a saúde voltou
depressa" ).
É, ainda, Scarlatti que dá a notícia a Baltasar e Blimunda da morte do padre
Bartolomeu. A música do cravo de Scarlatti simboliza o ultrapassar, por parte do
homem, de uma materialidade excessiva, e o atingir da plenitude da vida.
Blimunda de Jesus
Blimunda de Jesus (19 anos) é "baptizada" de Sete-Luas pelo padre Bartolomeu de
Gusmão ("Tu és Sete-Sóis porque vês às claras, (...) Blimunda, que até aí só se
chamava, como sua mãe, de Jesus, ficou sendo Sete-Luas, e bem baptizada estava,
que o baptismo foi de padre, não alcunha de qualquer um" ).
Conhece Baltasar quando assiste ao auto-de-fé de sua mãe, acusada de feitiçaria.
Rapidamente os dois se apaixonam, e este amor puro e verdadeiro foge às normas da
época.
Blimunda tem um dom: vê o interior das pessoas, herdou da mãe um "outro saber" e
integra-se no projecto da passarola, porque, para o engenho voar, era preciso
"prender" vontades, coisa que só Blimunda, com o seu poder mágico, era capaz de
fazer. Blimunda é, simultaneamente, uma personagem que releva o domínio do
maravilhoso, pelo dom que tem de ver "o interior" das pessoas (poder que nunca
exerce sobre Baltasar - "Nunca te olharei por dentro"-, porque segundo ela, amar
alguém é aceitá-lo sem reservas).
É Blimunda e Baltasar que guardam a passarola enquanto o padre Bartolomeu foge
para Espanha. Após uma aventura voadora, a “passarola” ficou danificada e estes
remendaram-na, compuseram-na e limparam-na.
Após o desaparecimento de Baltasar, Blimunda procurou-o durante 9 anos, infeliz de
saudade, até que na sua sétima passagem por Lisboa, encontrou-o entre os
crucificados da Inquisição, a arder numa das fogueiras, e, graças aos seus
poderes, impediu que a sua vontade (alma) subisse às estrelas, guardando-a como se
fosse sua.
Simbolicamente, o nome da personagem acaba por funcionar como uma espécie de
reverso do de Baltasar. Para além da presença do sete, Sol e Lua completam-se: são
a luz e a sombra que compõem o dia - Baltasar e Blimunda são, pelo amor que os
une, um só. A relação entre os dois é também perturbadora, porque não existe
casamento oficial.
Como outras personagens femininas de Saramago, também Blimunda tem uma grande
firmeza interior, uma forma de oferecer-se em silêncio e de aceitar a vida e os
seus desígnios sem orgulho nem submissão, com a naturalidade de quem sabe onde
está e para quê.
Baltasar Mateus
Baltasar Mateus, de alcunha Sete-Sóis, deixa o exército depois de ter ficado
maneta em combate contra os espanhóis. Antes de partir para a guerra era um
camponês analfabeto. Conhece Blimunda em Lisboa, com 26 anos, e com ela partilha a
vida e os sonhos. De ex-soldado passa a açougueiro num matadouro em Lisboa e,
posteriormente, integra a legião de operários das obras do convento. A sua tarefa
máxima vai ser a construção da passarola, idealizada pelo padre Bartolomeu de
Gusmão, passando a ser o garante da continuidade do projecto, quando o padre
Bartolomeu desaparece em Espanha.
Baltasar acaba por se constituir como a personagem principal do romance, sendo
quase "divinizado" pela construção da passarola: "maneta é Deus, e fez o universo.
(...) Se Deus é maneta e fez o universo, este homem sem mão pode atar a vela e o
arame que hão-de voar. " - diz o padre Bartolomeu a propósito do seu companheiro
de sonhos. Após a morte do padre, Baltasar ocupa-se da passarola e, um dia, num
descuido, desaparece com ela nos céus. Só é reencontrado, nove anos depois, em
Lisboa, a ser queimado no último auto-de-fé realizado em Portugal.
O simbolismo desta personagem é evidente, a começar pelo seu nome: sete é um
número mágico, aponta para uma totalidade (sete dias da criação do mundo, sete
dias da semana, sete cores do arco-íris, sete pecados mortais, sete virtudes); o
Sol é o símbolo da vida, da força, do poder do conhecimento, daí que a morte de
Baltasar no fogo da Inquisição signifique, também, o regresso às trevas, a negação
do progresso. Baltasar transcende, então, a imagem do povo oprimido e espezinhado,
sendo o seu percurso marcado por uma aura de magia, presente na relação amorosa
com Blimunda, na afinidade de "saberes" com o padre Bartolomeu e no trabalho de
construção da passarola.
Baltasar é um homem simples, elementar, fiel, terno e maneta, que confina a
capacidade de surpresa com a resignação típica das pessoas humildes de coração e
de condição. Aceita a vida que lhe foi dado viver e a mulher que o destino lhe
ofereceu, sem assombro nem protestos; acata as suas circunstâncias e não tem medo
nem do trabalho nem da morte. Não é um herói nem um anti-herói, é simplesmente um
homem.
Narrador
O narrador garante uma contínua cumplicidade com a personagem e permite a
implicação deste na narrativa:
«…que importância hão-de ter os sonhos que por trás das suas pálpebras se estão sonhando, a nós o que nos
interessa é o trémulo pensamento que ainda se agita em D. Maria Ana…»
O narrador reflecte sobre o processo de escrita, desmistificando assim o seu
papel:
«São comparações inventadas por quem escreve para quem andou na guerra, não as inventou Baltasar…»
O controlo da narrativa por parte do narrador é ainda verificável nos comentários
valorativos ou depreciativos, nos juízos de valor e no tom moralístico que
perpassa em:
. Provérbios ou profecias:
«…a pobre não emprestes, a rico não devas, a frade não prometas…»
. Advertências ao leitor:
«…isto se devendo ler com muita atenção para que não escape ao entendimento.»
O tom irónico ou sarcástico permite parodiar o passado histórico e o humor põe em
evidência a discordância do narrador perante os factos evocados, concedendo ao
leitor o espaço de julgamento inteligente, porque confia na sua perspicácia:
«…está o Rossio cheio de povo, duas vezes em festa por ser domingo e haver auto-de-fé…»
O discurso do narrador é também anti-épico, quando rebaixa heróis que a História
glorifica e nos apresenta como heróis gente anónima em que se incluem personagens
com defeitos físicos, como Baltasar, ou homens andrajosos, como os operários da
construção do Convento de Mafra:
«…termos consentido que viesse à história quanto há de belfos e tartamudos, de coxos e prognatas, de
zambros e epilépticos, de orelhudos e parvos…»
No memorial do convento, o narrador adopta muitas posições em relação à história,
o que não podemos afirmar que só existe um tipo de narrador. Em seguida estão
alguns exemplos textuais e o respectivo comentário relativamente ao narrador:
Exemplo1
«São pensamentos confusos que isto diriam se pudessem ser postos por ordem, aparados de excrescências,
nem vale a pena perguntar, Em que estás a pensar, Sete-Sóis, porque ele responderia, julgando dizer a verdade,
Em nada, e contudo já pensou tudo isto,»
Observando este excerto, verifica-se que o narrador é sem dúvida um narrador não
participante – heterodiegético – e omnisciente, que conhece os pensamentos da
personagem e que sabe inclusive a resposta que esta lhe daria se a interrogasse
num diálogo imaginado.
Exemplo2
«Já lá vai pelo mar fora o Padre Bartolomeu Lourenço, e nós que iremos fazer agora, sem a próxima esperança
do céu, pois vamos às touradas que é bem bom divertimento»
O pronome pessoal primeira pessoa e as formas verbais «iremos» e «vamos» induzem
um narrador misturado com a multidão, ou seja, um narrador que também é personagem
– narrador homodiegético – e que perdendo por instantes a sua faculdade
omnisciente, a mais comum em toda a narração, – vai observando objectivamente o
ambiente que o cerca, transformando-se num narrador observador.
Exemplo 3
«João Elvas só vê cavalos, gente e viaturas, não sabe quem está dentro ou quem vai fora, mas a nós não nos
custa nada imaginar que ao lado dele se foi sentar um fidalgo caridoso e amigo de bem-fazer, que os há, e
como esse fidalgo é daqueles que tudo sabem de corte e cargos, ouçamo-lo com atenção,»
Encontramos um narratário aparelhado com o narrador no imaginar e no acto de
ouvir.
Exemplo 4
«El-rei foi a Mafra escolher o sítio onde há-de ser o convento. Ficará neste alto a que chamam de Vela, daqui se
vê o mar, correm águas abundantes e dulcíssimas para o futuro pomar e horta que não hão-de os franciscanos
de cá ser de menos que os cistercienses de Alcobaça em primores de cultivo, a S. Francisco de Assis lhe bastaria
um ermo, mas esse era santo e está morto»
Aqui temos a conjugação de narrador heterodiegético e de um narrador participante,
sendo que esta “mistura” é feita sem transição, sem qualquer indicador de mudança.
Neste excerto, na primeira frase temos um discurso da terceira pessoa, enquanto na
segunda frase a presença dos deícticos – este, daqui e cá – induzem um narrador
não só presente como opinando, ou seja, cujo ponto de vista é interno.
De uma forma geral o narrador conhece tudo – o passado, o presente e até o futuro
das personagens, os seus pensamentos e os seus sentimentos. Muitas vezes este
conhecimento leva a que, sem transição, se passe de um discurso de terceira pessoa
para um discurso de primeira pessoa que representa já o pensamento da personagem.
Exemplo 5
«Dentro do casarão esvoaçavam pardais, tinham entrado por um buraco do telhado (…) o pardal é uma ave da
terra e do terriço, do estrume e da seara, e quando morto se percebe que não poderia voar alto, tão frágil de
asas, tão mesquinho de ossos, veja-se o fortíssimo arcaboiço da concha que me há-de levar, com o tempo
enferrujaram os ferros, mau sinal, não parece que Baltasar aqui tenha vindo como lhe recomendei tanto»
Da narração do narrador passa-se, sem solução de continuidade (sem pontuação, sem
verbos que a expliquem), para o monólogo do Padre Bartolomeu de Gusmão.
Genericamente falando, estamos diante de um narrador omnisciente que, com
frequência, não se coíbe de fazer juízos de valor e dar opiniões, seja de forma
directa, seja de forma indirecta.
Mas para além do narrador principal há outros narradores secundários –
homodiegéticos.
. Manuel Milho que durante a ida a Pêro Pinheiro, noite após noite, vai contando
parte de uma história aos companheiros.
. João Elvas que para entreter a noite, enquanto estão abrigados no telheiro,
conta a Baltasar uma série de crimes horrendos para os quais não se havia
encontrado culpado.
. Mas sobretudo um certo fidalgo – figura indefinida, quase um pretexto para
tornar verosímil a descrição dos interiores faustosos e das celebrações aquando
do casamento real, numa fase da narração em que o pólo narrativo era um velho
mendigo, João Elvas.
Caracterização do espaço
Físico
Evocação de dois espaços principais determinantes no desenrolar da
acção:Mafra e Lisboa.
Mafra: passa da vila velha e do antigo castelo nas proximidades da Igreja de Santo
André para a vila nova em cujas imediações se vai construir o convento. A vila
nova cria-se justamente por causa da construção do convento.
Lisboa: descrevem-se vários espaços dos quais se destacam o Terreiro do Paço, o
Rossio e S. Sebastião da Pedreira:
. Terreiro do Paço: local onde primeiramente trabalha Baltasar na sua chegada a
Lisboa, descrição pormenorizada e sugestiva da procissão do Corpo de Deus, em
Junho. É um espaço fulgurante de vida, com grande importância no contexto da
sociedade lisboeta da época.
. Rossio: surge no início da obra, relacionado com o auto-de-fé que aí se realiza.
A reconstituição do auto-de-fé é fidedigna, a cerimónia tinha por base as
sentenças proferidas pelo Tribunal do Santo Ofício e nela figuravam não só
reconciliados, mas também relaxados, aqueles que eram entregues à justiça
secular para a execução da pena de morte. O dia da publicação do auto era
festivo, segundo se pode constatar das defesas efectuadas. A procissão
propriamente dita saía na manhã de domingo da sede do Santo Ofício e percorria
a cidade de Lisboa antes de chegar ao local da leitura das sentenças, numa das
praças centrais. À frente seguiam os frades de S. Domingos com o pendão da
Inquisição. Atrás destes os penitentes por ordem de gravidade das culpas, cada
um ladeado por dois guardas. Depois, os condenados à morte, acompanhados por
frades, seguidos das estátuas dos que iam ser queimados em efígie. Finalmente
os altos dignitários da Inquisição, precedendo o Inquisidor-Geral. A sorte dos
réus vinha estampada nos sambenitos (hábito em forma de saco, de baeta amarela
e vermelha que se vestia aos penitentes dos autos-de-fé) para que a compacta
multidão que se aglomerava soubesse o destino dos condenados.
. S. Sebastião da Pedreira: local mágico ao qual só acedem o padre, Bartolomeu
Lourenço, o Voador, Baltasar e Blimunda. É lá que se encontra a máquina voadora
que está a ser construída em simultâneo com o Convento de Mafra. A passarola
insere-se na narrativa como um mito, do qual o homem depende para viver, mito
proibido mas que se evidenciará e se deixará ver pelo voo espectacular que se
realizará, mostrando que ao homem nada é impossível e que a vida é uma grande
aventura. S. Sebastião da Pedreira era, àquele tempo, um espaço rural, onde não
faltavam fontes, terras de olival, burros, noras, e onde se situava a quinta
abandonada. Ali irão as personagens, variadíssimas vezes e pelas razões mais
diversas.
Social
O espaço social é construído através do relato de determinados momentos e do
percurso de personagens que simbolizam um determinado grupo social.
Destaca-se:
1.Procissão da Quaresma:
a.Excessos praticados durante o Entrudo (satisfação dos prazeres carnais) e
brincadeiras carnavalescas – as pessoas comiam e bebiam demasiado, davam
“umbigadas pelas esquinas”, atiravam água à cara umas das outras, batiam nas
mais desprevenidas, tocavam gaitas, espojavam-se nas ruas
b.Penitência física e mortificação da alma após os “abusos” durante o Entrudo
(é tempo de “mortificar a alma para que o corpo finja arrepender-se”)
c.Descrição da procissão (os penitentes à cabeça, atrás dos frades, o bispo,
as imagens nos andares, as ordens e as irmandades)
d.Manifestações de fé que tocavam a histeria (as pessoas arrastam-se pelo
chão, arranham-se, puxam os cabelos, esbofeteiam-se) enquanto o bispo faz
sinais da cruz a um acólito balançam o incensório; os penitentes recorrem à
autoflagelação.
2.Autos-de-fé
a.O Rossio está novamente cheio de assistência; a população está duplamente em
festa, porque é domingo e porque vai assistir a um auto-de-fé (passaram dois
anos após o último evento deste tipo).
b.O narrador revela a sua dificuldade em perceber se o povo gosta mais de
autos-de-fé ou de touradas, evidenciando com esta afirmação a sua ironia
crítica perante um povo que revela um gosto sanguinário e procura nas
emoções fortes uma forma de preencher o vazio da sua existência.
c.A assistência feminina, à janela, exibe as suas “toilettes”, preocupa-se com
pormenores fúteis relativos à sua aparência (a segurança dos sinaizinhos no
rosto, a borbulha encoberta), e aproveita a ocasião para se entregar a jogos
de sedução com os pretendentes que se passeiam em baixo.
d.A proximidade da morte dos condenados constitui o motivo do ambiente de
festa; esta constatação suscita, mais uma vez, a crítica do narrador - na
realidade, o facto de as pessoas saberem que alguns dos sentenciados iriam,
em breve, arder nas fogueiras não as inibia de se refrescarem com água,
limonada e talhadas de melancia e de se consolarem com tremoços, pinhões,
tâmaras e queijadas;
e.Sai a procissão - à frente os dominicanos; depois, os inquisidores
f.Distinção entre os vários sentenciados, assim como o crucifixo de costas
voltadas, para as mulheres que irão arder na fogueira;
g.Menção dos nomes de alguns dos condenados (inclusivamente, o de Sebastiana
Maria de Jesus, mãe de Blimunda)
h.Início da relação entre Baltasar e Blimunda
i.Punição dos condenados pelo Santo Ofício - o povo dança em frente das
fogueiras
3.Tourada (Terreiro do Paço)
a.O espectáculo começa e o narrador enfatiza a forma como os touros são
torturados, exibindo o sangue, as feridas, as "tripas“ ao público que, em
exaltação, se liberta de inibições ("os homens em delírio apalpam as
mulheres delirantes, e elas esfregam-se por eles sem disfarce”;
b.Dois toiros saem do curro e investem contra bonecos de barro colocados na
praça; de um saem coelhos que acabam por ser mortos pelos capinhas, de
outro, pombas que acabam por ser apanhadas pela multidão;
c.A ironia do narrador é ainda traduzida pela constatação de que, em Lisboa,
as pessoas não estranham o cheiro a carne queimada, acrescentando ainda numa
perspectiva crítica, que a morte dos judeus é positiva, pois os seus bens
são deixados à Coroa;
4.Procissão do Corpo de Deus
1.Preparação da procissão:
a.Descrição dos "preparos da festa” feita pelo narrador, que assume o olhar
do povo (as colunas, as figuras, os medalhões, as ruas toldadas, os
mastros enfeitados com seda e ouro, as janelas ornamentadas com cortinas
e sanefas de damasco e franjas de ouro), que se sente maravilhado com a
riqueza da decoração (uma reflexão do narrador leva-o a concluir que não
se verificam muitos roubos durante a cerimónia, pois o povo teme os
pretos que se encontram armados à porta das lojas e os quadrilheiros, que
procederiam à prisão dos infractores)
b.Referência do narrador às damas que aparecem às janelas, exibindo
penteados, rivalizando com as vizinhas e gritando motes
c.À noite, passam pessoas que tocam e dançam, improvisa-se uma tourada
d.De madrugada, reúnem-se aqueles que irão formar as alas da procissão,
devidamente fardados.
2. Realização da procissão;
O evento começa logo de manhã cedo. DESCRIÇÃO DO APARATO:
a.À frente, as bandeiras dos ofícios da Casa dos Vinte e Quatro, em primeiro
lugar a dos carpinteiros em honra a S. José; atrás, a imagem de S. Jorge, os
tambores, os trombeteiros, as irmandades, o estandarte do Santíssimo
Sacramento, as comunidades (de S. Francisco, capuchinhos, carmelitas,
dominicanos, entre outros) e o rei, atrás, segurando uma vara dourada,
Cristo crucificado e cantores de hinos sacros.
Outros espaços sociais são:
. O trabalho no Convento – Mafra simboliza o espaço da servidão desumana a que D.
João V sujeitou o seu povo (cerca de 40 mil trabalhadores).
. A miséria do Alentejo – este espaço associa-se à fome e à miséria
Acção e os seus planos
A análise de Memorial do Convento permite constatar a existência de duas
narrativas simultâneas: uma de carácter histórico – a construção do convento de
Mafra – e outra ficcionada – a construção da passarola que engloba a história de
amor entre Baltasar e Blimunda.
A acção principal diz respeito à concretização do plano de D.João V – a edificação
do convento. Mas nesta encaixam-se outras acções, constituindo diferentes linhas
de acção que se articulam com a primeira.
Linhas de acção presentes na obra:
1ª linha de acção: A do rei D.João V
Abrange todas as personagens da família real e relaciona-se com a segunda linha de
acção, uma vez que a promessa do rei é que vai possibilitar a construção do
convento. Esta linha tem como espaço principal a corte e, depois, o convento, na
altura da sua inauguração, no dia de aniversário do rei.
2ª linha de acção: A dos construtores do convento
Esta é a linha principal da história, a par da quarta – a que respeita à
construção da passarola. Esta segunda linha de acção vai ganhando relevo e une a
primeira à terceira: se o convento é obra e promessa do rei, é ao sacrifício dos
homens, aqui representados por Baltasar e Blimunda, que ela se deve. Glorificam-se
aqui os homens que se sacrificam, passam por dificuldades, mas que também as
vencem.
3ª linha de acção: A de Baltasar e Blimunda
Nesta linha relata-se uma história de amor e o modo de vida do povo português. As
duas personagens (Baltasar e Blimunda) são as construtoras da passarola; a figura
masculina é também, depois, construtora do convento, constituindo-se paradigma da
força que faz mover Portugal – a do povo.
4ª linha de acção: A de Bartolomeu Lourenço
Esta relaciona-se com o sonho e o desejo de construir uma máquina voadora.
Articula-se com a primeira e segunda linhas de acção, porque o padre é o mediador
entre a corte e o povo. Também se enquadra na terceira linha, dado que a
construção da passarola resulta da força das vontades que Blimunda tem de recolher
para que a passarola voe e a força física necessária pela parte de Baltasar.
Pela análise das sequências narrativas da obra, verifica-se a existência de um
plano ficcional que se cruza com a História, uma vez que a construção da
passarola, evento a que a História se refere, acaba por ser ficcionada quando se
afirma que se moverá pela força das «vontades» que Blimunda recolhe.
Visão crítica
Tendo como pretexto a construção do convento de Mafra, Saramago, adoptando a
perspectiva de um narrador distanciado do tempo da diegese, apresenta uma visão
crítica da sociedade portuguesa da primeira metade do século XVIII. É neste
sentido que Memorial do Convento transpõe a classificação de romance histórico,
uma vez que não se trata de uma mera reconstituição de um acontecimento histórico,
mas é antes um testemunho intemporal e universal do sofrimento de um povo sujeito
à tirania de uma sociedade em que só a vontade de el-rei prevalecem o resto é nada
(XXII).
Logo desde o início do romance é visível o tom irónico e, até mesmo, sarcástico do
narrador relativamente à hipotética esterilidade da rainha e à infidelidades do
rei. Esta atitude irónica do narrador mantém-se ao longo da obra, denunciando o
comportamento leviano do rei, a sua vaidade desmedida e as promessas megalómanas
de que resulta o sofrimento extremo de homens que não fizeram filho nenhum à
rainha e eles é que pagam o voto, que se lixam (XIX).
O clero, que exerce o seu poder sobre o povo ignorante através da instauração de
um regime repressivo entre os seus seguidores e que constantemente quebra o voto
de castidade, também não escapa ao olhar crítico e sarcástico do narrador. A
actuação da Inquisição que, à luz da fé cristã, manipula os mais fracos é de igual
modo criticada ao longo do romance, nomeadamente, através da apresentação de
diversos autos-de-fé e uma crítica às pessoas que dançam em volta das fogueiras
onde se queimaram os condenados.
Assim, é sobretudo as personagens de estatuto social privilegiado que são o alvo
de maiores críticas por parte do narrador que denuncia as injustiças sociais, a
omnipotência dos poderosos e a exploração do povo – evidenciada nas miseráveis
condições de trabalho dos operários do convento de Mafra; ao mesmo tempo que
denota empatia face aos mais desfavorecidos, cujo esforço elogia e enaltece.
A crítica estende-se, ainda: à Justiça portuguesa que castiga os pobres e
despenaliza os ricos, ao facto de se desprezar os artífices e os produtos
nacionais em defesa dos estrangeiros, bem como ao adultério e à corrupção
generalizados.
Em suma, Memorial do Convento constitui acima de tudo uma reflexão crítica – ao
problematizar temas perfeitamente adaptáveis à época contemporânea do autor –
conducente a uma releitura do passado e à correcção da visão que se tem da
História
A simbologia
Começando pelo nome das personagens principais, há que referir que em ambas
(Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas) é-nos transmitida uma ideia de união, de
complementaridade e de perfeição, traduzidas pela simbologia do número sete. De
acordo com a numerologia simbólica, podemos constatar, também, que ambos os nomes
representam perfeição, totalidade e até magia, sugeridas pela extensão trissílaba
(e aqui reside a simbologia do número três, revelador de uma ordem intelectual e
espiritual traduzida na união do céu e da terra).
Vários mutilados surgem na construção do convento («isto é uma terra de
defeituosos, um marreco, um maneta, um zarolho»), onde se inclui obviamente
Baltasar. Tal situação poderá levar à interpretação simbólica da luta desmedida na
construção de algo, como realização de um sonho. Baltasar, após ter perdido a mão
esquerda num episódio bélico, empreende outras lutas: na construção da passarola e
na colaboração na edificação do convento de Mafra. Simbolicamente, a perda de
parte do seu lado esquerdo significou a amputação da sua dimensão mais nefasta,
mais masculina, mais passada; ganhou, assim, uma dimensão mais espiritual, marcada
pela perseverança, força, luta e sentido de futuro que sairá reforçada na
associação com Blimunda.
A riqueza interior de Blimunda apresenta-se, simbolicamente, pela força do seu
olhar, possuidor de um poder mágico.
Metaforicamente, surgem as duas mil “vontades” necessárias para realizar o sonho
do padre Bartolomeu. Trata-se de vontades humanas que, ao longo dos tempos,
originaram o progresso do mundo com a invenção de “aparelhos voadores” e de todos
os objectos concebidos pelo homem. Não será por acaso que essas vontades são
metaforizadas pelas nuvens. Estas ocupam um lugar ascendente em relação à terra,
um espaço intermédio relativamente ao céu. Também lhes está associada uma ideia de
verticalidade. Por estes aspectos, as vontades (nuvens) estão carregadas de um
carácter eufórico (positivo); contudo, de difícil acesso. Só uma personagem como
Blimunda conseguiria interpenetrar neste mundo não material.
Ainda no que concerne à simbologia dos números, o sete não aparece sé associado
aos nomes de Baltasar e Blimunda, como também à data e à hora da sagração do
convento, aos sete anos vividos em Portugal pelo músico Scarlatti, sete vezes que
Blimunda passa por Lisboa à procura de Baltasar, às sete igrejas visitadas na
Páscoa, aos sete bispos que baptizaram Maria Xavier Francisca comparados a sete
sóis de ouro e prata nos degraus do altar-mor (“Sete bispos a baptizaram que eram
como sete sóis de ouro e prata nos degraus do altar-mor”).
O número nove surge também a simbolizar insistência e determinação quando Blimunda
procura o homem amado durante nove anos. Este número encerra também simbolicamente
a ideia de procura. O nove «simboliza o coroamento dos esforços, o concluir de uma
criação e o recomeço», tal como aconteceu a Blimunda que, após os nove longos anos
de busca, reencontra finalmente Baltasar; não um encontro físico, mas místico e
completo («Naquele extremo arde um homem a quem falta a mão esquerda. (…) E uma
nuvem fechada está no centro do seu corpo. Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-
se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu par as estrelas, se à terra
pertencia e a Blimunda»).
Relações amorosas
A Utopia do Amor
Baltasar
Blimunda
Do sonho à concretização
O paralelismo simbólico dos episódios iniciais e finais
- Blimunda"repetia umitinerário de hávinte e oitoanos".- O rio comoimagem daprecariedade davida.- Blimunda está emLisboa pela sétima
Último encontro deBlimunda e Baltasar
- "Que nome é oseu, e o homemdisse,naturalmente,assim reconhecendoo direito de estamulher lhe fazerperguntas".
- "Naquele extremoarde um homem aquem falta a mãoesquerda".
vez: encerramentode um ciclo devida.
Espaço - Rossio Espaço - Rossio- "O Rossio estácheio de povo".
- "Meteu-se pelaRua Nova dosFerros, virou paraa direita na igrejade Nossa Senhora deOliveira, emdirecção ao Rossio"
Ambiente soturno: Ambiente soturno:- "sobre o Rossiocaem as grandessombras doconvento do Carmo;- "e as pessoasvoltarão às suascasas, refeitas nafé, levandoagarrada à solados sapatos algumafuligem, pegajosapoeiras de carnesnegras, sangueacaso aindaviscoso se nasbrasas não seevaporou".
- "caminhava nomeio de fantasmas,de neblinas queeram gente";- "Entre os milcheiros fétidos dacidade, a aragemnocturna trouxe-lheo da carnequeimada".
Ritual de morteBlimunda comunica Blimunda que, no Blimunda comunica
enigmaticamentecom a mãe
primeiro encontrocom Baltasar,prometera quenunca o veria pordentro, usa osseus dons nosmomentos finais davida de Baltasar evê uma nuvemfechada que estáno centro do seucorpo - RECOLHE ASUA VONTADE.
enigmaticamente comBaltasar
- "não fales,Blimunda, olha sócom esses olhosque tudo sãocapazes de ver;- "adeus Blimundaque não te vereimais".
- "Então Blimundadisse, Vem.Desprendeu-se avontade de BaltasarSete-Sóis".
Notas biográficas
Oriundo de uma família de trabalhadores rurais, José Saramago nasce
na aldeia ribatejana de Azinhaga (concelho de Golegã), em 1922. Faz
estudos secundários; contudo, por razões económicas, não pode
prosseguir estudos.
Com uma formação praticamente de autodidacta, exerce diversas
profissões antes de se dedicar ao jornalismo e, depois,
inteiramente à literatura a partir de 1976. Assim, passa por
serralheiro, desenhador, editor e tradutor. Colabora como crítico
literário na revista Seara Nova, como comentador político no
jornal Diário de Lisboa (1972/73) e director adjunto do Diário de
Notícias (1975). A partir do ano seguinte, dedica-se exclusivamente
ao trabalho literário.
Entre as suas obras, destacam-se Memorial do Convento (1982), A Jangada
de Pedra (1986), História do Cerco de Lisboa (1989), O Evangelho Segundo Jesus
Cristo (1992), Ensaio sobre a Cegueira (1996), Todos os Nomes (1997) e A
Caverna (2000), todas traduzidas em várias línguas.
José Saramago é comendador da Ordem Militar de Santiago de Espada,
desde 1985, e cavaleiro da Ordem das artes e das Letras Francesas
desde 1991. É galardoadado com o Prémio Vida Literária, atribuído
pela APE, em 1993; com o prémio Camões, em 1995 e, em 1998, é-lhe
atribuído o Prémio Nobel da Literatura. Em 1999, é doutorado honoris
causa pela Universidade de Nottingham, em Inglaterra.
Contextualização da época do romance
A história de Memorial do Convento começa por volta de 1711, cerca de
três anos depois do casamento de D. João V com D. Maria ana Josefa
de Áustria, e termina vinte e oito anos depois (1739), aquando da
realização do auto-de-féque determina a morte de António José da
Silva e de Baltasar Mateus Sete-Sóis.
É na primeira metade do século XVIII que a acção relatada se
desenrola, período em que D. João V dirigia os destinos da nação.
Algumas características deste reinado devem ser enumeradas para que
melhor se compreendam algumas manifestações políticas, económicas e
culturais referenciadas na obra.
Assim, o reinado de D. João V constitui uma continuidade da
política absolutistaque era alimentada pelas enormes remessas de
ouro do Brasil, local que depositava toda a atenção do monarca. É
neste reinado que as condições da economia portuguesa melhoram,
embora alguns problemas políticos ocorram na vizinha Espanha,
concretamente com a Guerra da Sucessão.
D. João V tentou manter-se afastado das manobras políticas,
adoptando umapostura neutral face aos jogos de poder que se faziam
sentir na Europa.
Vive-se em Portugal um clima de Iluminismo, movimento filosófico
que visou difundir o racionalismo cartesiano e o experimentalismo
de Bacon, ilustrado no romance pela construção da passarola.
Mas, para travar estas novas ideologias, a Inquisição reforça,
nesta época, o seu poder que estende a todos os sectores da
sociedade. Ao Tribunal do Santo Ofício cabia o julgamento de vários
tipos de crime, e os autos-de-fé constituíam a melhor forma de
exibir o poder inquisitorial.
Vários estrangeirados foram contratados para actuarem nos vários
campos artísticos, destacando-se Nicolau Nasoni na arquitectura e
Domenico Scarlatti na música. A nível literário, o destaque vai
para o judeu António José da Silva e para o estilo oratório
evidenciado no vasto sermonário português, onde a nossa língua
atinge um elevado grau de apuramento.
Na globalidade, quando os elementos históricos são inseridos na
diegese, o autor do Memorial respeita-os. Daí que os aspectos
ligados à construção do Convento de Mafra correspondam à realidade.
Mas há outros factos históricos aproveitados na obra cujo
tratamento sofre alterações ou, então, não existe total
correspondência entre estes e a forma como surgem na intriga. É o
caso de Bartolomeu de Gusmão (que, inicialmente, aparece na obra
como Bartolomeu Lourenço), ou as notícias sobre as suas
experiências voadoras (que na História são nebulosas, mas que na
obra são amplamente desenvolvidas e destacadas). A sua fuga para
Espanha e a sua morte têm também alguns ingredientes ficcionais.
O relato das práticas da Inquisição, dos acontecimentos populares
religiosos (as procissões, por exemplo) e o casamento dos príncipes
reais servem para recriar o ambiente de uma época, sobre a qual um
narrador, com características próximas do autor, tece inúmeros
comentários críticos.
A par destas personagens mais ou menos históricas desfilam outras
ficcionais que veiculam a intenção do autor de libertar da lei do
esquecimento aqueles que quase sempre são esquecidos, destacando,
para isso, alguns nomes que representam metonimicamente os cerca de
20 000 trabalhadores utilizados na construção do convento.
Classificação tipológica de Memorial do Convento
Relativamente ao romance em análise, o título (Memorial) sugere
factos de que reza a História. Todavia, existem algumas dúvidas
quanto à sua classificação. Atendendo à intemporalidade do
narrador, que intervém frequentemente na história narrada, parece
impossível classificar esta obra como romance histórico. Apesar
disto, há na obra a reconstituição de um passado histórico, mas
cheio de intromissões e considerações presentificadas. Além disso,
a ficção marca aqui a sua presença, bem como a supremacia dada a
aspectos que a história não realçou e tudo isto constitui factor de
afastamento ao romance histórico.
No fundo, Saramago conta o passado com os olhos postos no presente,
evidenciando-se, deste modo, a subjectividade com que a História é
narrada. De qualquer modo, existem aproximações ao romance
histórico, fundamentalmente na reconstituição de ambientes e de
factos respeitantes à História, muito embora esta seja recriada
pelo olhar crítico de Saramago que até lhe dá outros heróis,
frequentemente aqueles que a verdade histórica esqueceu, colocando-
os num plano ficcional.
A preocupação com a realidade social, evidenciada na obra, vai dar,
também, ao romance um cariz social, fazendo-se crónica dos costumes
da época, destacando-se a gente humilde e oprimida, afirmando-se,
deste modo, comoromance de intervenção, ao remeter para uma época
repressiva, mas ainda experimentada no século XX.
Através do passado presentificado, o romance adquire
intemporalidade, visível na repressão, nos desejos e comportamentos
das personagens, os quais não se alteraram no momento da escrita.
Mas se uma época da História é evidenciada, os quadros que a
reconstituem também caracterizam o ambiente histórico e, neste
sentido, a designação deromance de espaço também se enquadra na
obra.
A reconstituição de cenários que retratam Lisboa e outras
localidades permiteobservar as preocupações com os factos
históricos e com o modo de vida dos humildes, por parte de
Saramago.
Pelo exposto, ressalta a perplexidade na classificação tipológica
do romance saramaguiano. Contudo, parece ser possível estabelecer
uma maior aproximação ao romance histórico.
Com efeito, «memorial» remete para algo respeitante à memória, para
um escrito que relata factos memoráveis, neste caso relacionados
com a construção do convento de Mafra. Os eventos narrados ligam-se
à verdade histórica dessa construção, mas este romance apresenta-se
como bastante peculiar. É que à reconstrução da História aliam-se
outros aspectos que culminam numa reescrita da História, onde
personagens normalmente por ela esquecidas vão ganhar relevo.
O relato histórico que o narrador faz está semeado de comentários e
dereferências do século XVIII que deverão servir de exemplo para a
actualidade. Por isso, a História tem aqui um papel diversificado:
aparece como fonte de energia que favorece a história ficcional de
Baltasar e Blimunda, mas serve também de assunto quando se relatam
momentos históricos concretos, como a construção do convento ou os
casamentos reais.
Realmente, parece ser possível afirmar que Memorial do Convento se
aproxima do romance histórico, mas um pouco adulterado, uma vez que
História funciona como pretexto para tratar temas e situações
conducentes a valores intemporais.
Estrutura da obra
A análise de Memorial do Convento permite constatar a existência
de duas narrativas simultâneas: uma de carácter histórico – a
construção do convento de Mafra – e outra ficcionada – a construção
da passarola que engloba a história de amor entre Baltasar e
Blimunda.
A acção principal diz respeito à concretização do plano de D.João V
– aedificação do convento. Mas nesta encaixam-se outras acções,
constituindo diferentes linhas de acção que se articulam com a
primeira.
Linhas de acção presentes na obra:
1ª linha de acção: A do rei D.João V
Abrange todas as personagens da família real e relaciona-se com a
segunda linha de acção, uma vez que a promessa do rei é que vai
possibilitar a construção do convento. Esta linha tem como espaço
principal a corte e, depois, o convento, na altura da sua
inauguração, no dia de aniversário do rei.
2ª linha de acção: A dos construtores do convento
Esta é a linha principal da história, a par da quarta – a que
respeita à construção da passarola. Esta segunda linha de acção vai
ganhando relevo e une a primeira à terceira: se o convento é obra e
promessa do rei, é ao sacrifício dos homens, aqui representados por
Baltasar e Blimunda, que ela se deve. Glorificam-se aqui os homens
que se sacrificam, passam por dificuldades, mas que também as
vencem.
3ª linha de acção: A de Baltasar e Blimunda
Nesta linha relata-se uma história de amor e o modo de vida do povo
português. As duas personagens (Baltasar e Blimunda) são as
construtoras da passarola; a figura masculina é também, depois,
construtora do convento, constituindo-se paradigma da força que faz
mover Portugal – a do povo.
4ª linha de acção: A de Bartolomeu Lourenço
Esta relaciona-se com o sonho e o desejo de construir uma máquina
voadora. Articula-se com a primeira e segunda linhas de acção,
porque o padre é o mediador entre a corte e o povo. Também se
enquadra na terceira linha, dado que a construção da passarola
resulta da força das vontades que Blimunda tem de recolher para que
a passarola voe.
Pela análise das sequências narrativas da obra, verifica-se
a existência de um plano ficcional que se cruza com a História, uma
vez que a construção da passarola, evento a que a História se
refere, acaba por ser ficcionada quando se afirma que se moverá
pela força das «vontades» que Blimunda recolhe.
O narrador e o processo narrativo
Tratando-se de uma obra ficcional, esta encontra-se fora do tempo e
do espaço. E o anacronismo do discurso do narrador permite-lhe
revisitar o passado e recuperar vidas que a História esqueceu.
A atitude narratológica assumida no romance coloca dificuldades de
classificação, principalmente porque a instância narrativa não é
una, subdividindo-se em outras de menor importância, manipuladas
pelo narrador principal.
O narrador revela-se quase sempre omnisciente e assume a posição
heterodiegética; mas este estatuto não serve as intenções do autor.
Por isso este vai servir-se de outros processos ligados à narração,
chegando a criar instruções discursivas para os seus comentários,
ironias e divagações; empréstimos do estatuto de narrador a outras
personagens da história.
A riqueza e versatilidade deste(s) narrador(es) passam pela adopção
de estratégias que visam:
a) representar-se como narrador-orador capaz de simular um
imediatismo no acto de narrar e dando lugar a dialogismos mais
ou menos configurados nodiscurso;
b) captar a atenção do narratário – convocado para o discurso,
tanto por uma pluralidade ambígua (nós) como por um indefinido
(“Veja-se”) – que se pretende participante no acto de contar;
c) gerir a informação a contar, relevando a ficção face à
história, o plano humano face ao da realeza (a omnisciência
implica, também, selecção e interpretação);
d) reflectir sobre o narrado e simular o processo de narração
homologicamente ao processo de reflexão escrita;
e) solicitar um leitor activo no processo de leitura da obra.
A atitude do narrador principal para com o narrado é aparentemente
contraditória: por um lado, temos uma tentativa de aproximação à
época retratada, ao reconstituir a cor local e epocal, mas, por
outro, dá-se uma enorme distanciação, visível nas inúmeras
prolepses e na ironia sarcástica utilizada para atacar alguns
aspectos da História, fundamentalmente os que se ligam às
personagens socialmente favorecidas.
O narrador distancia-se do narrado pelas referências irónicas, mas
também por um processo de afastamento temporal que o obriga a
adaptar a linguagem e a distinguir entre um vocabulário respeitante
à época histórica retratada e outro que se reporta à actual.
A actualização de vocabulário é visível quando descreve a pedra do
pórtico da igreja, cujas medidas e peso nos são dados primeiro em
pés, palmos e arrobas, para depois falar em metros e quilos.
Temporalmente, mais afastados estão os momentos em que o narradorsimula actuais visitas guiadas ao convento de Mafra.
Narrador (es)
Exemplo1
«São pensamentos confusos que isto diriam se pudessem ser postos por ordem,
aparados de excrescências, nem vale a pena perguntar, Em que estás a pensar, Sete-
Sóis, porque ele responderia, julgando dizer a verdade, Em nada, e contudo já pensou
tudo isto,»
Observando este excerto, verifica-se que o narrador é sem dúvida um
narrador não participante – heterodiegético – e omnisciente, que
conhece os pensamentos da personagem e que sabe inclusive a
resposta que esta lhe daria se a interrogasse num diálogo
imaginado.
Exemplo2
«Já lá vai pelo mar fora o Padre Bartolomeu Lourenço, e nós que iremos fazer agora,
sem a próxima esperança do céu, pois vamos às touradas que é bem bom
divertimento»
O pronome pessoal primeira pessoa e as formas verbais «iremos» e
«vamos»induzem um narrador misturado com a multidão, ou seja,
um narrador que também é personagem – narrador homodiegético – e
que perdendo por instantes a sua faculdade omnisciente, a mais
comum em toda a narração, – vai observandoobjectivamente o ambiente
que o cerca, transformando-se num narrador observador.
«A praça está toda rodeada de mastros com bandeirinhas no alto e
cobertos de volantes até ao chão que adejam com a brisa e à entrada
do curro armou-se um pórtico de madeira, pintada como se fosse de
mármore branco»
Exemplo 3
«João Elvas só vê cavalos, gente e viaturas, não sabe quem está dentro ou quem vai
fora, mas a nós não nos custa nada imaginar que ao lado dele se foi sentar um
fidalgo caridoso e amigo de bem-fazer, que os há, e como esse fidalgo é daqueles que
tudo sabem de corte e cargos, ouçamo-lo com atenção,»
Encontramos um narratário irmanado com o narrador no imaginar e no
acto de ouvir.
Exemplo 4
«El-rei foi a Mafra escolher o sítio onde há-de ser o convento. Ficará neste alto a que
chamam de Vela, daqui se vê o mar, correm águas abundantes e dulcíssimas para o
futuro pomar e horta que não hão-de os franciscanos de cá ser de menos que os
cistercienses de Alcobaça em primores de cultivo, a S. Francisco de Assis lhe bastaria
um ermo, mas esse era santo e está morto»
Aqui temos a conjugação de narrador heterodiegético e de
um narrador participante, sendo que esta “mistura” é feita sem
transição, sem qualquer indicador de mudança. Neste excerto, na
primeira frase temos um discurso da terceira pessoa, enquanto na
segunda frase a presença dos deícticos –este, daqui e cá –
induzem um narrador não só presente como opinando, ou seja, cujo
ponto de vista é interno.
De uma forma geral o narrador conhece tudo – o passado, o presente
e até o futuro das personagens, os seus pensamentos e os seus
sentimentos. Muitas vezes este conhecimento leva a que, sem
transição, se passe de um discurso de terceira pessoa para um
discurso de primeira pessoa que representa já o pensamento da
personagem.
«Neste dia, desde o nascer do sol até ao fim da tarde, fizeram uns mil e quinhentos
passos (…) Tantas horas de esforço para tão pouco andar, tanto suor, tanto medo, e
aquele monstro de pedra a resvalar quando devia estar arado, imóvel quando deveria
mexer-se, almadiçoado sejas tu, mais quem da terra te mandou tirar e a nós arrastar
por estes ermos»
Exemplo 4
«Dentro do casarão esvoaçavam pardais, tinham entrado por um buraco do telhado
(…) o pardal é uma ave da terra e do terriço, do estrume e da seara, e quando morto
se percebe que não poderia voar alto, tão frágil de asas, tão mesquinho de ossos,
veja-se o fortíssimo arcaboiço da concha que me há-de levar, com o tempo
enferrujaram os ferros, mau sinal, não parece que Baltasar aqui tenha vindo como
lhe recomendei tanto»
Da narração do narrador passa-se, sem solução de continuidade (sem
pontuação, sem verbos que a expliquem), para o monólogo do Padre
Bartolomeu de Gusmão.
Genericamente falando, estamos diante de um narrador omnisciente
que, com frequência, não se coíbe de fazer juízos de valor e dar
opiniões, seja de forma directa, seja de forma indirecta.
Mas para além do narrador principal há outros narradores secundários –
homodiegéticos.
Manuel Milho que durante a ida a Pêro Pinheiro, noite após noite, vai contando parte
de uma história aos companheiros.
João Elvas que para entreter a noite, enquanto estão abrigados no telheiro, conta a
Baltasar uma série de crimes horrendos para os quais não se havia encontrado
culpado.
Mas sobretudo um certo fidalgo – figura indefinida, quase um pretexto para tornar
verosímil a descrição dos interiores faustosos e das celebrações aquando do
casamento real, numa fase da narração em que o pólo narrativo era um velho
mendigo, João Elvas.
A simbologia
Começando pelo nome das personagens principais, há que referir que
em ambas (Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas) é-nos
transmitida uma ideia de união, de complementaridade e de
perfeição, traduzidas pela simbologia donúmero sete. De acordo com
a numeralogia simbólica, podemos constatar, também, que ambos os
nomes representam perfeição, totalidade e até magia, sugeridas
pela extensão trissílaba (e aqui reside a simbologia do
número três, revelador de uma ordem intelectual e espiritual
traduzida na união do céu e da terra).
Vários mutilados surgem na construção do convento («isto é uma
terra de defeituosos, um marreco, um maneta, um zarolho»), onde se
inclui obviamenteBaltasar. Tal situação poderá levar à
interpretação simbólica da luta desmedida na construção de algo,
como realização de um sonho. Baltasar, após ter perdido a mão
esquerda num episódio bélico, empreende outras lutas: na construção
da passarola e na colaboração na edificação do convento de Mafra.
Simbolicamente, a perda de parte do seu lado esquerdo significou a
amputação da sua dimensão mais nefasta, mais masculina, mais
passada; ganhou, assim, uma dimensão mais espiritual, marcada pela
perseverança, força, luta e sentido de futuro que sairá reforçada
na associação com Blimunda.
A riqueza interior de Blimunda apresenta-se, simbolicamente, pela
força do seu olhar, possuidor de um poder mágico.
Metaforicamente, surgem as duas mil “vontades” necessárias para
realizar o sonho do padre Bartolomeu. Trata-se de vontades humanas
que, ao longo dos tempos, originaram o progresso do mundo com a
invenção de “aparelhos voadores” e de todos os objectos concebidos
pelo homem. Não será por acaso que essas vontades são metaforizadas
pelas nuvens. Estas ocupam um lugar ascendente em relação à terra,
um espaço intermédio relativamente ao céu. Também lhes está
associada uma ideia de verticalidade. Por estes aspectos, as
vontades (nuvens) estão carregadas de um carácter eufórico
(positivo); contudo, de difícil acesso. Só uma personagem como
Blimunda conseguiria interpenetrar neste mundo não material.
Ainda no que concerne à simbologia dos números, o sete não aparece
sé associado aos nomes de Baltasar e Blimunda, como também à data e
à hora dasagração do convento, aos sete anos vividos em Portugal
pelo músico Scarlatti, sete vezes que Blimunda passa por Lisboa à
procura de Baltasar, àssete igrejas visitadas na Páscoa, aos sete
bispos que baptizaram Maria Xavier Francisca comparados a sete sóis
de ouro e prata nos degraus do altar-mor (“Sete bispos a baptizaram
que eram como sete sóis de ouro e prata nos degraus do altar-mor”).
O número nove surge também a simbolizar insistência e
determinação quandoBlimunda procura o homem amado durante nove
anos. Este número encerra também simbolicamente a ideia de procura.
Segundo Chevalier e Gheerbrant, o nove «simboliza o coroamento dos
esforços, o concluir de uma criação e o recomeço», o que realmente
acontece a Blimunda que, após os nove longos anos de busca,
reencontra finalmente Baltasar; não, agora, um encontro físico,
masmístico e completo («Naquele extremo arde um homem a quem falta
a mão esquerda. (…) E uma nuvem fechada está no centro do seu
corpo. Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de
Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu par as estrelas, se à terra
pertencia e a Blimunda»).
Visão crítica
Desde o início que o Memorial do Convento se apresenta como uma
crítica cheia de ironia e sarcasmo à opulência do rei e de alguns
nobres por oposição à extrema pobreza do povo. «Esta cidade, mais
que todas, é uma boca que mastiga de sobejo para um lado e de
escasso para o outro»; »A tropa andava descalça e rota, roubava os
lavradores».
O adultério e a corrupção dos costumes são factores de sátira ao
longo da obra. Critica a mulher porque «entre duas igrejas, foi
encontrar-se com um homem.»; critica «uns tantos maridos cucos» e
não perdoa os frades que «içam as mulheres para dentro das celas e
com elas se gozam»; não lhe escapam os nobres e o próprio Rei, até
porque este considera que as freiras o recebem «nas suas camas»,
nomeadamente a madre Paula de Odivelas.
Em Memorial do Convento, José saramago apresenta uma caricatura
da sociedadeportuguesa da época de D. João V, revelando-se
antimonárquico e com um humanismo fechado à transcendência,
bastante angustiado e pessimista. Nas questões religiosas, não só
usa a ironia, como também se revela frontal nas apreciações à
Inquisição e aos santos que a ela se ligaram como S.Domingos e
Santo Inácio, considerados «ibéricos e sombrios, logo demoníacos,
se não é isto ofender o demónio». Esta acusação resulta de toda a
imagem histórica dos tempos inquisitoriais e das práticas então
havidas. Há uma constante denúncia da Inquisição e dos seus métodos
e uma crítica às pessoas que dançam em volta das fogueiras onde se
queimaram os condenados.
A sátira estende-se a Mafra e à situação dos trabalhadores; à
atitude do Rei em obrigar todo o homem válido a trabalhar no
convento; aos príncipes, como D.Francisco, que se entretém a
«espingardear» os marinheiros ou quer seduzir a rainha, sua
cunhada, e tomar o trono.
A religião é o ópio do povo,
o entretenimento dos poderosos
Nada instruído ou informado, o povo português facilmente se deixa
manipular pela Igreja, pelos seus mandamentos anacrónicos e muito
afastados dos princípios defendidos por Jesus Cristo. O próprio rei
e demais elementos da corte se incluem nesta categoria, pois
pactuam com todos os desejos e interesses da Igreja que ninguém
ousa sequer contestar ou interrogar, sob risco de ser acusado de
blasfémia ou heresia.
A religião era, na época, um verdadeiro ópio popular, a forma
sagaz, inteligente e inebrante de que a igreja dispunha para manter
a ordem e os seus grandes lucros. O povo, miserável e analfabeto,
vivia continuamente na esperança de um qualquer milagre. É, na
ignorância, um povo feliz que «desce à rua para ver desfilar a
nobreza toda» para ver chegar o cardeal D. Nuno da Cunha,
esquecendo que são estes os responsáveis pela sua desgraça.
Personagem colectiva e anónima, consubstancia-se nos vários
populares que reflectem a miséria encardida, as péssimas condições
de subsistência, a ignorância e a exploração de que são vítimas. E,
no entanto, «este povo habituou-se a viver com pouco.» e não é
capaz de evidenciar uma atitude crítica, nem de assumir uma postura
reivindicativa ou de revolta, de tal forma vive embriagado com os
dogmas da Igreja, assustado com atitudes ou pensamentos que possam
significar o julgamento ou o castigo em autos-de-fé, encarados
também como diversão, tal como as touradas.
Com esta consciência, a Igreja sabe tirar partido da sua posição de
superioridade e da influência que exerce, funcionando
simultaneamente como entretenimento e tribunal, alertando os
mortais para os perigos que correm caso não respeitem os
mandamentos da santa Igreja. Mas não faculta o exemplo, todos sabem
que muitos membros do clero desrespeitam os votos que fizeram, que
os seus mais altos dignatários são a personificação da vaidade, da
luxúria, da gula, pecados com que se engana o povo, com o intuito
de o manter ignorante e mais facilmente manipulável.
Linhas de crítica
à religião, ao clero, às ordens religiosas, ao povo, às terríveis discrepâncias sociais, à
prepotência real, ...
A Igreja é forte e insistentemente criticada, desde o início da
intriga. A construção do convento, tema nuclear da obra, fica a
dever-se a uma promessa real, visando assegurar a descendência do
monarca que, juntamente com a rainha, obcecados pela ideia da
necessidade de um herdeiro, sempre rezam antes da prática sexual
para que não morram no acto carnal (página 16).
É mesmo lançada, pelo narrador, a dúvida sobre a eficácia da