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Materialidade da Comunicao -um conceito para a Cincia da
Comunicao?
Michae! Hanke*
RESUMO
Esta contribuio tem o objetivo de apresentar e discutir o
conceito da materialidadeda comunicao a partir do obra homnima
publicado em alemo em 1988, e traduzidoparcialmente para o ingls.
"Materialidade da Comunicao" um programa depesquisa que pretende
indagar sobre as condies, o lugar, o suporte e asmodalidades de
produo de sentido, que, por si, so isentos de sentido.
Foidesenvolvido no centro de estudos avanados em ps-graduao de
Siegen,Alemanha, com a rea de concentrao denominada "Formas de
comunicao eformas de vida". Participaram deste projeto
interdisciplinar pesquisadores de vriasdisciplinas, tais como
letras e cincias sociais; e foi a busca para um consensomnimo sobre
o contedo especfico dessa rea que gerou a idia de que
qualquercomunicao precisa uma componente de materialidade, sendo
este o fundamentobsico do conceito.
Palavras-chave: materialidade, comunicao, cincia
ABSTRACT
The goal of this confribution is to present and to argue the
concept of lhe materia/ityof the communicaton from the work
pub!ished in German in 1988, and trans/a tedpartia!!y into Eng!ish.
"Materia/ity of lhe communication" is a research program,that
intends to inquire on lhe conditions, the place, lhe support and
lhe moda/itiesof direction production, that, for itse/f, they are
exempt of direction. It was deve/opedin lhe Siegen center of
advanced studies in post-graduafion , Germany, with
lheconcentration arca ca//ed "Forms of communication ano forms of
/ife". Severalprofessors had pa,licipated in this project to
interdiscip!inary searching, such associal !etters ano sciences;
and it was thesearch for a minimum consensus on lhespecific content
of this arca fhat generated lhe fo!/owing idea: any
necessarycommuncation needs a componentof materia/ity, beca use
this is lhe basic beddingof the concept.
Key words: materiali(y, communication, science
Trabalho apresentado ao NP 01 - Teorias da Comunicao, do V
Encontro dos Ncleos de Pesquisada Intercom.
Doutor em Semitica, em 1990, Ps-doutorado no Centro de Estudos
Avanados em Siegen entre991 e 1993, Livre-Docente em Cincias da
Comunicao, em 1998, na Alemanha. Coordena o Ncleo Vilm
Flusser, onde desenvolve pesquisa sobre a Teoria da Media e
Comunicao de Vilni Flusser (CNPq 2003/2006).
215
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II!!p
"Materialidade da Comunicao" o ttulo de um livro, baseado
numcongresso homnimo, cujos organizadores, Hans Ulrich Gumbrecht e
Karl-Ludwig Pfeiffer, foram diretores do Centro de Estudos Avanados
em ps-graduao na cidade de Siegen, Alemanha. A rea de concentrao
desteprojeto interdisciplinar foi denominada "Formas de comunicao e
formas devida", da qual participaram pesquisadores, nacionais e
estrangeiros, de vriasdisciplinas, tais como letras e cincias
sociais.
A edio do livro na verso alem, publicada em 1988, conta com
943pginas e 55 artigos de autores diferentes. A traduo para o ingls
umaseleo de 34 textos, sendo 26 da edio original e mais 08 novos
textos. Noparticiparam dessa verso, entre outros, Luiz Costa Lima,
ento professor naPUC - Rio e na Universidade Federal Fluminense,
Humberto Maturana e PaulWatzlawick.
"Materialidade da Comunicao" um programa de pesquisa,
quepretende indagar sobre as condies, o lugar, o suporte e as
modalidades deproduo de sentido, que, por si, so isentos de
sentido. Esta a definio-chave do colquio e do conceito. Em outras
palavras, pergunta, o que sobrados fenmenos da comunicao, depois de
abstrair a dimenso do significado,e se isso pode constituir uma
nova rea de pesquisa interdisciplinar.
Na introduo Ludwig Pfeiffer pergunta, 1 se, tendo em vista
quetudo uma construo, interpretao, simulao, informaes
circulando,existe ainda ou pode ser pensado algo como
materialidade? E 2 0 se existem
216 veculos materiais fora da interpretao? A resposta do
conceito sim, porquematerialidade concebida como o outro lado da
interpretao. O conceitoquer repensar a hermenutica, pressupondo uma
dicotomia entre umamaterialidade, uma presena de coisas e situaes
num nvel de "realidade"fora da interpretao, e, de outro lado, as
respectivas interpretaes.Transferido para a comunicao isso quer
dizer: o desenvolvimento efuncionamento de sistemas e o uso destes
sistemas de conhecimento nacomunicao so duas coisas diferentes.
Segundo Gumbrecht, o conceito tenta resolver o seguinte
problema:qualquer entendimento de uma configurao do passado
realizado atravsde uma transferncia daquilo que queremos entender
para nossa presena;mas no temos critrios para distinguir
interpretaes adequadas de projeesinadequadas que nos fazemos.
"Materialidade" expressa a esperana de fugirdessas projees, sendo
as materialidades objetos de pesquisa, e desenvolversignificado em
cima desses fenmenos materiais, privados do significado,que eles
continuam a apresentar. A idia foi pesquisar elementos
constitutivospara "formas de comunicao" - sem ofuscar estes por
interpretaesprematuras. Dar ateno ao som como som, ao gesto
corporal como gestocorporal, sem perder esta materialidade do
significante de vista por causa daateno dada ao significado (1988:
915). Entender o que se pode fazer comuma caneta sem interpretar as
palavras escritas com ela.
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As cincias do "esprito" ou da cultura (as cincias humanas)
dofuturo no deveriam tratar o nvel do significado dos produtos
culturais, mas,o que pareceu mais promissor, as materialidades
desta produo. Quis seaproximar s cincias exatas, ou melhor, superar
o dualismo entre as cinciashumanas e exatas (Gumbrecht 1988: 728,
1988: 919). Essa re-configurao dascincias humanas intencionada se
reflete no programa do centro dos estudosavanados, fundado em 1986:
introduzir formas de comunicao para ascincias da literatura e
lingstica deveria transfonnar as filologias antigas,ou seja,
colocar em pauta estruturas de organizao, media, o corpo, a voz oua
escrita - materialidades - e deveria mostrar como formas de vida se
baseiamem formas de comunicao.
No seu livro mais recente, "Production ofPresence What
MeaningCannot Convey" - "Produo de presena - o que o significado no
podetrazer", Gumbrecht, ao contar a histria do desenvolvimento do
seupensamento, contextualiza, no primeiro captulo chamado
"Materialidade/Ono-hermenutico/presena", o conceito da
materialidade da comunicao.Ainda aqui o embate de Gurnbrecht com a
hermenutica e com a prtica dainterpretao, especificamente nas
letras. Ele defende que, alm dainterpretao, existe um nvel que no
alcanvel pela interpretao, queserve como ponto de partida para o
processo: a materialidade. "Materialidadeda Comunicao" o "campo
no-hermenutico", aquilo que serve comobase para interpretao, mas no
idntico a ela. Isso importante se queremostransferir o conceito das
letras (literatura) para as cincias sociais (aplicadas), 217ou para
a Comunicao. E obvio que a interpretao tambm essencial paraestes,
mas numa forma diferente do que para a histria da literatura.
A critica interpretao no quer excluir o nvel do significado,
mas"materializar" o discurso das cincias da cultura, e questionar a
tradio,segundo a qual a interpretao seja a prtica exclusiva das
cincias humanas."Materialidade" pretende derrubar essa hegemonia da
interpretao, que vedaa pesquisa de outros fenmenos e questes
(Gumbrecht 2004: 32). Mesmono sabendo uma alternativa ao sentido e
hermenutica, existia umdesconforto com o relativismo intelectual
que acompanha a cultura deinterpretao (Gumbrecht 2004: 23) - e isso
vale a pena discutir tambm naComunicao.
O colquio de 1987 no qual o conceito foi desenvolvido o quarto
deuma srie de cinco, realizados entre 1981 e 1989. O local, a
cidade de Dubrovnikna Iugoslvia, foi escolhido por vrios motivos;
um deles sendo que aIugoslvia foi o nico pais da Europa acessvel
para pessoas de pasesocidentais e orientais, os ltimos com governos
comunistas, que restringiramviagens para o exterior. Esse detalhe j
indica um esprito especfico dessesencontros. A ttulo de
curiosidade, gostaria de mencionar que tambmparticiparam nesta
histria, por duas vezes, brasileiros. Segundo Gumbrecht,
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PA
a idia dos colquios nasceu quando ele, em 1979, junto com um
"amigobrasileiro" (no especificado), atendendo um outro congresso,
sentiu o desejode voltar para essa cidade linda: materialidade
tambm um pressupostopara a cincia!
A idia geral dos colquios foi analisar a cincia da literatura e
dalingstica historicamente. Pouco satisfeito com os resultados dos
primeirostrs, o grupo procurou um novo rumo, e algum props, em
1985,"materialidade da comunicao". Dois anos depois foi realizado o
colquio,do qual Gumbrecht se lembra com as seguintes palavras:
"Se tem algum encontro cientifico que eu presencieique merece o
elogio de ter sido "instigante ","importante ", "produtivo ", foi o
colquio sobrematerialidade da comunicao na primavera de1987."
(2004: 24)
"Materialidade" e "comunicao" prometeram ser conceitos
melhorespara trabalhar as questes com mais exatido e rigor
cientfico, saindo daprtica das interpretaes repetidas e fartas. A
busca de um novo discursofoi motivada por um cansao com as teorias
antigas, ou seja, a teoria crtica,o marxismo, o estruturalismo, o
ps-estruturalismo, o deconstrutivismo, ejem 1987,0 ps-modernismo
(Gumbrecht 1988: 911). "Discursos baixos"
218 ttulo do resumo do colquio de Gumbrecht, e o fato de que a
noo deparadigma foi evitada neste contexto merece destaque para
caracterizar umacerta modstia do projeto. Grande estima, por outro
lado, foi dada aos seguintesautores: Paul Zumthor, que destacou a
voz e a escrita como formas decomunicao centradas no corpo,
Jean-Franois Lyotard, que alegou que arevoluo da mdia eletrnica
gera uma nova "imaterializao" da vida humana,Walter Benjamin, que
ensinou a importncia do contato direito com os objetosculturais, e
Jaques Derrida, segundo o qual a excluso do significante (umaforma
de materialidade) responsvel pela hegemonia do Logo-Phonocentrismo
da cultura europia. "Materialidade da Comunicao" abriuos olhos para
assuntos fascinantes como histria da mdia, body culture epara a
seguinte questo: quais efeitos diferentes media, ou seja,
diferentesmaterialidades tm em relao ao sentido realizado na
comunicao(Gumbrecht 2004: 27/28). Tambm destacada a importncia do
FriedrichKittler e sua "sensibilidade intelectual" para as formas
de materialidade, queo deixa perceber como movimentos intelectuais
so encaminhados porinovaes nos meios de comunicao baseado na
tecnologia.
Por exemplo, Martin Stingelin, ao tratar o filsofo Nietzsche,
noparte de um nvel de contedo filosfico, mas analisa as condies
ematerialidades mediticas do filsofo. A mquina de escrever, por
conseguinte,
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!1J1i
foi desenvolvida naquela poca com a inteno de facilitar a vida
de cegos.Nietzsche, quase cego, com 14 dioptrias, teve que por o
rosto bem acima dopapel, e as letras foram dificeis de identificar.
Receber uma mquina de escrever,em 1882, aliviou muito as condies de
trabalho deste, e num comentriorelacionado ao novo aparelho de
escrever ele nota: nossos instrumentos deescrever tambm participam
quando trabalhamos nossas idias. (Stinglin 1988:337) Muitos artigos
analisam casos especficos dessa materialidade, VivianSobchack
(1988), por exemplo, apresenta uma fenomenologia da presena nofilme
e na mdia eletrnica, analisando o desenvolvimento histrico
dafotografia e do filme e o impacto que estes tm para a natureza do
"olharmecnico", inclusive as transformaes da experincia corporal,
do tempo edo espao sob o regime da mudana analgico - digital. E
esse estilo de olharpara os fenmenos de uma outra maneira, mais
voltada para as materialidades- e os media e menos para
interpretaes, que caracteriza o conceito, eassim, sem duvida, ainda
continua estimvel.
Em outros termos, materialidade foi descrita como o outro lado
dasemntica. Jan Assmann, tratando a materialidade da escrita
hieroglficaegpcia, entende materialidade com noes da semitica.
Trabalha com doislados do signo, um semntico, o significado, e ou
outro, sua forma material depresena (Assmann 1988: 143). A
materialidade do signo essa parte damatria prima, que no influencia
o significado. Por exemplo, um R pode sercinzelado em pedra,
arranhado em couro, imprimido em vrios tipos de fontes- Fractura,
Garamond ou Helvetica -, sem isto afetar seu significado e valor
219enquanto fonema: continua sendo um R. Para sua funcionalidade
sessencial que ele no seja confundido com uma outra letra, digamos,
um P.AleidaAssmann (1988:238), de maneira semelhante, recorre a uma
regra simples,a relao inversa entre presena e ausncia: para ganhar
um contedosemntico, um signo tem que perder a sua materialidade.
Para alcanar osignificado, ausente, temos que penetrar (ou
transcender) a materialidade dosigno, que presente. Mesmo Niklas
Luhmann, com sua nova teoria desistemas, percorre a noo de smbolos
materializados e organizados emsistemas (Luhmann 1988: 885). De
maneira semelhante, Friedrich Kittler, aodestacar a importncia da
dimenso da materialidade na comunicao moderna,alega que no existe
significado sem portador, ou seja, veculo fsico (Kittler1988: 324),
e recorre teoria matemtica de Shannon,j que esta exclui o nvelde
significado e uma teoria pura de materialidade.
Porm, a euforia coletiva inicial de 1989 deste "discurso
no-hermenutico" revelou-se como ilusrio, e depois dessa srie dos
colquios,perdeu-se o "impulso epistemolgico" (Gumbrecht 2004: 29).
Caiu numconceito convencional do signo, segundo o qual, na
comunicao transferidoum sentido que, implicando um (indesejado)
conceito metafisico, localizadoabaixo da superfcie da
materialidade. Para Gumbrecht faltaram noes que
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wp
operassem melhor a materialidade da comunicao, e a soluo para
ele foidada por um aluno durante uma aula na UERJ em meados dos
anos 90 queprops "produes de presena" para designar os efeitos da
materialidadeda comunicao, o que virou exatamente o ttulo do novo
livro de Gumbrecht.A "produo de presena" aperfeioa o conceito da
materialidade dacomunicao; chama ateno para aquele lado de um
texto, uma obra de arteou um objeto cultural qualquer, que no
acessvel para a interpretao, masserve como base para ela. (Por
isso, o ttulo da verso em alemo "No outrolado da hermenutica".)
Presena aquilo que palpvel, concreto, evidentee tem um impacto
corporal, e Gumbrecht defende uma oscilao entre efeitosde presena
(= materialidade) e efeitos de significado.
Concluso
O conceito de materialidade utilizado em todos os vrios tipos
deteoria da comunicao que trabalham com alguma noo de suporte
material.Parece dificil fugir desse pressuposto sem questionar a
idia da comunicao;so "inmeras e persistentes ... as abordagens
sobre a materialidade dacomunicao", sendo a materialidade "um dos
leitmotifs da discusso docampo comunicacional e, definitivamente,
no pode ser creditada ao crculode Gumbrecht" (Pereira de S 2004:
33, 42). Assim, com toda razo usadomesmo sem referncia ao grupo de
Gumbrecht/Pfeiffer. O conceito tambm
220 tem antecessores, como confirmado em algumas contribuies do
livro.Barck, por exemplo, destaca a materialit desenvolvida no
grupo Tel-Quelpor Julia Kristeva, a produo de textos da chame
signflcante (Barck 1988:131).
Todavia, sendo que "falar em 'materialidades da comunicao'
significater em mente que todo ato de comunicao exige a presena de
um suportematerial para efetivar-se" (Felinto 2001, apud de S 2004:
32), o conceito temuma pertinncia bvia para a teoria da comunicao
(Felinto 2001). Qualqueridia de representao implica algo que
representa e algo que representado,sendo aquilo que representa
sempre uma forma de materialidade. Isso podeser visto como um dos
axiomas bsicos da semitica; segundo Husseri,qualquer compreenso do
pensamento (no sentido amplo, incluindo emoes,desejos etc.) de um
outro requer como veculo ou medium a apreenso de umobjeto, um fato
ou evento do mundo externo materializado, entendido comorepresentao
em relao ao significado. A materialidade que representa chamada
signo (por Alfred Schtz (1967: 319) ou representamen (por C.
S.Peirce, usado, s vezes, como sinnimo de signo, por exemplo CP
2.274). Econforme Umberto Eco:
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'O processo de significao s se verifica quandoestiste um cdigo.
[..] Sempre que, co,n base a regrassubjacentes, algo MATERIALMENTE
presente percepo do destinatrio ESTA PARA qualquer outracoisa,
verifica-se a significao. "(Eco 1997: 6, grifesde Eco)
Sendo a semitica no desconhecida para muitos autores do
grupo,este raciocnio tambm compartilhado por alguns deles. Podemos
aindaapontar para duas disciplinas no consideradas por eles: a
fontica e afonologia. A primeira analisa o nvel do significante, a
materialidade fisica dalngua, e a segunda est como unidades
funcionais (complementaria bem asanlises de Gumbrecht (1988a) sobre
a constituio de ritmo). O fato de queas duas disciplinas fazem
parte da lingstica nos chama ateno pelo fato deque o grupo
Gumbrecht/Pfeiffer vem dos estudos literrios e das filologias,
eeles descobriram a materialidade oriunda deste ponto de vista.
Concordamoscom Pereira de S que, discutindo o conceito da
materialidade da comunicao,observa que, sem "qualquer preconceito
contra a interdisciplinaridade,torna-se obrigatrio o reconhecimento
dos limites de cada um dos campos ede seus interlocutores - no caso
o da comunicao e o dos estudos literrios"(de S 2004: 33). As
cincias sociais, na tradio weberiana, concebem oobjeto como algo
produzido pelos atores sociais, ou seja, construes deprimeira
ordem, que operam na vida social, e para isso precisam de unia
221visibilidade ou outras formas de percepo. A partir disso, a
cincia social seempenha em produzir anlises de segunda ordem a
partir desses objetos jconfigurados pelos atores. Igualmente como
uma cincia dos media, as cinciassociais j focalizam a materialidade
e o desafio para estas chegar aosignificado. O grupo
Gumbrecht/Pfeiffer faz o caminho inverso, o que sedeve qualidade
especfica dos objetos das letras. Conclumos com umaopinio salomnica
compartilhada por eles: que a materialidade e o sentidodesenvolvido
a partir dela so considerados inseparveis. Assim sendo,qualquer
metodologia nas cincias humanas que inicia a investigao
namaterialidade deve alcanar o nvel de interpretao, e vice-versa,
ainterpretao tem que considerar as condies materiais de produo
destesentido.
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Estudos brasileiros de cibercultura:vista sobre o estado da
arte
Francisco Rdiger*
- Andr Lemos e Paulo Cunha (orgs.): Olhares sobre a
cibercultura. Porto Alegre:Sulina, 2003.
11I
223
* Doutor em cincias sociais (USP) e professor da Pontificia
Universidade Catlica do Rio Grande doSul.
-
-iipz
Olhares sobre a cibercultura mostra representativa da linha
detrabalhos que, nos ltimos anos, vem desenvolvendo o GT
"Sociedadetecnolgica e Novas tecnologias de Comunicao" das reunies
anuais daAssociao dos Programas de Ps-Graduao em Comunicao.
Proceder leitura do volume nos permite saber mais a propsito de
diversas facetasdesse fenmeno emergente, a cibercultura, e, ao
mesmo tempo, elaborar umconceito sobre os mritos e limitaes,
virtudes e vcios intelectuais da elitedos seus pesquisadores e
pensadores no Brasil.
Varia em muito a matria, visto os articulistas abordarem desde
pontosconceituais, como os problemas da esfera pblica virtual, da
intelignciaartificial e da ascenso da dromocracia, at estudos de
casos, como os dosblogs, a cibernetizao dos corpos e a cena da
msica eletrnica. Em linhasgerais e procurando fazer uma mdia, o
resultado do volume parece-nos debom nvel, seja no tocante aos
temas tratados, seja na propriedade dasabordagens. Todos os textos
so escritos com seriedade e revelam bom nvelde informao.
Paula Sibilia e Simone Pereira de S, enfrentando, por ordem,
ostemas dos blogs e da cena musical eletrnica, escrevem os
trabalhos maiseruditos e documentados do volume. Simone Pereira de
S procede a umesboo de mapeamento do campo da msica eletrnica,
seguindo as linhasde um projeto cujo objetivo pens-la em relao
tradio musicalestabelecida no Brasil. Explicitando os pressupostos
histricos e elementos
224 tpicos do fenmeno, ela lana as bases para um eventual
trabalho posteriorde descrio etnogrfica, baseando-se na idia de
remediao defendida porJay Bolter e Richard Grusin (p. 153-173).
J Sibilia lembra que seu assunto, embora novo pelo
suporte,dimenses e sentido, pode ser pensado em relao s formas
primevas quelhe do um simulacro de paradigma cultural, histrico e
sociolgico.Relativamente aos blogs: "No carece de interesse a
comparao com asmodalidades que podem ser consideradas seus
'ancestrais', de algum modo,pois elas proporcionam um pano de fundo
contra o qual mais fcil enxergaras inovaes".
Como ela nota atravs da recolha de exemplos e de
comparaeshistricas, os dirios ntimos eletrnicos no so ntimos (por
isso o certoseria at evitar a legitimao terica da expresso -
sugeriramos). "Convmaos pesquisadores se manter alerta e desconfiar
dessas (supostas)permanncias". As prticas persistem apenas em
aparncia e, portanto, seussentidos se alteram com a constelao
histrica que as articula (p. 146).
Paulo Cunha e Suely Fragoso optam pelo estranho caminho
queconsiste em tentar iluminar fenmenos bem estudados por outras
disciplinascom conceitos extrados menos de outros ngulos do que de
campos alheiosaos em que aqueles se instituem, ou ento que o de
empilhar argumentos
-
ntracam
oriundos de diversas latitudes para defender o princpio de
sociologia formal,isto , sem proposio tica, poltica, histrica ou
humana, segundo o qualno h um mas, antes, vrios ciberespaos.
Pensamos que no razovel projetar a teoria do imperialismo
noterritrio da fsica nuclear. Portanto, parece-nos esdrxula a
pretenso de quecom categorias oriundas do design de espaos virtuais
e da arquitetura desistemas de informao se produza um
esclarecimento sobre as relaesinternacionais e movimentos de
distribuio da riqueza na era da globalizaociberespacial (p.
197-211).
Outrossim, pensamos que um trusmo reconhecer que nada do que
humano simples de analisar ou exclui o acrscimo de outros pontos
devista. Portanto, parece-nos pregao escolar acaciana a concluso de
estudocujo sentido mostrar que o ciberespao um terreno plural,
complexo edinmico e que, "alm das escalas mobilizadas neste texto,
outrosenquadramentos (ou inclusive os mesmos em outros instantes)
revelaronovas imagens igualmente verdadeiras e verossmeis" (p.
212-231).
Erick Felinto examina competentemente o movimento do
trans-humanismo com o objetivo de nos alertar para as iluses
msticas e fantasiasarcaicas que se reproduzem nos extremos da
tecnologia avanada (p. 24-36).J Alex Primo relembra-nos em boa
sntese os precrios fundamentosexperimentais e a insuficincia das
premissas que norteiam o projeto depesquisa da inteligncia
artificial (p. 37-56).
Os artigos referenciam o eixo em que se equilibra o conjunto
de
225textos enfeixado no volume. O principal mrito de ambos nos
parece apretenso de examinar o problema em foco com os meios
adequados ao exigidopela matria e de acordo com um bom senso
informado criticamente. O problema o sentido das proposies, visto
no estar claro, positivamente, sobre quebase terica se assentam as
anlises, quais so seus pressupostos histricose epistemolgicos.
Obviamente, isso no culpa dos autores, se admitirnnosque a
cibercultura, em seu processo de imposio, em si mesma uma agnciade
radicalizao do modo fragmentado de ser e de pensar
humanosconsolidado no incio do sculo XX.
Cremos, prosseguindo a leitura, que decepcionam os trabalhos
dospesquisadores mais consagrados presentes no volume, Andr Lemos
eEugnio Trivinho. Ambos so autores de obras no apenas relevantes
masmeritrias sobre a cibercultura, ficando, por isso, aqum de seu
potencial jdemonstrado nas contribuies dadas ao texto aqui
resenhado.
Eugnio Trivinho sucumbe em seu texto sobre o suposto
carterterrorista da democracia que imporiam as novas tecnologias de
comunicao verborragia altissonante, mas despojada do sentido tico
que tanto conferiadignidade moral e poltica a vrios de seus belos
trabalhos anteriores, como0 Silncio no prato e Contra a cmera
escondida.
-
Na presente ocasio, a vontade muito apropriada e justa de
fornecerdemonstrao terica do problema da velocidade no cultura
tecnolgicacontempornea se encontra prejudicada pelo emprego de uma
linguajarpomposo e esterilizante, no qual os problemas do mundo
acabam mitificadose encobertos por uma retrica desenfreada qual, se
houvesse espao, poder-se-ia repetir os termos da crtica de Marx a
Proudhon (Misria da Filosofia).
Autor do rico Cibercultura, tecnologia e vida social (Porto
Alegre:Sulina, 2002), Andr Lemos pende para o lado oposto dos
autores citados,ao apontar as caractersticas que, segundo ele,
definem a cibercultura. Empoucas pginas, o pesquisador procura
sintetizar no apenas o conceito damesma, mas seu impacto nos campos
da sociedade, da comunicao, dapoltica, da arte, da linguagem e do
urbanismo. Excelente verbete deenciclopdia no especializada, o
texto se ressente da falta de erudio queseria necessria para
enfeixar bem os ensaios que lhe seguem e preenchem oresto do
volume, visto o carter e ambio que todos demonstram.
O problema maior, porm, no nem mesmo a enunciao das "trsleis da
cibercultura" que encaminha seu desfecho, mas a prpria conclusodo
artigo, que expressa, a nosso ver, um defeito presente em quase
todos ascolaboraes do volume. A saber, a observao trivial
travestida de sabedoriaterica; a banalidade empacotada com o papelo
da argcia intelectual.
"Devemos assim estar aberto s potencialidades das tecnologias
dacibercultura e atentos s negatividades da mesma" (p. 23), escreve
Andr
226 Lemos. Quem discordar, no sendo nscio? "O fenmeno ainda est
em suapr-histria e esse objeto dinmico se transformar com certeza"
(idem).Algum ter dvida disso, no sendo desinformado? De resto,
somosadvertidos, como se fosse necessrio, que, em sendo dinmico, o
fenmenose "transformar" e que isso, tambm nos dito, uma "certeza"
(idem).
Da em diante, abundam esse tipo de juzos analticos, triviais
eredundantes.
Vincius Pereira especula sobre o desenvolvimento combinado
damente e da comunicao a partir do pressupostos da filosofia da
primeira,compondo texto que , em forma, o retrato negativo do
artigo de Alex Primo.Surpreende a concluso (p. 93):
"[Provavelmente] o crebro humano aindano esgotou as suas
possibilidades. Com
toda a certeza, suas atuaisrealizaes esto muito abaixo das
realizaes possveis". Ora, sendo certoque assim, ento no provvel (no
sentido de probabilidade) ou (nosentido de podemos fazer prova) que
suas possibilidades no estejamesgotadas. A ambigidade ou confuso
assim criada oculta a trivialidade daidia e a banalidade do
raciocnio, "grifado para os objetivos do texto", comoescreve seu
autor.
Quem de s conscincia e o mnimo de informao contestar o juzode
acordo com o qual ainda no empregamos todo o potencial contido
emnosso crebro, um slogan convertido em bandeira dos manuais de
auto-
-
!njpj
ajuda e negociado barato no mercado de idias h mais de uni
sculo? Quemdiria McLuhan tem a ver com Lair Ribeiro, que por ato de
vontade funda aneurolingstica nas estruturas do crebro e, assim,
corrobora a seu modo areduo do progresso das tecnologias de
comunicao ao princpio dodarwinismo neural (p. 104-110). Em funo
disso, certamente, ter de se convir, perda de tempo justificar
conceitualmente a afirmao de que "oscomputadores pensam [ ... ]
cada vez mais informaes" (p. 110, grifo de Pereira).
Estamos na cultura da interface e no h mais tempo para isso
(pensar),pronto!
Adiante, l-se de quem explora com os meios da lgica formal
osefeitos da interao dialtica entre sujeito e objeto, corpo e ao
criadora nasnovas redes sociotcnicas a afirmao segundo a qual "em
face de um objetoqualquer, exterior aquilo que lhe superficial , o
que est em contato com oespao que o cerca, ou est inteiramente
localizado nesse espao". Afinal,"diante do mesmo objeto, [o]
interior corresponde ao espao compreendidopor seus limites", sendo
"interior tudo o que se encontra dentro desseslimites" (p.
125).
Coelho dos Santos pretende esclarecer assim, mediante
enunciadosanalticos, os exemplos bem coletados de como o corpo
modelado pelacultura maquinstica atual e como "a dicotoniia
interioridade/exterioridadesofreu as conseqncias do acoplamento
corpo/tecnologia" (p. 130). Ocorreque no apenas o raciocnio se
funda em constelaes reificadas, tornadasparadigmas da anlise, como
os exemplos carecem do bom senso crtico que 227evitaria sua aceitao
imediata e ingnua.
Digital sexsations, relata o autor, oferece vibradores
individuaisconectveis em rede e inanipulveis online. Cada parceiro
regulamaquinicarnente os implantes que puseram em suas zonas
ergenas "erafuno das instrues [que recebem do outro]" (p. 131).
Assim sendo,aceitemos por hiptese, a pergunta que conviria fazer,
porm, por que aindase precisa de um parceiro ? Havendo ruptura
histrica do princpio de sujeio(relao do "interno" com o "externo"),
algo que duvidamos, qual sua (dahiptese) relevncia tica, moral,
poltica e humana?
O prprio autor nutre essa suspeita, de que no h muito valor
nissoque se est dizendo, salientando que h formas de sexo virtual
"sem osembaraantes intermedirios dessa natureza". Referindo-se aos
chatsdedicados interao de sentido ertico, ele afirma que "seria
equivocadoduvidar da realidade dos relacionamentos cibersexuais",
porque "os corposdos participantes passam por estados ou alteraes
de estados afetivoscomensurveis com aqueles experimentados nas
relaes em que os parceirosesto fisicamente juntos no ato" (p.
132).
Mas, sempre? Como saber...?Pode-se admitir como hiptese
reguladora, no emprica, que, quando
o sentido da ao social o mesmo, os estados afetivos virtuais dos
agentes
-
ontracampg
so comensurveis com os mais imediatos. Nesse caso, contudo,
seria precisoreconhecer o carter analtico e portanto histrico e
sociologicamente trivialda proposio: enquanto forem tais, os corpos
sempre esto passando pormudanas de estados afetivos; nesse plano, o
formal, o beijo na boca e obeijo virtual tm o mesmo gosto, so
equivalentes...
Questes como essas so o impensvel de uma reflexo sobre
acibercultura que no consegue se distanciar crtica e reflexivamente
de suaspressuposies, as da prpria cibercultura, e que aparenta
ufanar-se de seualmejado mas pouco lcido vanguardismo
intelectual.
Francisco Paulo Marques nos fornece um ltimo exemplo do
problemaenfocado, um problema que, embora seja possvel de tratar
assim, nopretendemos documentar exaustivamente. O texto do autor
lida com o conceitode esfera pblica virtual. Afirma ele: "faz-se
necessrio que sempre nospoliciemos no sentido de ressaltar as
potencialidades dos fluxos de informaono ambiente virtual" (p.
192).
Porm, prossegue, "no suficiente que as entidades (ou
mesmopessoas) apenas marquem presena na Internet: necessrio,
sobretudosaber utilizar as ferramentas oferecidas de forma correta,
sempre se adequandos potencialidades e s necessidades de um
determinado movimento social".Por isso, conclui, "ainda longo o
caminho para percorrer at se desvendaro potencial da comunicao
mediada por computador" (!) (p. 193).
Durma-se com essa prdica cheia de civismo bvio e barato,
conforme228 o qual nos dito em tom de revelao sensacional e como se
cidadania no
exigisse responsabilidade e, por ventura tendo adquirido
novidade, noprecisasse de renovao: "a nova cidadania, concebida com
a idia de aldeiaglobal, requer uma renovao da sociedade, chamando a
ateno para aresponsabilidade pblica" ! (p. 191).
Repassando a matria comentada, pode-se afirmar que so
pertinentese sugestivos os pontos de vista e assuntos trabalhados
por nossos principaispesquisadores em cultura e novas tecnologias
de comunicao. Porm, saltamao olhar as banalidades de sociologia
formal e os trusmos interpretativosneles presentes. Desejamos crer
que esse problema intelectual no s tal,tendo a ver com as prprias
fundaes histricas da cibercultura e com o fatode que todos ns,
sejamos leigos ou pesquisadores de ponta, estamos nostornando
criaturas de uma poca pouco propensa reflexo
orientadafinalisticamente, qualquer que seja o ponto de vista, e
incapaz de elaborar osmeios para compor uma interpretao de conjunto
sobre suas circunstncias.
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