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Página | 276 Revista História e Cultura, Franca-SP, v.3, n.1, p.276-298, 2014. ISSN: 2238-6270. A PRIMEIRA-DAMA MARIA THEREZA GOULART E O COSTUREIRO DENER: A VALORIZAÇÃO DA MODA NACIONAL NOS ANOS 1960 THE FIRST LADY MARIA THEREZA GOULART AND COUTURIER DENER: THE VALORIZATION OF NATIONAL FASHION IN THE 1960s Ivana Guilherme SIMILI Resumo: As transformações na cultura das aparências dos anos 1960 são examinadas por meio da primeira-dama Maria Thereza Goulart e do costureiro Dener Pamplona de Abreu. Na abordagem, os documentos memorialísticos e da imprensa, em específico, uma edição da Revista Manchete de 1963, possibilitou dimensionar os processos sociais, culturais e políticos envolvidos na criação da moda brasileira. Evidenciamos, assim, como a relação entre os dois personagens, mediada pelas roupas da alta-costura, produziam sentidos para a moda nacional e faziam emergir padrões estéticos que influenciavam os segmentos femininos a valorizarem a beleza e a elegância dos corpos e das roupas “à brasileira”. Palavras-chave: Moda – Cultura nacional – Elegância. Abstract: The changes in the culture of appearances in the 1960s are examined by means of first lady Maria Thereza Goulart and couturier Dener Pamplona de Abreu. In the approach, documents and memoirs of the press, in particular, an edition of the Journal “Manchete” of 1963 enabled the scaling of social, cultural and political processes involved in the creation of Brazilian fashion. It is evidenced how the relationship between the two characters, mediated by the clothes of couture, produced standards for the national fashion sense and created aesthetic standards that influenced female segments to appreciate the beauty and elegance of their bodies and clothing “à brasileira”. Keywords: Fashion – Culture national – Elegance. Introdução Ali, no comício para as reformas, no dia 13 de março de 1964, na Central do Brasil, junto ao palanque onde Jango discursava com o dedo em riste, eu só tinha olhos para a primeira-dama Maria Thereza Goulart. Como era linda nossa dama... Estava um pouco atrás do marido, com um vestido azul pavão, cabelo penteado em ‘coque’, no estilo anos 1960, e olhava, com os seus 28 anos, para a imensa multidão de operários da Petrobrás, com as tochas acesas ao cair da noite. Era uma visão de filme soviético: os operários, as faixas, as enxadas e foices dos camponeses, mas eu só via o filme americano de Thereza Goulart (JABOR, 2003, p. 44). Doutorado em História – UNESP/Assis. Professora do Departamento de Educação e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá (UEM) – CEP: 87020-900, Jardim Universitário, Maringá, Paraná – Brasil. E-mail: [email protected]
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Maria Thereza Goulart e o Costureiro Dener - Dialnet

Mar 05, 2023

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Revista História e Cultura, Franca-SP, v.3, n.1, p.276-298, 2014. ISSN: 2238-6270.

A PRIMEIRA-DAMA MARIA THEREZA GOULART E O COSTUREIRO DENER: A VALORIZAÇÃO DA MODA

NACIONAL NOS ANOS 1960

THE FIRST LADY MARIA THEREZA GOULART AND COUTURIER DENER: THE VALORIZATION OF NATIONAL

FASHION IN THE 1960s

Ivana Guilherme SIMILI•

Resumo: As transformações na cultura das aparências dos anos 1960 são examinadas por meio da primeira-dama Maria Thereza Goulart e do costureiro Dener Pamplona de Abreu. Na abordagem, os documentos memorialísticos e da imprensa, em específico, uma edição da Revista Manchete de 1963, possibilitou dimensionar os processos sociais, culturais e políticos envolvidos na criação da moda brasileira. Evidenciamos, assim, como a relação entre os dois personagens, mediada pelas roupas da alta-costura, produziam sentidos para a moda nacional e faziam emergir padrões estéticos que influenciavam os segmentos femininos a valorizarem a beleza e a elegância dos corpos e das roupas “à brasileira”. Palavras-chave: Moda – Cultura nacional – Elegância. Abstract: The changes in the culture of appearances in the 1960s are examined by means of first lady Maria Thereza Goulart and couturier Dener Pamplona de Abreu. In the approach, documents and memoirs of the press, in particular, an edition of the Journal “Manchete” of 1963 enabled the scaling of social, cultural and political processes involved in the creation of Brazilian fashion. It is evidenced how the relationship between the two characters, mediated by the clothes of couture, produced standards for the national fashion sense and created aesthetic standards that influenced female segments to appreciate the beauty and elegance of their bodies and clothing “à brasileira”. Keywords: Fashion – Culture national – Elegance. Introdução

Ali, no comício para as reformas, no dia 13 de março de 1964, na Central do Brasil, junto ao palanque onde Jango discursava com o dedo em riste, eu só tinha olhos para a primeira-dama Maria Thereza Goulart. Como era linda nossa dama... Estava um pouco atrás do marido, com um vestido azul pavão, cabelo penteado em ‘coque’, no estilo anos 1960, e olhava, com os seus 28 anos, para a imensa multidão de operários da Petrobrás, com as tochas acesas ao cair da noite. Era uma visão de filme soviético: os operários, as faixas, as enxadas e foices dos camponeses, mas eu só via o filme americano de Thereza Goulart (JABOR, 2003, p. 44).

• Doutorado em História – UNESP/Assis. Professora do Departamento de Educação e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá (UEM) – CEP: 87020-900, Jardim Universitário, Maringá, Paraná – Brasil. E-mail: [email protected]

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Na narrativa de Jabor, para lembrar-se de um fato que marcou um dos momentos

mais tensos da história política brasileira –o comício do presidente João Goulart (1961-

1964), na Central do Brasil – é perceptível que Maria Thereza Goulart roubava a cena e,

porque não dizer, em certos momentos e ocasiões, fazia com que a atenção do público

fosse desviada para a sua presença e beleza. O narrador se lembra da cor do vestido que

ela usava, denominada de “azul pavão”, do “coque” e da juventude de quem tem 28

anos, detalhes que lhe permitem afirmar: “como era linda nossa dama”.1

Não é somente na narrativa do jornalista que Maria Thereza Fontella Goulart –

esposa de João Goulart (1919-1976) que, como tal, ocupou a posição social e a

representação política de primeira-dama – é lembrada pela beleza, detalhada e

significada em função dos atributos físicos do corpo, da idade e das roupas. Esse é o

modo pelo qual ela se permite ver por meio da história, o que suscita leituras e

interpretações produzidas por biógrafos, memorialistas e pela imprensa, as quais se

constituem em ponto de partida para delinear o percurso visual da esposa do presidente,

de modo a determinar suas contribuições na cultura da moda e das aparências dos anos

1960.

Ferreira (2011, p. 345), biógrafo de João Goulart, menciona que Maria Thereza é

exemplo dos efeitos positivos e negativos que a beleza física proporciona a uma mulher.

Os atributos físicos, ao conformarem a aparência de “menina”, trouxeram-lhe promoção

pessoal e social, na medida em que, além de chamar a atenção das pessoas -

especialmente dos homens - sobre e para si, também fizeram que se transformasse em

objeto de interesse midiático, por intermédio de narrativas que expunham sua aparência

nas capas de revistas tais como Manchete, Fatos e Fotos, Stern e Life. A exposição fez

que, junto com a proliferação das imagens, surgissem comentários acerca de sua vida

pessoal, muitos deles, classificados pelo autor como maldosos, em particular, com

relação ao casamento e aos assuntos relativos à sua fidelidade.

Uma mulher cuja aparência proporciona a sua transformação em fenômeno

midiático em capas de revistas nacionais e internacionais. Eis uma descrição de Maria

Thereza referente às memórias de como a personagem se recorda e interpreta a posição

da qual desfrutava no passado. Nas entrevistas que concedia, em geral, uma das

questões abordadas diz respeito à percepção que a ex-primeira-dama tinha do passado e

do modo como era recordada. Em uma delas, ao ser perguntada: “A senhora gosta de ser

lembrada como a primeira-dama mais bonita do Brasil?”, respondeu:

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Olha, eu era muito jovem... É claro que me sentia lisonjeada com os elogios. Imitavam meu penteado, aquele coque, então... Como eu já disse antes, o Brasil vivia um momento de mudanças na moda, cinema, música... Eu procurava estar à altura de meu marido, que tentava mudar o país (RIBEIRO, 2011).

De certa forma, a personagem afirma que tudo o que se comenta sobre ela,

inclusive nos canais midiáticos ou pela memória fabricada por meio da imprensa em

torno de si e de sua imagem, deve ser considerado como sintoma das mudanças que se

processavam naqueles anos no país em vários setores da vida social e cultural, entre

eles, na moda. Ela se outorga a representação de alguém que desempenhou papel

importante na vida pública e política, ao exercer influências sobre as aparências das

mulheres, com poder para despertar o desejo de serem como ela, de fazerem o que fazia

mediante a imitação e a cópia de seus “modelos”, lembrados por meio da consagração

do “coque” no cabelo.

Se por meio dessas recordações ela se define como uma personalidade que ditava

moda e comportamento, por intermédio de outras narrativas a representação completa-

se. Entre as estratégias desenvolvidas pela personagem e que, no presente, alimentam a

imagem dela como personagem da moda, estiveram várias ações, dentre elas, a de

contratar, em 1963, um figurinista para cuidar do seu guarda-roupa. Entre 1963 e 1964,

aos eventos e solenidades que marcaram a vida pública brasileira, ela compareceu

vestida com as roupas da alta-costura, criadas especialmente para a primeira-dama pelo

costureiro Dener Pamplona de Abreu (1937-1978). É para o papel que ele e suas roupas

desempenharam nas imagens que, hoje, chegam até nós informações sobre Maria

Thereza, às quais o costureiro acena ao registrar em sua biografia:

Eu fiz vestidos para Maria Thereza para todas as ocasiões. Para recepções, casamentos, para funeral, para solenidades oficiais. Só não fiz um vestido para a deposição. Porque ela não me pediu. Mas Maria Thereza tinha roupas apropriadas. Poderia usar um tailleur marrom, cinza grafite, ou um tailleur preto com blusa branca. Pois não é que ela perde a cabeça, fica nervosa ou sei lá o que aconteceu... [...] Ora o que aconteceu! O que aconteceu é que ela foi exilada de turquesa! (ABREU, 2007, p. 76).

Neste trecho, o que o costureiro afirma é que a fama e o poder conquistados por

Maria Thereza devem ser tributados a ele também, na medida em que a vestiu para

todas as ocasiões, menos para a deposição. Por conseguinte, os créditos das cores e dos

brilhos que amalgamavam as imagens de beleza que chegam do passado devem ser

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concebidos como produções visuais nas quais ele teve participação por meio do que ela

vestia.

A história da relação entre Dener e Maria Thereza, estabelecida em torno das

roupas e das aparências, pode ser concebida como uma aproximação entre os dois

personagens da “alta cultura” (CRANE, 2011, p. 15) na produção e difusão de

representações para a moda nacional. Ao apresentar-se nos eventos sociopolíticos com

as roupas de Dener, a primeira-dama valorizava a produção nacional, incorporando em

suas práticas de vestir os símbolos que a posicionavam como defensora do princípio de

que havia uma moda brasileira, criada pelos costureiros brasileiros e para a mulher

brasileira. Este, sem dúvida, é um princípio político-ideológico que movimenta e

confere sentido ao campo da moda como meio de romper com as influências estético-

estilísticas europeias e norte-americanas que, historicamente, haviam marcado a relação

das pessoas, em particular, das mulheres com as roupas e com as aparências.

Questões relativas à moda brasileira e às tensões peculiares aos períodos de

múltiplas transformações nos corpos, nas aparências e nas subjetividades das mulheres

são aspectos marcantes nos anos 1960, fazendo emergir novos modelos de

comportamento, novos valores estéticos e sentidos para as roupas. As mudanças

produzem uma “configuração” peculiar da moda, no sentido usado por Elias (2011, p.

240), de “[...] uma estrutura de pessoas mutuamente orientadas e dependentes”,

formando uma rede de interdependência entre elas, ligando-as à sociedade e cultura das

aparências. As mudanças processadas durante esse período nos comportamentos, nas

crenças, nos valores, portanto, nas sensibilidades e nas subjetividades das mulheres, são

acompanhadas por estratégias diversificadas que definem um campo da moda, com

práticas significantes (BARNARD, 2003) para a beleza da mulher brasileira e para a

moda nacional, modernizando e “civilizando” as aparências.

Naquele contexto, o encontro de aparências entre Dener e Maria Thereza marca

um momento dos processos sócio-culturais profundos na produção de sentido para a

nacionalidade da mulher e para as roupas nacionais. Assim, emergem novos símbolos

para a estética feminina, de modo a definir uma estilística para a brasilidade.

Grosso modo, traçamos, dessa maneira, o percurso narrativo desenvolvido no

texto. Na primeira parte, assumimos a definição de Veillon (2004, p. 7) de que a moda é

“[...] manifestação da vida sob todas as formas, maneiras de ser e de comportar”, o que

a transforma em “[...] observatório privilegiado do ambiente político, econômico e

cultural de uma época”, para analisar as transformações observadas nos anos 1960 na

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cultura das aparências, isto é, na generalização em escala coletiva (ROCHE, 2007, p.

59) de novos modelos de conduta com relação ao corpo e à roupa. Na segunda,

desenvolvemos um trabalho empírico sobre um exemplar de revista na qual a primeira-

dama foi transformada em capa, publicada em maio de 1963, o que permitiu analisar as

apropriações, os empréstimos e as trocas culturais estabelecidos em torno dos valores

estético-estilísticos para significar a beleza das roupas e da mulher brasileira.

As indústrias do corpo, da beleza e da elegância

João Goulart era o vice-presidente de Jânio Quadros, quando em 1961, assumiu a

presidência da República e governou o país até 1964, quando foi deposto pelo golpe

militar. Entre os anos 1961 e 1964, como Presidente da República, enfrentou sucessivas

crises econômicas, sociais e políticas que desestabilizaram o governo, tais como o

aumento das mobilizações e das reivindicações sociais; as constantes greves dos

trabalhadores de vários setores e segmentos profissionais por aumento de salários; a

inflação galopante que pedia por medidas e ajustes governamentais na política

econômica. Para Moniz Bandeira (1977) e Silva (2008), ao optar pelo desenvolvimento

denominado "capitalismo nacional e progressista" e pela estabilização da economia,

Goulart implementou o Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social, cujos

efeitos foram a contenção salarial justificada pela necessidade de manutenção das taxas

de crescimento da economia e de redução da inflação.

No período, acompanhando as transformações econômicas, sociais e culturais, as

aparências das mulheres passaram por mudanças significativas, mediante a redefinição

das subjetividades femininas em torno dos valores da juventude e da beleza como

passaporte para o sucesso, o prestígio e a felicidade. É nesse sentido que as reflexões de

Denize Bernuzzi Sant’Anna (2008) caminham, ao mostrar que a política

desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek inaugurou um fato inédito na cultura das

aparências: o processo de rejuvenescimento e de modernização do país passava pelas

maneiras de ser dos brasileiros e das brasileiras.

A ideologia do progresso, que fundamentava a política desenvolvimentista

adquiria naquele contexto, era “civilizadora” (ELIAS, 2011), promovendo

transformações profundas nos comportamentos com relação aos ambientes domésticos e

dos corpos. Essa analogia entre progresso e corpo ganha forma nas revistas e nos

manuais de beleza. É para esse ponto que Sant’Anna (2008) acena ao revelar que perder

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peso era um dos conselhos que marcavam as propagandas da época, pois, com o corpo

magro e leve, os brasileiros e as brasileiras ganhariam charme, velocidade e juventude.

Nessa fabricação, a gordura era transformada em sinônimo de lentidão e atraso. Para as

mulheres, a celulite era considerada um problema que devia ser combatido, assim como

o ciúme. Fazia-se fundamental rejuvenescer o corpo e os sentimentos, era preciso que

cada pessoa compatibilizasse as aparências individuais com as imagens que o país

projetava para si no cenário nacional e internacional, como uma nação dinâmica, jovem,

que progredia.

A beleza, a juventude e a felicidade passaram a ser produtos do mercado e, como

tais, poderiam ser compradas. Desde 1959, a beleza foi redefinida com suporte no

conceito de que ela não era uma benção divina ou da natureza, mas que podia e devia

ser conquistada pelo esforço individual das dietas, ginásticas e por meio da aquisição de

produtos estéticos que solucionassem as feiúras da pele, do corpo, tais como os cremes,

os shampoos, as maquiagens etc. Essa redefinição é acompanhada pela ampliação do

parque industrial e comercial relacionado ao ramo, que começou a crescer a partir do

estabelecimento de indústrias de cosméticos, da criação de uma rede de lojas e de

revistas especializadas em moda e beleza.

Para Sant’Anna (2008, p. 63), a chegada da Avon ao país, em 1959, e a

transformação da cosmetologia em uma ciência independente da química e da

dermatologia são marcos das mudanças observadas na democratização do consumo e

das aparências. Nas revistas femininas, as mulheres liam os anúncios: “Ser bela não era

apenas um dever, mas também um direito de todas as mulheres [...].” De porta em porta,

as vendedoras da Avon mediavam o aprendizado desse direito: “Seja bela todos os dias,

construa sua beleza de acordo com seu tipo físico e com seus desejos.”

Na década de 1960 ampliam-se os mecanismos científicos da cosmética para que

todas as mulheres possam usufruir dos prestígios da beleza. Os primeiros congressos

internacionais e a evolução dos produtos de beleza pela indústria cosmética atribuem

novo significado para a estética feminina formulada pelo imperativo de que era

necessário “não ser, mas sentir-se bela”, ou seja, era preciso que as mulheres se

sentissem satisfeitas com a própria aparência. Por conseguinte, o sucesso ou fracasso

em sua vida pessoal passava a ser expressão do corpo e da beleza (SANT’ANNA,

2012).

Processo contíguo, a cultura da beleza ganha impulso com o mercado de

produção e consumo de roupas. A primeira Feira Industrial das Indústrias Têxteis

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(FENIT), organizada em São Paulo em 1958; o uso dos fios sintéticos, bem como a

segmentação do mercado de consumo entre a moda de luxo e o prêt-à-porter [roupas

prontas para vestir], são fenômenos que marcaram o surgimento da moda nacional e os

investimentos na elegância da mulher brasileira.

Entre os anos 1960 e 1970, no Brasil e no cenário internacional, a “consolidação

do prêt-à-porter” altera significativamente o sistema de produção e consumo da moda,

que se depura de quaisquer emblemas de classe e distinção ainda presentes no sistema

da alta- costura. Ou, conforme escreveu Lipovetsky (1989, p. 110), o espírito da moda

que surgiu naqueles anos é “[...] mais voltado à audácia, à juventude e à novidade do

que à perfeição ‘classe’.” O prêt-à-porter representaria a cultura juvenil, engajando-se

no processo denominado de rejuvenescimento democrático da moda. No entanto, alerta

o autor, o fenômeno mais notável é que a alta-costura, indústria de luxo por excelência,

contribuiu para a democratização da moda, na medida em que se tornou mais acessível

porque “imitável” pelo prêt-à-porter, diminuindo as fronteiras que separavam um e

outro sistema (LIPOVETSKY, 1989, p. 110 -115).

A democratização da moda leva à percepção da existência da juventude, categoria

incorporada ao mercado de produção e de consumo de roupas. Ela proporciona a criação

de um mercado de roupas para os/as jovens, com seus estilos próprios de viver, de amar,

de consumir e de vestir. Como afirma Zimmermann (2013, p. 21), “O mercado de

produção de roupas para jovens cresce significativamente no país, definindo e

comunicando a existência de jovens e a cultura da juventude.” Para divulgar os

conceitos e as “marcas da juventude”, surgem revistas específicas, caso da Capricho.

O significado da cultura da juventude na moda feminina e brasileira, em

específico, nas aparências das mulheres, foi que as garotas daqueles anos podiam vestir-

se de acordo com sua idade. Elas passaram a ter roupas próprias, o que lhes

possibilitava romper com a relação histórica de usar vestimentas semelhantes às

utilizadas pelas mães. Para as jovens e as mulheres casadas, donas de casa e mães de

família, modelo dominante de feminino e de feminilidade, a produção em massa de

roupas amplia os espaços de consumo de lazer, possibilitando-lhes cultuar a aparência

por meio da aquisição de roupas para si, acompanhando tendências, as mudanças de

estações, os ciclos da vida e as sociabilidades dos passeios, encontros, festas, bailes etc.

Os novos espaços de consumo permitem às mulheres casadas abastecer os

guarda-roupas da família. Se a máxima era “seja bela e cuide-se”, o mercado de roupas,

em franco crescimento, vai oferecer tudo o que uma mulher nessa condição precisa para

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vestir-se e mostrar-se bonita, nas diferentes etapas de sua vida, no público e no privado.

Não podemos esquecer de que até meados dos anos 1960, explicam Miguel e Raial

(2012), os programas de lazer para as mulheres casadas estavam concentrados no lar.

Ficar com o marido e os filhos, ocupar o tempo livre com atividades relacionadas aos

afazeres domésticos, tais como bordar, costurar, fazer crochê de artesanato eram

atividades concebidas como lazeres femininos adequados às casadas. A saída para as

compras com a finalidade de abastecer o lar e a família - com alimentos, roupas, tecidos,

objetos para enfeitar a casa ou eletrodomésticos, em um mercado de bens e produtos

que cresce a passos rápidos nas cidades brasileiras - também se tornou um tipo de lazer

privilegiado das esposas e mães.

A compreensão dessa mudança estava relacionada ao modelo de família e de

consumo que emerge naqueles anos, com o crescimento da classe média e as influências

do modelo norte-americano, american way of life, no comportamento das pessoas.

Nesse modelo, a família feliz é a consumidora. No estilo de vida da mulher casada, de

classe média, uma das medidas visíveis da felicidade era a aparência da esposa, do

marido e dos filhos e, nelas, as roupas. Por intermédio da Revista Claudia (1961) e, em

específico, da Manequim (1959) que cria, inclusive, suplementos especiais para as

grávidas, elas acompanham tendências de roupas, de decoração, bem como aprendem a

consumir vestimentas, produtos de beleza, mobiliário e utensílios domésticos para a

casa. Nesse contexto, merece destaque a ampliação de ofertas de roupas masculinas e

infantis no mercado da moda.

É importante ressaltar, ainda, os papéis desempenhados pelas revistas Claudia e

Manequim na cultura da moda e das aparências, em específico, na “civilização dos

costumes” (ELIAS, 2011), dos códigos de conduta e dos comportamentos de consumo

que deviam orientar a escolha e o uso das roupas. O público privilegiado da primeira

sempre foi a mulher casada e mãe, que consagrava seu tempo aos cuidados da família,

com poder de decidir ou ao menos influenciar a escolha dos produtos para o consumo -

roupas, cosméticos, utensílios domésticos etc. - aspecto que possibilitou a criação de

várias segmentações: Claudia Moda, Claudia Casa e Claudia Cozinha. O início da

produção de fios de nylon pela Rhodia, em 1955, e a primeira Fenit, realizada em 1958,

são fatos que explicam o surgimento da Manequim em 1959, visto que, por seu

intermédio, o consumo de moda era facilitado em razão dos moldes que explicavam

passo a passo como fazer a peça de roupa apresentada nos corpos das modelos (LUCA,

2012).

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Mulheres, fiquem à vontade para explorar as roupas e comunicarem o que são, o

que sentem, como se veem, com elegância. Eis o recado veiculado nos editoriais de

moda, que classifica tipos e estilos femininos, indicando a roupa apropriada na

composição de imagens em que a elegância é o princípio, meio e fim das aparências.

“Você é romântica?”. “Você é esportiva?”. “Você é moderna?”. “Você é ingênua?”.

“Você é sofisticada?”. “Você é equilibrada?”. Defina-se. Escolha a sua roupa para dizer

algo sobre si.

A elegância é democrática e acessível:

Seja admirada por suas amigas fazendo você mesma os mais lindos vestidos de acordo com os modelos da última moda mundial. Bastam cinco meses para você aprender o novo método LIDER: plissê alta-costura e corte (REVISTA MANEQUIM, 1963, p. 29).

Com discursos dessa natureza, emergia um novo método de ensino de corte,

costura e de manuseio de tecidos para a cópia dos modelos anunciados na Manequim, os

quais transformavam os comportamentos de consumo e as aparências em consonância

com os novos códigos do bem vestir-se.

Nesse momento, as propagandas de máquina de costura e de cursos por

correspondência relacionados à área dialogam com as mulheres dizendo com todas as

letras que “estar na moda era um ato de vontade”. Em casa ou pelas mãos das

costureiras, os segmentos pobres e da classe média - jovens e senhoras - podiam

acompanhar as tendências. Nesse processo, um dos fatores que impulsionam o mercado

da moda feminina foi a maior participação da mulher no mercado de trabalho. “A

passagem da dona de casa à mulher profissionalizada teve e, ainda tem, uma dupla

implicação no mercado de roupa” (DURAND, 1988, p. 109). Com a saída de casa para

trabalhar, a mulher deixava de coser para si e para os filhos, o que estimulou o aumento

dos segmentos feminino e infantil no mercado de roupa industrializada. Além disso, ao

deixar de fazer os consertos das peças, o consumo de novas roupas era antecipado.

Acresce-se a esses aspectos que o trabalho fora de casa alimentava o consumo, na

medida em que a “boa aparência” era uma obrigação imposta pelos regimes

profissionais (DURAND, 1988, p. 109).

Sem dúvida, uma nova lógica na cultura das aparências - no sentido de que fala

Roche (2007) -, da importância e dos papéis desempenhados pelas indumentárias nas

relações humanas e sociais instala-se no Brasil nos anos 1960, motivando as mulheres a

mudarem, a se tornarem belas e elegantes. Em certa medida, pode-se afirmar que a

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moda influenciou todas as esferas da sociedade, segmentando o público e o consumo; os

comportamentos, os gostos, as ideias, as roupas, os objetos, a linguagem (CALANCA,

2008, p. 3). Enfim, ela alterou os relacionamentos das pessoas consigo, com o mundo e

com suas visualidades.

Maria Thereza e Dener: a produção da estética nacional

A moda, quando concebida como fenômeno que transforma os comportamentos,

determina a relação entre as pessoas na sociedade. Nesse processo, ela incorpora os

indivíduos e os transforma em símbolo das mudanças para influenciar as pessoas e

indicar caminhos para melhorar a aparência. Nos anos 1960, uma personagem

estratégica ao processo “civilizador” e modernizador da moda brasileira para fazer girar

o motor das subjetividades das mulheres, de modo que renovassem, atualizassem e

acompanhassem as transformações nas aparências exigidas pelos novos tempos, foi

Maria Thereza Goulart.

Nesse sentido, a produção de significados para a imagem da primeira-dama por

intermédio dos canais midiáticos, que a expunham na condição de modelo de beleza e

elegância, deve ser entendida como estratégia político-ideológica da moda nacional, isto

é, como uma prática significante desenvolvida pela imprensa para difundir crenças

acerca da nacionalidade na sociedade. Logo, os mecanismos engendrados pelos meios

de comunicação para falar dela e os recursos postos em ação na produção de sentidos

para a sua beleza devem considerar os empréstimos de símbolos, as acomodações, as

adaptações, enfim, os processos das “trocas culturais” (BURKE, 2008) que

acompanham as mudanças sócio-político-culturais.

Em poucas palavras, uma análise assim determinada sobre as imagens produzidas

e veiculadas pela imprensa sobre/para Maria Thereza deve considerar o modo como elas

foram processadas para que fizessem sentido junto às leitoras, levando-as a acreditarem

na elegância da personagem. Com base nesse pressuposto, é possível afirmar que, em

1961, quando Maria Thereza assumiu a posição social e política de primeira-dama, a

cultura da moda e das aparências no Brasil era propícia à construção de representações

de beleza para a brasileira. Havia, no cenário internacional, uma bela e jovem primeira-

dama, a norte-americana Jackie Kennedy, digna representante da moda. Na imprensa

norte-americana e no Brasil ela era a “mulher de destaque”, admirada, copiada no que

diz respeito aos cabelos e às roupas. Nas páginas da Vogue, uma revista que pode ser

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caracterizada como “[...] autoridade branca, burguesa, tão influente que o seu nome é

sinônimo de moda, mostrava-se o estilo ‘Jackie Kennedy’ de conjuntos e vestidos retos,

estruturados, de linhas trapézio, formais e bonitos na sua elegância”, comenta Rabine

(2002, p. 72). O cabelo escuro e curto, com fixador, compunha o visual e definiu um

estilo da moda típica para cabelos nos anos 1960.

O modelo de beleza e de influência de Jackie, testado e atestado tanto pela mídia

internacional quanto pela nacional, levaram a imprensa brasileira a empregá-lo na

divulgação de notícias que apresentaram Maria Thereza no cenário social como

“semelhante” e, ao mesmo tempo, “diferente” da norte-americana. Quem era a mais

bonita? Perguntava a Revista Fatos e Fotos, em 1961, e respondia: “Imprensa dos

Estados Unidos reconhece: Sra. Maria Thereza mais bonita que Jackie Kennedy”, para

destacar que as “semelhanças” existentes entre elas eram o casamento com um João; o

fato de terem dois filhos - um menino e uma menina, de serem morenas, católicas e

terem preferência pela alta-costura europeia”. A notícia informava, ainda, que o que

mais as “aproximava” era o mérito de “aliarem à suave beleza o charme da

simplicidade”.

Na continuidade da narrativa, destacam-se os fatores que são considerados

decisivos para a projeção internacional da primeira-dama brasileira como “mais bonita”

do que a norte-americana: “Menor tempo de governo e dez anos menos de idade”, bem

como o estilo de vida de uma e outra: “A Sra. Kennedy, pretende, apenas, ser dona de

casa, enquanto a primeira-dama do Brasil, escolhida para dirigir a Legião Brasileira de

Assistência, entregou-se de corpo e alma às suas novas tarefas.” Para os leitores

compararem e, de certa forma, posicionarem-se sobre quem era, de fato, mais bela, de

cada lado da página da revista que comentava sobre ambas encontravam-se as seguintes

definições: “Jackie, charme francês numa personalidade norte-americana”; “Maria

Thereza, charme gaúcho, numa personalidade bem brasileira” (REVISTA FATOS &

FOTOS, 1961, p. 8).

De maneira objetiva, os atributos valorizados em uma e em outra como

“semelhantes” são as qualidades de esposa e mãe, que formatavam os modelos de

feminilidade dominantes dos países por elas representados e que elas representavam como

primeiras-damas. A valorização da estética da juventude, da “morenice”, bem como a

subjetividade religiosa proveniente do catolicismo permitem à imprensa caracterizá-las

como mulheres simples e charmosas, com personalidades distintas, em virtude da origem

de cada uma e de seu estilo de vida. Enquanto a norte-americana tinha a vida limitada ao

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ambiente familiar; a brasileira mostrava-se ativa, já que exercia atividades fora do lar, isto

é, presidir uma instituição, a Legião Brasileira de Assistência que, historicamente, esteve

atrelada ao primeiro-damismo (SIMILI, 2008). Nas entrelinhas, fica implícito que, pelo

fato de ser mais nova e ativa, a brasileira “superava” a concorrente norte-americana. Ao

analisar esse contexto, fica claro nas descrições que “[...] elas expressam uma dada noção

de conjunto, de qualidades, de atribuições e de estratégias expressivas, da qual são

indissociáveis” (BERGAMO, 2007, p. 110).

O gosto pela alta-costura europeia como elemento comum qualifica ambas com

os símbolos da distinção social da moda e como representantes do bom gosto. Embora

Paris não seja mencionada na comparação e na similaridade identificada entre Jackie e

Maria Tereza é a ela que a imprensa se refere, na medida em que era o centro da alta-

costura “[...] que, hipercentralizada, ditava moda, tendências, e, era mesmo tempo

internacional, seguida por todas as mulheres up to date do mundo” (LIPOVETSKY,

1989, p. 74).

A partir dos anos 1960, o sistema e o funcionamento da moda mudam

significativamente. As pistas das alterações processadas estão na história que

fundamenta as explicações para a mudança no modo de vestir da brasileira, mediante a

contratação de Dener, em 1963, como o seu costureiro oficial. Nela, as aproximações

entre Jackie e Maria Thereza constituem o fio condutor para justificar o envolvimento

da brasileira com a alta-costura.

Na memória fabricada pela imprensa, para enfrentar visualmente o estilo Jackie -

que visitaria o Brasil acompanhando o presidente Kennedy – Maria Thereza chama o

costureiro para produzir as peças que usaria nas solenidades sociopolíticas que

marcariam as agendas presidenciais. Com a finalidade de se aproximar do estilo Jackie -

que, à época, tinha adotado o uso de roupas assinadas por Oleg Cassini, estilista francês

radicado nos Estados Unidos – Maria Thereza, acompanhando a tendência instituída

pela prática da norte-americana, contrata o brasileiro.

Com suporte nas fontes impressas, Luiz André do Prado e João Braga (2011, p.

285) narram de que maneira Maria Thereza chegou até Dener e porque o escolheu como

seu figurinista. A história da visita fez que os especialistas em moda, uma novidade do

período, mandassem recados para a primeira-dama brasileira.

Fala-se que Maria Thereza já encomendou os seus vestidos para a agenda com os Kennedy com o francês Jackie Heim. Nós teríamos, então, um recado para a primeira-dama: a especialidade de Heim são

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os vestidos de noiva e jeune fille – ele não seria, portanto, o mais indicado. Em nossa opinião, um brasileiro poderia tomar conta do recado.

As versões, quando confrontadas com a empiria, abrem caminho para a

compreensão do que é caracterizado nas narrativas como fenômenos “naturais”, os quais

fazem referência à mudança nas estratégias de vestir das personagens, em particular, da

brasileira, concebida como alguém que seguia a influência de Jackie e que “escutava” o

que era sugerido pelos comentaristas de moda. Nesse momento, era usado como

argumento para explicar o que se constituiu em poderosa engrenagem e instrumento da

moda nacional o fato de ela vestir-se com as roupas nacionais e, por intermédio dessa

prática, divulgar as criações dos brasileiros.

Para explorar esses argumentos, investimos na análise da Revista Manchete de

maio de 1963, na qual a imagem da personagem foi utilizada pela imprensa na capa,

acompanhada das chamadas “Moda Paris em Brasília” e “Maria Theresa, madrinha das

debutantes”.

Figura 1: Capa da Revista Manchete.

Fonte: MANCHETE. Rio de Janeiro: Bloch, ano 11, n. 576, 4 maio 1963.

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Como escreveu Malfitano (2008, p. 64), “A capa, por exemplo, constitui-se de

uma imagem, a qual, junto com a indicação de temas tratados nas suas páginas, indica o

tipo de mulher que o impresso deseja atingir.” Em nossa leitura e interpretação, a

edição, dirigida às mulheres, singulariza um momento em que a alta-costura nacional foi

transformada em assunto da política. Uma espécie de matéria e de enfoque que

combinava com as características da Revista era “[...] noticiar assuntos variados -

política nacional e internacional, artes, vida social, cotidiano, esportes, variedades e

publicidade - dosando os conteúdos com informações, formação de opinião pública e

entretenimento.” O estilo visual adotado pelo periódico, orientado pelo uso de

fotografias como recursos visuais na produção das notícias, era um aspecto que

facilitava a comunicação dos fatos e dos acontecimentos narrados (MONTEIRO, 2007)

e, também, traço marcante da Revista, identificável na capa e nas páginas da edição

selecionada como objeto de análise.

Na capa, a imagem encantadora da beleza e elegância da primeira-dama ganha

forma nos traços de um rosto maquiado suavemente, que olha de forma discreta para a

leitora, deixando ver os detalhes do vestido que usava, um dentre os muitos criados por

Dener especialmente para ela. Como afirma Lipovestky (1989, p. 95), “A alta-costura é

uma organização que, sendo burocrática, emprega não as tecnologias da coação, mas

processos inéditos da sedução que inauguram uma nova lógica do poder.” Sedução esta

que aparece nas técnicas de comercialização dos produtos, “[...] apresentando modelos

em manequins vivos, organizando desfiles e espetáculos [...].” Mais profundamente, a

sedução opera pela embriaguez da mudança, pela multiplicação de protótipos e pela

possibilidade da escolha individual.

São as técnicas de sedução desenvolvidas pela alta-costura para capturar corpos e

almas favoráveis à moda brasileira que Maria Thereza invoca e comunica. Ao folhear as

páginas da Manchete, a experiência de leitura vivenciada pelas leitoras do passado na

página da matéria sobre a personagem-capa da revista era: “A primeira-dama da

elegância”, conceito acompanhado por esta descrição:

Quando D. Maria Teresa Goulart entrou no salão do Hotel Nacional, em Brasília, exibindo um belíssimo vestido branco, as centenas de pessoas ali presentes aplaudiram-na de pé. A primeira-dama do País presidiu, na semana passada, um dos mais elegantes acontecimentos sociais da nova Capital, durante o qual o costureiro Dener apresentou noventa modelos de sua coleção para o outono. Ao término do desfile, D. Maria Teresa recebeu as chaves de um automóvel DKW- Vemag, que será vendido ou leiloado em benefício da LBA. A esposa do Presidente da República convidou para a festa onze das setenta

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debutantes que a terão como patronesse, na próxima semana, no grande baile a ser realizado no Palácio Itamarati (promoção do colunista José Rodolpho Câmara de MANCHETE). Dener, aliás, criou um belíssimo vestido soirée ao qual deu o nome de ‘Debutante do Itamarati’ e que, apresentado pela manequim Mariela, foi muito ovacionado pelo público (REVISTA MANCHETE, 1963, p. 25).

O evento descrito foi um desfile de moda com as roupas de Dener, promovido

por Maria Thereza para as mulheres da elite de Brasília, com a participação das jovens

debutantes, o qual tinha entre suas finalidades angariar fundos para a Legião Brasileira

de Assistência, instituição que ela presidia como esposa do Presidente da República.

Essa posição social, inclusive, foi ocupada por todas as primeiras-damas, desde Darcy

Vargas, em 1942, nas cercanias do poder e na política assistencial.

O evento sinaliza para as permanências e mudanças que chancelam o campo da

moda nos anos 1960. No período, a realização de chás e festas beneficentes em clubes,

em hotéis e em vários espaços das sociabilidades femininas da elite, incluindo os

desfiles de moda, ocorria junto com os acontecimentos de grande porte, tais como as

Fenits, que, a partir de 1958 e até os anos 1980, passaram a ser anuais (DURAND,

1988, p. 76). Esses “acontecimentos” marcam o universo de privilégios e dos

privilegiados da alta cultura, fazendo circular no mesmo espaço “[...] aqueles indivíduos

que gozam do mesmo ‘privilégio’”de tomar parte dele pelo poder e prestígio

(BERGAMO, 2007, p. 103).

Entre os “privilegiados”, Dener e Maria Thereza encontram apoio para o reforço

dos símbolos de poder, prestígio e privilégio. O comentário de Dória (1998, p. 30) sobre

como o evento foi noticiado na imprensa é, naquele aspecto, esclarecedor: “[...] pela

primeira vez em nossa história, a esposa do presidente prestigia oficialmente um criador

da moda brasileira. E posso afirmar que Dener merece realmente esse privilégio, pois os

modelos exibidos são de categoria internacional.”

Uma mulher dedicada ao Brasil, às causas sociais (dos pobres), às jovens

(debutantes) e à moda brasileira (de Dener). Eis a imagem que se fabrica e difunde para

Maria Thereza, revestindo-a com os símbolos de poder e prestígio para aglutinar em

torno de si as mulheres da elite e influenciar os segmentos femininos sobre o que era ser

brasileira. Do lado do costureiro há que ser considerado que, ao costurar para a

primeira-dama, ele encontrava um corpo e uma imagem para viabilizar a projeção da

moda brasileira no cenário nacional e internacional, para sinalizar que, aqui, havia uma

moda nacional, “feita pelos brasileiros e para as brasileiras”.

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Essa face é exposta quando se considera que, nesse período, a articulação da alta-

costura com a indústria têxtil e de confecções alimenta o surgimento do sistema prêt-à-

porter, fenômeno observado desde fins dos anos 1950, processo que se intensifica e

fornece as bases para o investimento na criação de uma identidade para a moda

nacional, ou seja, de uma moda “feita aqui e para as brasileiras”. Acirram-se, assim, os

investimentos na criação de representações que pudessem caracterizar uma identidade

para a moda brasileira que vinha desde o fim da década de 1920. O propósito desses

investimentos era romper com as influências estético-estilísticas que haviam marcado a

história da moda no país, contaminada, durante séculos, pela cópia e adaptação de

modelos de costureiros renomados da Europa, em particular, da França e, a partir dos

anos 1930, também, dos Estados Unidos (NEIRA, 2008).

Os investimentos e os benefícios recíprocos na moda brasileira que se

vislumbram na configuração do encontro entre Dener e Maria Thereza; bem como os

empréstimos e as trocas simbólicas entre roupas e aparências para fazer funcionar a

moda nacional, projetando-a, divulgando-a, incentivando as mulheres da elite a se

transformarem em consumidoras do que era feito pelos brasileiros, é o que subjaz dos

noticiários e em comentários como este: “Naquele ano de 1963, Maria Teresa figurou

na lista das dez mulheres mais elegantes do país, segundo a eleição rigorosa de Jacinto

de Thormes, inventor desse termômetro da moda”, escreveu Dória (1998, p. 29).

A projeção era evidência necessária às subjetividades das mulheres, constituindo-

se em selo de garantia de que, vestidas com as roupas nacionais, elas poderiam ser tão

chiques como as mulheres de outros países; de que podiam ser tão glamourosas e

sedutoras quanto Maria Thereza. Esses foram aspectos marcantes da cultura da moda

nos anos 1960 que condicionaram a relação de consumo de bens e produtos como

cosméticos e roupas.

O resultado dos investimentos recíprocos entre Dener e Maria Thereza na moda

nacional pode ser encontrado na biografia do costureiro:

Eu criei a moda brasileira, um estilo próprio e nosso, que fez com que nossas grandes senhoras não precisassem se vestir na Europa. Eu fiz os brasileiros acreditarem na moda, e figurinista passou a ser assunto. Lancei uma imagem e hoje ninguém tem vergonha de dizer que se veste no Brasil. Antes de mim, para ser elegante, precisava usar etiqueta de fora. Lembro-me de uma senhora que só usava Cardin, que não lhe fazia senão cópias baratas de Courrèges, o que, aliás, é o seu forte. Usavam cópias importadas e com grandes assinaturas, só porque a etiqueta era francesa (ABREU, 2007, p. 99).

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O significado da declaração de Dener acerca dos papéis que ele e as suas criações

desempenharam na estética da moda nacional adquire contornos próprios quando

voltamos o olhar para a Revista Manchete e folheamos as páginas até o ponto da notícia

“Moda Paris em Brasília”:

Quando Brasília foi inaugurada, estadistas de todo o mundo interpretaram a sua importância política e os arquitetos a sua beleza plástica. Já os grandes costureiros franceses viram as colunas do Alvorada como inspirador da moda. Eles não se aventuraram a lançar uma ‘Coleção Brasília’, mas mandaram alguns belos modelos e manequins à nova Capital, ‘para ver como ficam nossas criações naquele insólito cenário’. O resultado foi excelente com a elegância da primavera europeia subitamente transportada para o nosso planalto (REVISTA MANCHETE, 1963, p. 67).

Para divulgar a moda internacional, os cenários, os espaços do poder e da política

- as colunas do Congresso Nacional, a praça dos três poderes, com destaque para as

estátuas - servem de paisagem para fazer desfilar, na forma de imagens, as roupas, os

modelos de Yves Sant-Laurent, Jean Patu, Madeleine de Rauch, Renée Lise, Georgette

Rênal, Yorn, Jeanne Lanvin, Jacqueline Godard, Anny Blatt, Lola Prusac, Grés, assim

justificados:

A imprensa europeia se referiu às coleções de primavera, lançadas em Paris, como ‘a explosão dos taiulleurs brancos’. Realmente, todos os famosos costureiros apresentaram dezenas de modelos nessa côr, pois, conforme afirmam, ‘estamos cansados de ver mulheres jovens e bonitas cobertas de tonalidades sombrias’. Por esta mesma razão, eles praticamente aboliram o preto, dando preferência aos tecidos claros e pastéis. Esta revolução muito beneficiará as elegantes brasileiras. A moda parisiense da primavera lhes servirá como uma luva para o próximo inverno (REVISTA MANCHETE, 1963, p. 68).

A justaposição das reportagens do desfile de Dener, promovido por Maria

Thereza, e dos costureiros de Paris, nos palcos de Brasília, fornecem as pistas de que a

capital do país transformou-se em espaço de disputas entre a moda nacional e

estrangeira com centro na alta- costura e na conquista do mercado tanto interno quanto

externo. No mercado interno brasileiro, a articulação da alta-costura com a indústria

têxtil e de confecções alimenta o surgimento do sistema prêt-à-porter; assim, o mercado

de consumo diversifica-se e amplia-se com a oferta de matérias-primas naturais

(algodão) e de fios sintéticos. Nesse contexto, a alta- costura, como artesanato de luxo

que produz modelos únicos e sob medida para clientes da elite, é marcada por algumas

permanências e mudanças, como a manutenção da estratégia de criação de roupas

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exclusivas para clientes que podem pagar por vestimentas provenientes do prestígio de

vestir algo feito sob medida, de acordo com o gosto e o estilo da consumidora, e a

absorção das peças de luxo pelo sistema do prêt-à-porter, em boutiques e espaços

destinados à venda de produtos para um grupo seleto de mulheres que podiam pagar

pelo custo delas.

Crane (2006, p. 274) ajuda a compreender outros significados embutidos na

passagem da alta-costura para o prêt-à-porter. Na leitura da autora, embora ela aborde

aspectos da moda norte-americana e europeia, no final do século XIX e início do XX, o

sistema da moda produziu estilos de roupa que expressavam a posição social das

mulheres que a vestiam, ou àquela a qual aspiravam. Implícitas nas regras de vestir do

período estavam as normas sobre identidade sexual, feminilidade e comportamento. “A

moda expressava ideais sociais de atitude e comportamentos femininos”. Assim, a moda

de consumo, que substituiu a de classe, em vez de orientar para o gosto das elites,

incorpora interesses de grupos sociais de todos os níveis.

Nesse contexto, um único gênero da moda – a alta-costura–foi substituído por

três categorias de estilo: a moda de luxo, o prêt-à-porter e a moda de rua. A primeira é

criada por estilistas de diversos países; a segunda, pelas confecções que vendem

produtos parecidos entre si, anunciando seus produtos em catálogos sofisticados ou

mesmo nas roupas. Vale ressaltar que, para o prêt-à-porter, a principal marca não é o

estilo, mas uma “imagem que possa competir no mundo de imagens, disseminadas entre

as massas que formam a cultura de mídia” (CRANE, 2006, p. 274), em que o

consumidor é atraído por meio da publicidade. Nessa época, as representações da moda

eram validadas e divulgadas por meio das imagens de artistas do cinema, da televisão

dos esportes etc. Finalmente, a moda de rua é criada por subculturas “[...] urbanas e

oferece muitas idéias para modismos e tendências” (CRANE, 2006, p. 274).

No Brasil dos anos 1960, o sistema da alta-costura e do prêt-à-porter

acompanham a tendência mundial em suas especificidades. Maria Claudia Bonadio

(2010) mostrou em diversos estudos que, naqueles anos, constituiu-se no Brasil o

campo da “moda nacional”, com um mercado de produção e consumo de roupas que

teve na Rhodia, uma empresa instalada no país, um dos ícones para o desenvolvimento

do parque industrial e do setor de confecções. Entre as estratégias da Rhodia para

majorar a produção e o consumo de roupas com os filamentos sintéticos de que era

produtora e, ao mesmo tempo, estabelecer concorrência com os tecidos brasileiros em

fibras naturais e os tecidos finos importados, estiveram a implementação de uma

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política de divulgação nas revistas femininas, de editoriais de moda, reportagens e

anúncios, bem como a realização de desfiles de moda.

Bonadio (2010) mostrou, ainda, que a Rhodia, para garantir a fatia de mercado

entre as confecções e indústrias têxteis, procurou desenvolver mecanismos que

penetrassem “no gosto dos brasileiros”. Um deles, e talvez o principal, conforme

apontado pela autora, foi o de tentar vender a ideia de que a empresa criava uma “moda

nacional” com qualidade internacional. Nesse projeto, para conferir “brasilidade” aos

seus produtos e marcas, a empresa produziu textos e imagens publicitárias com os

“signos de brasilidade”. Os cenários para as fotos foram buscados em elementos do

patrimônio histórico (espaços arquitetônicos, estampas e cores), os quais visavam

destacar a “riqueza e a beleza natural”, o “exotismo” e os “motivos edênicos”. O projeto

de “invenção da moda brasileira” desenvolvido pela empresa seguia, assim, o modelo da

alta-costura e envolvia, inclusive, a contratação de costureiros representantes da alta-

costura brasileira para criar coleções de roupas para a Rhodia. Entre eles, Dener foi uma

das tônicas das estratégias.

Fato é que, em um único exemplar de Revista, dois modelos de moda disputavam

as consumidoras: o nacional e internacional. Neles, encontravam-se as estratégias das

indústrias têxteis e de confecções para movimentar o mercado de tecidos e de roupas

prontas para vestir. Como escreveu Baldini (2005, p. 24), apoiando-se na reflexão de

Alberoni (1964, p. 29),

[...] a moda, no que diz respeito ao vestuário feminino, não provém de imitações das ‘senhoras’ in loco ou alhures, mas das revistas de moda directamente para as costureiras e para as jovens que, ao seguirem a moda, participam do novo mundo.

Opções de roupas e de elegâncias não faltavam. Estavam na Revista Manchete,

na Manequim e em outros periódicos, bem como nas roupas de Maria Thereza e nas

coleções de Dener.

Fato é, também, que, se considerarmos a avaliação de Dener sobre os avanços na

moda brasileira dos anos 1960, pode-se concluir que os mecanismos desenvolvidos no

período, com o apoio de Maria Thereza, foram fundamentais para que a estética das

roupas brasileiras agradasse as mulheres da elite, alterando os comportamentos de

consumo delas e dos segmentos femininos, consoante ao modelo de influência de “cima

para baixo” (SIMMEL, 1998; CRANE, 2011), ou seja, aquele proveniente das camadas

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dominantes e as subsequentes apropriações, assimilações e acomodações geradas por

imitações feitas pelos outros segmentos sociais de mulheres.

Há que ser considerado, ainda, os estratagemas desenvolvidos pela moda nacional

no que tange à estética das roupas, ou o que podemos denominar de recursos

empregados, de modo que ela fizesse sentido para as mulheres como portadora de

diferencial quando comparada com o que era produzido em outros países. Com relação

ao assunto, consideramos que Maria Thereza foi peça chave.

Em 1963, Dener, por ocasião do primeiro encontro com aquela que se tornaria a

sua modelo e divulgadora, Maria Thereza, se referindo a ela e ao guarda-roupa que

criaria para o encontro com os Kennedy, disse: “Acho muito agradável costurar para

Maria Teresa. Ela possui medidas perfeitas”, ao que acrescenta:

Seu guarda-roupa, para os diversos atos da visita, será composto de oito vestidos, em cores claras [...] os tons que melhor combinam com seu tipo moreno, bem brasileiro, são branco, rosa, azul-claro, verde-água, turquesa, champanhe e dourado. O gênero será a simplicidade (DÓRIA,1998, p. 29).

Medidas perfeitas e o tipo moreno de Maria Thereza transformam-se em signos

que definem a mulher brasileira como diferente, em função da morenice e da

sensualidade das formas. Essa é a definição que promove a moda nacional e contribui

para fabricar os processos de identificação entre as roupas feita por brasileiros e para as

mulheres e, por conseguinte, uma grife e uma identidade para a moda do país. Diríamos

que, a partir dos anos 1963, os princípios de uma moda brasileira, defendidos desde os

anos 1920, que propunham a criação de uma estética e de uma estilística capaz de

contemplar a realidade brasileira e romper com as influências internacionais, ganha

força entre finais dos anos 1950 e durante os 1960, com o intuito de “revelar os aspectos

vivos de nossa cultura” e “[...] estimular a autonomia de nossa moda como expressão

das reais necessidades populares” (NEIRA, 2008). Nesse contexto, encontram-se, no

corpo de uma personagem os símbolos necessários para configurar representações da

brasilidade das mulheres e das roupas.

Importa destacar ainda que a crítica aos modelos de beleza importados que

definiam a estética feminina mediante a valorização da mulher loira, por meio da qual a

influência europeia e norte americana se fazia sentir sobre os comportamentos das

brasileiras, foi objeto da reflexão de Gilberto Freyre (1987, p. 34), levando-a a

reivindicar por modas que se “[...] ajustem a forma e cores de mulheres bronzeadas pelo

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sol de Copacabana, à revelia de modas puramente européias ou puramente ianques. Ou

puramente albinóide.”

Logo, é de se pensar que a definição de um modelo de beleza fixado a partir de

um ponto, isto é, da “morena” Maria Thereza Goulart, foi crucial para que a estética

feminina da mulher brasileira começasse a ser valorizada pela moda. Do exposto,

conclui-se que a história da moda brasileira e feminina encontrou em Dener e Maria

Thereza (e vice-versa) um ponto de apoio que possibilitasse compreender a cultura das

aparências para definir o nacional, em particular, a beleza da mulher brasileira e os

modos pelos quais as roupas podiam contribuir em sua valorização. O que o figurinista

e a cliente comunicam são imagens de roupas feitas por brasileiros e usadas por

brasileiras que se tornam estratégicas no mundo de imagens de moda e na formação das

subjetividades femininas prêt-à-porter, ou seja, na maneira como as brasileiras

passaram a se olhar e a se ver.

Em suma, o que as roupas de Dener usadas por Maria Thereza comunicam é que

a moda brasileira podia destacar e valorizar a beleza da mulher brasileira; que as roupas

feitas por brasileiros podiam tornar as mulheres tão elegantes quanto aquelas que viviam

e se vestiam em outros países. Era uma moda feita aqui, para a mulher daqui, com os

teores da brasilidade. Esse era o diferencial com o qual Maria Thereza concordava e

alimentava, porque se vestia com a moda Dener.

Destarte, Maria Thereza não apenas vestiu as roupas de Dener, mas, com elas,

viabilizou e disseminou um projeto de moda nacional brasileira, com as noções de

corpo, beleza e elegância que contribuíram para modelar as subjetividades das mulheres

e a memória visual de uma época. Se a diplomacia é inerente ao poder e à política, o

guarda-roupa de Maria Thereza transformou-se em modelo diplomático na promoção da

mulher e da moda brasileira tanto no cenário nacional quanto no internacional.

Portanto, se em algum momento Dener disse “Eu sou a moda brasileira”, Maria

Thereza respondeu: “Eu sou a mulher brasileira” ou uma representação delas e para

elas.

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“s”. Optamos por usar o formato do nome com “z”, respeitando-se, porém, o modo como foi encontrado nas fontes.

Artigo recebido em 01/10/2013. Aprovado em 11/12/2013.