1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X “MARCHAREMOS ATÉ QUE TODAS SEJAMOS LIVRES”: UMA ANÁLISE DA MARCHA DAS VADIAS RECIFE Marília Nascimento 1 Juliana Trevas 2 Resumo: Desde 2011, a Marcha das Vadias leva milhares de mulheres a ocuparem as ruas de diversas cidades brasileiras. É inegável a importância alcançada pela Marcha. Sua capacidade de mobilização e o uso das novas tecnologias de comunicação são pontos essenciais para sua existência. Entretanto, é a visibilidade das pautas feministas, cujo tema central é a luta pela não culpabilização da vítima e pelo fim da cultura do estupro, responsável pela grande participação de mulheres. A primeira Marcha das Vadias em Recife aconteceu em 2011. De lá para cá, diferentes características são observadas. No seu primeiro ano, mulheres brancas, universitárias e de classe média predominavam assim como uma enorme presença de homens era percebida. Todavia, ao longo dos anos, o perfil das participantes da Marcha das Vadias - Recife foi se alterando. Ao mesmo tempo que o grupo que a organizava passou por mudanças referentes à necessidade de ampliar sua agenda de ação política coletiva, consolidando-se enquanto coletivo feminista autônomo, autogestionado, horizontal, antirracista, antissexista, antiproibicionista e anticapitalista. Refletindo sobre essas questões, este artigo busca compreender os principais fatores que influenciaram este processo de resistência e continuidade no qual a Marcha das Vadias - Recife está inserida. A fim de alcançar esse objetivo, valemo-nos de nossas próprias experiências como integrantes do Coletivo Marcha das Vadias Recife além dos questionários respondidos por outras integrantes. Palavras-chave: movimentos feministas, Marcha das Vadias, organização coletiva 1. Em movimento e ação Movimento, união e resistência são palavras-práticas que acompanham as mulheres há muito tempo na história da sociedade. Elas se dão as mãos para resistir, reivindicar direitos e melhor viver. As mulheres negras lutaram para se libertar das correntes e dos açoites da escravidão e foram as pioneiras nas lutas femininas contra a opressão (Davis, 2016). As mulheres brancas, burguesas e proletárias lutaram pelo direito ao voto, à educação e por melhores condições de trabalho (Perrot, 2006, Wollenstonecraft, 1977). As mulheres camponesas e indígenas lutaram e ainda lutam pelo direito à terra. As mulheres em todas as suas especificidades e marcadores sociais reivindicaram o direito a ter uma vida digna e justa. Igualmente fizeram as mulheres canadenses quando foram às ruas reivindicar o direito de não 1 Integrante do Coletivo Marcha das Vadias Recife, Mestranda em Sociologia/UFPE, Recife-Brasil. 2 Integrante do Coletivo Marcha das Vadias Recife, Doutoranda em Sociologia/UFPE, Recife-Brasil.
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“MARCHAREMOS ATÉ QUE TODAS SEJAMOS LIVRES”: UMA ANÁLISE DA ... · escravidão e foram as pioneiras nas lutas femininas contra a opressão (Davis, 2016). As ... suas especificidades
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
“MARCHAREMOS ATÉ QUE TODAS SEJAMOS LIVRES”: UMA ANÁLISE DA
MARCHA DAS VADIAS RECIFE
Marília Nascimento1
Juliana Trevas2
Resumo: Desde 2011, a Marcha das Vadias leva milhares de mulheres a ocuparem as ruas de
diversas cidades brasileiras. É inegável a importância alcançada pela Marcha. Sua capacidade
de mobilização e o uso das novas tecnologias de comunicação são pontos essenciais para sua
existência. Entretanto, é a visibilidade das pautas feministas, cujo tema central é a luta pela
não culpabilização da vítima e pelo fim da cultura do estupro, responsável pela grande
participação de mulheres. A primeira Marcha das Vadias em Recife aconteceu em 2011. De lá
para cá, diferentes características são observadas. No seu primeiro ano, mulheres brancas,
universitárias e de classe média predominavam assim como uma enorme presença de homens
era percebida. Todavia, ao longo dos anos, o perfil das participantes da Marcha das Vadias -
Recife foi se alterando. Ao mesmo tempo que o grupo que a organizava passou por mudanças
referentes à necessidade de ampliar sua agenda de ação política coletiva, consolidando-se
enquanto coletivo feminista autônomo, autogestionado, horizontal, antirracista, antissexista,
antiproibicionista e anticapitalista. Refletindo sobre essas questões, este artigo busca
compreender os principais fatores que influenciaram este processo de resistência e
continuidade no qual a Marcha das Vadias - Recife está inserida. A fim de alcançar esse
objetivo, valemo-nos de nossas próprias experiências como integrantes do Coletivo Marcha
das Vadias Recife além dos questionários respondidos por outras integrantes.
Palavras-chave: movimentos feministas, Marcha das Vadias, organização coletiva
1. Em movimento e ação
Movimento, união e resistência são palavras-práticas que acompanham as mulheres há
muito tempo na história da sociedade. Elas se dão as mãos para resistir, reivindicar direitos e
melhor viver. As mulheres negras lutaram para se libertar das correntes e dos açoites da
escravidão e foram as pioneiras nas lutas femininas contra a opressão (Davis, 2016). As
mulheres brancas, burguesas e proletárias lutaram pelo direito ao voto, à educação e por
melhores condições de trabalho (Perrot, 2006, Wollenstonecraft, 1977). As mulheres
camponesas e indígenas lutaram e ainda lutam pelo direito à terra. As mulheres em todas as
suas especificidades e marcadores sociais reivindicaram o direito a ter uma vida digna e justa.
Igualmente fizeram as mulheres canadenses quando foram às ruas reivindicar o direito de não
1 Integrante do Coletivo Marcha das Vadias Recife, Mestranda em Sociologia/UFPE, Recife-Brasil. 2 Integrante do Coletivo Marcha das Vadias Recife, Doutoranda em Sociologia/UFPE, Recife-Brasil.
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serem culpabilizadas por serem estupradas.
No início de 2011, no Canadá, aconteceram diversos casos de estupro contra as
mulheres dentro do campus da Universidade de Toronto. Em resposta a esse contexto
violento, um policial, numa palestra de segurança, falou que: “as mulheres evitassem se vestir
como vadias (sluts, no inglês original), para não serem vítimas de estupro”. A partir dessa
fala, que representa um discurso forte de culpabilização da vítima em casos de crime, ocorreu,
um protesto em abril3, deste mesmo ano, que levou milhares de pessoas às ruas contra o
machismo, a cultura do estupro e a culpabilização das vítimas, em casos de violência sexual,
devido a suas roupas e comportamentos. Esse movimento rompeu as barreiras geográficas
rapidamente devido à capacidade difusora das redes sociais e pela legitimidade de suas
pautas, expandiu-se por várias cidades do mundo.
Em Recife, há sete anos, a Marcha das Vadias4 convoca milhares de mulheres a
ocuparem as ruas, dando visibilidade a diversas pautas do movimento feminista. A Marcha
atrai em sua maioria mulheres jovens que estão tendo o primeiro contato com o feminismo e
assume um importante papel no calendário nas lutas sociais no estado de Pernambuco. De
2011 até os dias atuais, diferentes características são observadas no que se refere ao perfil5 das
participantes. Nos primeiros anos, mulheres jovens, brancas, universitárias e de classe média
predominavam assim como uma enorme presença de homens era percebida. Todavia, ao
longo dos anos, tanto o perfil das participantes quanto o grupo que a organizava passou por
mudanças relacionadas às necessidades de ampliar sua agenda de ação política coletiva,
consolidando-se enquanto um coletivo feminista autônomo, autogestionado, horizontal,
antirracista, antissexista, antiproibicionista e anticapitalista. Refletindo, portanto, sobre essas
questões, este artigo busca compreender os principais fatores que influenciaram este processo
de resistência e continuidade no qual a Marcha das Vadias - Recife está inserida.
Nesse sentido e a fim de alcançar esse objetivo, trabalhamos metodologicamente com a
pesquisa qualitativa, que nos ajudou a identificar variáveis não palpáveis, como valores,
3 https://pt.wikipedia.org/wiki/Marcha_das_Vadias 4 A Marcha das Vadias Recife não tem articulação com outras Marchas que ocorrem no Brasil ou no mundo. A
sua realização é feita por um grupo de mulheres que se organizam localmente. Suas origens têm um mote em
comum, mas seus processos de organização, datas e decisões são independentes. 5 O perfil das pessoas participantes da Marcha das Vadias Recife foi construído a partir da análise das notícias do
site do G1 Pernambuco, que foi o veículo que desde 2011 notícia esse protesto, com exceção dos anos de 2015.
E a partir da análise das fotos que registraram esses sete anos de Marcha.
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significados e crenças desse fenômeno social. Bem como, coloca-nos num lugar de contato
direto com as pessoas, lugares e processos. (Lage, 2013). Segundo Silva (2016), faz-se
necessário, para se entender as identidades coletivas, que se busque compreender “as relações
interpessoais e o investimento emocional das pessoas participantes dos movimentos, uma vez
que interpretar as mobilizações apenas a partir da racionalidade é insuficiente (Silva, 2016, p.
44) ” . Desta forma, na coleta de dados foram utilizados questionários com integrantes do
atual coletivo da Marcha das Vadias Recife.
Segundo Ávila (2007), Rago (1998) e Olesen (2006), as mulheres devem construir
teorias feministas sobre e para as mulheres. Por isso, como integrantes do coletivo Marcha
das Vadias Recife, reafirmamos a importância da realização deste trabalho porque a história
deve ser contada pelas pessoas que a produzem e devem refletir suas práticas e lutas diárias. A
relevância de nós mulheres escrevermos sobre nossas próprias experiências e produzirmos
conhecimento científico sobre nossas vivências políticas é também um ato emancipatório e de
resistência. É “ser-para-si”, como diz Lagarde (1996). Ser protagonista, principalmente, nos
processos de auto-organização e ações coletivas de grupos considerados menos tradicionais
como a Marcha das Vadias Recife é também proporcionar visibilidade às nossas lutas
cotidianas contra esta sociedade sexista, misógina, racista e lgbtfóbica.
Este artigo também é um instrumento para fortalecer o movimento feminista e
contribuir para uma reflexão coletiva sobre nossa luta, representando uma ruptura na
concentração de produção científica sobre a Marcha das Vadias no eixo sul-sudeste do
país6. Organizamos-o em três partes: 1) discussão teórica sobre a Marcha das Vadias como
um movimento social, 2) análises realizadas com base nos questionários e 3) reflexão sobre os
achados dessa pesquisa e os desafios que se colocam a partir deles.
2. Marcha das Vadias Recife: a história de um movimento social
Muitas perguntas são feitas até hoje em torno da Marcha das Vadias Recife. É um
6 Dado que num levantamento bibliográfico realizado por meio da plataforma digital do Google, encontramos
vários artigos - Rassi (2012), Helene (2013),Ferreira (2013) , Chaves (2013), Galetti (2014), Gomes (2014),
Valente e Marciniki (2014), Martini e Puhl (2015), Oliveira (2015) - que falam sobre a Marcha das Vadias que
abordam temas como corpo da mulher e cidade, mídia digital e a análise do discurso das frases ditas pelas
mulheres nas Marchas das Vadias no Brasil. Entretanto nenhum dos artigos falavam especificamente sobre a
Marcha das Vadias Recife, alguns, apenas mencionaram a existência.
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protesto legítimo? É um movimento social? É feminista? É efêmero? Antes de adentramos
para as questões teóricas, pensamos em fazer um breve resgate histórico. Acreditamos que é
possível analisar a Marcha das Vadias Recife em três momentos: 1) momento inicial 2)
momento transição 3) momento de consolidação.
Inicialmente7, a Marcha foi organizada por um homem, chamado Jesus Tricolor, que
criou o evento no facebook convidando as pessoas para a primeira Marcha que ocorreu em
2011. Contudo, as mulheres se apropriaram da organização do protesto, afastando esse
personagem dos holofotes. Essas mulheres se consideravam feministas, mas na época não
estavam organizadas coletivamente entre si e nem em outros coletivos. Em 2012, esse grupo
de mulheres permaneceu o mesmo e foi afinando as propostas e as ideias em relação a
realização da Marcha. Em 2013, momento que estamos chamando de transição, esse grupo
decidiu se coletivizar e criar uma carta manifesto além de propor debates preparatórios para
dialogar com a população sobre o que era Marcha e quais suas propostas. Em 2014, esse
grupo começou a se alterar. Algumas mulheres saíram, outras entraram. Foi um momento de
incertezas e dificuldades, apenas três integrantes permaneceram no coletivo ao longo deste
ano. Em 2015, começou-se a sentir a necessidade de fazer mais, de ampliar as ações para além
dos debates preparatórios. De fato, pensou-se em se fortalecer enquanto coletivo, pensando na
formação política para afinar os pensamentos e posicionamentos políticos do coletivo. Em
2015, a convite de algumas integrantes, outras mulheres entraram no “coletivo” para
organizar a Marcha de 2015 e deu-se início uma tentativa de consolidação desse coletivo.
Neste mesmo ano, um fato foi determinante para que essa consolidação fosse colocada em
prática. No decorrer do Ato da Marcha na Avenida Conde da Boa Vista, as mulheres sofreram
ataques machistas violentos, resultando em pessoas feridas. A partir desse acontecimento,
deu-se início a um processo de reflexão das ações, das falhas e das ausências presentes na
prática política do coletivo. Em abril de 2016, aconteceu a primeira formação política na qual
diversas problemáticas foram abordadas, tais como: anticapitalismo; horizontalidade;
autogestão; luta antirracista; antiproibicionista; abolicionista e a luta antissexista.
Essa formação política tinha como objetivo não só alinhar as pautas políticas que o
7 O resgaste histórico da realização da Marcha das Vadias no Recife e o processo de criação e consolidação do
coletivo que a organiza foi feito com base nas conversas informais com outras integrantes, nas nossas
experiências e memórias como integrantes deste coletivo. E também através das análises de notícias do site do
g1 em Pernambuco e das fotos que registram esses 7 anos de Marcha das Vadias Recife.
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coletivo apoiava, mas também propiciar um espaço político no qual as mulheres que
acreditavam nessas pautas pudessem também construir o coletivo. O resultado foi que o
coletivo cresceu de cinco para dezoito mulheres. E o ano de 2016 foi de consolidação.
Construímos várias ações (panfletaço, cine debates nas escolas ocupadas na região
metropolitana de Recife, rodas de diálogos, debates preparatórios), ajudamos a organizar os
atos unitários8 do Oito de março, 28 de setembro, jornada de enfrentamento ao racismo,
contribuímos com o registro do evento Cores Femininas9 assim como de rodas de diálogo,
bem como participamos ativamente dos processos organizativos do Ocupe Passarinho10,
oferecendo oficina de produção de zine para as crianças e adolescentes da comunidade.
Diante da breve história da Marcha das Vadias Recife, de suas transformações e das
atividades realizadas, utilizamos a teoria dos movimentos sociais para analisar nossa
construção e movimentações. Tarrow (2009) define os movimentos sociais quando indivíduos
conseguem se utilizar de oportunidades políticas e repertórios de ação por meio das redes
sociais e recorrem a objetivos comuns para orientar a ação contra seus opositores. Assim
quando há: “(...)desafios coletivos baseados em objetivos comuns e solidariedade social
numa interação sustentada com as elites, opositores e autoridade” (Tarrow, 2009, p.21) forma-
se uma identidade coletiva que é construída em prol de objetivos e interesses comuns. Desta
forma, segundo Tarrow, para ser um movimento social é preciso ter um objetivo comum, ou
seja, um motivo que agregue pessoas contra algo ou alguém (cultural, legislativo, institucional
ou contexto). Contudo, este autor afirma que o ponto presente na maioria dos movimentos
sociais é o interesse. É justamente o fato dos participantes reconhecerem os interesses comuns
e construírem um sentimento de solidariedade ou identidade em torno deles. Tarrow afirma
que só é movimento social quando a ação coletiva é sustentada, isto é, quando deixa de ser
apenas um episódio de confronto. Percebe-se, portanto, um elemento importante referente à
8 Os atos unitários são reconhecidos historicamente pela sociedade pernambucana por serem organizados por
movimentos de mulheres e feministas já consolidados na cena feminista há décadas, como o Fórum de Mulheres
de Pernambuco. 9 O Cores Femininas surgiu do movimento das mulheres grafiteiras e artistas que formam o Cores do Amanhã,
uma ONG que atua no bairro do Curado próximo ao complexo prisional Aníbal Bruno. As mulheres sentiram a
necessidade de terem seus espaços e realizam este evento há seis anos, contando com a participação de mulheres
de vários estados e países latinos. 10 Ocupe Passarinho é uma ação coletiva realizada pelo grupo Espaço Mulher de Passarinho (bairro periférico do
Recife) em parceria com outros movimentos, coletivos e organizações de mulheres e feministas. O Espaço
Mulher é um grupo de mulheres feministas populares existe desde década de 1990 e que se organiza também
dentro do Fórum de Mulheres de Pernambuco - FMPE.
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duração temporal. A identidade coletiva é formada e passa a existir de forma mais contínua
para seus integrantes.
De acordo com essa definição e inserindo novos elementos, Gohn (2011), argumenta
que para ser um movimento social é preciso possuir um caráter sócio, político e cultural que
organiza e expressa suas demandas por meio de diversos tipos de estratégias. E deve também
dispor das seguintes características específicas: ter uma identidade, ter um opositor, articulam
e fundamentam-se em um projeto de vida e de sociedade, organizam e conscientizam a
sociedade, apresentam conjuntos de demandas via práticas de pressão e mobilização. São
contínuos e permanentes, não surgem apenas por reação, mas também por meio de uma
reflexão da sua própria experiência. Ademais, segundo Alonso (2009), o movimento feminista
está inserido dentro dos novos movimentos sociais, defendendo novas formas de participação,
gestão e articulação. Estaria, por isso, afastado das influências dos partidos políticos,
voltando-se assim para a “afirmação de identidades e para a preservação da autonomia”
(Alonso, 2009, p.63).
Silva e Camurça (2010) também afirmam que o feminismo está inserido dentro do
campo dos movimentos sociais. Contudo, elas demarcam que o feminismo está aliado a um
caráter democrático e popular, ou seja, está preocupado com as transformações sociais,
baseando-se em articulações com outros movimentos sociais do mesmo campo político com
intuito de fortalecer sua característica autônoma e seu projeto político de sociedade. Desta
forma, percebe-se que as pautas não são fixas e adequam-se ao contexto de cada sociedade.
As pautas trazidas pelos movimentos feministas são diversas e, muitas também, são as
maneiras de operacionalizar seus objetivos. Entretanto, como explica bell hooks: “desafiar a
opressão sexista é uma etapa crucial na luta para a eliminação de todas as formas de opressão”
11 (2015, p.37). Dessa forma, as pautas trazidas pela Marcha das Vadias Recife não se
restringem à autonomia do corpo das mulheres e ao fim da cultura do estupro. Mas, também,
às problemáticas referentes ao racismo, ao sistema capitalista, ao sistema prisional e às leis e
estruturas que sustentam as desigualdades observadas na sociedade brasileira somam às
pautas que buscam a autonomia do corpo feminino e o fim da violência sofridas por esses
corpos. Pode-se observar, portanto, que segundo Silva e Camurça (2010), a Marcha das
11 Tradução livre: “challenging sexist oppression is a crucial step in the struggle to eliminate all forms of
oppression (2015, p.37)”
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Vadias Recife integra o feminismo contemporâneo12. É justamente essa necessidade de
enfrentar diversas formas de opressão, muitas vezes refletidos nas diferenças e nos conflitos
internos que faz o movimento feminista plural. Esta tensão é, portanto, uma fonte para
constantes reflexões e aprendizagens que surgem nas práticas e no fazer coletivo. A Marcha
das Vadias Recife percebe essa tensão e traduz esse processo nas pautas plurais que abraça.
Ademais, as Marchas das Vadias também têm sido associadas frequentemente a um “novo
feminismo”, característico do século XXI, por desafiar estruturas sociais opressoras por meio
de diferentes formas de comportamentos de suas manifestantes durante a Marcha. O “novo
feminismo” atribuído às Marchas seria expressão de um feminismo irreverente e ousado, que
usa o corpo como forma de expressão e como bandeira da liberdade (Martino, 2013). A
Marcha das Vadias Recife contribui, portanto, para o movimento feminista pelas diversidades
de suas pautas, sua constante conexão e reflexão com assuntos contemporâneos e na forma
pela qual as reivindica.
3. Caminhos e Achados
Com base nas orientações conceituais e estruturais de Günther (2003), optamos por
elaborar um questionário autoaplicável via e-mail, pois nos permitiu analisar a opinião das
pessoas entrevistas. A construção do questionário se deu por meio da ferramenta do Google
drive chamada Formulário Google, que permite que as respostas sejam computadas
instantaneamente, facilitando a análise dos dados. Formulamos vinte e sete questões, na qual a
metade refere-se ao perfil socioeconômico das entrevistas, sendo a outra metade perguntas
relacionadas a “entrada” no movimento feminista, sua relação com a Marcha das Vadias
Recife e com o coletivo. Enviamos o questionário para as doze integrantes que estão mais
atuantes no coletivo da Marcha das Vadias Recife atualmente e recebemos a resposta de sete
delas. Para analisar os dados coletados nesses questionários, utilizamos a análise de conteúdo
a partir da definição de Bardin (2009), que define o método como um conjunto de técnicas
que tem como objetivo analisar comunicações a partir de sistematizações objetivas do
conteúdo das mensagens.
Antes é importante caracterizar quem são as mulheres que formam o coletivo Marcha
12 Feminismo surgido na década de 1960 até os dias atuais, que faz o enfrentamento a dominação e opressão
perpetradas contra as mulheres em seus contextos específicos. (SILVA E CAMURÇA, 2010)
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das Vadias Recife. Com a formação política em abril de 2016, o coletivo contava com a
participação de dezoito mulheres cis. Nos meses após a realização da Marcha das Vadias
Recife 2016, algumas mulheres precisaram se ausentar por questões particulares diversas. E
hoje em 2017, o coletivo tem 12 integrantes ativas. Em relação ao perfil, o coletivo é
composto por mulheres cis, brancas, negras e não brancas, na faixa etária de 20 a 39 anos, de
classe popular, média baixa e média; heterossexuais, lésbicas e bissexuais; estudantes
universitárias, artesã, sociólogas, educadora social e professoras.
Por meio dos questionários, as respondentes nos relataram como “suas descobertas”
em serem mulheres feministas aconteceram. Percebemos que as experiências são particulares,
mas todas enfatizaram que esta descoberta ocorreu por meio de um processo e por uma reação
às opressões de sua vida. Uma delas expressamente diz que a participação na Marcha das
Vadias foi decisiva para sua tomada de consciência. Outra relata que por meio de opressões
vividas nos seus espaços sociais seja na família, na escola ou na igreja que frequentava e suas
indagações sobre a existência de desigualdades entre homens e mulheres foram fundamentais
para sua descoberta. Uma outra participante relata que buscou o coletivo da Marcha das
Vadias para continuar sua militância política, pois ela queria dar mais ênfase as pautas
feministas o que não acontecia frequentemente no movimento estudantil do qual participava.
Ela justamente se firmou internamente como feminista durante este processo. Uma das
participantes respondeu: “O feminismo me abraçou e foi a saída, foi e é minha alternativa de
luta. Quando achei que o mundo com suas opressões pudessem me engolir, encontrei uma
grande mulher feminista aqui dentro de mim. ”
Já na pergunta sobre o que o coletivo representa, percebemos que palavras sobre
acolhimento, força, construção coletiva, fortalecimento, família, amadurecimento, luta
aparecem nas respostas. É interessante perceber que o espaço partilhado por elas no coletivo é
um local energizador e potencializador da força das mulheres que lutam juntas. Este espaço de
construção coletiva é uma arena política de interesses comuns, fortalecendo suas integrantes.
Na questão, “Por que a Marcha das Vadias Recife resistiu até hoje? ”. as respostas não
foram uniformes, múltiplos motivos foram elencados, tais como: a estética irreverente e
combativa do ato, o modo como é feita a comunicação para mobilização que atrai muito a
juventude, o processo de amadurecimento do coletivo, sua disposição, sensibilidade e
preocupação com as pautas, a proposta política do coletivo e da Marcha, a necessidade das
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mulheres de terem espaço na sociedade para expressar suas demandas e confrontar o sistema
patriarcal e racista, necessidade de atos que lutam pelas minorias; a potência da coletividade
expressa nas ruas. A partir desses elementos trazido pelas respondentes, percebemos que há
uma ênfase na forma de expressão da Marcha enquanto protesto social nas ruas e na
potência da organização coletiva pautada em propostas políticas consolidadas.
Ao articularmos as respostas relativas às perguntas “por que você decidiu que queria
se organizar coletivamente neste coletivo? ” e “como você avalia a atuação do CMVR na cena
feminista recifense?”, percebemos o destaque que o coletivo conquista devido ao seu
processo de consolidação enquanto movimento social feminista. Uma das respondentes diz:
“Porque grupos de mulheres se dedicam anualmente a politizar o ato e desenvolver ações
feministas, de classe, lgbt, antirracistas mesmo quando isso mina sua vida pessoal.
” Referente a essas duas últimas perguntas relativas ao coletivo identificamos novamente
categorias que estão relacionadas com esse processo de organização coletiva como: forma
organizacional (horizontal, autogestionada e apartidária), a permanência, aceitação,
conhecimento, reconhecimento, disposição, caráter ativo, produtivo, acolhimento, espaço de
diálogo, empoderamento, aprendizado. Ainda sobre este tópico, foi notório também a
presença constante nas respostas da ideia de fortalecimento de si mesmas e em relação às
outras. Uma das respondentes disse: “Queria fazer por outras meninas, aquilo que algumas
mulheres que admiro fizeram por mim. ” Essa é uma característica central no feminismo, que
tem uma potência coletiva, transformadora e emancipatória. Assim, uma respondente
resumiu:
“O CMVR representa a materialização do meu sonho de fazer a diferença pela
comunidade que eu estou presente, movimentando-a, sonho de transformar o mundo
de maneira macro, ao menos do jeito que meus braços alcançam, em atividades
micro. Sonhos que tenho certeza, são compartilhados pelas outras mulheres que
estão nesse coletivo (ou são parceiras) é a minha forma de provar a mim mesma e
aos demais que mulheres são gloriosas, são fortes, são solidárias, são organizadas,
são subversivas, são independentes dessas estruturas engessadas em todas as
instituições sociais. ”
4. Considerações finais
Resistência, substantivo feminino. Ato ou efeito de resistir. Sinônimo para todo o
movimento feminista. E, assim, também não poderia deixar de ser para a Marcha das Vadias
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Recife, que pulsa, vibra, agita e perturba a ordem imposta pela sociedade pernambucana há
sete anos. Vem ao longo desse processo se reinventando, agregando e crescendo
politicamente. Possibilitou a criação e a consolidação de um coletivo feminista ativo,
conhecido e reconhecido pelos movimentos sociais e por parte da sociedade. E que de certo
modo, nos últimos dois anos vem se aproximando a ideia de um “feminismo como um
coletivo total” (Gurgel; Almeida, 2013) ao se articular e realizar ações com movimentos
feministas com propostas políticas mais tradicionais fortalecendo os Atos Unitários do
calendário de luta da cidade do Recife. A atualização das pautas feministas aliadas ao modo
como mobiliza as pessoas pelas mídias sociais, com seu caráter irreverente de se manifestar
mostrando uma radicalidade na ação permitiu que muitas mulheres jovens e em sua
multiplicidade pudessem conhecer mais profundamente o feminismo, enquanto prática, modo
de vida e movimento social. A partir das análises realizadas nos questionários
compreendemos que a Marcha das Vadias Recife resistiu até os dias atuais porque adquiriu e
consolidou características de movimento social e feminista e refletiu a partir de sua prática. A
Marcha das Vadias Recife possui uma identidade coletiva, tem como opositor o sistema que
oprime as mulheres cis e trans - sexismo; defende um projeto político de sociedade livre de
todo tipo de opressão, tem demandas que são construídas conforme os contextos políticos e
participa de atividades com outros movimentos sociais e feministas, atuando de maneira
horizontal, autogestionada e sem relação com partidos políticos. Sua resistência vem,
portanto, de sua capacidade de não se engessar diante dos novos desafios e da força das
mulheres que compõem este coletivo, das suas articulações com outros movimentos sociais e
da identificação coletiva de todas as mulheres que marcharam juntas ao longo desses anos.
Referências
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