" QUEM TEM... BARRIGA TEM MEDO: IMAGENS DE CAPOEIRAS NA IMPRENSA
ILUSTRADA DA CORTE Marcelo Balaban1 1.Essa maldita raa2 (O
Mequetrefe, no. 412, 10 de agosto de 1886. Trata-se de detalhe da
imagem central dessa edio. Na cala do
personagemnegroestescritoE.servil,enquantonapastaqueestnamodooutropersonagemvemescrito
governo) O medo foi um poderoso ingrediente do processo que levou
extino do regime do cativeiro no Brasil. Colocados frente a frente
o elemento servil e o governo, a diferena de tamanho entre os
personagens chama a ateno. Tambm se destaca a atitude francamente
ameaadora do escravo,
oudaescravido,queintimidaogoverno,representadopelafiguradoamedrontado,epequeno,
presidentedoconselhodeministros,oconhecidoescravocrataJooMauricioWanderley,oBaro
deCotegipe.Osdetalhescompletamosentidodaimagem.Exibindograndesmosfechadasem
1 Doutor em Histria Social eProfessor Adjunto 2 do Departamento de
Histria da Universidade de Braslia. E-mail:
[email protected] O Mequetrefe, no. 368, 10/mar/1885, p.
02. # posio de ataque, o elemento servil tem o rosto exageradamente
maior do que o restante do corpo, com destaque para o nariz e a
boca, esta aberta e com os dentes a mostra, que parece dar ordens
ao amedrontado ministro. A cena dominada por um forte antagonismo e
um enfrentamento no qual o lado mais fraco, inequivocamente, o
governo. A desproporo entre os personagens, e o sentido poltico que
ela produz, apontam para uma disputa com forte contedo racial na
qual o negro, que se confunde com a escravido, deve ser por isso
temido e respeitado. No decorrer da dcada de 1880, e tambm em
alguns instantes da dcada anterior, possvel
encontrardesenhospublicadosemjornaisilustradosdacortenosquaisnegrosescravos,libertos
ou livres aparecem como um perigo segurana da sociedade e uma ameaa
ao governo. Tambm
emoutrasfontespodemserflagradoscontedossemelhantes.Significativaumapassagemde
EsaeJac,penltimoromancedeMachadodeAssis,publicadoem1904,quetratadossentidos
polticosdamudanadoregimepolticonoBrasilpormeiodospersonagensprincipais,um
republicano, o outro monarquista: Se aceitas a comparao,
distinguiras o rei e a dama, o bispo e o cavalo, sem que o cavalo
possa fazer de
torre,nematorredepeo.Haindaadiferenadecor,brancaepreta,eafinalumaseoutraspodemganhara
partida, e assim vai o mundo.3 [grifo meu]
A passagem integra um captulo intitulado A epgrafe que, no por
acaso, o captulo de
nmero13.Aintenoser(...)umpardelunetasparaqueoleitordolivropenetreoquefor
menos claro ou totalmente escuro. Com isso o autor faz uma
interpretao poltica da lei urea por
meiodametforadotabuleirodexadrez4.Almdasdiferentespeasdojogo,quenose
confundem e mantem suas especificidades, destaca a diferena de cor
como elemento importante na partida, que pode ser vencida por
qualquer dos lados, ou cores5. Em suma, a tenses sociais, para
Machado,teriamsetornado,senomaisintensas,aomenosmaisexplicitasnops-abolioe
primeiros anos da Repblica. 3 Machado de Assis. A epigrafe, Esa e
Jacob. Rio de Janeiro: Garnier, 1904, p. 46. 4 Esse captulo 13 de
Esa e Jacob foi comentado na apresentao, intitulada Cousas futuras:
a previso da cabocla do morro do castelo sobre o destino dos gmeos
que comearam a brigar no ventre, escrita por Maria Clementina
Pereira Cunha, ao belo livro de Wlamyra R. de Albuquerque. O jogo
da dissimulao: abolio e cidadania negra no Brasil. So Paulo:
companhia das letras, 2009.
5ParaumaanlisedasestratgiasnarrativaseossentidossociaisepolticosdaobradeMachadodeAssis,minha
principal referncia Sidney Chalhoub. Machado de Assis, historiador.
So Paulo: companhia das letras, 2005. $
Essetipodetensoracialpodeseranalisadadeformasvariadas.Porumlado,comoum
elemento da experincia social dos leitores de Machado de Assis, do
prprio Machado, bem como
dosconsumidoresedosresponsveisdiretores,desenhistas,escritores-pelossemanriosde
caricatura;deoutro,comoumcontedocriadopelosautoresdessesjornaisetextosliterrios.Os
significados sociais da cor, e o medo a eles associado, so fruto
dessas duas realidades. Realidades
queseconfundem,misturamesoinformadaseinformamumaoutra.Omedoeastenses
scio/raciais criadas por ele, eram produzidas de maneiras diversas,
por sujeitos de cores e lugares sociais variados.Neste texto, o
foco est direcionado para um desses lugares: as folhas ilustradas.
Aobuscarumainterpretaopolticadessesdocumentos,procuroargumentarserpossvel
descortinarporseuintermdiopartedossignificadossociaisdosconflitosentreospersonagens
negros e brancos dessas fices ilustradas. A premissa que a
realidade produzida pelos jornais de
caricaturanascenarealidadesocialequeesta,porseuturno,influenciadaporaquiloque
publicadonasfolhasilustradas.Guardadassuasespecificidades,nopodemsertomadas
separadamentesendouma,afolhasilustradas,umprofcuomeiodeacessooutra.Para
desenvolveressahiptese,direcionoaatenoparaumtipomuitoespecficoeespecialde
personagemnegro:oscapoeiras.Pormotivosvrios,elesconstituemtiposricosparadesenvolver
essa anlise.A presena de capoeiras nas ruas da corte ocupou a ateno
de cidados e de autoridades ao longo de quase todo o sculo XIX. A
capoeira e seus praticantes no se mantiveram os mesmos no decorrer
do oitocentos. De uma atividade mais diretamente associada aos
escravos, foi aos poucos
alcanandohomenslivreselibertos6.Emfinsdadcadade1870eprimeirosanosdadcadade
1880, perodo privilegiado neste texto, o problema parecia estar
aumentando. Ao menos isso que
indicaoespaodedicadoaotemanorelatrioapresentadoAssembleiaGeralpeloMinistroda
JustiadoImprioparaosanosde1880e1881.OMinistrodescreveosindivduosconhecidos
comocapoeirascomoumaespciedemalfeitoresquecostumavadaroardagraaem
ajuntamentospopulares,quandoacometemostranseuntesmovidospormeroinstintode
6 Sobre a mudana no perfil dos praticantes da capoeira ver Carlos
Eugnio Lbano Soares. A negregada instituio: os
capoeirasnoRiodeJaneiro.RiodeJaneiro:SecretariaMunicipaldeCultura/DepartamentodeInformaoCultural,
Diviso de Editorao, 1994. % perversidade.7 Por essa descrio, eram
tipos perigosos por natureza, ou seja, a perversidade seria uma
caracterstica inata, um atributo da raa ainda que no haja qualquer
referncia a cor no texto
-,oquetornavaosadeptosdessamisturadejogo/dana/lutaespecialmentedifceisdecombater.
Diante de quadro to aterrador, o ministro solicita aos
representantes do parlamento a criao de lei
voltadaparacombatertamanhomal,aomesmotempoemqueinformaquevaiimporuma
vigilnciaespecial,rigorosaeincessante,paratentarminimizarasconsequnciasimediatasda
ao dos
capoeiras.Descriesparecidaspodemserencontradasemimagensetextospublicadosemjornaisde
caricatura.Se,viaderegra,osmomentosdeeleioeramaquelesemqueessespersonagens
invadiam as pginas dos semanrios ilustrados, pois a eles era
atribuda a participao decisiva no
resultadodossemprepolmicoseperigosospleitoseleitoraisdoimprio,merecemseranalisados
com mais cuidado alguns detalhes da construo desses personagens
que, a um s tempo, produzem
esoresultadodomedoinspiradoporessessujeitos.Detalhesqueconstituemoobjetodeanlise
centraldessebrevecomentrio,preocupadoemdesvendarpartedoprocessodeinvenodos
perigosos capoeiras: Resoluo acertadaDe nossa grande polcia Meteu
toda a capoeirada Na milcia. J se no veem nas nossasRuas maltas e
mais maltas, Compactas, negras e grossas De peraltas. J dos
honestos burgueses A descuidada barriga, Como aqui h poucos
meses,No periga. (...)8
IntituladoOscapoeiraseassinadoporEloy,oHeroe,umdosconhecidospseudnimos
deArthurAzevedo,opoemaseguefazendoblaguecomumapropostaderecrutamentode
capoeiras, que com suas habilidades, as rasteiras e cabeadas em
pouco iria destruir as tropas mais 7 Relatrio apresentado
Assembleia Geral Legislativa na primeira sesso da dcima oitava
legislatura pelo ministro e
secretariodeestadodosnegciosdajustiaConselheirodeEstadoManoelPintodeSouzaDantas.RiodeJaneiro:
Typographia Nacional, 1882, pg. 151. 8 Eloy, o Heroe. Os capoeiras.
O mequetrefe, no. 345, 10/jun/1884, p. 07. &
aguerridasdasprincipaispotnciasmundiais.Naquelemesmo1884,oscapoeirasvoltamcena,
agora num trecho do captulo sexto do romance Viagens Maravilhosas,
atribudo a Julio Verne:
Aochegaremrua,Petitpoisiasendovtimadeumdesastre:doisgrandescarros,tiradosamulaspor
sobre os trilhos, cruzaram-se na ocasio em que o pobre rapaz
atravessava a rua, sem que, felizmente, nada lhe houvesse esmagado,
a no ser o chapu, nem rasgado, alm das calas. - Por UM TRIZ!
Exclamou Nitoco. - Ui! Bradou de repente o Dr. Uff, e caiu logo ao
cho. Que isso? Acudiu Nestor. - Capoeiras! E enquanto erguiam o
pobre sbio, que apertava a barriga com as mos, o cicerone explicou
que capoeira
nalnguadaterraqueriadizernavalhista,equeodoutorpodiasedarpormuitofelizemterapenaschuchado
uma ligeira inciso no abdmen, porque em geral, quando acontece ser
a gente afagada pelos capoeiras, fica com as tripas ao lu.- E no se
prendem esses malvados? Berrou Petitpois, furioso, querendo-lhes
correr ao encalo.
Masfoiemvo:-abandademsica,sfrentedaqualmarchavamoscapoeiras,jiamuitolonge,ea
policia brilhava pela ausncia. 9 No eram incomuns acidentes
provocados por bondes, muitas vezes causando o esmagamento
depernasebraos,episdiosnoraronoticiadosnosprincipaisjornaisdacidadeetransformados
em desenhos nos semanrios ilustrados. Mas se nada ocorreu a
Petitpois, o mesmo no pode ser dito sobre o pobre sbio, vtima da ao
cirrgica de capoeiras, ou navalhistas, na verso do narrador.
Menosprotegidopelasorte,masnodetododesprotegidodela,oDr.Uffsofreuapenasuma
ligeiraincisonabarriga.Paraasvtimasdosperigososehabilidososcapoeirasumcorte
superficialpodiaserconsideradoumabeno,porque,ressaltaonarrador,deordinrioagente
afagada pelos capoeiras ficavam com as tripas ao lu. Anos antes,
cena semelhante invadiu as pginas da Revista Illustrada: 9 O
romance atribudo a Julio Verne. No Prefcio do Tradutor, pequeno
texto que antecede o incio da publicao,
vemaexplicao:estaobraasegundadasqueoautorresolveuescreversobreoBrasile,sobqualquerpontode
vista,emnadainferiorJangada.OromancefoipublicadonaGazetadeNotciasapartirdaediododia
08/01/1884. ' (Detalhe do desenho publicado na Revista Illustrada,
no. 100, 02 de fevereiro de 1878, p. 08) No desenho, um
protuberante abdmen ameaado pela bem afiada navalha de um capoeira.
Ao contrrio da passagem do romance de Verne, essa imagem no se
refere a ataque fortuito. Trata dos perigos de tomar parte nas
eleies, como bem esclarece a legenda: E no h valentia nenhuma de
oferecer o seu abdmen em holocausto s suas opinies polticas ou
municipais. Se a violncia nos dias de votao era assunto recorrente,
no raro associado aos capoeiras, mas no apenas a eles,
nestecasooperigotemdireocerta:abarrigadoilustrecidado,ameaadadeserrasgadapelo
navalhista.Nessaalturaquerocrerquemeupontoestejasuficientementedestacado.Oquemeintriga
nessas cenas, e o que busco investigar neste texto, o seu elemento
comum: as barrigas, o suposto alvo dos temidos capoeiras. De modo
direto, a inteno tentar explicar imagens e descries tais como as
reproduzidas acima. Um conjunto de perguntas saltam delas. Desenhos
e textos como esses sim, estes no so casos isolados revelam uma
prtica dos capoeiras ou so mera inveno? Se
eramreais,osataquessbarrigaseramrecorrentes?Eporqueaescolhadasbarrigascomoalvo
preferencial? Caso o ataque s barrigas fossem fruto da frtil
imaginao de autores to diferentes, como explicar a escolha das
barrigas como alvo da criao da mentira? Finalmente, seja qual for,
ou quais forem as respostas s questes acima colocadas, h algum tipo
de relao entre essas imagens
eomedoqueorganizouasrelaoraciaisnoBrasildasdcadasde1870-1880?Essasperguntas
( apontam para um conjunto de temas e problemas ligados aos
sentidos sociais da cor e o lugar dele
nasdcadasfinaisdaescravido,paraumprocessohistricodeproduodomedodehomens
brancos em relao aos negros e mesmo um alvo deles, ou um tipo de
sujeito branco que sentia, ou
deveriasentirmedo.Oquepossuamabdmenbemdesenvolvido,sejalporqualrazo,esses
deveriam tem medo. 2.Chapu de banda Publicado no Rio de Janeiro em
1889, de autoria do tenente-general Visconde de Beaurepaire-Rohan,
o Diccionario de Vocabulos Brazileiros possui todo um verbete
dedicado capoeira. Apesar de um pouco longo, merece ser transcrito
na ntegra: Capoeira, s.f (R. de Jan.) espcie de jogo atltico
introduzido pelo Africanos, e no qual se exercem, ora por mero
divertimento, usando unicamente dos braos, das pernas e da cabea
para subjugar o adversrio, e ora esgrimindo cacetes e facas de
ponta, donde resultam srios ferimentos e s vezes a morte de um e de
ambos os
lutadores.//s.mhomemqueseexercitanojogodacapoeira.Estenomeseestendehojeatodaasortede
desordeirospertencentesreldopovo.Soentesperigosssimos,porissoque,armadosdeinstrumentos
perfurantes,matamaqualquerpessoainofensiva,speloprazerdematar.//Etym.Comooexerccioda
capoeira,entredoisindivduosquesebatempormerodivertimento,separeceumtantocomabrigadegalos,
noduvidoqueestevocbulotenhaorigememCapo,domesmomodoquedamosemportugusonomede
capoeira a qualquer espcie de cesto em que se metem galinhas. // V.
Capueira.10
Otextopreciosoeautoexplicativo.Quasedispensacomentrio.Masnoescusado
destrincharalgumasdesuasparteseobservarcomoconstrisentidosparaaatividadeeseus
praticantes. Em primeiro lugar, aponta uma origem precisa os
africanos - para a prtica descrita,
assuntoderestomuitocontroversoetrabalhadopelahistoriografia,eofereceumadefinio:a
capoeira um jogo atltico, praticado por mero divertimento. Difcil
saber com preciso o sentido da palavra jogo. Parece aqui tratar-se
simplesmente de uma atividade fsica, do corpo, na qual eram
utilizados os braos, as pernas e a cabea. Mas, ao mesmo tempo,
nesse peculiar jogo se fazia uso
decacetesefacasdeponta,tudomobilizadoparasubjugaroadversrio.Oresultadoera,no
raro, ferimentos graves e at a morte do oponente. Desta feita,
razovel imaginar que por jogo entendia-se um divertimento e uma
luta. Ambos os sentidos, no entanto, se confundem na definio,
tornando a palavra um tanto imprecisa. Capoeira era ainda o nome
dado aos praticantes do jogo. 10 Visconde de Beaurepaire-Rohan.
Diccionario de Vocabulos Brazileiros. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1889, p. 35. ) Nesta parte no h margem para dvida. Os
capoeiras so a rel do povo, pessoas perigosssimas, que matam pelo
gosto simples de matar. Como uma espcie de cereja do bolo, o autor
ensaia uma explicao para a palavra capoeira; em funo da semelhana
com a briga de galos, no duvida que
ovocbulotenhaorigememCapo.Emsuma,comparaoscapoeirascomgalose,faltade
qualquer indcio etimolgico, apresenta sem cerimnia essa curiosa
teoria. A definio primorosa. Consegue reunir, em poucas linhas, o
contedo de vrios e distintos documentos, tais como relatrios do
ministrio da justia, textos publicados em jornais, romances,
imagens de jornais de caricatura. Misturam-se perigo com
animalidade dos adeptos da capoeira com a origem africana e uma
definio algo imprecisa da prtica. Esse tipo de verso opera um tipo
de
simbiose,queseautoalimentava:ojogoeraexercitadoporpessoasperigosasemsie,aomesmo
tempo, estimulava e acirrava os instintos algo animalescos dos seus
adeptos. Em suma, a atividade produzia pessoas perigosas, que por
sua vez alimentavam e reproduziam o perigo, de sorte que era
necessrio combater o jogo em si para controlar seus praticantes.
Essessentidoseaspectosconstituemalgunsdosprincipaiselementosqueahistoriografia
sobre o tema se empenha em revisitar. De maneira geral, os estudos
sobre a capoeira e seus adeptos
noBrasiloitocentistaestoorganizadosporumacrticaaalgunssentidosatribudosaojogoe
aqueles que o praticavam. Grosso modo, as crticas esto dirigidas
ideia de ser uma atividade de gente perigosa em si, que se
exercitava simples diverso e se valiam das habilidades adquiridas
para matar pessoas inocentes s pelo prazer de matar. Produzida em
grande parte por pessoas brancas,
nopraticantesdacapoeira,fontescomoestaconstroemumavisoexternaatividade.Poressa
razo, os estudiosos, empenhados em revelar sentidos outros da
capoeira, preocupados em descobrir racionalidades e lgicas sociais
e culturais para o jogo e seus adeptos, e com isso estudar a
presena
africananoBrasil,odesenvolvimentodelgicasculturaisnegras,almdeformasderesistncia
escravidoedaconstruodeespaossociaisparaosafrodescendentes,pelosafrodescendentes,
defendem serem a maioria das fontes construes eivadas de toda sorte
de conceitos e preconceitos de cor e de classe, que muito pouco, ou
quase nada, ajudam a explicar a capoeira. Alia-se a isso que essas
fontes, os seus autores bem entendido, nutriam ainda um forte
desinteresse pela capoeira em si e por praticantes. Por essas
razes, os pesquisadores concluem que elas partilham um parti pris:
por
seremvisoexternaepreconceituosa,osprodutoresdosdocumentosarespeitodacapoeirano
* sculo XIX seriam incapazes de compreend-la. Assim, do ponto de
vista metodolgica, estudar a capoeira no perodo constitui tarefa
complicada.Porsetrataremdefontesindiretas,ouseja,produzidaspornopraticantes,detratorese
perseguidores da capoeira e seus adeptos, de maneira geral as
imagens por elas criadas tinham sinal
negativo.Produziamereproduziamtodasortedevisopreconceituosa,marcadasporsentidos
raciais e pela ideia de se tratarem de criminosos, pessoas
perigosas, dentre outras explicaes, por
praticaremacapoeira.Operigoresidianahabilidadecomosbraos,pernasenousode
instrumentoscortanteseoutrasarmasfacas,navalhas,cacetesassociadaapessoas
despreparadasparafazerusodepoder.Seriam,destemodo,somentebonsatletas,nosentido
negativodedeteremhabilidadesfsicascomparveisaumaarmasemocrebronecessriopara
fazer bom uso dela. Por isso, ou bem seriam ameaas ao pblico por
agirem movidos por instintos
algoanimalizados,irracionais;ouseriaminstrumentosperfeitosnasmospolticospouco
escrupulosos. Para penetrar nas grossas camadas de sentidos
negativos e produzir imagens outras do
jogoedoscapoeiras,ahistoriografiaseempenhouemquestionarsistematicamenteasfontes
disponveis, ao mesmo tempo que inventava formas criativas para
driblar essa dificuldade imposta pelas fontes11. Uma das principais
estratgias foi o recurso a fontes policiais. Ao contrrio de outros
tiposdedocumentos,nestespossvelacessarafaladoscapoeirasemsi,mesmoqueessasfalas
devem ser analisadas com cuidado, como adverte Thomas H.
Holloway12.No justo, todavia, atribuir responsabilidade apenas aos
autores dos documentos. Afinal de contas, o acesso ao universo da
capoeira no era dado a qualquer um. De forma semelhante a outros
11A historiografia sobre a capoeira no Brasil vasta e heterognea.
Nos ltimos anos, tm sido adensados os estudos voltados para o sculo
XIX. Minhas principais referncias neste texto so: Mary Karasch. A
vida dos escravos no Rio de Janeiro 1808-1850. So Paulo: Companhia
das Letras, 2000; os dois fundamentais livros de Carlos Eugnio
Lbano
Soares.Anegregadainstituio:oscapoeirasnoRiodeJaneiro.RiodeJaneiro:SecretariaMunicipalde
Cultura/DepartamentodeInformaoCultural,DivisodeEditorao,1994eAcapoeiraescravaeoutrastradies
rebeldesnonoRiodeJaneiro(1808-1850).Campinas:EditoradaUnicamp,2001;ThomasH.HollowayAhealthy
terror: police repression of capoeiras in nineteenth-century Rio de
Janeiro. The Hispanic American Historical Review,
vol69,no.04,nov.1989,pp.637-676;MayaTalmonChvaicerThecriminalizationofCapoeirainNineteenth-Century
Brazil. The Hispanic American Historical Review. Vol. 82, no. 03,
ago. 2002 e, da mesma autora, The hidden history of capoeira: a
collision of cultures in brazilian battle dance. University of
Texas Press, 2007. 12 Para Thomas H. Holloway, fontes policiais
apresentam dois tipos de problema: primeiramente a policia age na
arena
pblica,nopermitindoacessoaespaosprivados.Deoutrolado,asfontespoliciaissoproduzidasporumalgica
marcadaporleis,cdigos,regulamentoseprocedimentospoliciais,semcontarasopiniesdospoliciaisemsi.Vale
aindaacrescentarqueasfalasdosrusproduzidasnessassituaesdevem,damesmaforma,sertratadascom
cuidado, ser analisada de acordo com a situao na qual foi
produzida. Conferir Thomas H. Holloway. Op.cit. "+
espaoscriadosedominadosporsujeitosdepeleescura,taiscomoocandombl13,acapoeiraera
protegidapormuitosdeseuspraticantes.Demaneirageral,aosprodutoresdeboaparteda
documentaocomaqualseestudaacapoeiranosculoXIX,somenteeradadoobservar
manifestaes pblicas do jogo, quer fossem na contumaz presena em
festas e na frente de bandas
demsica,comobemlembraocontrariadoMinistrodaJustiacitadohpouco,emdisputas
eleitorais, em exerccios pblicos feitos em lugares e horas
determinadas o que em muitos casos acabava com a interveno da
policia e o recolhimento ao xadrez14 - ou ainda em ataques
fortuitos, que tanto medo produziam em sujeitos que poderiam ser
potenciais vtimas de
capoeiras15.Seahistoriografiaquetratadacapoeirajavanoumuito,aspesquisasquevemsendo
realizadas demonstram tambm o quanto ainda h para ser descoberto.
Nesse sentido, recorrer aos
jornaisdecaricatura,fonteaindamuitopoucoexploradaparaestudaressetema,podecontribuir
paraadensaresseesforo.Osdesenhosaquianalisados,almdepermitirentenderaproduode
imagensestereotipasedistorcidasdoscapoeiras,revelandoasdvidasealgunsdosdilemasquea
presenadecapoeirasimpunhasociedade,tambmdoacessoprticadopontodevistados
personagens.Emsuma,seguindoasliessemprecriativasdeRobertW.Slenes,podemos
penetrar no mundo dos escravos,( ou dos capoeiras, acrescento)
fazendo uso de outros tipos de informao e mtodos de anlise. Com
isso, possvel recuperar no olhar branco os sentidos e significados
da capoeira negra16.
13SobreocandomblcomumespaorestritoaafricanoseseusdescentesverJooJosReis.DomingosSodr,um
sacerdote africano: escravido, liberdade e candombl na Bahia do
sculo XIX. So Paulo: companhia das letras, 2008.
14Napgina02daediododia17defevereirode1878dojornalOCruzeiro,encontramosumadasinmeras
descries de priso de capoeiras: Para no perder o costume ante-ontem
noite, Jos Cerqueira que conhecido como
capoeira,faziaossabidosexercciosnapraiadoSaccoAlferes.Tambmparanoperderocostume,orondante
prendeu-o. Notas como essa so extremamente difceis de ser
interpretadas, pois so por demais sucintas. A incerteza
quecercaostermosassociadosacapoeirajogo,capoeiragemficamevidentesnotrecho.Ossabidosexerccios,
quejustificaramaprisoJosCerqueira,queeraconhecidoporcapoeira,podemserdeataquesatranseuntes,a
simplestreinamento.Dequalquerforma,otalexerccioeraumtipodeafronta,oueravistocomumriscoordem
pblica, chamando assim a ao enrgica, e costumeira, do rondante de
planto. 15 A proteo dos capoeiras, e de praticantes de outras lutas
de origem africana, ao seu universo assunto trabalhado no livro de
Thomas J. Desch Obi, que estuda o tema em uma perspectiva atlntica,
sendo a capoeira uma das manifestaes do que denomina tradicionais
artes marciais africanas. Conferir Thomas J. Desch Obi. Fighting
for honor: the history of african martial art traditions in the
atlantic world. Columbia: The University of South Carolina press,
2008. 16 O livro de Robert W. Slenes no trata de capoeira. Tambm no
utiliza imagens produzidas por jornais de caricatura, apesar de
fazer uso de outros tipos de imagens. O mtodo do autor, no entanto,
serve de inspirao para meu estudo. Os trechos citados esto em
Robert W. Slenes. Esperanas e recordaes: condio de cativeiro,
cultura centro-africana e estratgias familiares. Na senzala, uma
flor: esperanas e recordaes na formao da famlia escrava. Campinas:
Ed, da Unicamp, 2011, p. 150. ""
Nessesentido,valeobservaraimagemdacapadaediodaRevistaIllustradadodia03de
julho de 1880: (Capa da edio da Revista Illustrada, no. 214, 03 de
julho de 1880
Trata-sedeumadasrarasestampasnaqualcapoeirasaparecememao17.Comaspernas
tranadas, armados com facas e um revolver, os dois personagens em
primeiro plano se confundem com os principais partidos polticos do
imprio: liberal e conservador. No cinto de cada lutador vem
escritoonomedafacopolticaquedefende.Umdoscontendoresestemvantagem.O
representante dos liberais, com feio mais destemida e feroz, ainda
completamente composto, pois continua com o chapu na cabea, ao
contrrio do seu adversrio, aplica uma rasteira enquanto, com
umdosbraos,abraaacinturadooponenteeseprepara,comooutro,paraatingirabarrigado
rival.Menosequilibradoecomfeioumtantoassustada,oadversrioseesforapararesistirao
ataque.Vale notar que ao fundo era travada uma verdadeira guerra.
Homens portando machados e
facasdestroemamesadaeleioederrubam,comfacadasnabarriga,osqueparticipavamdo
processo. Independente da explicita referncia eminente vitria dos
liberais naquele pleito, a cena dominada pela presena e ao dos
capoeiras.Alegendaacrescentamaisdetalhes:Aseleiesouopovosoberanoexercendoasua
soberania!Deumlado,ficapatenteaideia,ouaironiaqueorganizaacena.Opovo,aqui
17Naimprensailustrada,demodogeral,asimagensdecapoeiranoprocurammostrarojogoemsi.Talvezesse
constituaumdosmotivosparaopoucousodessasfontespelahistoriografia.Emgeral,ospesquisadoresrecorrema
desenhosproduzidosporviajantes.Nelessomostradosgrupos,emespecialdeescravos,emrodas,comtamborese
berimbaus. "# confundidos com os violentos capoeiras, exerce sua
soberania atravs apenas por meio da violncia
extrema.Estaria,poressemotivo,despreparadoparaoexercciodapoltica,razopelaqual
deveriamsermantidosafastadosdela.Poroutrolado,aseleioeoexercciodasoberaniadesse
povo so no desenho uma s coisa. Assim, alm de dominar a cena,
dominariam as eleies. Em
suma,aparecemcomopossveissenhoresdapoltica.Asduasleiturassoadmissveisese
misturamnessafontedefinidapelaambiguidade18.Acrticaaousoirrestritodecapoeirasno
processoeleitoral,quetornarialiberaiseconservadoresiguaisparaosemanrio,apontamainda
paraosriscosdesubmeterosdestinosdaseleiesasujeitosnegrosecapoeiras.Afinal,maisdo
querepresentarospartidos,elesseconfundemcomeles,setornamospartidos.Nessesentido,
como argumentou de forma convincente Carlos Eugnio Lbano Soares19,
longe de serem massa de
manobranasmospoucoescrupulosasdepolticoscorruptos,oscapoeirasaparecemcomoatores
polticos.
Abarrigacomoalvodacontendachamaaateno.Opersonagemqueestemvantagem
escolheestapartedocorpoparadarogolpefatal.Essepodeserumadaspossveisrazesda
escolha dessa parte do corpo como alvo dos capoeiras e uma das
possveis respostas ao dilema das barrigas. Aquele que tivesse o
abdmen atingido cairia por terra, podendo sangrar at a morte. Mas
est apenas uma das caractersticas do personagem. Afinando o olhar,
percebemos se tratarem de
libertosoulivres,comopodesernotadopelousodesapatos.Norestantedabemcuidada
indumentria,vemoscalariscada,paletecolete,chapueumaespciedelenoamarradono
colarinhofazendoasvezesdegravata.Noutrodocumentoocuidadocomaindumentriada
mesma forma ressaltado: Firmo, o atual amante de Rita Baiana, era
um mulato pachola, delgado de corpo e gil como um cabrito; capadcio
de marca, pernstico, s de maadas, e todo ele se quebrando nos seus
movimentos de capoeira. Teria
seustrintaetantosanos,masnopareciatermaisdevinteepoucos.Pernasebraosfinos,pescooestreito,
18CadavezmaisacaricaturaeosjornaisdecaricaturaproduzidosnosculoXIXtemdespertadoacuriosidadedos
pesquisadores.Aospoucosessafonteestsendomelhorconhecida,bemcomosuaspotencialidadesedificuldades.
SobreaimprensailustradodosculoXIXbrasileirover,entreoutros,IsabelLustosa(org).Imprensa,humore
caricatura: a questo dos esteretipos. Belo Horizonte: Editora da
UFMG, 2011, Paulo Knauss, Marize Malta, Cludia
deOliveiraeMnicaPimentaVelloso(orgs.).RevistasIlustradas:modosdelerevernosegundoreinado.Riode
Janeiro:Mauad,2011,GilbertoMaringoni.AngeloAgostini:aimprensailustradadacorteCapitalFederal,1864-1910.SoPaulo:DevirLivraria,2011,SilviaMariaAzevedo.Brasilemimagens:umestudodarevistaIllustrao
Brasileira.SoPaulo:EditoradaUnesp,2010,MarceloBalaban.PoetadoLpis:stiraepolticanatrajetriade
Angelo Agostini no Brasil imperial (1864-1888). Campinas: Ed. da
Unicamp, 2009.
19CarlosEugnioLbanoSoares.Anegregadainstituio:oscapoeirasnoRiodeJaneiro.RiodeJaneiro:Secretaria
Municipal de Cultura/Departamento de Informao Cultural, Diviso de
Editorao, 1994. "$
pormforte;notinhamsculos,tinhanervos.Arespeitodabarbanadamaisqueumbigodinhocrespo,
petulante,ondereluziacheirosaabrilhantinadobarbeiro;grandecabeleiraencaracolada,negraebemnegra,
dividida ao meio da cabea, escondendo parte da testa e estufando em
grande gaforina por debaixo do chapu de palha, que ele punha de
banda, derreado sobre a orelha esquerda.20
SobreasroupasdeFirmo,destaqueparaopaletsurradodelustrina,acalaapertadanos
joelhos e o leno alvo e perfumado que lhe resguardava o colarinho.
Se a correspondncia entre o desenho e o trecho do conhecido livro
de Aluizio Azevedo no total, a semelhana, nos menores
detalhes,surpreende.Destaqueparaocuidadocomofigurinoque,napenadoliterato,concorre
para descrever aquele mulato pachola, que tinha nervos no lugar dos
msculos. Algum de meter
medo,medoconstrudonosdetalhes:dasroupasmeticulosamenteplanejadas,aobigodefinoe
petulante, o leno branco amarrado no pescoo e o chapu de palha,
usado de
banda.Almdemalandroecapoeira,qualidadesquesemisturamnapenadeAzevedo,Firmoera
tambm oficial de torneiro, oficial perito e vadio(...)21. Era
trabalhador, apesar de tambm vadio.
Noganhavaavidacomocapoeira.Tambmeramtrabalhadoresosdetidospelapolciapor
capoeira,designaoestranhaumavezquepraticadacapoeiranoeracrimenoimprio.Alm
dessasemelhanacomavidareal,adescriodeAzevedoeosdesenhosdaimprensailustrada
tambmseassemelhavamemoutroaspecto.Nasfichasqueregistravamaentradaesadade
prisioneirosdaCasadeDetenodoRiodeJaneiroasroupasdecadanovohspedeeram
descritas em detalhes22. Por meio delas, temos acesso a figurinos
diversos, bem menos regulares do
queosdescritosnosromancesedesenhos.Assim,ficamossabendoqueocozinheiroCantidio
Pardo, recolhido por capoeira em 09/09/1879, trajava cala de brim,
camisa branca, palet e colete pretos e chapu de lebre. O servente
pardo Benigno Jos da Silva, livre, vestia camisa de riscado
ecalabrancaquandofoirecolhidodetenoporcapoeiraem24/10/1861.Otambmpardoe
livreFranciscoBorges,semprofissodescrita,deuentradanodia06/08/1877comcamisade
riscado, cala de brim, camisa dangola e chapu de palha e o escravo
Francisco Crioulo, servente de profisso, detido a 18/05/1863,
vestindo camisa branca, cala riscada, palet de brim, chapu de
20AluizioAzevedo.Ocortio.RiodeJaneiro:Garnier,1890,p.91.OtrechocitadaestnoinciodocaptuloVII.
Consultadoem:http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/00227900#page/97/mode/1up,nodia08demarode
2013. 21 Idem.ibidem.
22Almdalistadasroupas,afichaindicavaonome,nacionalidade,motivodapriso,datadapriso,condio,cor,
nome do senhor, para os escravos. "% lebre23. A lista poderia
continuar por mais algumas pginas, mas poupo o leitor desse
suplcio. Por esses poucos casos, fcil concluir que no havia um
padro, um tipo de roupa que identificasse os
capoeiras,querfossemescravos,livresoulibertos,bemaocontrriodoqueasimagensea
descrio de Azevedo fazem crer. No entanto, se podemos explicar a
padronizao dos personagens
pelanecessidadedecriaresteretiposfacilmenteidentificveis,talpadronizaonofruto
exclusivo da imaginao do romancista e dos desenhistas. A inveno
ficcional nasce da observao
depersonagensreais.Almdecoernciainterna,seguindoalgicadecadatipodenarrativa,
possuemalgumacorrespondnciacomcapoeirasdecarneeosso.Poressemotivo,razovel
defender a tese de que os capoeiras so tambm autores (embora
indiretos, certo) dos personagens
dessasfices.Oesmerocomasroupas,assim,eraumacaractersticafrequenteentreeles,um
detalhenadainsignificantedessestiposderuaabusados,queassustavameincomodavamao
caminhar pela cidade.Sendo assim, havia ao mesmo tempo uma parte de
inveno e uma parte de cpia nas imagens
decapoeirasdoshebdomadriosilustradosoudetextosliterrios.Omedoqueospersonagens
inspiravameraaomesmotempoalgoconstrudoereforadopordesenhistaseescritores,mas
tambm fruto de aes deliberadas de sujeitos que se esmeravam em
aparecer socialmente de forma
destacada.Aquelesquereunissemcondiesfinanceiras,possivelmentenohesitariamemgastar
alguns mil reis com roupas e comporiam seus prprios personagens, no
raro identificados nas ruas
etemidostologodespontassemnumaesquina.Aomenosissoqueoutracapa,publicadana
mesma Revista Illustrada, d a entender: 23 Os livros de entrada e
sada da Casa de Deteno do Rio de Janeiro, da dcada de 1860 at os
anos de 1880, registram
236casosassociadascapoeiragem,deumtotalde8446registros.Onmeronogrande,nemestatisticamente
significativo, mas as informaes de cada ficha so valiosas. Do total
de prises, 33 se referem a pessoas identificadas
comobrancas,maisde10%portanto,sendoalgunsportugueseseoutrosbrasileiros.Orestantefoiregistradocomo
pretos,pardos,fulosemorenos.97soescravos,136livreseapenas3libertos.Todoshomens.Informaesretiradas
do Banco Casa de Deteno do Rio de Janeiro, Cecult, Unicamp.
Registro aqui meu agradecimento por me permitir consultar esse
banco de dados. "& (Capa da Revista Illustrada, no. 174, agosto
de 1879. A legenda diz: Em toda a parte do mundo engaiolam-se os
criminosos;embreveserocontrrioentrens.impossvelquenohajaumfilantropomaquinistaqe
noesteja inventando um meio de preservar a nossa pele e os nossos
membros dos terrveis atentados que diariamente relatam os jornais.)
Temosaquiumacaricaturaclssica.Todoodesenhoumgrandeexagero.Mas,comoem
qualquercaricatura,trata-sedeexagerocomsentidoforteefundamentadoemobservao.
necessrioentodecodificarosdetalhes.Oprincipalelementodacenaainverso.Deumlado,
cidadoshonestossoengaiolados,enquantocriminososdesfrutamaliberdade.Asgaiolas,na
verdade, seriam um meio de garantir a segurana e a mobilidade de
homens de bem, que com esse
artifciopoderiamtransitartranquilamentepelasruas,gozarsualiberdade,apesardosevidentes
inconvenientes.SeoEstadonogarantiaodireitoconstitucionaldaliberdadeedasegurana
individual, restava, num futuro prximo, recorrer iniciativa
privada, a um filantropo maquinista.
Nestepeculiardiagnstico,aforapolicial,emprincpioresponsvelporgarantiraseguranados
cidados honestos, se confunde com o criminoso, reforando e
explicando a troca de lugares sociais
queorganizaacena.Aligaoentrecapoeiraseapolcia,quetantoeratematizadaemjornais
dirios e folhas ilustradas, mais uma vez objeto de destaque. A
estratgia do autor do desenho era
misturarterrorcomblague.Comissopassavaumrecadodireto:oabsurdodaestampaseriaum
retratoaproximadodarealidade.Ainverso,nessesentido,umrecursonarrativocriadopara
chamar a ateno para um problema
urgente.Aprincipalinversoaforteseparao/oposioracial.Diantedafaltadesegurana,a
liberdade logo seria um direito apenas de personagens negros. E de
negros de condies variadas. H o guarda urbano, homem livre ou
liberto e um escravo, dado que vem descalo, portando uma "'
navalha,artefatoqueinequivocamenteoidentificacomocapoeira.Ospersonagensnegrosso
perigososedevemsertemidos,aopassoqueoshomensbrancossohonestoseordeiros,mas
impotentes.Apesardeprotegidoporsuagaioladesegurana,cujamobilidadegarantidapelas
rodinhas da base, e de provocar o capoeira que o ameaa com a
navalha, a desvantagem evidente.
Demaneirasemelhanteimagemqueabreestetexto,noconflitoentrenegros/escravosehomens
brancos, a balana parecia pender para o lado dos escravos. Eis o
motivo de preocupao e um dos sentidos do desenho. A tenso
scio/racial aparece aqui tematizada pela via do conflito social e
do
medo,cuidadosamenteconstrudopelarelaoentreescravidoecapoeira.Unidosemums
personagemosdoisproblemas,ouosdoismales,omedopodeaquiservircomoargumento
abolicionista.Oubemseenfrentaeresolveoproblemadaescravido,toperigosoedestruidor
comoacapoeira,oubemoentedesfiguradoeoprimidoqueasofre[aescravido]24poderia
assumir o controle.3.As dobradinhas de um honesto cidado Nessa
altura j possvel retornar ao dilema das barrigas:
(DetalhedodesenhocentraldaediodaRevistaIllustrada,no.174,agostode1879.Alegendadiz:Na
verdade, triste ver-se assim atentar contra as... dobradinhas de um
honesto cidado, para depois ouvir o capoeira dizer: Foi s pra v si
a navaia tava amolada...)
24JoaquimNabuco.Prefcio.OAbolicionismo,Londres:typographiadeabrahamkingdon,E.c,1883,p.vii.
Consultado em:
http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/01204300#page/7/mode/1up,
em 09/03/2013. "( A sorte deste honesto cidado no foi a mesma do
Dr. Uff, cuja barriga sofreu apenas uma ligeira inciso. Mais uma
vez a preferencia pela barriga aparece. Mas no seria essa obsesso
fruto
deexagerooupurainvenodosautoresdostextosliterriosedesenhosaquicitados?Aresposta
para essa questo no simples. Para tentar chegar a bom termo, segui
a pista da prpria Revista, e fui buscar nas pginas de jornais
dirios publicadoscorte nas dcadas de 1870 e 1880 notas sobre
agresses e prises de capoeiras: Ontem tarde, prximo estao da
estrada de ferro D. Pedro II, um capoeira, e ao que parece, perito,
esfaqueou a um individuo.
Omalvadofaquistafoipreso,eoferidoconduzidofarmciamaisprxima,ondelheaplicaramos
primeiros curativos.25 * * * Foi preso por capoeira, ontem noite,
Manuel Martins Moreira, vulgo Pombinho,26 * * * Capoeira Para no
esquecer o que sabe na arte de capoeiragem, Albino Raymundo Jos da
Silva fazia ante ontem, tarde, exerccios de capoeiragem no largo do
Depsito, armado de uma navalha, que no entrou em exerccio por ter
aparecido muito a tempo um rondante. Quando ficar extinta
semelhante praga?27 * * *
Ontem,s9horasdamanh,forampresosordemdosubdelegadodaCandelriaospretos,escravos
Guimares Avila, e Ezequiel, escravo(sic) de Manoel Joaquim Pereira,
por virem jogando capoeira na frente da msica do 1. Batalho;
estando aquele armado de um punhal. Foram presos no largo do Pao,
pelo rondantes do 5. distrito e remetidos para o xadrez da polcia
pelo capito Marques Sobrinho.28
Tomadasemconjunto,essasbrevesnotasrevelamumamiradedesentidosesituaes.
Apesardeseremextremamentesintticas,apontamcaminhosqueseaproximameseafastam
daquelesconstrudospelasimagensanalisadas.Aprimeiranotatemmuitasemelhanacomo
detalhedaimagemnaqualocapoeiraabreabarrigadohonestocidado,masnofornece
qualquermotivoparaoataque.Noentanto,elanoassocia,aomenosexplicitamente,oataquea
motivoalgum.Descritocomoummalvadofaquista,omotivodoataquepermanece
desconhecido, ao contrrio da verso
ilustrada.Astrsnotasseguintessoreveladorasdeumaformadeagirdapolciaemrelaoaos
capoeiras.Sobreeles,naqueleinstante,recaiaumtipodeculpapreviamentedefinida.Eram
suspeitoseculpadosporprincipio.Pombinho,JosCerqueiraeRaymundoJosdaSilvaforam
25 O Cruzeiro, 05/01/1878, p. 03 26 O Cruzeiro, 12/02/1878, p. 02
27 O Cruzeiro, 24/12/1878, p. 02 28 Dirio de Notcias, 25/11/1870,
p. 01. ") presos por exercitarem a capoeira. Em principio no
cometeram crime algum,pois no parece ter havido qualquer ataque.
Nesses casos, os trs foram levados ao xadrez, no sendo protegido
pelos agentes da lei. Mesmo no invalidando a proximidade entre
capoeiras e guarda urbana apresentada
nosdesenhos,essescasosaomenosrevelamhaversituaesvariadas,quenemsemprese
conformavamcomassituaesdescritasnasimagens.Aomesmotempo,sendodefinidoscomo
umapraga,oscapoeirasaparecemcomouminimigodifcildesercombatido,oqueguarda
semelhana tanto com a descrio do ministro da justia, quanto com os
desenhos de Agostini. Finalmente, a ltima nota parece revelar um
tipo de apario social dos capoeiras, um modo de agir que estava
intimamente relacionado apresentao de bandas musicais: (Detalhe do
desenho central da edio da Revista Illustrada, no. 174, agosto de
1879. A legenda diz: As praas de polcia vestem-se paisana e andam
jogando capoeira, armados de navalha! Excelente polcia!) Chapu de
banda, os policiais/capoeiras aparecem, sem qualquer tipo de
constrangimento, em
frenteaumabandademsica.Noaparentam,emprincpio,constituirqualquerameaa,
simplesmente esto gingando diante dos msicos e do pblico.Caso
estivessem atacando algum, os termos escolhidos poderiam ser
outros: estariam em exerccio de capoeiragem? Difcil saber: as
palavras,comoderestooutrosdetalhesassociadosaojogo,soescorregadias,imprecisas.A
principal diferena entre o desenho e a nota publicada no Dirio de
Notcias que os personagens do desenho, por serem tambm policiais,
provavelmente tiveram destino diferente. A escolha dessa
formadeapariosocialporpartedoscapoeirasseconfirmaemoutrasfontes,entreasquaiso
"*
romanceViagensMaravilhosas,queciteipginasatrs.Eraumcomportamentopblicobastante
comumdoscapoeiras,querecorrentementeescolhiamfestaseoutrosajuntamentospopularespara
daroardagraa29.Portanto,independentedosentidoquefoiassociadoatalprtica,elaparece
fundamenta na lgica dos capoeiras. Se haviam episdios como estes,
possivelmente no fossem l
muitorecorrentes,aomenosissoquepodeserconcludodabuscaquefizemdiversosjornais
dirios no decorrer da dcada de 1870 e incio da de 1880. E no
escusado lembrar que noticias envolvendo capoeira, como as
reproduzidas acima, eram recorrentes e pareciam atrair a ateno dos
dirios.Assim,reunindotodosessesindcios,creioserpossvelafirmarquehaviacasosemque
capoeirasrasgavam,oubuscavamrasgarabarrigadecidadoscomuns,emalgunscasosdeboa
posio social, embora as razes para estes atos permaneam obscuros.
Ao mesmo tempo, a nfase
dadanosdesenhosataisepisdios,assimcomoossentidosaelesatribudo,pareceserfrutoda
imaginao, ou do exagero, quem sabe do medo, dos autores dessas
descries.Emtodocaso,separececertohaverepisdiosdenavalhistasatacandoabarrigade
transeuntes,osentidoconferidoaessesataquescertamentenecessitamdereviso.Eisaquium
daquelestpicoscasosdefontesdebrancosquenoentendemaslgicasprpriasdeaodos
personagens/sujeitosnegros.Aimagemdohonestocidadocomadobradinhasexpostas
marcada por um nada tnue linha entre o horror da cena e a ironia
atribuda ao capoeira. O motivo,
testarofiodesuanavalha,confereumaqualidadeaopersonagemeaoperigoqueelerepresenta.
Nemcareceapurarosouvidosparaescutaroecodeoutrosrelatos:paraoministrodajustiade
1882,oscapoeirasacometemostranseuntesmovidospormeroinstintodeperversidade.,ao
passo que eles so entes perigosssimos, por isso que, armados de
instrumentos perfurantes, matam
aqualquerpessoainofensiva,speloprazerdematar.,defendeoBeaurepaire-Rohanemseu
dicionrio.Perigosospornatureza,aexplicaodaRevistaIllustradapareceamaisterrvel,dado
seroatopormotivoaindamaisfrvolo.Assim,temosumaprimeirarespostaparaodilemadas
barrigas.Osdesenhosedemaisdescriesenfatizamosataquessbarrigascomoformade
construir,reforarefixarumaimagemdoscapoeirasedosnegros.Irracionais,brbaros,
29SobreaapariodecapoeirasemfestaseajuntamentospopularesverCarloEugnioLbanoSoares.Festae
violncia:oscapoeiraseasfestaspopularesnacortedoRiodeJaneiro(1809-1890).In:MariaClementinaPereira
Cunha(org.)Carnavaiseoutrasf(r)estas:ensaiosdehistriasocialdacultura.Campinas:Ed.daUnicamp,2002,pp.
281-310. #+
incivilizados,mauspornatureza,osepisdiosenvolvendoasbarrigasseriamumaconfirmao
dessas caractersticas e por esse motivo mereceram algum destaque.
Mas, se as razes alegadas ajudam a entender um ponto de vista
branco sobre os capoeiras em
particular,eosnegrosdemodomaisgeral,comoexplicar,dopontodevistadospersonagens
negros, os ataques aos abdomens. Uma ltima imagem pode ajudar a
encaminhar explicaes para o mistrio: (Detalhe do desenho central da
edio de O Mequetrefe, no. 392, 20 de novembro de 1885. A legenda
diz: E um
cidadocomascompetentestripasaosol,nadamaisterafazerqueencomendaraalmaaDeus,eouvirnosseus
ltimos momentos esse dilogo: - Que bonita facada! Que servio bem
feito!... - Conheo o corte; isto obra do Morte-Certa!
Apesardanotatrgica,nohcomonegarhaverumfortecontedodehumornodesenho.
Humorreveladopelaconversaalgocomezinhaassociadaaotrocadilhosobreonomedoautorda
bem executada inciso. O restante da imagem, um tipo de crnica
visual, que ocupava inteiramente
duaspginasdaediodojornal,chamadadecousasdenossaterra30,dedicadapresena
descontroladadecapoeirasnacidade.Anovidadeemmaisessecasodebarrigaaberta,queainda
umaveznoapresentaqualquermotivoparatodesmedidoataque,aconversaqueoepisdio
provocou. O foco no est nos capoeiras e em suas aes, que integram a
cena de maneira indireta.
30Deumamaneirageral,osjornaisilustradospossuam8pginas,dasquais4eramdedicadasatextosedemais
reservadasparaosdesenhos.Nasduaspginascentrais,emmuitoscasos,formavamumtipodecrnicanaqualuma
pequena histria, ou episdio era narrado. precisamente em umas
dessas crnicas que este detalhe est inserido. #" O elemento central
da animada palestra a habilidade demostrada por Morte-Certa31.
Habilidade
comumfimdeterminado:amorte,tidacomocertaemcasoscomoesse.Ouseja,quandooalvo
escolhido era a barriga, provavelmente a inteno era matar. No era,
portanto, obra do acaso, ou motivado pelo simples desejo de testar
o fio da navalha
queumcapoeiraatacavaumabarrigacomsuahabilidadeinquestionvel,etocalorosamente
debatida pelos admiradores daquelas competentes tripas ao sol.
Parece ento razovel supor que os motivos de ataques como esse eram
mais srios, ou movidos por racionalidades que escapavam
compreensodosautoresdosdocumentosemtela.Ocertoqueessetipodeataqueassustavae
estimulavaaimaginaodeautoresdecaricaturasetextosliterrios,bemcomodeseusinmeros
leitores, devido ao grande e real perigo que representavam. Sem
saber exatamente por que razo, a sensao passada por imagens como
estas era a de que qualquer um, em qualquer lugar e hora, por
motivo desconhecido, ou mesmo sem motivo, podia ser vtima de corte
preciso assinado por algum Morte-Certa que lhe atravessasse o
caminho.Temosaqui,nomnimo,umrecadopolticopoderoso.Umrecadofundadojustamentena
grandeincertezaqueapresenadoscapoeirasproduzia.Observandoimagenscomoessas,lendo
narrativas que reforavam um possvel receio dos leitores, salta aos
olhos que eles contribuam para
aproduodomedo.Emumapalavra,estemedoeraproduzidosimultaneamentepelaimprensa
ilustradaediria-epelaaodoscapoeiras,podendoserentendidocomoumtipodemensagem
polticadoscapoeiras,mensagembementendidaetransmitidapelosresponsveispelasfolhas
ilustradas.Deumlado,oscapoeirasqueriamservistoscomopessoasperigosas,temidaspor
pessoascomunseimportantes,comooBarodeCotegipe,queapareceassustadonaprimeira
imagemdestetexto.Deoutro,aesseperigoassociava-seumproblemadelicado,quearrepiavaos
cabelosdeliteratosedesenhistascomoosaquiestudados,umavezqueosnavalhistasocupavam
espaos importantes na polcia, se associavam a importantes nomes da
poltica e ajudavam a decidir
eleies.Aomesmotempo,erampessoasperigosas,queagiamsegundoracionalidadesquelhes
escapavadacompreensosendo,destafeita,ameaasconstantes,umamalditaraaaser
exterminada o quanto antes. 31 Era comum que os capoeiras possussem
apelidos. Este, ao que tudo leva a crer, era inveno. ## 4.O cmulo
da amolao (Detalhe do desenho central da edio da Revista
Illustrada, no. 174, agosto de 1879. A legenda diz: o que se pode
chama o cmulo da amolao... para a vtima.)
Aesmagadoramaioriadasfolhasilustradasemcirculaonacorteestavaorganizadapor
personagenssmbolo,ounarradores32.NaRevistaIllustrada,osnarradoreseramosreprteres,
meninosumtantomalcriadosmasmuitoladinos33,comoestequeaparecenodesenhoacima.
Essespequenosmariolastinhamafunodebuscarnotcias.Estavajustamenteempenhadoem
cumprirumadesuasmissesquereportarseocupava.Comentandoacenadabarrigaabertado
honestocidado,mencionadapginasacima,ogarototrazmaisalgumaspistassobreoataques
barrigas. Novamente recorrendo ao trocadilho, to em moda naquelas
folhas, descreve esse tipo de agresso como uma grande chateao, um
enorme incmodo. Mas no um incmodo generalizado: era um problema
apenas para as vtimas, como o pequeno reprter observa com muita
sagacidade.Poismuitobem,issonoslevaparaoutraquesto:quemeramasvtimas?Segundoos
documentosataquiselecionados,trata-sedeburgueses,comodestacaEloy,oHeroe,ouseja,
pessoasbemcolocadassocialmente.Parachegaratalconcluso,bastaoleitorvoltaralgumas
pginaseobservarcomatenoasroupasdealgumasvtimas.Semprebemalinhada,ostentando
sempre uma bonita cartola, um bem alinhado palet ou sobrecasaca,
colete e gravata. Parece haver algum tipo de associao entre essas
pessoas e a barriga. Afinal de contas, quem deveria ter medo dos
capoeiras? Aqueles de boa posio social, que possuam boas roupas e
abdomens avantajados. O que estou procurando defender que essas
imagens apontam para um sentido social das barrigas. 32 Sobre os
narradores das folhas ilustradas ver Marcelo Balaban. Op.cit. 33
Revista Illustrada, no. 1, 01 de janeiro de 1876, p. 04 #$
Elasaparecemnosdesenhoscomumelementoquecompunhaafiguradohomembrancodeboa
posio social. Este tinha, ou deveria ter, medo dos
capoeiras.Buscandoemjornaisdiriosenossemanriosilustradosrefernciassbarrigas,encontrei,
semmaioresdificuldades,muitoscasosnosquaisestapartedaanatomiaestavadiretamente
associadaaumavidaconfortvel.Terabarrigacheianoeraparaqualquerum.Tambmme
deparei com outro sentido, associado a uma expresso ainda utilizada
nos dias de hoje: estar com o
reinabarriga.Aexpressoserveparadesignarpessoascheiasdesi,quiumtantopetulantes,
comumaposturaquemisturaconfianaearrogncia.Eisumapistafinal,queaindamerecemais
pesquisa,masdetodomodopareceseajustarperfeitamenteopiniomanifestadaem1838por
Graciano,escravodeJacomoRombo,vindodacostadaMinaecapoeira.Aoserpreso,aps
repetidasfugas,Gracianoexplicousuasaes:queriaafrontarateimosiadosbrancos.Ofinalda
histria no foi bom para Graciano. Devolvido ao senhor, este, para
baixar a crista do escravo, lhe aplicou castigo to forte que quase
o matou34. Voltando para das dcadas de 1870 e 1880, a ideia de
fazer da capoeira um meio de afrontar a teimosia, ou a altivez de
brancos bem nascidos, de posio
socialalta,comsuasbemalimentadasearrogantesbarrigasparecefazeralgumsentido.Os
capoeirasgostavamdesertemidos,seempenhavamemalimentaressafama.Poressarazoter
barriga, um tipo de marca de distino de classe, era tambm motivo
para ter medo.
34EssahistriafoianalisadaporThomasH.HollowaynoartigoqueescreveusobreacapoeiraeapolcianoRiode
Janeiro imperial. Conferir Thomas H. Holloway, op.cit.