-
Marcas do Passado: a memria das cidades nas redes sociais1
Felipe Gibson Cunha2 Lilian Carla Muneiro3 Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (UFRN)
Resumo
O artigo aborda o processo de resgate do passado das cidades
brasileiras por meio de fan pages criadas na rede social Facebook.
Os objetos de estudo escolhidos so as pginas Natal Como Te Amo e
Porto Alegre Fotos Antigas, que sero analisadas sob a perspectiva
do
engajamento gerado nos internautas ao postar imagens da vida
pregressa nas duas capitais. Para compreender o contexto de
virtualizao do passado e a interao proporcionada pelo
tema, relacionamos o desenvolvimento das tecnologias de
comunicao e a evoluo da Web 2.0 com conceitos de autores que
estudam o tema da memria. O trabalho encerra trazendo uma avaliao
sobre a importncia das iniciativas de resgate do passado no
ambiente online e
a possvel ampliao dos espaos dedicados ao tema.
Palavras-chave: Memria; Histria; Internet; Redes sociais;
Cidades
1. Do consumidor ao prosumer na Web 2.0
Das pginas estticas e de pouca mobilidade ao modelo interativo e
participativo. o
que se pode dizer da transio entre a primeira fase da Internet e
a chamada Web 2.0 - termo
criado pelo entusiasta do software e cdigo livres, Tim OReilly
que se caracteriza por levar
o usurio a um estgio diferente do que se tinha antes. De
consumidor passivo, o internauta
passa a ter a possibilidade de interagir e produzir contedo
dentro da rede mundial de
computadores.
Em seu livro A Terceira Onda, Alvin Tofler (1980) intitula como
prosumer o
indivduo que consome e produz ao mesmo tempo. Na Internet, o
conceito se encaixa no
perfil dos usurios da Web 2.0, cada vez mais livres para se
mover online e aptos a produzir
contedo no ambiente online. Paralelamente ao processo evolutivo
da Internet, ocorreu o
crescimento das novas tecnologias de comunicao, que aumentaram o
potencial do usurio
1 Artigo de concluso da Especializao em Propaganda e Marketing
na Gesto de Marcas da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte - UFRN
2Aluno da Especializao em Propaganda e Marketing na Gesto de
Marcas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
UFRN. E-mail: [email protected] 3 Professora Doutora
adjunta da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN.
E-mail: [email protected]
-
enquanto produtor de contedo. Com um celular, smartphone ou
tablet possvel gravar
udio, fotografar, filmar e compartilhar contedo na web.
Para Cris Anderson (2006), a democratizao das ferramentas
tecnolgicas ajuda a
explicar o crescimento no nmero de indivduos hoje capazes de
produzir o que antes s
estava ao alcance de profissionais. Entretanto, o autor refora
que apesar das tecnologias
estarem mais acessveis, a distribuio do contedo gerado por esses
usurios s foi possvel
graas Internet. O personal computer PC transformou todas as
pessoas em produtores e
editores, mas foi a Internet que converteu todo o mundo em
distribuidores (ANDERSON,
2006, p.39).
As ferramentas de produo e distribuio so duas das foras
colocadas por
Anderson (2006) como responsveis pelo alongamento da chamada
cauda longa, que
simboliza a descentralizao do poder do mercado na Internet. A
terceira a ligao entre
oferta e demanda. Se h mais gente produzindo e distribuindo
contedo na rede, o usurio tem
disposio mais opes de consumo. Com a mobilidade propiciada pela
web, natural que
esse usurio busque suas reas de interesse. Sob a influncia desse
conjunto de fatores se
multiplicam os nichos, no s na forma de iniciativas com fins
lucrativos, mas tambm no
formato de espaos de discusso, colaborao e oferta de contedo,
como acontece com as
duas fan pages objetos de estudo deste trabalho.
Em torno de temas de interesse comum se formam grupos de usurios
dispostos a
consumir e compartilhar contedo em espaos como fan pages, fruns
online e comunidades
virtuais. dentro deste contexto que ganha fora o conceito de
cultura participativa do qual
fala Henry Jenkins (2009). O autor explica a mudana no
relacionamento das pessoas com os
meios de comunicao, assim como a modificao dos papis de
produtores e consumidores.
Em vez de falar sobre produtores e consumidores de mdia como
ocupantes de papis
separados, podemos agora consider- los como participantes
interagindo de acordo com um
novo conjunto de regras, (JENKINS, 2009, p. 30).
Gilber Machado (2010, p. 129) acrescenta que o fator colaborao
muda o
paradigma de entender as pessoas apenas como a ponta final da
cadeia. O autor afirma que
nasce da a viso das parcerias de consumo, na qual as opinies dos
usurios ganham fora
sobre a deciso de consumir determinado contedo online em uma
cadeia de
interao/colaborao entre os internautas.
O reconhecimento e o enriquecimento mtuo so lembrados por Pierre
Lvy (2003)
como base e objetivo da inteligncia coletiva, segundo sua
definio: [...] uma inteligncia
distribuda por toda parte, incessantemente valorizada,
coordenada em tempo real, que resulta
-
em uma mobilizao efetiva das competncias (LVY, 2003, p. 28). A
mobilizao da qual
fala o autor acontece a partir da ao dos grupos de indivduos
dentro dos ambientes onde os
participantes esto conectados por um lao social baseado no
saber.
O lao social, formador do espao do saber, dotado de um carter
colaborativo, em
que cada indivduo contribui com seu conhecimento e capacidade
individual em prol do
grupo. Para que a inteligncia coletiva gere mobilizao, preciso
antes de tudo compreender
os saberes individuais dos participantes do grupo. Lvy (2003)
aponta o espao do saber ainda
em construo e enfatiza as novas tecnologias de comunicao e
informao como
ferramentas para desenvolver a inteligncia coletiva.
Para Jenkins (2009), a inteligncia coletiva gerada nos espaos
colaborativos da
Internet se constitui como uma fonte alternativa de informao. O
autor avalia que o poder
coletivo usado principalmente para fins recreativos dentro da
Internet, no entanto tais
habilidades podem ser aplicadas para propsitos de maior
relevncia social. Nenhum de ns
pode saber tudo; cada um de ns sabe alguma coisa; e podemos
juntar as peas, se
associarmos nossos recursos e unirmos nossas habilidades
(JENKINS, 2009, p. 30).
2. Memria e identidade
A construo da inteligncia coletiva estudada por Lvy (2003)
apresenta
semelhanas com os estudos sobre memria coletiva de Maurice
Halbwachs (2006). O autor
analisa que cada pessoa possui memrias individuais, frutos de
suas vivncias particulares, no
entanto essas lembranas pessoais so acionadas por cdigos
socioculturais presentes na
sociedade e identificados sob a forma de memria coletiva.
Halbwachs afirma que: um
homem, para evocar seu prprio passado, tem frequentemente
necessidade de fazer apelo s
lembranas dos outros. Ele se reporta a pontos de referncia que
existem fora dele, e que so
fixados pela sociedade (2006, p. 4).
Se a construo da inteligncia coletiva acontece na unio e
compartilhamento de
saberes individuais, a memria coletiva serve como ponto de
referncia para que as memrias
individuais sejam resgatadas. Para reconstruir a lembrana, o
indivduo busca marcas de
proximidade que o identificam como membro de um grupo, onde
poder compartilhar
recordaes. Apesar do apoio no ponto de referncia, as memrias
individuais tambm
caminham sozinhas. O envolvimento com a memria coletiva ocorre
em maior ou menor
proporo, dependendo de cada indivduo. Halbwachs explica o
relacionamento entre a
memria individual e coletiva da seguinte forma:
-
Se essas duas memrias se penetram frequentemente; em particular
se a
memria individual pode, para confirmar algumas de suas
lembranas, para
precis-las, e mesmo para cobrir algumas de suas lacunas,
apoiar-se sobre a
memria coletiva, deslocar-se nela, confundir-se momentaneamente
com ela;
nem por isso deixa de seguir seu prprio caminho, e todo esse
aporte exterior
assimilado e incorporado progressivamente a sua substncia. A
memria
coletiva, por outro, envolve as memrias individuais, mas no se
confunde
com elas. Ela evolui segundo suas leis, e se algumas lembranas
individuais
penetram algumas vezes nela, mudam de figura assim que sejam
recolocadas
num conjunto que no mais uma conscincia pessoal. (HALBWACHS,
2006,
p. 53 e 54)
Sobre os critrios que constituem as memrias individual e
coletiva, Pollak (1992) cita
os acontecimentos, personagens e lugares, conhecidos direta ou
indiretamente. De acordo com
o autor, a influncia desses elementos ocorre tanto em um plano
direto, no qual o indivduo de
fato viveu o acontecimento, esteve com o personagem ou conheceu
o lugar, ou em uma
vivncia por tabela, em que acontecimentos, personagens ou
lugares no foram vivenciados
diretamente, mas tm grande significncia para o grupo. Dessa
forma, os elementos
conhecidos por tabela se incorporam memria individual.
perfeitamente possvel que,
por meio da socializao poltica, ou da socializao histrica,
ocorra um fenmeno de
projeo ou de identificao com determinado passado, to forte que
podemos falar numa
memria quase que herdada (POLLAK, 1992, p. 2).
Para o autor, se a construo da memria feita social e
individualmente, pode-se
dizer que existe uma relao profunda deste fenmeno com o
sentimento de identidade.
Individual e coletivamente, a memria determinante para a
continuidade e coerncia do
processo de reconstruo de uma pessoa ou grupo para si mesmo.
elemento fundamental
para acionar o sentimento de identidade.
Outro elemento observado por Pollak que essa reconstruo
individual e coletiva
tambm est em constante negociao e nunca isenta de mudanas,
principalmente pela figura
do outro, que escapa ao indivduo e ao grupo. O conflito pode
acontecer, por exemplo,
diante de um mesmo acontecimento vivenciado por pessoas ou
grupos diferentes com
perspectivas distintas. Pollak afirma que: A construo da
identidade um fenmeno que se
produz em referncia aos outros, em referncia aos critrios de
aceitabilidade, de
admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio da
negociao direta com outros
(1992, p. 5). H uma multiplicidade de lembranas e memrias a
serem levadas em conta
nesse processo de construo.
-
3. Construo da memria das cidades na Internet
A memria como um fenmeno atual, vivida no dia a dia e repassada
entre os
indivduos cotidianamente. J a histria surge como uma representao
problemtica e
incompleta do passado. Definindo memria e histria nessas
perspectivas, Pierre Nora (1993)
analisa que a memria espontnea sofreu um esvaziamento ao longo
do tempo, o que obrigou
grupos e pessoas a consagrar lugares para ancorar essa memria
que se foi. O autor chama
esses espaos de lugares de memria. Se habitssemos ainda nossa
memria no teramos
necessidade de lhe consagrar lugares. No haveria lugares porque
no haveria memria
transportada pela histria (NORA, 1993, p. 9).
Para Nora, o sentimento de que no h memria espontnea levou criao
de
operaes para reconstituir um tempo pregresso. So arquivos,
documentos, imagens,
discursos, testemunhos e outros mecanismos de materializao
capazes de resgatar a memria
que j no natural. De acordo com Nora, momentos de histria
arrancados do movimento
da histria, mas que lhe so devolvidos (1993, p. 13).
O autor acrescenta que o registro de produtos da memria, antes
restrita a grandes
produtores como famlias influentes, Igreja e Estado, tem passado
por um processo de
descentralizao. Nora observa que essa mudana foi movida
principalmente pela
multiplicao de memrias particulares reclamando a prpria histria,
o que aproxima os
fenmenos da metamorfose histrica e da psicologia individual.
Aliado a esse processo, a democratizao dos suportes
comunicacionais fez crescer o
nmero de produes que retratam o passado e permitiu que at mesmo
indivduos comuns
pudessem produzir seus prprios produtos de memria. O nascimento
e desenvolvimento da
Internet leva a questo a um novo patamar.
Para Eliza Casadei (2009), as novas tecnologias de comunicao,
por meio de
entrecruzamentos e reestruturaes de linguagens, colocam em
operao um novo modelo de
transmisso da memria e do passado, sobretudo pelas formas de
interao possveis com os
lugares de memria tradicionais. A autora caracteriza o novo
modelo de transmisso em dois
eixos, um referente s linguagens utilizadas, e outro na mudana
do papel do usurio dentro
do ambiente online, agindo ativamente no processo de construo
das identidades coletivas.
Na caracterizao do primeiro eixo, Casadei (2009) cita Santaella
(2007) para destacar
a reorganizao das linguagens tanto do ponto de vista da
articulao de formatos, como
imagens, vdeos e escritas, quanto da possibilidade de organizao
no linear dos fluxos de
informao. O resultado uma estrutura que permite novas formas de
consumo de contedo e
-
interao, base do segundo do segundo eixo e elemento que
destacamos anteriormente como
determinante no desenvolvimento da Web 2.0.
Quando se fala em reconstruo da memria na Internet, o poder de
interao do
usurio facilita sua atuao como testemunha no processo de
reconstruo do passado. Com
esse arranjo, os tradicionais lugares de memria de Nora passam a
ter uma contribuio que
vai alm do contedo disseminado pelos grandes produtores. Ganham
fora as memrias
individuais, que segundo Casadei, deixam o processo de
reconstruo do passado mais
dinmico e menos dependente do que j est posto nos tradicionais
lugares de memria.
neste contexto que nasceram na Internet projetos com a proposta
de resgate da
memria. Muitas vezes deixada de lado em arquivos de
colecionadores, museus e instituies
pblicas ou privadas, a histria das cidades brasileiras passa por
um momento de resgate no
mundo virtual. Com o potencial de interao da Web 2.0 e a
iniciativa de usurios da Internet,
novos espaos esto sendo criados com o intuito de disseminar
informaes e fotos que
resgatam a histria pregressa de determinados lugares.
Assim como ocorre com a reorganizao das linguagens, na Internet,
conforme explica
Dodebei (2011), a natureza das fontes e arquivos tambm alterada.
Nos ambientes online as
narrativas so organizadas e disseminadas por meio de websites,
blogs, mdias sociais, entre
outras possibilidades. Para a autora, a digitalizao dos
patrimnios oferece um potencial de
reproduo diferenciado. Textos, imagens, sons organizados como em
um recorte
enciclopdico, podem ser acessados em tempo real por um nmero
cada vez mais amplo de
internautas que se apropriam, reformatam e devolvem ao
ciberespao novas informaes
(DODEBEI, 2008, p. 4).
No presente projeto, analisaremos as propostas de resgate de
memrias das cidades
brasileiras no Facebook, rede social que vem sendo usada para
compartilhamento de
informaes, imagens e vdeos que relembram o passado dos lugares.
Isso vem acontecendo
com a criao de fan pages, ou pginas de fs, um formato de pgina
do Facebook
direcionada para empresas, marcas, produtos, sindicatos, ou
qualquer organizao com ou
sem fins lucrativos que deseje interagir com os usurios da rede
social (LUSTOSA, 2012). A
interao acontece por meio de comentrios, compartilhamentos e
curtidas.
Analisando as pginas criadas com o objetivo de resgatar a memria
das cidades
brasileiras, observamos que as iniciativas de estruturao partem
e dependem da ao dos
usurios que assumem o papel de administradores do contedo.
Entretanto, as propostas
destes espaos convidam os demais internautas a serem
participantes no processo de produo
de informao. Mesmo ainda dependente da atuao dos administradores
na postagem do
-
contedo, as pginas se alimentam e perpetuam a partir da
colaborao dos usurios, seja na
forma de comentrios, compartilhamentos ou envio de material para
postagem.
o que acontece com nossos dois objetos de estudo, as fan pages
Natal Como Te
Amo e Porto Alegre Fotos Antigas, sobre as cidades de Natal e
Porto Alegre. A escolha dos
objetos de estudo considerou as peculiaridades e diferenas das
capitais potiguar e gacha.
Natal, cidade litornea de pouco mais de 803 mil habitantes,
segundo o Censo de 2010 do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), est
localizada no estado do Rio
Grande do Norte, que compe a regio Nordeste do Brasil. Com 1,4
milho de habitantes,
tambm de acordo com dados do IBGE, Porto Alegre fica no estado
do Rio Grande do Sul, na
regio Sul do pas.
Em um pas de dimenses continentais como o Brasil, lugares
localizados em
extremos opostos apresentam diferenas muito alm do plano
territorial. Fatores como
imigrao, clima e economia colocam Natal e Porto Alegre em campos
distintos do ponto de
vista cultural e de desenvolvimento urbano. levando em
considerao tal quadro que
escolhemos analisar as perspectivas das duas cidades dentro do
contexto central dos espaos
colaborativos destinados ao resgate da histria de ambas na rede
mundial de computadores.
4. Natal como Te Amo
O projeto Natal Como Te Amo nasceu inicialmente como blog. A
proposta partiu de
Carlos Augusto Costa, professor universitrio graduado em
Marketing, com a ideia inicial de
abordar problemas cotidianos da cidade com ironia. Cerca de dois
anos depois, em julho de
2011, Carlos Augusto criou fan page no Facebook, que servia
apenas como canal para
compartilhar links de contedos produzidos no blog. Como o prprio
administrador da pgina
reconhece, as postagens geravam pouca repercusso na rede social
durante os primeiros
meses.
At que em 26 de janeiro de 2012, a pgina postou uma foto area
antiga do bairro
de Ponta Negra, na zona Sul da cidade. A imagem foi
compartilhada 764 vezes por outros
usurios, recebeu 81 comentrios e foi curtida por 371
internautas. A postagem seguinte, uma
foto antiga da regio do Baldo, na zona Leste de Natal, ainda sem
o viaduto que atualmente
passa pela regio, teve 905 compartilhamentos, 108 comentrios e
396 curtidas. A partir de
ento a pgina se consolidou como um espao de disseminao de
imagens antigas da cidade.
Carlos Augusto explica que comeou o trabalho usando fotos de
cartes postais
antigos e digitalizados de sua propriedade. Com o envolvimento
dos usurios aumentando na
pgina, o administrador abriu espao para que os seguidores
enviassem imagens para serem
-
postadas no Natal Como Te Amo. A resposta foi positiva. De
acordo com Carlos Augusto, o
projetou j recebeu a contribuio de mais de 600 fotos enviadas
por usurios, porm os
envios tm diminudo. Atualmente a pgina acumula 21.333
seguidores. So mantidas contas
do Natal Como Te Amo tambm na rede social Instagram e no
microblog Twitter.
As postagens com maior repercusso retratam o Morro do Careca,
carto-postal mais
conhecido da capital potiguar. Foram duas fotos enviadas por
usurios e creditadas pelo
administrador da pgina. Uma delas, enviada por Carmem Daniella
Spnola, e postada em 3
de maro de 2012, teve 1.319 compartilhamentos, 162 comentrios e
688 curtidas, enquanto a
outra, do arquivo pessoal do usurio Leandro Menezes, gerou 1.273
compartilhamentos, 133
comentrios e 675 curtidas.
Figura 1: Morro do Careca, na praia de Ponta Negra, em Natal
Fonte: https://www.facebook.com/NatalComoTeAmo
Apesar do fato de o Morro do Careca ser uma referncia para a
cidade ajudar a
explicar a repercusso das duas fotos, o aspecto da memria
determinante no engajamento
causado pelas imagens. Ambas as fotos mostram uma praia de Ponta
Negra antes da
urbanizao e foram feitas do alto do Morro do Careca, atualmente
interditado para o pblico
e com as subidas proibidas.
-
A ocupao do bairro de Ponta Negra comeou aps a 2 Guerra Mundial
com a
construo de casas de veraneio (SEMURB, 2006). Na dcada de 1940
foi iniciado o
povoamento da Vila de Ponta Negra, comunidade at hoje existente.
O processo de
urbanizao do bairro se acelerou na dcada de 1980, quando a
estrada que levava ao bairro
foi duplicada e asfaltada, facilitando o acesso dos moradores
das demais zonas da cidade ao
local. Ao mesmo tempo era concluda a obra da Via Costeira, que
liga as praias da zona Leste
da cidade e Ponta Negra. Na dcada de 2000 veio a construo do
calado da praia. quela
altura o processo de urbanizao estava consolidado, transformando
um local antes pouco
habitado em um dos principais pontos tursticos da cidade.
Antes de uma interveno judicial para interdio do Morro do
Careca, era comum
que banhistas, comerciantes e pescadores subissem pela areia. A
prtica comeou a ser
questionada em 1997, segundo o jornal Tribuna do Norte (2011),
quando o Ministrio Pblico
Federal moveu uma ao civil pblica pedindo a interdio do Morro do
Careca para fins de
preservao e recuperao. Ainda de acordo com o jornal, o Ministrio
Pblico argumentava
que o morro estava perdendo a vegetao natural e a beleza
paisagstica devido ao sobe e
desce dos banhistas e turistas. O pedido foi acatado
parcialmente pela Justia, que permitiu a
circulao apenas para as autoridades pblicas no exerccio estrito
de suas atribuies e para
os pescadores, que poderiam continuar, provisoriamente,
utilizando a trilha necessria ao
retorno da praia de Alagamar durante as altas da mar.
Principal carto-postal da cidade, o Morro do Careca surge no
contexto das duas
imagens compartilhadas no Natal Como Te Amo como smbolo de um
tempo que ficou no
passado de Ponta Negra. Enquanto lugar de memria, o morro, em
suas imagens antigas,
aciona as memrias individuais dos usurios. Nos comentrios feitos
nas postagens da pgina,
os internautas compartilham suas experincias e opinies sobre o
Morro do Careca e Ponta
Negra.
Os usurios enaltecem a beleza do lugar, mas tambm abrem espao
para o debate
sobre a interdio do morro e a urbanizao da praia. Observamos
aqui as imagens antigas do
Morro do Careca acionarem algo alm do saudosismo por uma praia
no urbanizada e por um
carto-postal que podia ser acessado pela populao. As fotos
antigas so tomadas como base
para se discutir o processo que culminou na urbanizao da regio e
interdio do morro, o
que nos leva a compreender com mais profundidade a importncia do
resgate do passado.
Com a boa repercusso do projeto, Carlos Augusto mostra interesse
em buscar
parceiros para ampliar o Natal Como Te Amo. O professor acredita
que o projeto uma
ferramenta para tentar mudar o que ele coloca como descaso do
poder pblico com a histria
-
da cidade. O administrador da pgina cobra a existncia de mais
museus e uma maior
divulgao dos espaos que resgatam a memria da cidade.
5. Porto Alegre Fotos Antigas
A pgina Porto Alegre Fotos Antigas foi criada no Facebook em
novembro de 2011.
O idealizador do projeto Valter Barbosa, que formado em Sistemas
de Informao e
trabalha com comrcio eletrnico. De acordo com Barbosa, o gosto
pelas fotos antigas foi o
que motivou o nascimento do Porto Alegre Fotos Antigas. Tudo
comeou na rede social
Orkut, onde Barbosa j mantinha um lbum em seu perfil pessoal com
imagens antigas de
Porto Alegre extradas de blogs e sites na Internet. Ao abrir uma
conta pessoal no Facebook, o
fundador do Porto Alegre Fotos Antigas mantinha mais de 200
fotos antigas da capital
gachas em seu perfil.
Barbosa conta que a ideia de criar a pgina nasceu depois que um
amigo
compartilhou o lbum de fotos antigas com seguidores no Facebook.
De acordo com ele, a
postagem chegou casa dos 900 compartilhamentos e vrias pessoas
procuraram adicion- lo
como amigo na rede social. Um dos usurios interessados nas
imagens deu a ideia da criao
da pgina. Desde a fundao o espao tem se dedicado exclusivamente
a postar fotos antigas
de Porto Alegre. As imagens so extradas de blogs, sites e outros
locais na Internet, com o
objetivo de resgatar o passado da cidade. O fan page tem
atualmente 30.729 seguidores.
Nos pouco mais de dois anos de funcionamento da pgina, a
postagem que mais
gerou repercusso uma foto que mostra o Mercado Pblico de Porto
Alegre e m 1875.
Projetado em 1961, o mercado foi tombado em 1979 como patrimnio
histrico e cultural da
cidade. Apesar de ter passado por uma reforma que modernizou a
estrutura entre 1990 e 1997,
o local ainda preserva a arquitetura da poca em que foi
construdo e funciona at hoje. A
imagem com 2.632 compartilhamentos, 180 comentrios e 1.902
curtidas mostra o mercado
rodeado por estradas de terra, onde carroas levadas por animais
circulam, diferente da
estrutura urbanizada que se tem atualmente no entorno. Essa
mudana exaltada nos
comentrios dos usurios.
De acordo com o criador da pgina, imagens como a do mercado
pblico, que
ilustram locais onde houve muita mudana, costumam gerar mais
engajamento entre os
usurios. Somado a isso esto fotos de lugares que no existem mais
e de estdios de futebol
como Olmpico e Beira-Rio.
-
Figura 2: Rua Riachuelo, no Centro Histrico de Porto Alegre, em
1969
Fonte: https://www.facebook.com/OldPortoAlegre
O choque provocado pela mudana ao longo da histria notado em uma
postagem
sobre a Rua Riachuelo, uma das mais antigas e conhecidas do
Centro Histrico de Porto
Alegre. A imagem, que mostra a rua em 1969, ainda com os antigos
bondes em movimento,
gerou 1.370 compartilhamentos, 164 comentrios e 1.135 curtidas,
tornando-se uma das que
mais provocou envolvimento dos usurios na pgina.
Assim como ocorreu com as postagens do Morro do Careca na pgina
Natal Como
Te Amo, a imagem da Rua Riachuelo com os bondes em movimento
tambm resultou em
comentrios crticos, desta vez sobre a questo da mobilidade
urbana da cidade. Os
comentrios tm foco, sobretudo, no processo de substituio de um
transporte coletivo como
o bonde pelos automveis. Em Porto Alegre, os ltimos bondes
circularam em maro de 1970
medida que davam espaos para os nibus como transporte coletivo.
As fotos antigas so
usadas como referncia para uma crtica ao projeto de mobilidade
adotado pela cidade. o
passado resgatado assumindo papel importante na discusso do
presente e do futuro das
cidades.
Embora receba um bom retorno em termos de compartilhamentos,
comentrios e
curtidas, o Porto Alegre Fotos Antigas recebe pouca contribuio
de contedo, conforme
revela Valter Barbosa. O idealizador do projeto revela que de
todas as fotos encontradas na
pgina, o total de imagens enviadas pelos seguidores no chega
casa dos 5%. O baixo
-
retorno dos usurios na contribuio de contedo, aliado ao
esgotamento das fontes da
Internet, tem dificultado a busca por fotos inditas e que tenham
bom valor visual, segundo
Barbosa.
Sobre o futuro do projeto, o criador do Porto Alegre Fotos
Antigas explica que s
pensa em ampliar a quantidade de postagens. Como divide o
trabalho voluntrio na pgina
com projetos profissionais, Barbosa conta que pensa em talvez
conseguir um ajudante para
administrar a pgina.
Para o administrador do Porto Alegre Fotos Antigas, o poder
pblico tem boas
propostas, das quais ele cita o Viva o Centro a P, criado para
valorizar o Centro Histrico
da cidade, porm Barbosa ainda enxerga deficincias na divulgao
dos eventos que
relembrem o passado da capital gacha. De acordo com ele, as
informaes sobre o passado
da cidade so acessveis, como no Museu Joaquim Felizardo,
entretanto poucos sabem da
existncia dos espaos e projetos.
6. Consideraes finais
O desenvolvimento das novas tecnologias de comunicao abriu a
possibilidade de
transformao dos usurios e consumidores passivos em produtores de
contedo. Ao mesmo
tempo, a Internet, sobretudo em sua verso 2.0, chegou para
permitir a distribuio das
produes independentes em grande escala no ambiente online. O
conjunto da
democratizao das tecnologias de comunicao com a distribuio a
baixo custo na Internet
foi o grande impulsionador de projetos na rede mundial de
computadores.
As iniciativas independentes nascem como websites, blogs e tambm
em
comunidades ou grupos criados em redes sociais como Orkut e
agora Facebook. Alm da
figura do administrador das pginas, responsvel pela produo da
maior parte do contedo,
os ambientes tambm sobrevivem e se perpetuam pela colaborao dos
usurios. As fan pages
do Facebook Natal Como Te Amo e Porto Alegre Fotos Antigas so
exemplos de iniciativas
que partiram de pessoas com formao profissional que no est
ligada a reas relacionadas
disciplina da histria. As propostas nasceram de preferncias
individuais pelo tema e da
vontade de compartilhar isso com pessoas de interesse em
comum.
A Internet tem funcionado nos dois casos como espao de resgate
do passado das
cidades. Dos livros e arquivos, fotos antigas chegam web e
encontram um espao onde
provocam engajamento nos usurios, que muito alm do saudosismo,
tm abo rdado o
processo de mudana pelo qual os lugares retratados passaram ao
longo do tempo. A
evocao do passado como um tempo melhor de ser vivido foi
observada nas duas pginas do
-
ponto de vista de como eram as cidades antes do processo de
urbanizao pelo qual passaram,
abordagem feita a partir de lembranas ou de crticas relacionas s
transformaes sofridas.
Por meio da participao em comentrios, os usurios promovem a
reconstruo dos
tempos idos. As memrias individuais so acionadas pelas imagens
dos lugares e
acontecimentos da cidade no passado. A memria coletiva aparece
como ponto de referncia
para que as lembranas individuais venham tona, conforme explica
Halbwachs (2006).
Pollak (1992) acrescenta que por ser construda social e
individualmente, a memria guarda
profunda relao com o sentimento de identidade, exatamente o que
observamos analisando
os comentrios dos usurios nas duas pginas. Os internautas
revelam um sentimento de
pertencimento aos locais retratados e ajudam na reconstruo do
passado contido nas
imagens. Tal reconstruo, ainda de acordo com Pollak,est em
constante negociao por
envolver uma multiplicidade de lembranas e memrias a serem
levadas em conta.
Nos espaos de resgate do passado na Internet os testemunhos e
opinies de usurios
se fazem presentes e possibilitam conflitos entre as memrias dos
prprios indivduos ou com
a chamada memria oficial. No contexto dessa negociao entre as
memrias individual e
coletiva a vida pregressa reconstruda no ambiente online. um
poder coletivo, que como
explica Jenkins (2009), pode ser usado para fins recreativos,
mas tambm aplicado em
propsitos de maior relevncia social, como a valorizao do
patrimnio das cidades.
Nas falas dos criadores do Natal Como Te Amo e do Porto Alegre
Fotos Antigas fica
claro o descontentamento com a divulgao que o poder pblico d
para os espaos que
resgatam a histria das cidades, isso quando os prprios locais no
so alvo de crtica, como
foi o caso da capital do Rio Grande do Norte. Tais constataes
nos levam importncia de se
preservar o patrimnio material e imaterial das cidades, o que
vem acontecendo a partir da
ocupao de espaos na Internet para divulgao e disseminao dos
temas do passado.
Pelo engajamento provoca nas pginas Natal e Porto Alegre se
observa a necessidade
a necessidade dar mais ateno ao tema, sobretudo por parte do
poder pblico. A ocupao
dos ambientes online com a proposta de resgate do passado tem
potencial a ser desenvolvido,
o que aliado a projetos de valorizao da memria para visitao
dentro das cidades pode
gerar retornos importantes. Resultados que podem acontecer tanto
do posto de vista dos
habitantes das capitais, no que tange ao conhecimento, gerao de
postura crtica s
transformaes e fortalecimento do sentimento de identidade,
quanto daqueles que visitam os
lugares, na perspectiva do desenvolvimento do turismo cultural e
gerao de renda, trazendo
benefcios diretos a quem resgata essas memrias esquecidas.
-
7. Referncias
ANDERSON, Chris. A Cauda Longa Do mercado de massa para o
mercado de nicho. 1 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006. BEZERRA,
Karen; S, Ricardo. Urbanizao e Turismo em Ponta Negra: Transformaes
Espaciais na Cidade de Natal-RN. In: V SEMINRIO DE PESQUISA EM
TURISMO DO MERCOSUL, 2008, Caxias do Sul. CASADEI, Eliza. Os novos
lugares de memria na internet: As prticas representacionais do
passado em um ambiente online. BOCC. Biblioteca On-line de
Cincias da Comunicao, v. 1, p. 1-27, 2009. DODEBEI, Vera .
Patrimnio Digital Virtual: herana, documento e informao. In: 26a.
Reunio Brasileira de Antropologia, 2008, Porto Seguro. Anais da
26a. Reunio Brasileira de Antropologia. So Paulo: Associao
Brasileira de Antropologia, 2008. v. 1. p. 1-12. DODEBEI, Vera.
Memria e patrimnio: Perspectivas de acumulao/dissoluo no
ciberespao. Aurora, So Paulo, PUC/SP, n.10, p. 36-50, 2011. FRANCO,
Srgio da Costa. Porto Alegre: guia histrico. Porto Alegre: UFRGS,
1988. HALBWACHS, Maurice. A memria coletiva. So Paulo: Centauro,
2004. IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica. Censo
Demogrfico. Disponvel em: . Acesso em: 8 mar. 2014. JENKINS, Henry.
Cultura da Convergncia. So Paulo: Aleph, 2009. JULIO, Valdir. De
carto postal monumento natural. Tribuna do Norte , Natal, 16 de
julho, 2011. Disponvel em: . Acesso em: 20 mar. 2014. LVY, Pierre.
Cibercultura. So Paulo: Editora 34, 1999. LUSTOSA, Leandro. O que
uma Fanpage?. Disponvel em: . Acesso em: 14 mar. 2014. MACHADO,
Gilber. Coletivos criativos e voluntariado: novas abordagens de
mdia e inovao na era dos Prosumers. In: AYRES, Marcel; CERQUEIRA,
Renata; DOURADO, Daniela; SILVA, Tarczio (orgs). #MidiasSociais:
Perspectivas, Tendncias e Reflexes, 2010. Disponvel em: . Acesso
em: 11 jan. 2014.
-
NORA, Pierre. Entre memria e histria: a problemtica dos lugares.
Projeto Histria, So Paulo, n. 10, p. 1-78, dez. 1993. POLLAK,
Michael. Memria e identidade social. Estudos Histricos , Rio de
Janeiro, ano 5, n. 10, 1992.
SANTAELLA, Lucia. As linguagens como antdotos ao midiacentrismo.
Matrizes. So Paulo, ano 1, n 1, 2007.
SEMURB. Natal e sua Regio Metropolitana. Natal, 2006. Disponvel
em: . Acesso em: 15 mar. 2014.