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Contos Fluminenses
Texto-fonte:
Obra Completa, Machado de Assis, vol. II,Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1994.
Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, em
1870.
NDICE
MISS DOLLAR
LUS SOARES
A MULHER DE PRETO
O SEGREDO DE AUGUSTA
CONFISSES DE UMA VIVA MOA
LINHA RETA E LINHA CURVA
FREI SIMO
MISS DOLLAR
NDICE
CAPTULO PRIMEIRO
CAPTULO II
CAPTULO III
CAPTULO IV
CAPTULO V
CAPTULO VI
CAPTULO VII CAPTULO VIII
CAPTULO PRIMEIRO Era conveniente ao romance que o leitor ficasse
muito tempo sem saber quem era Miss Dollar. Mas por outro lado, sem
a
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apresentao de Miss Dollar, seria o autor obrigado a longas
digresses, que encheriam o papel sem adiantar a ao. No hhesitao
possvel: vou apresentar-lhes Miss Dollar. Se o leitor rapaz e dado
ao gnio melanclico, imagina que Miss Dollar uma inglesa plida e
delgada, escassa de carnes ede sangue, abrindo flor do rosto dois
grandes olhos azuis e sacudindo ao vento umas longas tranas loiras.
A moa emquesto deve ser vaporosa e ideal como uma criao de
Shakespeare; deve ser o contraste do roastbeef britnico, com quese
alimenta a liberdade do Reino Unido. Uma tal Miss Dollar deve ter o
poeta Tennyson de cor e ler Lamartine no original; sesouber o
portugus deve deliciar-se com a leitura dos sonetos de Cames ou os
Cantos de Gonalves Dias. O ch e o leitedevem ser a alimentao de
semelhante criatura, adicionando-se-lhe alguns confeitos e
biscoitos para acudir s urgncias doestmago. A sua fala deve ser um
murmrio de harpa elia; o seu amor um desmaio, a sua vida uma
contemplao, a suamorte um suspiro. A figura potica, mas no a da
herona do romance. Suponhamos que o leitor no dado a estes
devaneios e melancolias; nesse caso imagina uma Miss Dollar
totalmentediferente da outra. Desta vez ser uma robusta americana,
vertendo sangue pelas faces, formas arredondadas, olhos vivos
eardentes, mulher feita, refeita e perfeita. Amiga da boa mesa e do
bom copo, esta Miss Dollar preferir um quarto de carneiroa uma
pgina de Longfellow, coisa naturalssima quando o estmago reclama, e
nunca chegar a compreender a poesia dopr-do-sol. Ser uma boa me de
famlia segundo a doutrina de alguns padres-mestres da civilizao,
isto , fecunda eignorante. J no ser do mesmo sentir o leitor que
tiver passado a segunda mocidade e vir diante de si uma velhice sem
recurso. Paraesse, a Miss Dollar verdadeiramente digna de ser
contada em algumas pginas, seria uma boa inglesa de cinqenta
anos,dotada com algumas mil libras esterlinas, e que, aportando ao
Brasil em procura de assunto para escrever um romance,realizasse um
romance verdadeiro, casando com o leitor aludido. Uma tal Miss
Dollar seria incompleta se no tivesse culosverdes e um grande cacho
de cabelo grisalho em cada fonte. Luvas de renda branca e chapu de
linho em forma de cuia,seriam a ltima demo deste magnfico tipo de
ultramar. Mais esperto que os outros, acode um leitor dizendo que a
herona do romance no nem foi inglesa, mas brasileira dosquatro
costados, e que o nome de Miss Dollar quer dizer simplesmente que a
rapariga rica. A descoberta seria excelente, se fosse exata;
infelizmente nem esta nem as outras so exatas. A Miss Dollar do
romance no a menina romntica, nem a mulher robusta, nem a velha
literata, nem a brasileira rica. Falha desta vez a
proverbialperspiccia dos leitores; Miss Dollar uma cadelinha galga.
Para algumas pessoas a qualidade da herona far perder o interesse
do romance. Erro manifesto. Miss Dollar, apesar de noser mais que
uma cadelinha galga, teve as honras de ver o seu nome nos papis
pblicos, antes de entrar para este livro. OJornal do Comrcio e o
Correio Mercantil publicaram nas colunas dos anncios as seguintes
linhas reverberantes depromessa:
Desencaminhou-se uma cadelinha galga, na noite de ontem, 30.
Acode ao nome de Miss Dollar. Quem a achoue quiser levar Rua de
Mata-cavalos no..., receber duzentos mil-ris de recompensa. Miss
Dollar tem umacoleira ao pescoo fechada por um cadeado em que se
lem as seguintes palavras: De tout mon coeur.
Todas as pessoas que sentiam necessidade urgente de duzentos
mil-ris, e tiveram a felicidade de ler aquele anncio,andaram nesse
dia com extremo cuidado nas ruas do Rio de Janeiro, a ver se davam
com a fugitiva Miss Dollar. Galgo queaparecesse ao longe era
perseguido com tenacidade at verificar-se que no era o animal
procurado. Mas toda esta caadados duzentos mil-ris era
completamente intil, visto que, no dia em que apareceu o anncio, j
Miss Dollar estava aboletadana casa de um sujeito morador nos
Cajueiros que fazia coleo de ces.
CAPTULO II Quais as razes que induziram o Dr. Mendona a fazer
coleo de ces, coisa que ningum podia dizer; uns queriam quefosse
simplesmente paixo por esse smbolo da fidelidade ou do servilismo;
outros pensavam antes que, cheio de profundodesgosto pelos homens,
Mendona achou que era de boa guerra adorar os ces. Fossem quais
fossem as razes, o certo que ningum possua mais bonita e variada
coleo do que ele. Tinha-os de todasas raas, tamanhos e cores.
Cuidava deles como se fossem seus filhos; se algum lhe morria
ficava melanclico. Quase sepode dizer que, no esprito de Mendona, o
co pesava tanto como o amor, segundo uma expresso clebre: tirai do
mundo oco, e o mundo ser um ermo. O leitor superficial conclui
daqui que o nosso Mendona era um homem excntrico. No era. Mendona
era um homem comoos outros; gostava de ces como outros gostam de
flores. Os ces eram as suas rosas e violetas; cultivava-os com
omesmssimo esmero. De flores gostava tambm; mas gostava delas nas
plantas em que nasciam: cortar um jasmim ou prenderum canrio
parecia-lhe idntico atentado. Era o Dr. Mendona homem de seus
trinta e quatro anos, bem apessoado, maneiras francas e distintas.
Tinha-se formado emmedicina e tratou algum tempo de doentes; a
clnica estava j adiantada quando sobreveio uma epidemia na capital;
o Dr.Mendona inventou um elixir contra a doena; e to excelente era
o elixir, que o autor ganhou um bom par de contos de ris.Agora
exercia a medicina como amador. Tinha quanto bastava para si e a
famlia. A famlia compunha-se dos animais citadosacima. Na memorvel
noite em que se desencaminhou Miss Dollar, voltava Mendona para
casa quando teve a ventura de encontrara fugitiva no Rocio. A
cadelinha entrou a acompanh-lo, e ele, notando que era animal sem
dono visvel, levou-a consigo paraos Cajueiros.
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Apenas entrou em casa examinou cuidadosamente a cadelinha, Miss
Dollar era realmente um mimo; tinha as formas delgadase graciosas
da sua fidalga raa; os olhos castanhos e aveludados pareciam
exprimir a mais completa felicidade deste mundo,to alegres e
serenos eram. Mendona contemplou-a e examinou minuciosamente. Leu o
dstico do cadeado que fechava acoleira, e convenceu-se finalmente
de que a cadelinha era animal de grande estimao da parte de quem
quer que fossedono dela. Se no aparecer o dono, fica comigo, disse
ele entregando Miss Dollar ao moleque encarregado dos ces. Tratou o
moleque de dar comida a Miss Dollar, enquanto Mendona planeava um
bom futuro nova hspede, cuja famliadevia perpetuar-se na casa. O
plano de Mendona durou o que duram os sonhos: o espao de uma noite.
No dia seguinte, lendo os jornais, viu o annciotranscrito acima,
prometendo duzentos mil-ris a quem entregasse a cadelinha fugitiva.
A sua paixo pelos ces deu-lhe amedida da dor que devia sofrer o
dono ou dona de Miss Dollar, visto que chegava a oferecer duzentos
mil-ris de gratificaoa quem apresentasse a galga. Conseqentemente
resolveu restitu-la, com bastante mgoa do corao. Chegou a hesitar
poralguns instantes; mas afinal venceram os sentimentos de
probidade e compaixo, que eram o apangio daquela alma. E, comose
lhe custasse despedir-se do animal, ainda recente na casa, disps-se
a lev-lo ele mesmo, e para esse fim preparou-se.Almoou, e depois de
averiguar bem se Miss Dollar havia feito a mesma operao, saram
ambos de casa com direo a Mata-cavalos. Naquele tempo ainda o Baro
do Amazonas no tinha salvo a independncia das repblicas platinas
mediante a vitria deRiachuelo, nome com que depois a Cmara
Municipal crismou a Rua de Mata-cavalos. Vigorava, portanto, o nome
tradicionalda rua, que no queria dizer coisa nenhuma de jeito. A
casa que tinha o nmero indicado no anncio era de bonita aparncia e
indicava certa abastana nos haveres de quem lmorasse. Antes mesmo
que Mendona batesse palmas no corredor, j Miss Dollar, reconhecendo
os ptrios lares, comeava apular de contente e a soltar uns sons
alegres e guturais que, se houvesse entre os ces literatura, deviam
ser um hino deao de graas. Veio um moleque saber quem estava;
Mendona disse que vinha restituir a galga fugitiva. Expanso do
rosto do moleque, quecorreu a anunciar a boa nova. Miss Dollar,
aproveitando uma fresta, precipitou-se pelas escadas acima.
Dispunha-seMendona a descer, pois estava cumprida a sua tarefa,
quando o moleque voltou dizendo-lhe que subisse e entrasse para
asala. Na sala no havia ningum. Algumas pessoas, que tm salas
elegantemente dispostas, costumam deixar tempo de seremestas
admiradas pelas visitas, antes de as virem cumprimentar. possvel
que esse fosse o costume dos donos daquela casa,mas desta vez no se
cuidou em semelhante coisa, porque mal o mdico entrou pela porta do
corredor surgiu de outra interioruma velha com Miss Dollar nos
braos e a alegria no rosto. Queira ter a bondade de sentar-se,
disse ela designando uma cadeira Mendona. A minha demora pequena,
disse o mdico sentando-se. Vim trazer-lhe a cadelinha que est
comigo desde ontem... No imagina que desassossego causou c em casa
a ausncia de Miss Dollar... Imagino, minha senhora; eu tambm sou
apreciador de ces, e se me faltasse um sentiria profundamente. A
sua MissDollar... Perdo! interrompeu a velha; minha no; Miss Dollar
no minha, de minha sobrinha. Ah!... Ela a vem. Mendona levantou-se
justamente quando entrava na sala a sobrinha em questo. Era uma moa
que representava vinte eoito anos, no pleno desenvolvimento da sua
beleza, uma dessas mulheres que anunciam velhice tardia e
imponente. O vestidode seda escura dava singular realce cor
imensamente branca da sua pele. Era roagante o vestido, o que lhe
aumentava amajestade do porte e da estatura. O corpinho do vestido
cobria-lhe todo o colo; mas adivinhava-se por baixo da seda umbelo
tronco de mrmore modelado por escultor divino. Os cabelos castanhos
e naturalmente ondeados estavam penteadoscom essa simplicidade
caseira, que a melhor de todas as modas conhecidas; ornavam-lhe
graciosamente a fronte como umacoroa doada pela natureza. A extrema
brancura da pele no tinha o menor tom cor-de-rosa que lhe fizesse
harmonia econtraste. A boca era pequena, e tinha uma certa expresso
imperiosa. Mas a grande distino daquele rosto, aquilo quemais
prendia os olhos, eram os olhos; imaginem duas esmeraldas nadando
em leite. Mendona nunca vira olhos verdes em toda a sua vida;
disseram-lhe que existiam olhos verdes, ele sabia de cor uns
versosclebres de Gonalves Dias; mas at ento os olhos verdes eram
para ele a mesma coisa que a fnix dos antigos. Um dia,conversando
com uns amigos a propsito disto, afirmava que se alguma vez
encontrasse um par de olhos verdes fugiria delescom terror. Por qu?
perguntou-lhe um dos circunstantes admirado. A cor verde a cor do
mar, respondeu Mendona; evito as tempestades de um; evitarei as
tempestades dos outros. Eu deixo ao critrio do leitor esta
singularidade de Mendona, que de mais a mais preciosa, no sentido
de Molire.
CAPTULO III
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Mendona cumprimentou respeitosamente a recm-chegada, e esta, com
um gesto, convidou-o a sentar-se outra vez. Agradeo-lhe
infinitamente o ter-me restitudo este pobre animal, que me merece
grande estima, disse Margaridasentando-se. E eu dou graas a Deus
por t-lo achado; podia ter cado em mos que o no restitussem.
Margarida fez um gesto a Miss Dollar, e a cadelinha, saltando do
regao da velha, foi ter com Margarida; levantou as patasdianteiras
e ps-lhas sobre os joelhos; Margarida e Miss Dollar trocaram um
longo olhar de afeto. Durante esse tempo umadas mos da moa brincava
com uma das orelhas da galga, e dava assim lugar a que Mendona
admirasse os seus belssimosdedos armados com unhas agudssimas. Mas,
conquanto Mendona tivesse sumo prazer em estar ali, reparou que era
esquisita e humilhante a sua demora. Pareceriaestar esperando a
gratificao. Para escapar a essa interpretao desairosa, sacrificou o
prazer da conversa e acontemplao da moa; levantou-se dizendo: A
minha misso est cumprida... Mas... interrompeu a velha. Mendona
compreendeu a ameaa da interrupo da velha. A alegria, disse ele,
que restitu a esta casa a maior recompensa que eu podia ambicionar.
Agora peo-lhes licena... As duas senhoras compreenderam a inteno de
Mendona; a moa pagou-lhe a cortesia com um sorriso; e a velha,
reunindono pulso quantas foras ainda lhe restavam pelo corpo todo,
apertou com amizade a mo do rapaz. Mendona saiu impressionado pela
interessante Margarida. Notava-lhe principalmente, alm da beleza,
que era de primeiragua, certa severidade triste no olhar e nos
modos. Se aquilo era carter da moa, dava-se bem com a ndole de
mdico; seera resultado de algum episdio da vida, era uma pgina do
romance que devia ser decifrada por olhos hbeis. A falarverdade, o
nico defeito que Mendona lhe achou foi a cor dos olhos, no porque a
cor fosse feia, mas porque ele tinhapreveno contra os olhos verdes.
A preveno, cumpre diz-lo, era mais literria que outra coisa;
Mendona apegava-se frase que uma vez proferira, e foi acima citada,
e a frase que lhe produziu a preveno. No mo acusem de
chofre;Mendona era homem inteligente, instrudo e dotado de bom
senso; tinha, alm disso, grande tendncia para as afeiesromnticas;
mas apesar disso l tinha calcanhar o nosso Aquiles. Era homem como
os outros, outros Aquiles andam por a queso da cabea aos ps um
imenso calcanhar. O ponto vulnervel de Mendona era esse; o amor de
uma frase era capaz deviolentar-lhe afetos; sacrificava uma situao
a um perodo arredondado. Referindo a um amigo o episdio da galga e
a entrevista com Margarida, Mendona disse que poderia vir a gostar
dela se notivesse olhos verdes. O amigo riu com certo ar de
sarcasmo. Mas, doutor, disse-lhe ele, no compreendo essa preveno;
eu ouo at dizer que os olhos verdes so de ordinrionncios de boa
alma. Alm de que, a cor dos olhos no vale nada, a questo a expresso
deles. Podem ser azuis como ocu e prfidos como o mar. A observao
deste amigo annimo tinha a vantagem de ser to potica como a de
Mendona. Por isso abalouprofundamente o nimo do mdico. No ficou
este como o asno de Buridan entre a selha dgua e a quarta de
cevada; o asnohesitaria, Mendona no hesitou. Acudiu-lhe de pronto a
lio do casusta Snchez, e das duas opinies tomou a que lhepareceu
provvel. Algum leitor grave achar pueril esta circunstncia dos
olhos verdes e esta controvrsia sobre a qualidade provvel
deles.Provar com isso que tem pouca prtica do mundo. Os almanaques
pitorescos citam at saciedade mil excentricidades esenes dos
grandes vares que a humanidade admira, j por instrudos nas letras,
j por valentes nas armas; e nem por issodeixamos de admirar esses
mesmos vares. No queira o leitor abrir uma exceo s para encaixar
nela o nosso doutor.Aceitemo-lo com os seus ridculos; quem os no
tem? O ridculo uma espcie de lastro da alma quando ela entra no mar
davida; algumas fazem toda a navegao sem outra espcie de
carregamento. Para compensar essas fraquezas, j disse que Mendona
tinha qualidades no vulgares. Adotando a opinio que lhe pareceumais
provvel, que foi a do amigo, Mendona disse consigo que nas mos de
Margarida estava talvez a chave do seu futuro.Ideou nesse sentido
um plano de felicidade; uma casa num ermo, olhando para o mar ao
lado do ocidente, a fim de poderassistir ao espetculo do pr-do-sol.
Margarida e ele, unidos pelo amor e pela Igreja, beberiam ali, gota
a gota, a taa inteirada celeste felicidade. O sonho de Mendona
continha outras particularidades que seria ocioso mencionar aqui.
Mendonapensou nisto alguns dias; chegou a passar algumas vezes por
Mata-cavalos; mas to infeliz que nunca viu Margarida nem atia;
afinal desistiu da empresa e voltou aos ces. A coleo de ces era uma
verdadeira galeria de homens ilustres. O mais estimado deles
chamava-se Digenes; havia umgalgo que acudia ao nome de Csar; um co
dgua que se chamava Nelson; Cornlia chamava-se uma cadelinha
rateira, eCalgula um enorme co de fila, vera-efgie do grande
monstro que a sociedade romana produziu. Quando se achava entretoda
essa gente, ilustre por diferentes ttulos, dizia Mendona que
entrava na histria; era assim que se esquecia do resto domundo.
CAPTULO IV Achava-se Mendona uma vez porta do Carceller, onde
acabava de tomar sorvete em companhia de um indivduo, amigodele,
quando viu passar um carro, e dentro do carro duas senhoras que lhe
pareceram as senhoras de Mata-cavalos.
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Mendona fez um movimento de espanto que no escapou ao amigo. Que
foi? perguntou-lhe este. Nada; pareceu-me conhecer aquelas
senhoras. Viste-as, Andrade? No. O carro entrara na Rua do Ouvidor;
os dois subiram pela mesma rua. Logo acima da Rua da Quitanda,
parara o carro portade uma loja, e as senhoras apearam-se e
entraram. Mendona no as viu sair; mas viu o carro e suspeitou que
fosse omesmo. Apressou o passo sem dizer nada a Andrade, que fez o
mesmo, movido por essa natural curiosidade que sente umhomem quando
percebe algum segredo oculto. Poucos instantes depois estavam porta
da loja; Mendona verificou que eram as duas senhoras de
Mata-cavalos. Entrouafoito, com ar de quem ia comprar alguma coisa,
e aproximou-se das senhoras. A primeira que o conheceu foi a
tia.Mendona cumprimentou-as respeitosamente. Elas receberam o
cumprimento com afabilidade. Ao p de Margarida estavaMiss Dollar,
que, por esse admirvel faro que a natureza concedeu aos ces e aos
cortesos da fortuna, deu dois saltos dealegria apenas viu Mendona,
chegando a tocar-lhe o estmago com as patas dianteiras. Parece que
Miss Dollar ficou com boas recordaes suas, disse D. Antnia (assim
se chamava a tia de Margarida). Creio que sim, respondeu Mendona
brincando com a galga e olhando para Margarida. Justamente nesse
momento entrou Andrade. S agora as reconheci, disse ele
dirigindo-se s senhoras. Andrade apertou a mo das duas senhoras, ou
antes apertou a mo de Antnia e os dedos de Margarida. Mendona no
contava com este incidente, e alegrou-se com ele por ter mo o meio
de tornar ntimas as relaessuperficiais que tinha com a famlia.
Seria bom, disse ele a Andrade, que me apresentasses a estas
senhoras. Pois no as conheces? perguntou Andrade estupefato.
Conhece-nos sem nos conhecer, respondeu sorrindo a velha tia; por
ora quem o apresentou foi Miss Dollar. Antnia referiu a Andrade a
perda e o achado da cadelinha. Pois, nesse caso, respondeu Andrade,
apresento-o j. Feita a apresentao oficial, o caixeiro trouxe a
Margarida os objetos que ela havia comprado, e as duas
senhorasdespediram-se dos rapazes pedindo-lhes que as fossem ver.
No citei nenhuma palavra de Margarida no dilogo acima transcrito,
porque, a falar verdade, a moa s proferiu duaspalavras a cada um
dos rapazes. Passe bem, disse-lhes ela dando as pontas dos dedos e
saindo para entrar no carro. Ficando ss, saram tambm os dois
rapazes e seguiram pela Rua do Ouvidor acima, ambos calados.
Mendona pensava emMargarida; Andrade pensava nos meios de entrar na
confidncia de Mendona. A vaidade tem mil formas de
manifestar-secomo o fabuloso Proteu. A vaidade de Andrade era ser
confidente dos outros; parecia-lhe assim obter da confiana
aquiloque s alcanava da indiscrio. No lhe foi difcil apanhar o
segredo de Mendona; antes de chegar esquina da Rua dosOurives j
Andrade sabia de tudo. Compreendes agora, disse Mendona, que eu
preciso ir casa dela; tenho necessidade de v-la; quero ver se
consigo... Mendona estacou. Acaba! disse Andrade; se consegues ser
amado. Por que no? Mas desde j te digo que no ser fcil. Por qu?
Margarida tem rejeitado cinco casamentos. Naturalmente no amava os
pretendentes, disse Mendona com o ar de um gemetra que acha uma
soluo. Amava apaixonadamente o primeiro, respondeu Andrade, e no
era indiferente ao ltimo. Houve naturalmente intriga. Tambm no.
Admiras-te? o que me acontece. uma rapariga esquisita. Se te achas
com fora de ser o Colombodaquele mundo, lana-te ao mar com a
armada; mas toma cuidado com a revolta das paixes, que so os
ferozes marujosdestas navegaes de descoberta. Entusiasmado com esta
aluso, histrica debaixo da forma de alegoria, Andrade olhou para
Mendona, que, desta vezentregue ao pensamento da moa, no atendeu
frase do amigo. Andrade contentou-se com o seu prprio sufrgio, e
sorriu
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com o mesmo ar de satisfao que deve ter um poeta quando escreve
o ltimo verso de um poema.
CAPTULO V
Dias depois, Andrade e Mendona foram casa de Margarida, e l
passaram meia hora em conversa cerimoniosa. As visitasrepetiram-se;
eram porm mais freqentes da parte de Mendona que de Andrade. D.
Antnia mostrou-se mais familiar queMargarida; s depois de algum
tempo Margarida desceu do Olimpo do silncio em que habitualmente se
encerrara. Era difcil deixar de o fazer. Mendona, conquanto no
fosse dado convivncia das salas, era um cavalheiro prprio
paraentreter duas senhoras que pareciam mortalmente aborrecidas. O
mdico sabia piano e tocava agradavelmente; a suaconversa era
animada; sabia esses mil nadas que entretm geralmente as senhoras
quando elas no gostam ou no podementrar no terreno elevado da arte,
da histria e da filosofia. No foi difcil ao rapaz estabelecer
intimidade com a famlia. Posteriormente s primeiras visitas, soube
Mendona, por via de Andrade, que Margarida era viva. Mendona no
reprimiu ogesto de espanto. Mas tu falaste de um modo que parecias
tratar de uma solteira, disse ele ao amigo. verdade que no me
expliquei bem; os casamentos recusados foram todos propostos depois
da viuvez. H que tempo est viva? H trs anos. Tudo se explica, disse
Mendona depois de algum silncio; quer ficar fiel sepultura; uma
Artemisa do sculo. Andrade era ctico a respeito de Artemisas;
sorriu observao do amigo, e, como este insistisse, replicou: Mas se
eu j te disse que ela amava apaixonadamente o primeiro pretendente
e no era indiferente ao ltimo. Ento, no compreendo. Nem eu. Mendona
desde esse momento tratou de cortejar assiduamente a viva;
Margarida recebeu os primeiros olhares deMendona com um ar de to
supremo desdm, que o rapaz esteve quase a abandonar a empresa; mas,
a viva, ao mesmotempo que parecia recusar amor, no lhe recusava
estima, e tratava-o com a maior meiguice deste mundo sempre que ele
aolhava como toda a gente. Amor repelido amor multiplicado. Cada
repulsa de Margarida aumentava a paixo de Mendona. Nem j lhe
mereciamateno o feroz Calgula, nem o elegante Jlio Csar. Os dois
escravos de Mendona comearam a notar a profunda diferenaque havia
entre os hbitos de hoje e os de outro tempo. Supuseram logo que
alguma coisa o preocupava. Convenceram-sedisso quando Mendona,
entrando uma vez em casa, deu com a ponta do botim no focinho de
Cornlia, na ocasio em queesta interessante cadelinha, me de dois
Gracos rateiros, festejava a chegada do doutor. Andrade no foi
insensvel aos sofrimentos do amigo e procurou consol-lo. Toda a
consolao nestes casos to desejadaquanto intil; Mendona ouvia as
palavras de Andrade e confiava-lhe todas as suas penas. Andrade
lembrou a Mendona umexcelente meio de fazer cessar a paixo: era
ausentar-se da casa. A isto respondeu Mendona citando La
Rochefoucauld:
"A ausncia diminui as paixes medocres e aumenta as grandes, como
o vento apaga as velas e atia asfogueiras."
A citao teve o mrito de tapar a boca de Andrade, que acreditava
tanto na constncia como nas Artemisas, mas que noqueria contrariar
a autoridade do moralista, nem a resoluo de Mendona.
CAPTULO VI Correram assim trs meses. A corte de Mendona no
adiantava um passo; mas a viva nunca deixou de ser amvel com
ele.Era isto o que principalmente retinha o mdico aos ps da
insensvel viva; no o abandonava a esperana de venc-la. Algum leitor
conspcuo desejaria antes que Mendona no fosse to assduo na casa de
uma senhora exposta s calnias domundo. Pensou nisso o mdico e
consolou a conscincia com a presena de um indivduo, at aqui no
nomeado por motivode sua nulidade, e que era nada menos que o filho
da Sra. D. Antnia e a menina dos seus olhos. Chamava-se Jorge
esserapaz, que gastava duzentos mil-ris por ms, sem os ganhar,
graas longanimidade da me. Freqentava as casas doscabeleireiros,
onde gastava mais tempo que uma romana da decadncia s mos das suas
servas latinas. No perdiarepresentao de importncia no Alcazar;
montava bons cavalos, e enriquecia com despesas extraordinrias as
algibeiras dealgumas damas clebres e de vrios parasitas obscuros.
Calava luvas da letra E e botas n 36, duas qualidades que lanava
cara de todos os seus amigos que no desciam do n 40 e da letra H. A
presena deste gentil pimpolho, achava Mendonaque salvava a situao.
Mendona queria dar esta satisfao ao mundo, isto , opinio dos
ociosos da cidade. Mas bastariaisso para tapar a boca aos ociosos?
Margarida parecia indiferente s interpretaes do mundo como
assiduidade do rapaz. Seria ela to indiferente a tudo maisneste
mundo? No; amava a me, tinha um capricho por Miss Dollar, gostava
da boa msica, e lia romances. Vestia-se bem,sem ser rigorista em
matria de moda; no valsava; quando muito danava alguma quadrilha
nos saraus a que era convidada.
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No falava muito, mas exprimia-se bem. Tinha o gesto gracioso e
animado, mas sem pretenso nem faceirice. Quando Mendona aparecia l,
Margarida recebia-o com visvel contentamento. O mdico iludia-se
sempre, apesar de jacostumado a essas manifestaes. Com efeito,
Margarida gostava imenso da presena do rapaz, mas no parecia
dar-lheuma importncia que lisonjeasse o corao dele. Gostava de o
ver como se gosta de ver um dia bonito, sem morrer de amorespelo
sol. No era possvel sofrer por muito tempo a posio em que se achava
o mdico. Uma noite, por um esforo de que antes dissose no julgaria
capaz, Mendona dirigiu a Margarida esta pergunta indiscreta: Foi
feliz com seu marido? Margarida franziu a testa com espanto e
cravou os olhos nos do mdico, que pareciam continuar mudamente a
pergunta. Fui, disse ela no fim de alguns instantes. Mendona no
disse palavra; no contava com aquela resposta. Confiava demais na
intimidade que reinava entre ambos; equeria descobrir por algum
modo a causa da insensibilidade da viva. Falhou o clculo; Margarida
tornou-se sria durantealgum tempo; a chegada de D. Antnia salvou
uma situao esquerda para Mendona. Pouco depois Margarida voltava
sboas, e a conversa tornou-se animada e ntima como sempre. A
chegada de Jorge levou a animao da conversa apropores maiores; D.
Antnia, com olhos e ouvidos de me, achava que o filho era o rapaz
mais engraado deste mundo;mas a verdade que no havia em toda a
cristandade esprito mais frvolo. A me ria-se de tudo quanto o filho
dizia; o filhoenchia, s ele, a conversa, referindo anedotas e
reproduzindo ditos e sestros do Alcazar. Mendona via todas essas
feiesdo rapaz, e aturava-o com resignao evanglica. A entrada de
Jorge, animando a conversa, acelerou as horas; s dez retirou-se o
mdico, acompanhado pelo filho de D.Antnia, que ia cear. Mendona
recusou o convite que Jorge lhe fez, e despediu-se dele na Rua do
Conde, esquina da doLavradio. Nessa mesma noite resolveu Mendona
dar um golpe decisivo; resolveu escrever uma carta a Margarida. Era
temerrio paraquem conhecesse o carter da viva; mas, com os
precedentes j mencionados, era loucura. Entretanto, no hesitou
omdico em empregar a carta, confiando que no papel diria as coisas
de muito melhor maneira que de boca. A carta foi escritacom febril
impacincia; no dia seguinte, logo depois de almoar, Mendona meteu a
carta dentro de um volume de GeorgeSand, mandou-o pelo moleque a
Margarida. A viva rompeu a capa de papel que embrulhava o volume, e
ps o livro sobre a mesa da sala; meia hora depois voltou epegou no
livro para ler. Apenas o abriu, caiu-lhe a carta aos ps. Abriu-a e
leu o seguinte:
Qualquer que seja a causa da sua esquivana, respeito-a, no me
insurjo contra ela. Mas, se no me dadoinsurgir-me, no me ser lcito
queixar-me? H de ter compreendido o meu amor, do mesmo modo que
tenhocompreendido a sua indiferena; mas, por maior que seja essa
indiferena est longe de ombrear com o amorprofundo e imperioso que
se apossou de meu corao quando eu mais longe me cuidava destas
paixes dosprimeiros anos. No lhe contarei as insnias e as lgrimas,
as esperanas e os desencantos, pginas tristesdeste livro que o
destino pe nas mos do homem para que duas almas o leiam. -lhe
indiferente isso. No ouso interrog-la sobre a esquivana que tem
mostrado em relao a mim; mas por que motivo se estendeessa
esquivana a tantos mais? Na idade das paixes frvidas, ornada pelo
cu com uma beleza rara, por quemotivo quer esconder-se ao mundo e
defraudar a natureza e o corao de seus incontestveis
direitos?Perdoe-me a audcia da pergunta; acho-me diante de um
enigma que o meu corao desejaria decifrar. Pensos vezes que alguma
grande dor a atormenta, e quisera ser o mdico do seu corao;
ambicionava, confesso,restaurar-lhe alguma iluso perdida. Parece
que no h ofensa nesta ambio. Se, porm, essa esquivana denota
simplesmente um sentimento de orgulho legtimo, perdoe-me se
ouseiescrever-lhe quando seus olhos expressamente mo proibiram.
Rasgue a carta que no pode valer-lhe umarecordao, nem representar
uma arma.
A carta era toda de reflexo; a frase fria e medida no exprimia o
fogo do sentimento. No ter, porm, escapado ao leitor asinceridade e
a simplicidade com que Mendona pedia uma explicao que Margarida
provavelmente no podia dar. Quando Mendona disse a Andrade haver
escrito a Margarida, o amigo do mdico entrou a rir despregadamente.
Fiz mal? perguntou Mendona. Estragaste tudo. Os outros pretendentes
comearam tambm por carta; foi justamente a certido de bito do amor.
Pacincia, se acontecer o mesmo, disse Mendona levantando os ombros
com aparente indiferena; mas eu desejava queno estivesses sempre a
falar nos pretendentes; eu no sou pretendente no sentido desses. No
querias casar com ela? Sem dvida, se fosse possvel, respondeu
Mendona. Pois era justamente o que os outros queriam; casar-te-ias
e entrarias na mansa posse dos bens que lhe couberam empartilha e
que sobem a muito mais de cem contos. Meu rico, se falo em
pretendentes no por te ofender, porque um dosquatro pretendentes
despedidos fui eu. Tu?
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verdade; mas descansa, no fui o primeiro, nem ao menos o ltimo.
Escreveste? Como os outros; como eles, no obtive resposta; isto ,
obtive uma: devolveu-me a carta. Portanto, j que lheescreveste,
espera o resto; vers se o que te digo ou no exato. Ests perdido,
Mendona; fizeste muito mal. Andrade tinha esta feio caracterstica
de no omitir nenhuma das cores sombrias de uma situao, com o
pretexto de queaos amigos se deve a verdade. Desenhado o quadro,
despediu-se de Mendona, e foi adiante. Mendona foi para casa, onde
passou a noite em claro.
CAPTULO VII Enganara-se Andrade; a viva respondeu carta do
mdico. A carta dela limitou-se a isto:
Perdo-lhe tudo; no lhe perdoarei se me escrever outra vez. A
minha esquivana no tem nenhuma causa; questo de temperamento.
O sentido da carta era ainda mais lacnico do que a expresso.
Mendona leu-a muitas vezes, a ver se a completava; masfoi trabalho
perdido. Uma coisa concluiu ele logo; era que havia coisa oculta
que arredava Margarida do casamento; depoisconcluiu outra, era que
Margarida ainda lhe perdoaria segunda carta se lha escrevesse. A
primeira vez que Mendona foi a Mata-cavalos achou-se embaraado
sobre a maneira por que falaria a Margarida; a vivatirou-o do
embarao, tratando-o como se nada houvesse entre ambos. Mendona no
teve ocasio de aludir s cartas porcausa da presena de D. Antnia,
mas estimou isso mesmo, porque no sabia o que lhe diria caso
viessem a ficar ss os dois. Dias depois, Mendona escreveu segunda
carta viva e mandou-lha pelo mesmo canal da outra. A carta foi-lhe
devolvidasem resposta. Mendona arrependeu-se de ter abusado da
ordem da moa, e resolveu, de uma vez por todas, no voltar casa de
Mata-cavalos. Nem tinha nimo de l aparecer, nem julgava conveniente
estar junto de uma pessoa a quem amavasem esperana. Ao cabo de um
ms no tinha perdido uma partcula sequer do sentimento que nutria
pela viva. Amava-a com o mesmssimoardor. A ausncia, como ele
pensara, aumentou-lhe o amor, como o vento ateia um incndio.
Debalde lia ou buscava distrair-se na vida agitada do Rio de
Janeiro; entrou a escrever um estudo sobre a teoria do ouvido, mas
a pena escapava-se-lhepara o corao, e saiu o escrito com uma
mistura de nervos e sentimentos. Estava ento na sua maior nomeada o
romancede Renan sobre a vida de Jesus; Mendona encheu o gabinete
com todos os folhetos publicados de parte a parte, e entrou
aestudar profundamente o misterioso drama da Judia. Fez quanto pde
para absorver o esprito e esquecer a esquivaMargarida; era-lhe
impossvel. Um dia de manh apareceu-lhe em casa o filho de D.
Antnia; traziam-no dois motivos: perguntar-lhe por que no ia a
Mata-cavalos, e mostrar-lhe umas calas novas. Mendona aprovou as
calas, e desculpou como pde a ausncia, dizendo queandava atarefado.
Jorge no era alma que compreendesse a verdade escondida por baixo
de uma palavra indiferente; vendoMendona mergulhado no meio de uma
chusma de livros e folhetos, perguntou-lhe se estava estudando para
ser deputado.Jorge cuidava que se estudava para ser deputado! No,
respondeu Mendona. verdade que a prima tambm l anda com livros, e
no creio que pretenda ir cmara. Ah! sua prima? No imagina; no faz
outra coisa. Fecha-se no quarto, e passa os dias inteiros a ler.
Informado por Jorge, Mendona sups que Margarida era nada menos que
uma mulher de letras, alguma modesta poetisa, queesquecia o amor
dos homens nos braos das musas. A suposio era gratuita e filha
mesmo de um esprito cego pelo amorcomo o de Mendona. H vrias razes
para ler muito sem ter comrcio com as musas. Note que a prima nunca
leu tanto; agora que lhe deu para isso, disse Jorge tirando da
charuteira um magnfico havanado valor de trs tostes, e oferecendo
outro a Mendona. Fume isto, continuou ele, fume e diga-me se h
ningum como oBernardo para ter charutos bons. Gastos os charutos,
Jorge despediu-se do mdico, levando a promessa de que este iria
casa de D. Antnia o mais cedo quepudesse. No fim de quinze dias
Mendona voltou a Mata-cavalos. Encontrou na sala Andrade e D.
Antnia, que o receberam com aleluias. Mendona parecia com efeito
ressurgir de um tmulo;tinha emagrecido e empalidecido. A melancolia
dava-lhe ao rosto maior expresso de abatimento. Alegou
trabalhosextraordinrios, e entrou a conversar alegremente como
dantes. Mas essa alegria, como se compreende, era toda forada.
Nofim de um quarto de hora a tristeza apossou-se-lhe outra vez do
rosto. Durante esse tempo, Margarida no apareceu nasala; Mendona,
que at ento no perguntara por ela, no sei por que razo, vendo que
ela no aparecia, perguntou seestava doente. D. Antnia respondeu-lhe
que Margarida estava um pouco incomodada. O incmodo de Margarida
durou uns trs dias; era uma simples dor de cabea, que o primo
atribuiu aturada leitura.
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No fim de alguns dias mais, D. Antnia foi surpreendida com uma
lembrana de Margarida; a viva queria ir viver na roaalgum tempo.
Aborrece-te a cidade? perguntou a boa velha. Alguma coisa,
respondeu Margarida; queria ir viver uns dois meses na roa. D.
Antnia no podia recusar nada sobrinha; concordou em ir para a roa;
e comearam os preparativos. Mendona soubeda mudana no Rocio,
andando a passear de noite; disse-lho Jorge na ocasio de ir para o
Alcazar. Para o rapaz era umafortuna aquela mudana, porque
suprimia-lhe a nica obrigao que ainda tinha neste mundo, que era a
de ir jantar com ame. No achou Mendona nada que admirar na resoluo;
as resolues de Margarida comeavam a parecer-lhe simplicidades.
Quando voltou para casa encontrou um bilhete de D. Antnia concebido
nestes termos:
Temos de ir para fora alguns meses; espero que no nos deixe sem
despedir-se de ns. A partida sbado; eeu quero incumbi-lo de uma
coisa.
Mendona tomou ch, e disps-se a dormir. No pde. Quis ler; estava
incapaz disso. Era cedo; saiu. Insensivelmente dirigiuos passos
para Mata-cavalos. A casa de D. Antnia estava fechada e silenciosa;
evidentemente estavam j dormindo.Mendona passou adiante, e parou
junto da grade do jardim adjacente casa. De fora podia ver a janela
do quarto deMargarida, pouco elevada, e dando para o jardim. Havia
luz dentro; naturalmente Margarida estava acordada. Mendona deumais
alguns passos; a porta do jardim estava aberta. Mendona sentiu
pulsar-lhe o corao com fora desconhecida. Surgiu-lhe no esprito uma
suspeita. No h corao confiante que no tenha desfalecimentos destes;
alm de que, seria errada asuspeita? Mendona, entretanto, no tinha
nenhum direito viva; fora repelido categoricamente. Se havia algum
dever daparte dele era a retirada e o silncio. Mendona quis
conservar-se no limite que lhe estava marcado; a porta aberta do
jardim podia ser esquecimento da parte dosfmulos. O mdico refletiu
bem que aquilo tudo era fortuito, e fazendo um esforo afastou-se do
lugar. Adiante parou erefletiu; havia um demnio que o impelia por
aquela porta dentro. Mendona voltou, e entrou com precauo. Apenas
dera alguns passos surgiu-lhe em frente Miss Dollar latindo; parece
que a galga sara de casa sem ser pressentida;Mendona amimou-a e a
cadelinha parece que reconheceu o mdico, porque trocou os latidos
em festas. Na parede doquarto de Margarida desenhou-se uma sombra
de mulher; era a viva que chegava janela para ver a causa do
rudo.Mendona coseu-se como pde com uns arbustos que ficavam junto
da grade; no vendo ningum, Margarida voltou paradentro. Passados
alguns minutos, Mendona saiu do lugar em que se achava e dirigiu-se
para o lado da janela da viva.Acompanhava-o Miss Dollar. Do jardim
no podia olhar, ainda que fosse mais alto, para o aposento da moa.
A cadelinhaapenas chegou quele ponto, subiu ligeira uma escada de
pedra que comunicava o jardim com a casa; a porta do quarto
deMargarida ficava justamente no corredor que se seguia escada; a
porta estava aberta. O rapaz imitou a cadelinha; subiu osseis
degraus de pedra vagarosamente; quando ps o p no ltimo ouviu Miss
Dollar pulando no quarto e vindo latir porta,como que avisando a
Margarida de que se aproximava um estranho. Mendona deu mais um
passo. Mas nesse momento atravessou o jardim um escravo que acudia
ao latido da cadelinha; oescravo examinou o jardim, e no vendo
ningum retirou-se. Margarida foi janela e perguntou o que era; o
escravoexplicou-lho e tranqilizou-a dizendo que no havia ningum.
Justamente quando ela saa da janela aparecia porta a figura de
Mendona. Margarida estremeceu por um abalo nervoso;ficou mais plida
do que era; depois, concentrando nos olhos toda a soma de indignao
que pode conter um corao,perguntou-lhe com voz trmula: Que quer
aqui? Foi nesse momento, e s ento, que Mendona reconheceu toda a
baixeza do seu procedimento, ou para falar maisacertadamente, toda
a alucinao do seu esprito. Pareceu-lhe ver em Margarida a figura da
sua conscincia, a exprobrar-lhetamanha indignidade. O pobre rapaz
no procurou desculpar-se; a sua resposta foi singela e verdadeira.
Sei que cometi um ato infame, disse ele; no tinha razo para isso;
estava louco; agora conheo a extenso do mal. Nolhe peo que me
desculpe, D. Margarida; no mereo perdo; mereo desprezo; adeus!
Compreendo, senhor, disse Margarida; quer obrigar-me pela fora do
descrdito quando me no pode obrigar pelo corao.No de cavalheiro.
Oh! isso... juro-lhe que no foi tal o meu pensamento... Margarida
caiu numa cadeira parecendo chorar. Mendona deu um passo para
entrar, visto que at ento no sara da porta;Margarida levantou os
olhos cobertos de lgrimas, e com um gesto imperioso mostrou-lhe que
sasse. Mendona obedeceu; nem um nem outro dormiram nessa noite.
Ambos curvavam-se ao peso da vergonha: mas, por honra deMendona, a
dele era maior que a dela; e a dor de uma no ombreava com o remorso
de outro.
CAPTULO VIII No dia seguinte estava Mendona em casa fumando
charutos sobre charutos, recurso das grandes ocasies, quando
parou
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porta dele um carro, apeando-se pouco depois a me de Jorge. A
visita pareceu de mau agouro ao mdico. Mas apenas avelha entrou,
dissipou-lhe o receio. Creio, disse D. Antnia, que a minha idade
permite visitar um homem solteiro. Mendona procurou sorrir ouvindo
este gracejo; mas no pde. Convidou a boa senhora a sentar-se, e
sentou-se ele tambmesperando que ela lhe explicasse a causa da
visita. Escrevi-lhe ontem, disse ela, para que fosse ver-me hoje;
preferi vir c, receando que por qualquer motivo no fosse
aMata-cavalos. Queria ento incumbir-me? De coisa nenhuma, respondeu
a velha sorrindo; incumbir disse-lhe eu, como diria qualquer outra
coisa indiferente; queroinform-lo. Ah! de qu? Sabe quem ficou hoje
de cama? D. Margarida? verdade; amanheceu um pouco doente; diz que
passou a noite mal. Eu creio que sei a razo, acrescentou D.
Antniarindo maliciosamente para Mendona. Qual ser ento a razo?
perguntou o mdico. Pois no percebe? No. Margarida ama-o. Mendona
levantou-se da cadeira como por uma mola. A declarao da tia da viva
era to inesperada que o rapaz cuidouestar sonhando. Ama-o, repetiu
D. Antnia. No creio, respondeu Mendona depois de algum silncio; h
de ser engano seu. Engano! disse a velha. D. Antnia contou a
Mendona que, curiosa por saber a causa das viglias de Margarida,
descobrira no quarto dela um diriode impresses, escrito por ela,
imitao de no sei quantas heronas de romances; a lera a verdade que
lhe acabava dedizer. Mas se me ama, observou Mendona sentindo
entrar-lhe nalma um mundo de esperanas, se me ama, por que recusa
omeu corao? O dirio explica isso mesmo; eu lhe digo. Margarida foi
infeliz no casamento; o marido teve unicamente em vista gozar
dariqueza dela; Margarida adquiriu a certeza de que nunca ser amada
por si, mas pelos cabedais que possui; atribui o seu amor cobia.
Est convencido? Mendona comeou a protestar. intil, disse D. Antnia,
eu creio na sinceridade do seu afeto; j de h muito percebi isso
mesmo; mas como convencerum corao desconfiado? No sei. Nem eu,
disse a velha, mas para isso que eu vim c; peo-lhe que veja se pode
fazer com que a minha Margarida torne aser feliz, se lhe influi a
crena no amor que lhe tem. Acho que impossvel... Mendona lembrou-se
de contar a D. Antnia a cena da vspera; mas arrependeu-se a tempo.
D. Antnia saiu pouco depois. A situao de Mendona, ao passo que se
tornara mais clara, estava mais difcil que dantes. Era possvel
tentar alguma coisaantes da cena do quarto; mas depois, achava
Mendona impossvel conseguir nada. A doena de Margarida durou dois
dias, no fim dos quais levantou-se a viva um pouco abatida, e a
primeira coisa que fez foiescrever a Mendona pedindo-lhe que fosse
l casa. Mendona admirou-se bastante do convite, e obedeceu de
pronto. Depois do que se deu h trs dias, disse-lhe Margarida,
compreende o senhor que eu no posso ficar debaixo da ao da
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maledicncia... Diz que me ama; pois bem, o nosso casamento
inevitvel. Inevitvel! amargou esta palavra ao mdico, que alis no
podia recusar uma reparao. Lembrava-se ao mesmo tempo queera amado;
e conquanto a idia lhe sorrisse ao esprito, outra vinha dissipar
esse instantneo prazer, e era a suspeita queMargarida nutria a seu
respeito. Estou s suas ordens, respondeu ele. Admirou-se D. Antnia
da presteza do casamento quando Margarida lho anunciou nesse mesmo
dia. Sups que fosse milagredo rapaz. Pelo tempo adiante reparou que
os noivos tinham cara mais de enterro que de casamento. Interrogou
a sobrinha aesse respeito; obteve uma resposta evasiva. Foi modesta
e reservada a cerimnia do casamento. Andrade serviu de padrinho, D.
Antnia de madrinha; Jorge falou noAlcazar a um padre, seu amigo,
para celebrar o ato. D. Antnia quis que os noivos ficassem
residindo em casa com ela. Quando Mendona se achou a ss com
Margarida, disse-lhe: Casei-me para salvar-lhe a reputao; no quero
obrigar pela fatalidade das coisas um corao que me no pertence.
Ter-me- por seu amigo; at amanh. Saiu Mendona depois deste speech,
deixando Margarida suspensa entre o conceito que fazia dele e a
impresso das suaspalavras agora. No havia posio mais singular do
que a destes noivos separados por uma quimera. O mais belo dia da
vida tornava-se paraeles um dia de desgraa e de solido; a
formalidade do casamento foi simplesmente o preldio do mais
completo divrcio.Menos ceticismo da parte de Margarida, mais
cavalheirismo da parte do rapaz, teriam poupado o desenlace sombrio
dacomdia do corao. Vale mais imaginar que descrever as torturas
daquela primeira noite de noivado. Mas aquilo que o esprito do
homem no vence, h de venc-lo o tempo, a quem cabe final razo. O
tempo convenceuMargarida de que a sua suspeita era gratuita; e,
coincidindo com ele o corao, veio a tornar-se efetivo o casamento
apenascelebrado. Andrade ignorou estas coisas; cada vez que
encontrava Mendona chamava-lhe Colombo do amor; tinha Andrade a
mania detodo o sujeito a quem as idias ocorrem trimestralmente;
apenas pilhada alguma de jeito repetia-a at a saciedade. Os dois
esposos so ainda noivos e prometem s-lo at a morte. Andrade
meteu-se na diplomacia e promete ser um dosluzeiros da nossa
representao internacional. Jorge continua a ser um bom pndego; D.
Antnia prepara-se para despedir-sedo mundo. Quanto a Miss Dollar,
causa indireta de todos estes acontecimentos, saindo um dia rua foi
pisada por um carro; faleceupouco depois. Margarida no pde reter
algumas lgrimas pela nobre cadelinha; foi o corpo enterrado na
chcara, sombrade uma laranjeira; cobre a sepultura uma lpide com
esta simples inscrio:
A Miss Dollar
LUS SOARES NDICE
CAPTULO PRIMEIRO CAPTULO II CAPTULO III CAPTULO IV CAPTULO V
CAPTULO VI
CAPTULO PRIMEIRO
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Trocar o dia pela noite, dizia Lus Soares, restaurar o imprio da
natureza corrigindo a obra da sociedade. O calor do solest dizendo
aos homens que vo descansar e dormir, ao passo que a frescura
relativa da noite a verdadeira estao emque se deve viver. Livre em
todas as minhas aes, no quero sujeitar-me lei absurda que a
sociedade me impe: velarei denoite, dormirei de dia. Contrariamente
a vrios ministrios, Soares cumpria este programa com um escrpulo
digno de uma grande conscincia. Aaurora para ele era o crepsculo, o
crepsculo era a aurora. Dormia doze horas consecutivas durante o
dia, quer dizer dasseis da manh s seis da tarde. Almoava s sete e
jantava s duas da madrugada. No ceava. A sua ceia limitava-se a
umaxcara de chocolate que o criado lhe dava s cinco horas da manh
quando ele entrava para casa. Soares engolia ochocolate, fumava
dois charutos, fazia alguns trocadilhos com o criado, lia uma pgina
de algum romance, e deitava-se. No lia jornais. Achava que um
jornal era a coisa mais intil deste mundo, depois da Cmara dos
Deputados, das obras dospoetas e das missas. No quer isto dizer que
Soares fosse ateu em religio, poltica e poesia. No. Soares era
apenasindiferente. Olhava para todas as grandes coisas com a mesma
cara com que via uma mulher feia. Podia vir a ser um
grandeperverso; at ento era apenas uma grande inutilidade. Graas a
uma boa fortuna que lhe deixara o pai, Soares podia gozar a vida
que levava, esquivando-se a todo o gnero detrabalho e entregue
somente aos instintos da sua natureza e aos caprichos do seu corao.
Corao talvez demais. Eraduvidoso que Soares o tivesse. Ele mesmo o
dizia. Quando alguma dama lhe pedia que ele a amasse, Soares
respondia: Minha rica pequena, eu nasci com a grande vantagem de no
ter coisa nenhuma dentro do peito nem dentro da cabea.Isso que
chamam juzo e sentimento so para mim verdadeiros mistrios. No os
compreendo porque os no sinto. Soares acrescentava que a fortuna
suplantara a natureza deitando-lhe no bero em que nasceu uma boa
soma de contos deris. Mas esquecia que a fortuna, apesar de
generosa, exigente, e quer da parte dos seus afilhados algum esforo
prprio.A fortuna no Danaide. Quando v que um tonel esgota a gua que
se lhe pe dentro vai levar os seus cntaros a outraparte. Soares no
pensava nisto. Cuidava que os seus bens eram renascentes como as
cabeas da hidra antiga. Gastava smos largas; e os contos de ris, to
dificilmente acumulados por seu pai, escapavam-se-lhes das mos como
pssarossequiosos por gozarem do ar livre. Achou-se, portanto, pobre
quando menos o esperava. Um dia de manh, quer dizer s ave-marias,
os olhos de Soares viramescritas as palavras fatdicas do festim
babilnico. Era uma carta que o criado lhe entregara dizendo que o
banqueiro deSoares a havia deixado meia-noite. O criado falava como
o amo vivia: ao meio-dia chamava meia-noite. J te disse, respondeu
Soares, que eu s recebo cartas dos meus amigos, ou ento... De
alguma rapariga, bem sei. por isso que lhe no tenho dado as cartas
que o banqueiro tem trazido h um ms. Hoje,porm, o homem disse que
era indispensvel que lhe eu desse esta. Soares sentou-se na cama, e
perguntou ao criado meio alegre e meio zangado: Ento tu s criado
dele ou meu? Meu amo, o banqueiro disse que se trata de um grande
perigo. Que perigo? No sei. Deixa ver a carta. O criado
entregou-lhe a carta. Soares abriu-a e leu-a duas vezes. Dizia a
carta que o rapaz no possua mais que seis contos de ris. Para
Soares seiscontos de ris eram menos que seis vintns. Pela primeira
vez na sua vida Soares sentiu uma grande comoo. A idia de no ter
dinheiro nunca lhe havia acudido aoesprito; no imaginava que um dia
se achasse na posio de qualquer outro homem que precisava de
trabalhar. Almoou sem vontade e saiu. Foi ao Alcazar. Os amigos
acharam-no triste; perguntaram-lhe se era alguma mgoa de
amor.Soares respondeu que estava doente. As Las da localidade
acharam que era de bom gosto ficarem tristes tambm. Aconsternao foi
geral. Um dos seus amigos, Jos Pires, props um passeio a Botafogo
para distrair as melancolias de Soares. O rapaz aceitou. Mas
opasseio a Botafogo era to comum que no podia distra-lo.
Lembraram-se de ir ao Corcovado, idia que foi aceita eexecutada
imediatamente. Mas que h que possa distrair um rapaz nas condies de
Soares? A viagem ao Corcovado apenas lhe produziu uma grandefadiga,
alis til, porque, na volta, dormiu o rapaz a sono solto. Quando
acordou mandou dizer ao Pires que viesse falar-lhe imediatamente.
Da a uma hora parava um carro porta: era oPires que chegava, mas
acompanhado de uma rapariga morena que respondia ao nome de Vitria.
Entraram os dois pela salade Soares com a franqueza e o estrpito
naturais entre pessoas de famlia. No est doente? perguntou Vitria
ao dono da casa. No, respondeu este; mas por que veio voc?
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boa! disse Jos Pires; veio porque a minha xcara inseparvel...
Querias falar-me em particular? Queria. Pois falemos a em qualquer
canto; Vitria fica na sala vendo os lbuns. Nada, interrompeu a moa;
nesse caso vou-me embora. melhor; s imponho uma condio: que ambos
ho de ir depoisl para casa; temos ceata. Valeu! disse Pires. Vitria
saiu; os dois rapazes ficaram ss. Pires era o tipo do bisbilhoteiro
e leviano. Em lhe cheirando novidade preparava-se para instruir-se
de tudo. Lisonjeava-o aconfiana de Soares, e adivinhava que o rapaz
ia comunicar-lhe alguma coisa importante. Para isso assumiu um ar
condignocom a situao. Sentou-se comodamente em uma cadeira de
braos; ps o casto da bengala na boca e comeou o ataquecom estas
palavras: Estamos ss; que me queres? Soares confiou-lhe tudo;
leu-lhe a carta do banqueiro; mostrou-lhe em toda a nudez a sua
misria. Disse-lhe que naquelasituao no via soluo possvel, e
confessou ingenuamente que a idia do suicdio o havia alimentado
durante longas horas. Um suicdio! exclamou Pires; ests doido.
Doido! respondeu Soares; entretanto no vejo outra sada neste beco.
Demais, apenas meio suicdio, porque a pobrezaj meia morte. Convenho
que a pobreza no coisa agradvel, e at acho... Pires interrompeu-se;
uma idia sbita atravessara-lhe o esprito: a idia de que Soares
acabasse a conferncia por pedir-lhedinheiro. Pires tinha um
preceito na sua vida: era no emprestar dinheiro aos amigos. No se
empresta sangue, dizia ele. Soares no reparou na frase cortada do
amigo, e disse: Viver pobre depois de ter sido rico... impossvel.
Nesse caso que me queres tu? perguntou Pires, a quem pareceu que
era bom atacar o touro de frente. Um conselho. Intil conselho, pois
que j tens uma idia fixa. Talvez. Entretanto confesso que no se
deixa a vida com facilidade, e m ou boa, sempre custa morrer. Por
outro lado,ostentar a minha misria diante das pessoas que me viram
rico uma humilhao que eu no aceito. Que farias tu no meulugar?
Homem, respondeu Pires, h muitos meios... Venha um. Primeiro meio.
Vai para Nova Iorque e procura uma fortuna. No me convm; nesse caso
fico no Rio de Janeiro. Segundo meio. Arranja um casamento rico.
bom de dizer. Onde est esse casamento? Procura. No tens uma prima
que gosta de ti? Creio que j no gosta; e demais no rica; tem apenas
trinta contos; despesa de um ano. um bom princpio de vida. Nada;
outro meio. Terceiro meio, e o melhor. Vai casa de teu tio,
angaria-lhe a estima, dize que ests arrependido da vida passada,
aceitaum emprego, enfim v se te constituis seu herdeiro universal.
Soares no respondeu; a idia pareceu-lhe boa. Aposto que te agrada o
terceiro meio? perguntou Pires rindo. No mau. Aceito; e bem sei que
difcil e demorado; mas eu no tenho muitos escolha. Ainda bem, disse
Pires levantando-se. Agora o que se quer algum juzo. H de custar-te
o sacrifcio, mas lembra-te que
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o meio nico de teres dentro de pouco tempo uma fortuna. Teu tio
um homem achacado de molstias; qualquer dia bate abota. Aproveita o
tempo. E agora vamos ceia da Vitria. No vou, disse Soares; quero
acostumar-me desde j a viver vida nova. Bem; adeus. Olha;
confiei-te isto a ti s; guarda-me segredo. Sou um tmulo, respondeu
Pires descendo a escada. Mas no dia seguinte j os rapazes e
raparigas sabiam que Soares ia fazer-se anacoreta... por no ter
dinheiro nenhum. Oprprio Soares reconheceu isto no rosto dos
amigos. Todos pareciam dizer-lhe: pena! que pndego vamos ns perder!
Pires nunca mais o visitou.
CAPTULO II O tio de Soares chamava-se o Major Lus da Cunha
Vilela, e era com efeito um homem j velho e adoentado. Contudo no
sepodia dizer que morreria cedo. O Major Vilela observava um
rigoroso regmen que lhe ia entretendo a vida. Tinha uns
bonssessenta anos. Era um velho alegre e severo ao mesmo tempo.
Gostava de rir, mas era implacvel com os maus
costumes.Constitucional por necessidade, era no fundo de sua alma
absolutista. Chorava pela sociedade antiga; criticavaconstantemente
a nova. Enfim foi o ltimo homem que abandonou a cabeleira de
rabicho. Vivia o Major Vilela em Catumbi, acompanhado de sua
sobrinha Adelaide, e mais uma velha parenta. A sua vida era
patriarcal.Importando-se pouco ou nada com o que ia por fora, o
major entregava-se todo ao cuidado de sua casa, aonde poucosamigos
e algumas famlias da vizinhana o iam ver, e passar as noites com
ele. O major conservava sempre a mesma alegria,ainda nas ocasies em
que o reumatismo o prostrava. Os reumticos dificilmente acreditaro
nisto; mas eu posso afirmar queera verdade. Foi num dia de manh,
felizmente um dia em que o major no sentia o menor achaque, e ria e
brincava com as duas parentas,que Soares apareceu em Catumbi porta
do tio. Quando o major recebeu o carto com o nome do sobrinho, sups
que era alguma caoada. Podia contar com todos em casa,menos o
sobrinho. Fazia j dois anos que o no via, e entre a ltima e a
penltima vez tinha mediado ano e meio. Mas omoleque disse-lhe to
seriamente que o nhonh Lus estava na sala de espera, que o velho
acabou por acreditar. Que te parece, Adelaide? A moa no respondeu.
O velho foi sala de visitas. Soares tinha pensado no meio de
aparecer ao tio. Ajoelhar-se era dramtico demais; cair-lhe nos
braos exigia certo impulsontimo que ele no tinha; alm de que,
Soares vexava-se de ter ou fingir uma comoo. Lembrou-se de comear
umaconversao alheia ao fim que o levava l, e acabar por
confessar-se disposto a arrepiar carreira. Mas este meio tinha
oinconveniente de fazer preceder a reconciliao por um sermo, que o
rapaz dispensava. Ainda no se resolvera a aceitar umdos muitos
meios que lhe vieram idia, quando o major apareceu porta da sala. O
major parou porta sem dizer palavra e lanou sobre o sobrinho um
olhar severo e interrogador. Soares hesitou um instante; mas como a
situao podia prolongar-se sem benefcio seu, o rapaz seguiu um
movimentonatural: foi ao tio e estendeu-lhe a mo. Meu tio, disse
ele, no precisa dizer mais nada; o seu olhar diz-me tudo. Fui
pecador e arrependo-me. Aqui estou. O major estendeu-lhe a mo, que
o rapaz beijou com o respeito de que era suscetvel. Depois
encaminhou-se para uma cadeira e sentou-se; o rapaz ficou de p. Se
o teu arrependimento sincero, abro-te a minha porta e o meu corao.
Se no sincero podes ir embora; h muitotempo que no freqento a casa
da pera: no gosto de comediantes. Soares protestou que era sincero.
Disse que fora dissipado e doido, mas que aos trinta anos era justo
ter juzo. Reconheciaagora que o tio sempre tivera razo. Sups ao
princpio que eram simples rabugices de velho, e mais nada; mas no
eranatural esta leviandade num rapaz educado no vcio? Felizmente
corrigia-se a tempo. O que ele agora queria era entrar embom viver,
e comeava por aceitar um emprego pblico que o obrigasse a trabalhar
e fazer-se srio. Tratava-se de ganharuma posio. Ouvindo o discurso
de que fiz o extrato acima, o major procurava adivinhar o fundo do
pensamento de Soares. Seria elesincero? O velho concluiu que o
sobrinho falava com a alma nas mos. A sua iluso chegou ao ponto de
ver-lhe uma lgrimanos olhos, lgrima que no apareceu, nem mesmo
fingida. Quando Soares acabou, o major estendeu-lhe a mo e apertou
a que o rapaz lhe estendeu tambm. Creio, Lus. Ainda bem que te
arrependeste a tempo. Isso que vivias no era vida nem morte; a vida
mais digna e a
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morte mais tranqila do que a existncia que malbarataste. Entras
agora em casa como um filho prdigo. Ters o melhor lugar mesa. Esta
famlia a mesma famlia. O major continuou por este tom; Soares ouviu
a p quedo o discurso do tio. Dizia consigo que era a amostra da
pena que iasofrer, e um grande desconto dos seus pecados. O major
acabou levando o rapaz para dentro, onde os esperava o almoo. Na
sala de jantar estavam Adelaide e a velha parenta. A Sra. Antnia de
Moura Vilela recebeu Soares com grandesexclamaes que envergonharam
sinceramente o rapaz. Quanto a Adelaide, apenas o cumprimentou sem
olhar para ele;Soares retribuiu o cumprimento. O major reparou na
frieza; mas parece que sabia alguma coisa, porque apenas deu uma
risadinha amarela, coisa que lhe erapeculiar. Sentaram-se mesa, e o
almoo correu entre as pilhrias do major, as recriminaes da Sra.
Antnia, as explicaes dorapaz e o silncio de Adelaide. Quando o
almoo acabou, o major disse ao sobrinho que fumasse, concesso
enorme que orapaz a custo aceitou. As duas senhoras saram; ficaram
os dois mesa. Ests ento disposto a trabalhar? Estou, meu tio. Bem;
vou ver se te arranjo um emprego. Que emprego preferes? O que
quiser, meu tio, contanto que eu trabalhe. Bem. Levars amanh, uma
carta minha a um dos ministros. Deus queira que possas obter o
emprego sem dificuldade.Quero ver-te trabalhador e srio; quero
ver-te homem. As dissipaes no produzem nada, a no serem dvidas
edesgostos... Tens dvidas? Nenhuma, respondeu Soares. Soares
mentia. Tinha uma dvida de alfaiate, relativamente pequena; queria
pag-la sem que o tio soubesse. No dia seguinte o major escreveu a
carta prometida, que o sobrinho levou ao ministro; e to feliz foi,
que da a um msestava empregado em uma secretaria com um bom
ordenado. Cumpre fazer justia ao rapaz. O sacrifcio que fez de
transformar os seus hbitos da vida foi enorme, e a julg-lo pelos
seusantecedentes, ningum o julgara capaz de tal. Mas o desejo de
perpetuar uma vida de dissipao pode explicar a mudana eo sacrifcio.
Aquilo na existncia de Soares no passava de um parntesis mais ou
menos extenso. Almejava por fech-lo econtinuar o perodo como havia
comeado, isto , vivendo com Aspsia e pagodeando com Alcibades. O
tio no desconfiava de nada; mas temia que o rapaz fosse novamente
tentado fuga, ou porque o seduzisse a lembranadas dissipaes
antigas, ou porque o aborrecesse a monotonia e a fadiga do
trabalho. Com o fim de impedir o desastre,lembrou-se de
inspirar-lhe ambio poltica. Pensava o major que a poltica seria um
remdio decisivo para aquele doente,como se no fosse conhecido que
os louros de Lovelace e os de Turgot andam muita vez na mesma
cabea. Soares no desanimou o major. Disse que era natural acabar a
sua existncia na poltica, e chegou a dizer que algumas vezessonhara
com uma cadeira no parlamento. Pois eu verei se te posso arranjar
isto, respondeu o tio. O que preciso que estudes a cincia da
poltica, a histria donosso parlamento e do nosso governo; e
principalmente preciso que continues a ser o que s hoje: um rapaz
srio. Se bem o dizia o major, melhor o fazia Soares, que desde ento
meteu-se com os livros e lia com afinco as discusses dascmaras.
Soares no morava com o tio, mas passava l todo o tempo que lhe
sobrava do trabalho, e voltava para casa depois do ch,que era
patriarcal, e bem diferente das ceatas do antigo tempo. No afirmo
que entre as duas fases da existncia de Lus Soares no houvesse
algum elo de unio, e que o emigrante dasterras de Gnido no fizesse
de quando em quando excurses ptria. Em todo o caso essas excurses
eram to secretas queningum sabia delas, nem talvez os habitantes
das referidas terras, com exceo dos poucos escolhidos para
receberem oexpatriado. O caso era singular, porque naquele pas no
se reconhece o cidado naturalizado estrangeiro, ao contrrio
daInglaterra, que no d aos sditos da rainha o direito de escolherem
outra ptria. Soares encontrava-se de quando em quando com Pires. O
confidente do convertido manifestava a sua amizade
antigaoferecendo-lhe um charuto de Havana e contando-lhe algumas
boas fortunas havidas nas campanhas do amor, em que oalarve supunha
ser consumado general. Havia j cinco meses que o sobrinho do Major
Vilela se achava empregado, e ainda os chefes da repartio no tinham
tidoum s motivo de queixa contra ele. A dedicao era digna de melhor
causa. Exteriormente via-se em Lus Soares um monge;raspando-se um
pouco achava-se o diabo. Ora, o diabo viu de longe uma
conquista...
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CAPTULO III A prima Adelaide tinha vinte e quatro anos, e a sua
beleza, no pleno desenvolvimento da sua mocidade, tinha em si o
condode fazer morrer de amores. Era alta e bem proporcionada; tinha
uma cabea modelada pelo tipo antigo; a testa era espaosae alta, os
olhos rasgados e negros, o nariz levemente aquilino. Quem a
contemplava durante alguns momentos sentia que elatinha todas as
energias, a das paixes e a da vontade. H de lembrar-se o leitor do
frio cumprimento trocado entre Adelaide e seu primo; tambm se h de
lembrar que Soares disseao amigo Pires ter sido amado por sua
prima. Ligam-se estas duas coisas. A frieza de Adelaide resultava
de uma lembranaque era dolorosa para a moa; Adelaide amara o primo,
no com um simples amor de primos, que em geral resulta daconvivncia
e no de uma sbita atrao. Amara-o com todo o vigor e calor de sua
alma; mas j ento o rapaz iniciava osseus passos em outras regies e
ficou indiferente aos afetos da moa. Um amigo que sabia do segredo
perguntou-lhe um diapor que razo no se casava com Adelaide, ao que
o rapaz respondeu friamente: Quem tem a minha fortuna no se casa;
mas se se casa sempre com quem tenha mais. Os bens de Adelaide so a
quintaparte dos meus; para ela negcio da China; para mim um mau
negcio. O amigo que ouvira esta resposta no deixou de dar uma prova
da sua afeio ao rapaz indo contar tudo moa. O golpe foitremendo, no
tanto pela certeza que lhe dava de no ser amada, como pela
circunstncia de nem ao menos ficar-lhe odireito de estima. A
confisso de Soares era um corpo de delito. O confidente oficioso
esperava talvez colher os despojos daderrota; mas Adelaide, to
depressa ouviu a delao como desprezou o delator. O incidente no
passou disto. Quando Soares voltou casa do tio, a moa achou-se em
dolorosa situao; era obrigada a conviver com um homem ao qualnem
podia dar apreo. Pela sua parte, o rapaz tambm se achava acanhado,
no porque lhe doessem as palavras que disseraum dia, mas por causa
do tio, que ignorava tudo. No ignorava; o moo que o supunha. O
major soube da paixo deAdelaide e soube tambm da repulsa que tivera
no corao do rapaz. Talvez no soubesse das palavras textuais
repetidas moa pelo amigo de Soares; mas se no conhecia o texto,
conhecia o esprito; sabia que, pelo motivo de ser amado, o
rapazentrara a aborrecer a prima, e que esta, vendo-se repelida,
entrara a aborrecer o rapaz. O major sups at durante algumtempo que
a ausncia de Soares tinha por motivo a presena da moa em casa.
Adelaide era filha de um irmo do major, homem muito rico e
igualmente excntrico, que morrera havia dez anos deixando amoa
entregue aos cuidados do irmo. Como o pai de Adelaide fizera muitas
viagens, parece que gastou nelas a maior parteda sua fortuna.
Quando morreu apenas coube a Adelaide, filha nica, cerca de trinta
contos, que o tio conservou intactospara serem o dote da pupila.
Soares houve-se como pde na singular situao em que se achava. No
conversava com a prima; apenas trocava com elaas palavras
estritamente necessrias para no chamar a ateno do tio. A moa fazia
o mesmo. Mas quem pode ter mo ao corao? A prima de Lus Soares
sentiu que pouco a pouco lhe ia renascendo o antigo afeto.Procurou
combat-lo sinceramente; mas no se impede o crescimento de uma
planta seno arrancando-lhe as razes. Asrazes existiam ainda. Apesar
dos esforos da moa o amor veio pouco a pouco invadindo o lugar do
dio, e se at ento osuplcio era grande, agora era enorme. Travara-se
uma luta entre o orgulho e o amor. A moa sofreu consigo; no
articulouuma palavra. Lus Soares reparava que quando os seus dedos
tocavam os da prima, esta experimentava uma grande emoo: corava
eempalidecia. Era um grande navegador aquele rapaz nos mares do
amor: conhecia-lhe a calma e a tempestade. Convenceu-se de que a
prima o amava outra vez. A descoberta no o alegrou; pelo contrrio,
foi-lhe motivo de grande irritao. Receavaque o tio, descobrindo o
sentimento da sobrinha, propusesse o casamento ao rapaz; e recus-lo
no seria comprometer nofuturo a esperada herana? A herana sem o
casamento era o ideal do moo. "Dar-me asas, pensava ele, atando-me
os ps, o mesmo que condenar-me priso. o destino do papagaio
domstico; no aspiro a t-lo." Realizaram-se as previses do rapaz. O
major descobriu a causa da tristeza da moa e resolveu pr termo
quela situaopropondo ao sobrinho o casamento. Soares no podia
recusar abertamente sem comprometer o edifcio da sua fortuna. Este
casamento, disse-lhe o tio, complemento da minha felicidade. De um
s lance reno duas pessoas que tanto estimo,e morro tranqilo sem
levar nenhum pesar para o outro mundo. Estou que aceitars. Aceito,
meu tio; mas observo que o casamento assenta no amor, e eu no amo
minha prima. Bem; hs de am-la; casa-te primeiro... No desejo exp-la
a uma desiluso. Qual desiluso! disse o major sorrindo. Gosto de
ouvir-te falar essa linguagem potica, mas casamento no poesia.
verdade que bom que duas pessoas antes de se casarem se tenham j
alguma estima mtua. Isso creio que tens. L fogosardentes, meu rico
sobrinho, so coisas que ficam bem em verso, e mesmo em prosa; mas
na vida, que no prosa nemverso, o casamento apenas exige certa
conformidade de gnio, de educao e de estima. Meu tio sabe que eu no
me recuso a uma ordem sua. Ordem, no! No te ordeno, proponho. Dizes
que no amas tua prima; pois bem, faze por isso, e daqui a algum
tempocasem-se que me daro gosto. O que eu quero que seja cedo,
porque no estou longe de dar casca. O rapaz disse que sim. Adiou a
dificuldade no podendo resolv-la. O major ficou satisfeito com o
arranjo e consolou a
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sobrinha com a promessa de que podia casar-se um dia com o
primo. Era a primeira vez que o velho tocava em semelhanteassunto,
e Adelaide no dissimulou o seu espanto, espanto que lisonjeou
profundamente a perspiccia do major. Ah! tu pensas, disse ele, que
eu por ser velho j perdi os olhos do corao? Vejo tudo, Adelaide;
vejo aquilo mesmo que sequer esconder. A moa no pde reter algumas
lgrimas, e como o velho a consolasse dando-lhe esperanas, ela
respondeu abanando acabea: Esperanas, nenhuma! Descansa em mim!
disse o major. Conquanto a dedicao do tio fosse toda espontnea e
filha do amor que votava sobrinha, esta compreendeu quesemelhante
interveno podia fazer supor ao primo que ela esmolava os afetos do
seu corao. Aqui falou o orgulho da mulher, que preferia o
sofrimento humilhao. Quando ela exps estas objees ao tio, o
majorsorriu-se afavelmente e procurou acalmar a suscetibilidade da
moa. Passaram-se alguns dias sem mais incidente; o rapaz estava no
gozo da dilao que lhe dera o tio. Adelaide readquiriu o seuar frio
e indiferente. Soares compreendia o motivo, e quela manifestao do
orgulho respondia com um sorriso. Duas vezesnotou Adelaide essa
expresso de desdm da parte do primo. Que mais precisava para
reconhecer que o rapaz sentia por elaa mesma indiferena de outro
tempo! Acrescia que sempre que os dois se encontravam ss, Soares
era o primeiro que seafastava dela. Era o mesmo homem. "No me ama,
no me amar nunca!" dizia a moa consigo.
CAPTULO IV Um dia de manh o major Vilela recebeu a seguinte
carta:
Meu valente major. Cheguei da Bahia hoje mesmo, e l irei de
tarde para ver-te e abraar-te. Prepara um jantar. Creio que me nohs
de receber como qualquer indivduo. No esqueas o vatap. Teu amigo,
Anselmo.
Bravo! disse o major. Temos c o Anselmo; prima Antnia, mande
fazer um bom vatap. O Anselmo que chegara da Bahia chamava-se
Anselmo Barroso de Vasconcelos. Era um fazendeiro rico, e veterano
daindependncia. Com os seus setenta e oito anos ainda se mostrava
rijo e capaz de grandes feitos. Tinha sido ntimo amigo dopai de
Adelaide, que o apresentou ao major, vindo a ficar amigo deste
depois que o outro morrera. Anselmo acompanhou oamigo at os seus
ltimos instantes; e chorou a perda como se fora seu prprio irmo. As
lgrimas cimentaram a amizadeentre ele e o major. De tarde apareceu
Anselmo galhofeiro e vivo como se comeasse para ele uma nova
mocidade. Abraou a todos; deu umbeijo em Adelaide, a quem felicitou
pelo desenvolvimento das suas graas. No se ria de mim, disse-lhe
ele, eu fui o maior amigo de seu pai. Pobre amigo! morreu nos meus
braos. Soares, que sofria com a monotonia da vida que levava em
casa do tio, alegrou-se com a presena do galhofeiro ancio, queera
um verdadeiro fogo de artifcio. Anselmo que pareceu no simpatizar
com o sobrinho do major. Quando o major ouviuisto, disse: Sinto
muito, porque Soares um rapaz srio. Creio que srio demais. Rapaz
que no ri... No sei que incidente interrompeu a frase do
fazendeiro. Depois do jantar Anselmo disse ao major: Quantos so
amanh? Quinze. De que ms? boa! de dezembro. Bem; amanh 15 de
dezembro preciso ter uma conferncia contigo e os teus parentes. Se
o vapor se demora um dia emcaminho pregava-me uma boa pea. No dia
seguinte verificou-se a conferncia pedida por Anselmo. Estavam
presentes o major, Soares, Adelaide e D. Antnia,nicos parentes do
finado.
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Faz hoje dez anos que faleceu o pai desta menina, disse Anselmo
apontando para Adelaide. Como sabem, o Dr. BentoVarela foi o meu
melhor amigo, e eu tenho conscincia de haver correspondido sua
afeio at aos ltimos instantes.Sabem que ele era um gnio excntrico;
toda a sua vida foi uma grande originalidade. Ideava vinte
projetos, qual maisgrandioso, qual mais impossvel, sem chegar ao
cabo de nenhum, porque o seu esprito criador to depressa compunha
umacoisa como entrava a planear outra. verdade, interrompeu o
major. O Bento morreu nos meus braos, e como derradeira prova da
sua amizade confiou-me um papel com a declarao de queeu s o abrisse
em presena dos seus parentes dez anos depois de sua morte. No caso
de eu morrer os meus herdeirosassumiriam essa obrigao; em falta
deles, o major, a Sra. D. Adelaide, enfim qualquer pessoa que por
lao de sangueestivesse ligada a ele. Enfim, se ningum houvesse na
classe mencionada, ficava incumbido um tabelio. Tudo isto havia
eudeclarado em testamento, que vou reformar. O papel a que me
refiro, tenho aqui no bolso. Houve um movimento de curiosidade.
Anselmo tirou do bolso uma carta fechada com lacre preto. este,
disse ele. Est intacto. No conheo o texto; mas posso mais ou menos
saber o que est dentro porcircunstncias que vou referir. Redobrou a
ateno geral. Antes de morrer, continuou Anselmo, o meu querido
amigo entregou-me uma parte da sua fortuna, quero dizer a
maiorparte, porque a menina recebeu apenas trinta contos. Eu recebi
dele trezentos contos, que guardei at hoje intactos, e quedevo
restituir segundo as indicaes desta carta. A um movimento de
espanto em todos seguiu-se um movimento de ansiedade. Qual seria a
vontade misteriosa do pai deAdelaide? D. Antnia lembrou-se que em
rapariga fora namorada do defunto, e por um momento lisonjeou-se
com a idia deque o velho manaco se houvesse lembrado dela s portas
da morte. Nisto reconheo eu o mano Bento, disse o major tomando uma
pitada; era o homem dos mistrios, das surpresas e dasidias
extravagantes, seja dito sem agravo aos seus pecados, se que os
teve... Anselmo tinha aberto a carta. Todos prestaram ouvidos. O
veterano leu o seguinte:
Meu bom e estimadssimo Anselmo. Quero que me prestes o ltimo
favor. Tens contigo a maior parte da minha fortuna, e eu diria a
melhor setivesse de aludir minha querida filha Adelaide. Guarda
esses trezentos contos at daqui a dez anos, e aoterminar o prazo, l
esta carta diante dos meus parentes. Se nessa poca a minha filha
Adelaide for viva e casada entrega-lhe a fortuna. Se no estiver
casada,entrega-lha tambm, mas com uma condio: que se case com o
sobrinho Lus Soares, filho de minha irmLusa; quero-lhe muito, e
apesar de ser rico, desejo que entre na posse da fortuna com minha
filha. No caso emque esta se recuse a esta condio, fica tu com a
fortuna toda.
Quando Anselmo acabou de ler esta carta seguiu-se um silncio de
surpresa geral, de que partilhava o prprio veterano,alheio at ento
ao contedo da carta. Soares tinha os olhos em Adelaide; esta
tinha-os no cho. Como o silncio se prolongasse, Anselmo resolveu
romp-lo. Ignorava, como todos, disse ele, o que esta carta contm;
felizmente chega ela a tempo de se realizar a ltima vontadedo meu
finado amigo. Sem dvida nenhuma, disse o major. Ouvindo isto, a moa
levantou insensivelmente os olhos para o primo, e os dela
encontraram-se com os dele. Os deletransbordavam de contentamento e
ternura; a moa fitou-os durante alguns instantes. Um sorriso, j no
zombeteiro, passoupelos lbios do rapaz. A moa sorriu com tamanho
desdm s zumbaias de um corteso. Anselmo levantou-se. Agora que esto
cientes disto, disse ele aos dois primos, espero que resolvam, e
como o resultado no pode ser duvidoso,desde j os felicito.
Entretanto, ho de dar-me licena, que tenho de ir a outras partes.
Com a sada de Anselmo dispersara-se a reunio. Adelaide foi para o
seu quarto com a velha parenta. O tio e o sobrinhoficaram na sala.
Lus, disse o primeiro, s o homem mais feliz do mundo. Parece-lhe,
meu tio? disse o moo procurando disfarar a sua alegria. s. Tens uma
moa que te ama loucamente. De repente cai-lhe nas mos uma fortuna
inesperada; e essa fortuna s podehav-la com a condio de se casar
contigo. At os mortos trabalham a teu favor.
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Afirmo-lhe, meu tio, que a fortuna no pesa nada nestes casos, e
se eu assentar em casar com a prima ser por outromotivo. Bem sei
que a riqueza no essencial; no . Mas enfim vale alguma coisa.
melhor ter trezentos contos que trinta;sempre mais uma cifra.
Contudo no te aconselho que te cases com ela se no tiveres alguma
afeio. Nota que eu no merefiro a essas paixes de que me falaste.
Casar mal, apesar da riqueza, sempre casar mal. Estou convencido
disto, meu tio. Por isso ainda no dei a minha resposta, nem dou por
ora. Se eu vier a afeioar-me prima estou pronto a entrar na posse
dessa inesperada riqueza. Como o leitor ter adivinhado, a resoluo
do casamento estava assentada no esprito de Soares. Em vez de
esperar a mortedo tio, parecia-lhe melhor entrar desde logo na
posse de um excelente peclio, o que se lhe afigurava tanto mais
fcil,quanto que era a voz do tmulo que o impunha. Soares contava
tambm com a profunda venerao de Adelaide por seu pai. Isto, ligado
ao amor que a rapariga sentia porele, devia produzir o desejado
efeito. Nessa noite o rapaz dormiu pouco. Sonhou com o Oriente.
Pintou-lhe a imaginao um harm recendente das melhoresessncias da
Arbia, forrado o cho com tapetes da Prsia; sobre moles divs
ostentavam-se as mais perfeitas belezas domundo. Uma circassiana
danava no meio do salo ao som de um pandeiro de marfim. Mas um
furioso eunuco, precipitando-sena sala com o iatag desembainhado,
enterrou-o todo no peito de Soares, que acordou com o pesadelo, e
no pde maisconciliar o sono. Levantou-se mais cedo e foi passear at
chegar a hora do almoo e da repartio.
CAPTULO V O plano de Lus Soares estava feito. Tratava-se de
abater as armas pouco a pouco, simulando-se vencido diante da
influncia de Adelaide. A circunstncia dariqueza tornava necessria
toda a discrio. A transio devia ser lenta. Cumpria ser diplomata.
Os leitores tero visto que, apesar de certa argcia da parte de
Soares, no tinha ele a perfeita compreenso das coisas, epor outro
lado o seu carter era indeciso e vrio. Hesitara em casar com
Adelaide quando o tio lhe falou nisso, quando era certo que viria a
obter mais tarde a fortuna domajor. Dizia ento que no tinha vocao
de papagaio. A situao agora era a mesma; aceitava uma fortuna
mediante umapriso. verdade que se esta resoluo era contrria
primeira, podia ter por causa o cansao que lhe ia produzindo a
vidaque levava. Alm de que, desta vez, a riqueza no se fazia
esperar; era entregue logo depois do consrcio. "Trezentos contos,
pensava o rapaz, quanto basta para eu ser mais do que fui. O que no
ho de dizer os outros!" Antevendo uma felicidade que era certa para
ele, Soares comeou o assdio da praa, alis praa rendida. J o rapaz
procurava os olhos da prima, j os encontrava, j lhes pedia aquilo
que recusara at ento, o amor da moa.Quando, mesa, as suas mos se
encontravam, Soares tinha o cuidado de demorar o contato, e se a
moa retirava a suamo, o rapaz nem por isso desanimava. Quando se
encontrava a ss com ela, no fugia como outrora, antes lhe
dirigiaalguma palavra, a que Adelaide respondia com fria polidez.
"Quer vender o peixe caro", pensava Soares. Uma vez atreveu-se a
mais. Adelaide tocava piano quando ele entrou sem que ela o visse.
Quando a moa acabou, Soaresestava por trs dela. Que lindo! disse o
rapaz; deixe-me beijar-lhe essas mos inspiradas. A moa olhou sria
para ele, pegou no leno que pusera sobre o piano, e saiu sem dizer
palavra. Esta cena mostrou a Soares toda a dificuldade da empresa;
mas o rapaz confiava em si, no porque se reconhecesse capazde
grandes energias, mas por espcie de esperana na sua boa estrela.
difcil subir a corrente, disse ele, mas sobe-se. No se fazem
Alexandres na conquista de praas desarmadas. Contudo, as desiluses
iam-se sucedendo, e o rapaz, se o no alentasse a idia da riqueza,
teria abatido as armas. Um dia lembrou-se de escrever-lhe uma
carta. Lembrou-se de que era difcil expor-lhe de viva voz tudo
quanto sentia; masque uma carta, por muito dio que ela lhe tivesse,
sempre seria lida. Adelaide devolveu a carta pelo moleque da casa
que lha havia entregue. A segunda carta teve a mesma sorte. Quando
mandou a terceira, o moleque no a quis receber. Lus Soares teve um
instante de desengano. Indiferente moa, j comeava a odi-la; se
casasse com ela era provvel quea tratasse como inimigo mortal.
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A situao tornava-se ridcula para ele; ou antes, j o era h muito,
mas Soares s ento o compreendeu. Para escapar aoridculo, resolveu
dar um golpe final, mas grande. Aproveitou a primeira ocasio que
pde, e fez uma declarao positiva moa, cheia de splicas, de
suspiros, talvez de lgrimas. Confessou os seus erros; reconheceu
que no a haviacompreendido; mas arrependera-se e confessava tudo. A
influncia dela acabara por abat-lo. Abat-lo! disse ela; no
compreendo. A que influncia alude? Bem sabe; influncia da sua
beleza, do seu amor... No suponha que lhe estou mentindo. Sinto-me
hoje to apaixonadoque era capaz de cometer um crime! Um crime? No
crime o suicdio? De que me serviria a vida sem o seu amor? Vamos,
fale! A moa olhou para ele durante alguns instantes sem dizer
palavra. O rapaz ajoelhou-se. Ou seja a morte, ou seja a
felicidade, disse ele, quero receb-la de joelhos. Adelaide sorriu e
soltou lentamente estas palavras: Trezentos contos! muito dinheiro
para comprar um miservel. E deu-lhe as costas. Soares ficou
petrificado. Durante alguns minutos conservou-se na mesma posio,
com os olhos fitos na moa que seafastava lentamente. O rapaz
dobrava-se ao peso da humilhao. No previra to cruel desforra da
parte de Adelaide. Nemuma palavra de dio, nem um indcio de raiva;
apenas um calmo desdm, um desprezo tranqilo e soberano. Soares
sofreramuito quando perdeu a fortuna; mas agora que o seu orgulho
foi humilhado, a sua dor foi infinitamente maior. Pobre rapaz! A
moa foi para dentro. Parece que contava com aquela cena; porque
entrando em casa, foi logo procurar o tio, e declarou-lhe que,
apesar de quanto venerava a memria do pai, no podia obedecer-lhe, e
desistia do casamento. Mas no o amas tu? perguntou-lhe o major.
Amei-o. Amas a outro? No. Ento explica-te. Adelaide exps
francamente o procedimento de Soares desde que ali entrara, a
mudana que fizera, a sua ambio, a cenado jardim. O major ouviu
atentamente a moa, procurou desculpar o sobrinho, mas no fundo ele
acreditava que Soares eraum mau carter. Este, depois que pde
refrear a sua clera, entrou em casa e foi despedir-se do tio at o
dia seguinte. Pretextou que tinha um negcio urgente.
CAPTULO VI Adelaide contou miudamente ao amigo de seu pai os
sucessos que a obrigavam a no preencher a condio da carta
pstumaconfiada a Anselmo. Em conseqncia desta recusa, a fortuna
devia ficar com Anselmo; a moa contentava-se com o quetinha. No se
deu Anselmo por vencido, e antes de aceitar a recusa foi ver se
sondava o esprito de Lus Soares. Quando o sobrinho do major viu
entrar por casa o fazendeiro suspeitou que alguma coisa houvesse a
respeito do casamento.Anselmo era perspicaz; de modo que, apesar da
aparncia de vtima com que Soares lhe aparecera, compreendeu ele
queAdelaide tinha razo. Assim pois tudo estava acabado. Anselmo
disps-se a partir para a Bahia, e assim o declarou famlia do major.
Nas vsperas de partir achavam-se todos juntos na sala de visitas,
quando Anselmo soltou estas palavras: Major, est ficando melhor e
forte; eu creio que uma viagem Europa lhe far bem. Esta moa tambm
gostar de ver aEuropa, e creio que a Sra. D. Antnia, apesar da
idade, l querer ir. Pela minha parte sacrifico a Bahia e vou
tambm.Aprovam o conselho? Homem, disse o major, preciso
pensar...
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Qual pensar! Se pensarem no embarcaro. Que diz a menina? Eu
obedeo ao tio, respondeu Adelaide. Alm de que, disse Anselmo, agora
que D. Adelaide est de posse de uma grande fortuna, h de querer
apreciar o que hde bonito nos pases estrangeiros a fim de poder
melhor avaliar o que h no nosso... Sim, disse o major; mas voc fala
de grande fortuna... Trezentos contos. So seus. Meus! Ento sou
algum ratoneiro? Que me importa a mim a fantasia de um generoso
amigo? O dinheiro desta menina, sualegtima herdeira, e no meu, que
alis tenho bastante. Isso bonito, Anselmo! Mas o que no seria se no
fosse isto? A viagem Europa ficou assentada. Lus Soares ouviu a
conversa toda sem dizer palavra; mas a idia de que talvez pudesse
ir com o tio sorriu-lhe ao esprito. Nodia seguinte teve um
desengano cruel. Disse-lhe o major que, antes de partir, o deixaria
recomendado ao ministro. Soares procurou ainda ver se alcanava
seguir com a famlia. Era simples cobia na fortuna do tio, desejo de
ver novasterras, ou impulso de vingana contra a prima? Era tudo
isso, talvez. ltima hora foi-se a derradeira esperana. A famlia
partiu sem ele. Abandonado, pobre, tendo por nica perspectiva o
trabalho dirio, sem esperanas no futuro, e alm do mais, humilhado
eferido em seu amor-prprio, Soares tomou a triste resoluo dos
covardes. Um dia de noite o criado ouviu no quarto dele um tiro;
correu, achou um cadver. Pires soube na rua da notcia, e correu
casa de Vitria, que encontrou no toucador. Sabes de uma coisa?
perguntou ele. No. Que ? O Soares matou-se. Quando? Neste momento.
Coitado! srio? srio. Vais sair? Vou ao Alcazar. Canta-se hoje
Barbe-Bleue, no ? . Pois eu tambm vou. E entrou a cantarolar a cano
de Barbe-Bleue. Lus Soares no teve outra orao fnebre dos seus
amigos mais ntimos.
A MULHER DE PRETO
NDICE
CAPTULO PRIMEIRO CAPTULO II CAPTULO III
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CAPTULO IV CAPTULO V CAPTULO VI CAPTULO VII CAPTULO VIII CAPTULO
IX CAPTULO X CAPTULO XI
CAPTULO PRIMEIRO A primeira vez que o Dr. Estvo Soares falou ao
deputado Meneses foi no Teatro Lrico no tempo da memorvel luta
entrelagrustas e chartonistas. Um amigo comum os apresentou ao
outro. No fim da noite separaram-se oferecendo cada um delesos seus
servios e trocando os respectivos cartes de visita. S dois meses
depois encontraram-se outra vez. Estvo Soares teve de ir casa de um
ministro de Estado para saber de uns papis relativos a um parente
da provncia, e aencontrou o deputado Meneses, que acabava de ter
uma conferncia poltica. Houve sincero prazer em ambos
encontrando-se pela segunda vez; e Meneses arrancou de Estvo a
promessa de que iria casa dele da a poucos dias. O ministro
depressa despachou o jovem mdico. Chegando ao corredor, Estvo foi
surpreendido com uma tremenda btega d'gua, que nesse momento caa, e
comeava aalagar a rua. O rapaz olhou a um e outro lado a ver se
passava algum veculo vazio, mas procurou inutilmente; todos que
passavam iamocupados. Apenas porta estava um coup vazio espera de
algum, que o rapaz sups ser o deputado. Da a alguns minutos desce
com efeito o representante da nao, e admirou-se de ver o mdico
ainda porta. Que quer? disse-lhe Estvo; a chuva impediu-me de sair;
aqui fiquei a ver se passa um tlburi. natural que no passe, e nesse
caso ofereo-lhe um lugar no meu coup. Venha. Perdo; mas um
incmodo... Ora, incmodo! um prazer. Vou deix-lo em casa. Onde mora?
Rua da Misericrdia n... Bem, suba. Estvo hesitou um pouco; mas no
podia deixar de subir sem ofender o digno homem que de to boa
vontade lhe fazia umobsquio. Subiram. Mas em vez de mandar o
cocheiro para a Rua da Misericrdia, o deputado gritou: Joo, para
casa! E entrou. Estvo olhou para ele admirado. J sei, disse-lhe
Meneses; admira-se de ver que faltei minha palavra; mas eu desejo
apenas que fique conhecendo a
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minha casa a fim de l voltar quanto antes. O coup rolava j pela
rua fora debaixo de uma chuva torrencial. Meneses foi o primeiro
que rompeu o silncio