LUIZ GUSTAVO GAVIÃO RELAÇÕES COMPLEXAS: Pintores fluminenses e seus encomendantes 1763-1821 Tese de Doutorado em História e Teoria da Arte apresentada ao Programa de Pós-Graduação Escola de Belas Artes, UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em História e Crítica de Arte. Orientadora: Cybele Vidal Neto Fernandes Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de Letras e Artes Escola de Belas Artes Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais Rio de Janeiro
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LUIZ GUSTAVO GAVIÃO
RELAÇÕES COMPLEXAS:
Pintores fluminenses e seus encomendantes 1763-1821
Tese de Doutorado em História e Teoria da Arte apresentada ao Programa de Pós-Graduação Escola de Belas Artes, UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em História e Crítica de Arte.
Orientadora: Cybele Vidal Neto Fernandes
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Centro de Letras e Artes
Escola de Belas Artes
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais
Rio de Janeiro
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GAVIÃO, Luiz Gustavo
Relações Complexas: pintores fluminenses e seus encomendantes
1763-1821. Rio de Janeiro, UFRJ, EBA, 2010.
312f.
Tese: Doutor em História e Crítica da Arte
1 . Escola Fluminense de Pintura 2 . Relações de encomenda
3 . Sociologia da Arte
I . Universidade Federal do Rio de Janeiro
II . Título
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Para Norma Miranda Lavado Em memória
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AGRADECIMENTOS
A Carmen Lúcia Lavado Gavião e Adaltro Magalhães Gavião, pelo apoio neste caminho fascinante da História da Arte, mesmo na época em que revelei a verdade sobre minha aprovação no vestibular. É, meus pais, não era Engenharia... A Norma Miranda Lavado, minha avó que sabia desde o início o meu pequeno segredo e que hoje torce por mim lá do alto. A Cybele Vidal Neto Fernandes, pela orientação preciosa, apesar dos meus problemas com o tempo. A Marco Aurélio Cardoso, pela amizade infinita, paciência e confiança na qualidade de meu trabalho. A Carla Santoro, Rodrigo Becker, Rogério Vasconcelos, Sonia Passos e Cristina Melo, pela amizade e carinho. A Marcia Miranda, Ulício Junior, Luiz Fernando de Moraes, Luiza Silveira, Elisabete Rovari e Rafael Paiva, pela formação de um grupo amigo de professores que tanto colaborou para a renovação das minhas fontes de inspiração e reflexão. A Inês Senra e Alzira Batalha, pela contribuição nos assuntos relacionados à Aula Régia em particular, e à Educação em geral. A Gustavo Schnoor, por ter percebido, no início de minha formação, certa vocação para estudar o passado colonial. A Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, professora responsável pela confirmação da vocação descrita acima. A Daniela Chindler, por ter me mostrado como ampliar meus limites como pesquisador e teórico. A Claudia Fadel, Diretora da Escola SESC de Ensino Médio, pelo interesse em compor um quadro de professores pesquisadores e pelo apoio aos que estão em formação. A Tathyane Ferreira Höfke e Reginaldo da Rocha Leite, parceiros queridos nos ambientes da Escola de Belas Artes e fora deles também. A Irmandade de São José, pela confiança em disponibilizar o material necessário à pesquisa. As Instituições IPHAN, IHGB, Biblioteca Nacional, Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, Museu Histórico Nacional e Museu de Arte Antiga de Lisboa, pela acessibilidade e respeito ao pesquisador.
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Os físicos às vezes dizem medir o tempo. Servem-se de fórmulas matemáticas nas quais o tempo desempenha o papel de um quantum específico. Mas o tempo não se deixa ver, tocar, ouvir, saborear nem respirar como um odor. Há uma pergunta que continua à espera de resposta: como medir uma coisa que não se pode perceber pelos sentidos? Uma hora é algo invisível.
Norbet Elias
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RESUMO
Relações Complexas: Pintores fluminenses e seus clientes 1763-1821
GAVIÃO, Luiz Gustavo. Relações complexas: pintores fluminenses e seus clientes. Rio de
Janeiro, 2010. Tese (Doutorado em História e Crítica da Arte) – Escola de Belas Artes,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
Estudo da pintura colonial fluminense, do período entre 1763 a 1821, na concepção da
sociologia da arte através da análise da relação entre o encomendante, a obra e o profissional.
A partir da percepção de que a figura do cliente participa de maneira decisiva na produção
local, é elaborado um roteiro de investigação que perpassa as funções dos objetos através de
suas origens, simbólicas e utilitárias. Para tanto, as funções são pensadas por filiação temática,
considerando a mensagem da pintura como elemento diretamente associado ao espaço
específico a que foi destinada. A análise presencial das obras selecionadas e a consulta aos
documentos sobreviventes e disponíveis são as bases para a identificação do perfil do
encomendante e de sua atuação na transformação estilística e iconográfica da época. Inclusão
da burguesia comerciante como consumidora potencialmente ativa nos oitocentos,
protagonista de mudanças significativas no cenário artístico fluminense, como a abertura da
Aula Régia de Desenho e Figura. Discussão sobre a complexidade do período e de sua
importância para a construção de uma história positivamente valorativa, eliminando os
vestígios ainda presentes do tom pejorativo em torno da pintura colonial.
Palavras-chave: Pintura colonial, encomendantes, século XVIII, Sociologia da Arte.
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ABSTRACT
Complex Relations: Fluminense painters and their clients 1763-1821
GAVIÃO, Luiz Gustavo. Relações complexas: pintores fluminenses e seus clientes. Rio de
Janeiro, 2010. Tese (Doutorado em História e Crítica da Arte) – Escola de Belas Artes,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
The study of the fluminense colonial painting in the period from 1763 to 1821, by the
art sociology theory that analyses the relation among clients, works of art and artists. Starting
with the perception of the client as a participative agent in the local production of art, this
research investigates the symbolic and utility functions of the objects since their origins.
These functions are studied by the paintings´ themes that consider the message as an essential
element deeply linked to the work of art´s specific location. The direct contact with the
selected paintings and the investigation of the preserved documents are the bases to identify
the clients’ profile and their contribution to transform the style and the iconography of the
period. The bourgeois is included as an important client in the eighteenth century, an actor
who promotes significant changes on the colonial artistic production, like the opening of the
Aula Régia de Desenho e Figura. This research discusses the colonial period´s complexity
and its importance to compose a positive history, trying to eliminate still surveying prejudices
over this subject.
Key Words: Colonial painting, clients, eighteenth century, art sociology.
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 Luis Michel van Loo. Retrato do 1o Marquês de Pombal, Sebastião José de
Carvalho e Melo. 1766. Óleo sobre tela. 2230 x 3040 cm. Museu Nacional de
Arte Antiga, Lisboa.
Figura 2 André Gonçalves. Assunção da Virgem. C. 1730. Óleo sobre tela. 3570 x 2520.
Mafra, Lisboa.
Figura 3 José de Oliveira Rosa. Santa Bárbara. 1769. Óleo sobre tela. Igreja de Nossa
Senhora de Monteserrate, Rio de Janeiro.
Figura 4 Vieira Lusitano. Santo Agostinho pisando na heresia. 1736. Óleo sobre tela.
MNAA, Lisboa.
Figura 5 Linhas de força.
Figura 6 Pedro Alexandrino de Carvalho. Salvador do Mundo. 1778. Óleo sobre tela. Sé
de Lisboa.
Figura 7 Vieira Portuense. Juramento de Viriato. 1799. Gravura de Francesco
Bartolozzi. 42 x 28.9 cm. Biblioteca Geral da Faculdade de Ciências do Porto.
Figura 8 Vieira Portuense. Dona Filipa de Vilhena arma os filhos cavaleiros. 1800-1801.
Óleo sobre tela. 152 x 213 cm. Coleção particular.
Figura 9 Domingos Antonio de Sequeira. Alegoria à Casa Pia. Óleo sobre tela. MNAA,
Lisboa.
Figura 10 Domingos Antonio de Sequeira. Estudo para Alegoria à Casa Pia. Desenho.
MNAA, Lisboa.
Figura 11 Domingos Antonio de Sequeira. Retrato do Conde de Farrobo. 1813. 110 x 68
cm. MNAA, Lisboa.
Figura 12 Cirilo Wolkmar Machado. Estudos anatômicos. 1823. Folha 141.
Figura 13 Peter Paul Rubens. A Descida da Cruz. Óleo sobre madeira. 462 x 341 cm.
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Catedral de Antuérpia.
Figura 14 Manoel da Cunha e Silva. A Descida da Cruz. Óleo sobre madeira. Igreja de
Nossa Senhora do Bonsucesso, Rio de Janeiro.
Figura 15 Forro da capela-mor da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, Rio de Janeiro.
Figura 16 Manoel da Cunha e Silva. Nossa Senhora das Vitórias. Século XVIII. Óleo
sobre madeira. Igreja de São Francisco de Paula, Rio de Janeiro.
Figura 17 Leandro Joaquim. Nossa Senhora da Boa Morte. Século XVIII. Óleo sobre
tela. Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte dos Homens Pardos, Rio de
Janeiro.
Figura 18 Leandro Joaquim. São Januário. Óleo sobre tela. Século XVIII. 185 x 90 cm.
Igreja de São Sebastião, Rio de Janeiro.
Figura 19 Raimundo da Costa e Silva. Nossa Senhora do Carmo. Século XVIII. Óleo
sobre tela. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.
Figura 20 Raimundo da Costa e Silva. A Sagrada Família. Início do século XIX. Óleo
sobre tela. Igreja de São José, Rio de Janeiro.
Figura 21 Oficina de Francisco Manuel. Jesus, Maria, José. Século XVIII. Gravura.
Biblioteca Nacional de Lisboa.
Figura 22 Manoel Dias de Oliveira. Nossa Senhora da Conceição. 1817. Óleo sobre tela.
MNBA, Rio de Janeiro.
Figura 23 Linhas de composição.
Figura 24 José Leandro de Carvalho. São Pedro. 1817. Óleo sobre tela. Igreja de Nossa
Senhora do Carmo da Antiga Sé, Rio de Janeiro.
Figura 25 José Leandro de Carvalho. São João Evangelista. 1817. Óleo sobre tela. Igreja
de Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé, Rio de Janeiro.
Figura 26 José Leandro de Carvalho. São Mateus. 1817. Óleo sobre tela. Igreja de Nossa
Senhora do Carmo da Antiga Sé, Rio de Janeiro.
Figura 27 José Leandro de Carvalho. São André. 1817. Óleo sobre tela. Igreja de Nossa
Senhora do Carmo da Antiga Sé, Rio de Janeiro.
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Figura 28 José Leandro de Carvalho. São Tiago Maior. 1817. Óleo sobre tela. Igreja de
Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé, Rio de Janeiro.
Figura 29 José Leandro de Carvalho. São Matias. 1817. Óleo sobre tela. Igreja de Nossa
Senhora do Carmo da Antiga Sé, Rio de Janeiro.
Figura 30 José Leandro de Carvalho. São Bartolomeu. 1817. Óleo sobre tela. Igreja de
Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé, Rio de Janeiro.
Figura 31 José Leandro de Carvalho. São Tiago Menor. 1817. Óleo sobre tela. Igreja de
Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé, Rio de Janeiro.
Figura 32 José Leandro de Carvalho. São Tomé. 1817. Óleo sobre tela. Igreja de Nossa
Senhora do Carmo da Antiga Sé, Rio de Janeiro.
Figura 33 José Leandro de Carvalho. São Felipe. 1817. Óleo sobre tela. Igreja de Nossa
Senhora do Carmo da Antiga Sé, Rio de Janeiro.
Figura 34 José Leandro de Carvalho. São Judas Tadeu. 1817. Óleo sobre tela. Igreja de
Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé, Rio de Janeiro.
Figura 35 José Leandro de Carvalho. São Simão. 1817. Óleo sobre tela. Igreja de Nossa
Senhora do Carmo da Antiga Sé, Rio de Janeiro.
Figura 36 Hyacinthe Rigaud. Retrato de Luís XIV. 1701. Óleo sobre tela. 277 x 194 cm.
Museu do Louvre, Paris.
Figura 37 Autor desconhecido. Retrato de D. João I. Século XV. Óleo sobre tela. MNAA,
Lisboa.
Figura 38 Autor desconhecido. Retrato de um jovem Cavaleiro. Século XVI. Óleo sobre
tela. MNAA, Lisboa.
Figura 39 Domenico Duprá. Retrato de D. João V. c. 1725. Palácio Ducal, Vila Viçosa.
Figura 40 Vieira Portuense. Retrato do Bispo Adeodato Turchi. c. 1794-1795. Óleo sobre
tela. MNAA, Lisboa.
Figura 41 Leandro Joaquim. Nossa Senhora da Conceição. c. 1790. Óleo sobre tela.
Igreja de Nossa Senhora da Conceição e Boa Morte dos Homens Pardos, Rio
de Janeiro.
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Figura 42 Leandro Joaquim. Retrato de Luís de Vasconcelos. c. 1790. Óleo sobre tela.
Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
Figura 43 Leandro Joaquim. Lagoa do Boqueirão. c. 1790. Óleo sobre tela. MHN, Rio de
Janeiro.
Figura 44
Divisão entre duas partes: a do poder e a do povo.
Figura 45
Manoel da Cunha e Silva. Retrato do Conde de Bobadela. 1791. Óleo sobre
tela. Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro.
Figura 46
Olivarius Cor. Retrato de Gomes Freire de Andrada. 1747. Sociedade Martins
Sarmento, Porto.
Figura 47 Consistório da Ordem Terceira do Carmo. Igreja da Ordem Terceira de Nossa
Senhora do Carmo, Rio de Janeiro.
Figura 48 Francesco Bartolozzi. Retrato de D. João. 1804. Gravura. BNL, Lisboa.
Figura 49 Francesco Bartolozzi. Retrato de D. João. 1809. Gravura. BNL, Lisboa.
Figura 50 João Cardini. Retrato de D. João VI. 1807. Gravura. BNL, Lisboa.
Figura 51 João de Mesquita. Retrato de D. João VI. 1816. Gravura. BNL, Lisboa.
Figura 52 Manuel Marques de Aguiar. Retrato de D. João. 1799. Gravura. BNL, Lisboa.
Figura 53 Camoin. Retrato de D. João VI. c. 1817. Gravura. BNL, Lisboa.
Figura 54 Domingos Antonio de Sequeira. Retrato de D. João. 1802. Óleo sobre tela.
MNAA, Lisboa.
Figura 55 Jean Baptiste Debret. Retrato de D. João VI. 1816. Óleo sobre tela. MNBA,
Rio de Janeiro.
Figura 56 Jean Baptiste Debret. Retrato de D. João VI. 1816. Óleo sobre tela.
Figura 57 José Leandro de Carvalho. Retrato de D. João VI. c. 1818. Óleo sobre tela.
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro.
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Figura 58 José Leandro de Carvalho. Retrato de D. João VI. c. 1818. Óleo sobre tela.
Figura 59 José Leandro de Carvalho. Retrato de D. Maria I. c. 1818. Óleo sobre tela.
MHN, Rio de Janeiro.
Figura 60 Vieira Lusitano. Retrato de Francisca Maria, Princesa do Brasil. 1753. Óleo
sobre tela. 1520 x 1070 cm. Palácio Nacional de Queluz, Queluz.
Figura 61 Manoel Dias de Oliveira. Retrato de D. João VI e D. Carlota Joaquina. 1819.
Óleo sobre tela. MHN, Rio de Janeiro.
Figura 62 Anton Raphael Mengs. Parnaso. 1761. Óleo sobre tela. Villa Albani, Roma.
Figura 63 Pompeo Batoni. Retrato de Thomas Dundas. 1763. Óleo sobre tela. 298 x
196.8 cm. Coleção Marquesa de Zetland, Yorkshore.
Figura 64 Joseph-Marie Vien. Vendedora de Cupidos. 1763. Óleo sobre tela. Museu
Nacional do Chateau de Fontainebleau, Fontainebleau.
Figura 65 Domingos Antonio de Sequeira. Ismael expulsando Agar. 1786. Desenho a
sanguínea. 592 x 495 cm. MNAA, Lisboa.
Figura 66 Manoel Dias de Oliveira. Fato milagroso de Santa Isabel, Rainha de Portugal.
1798. Gravura. 42 x 34 cm. Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
Figura 67 Clemente Magalhães de Bastos. Estudo de cabeça masculina. 1810. FBN, Rio
de Janeiro.
Figura 68 Clemente Magalhães de Bastos. Estudo de cabeça masculina. 1810. FBN, Rio
de Janeiro.
Figura 69 Clemente Magalhães de Bastos. Estudo de cabeça masculina. 1812. FBN, Rio
de Janeiro.
Figura 70 Francisco Pedro do Amaral. Estudo de cabeça feminina. 1805. FBN, Rio de
Janeiro.
Figura 71 Clemente Magalhães de Bastos. Estudo de friso com rosáceas. 1812. FBN, Rio
de Janeiro.
13
Figura 72 Clemente Magalhães de Bastos. Estudo de osso. 1815. FBN, Rio de Janeiro.
Figura 73 Francisco Pedro do Amaral. Projeto de monumento à memória do dia 26 de
fevereiro de 1821, a ser erigido na Praça da Constituição. 1822. FBN, Rio de
Janeiro.
Figura 74 Manoel Dias de Oliveira. Alegoria do Nascimento de Dona Maria da Glória.
1819. Óleo sobre tela. 95 x 171 cm. IHGB, Rio de Janeiro.
14
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 16
1 O PINTOR PORTUGUÊS NO SÉCULO XVIII 33
1.1 O PERÍODO JOANINO: A ASCENSÃO SOCIAL DO PINTOR 42
1.2 O PERÍODO POMBALINO: ANTECEDENTES DAS NOVAS RELAÇÕES DE TRABALHO 58
1.3 VIEIRA PORTUENSE E DOMINGOS ANTONIO DE SEQUEIRA: ARTE E BURGUESIA 67
1.4 OS TRATADOS DE CIRILO WOLKMAR MACHADO: O PINTOR COMO TEÓRICO DA
ARTE 82
2 O CAMPO RELIGIOSO: ENCOMENDAS A SERVIÇO DA FÉ 91
2.1 O PINTOR SETECENTISTA FLUMINENSE E AS IRMANDADES RELIGIOSAS 111
2.2 A PINTURA RELIGIOSA OITOCENTISTA: A CORTE COMO ENCOMENDANTE 132
3 A PINTURA DE RETRATO E SEUS ENCOMENDANTES 153
3.1 O RETRATO EM PORTUGAL: AS RELAÇÕES DE ENCOMENDA 167
3.2 O CASO COLONIAL: O RETRATO E AS IDENTIDADES EM CONSTRUÇÃO 186
3.3 A CORTE COMO CLIENTE: D. JOÃO VI E OS PINTORES RETRATISTAS 206
15
4 A AULA RÉGIA DE DESENHO E FIGURA: DISCUSSÕES PRELIMINARES 238
4.1 A AULA RÉGIA DE DESENHO E FIGURA DE LISBOA: A CONCEPÇÃO BURGUESA DE
MERCADO DE ARTE 255
4.2 A AULA RÉGIA DE DESENHO E FIGURA DO RIO DE JANEIRO: PARADOXOS E
CONTRADIÇÕES 262
4.3 ARTES E OFÍCIOS A SERVIÇO DA CORTE 286
CONSIDERAÇÕES FINAIS 297
FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 304
ANEXOS 314
16
INTRODUÇÃO
O despertar da consciência sobre o valor do patrimônio artístico como parte
constituinte da identidade de uma nação ocorreu, essencialmente, durante processo de
formação do novo império, após a proclamação da Independência. No calor do Romantismo e
da necessidade de se construir uma imagem particular frente às demais culturas estrangeiras,
uma notável movimentação intelectual em torno dos assuntos específicos do Brasil começou a
gerar frutos. A fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro1 foi, sem dúvida, o
resultado maior do desejo de discutir questões nacionais e divulgá-las a partir de suas
publicações. Reduto de pesquisadores dispostos a vasculhar arquivos em busca de
informações sobre personalidades, monumentos, lugares e costumes, o Instituto ofereceu
oportunidade a Manoel de Araujo Porto Alegre2 de realizar o estudo inaugural de História da
Arte no país: a sua Memória sobre a antiga escola de pintura fluminense. (PORTO
ALEGRE, 1841).
O artigo reuniu pequenos trechos sobre a vida de nove pintores, com menções ao
aprendizado inicial, às obras sobreviventes e, em alguns casos, à aparência física do artista.
Não havia a intenção de analisar forma ou conteúdo, mas o objetivo de informar, como um
inventário, a existência do autor e a localização de cada objeto. O pioneirismo da pesquisa
1 A criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro aconteceu em 1838, dentro da premissa de construção
de um passado para o Brasil, preferencialmente distanciado das referências a Portugal. 2 Manoel de Araujo Porto Alegre foi poeta, historiador e pintor acadêmico, discípulo de Debret. Assumiu a
direção da Academia Imperial das Belas-Artes no período entre 1854 e 1857.
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encontra-se, justamente, no entendimento de Porto Alegre da necessidade de procurar a
documentação pertencente às ordens e irmandades religiosas e mesclar os dados com a
tradição oral. O passado, então, consistia em um emaranhado de informações que o
historiador deveria organizar em uma narrativa coerente.
Muitos autores seguiram o caminho aberto por Manoel de Araujo Porto Alegre,
repetindo a predominância do teor biográfico introduzido pelo mesmo. Moreira de Azevedo,
na volumosa obra O Rio de Janeiro (AZEVEDO, 1969), dedicou algumas páginas aos
principais pintores, acrescentando, em vários casos, detalhes não observados pelo primeiro.
Ainda no século XIX, Antonio da Cunha Barbosa, no artigo Aspecto da arte brasileira
colonial (BARBOSA, 1898), repetiu a fórmula descritiva da vida dos artistas, consagrando o
modelo de historiografia que avançaria ao longo do século seguinte. Das primeiras décadas
dos novecentos, destacamos o trabalho de Argeu Guimarães, intitulado História das artes
plásticas no Brasil (GUIMARÃES, 1920), e o de Ernesto da Cunha de Araújo Viana,
chamado Das artes plásticas no Brasil em geral e na cidade do Rio de Janeiro em particular
(VIANA, 1916), ambos herdeiros dos escritos de Porto Alegre.
A valorização da biografia enquadrava-se no projeto de construção da brasilidade
orquestrado ao longo da segunda metade dos oitocentos, com o claro objetivo de fincar o
jovem e independente país em uma base memorial sustentável. Esta base seria o passado,
evocado não por suas raízes lusitanas, mas realçados por ações edificantes dos homens da
terra. As palavras de Porto Alegre são reveladoras neste sentido, quando, por exemplo, nos
diz que:
A Colônia, o Reino e o Império formam três divisões salientes de nossas fases
progressivas, é do seio da primeira, Senhores, que venho arrancar do
esquecimento alguns nomes ilustres nas artes, nomes de artistas, que honram a
terra em que nasceram, e que fundaram a primitiva Escola Fluminense, que de
certo merece uma menção honrosa em nossos anais, não somente por serem os
primeiros nesta terra, como também pela valentia de suas obras. (PORTO
ALEGRE, 1841, p. 452)
18
O tratamento quase heroico dispensado a estes profissionais, que honram a terra que
nasceram, floresce em narrativa nitidamente romântica. Porto Alegre chegou a desconsiderar
um documento com o intuito de favorecer o pintor fluminense José de Oliveira Rosa pelo fato
de ter sido o português Caetano da Costa Coelho o artista citado no contrato. Isto porque
desejava, a partir de informações que julgava suficientes, deslocar a autoria para um artista
nascido no Brasil. Trata-se da dúvida sobre a autoria do único exemplar de forro em
perspectiva sobrevivente no Rio de Janeiro, localizado na Igreja da Venerável Ordem Terceira
de São Francisco da Penitência. No texto, Porto Alegre descreve a sua curiosa conclusão,
conforme a seguinte passagem:
Uma escritura de contrato entre a Confraria e Caetano da Costa Coelho, em
que a Ordem se obriga a pagar-lhe 6:100$000 pela pintura do teto e dourado
da igreja, podia excitar grandes dúvidas sobre o ser ou não de José de Oliveira
aquela obra: a tradição constante das testemunhas oculares e dos discípulos
que sobreviveram a este mestre desmentem o documento. (PORTO ALEGRE,
op.cit., p. 454)
Não duvidamos da participação de José de Oliveira Rosa na feitura do forro, pois o
próprio documento cita a permissão ao contratado de levar para o canteiro de obra todos os
oficiais necessários3. Um empreendimento de tamanho porte, em ambiente ainda precário para
a produção artística, exigiria quantidade razoável de profissionais sob a orientação de um
mestre. Assim, as testemunhas oculares de Porto Alegre poderiam ter realmente visto o pintor
fluminense em ação, o que não significa que ele estivesse na posição principal durante a
condução da obra.
Visivelmente hostil ao passado português, mas sem o tom enaltecedor em relação aos
artistas fluminenses, A arte brasileira, de Gozaga-Duque, aparece como um notável ensaio
crítico, diferente dos autores supracitados (GONZAGA-DUQUE, 1995). Escrito em 1888, o
texto não apenas situa o profissional no seu espaço, mas também desenvolve análise sobre a
3 Arquivo da Venerável Ordem Terceira da Penitência. Livro 2
o de Escrituras, 1725 a 1746. Ano 1732.
19
técnica, com raros elogios a algum pintor ou painel. Logo no início, ele deixa alguns indícios
do que o leitor encontrará na parte dedicada à época colonial, como observamos a seguir:
O gosto do povo não fora alentado e cultivado pela magnificência dos
trabalhos arquitetônicos, pelo desenvolvimento da arte torêutica, pelo
aperfeiçoamento da ourivesaria e da arte de lavrar, proibidas na colônia por
carta régia de 30 de agosto de 1766. A igreja dos jesuítas é uma flagrante
prova do mau gosto e da falta de inteligência que presidiram a formação das
suas obras. Os mosteiros e os conventos foram edificados durante o domínio
do estilo barroco, essa brutalidade inventada pelos fundadores da Inquisição.
Nem palácios, nem templos suntuosos possuía a colônia. Tudo era acanhado
diante dessa natureza. Onde inspirar-se? (...). (GONZAGA-DUQUE, 1995,
p.74)
Mais adiante, complementa:
Diante, pois, desses barracões acachapados, desses mosteiros frios, acanhados,
inúteis; diante dessas casas mal construídas, no meio dessa existência sem
horizonte, dessa vida sem aspirações, como formar-se uma arte superior?
Impossível. A manifestação artística deveria forçosamente participar dessas
influências, partindo do convento e amoldando-se ao convento. (GONZAGA-
DUQUE, op. cit., p. 74)
Os pontos negativos são exageros esperados de quem participava do círculo
acadêmico de fim de século. Como poderia Gonzaga-Duque, acostumado a analisar as obras
resultantes de anos de intensa formação expostas nos Salões, enxergar qualidade em trabalhos
barrocos executados por artistas considerados por ele como autodidatas? O mérito deste
ensaio, no entanto, reside na observância das características das obras, somando à biografia a
atenção dispensada ao objeto.
O interesse pela arte colonial ganhou novo impulso na década de 1940, sob a
influência do recém-criado Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Hannah
Levy e Nair Batista foram as pesquisadoras diretamente ligadas à pintura, trazendo, pela
primeira vez no campo das discussões, a concepção formalista de análise. Os artigos Modelos
europeus na pintura colonial (LEVY, 1944a) e Retratos coloniais (LEVY, 1944b), ambos de
20
Hannah Levy, buscaram traçar as tipologias através da identificação das fontes que serviram
aos artistas para a cópia. A autora chegou a publicar o pequeno ensaio Três teorias sobre o
barroco (LEVY, 1944c) como um suporte teórico para as suas abordagens. Vale mencionar
que os estudos sobre o Maneirismo e o Rococó estavam começando a despontar nos espaços
acadêmicos europeus, ficando o Brasil com entendimento sobre a arte colonial restrita a um
período sob a expressão da estética barroca.
Do IHGB, dois importantes contributos foram lançados em seus periódicos: a
minuciosa pesquisa documental de Francisco Marques dos Santos, intitulada Os artistas do
Rio de Janeiro colonial (SANTOS, 1942), e a análise de Adolfo Morales de los Rios Filho
sobre os sistemas de aprendizado, chamada O ensino artístico: subsídios para a sua história,
um capítulo: 1816-1889 (MORALES DE LOS RIOS FILHO, 1942). Ambos são da década de
1940, evidenciando o renovado olhar para questões da arte colonial.
Pela primeira vez, houve uma investigação sobre o processo de ensino. Mesmo que a
parte referente às oficinas setecentistas apareça como uma breve menção, percebemos a sua
presença ali como forma de se criar uma sequência evolutiva, mas com o cuidado de deixar
claro que este modelo continuou ativo ao longo do século XIX. Morales de los Rios Filho cita
o caso de Raimundo da Costa e Silva, pintor de origem colonial que teria continuado com o
mesmo sistema de aulas de oficina até a década de 1850 (MORALES DE LOS RIOS FILHO,
op. cit. p. 262).
Após o silêncio de quase quarenta anos, alguns artigos esporádicos resgataram
assuntos referentes ao colonial a partir dos anos oitenta. Sua abordagem, entretanto, seria a de
reedição de obras já escritas no passado. As biografias ressurgiram como informativos sobre
dados gerais da vida do pintor seguidos de relações de obras atribuídas a ele. As poucas
21
análises enfocavam as descrições formalistas, encaixando esta ou aquela peça no domínio da
estética barroca ou rococó.
Creditamos aos colóquios luso-brasileiros4, organizados pelas instituições de ensino
superior, a penetração mais sistemática de abordagens de maior abrangência, somando à linha
formalista as discussões sobre iconografia e sociologia. As parcerias acadêmicas com
estudiosos portugueses, habituados com a interdisciplinaridade em suas pesquisas, têm
contribuído para a percepção dos vários fatores que envolvem o entendimento sobre o objeto
artístico, sobretudo em relação àquele oriundo de um passado distante. Fechado em si mesmo,
como preconiza o modelo de descrição de estilos ou somente de conteúdos, o objeto perde o
seu contexto gerador em discurso isolado e limitante.
Sobre a pintura colonial em particular, nos faltam estudos aprofundados referentes ao
estatuto social do artista e as características dos encomendantes, assim como as relações de
consumo. Acreditamos ser este o ponto nodal para a investigação de como os estilos se
acomodaram em um ambiente tão acanhado, sufocado pelo isolamento imposto pela política
mercantilista. Os temas também funcionam como indicadores de gostos e de mudanças de
rumo e, assim como os estilos, apontariam para perfis diferenciados de clientes. Eles
deveriam movimentar, como supostos protagonistas, boa parte do mecanismo de produção,
em uma época dependente de sua vontade para que houvesse trabalho. Sobre a valorização do
tema, seguimos os passos de Erwin Panofsky, que, ao explicar o sentido do significado
intrínseco ou conteúdo, nos diz que:
Percebemo-lo analisando os pressupostos que revelam a atitude básica de uma
nação, uma época, uma classe, uma crença religiosa ou filosófica – assumidos
inconscientemente por um indivíduo e condensados numa obra.
Desnecessário se torna dizer que essas normas de conduta se exprimem e
portanto se esclarecem pelos métodos de composição e pelo significado
iconográfico. (PANOFSKY, 1982, p. 22)
4 O Colóquio Luso-Brasileiro de História da Arte constitui um exemplo da iniciativa do Comitê Brasileiro de
História da Arte e envolve a parceria entre algumas universidades, como a UFRJ, UERJ e PUC Rio.
22
Panofsky somou à análise da forma, a qual chamou de motivo, o estudo da iconografia,
criando uma metodologia possível apenas quando a obra é pensada em seu contexto gerador.
Neste sentido, a identificação de todos aqueles envolvidos na produção dos bens artísticos –
artista, encomendante, espectador –, e a investigação sobre o tempo e o local social de
destinação da obra são ações imprescindíveis ao estudioso da arte. Para Panofsky não basta
apenas a consulta às fontes literárias e documentais, mas a reunião de todos os elementos
capazes de conferir sentido ao objeto em uma leitura simbólica coerente.
Este trabalho, seguindo uma abordagem baseada na contextualização, se refere ao
estudo das relações entre as oficinas e os seus clientes e as funções dos objetos no período
compreendido entre a transferência da capital para o Rio de Janeiro, em 1763, ao retorno de
D. João VI a Portugal, em 18215. A escolha do período seguiu as seguintes premissas: 1) esta
fase corresponde ao florescimento e desenvolvimento da chamada Escola Fluminense de
Pintura em sua maior expressividade; 2) a cidade como capital permitiu a composição de uma
dinâmica econômica que acreditamos ser elemento fundamental para a atividade artística,
além dela própria, enquanto centro administrativo da Colônia, configurar-se como espaço
simbólico privilegiado; 3) a abertura da Aula Régia de Desenho e Figura, em 1800, seria um
sintoma de mudanças mais aparente; 4) o impacto da Corte instalada no Rio de Janeiro
poderia conferir indícios de uma nova consciência sobre o ofício de pintor; 5) a chegada dos
artistas franceses, em 1816, trouxe outra realidade referente ao estatuto social do artista e,
possivelmente, teria influenciado os artistas locais na percepção de si mesmos.
Os pontos referidos acima esbarram em uma questão-chave: como definir o perfil do
encomendante no complexo sistema colonial de produções de bens simbólicos? Sobre esta
pergunta básica, outras aparecem correlacionadas, pois a predominância de um determinado
5 A despeito da importância das datas em questão, o recorte selecionado não funcionará como um limite rígido,
pois há a necessidade constante de extrapolar as datas para a menção de fatos importantes e, obviamente, para a
construção mais coerente dos fatos.
23
setor social sobre o outro poderia, como aconteceu em várias capitais europeias, colaborar
para a alteração de gosto do momento. Assim foi com a associação entre a burguesia e o
sucesso do Neoclassicismo no final do Setecentos em Roma e em Paris ou, quase um século
antes, da aristocracia parisiense com o florescimento do Rococó. No caso colonial, uma classe
específica teria condições suficientes para deslocar o gosto dominante, em ambiente carente
de discussões estéticas? Quais os interesses específicos destes clientes em uma época sem
colecionadores e sem mercado significativo de arte? Quais as funções da pintura na relação
entre encomenda e mão de obra?
Partimos da hipótese de que a burguesia comercial, classe em lento crescimento desde
meados do século XVIII, seria uma das protagonistas das mudanças ocorridas no período em
questão. Esbarramos, aqui, com as várias colocações de historiadores de que a economia
colonial impediria o florescimento de negócios mais elaborados. No entanto, nos escoramos
nos indícios de que o mercado interno tenha fomentado lucros interessantes para a parte mais
abastada desta classe. O historiador Afonso Carlos Marques dos Santos, na obra A invenção
do Brasil: ensaios de história e cultura, destaca o seguinte:
Porém, se nos dois primeiros séculos da colonização a dimensão rural da
propriedade propicia certa autonomia e ilimitado prestígio aos senhores de
terras, o século XVIII verá ocorrer uma mudança em relação ao prestígio
destes aristocratas – em especial, na cidade que a partir de 1763 torna-se a
capital da Colônia e sede do vice-reino, São Sebastião do Rio de Janeiro. O
marquês do Lavradio (vice-rei de 1769 a 1779) em seu relatório de 19 de
junho de 1779, apresentado ao seu sucessor Luís de Vasconcelos e Sousa, já
indicava que: Escolhiam-se para vereadores os homens que tinham mais
alguma distinção no seu nascimento, e para procuradores alguns homens que
tivessem sido comerciantes e a quem o menos bom sucesso de sua ocupação
os tinha reduzido a curtas possibilidades. (SANTOS, 2007, p. 25)
O autor segue com sua análise na seguinte afirmação:
Esse crescimento da importância do comerciante, que aparece como o colono
dos novos tempos, com quem a administração poderia então contar, verifica-se
no Rio de Janeiro em particular, desde que a cidade se transforma em centro
de confluência comercial e rota obrigatória de acesso às Minas Gerais. A
24
fisionomia da Colônia muda em muitos aspectos. A Metrópole fomenta novas
atividades, ao mesmo tempo em que estabelece maior rigor fiscal e maior
número de proibições. (SANTOS, op. cit., p. 25)
A historiografia moderna vem questionando a tradicional abordagem responsável por
diminuir o valor do desenvolvimento econômico na Colônia e, portanto, a ausência de uma
burguesia com força suficiente para crescer. O motivo para tal conclusão encontra-se na
lógica do regime escravista, essencialmente contrário ao progresso tecnológico e ao
incremento das relações de negócios. Paradoxalmente, seria a própria escravidão que
colaboraria para a abertura de brechas necessárias ao estabelecimento, sobretudo no Rio de
Janeiro, de uma forma mais complexa e heterogênica de movimentação econômica. De um
lado, o modelo de trabalho compulsório seria o meio mais corrente de acumulação de capital;
do outro, a intensa atividade portuária da cidade proporcionaria condições favoráveis à
composição de um mercado local dinâmico e em vias de prosperar.
Objetivamos, portanto, investigar o perfil do cliente de pintura nesta época de
profundas mudanças e até que ponto a participação da burguesia, como parcela relativamente
nova no mundo colonial, colaborou para as transformações artísticas verificadas no período.
O fato de concordarmos com a corrente histórica que defende a existência de uma burguesia
comercial influente desde o início do século XVIII não significa dizer que esta classe seja
consumidora de arte. Necessitamos de informações acerca da natureza e dos costumes desta
gente de negócios e se houve algum interesse por objetos artísticos.
Inicialmente, buscaremos na história da pintura portuguesa as pistas para as análises
preliminares a respeito dos modelos e filiações estilísticas. Afinal, a Colônia era uma extensão
de sua Metrópole, consumidora daquilo que era passado exclusivamente por ela. As gravuras
de tradução desembarcaram no Rio de Janeiro como fontes indispensáveis à produção local.
Estas referências imagéticas revelariam o gosto então em voga nas principais oficinas
25
portuguesas, apresentando as escolas europeias que serviram de base para a formação do
estilo daquele país.
Outra questão concernente ao mundo lusitano interessa-nos diretamente, pois versa
sobre o desenvolvimento da burguesia comercial a partir do ministério do Marquês de
Pombal. Os ventos da Ilustração penetraram em Portugal como variante adaptada ao zelo pela
manutenção do poder absolutista. O comportamento desta classe enriquecida em relação às
artes em geral poderia nos fornecer pistas sobre a nossa própria condição colonial. Neste
ponto, as obras A época pombalina (FALCON, 2002a) e Iluminismo (FALCON, 2009b) do
historiador Francisco José Calazans Falcon são providenciais para a discussão, pois o autor
defende que, paralelamente ao Iluminismo de teor mais radical e revolucionário de origem
francesa, houve uma série de versões concordantes com as realidades particulares de cada
país.
No campo das artes, buscaremos o embasamento teórico em autores visivelmente
filiados à corrente sociológica, pois pontuaremos nossa pesquisa na abordagem de âmbito
civilizacional. Nesta perspectiva, a arte é verificada em toda a sua extensão como objeto ao
mesmo tempo receptor de condições externas a ela e agente direta nos processos de
transformações sociais nos quais está inserida. Aqui, as reflexões de José-Augusto França,
presentes principalmente na obra A arte em Portugal no século XIX (FRANÇA, 1990, vol. 1),
são fundamentais pela sua proposta de tratar a arte em sua forma globalizante. Muito
influenciado pelo pensamento de Pierre Francastel, o qual escreveu o prefácio da sua tese de
doutoramento quando estudou na Universidade de Paris, José-Augusto França inaugurou em
Portugal esta nova possibilidade de discorrer sobre o objeto artístico sob o ponto de vista
plural.
26
Outro representante desta linha sociológica e especialista nos assuntos sobre o Barroco
é o historiador Vítor Serrão. Os títulos O Maneirismo e o estatuto social dos pintores
portugueses (SERRÃO, 1983a) e Estudos de pintura maneirista e barroca (SERRÃO, 1989b)
apresentam minucioso estudo documental sobre as relações de trabalho desde a época
renascentista. Vítor Serrão desenvolve seu pensamento considerando a História da Arte como
disciplina que desvenda a ideologia imagética por traz de cada obra. Assim, seu método
engloba tudo o que possa dialogar com o objeto, a fim de compor um discurso que extrapola a
simples compreensão das sucessões de estilos. Ele nos diz que:
O historiador da arte terá de buscar, assente em dados devidamente tratados, o
ensaio das grandes linhas geradoras das situações artísticas, num espaço
geográfico e num tempo histórico precisos, de todas as cambiantes
sociológicas que geraram e produziram tais situações. (SERRÃO, op. cit., p.
281)
Serrão entende ideologia imagética como a produção simbólica de objetos, estes
condizentes com as classes sociais referenciais de tempo e espaço específicos. A proliferação
de um determinado tema ou estilo, neste sentido, está diretamente associada a todos os fatores
circundantes ao fazer artístico, como a economia, a política e a religião, entre outros. Integrar
estes elementos à análise do objeto significa atribuir à arte o seu real valor na composição da
sociedade, como parte determinante e determinada, capaz de influenciar e de ser influenciada
no complexo jogo de relações entre os setores.
No mesmo sentido, as referências a Pierre Bourdieu dialogam com os escritos dos
autores acima mencionados, pois o sociólogo estuda justamente o período em que a arte inicia
o seu processo de autonomia em relação aos outros campos sociais. Ele nos diz que:
Destarte, o processo de autonomização da produção intelectual e artística é
correlato à constituição de uma categoria socialmente distinta de artistas ou de
intelectuais profissionais, cada vez mais inclinados a levar em conta
exclusivamente as regras firmadas pela tradição propriamente intelectual ou
artística herdada de seus predecessores, e que lhes fornece um ponto de
partida ou um ponto de ruptura, e cada vez mais propensos a liberar sua
27
produção e seus produtos de toda e qualquer dependência social, seja das
censuras morais e programas estéticos de uma Igreja empenhada em
proselitismo, seja dos controles acadêmicos e das encomendas de um poder
político propenso a tomar a arte como um instrumento de propaganda.
(BOURDIEU, 2007, p. 101)
Certamente Bourdieu, nesta passagem, acusa o desenvolvimento do artista como um
ser consciente da importância de sua produção em capitais onde as divisões de classes nos
moldes capitalistas se firmaram, sobretudo nos centros de intenso crescimento industrial. No
entanto, ele revela o caminho de transição que aparece aos poucos impregnando o pensamento
dos pintores ainda no século XVIII nos domínios portugueses e que influencia diretamente na
relação entre o artista e o encomendante. Os tratados de artistas lusitanos de fins dos
Setecentos confirmam as transformações dos sistemas de produção simbólica em rumo ao
estabelecimento de um campo específico e com preceitos próprios.
Na mesma linha interdisciplinar dos autores citados, buscamos também em Giulio
Carlo Argan contributos para pensar a arte como agente fundamental de decodificação do
passado. Na sua obra Imagem e persuasão: ensaios sobre o barroco (ARGAN, 2004), Argan
permanece fiel ao seu conjunto de escritos que valoriza a cidade como o lugar privilegiado de
desenvolvimento artístico. Considera o Barroco como estilo das capitais e realiza descrição
aprofundada dos fenômenos urbanos característicos de uma política persuasiva e imagética.
Este comportamento seria comum ao Rio de Janeiro durante o período que pesquisamos.
De formação inicial ligada ao círculo de Panofsky, Argan traz em seu discurso peso
considerável ao fator simbólico, descrevendo a iconografia inteiramente filiada ao seu
momento histórico. Não submete o objeto à descrição puramente decodificadora de atributos e
personagens, mas o inclui, considerando as suas mensagens, no contexto social que o gerou.
O seu método de análise torna-se essencial para pensarmos a realidade colonial, pois a
28
dependência da encomenda é reveladora de desejos por determinados símbolos, quase sempre
denunciando funções específicas.
A obra de Argan oferece interessante diálogo com o trabalho de outro historiador, o
espanhol José Antonio Maravall. Também impregnado de reflexões sociológicas, a obra A
cultura do Barroco (MARAVALL, 1997) confere ao período uma dimensão maior que as
definições estéticas de estilo. Maravall considera o Barroco como um conceito de época,
capaz de abarcar todas as esferas do fazer humano em características perceptíveis de um
momento histórico. Deste modo, a arte se enquadraria em uma junção de atividades culturais
comuns ao século XVII, estendíveis ao século seguinte no caso luso-brasileiro. O valor da
conferência de Maravall consiste na composição da cultura barroca a partir de quatro pilares
estruturantes, ou seja, dela ser ao mesmo tempo dirigida, massiva, urbana e conservadora.
Maravall tece uma narrativa baseada na formulação da cultura barroca como aquela
pontuada pelo uso da persuasão. Este instrumento, essencialmente propagandístico, daria aos
poderes civil e religioso os elementos necessários para atrair a massa e dirigi-la conforme os
desejos conservadores de manutenção das antigas estruturas de estratificação social. Ainda
sob os efeitos das profundas crises políticas, religiosas e econômicas do século XVI, a época
barroca assistiria aos vários experimentos voltados para amenizar a crise e reorganizar a
sociedade em um formato governável. Como Argan, Maravall credita às capitais um papel
preponderante na circulação de ideias e costumes concordantes com o poder vigente.
As discussões sobre o Barroco, na sua dimensão social, serão essenciais para o
desenvolvimento do capítulo correspondente à temática religiosa. Após o levantamento de
informações necessárias ao entendimento da produção portuguesa setecentista, procuramos
dividir a colonial a partir de temas verificáveis com maior frequência. Uma observação
preliminar ao conjunto de obras sobreviventes revela, de imediato, a predominância de peças
29
destinadas ao culto religioso cristão. Desde o início da colonização, a urgência em fincar no
solo do Novo Mundo as orientações contrarreformistas encerradas no Concílio de Trento
fomentou a construção de conventos e mosteiros, recheados de informações visuais
direcionadas à manutenção da fé católica.
Assim, no caminho de identificação dos encomendantes, optamos por investigar os
casos a partir de grupos temáticos, pois notamos que as funções dos painéis poderiam indicar
também desejos específicos de cada parcela consumidora. Seguindo uma ordem por grau de
importância, iniciaremos os estudos com a iconografia cristã, parte majoritária de toda a
produção colonial. Em seguida, pesquisaremos a ascensão do retrato como gênero segundo
das preferências locais. Aqui, analisaremos a questão sobre o despertar da consciência do
indivíduo em um mundo pautado nas relações coletivas, e qual seria a percepção de si mesmo
quando o cliente solicita a sua própria efígie. Finalmente, tendo a Aula Régia de Desenho e
Figura como suporte, veremos a junção das temáticas acima sob os direcionamentos de um
novo sistema de ensino. Além disso, o despontar das cenas alegóricas e mitológicas
apontariam para um novo gosto, o qual aparece absorvido na formulação de todo o aparato
associado à Família Real.
No interior de cada abordagem, verificaremos as transformações do perfil dos clientes,
pois acreditamos que cada fase histórica poderia interferir no complexo jogo simbólico ali
engendrado. Crer em uma suposta uniformidade, que a divisão por temas parece sugerir, seria
negar a dinâmica caracterizadora da própria cultura. Portanto, consideraremos o objeto
artístico como portador de funções múltiplas, mesmo que se trate da representação de um
santo católico. Cada período traz consigo novos comportamentos diante de suas linguagens
simbólicas, fornecendo leituras diferenciadas conforme se apresentam todos os aspectos
componentes da sociedade. Daí a importância em seguir os passos dos autores acima citados,
filiados ao modelo de História da Arte fundamentado na pesquisa sociológica.
30
Acrescentando ao corpo teórico de nossa pesquisa, os trabalhos de Pierre e Galienne
Francastel e de Enrico Castelnuovo, respectivamente intitulados de El retrato
(FRANCASTEL, 1995) e Retrato e sociedade na arte italiana (CASTELNUOVO, 2006),
oferecem questões mais específicas ao estudo do retrato colonial. O pensamento dos autores é
compatível com as obras gerais de referência, contribuindo para a composição de um discurso
harmônico e objetivo. Aqui, a natureza do gênero nos convida à reflexão sobre o estatuto de
quem busca sua própria imagem, a razão desta busca e o valor simbólico do objeto para o
outro que o vê. Importante mencionar também outro fator relevante: a consciência de quem
produz uma peça dependente, por definição, da presença física do modelo a ser representado.
Qual seria a relação entre o pintor e o cliente retratado, em um ambiente sem a tradição do
modelo vivo?
O capítulo final discutirá a função da Aula Régia de Desenho e Figura no seio de uma
cultura de formação condicionada à cópia de gravuras europeias. O valor do ensino do
desenho como base formativa traria mudanças muito maiores do que o mero resultado
qualitativo. Qual seria o interesse da elite colonial em manter uma instituição desta natureza?
Para entendermos a essência das aulas régias no bojo das transformações orquestradas pela
atuação do Marquês de Pombal, identificaremos na obra de Nikolaus Pevsner, Academias de
arte: passado e presente (PEVSNER, 2005), elementos denunciadores das demandas sociais
do período em questão. Pevsner compreende as transformações nas organizações profissionais
diretamente concordantes com as alterações gerais de cada época, mantendo sua análise
balizada nos assuntos sociais.
A visível orientação neoclássica de Manoel Dias de Oliveira, professor nomeado para
encabeçar a Aula Régia de Desenho e Figura, faria desta instituição um polo difusor do estilo
no Rio de Janeiro. Conforme o estudo de Albert Boime, intitulado Historia social del arte
moderno (BOIME, 1994, vol. 1), o retorno aos valores da Antiguidade greco-romana estaria
31
vinculado à crescente interferência da burguesia no mercado de arte setecentista. O autor
procura demonstrar que esta classe conscientemente se afastara da imagem então em voga da
aristocracia régia, afeita ao gosto rococó. Este afastamento voluntário estaria na base da
valorização do classicismo como a composição de uma identidade pautada nos preceitos de
moralidade, dignidade e ética, algo que a burguesia desejava propagar como suas qualidades.
Com base na teoria de Boime, estudaremos o sentido da Aula Régia de Desenho e Figura no
contexto colonial e, logicamente, se a burguesia local se apropriou, como na Europa, da
estética neoclássica ensinada por Manoel Dias de Oliveira.
Com o objetivo de responder a tantas questões, ou pelo menos apontar caminhos para
novas pesquisas, fomentaremos o diálogo entre os autores e as publicações específicas sobre a
história do Brasil em geral, e do Rio de Janeiro em particular. A escassez documental típica
do período colonial, seja pela sua má conservação ou por perdas acidentais ao longo da
vivência nem sempre sadia dos arquivos da cidade, é compensada, em parte, pela seleção de
obras representativas dos artistas que serão tratados nas discussões. Consideramos a obra o
monumento vivo, o núcleo fundamental de onde partem todas as indagações e todos os
desdobramentos teóricos.
No intuito de identificação dos clientes e de sua possível participação na introdução e
consolidação de estilos e temas na pintura colonial, partiremos sempre da contextualização da
obra no espaço e no tempo. As análises formais e iconográficas estarão integradas a uma rede
de informações oriundas de disciplinas diversas, aquelas que mais costumam dialogar com a
História da Arte. Assim, importa menos saber se uma pintura religiosa é barroca ou rococó
por este ou aquele elemento, mas como o estilo, dentro de um todo comunicante, se impõe
como peça constituinte do bem social e cultural.
32
Julgamos relevante apresentar a Escola Fluminense de Pintura sob o ângulo da
sociologia da arte, vertente que procura se apropriar das várias ciências para o estudo do
homem e de suas produções simbólicas. O conhecimento integral, dentro da perspectiva do
pensamento complexo que filósofos como Edgar Morin defendem (MORIN, 2007), questiona
a fragmentação do saber quando encerradas em suas zonas particulares. Fechadas em si
mesmas, as disciplinas oferecem discursos de mão única, expositivos em sua essência e pouco
afeitos ao diálogo. Quando, por outro lado, concebemos o saber como interdisciplinar, o
objeto de pesquisa se abre ao mundo com leituras múltiplas e intercomunicantes.
Sob esta perspectiva interdisciplinar, sentimos uma grande lacuna quando o assunto
refere-se à Escola Fluminense de Pintura. Das primeiras biografias dos pintores aos estudos
formalistas, nos faltam ainda dados essenciais para a organização do período colonial em sua
dimensão maior, na qual incluiria a arte como parte integrante do todo social. Sabemos que o
peso da Academia Imperial das Belas-Artes sobre os olhares dos estudiosos em muito
contribuiu para a superficialidade dos trabalhos até agora publicados sobre a pintura colonial.
O tom preconceituoso de alguns escritos do passado colaborou também para reduzir a
importância deste patrimônio do passado que, como reconheceu Manoel de Araujo Porto
Alegre, constitui um bem memorial indispensável à composição da identidade nacional.
33
1 O PINTOR PORTUGUÊS NO SÉCULO XVIII
Os antigos estudos sobre a pintura portuguesa do século XVIII foram tecidos como
discursos comparadores entre os grandes centros de produção, como Paris e Roma, o que
colaborou para situar as obras do período em patamar de inferioridade. Os argumentos básicos
orbitavam em torno da ausência de uma tradição acadêmica capaz de fomentar um ambiente
propício para o surgimento de grandes nomes nacionais. A dependência inevitável de
estrangeiros contratados denunciava a situação de submissão a modelos importados, criando
uma fragilidade em relação à formação de uma identidade artística6.
As últimas décadas do século XX viram surgir uma abordagem diferenciada, pautada
na consideração sobre as particularidades locais, o que trouxe à tona reflexões sobre os
valores específicos de cada sociedade. Portugal reaparece não mais como um apêndice da
Europa, mas se impõe como centro capaz de absorver os conteúdos das diferentes áreas do
conhecimento, adaptando-os às realidades locais. Estudos como os realizados por José-
Augusto França e Vítor Serrão7 contribuíram para a revalorização do fazer artístico português,
injetando novos ânimos às pesquisas e discussões sobre o assunto. Sobre a metodologia, Vítor
Serrão nos diz que:
6 Destacamos aqui a obra referencial de Reynaldo dos Santos, intitulada “Oito séculos de arte portuguesa,
história e espírito”. 7 A contribuição de Vitor Serrão encontra-se nos escritos sobre o período compreendido entre o Renascimento e
o Barroco, enquanto José-Augusto França ocupa-se, preferencialmente, do século XVIII em diante. Os dois
autores valorizam a inserção do fazer artístico nas discussões sobre a sociedade como um todo, considerando a
arte como agente ativo na dinâmica social.
34
O historiador da arte, no âmbito da estrutura preconizada, tem
necessariamente de alinhar por uma metodologia científica de âmbito
interdisciplinar e polivalente, que passe pela utilização do documento escrito
(pesquisa de arquivo e análise heurística), pela análise iconológica, formal e
estética do documento plástico (leitura artística propriamente dita) e pelo
enquadramento histórico, cultural e sociológico da obra analisada no seu
espaço e tempo específicos (abordagem sociológica). Temos assim, em termos
muito genéricos, três fases distintas por que se deve nortear um racional
método de pesquisa em História da Arte, tarefa fecunda, ainda que árdua e
aturada, a exigir esforços polivalentes. (SERRÃO, 1989, p. 281)
Pensar o trabalho do historiador da arte como um fazer interdisciplinar significa
enxergar os vetores que ultrapassam a os limites das análises formal e iconográfica. Fechada
em si mesma, a disciplina corre o risco do reducionismo gerador de comparações puramente
formais. Entender os motivos, as funções dos objetos, a relação entre o cliente e o pintor, a
recepção dos gostos estrangeiros e sua adaptação local, além das questões relacionadas à
economia, política e cultura em geral, abre possibilidades enriquecedoras e esclarecedoras
sobre variadas lacunas. Apontar as diferenças entre escolas no sentido de elencar aspectos de
inferioridade ou superioridade importa menos do que investigar as razões de determinadas
escolhas e soluções para a execução de uma obra.
José-Augusto França não poupa críticas duras em relação à situação de Portugal no
século XVIII, mas sua análise permanece integrada ao todo social. Considera a realidade
portuguesa pouco afeita à arte da pintura, algo que mudaria lentamente a partir da década final
dos Setecentos (FRANÇA, 1999, vol. 1, P. 200). Não encontramos em seu discurso a
referência de modelos estrangeiros para justificar o que chama de mecenas de gosto
insuficiente, construções medíocres, colecções sem propósito, artes menores desfazendo-se na
inércia da Nação vencida pelo tempo e por si própria (...) (FRANÇA, op. cit., p. 198).
Articula seu pensamento no interior da estrutura social na qual aparece acumulada uma série
de vícios desde a época da Restauração, ainda sob os traumas da União Ibérica. Quando
35
menciona a arte internacional, o faz para localizar as filiações de gosto e forma, estas
devidamente contextualizadas.
À luz dos movimentos interdisciplinares, a História da Arte portuguesa apresentada
pelos autores citados favorece a melhor compreensão do fenômeno colonial, sobretudo do
período imediatamente anterior ao desembarque da Família Real no Rio de Janeiro. Se houve
preconceito no passado referente aos pintores metropolitanos, os nativos da Colônia
receberam uma quota ligeiramente maior de escritos com teor depreciativo. O fato não
surpreende, pois a situação no Brasil abarca elementos peculiares agravados pelo isolamento
imposto pela política mercantilista. Mesmo assim, transformações relevantes ocorreram como
a abertura da Aula Régia de Desenho e Figura, em 1800.
Consideramos essencial buscarmos no espaço europeu as pistas para a nossa
indagação primeira, ou seja, a elucidação sobre as forças que determinaram as transformações
na pintura colonial fluminense na virada do século XVIII para o XIX. Não significa apenas
relacionar mudanças estilísticas, em muitos casos claramente visíveis. Em se tratando de
Neoclassicismo e em tudo o que implica a retomada dos valores da Antiguidade e do
Renascimento, própria do movimento, como explicá-la no ambiente pouco propício ao
desenvolvimento das reais funções atribuídas a esta nova direção? Ética e moral entrariam na
consciência de artistas como Manoel Dias de Oliveira e José Leandro de Carvalho? Quais
intenções reais e quais personagens estiveram por trás das mudanças de gosto e de forma de
ensinar o ofício da pintura?
O primeiro ponto a ser discutido no caso português vem da sua filiação, na era
pombalina, aos ideais da Ilustração em voga nos principais centros europeus. Muito se tem
falado sobre o atraso cultural do país quando comparado ao fervilhante cenário das potências
econômicas da época, como Inglaterra e França. Portugal estaria mergulhado em uma
36
desolada situação de estagnação, governado por monarquias absolutistas e supersticiosas,
estacionadas nos modelos seiscentistas. Mais uma vez, a antiga historiografia modelou-se na
comparação entre sociedades distintas, com valores particulares e que não são totalmente
cambiáveis.
O problema inicial parece estar na percepção ainda presente do Iluminismo como uma
corrente filosófica uniforme e homogênea, a qual cobriria toda a Europa com seu manto
unificador. Sob esta perspectiva, as reformas pombalinas seriam apenas um pálido reflexo do
que estaria em marcha em outros locais com visões e ações mais libertárias. Se pensarmos o
Iluminismo, por outro lado, como um movimento heterogêneo e dependente das
peculiaridades de cada região que o absorve, Portugal passa a ser visto como participante
ativo desta corrente. Jonathan I. Israel, no seu livro intitulado Iluminismo radical, estuda as
raízes ainda seiscentistas do movimento e destaca subdivisões com diretrizes muitas vezes
opostas entre si. Ele ressalta que:
Das duas alas rivais do Iluminismo europeu, a corrente principal moderada,
apoiada por numerosos governos e facções influentes das principais Igrejas,
pareceu ser, ao menos na superfície, a tendência muito mais poderosa. (...)
Esse era o Iluminismo que aspirava conquistar a ignorância e a superstição,
estabelecer a tolerância e revolucionar idéias, educação e atitudes por meio da
Filosofia, mas de forma a preservar e salvaguardar o que se julgava serem os
elementos essenciais das velhas estruturas, efetuando uma síntese viável do
velho e do novo, da razão e da fé. (ISRAEL, 2009, p. 39)
O Iluminismo chamado de radical seria o corrente na França e tornar-se-ia o
fundamento teórico da Revolução de 1789. Os questionamentos sobre a origem quase mística
da realeza e o poder eclesiástico, indubitável por sua natureza divina, pontuavam as reuniões
mais ferrenhas desde a época de Luís XIV. Daí a preocupação do Marquês de Pombal sobre
os males franceses, fruto de intensa fiscalização por parte da alfândega a respeito dos escritos
daquele país, sobretudo os de Voltaire, Jean-Jacques Rousseau e Denis Diderot. Daí também a
37
crença de que o Iluminismo, como ideologia homogênea, não se enquadraria na realidade de
Portugal do século XVIII.
A interpretação, sob a referência iluminista francesa, do racionalismo como
necessariamente anticlerical ajudou a polarizar ainda mais a ala considerada moderna da
Europa de um lado e a Península Ibérica do outro, esta última calcada no catolicismo
extremado da Companhia de Jesus. A dicotomia radical entre razão e religião não funcionava
em todas as regiões e a Itália nos serve como exemplo. Se pensarmos na pluralidade de
situações, a própria secularização pode ser vista como heterogênea, como bem diz Francisco
José Calazans Falcon na seguinte passagem:
O anticlericalismo, típico das Luzes francesas, não é a regra no restante da
Europa. O reconhecimento da diferença como raiz da autonomia do homem e
do mundo faz parte também de um processo interior à própria Igreja. Com
freqüência, a iluminação racional, longe de ser encarada como oposta à
iluminação religiosa, foi entendida como uma espécie de expansão ou
ampliação desta última. O caminho do racionalismo moderno, historicamente,
não é o da rejeição ao cristianismo, mas, muito pelo contrário, o de seu
alargamento. (FALCON, 2009, p. 34)
O mesmo autor, na obra intitulada A época pombalina, ressalta o fato de que o
discurso ilustrado penetrou em Portugal como uma releitura, sobretudo na vigência do
ministério de Pombal (FALCON, 2002, p. 197). Importante, ainda, no mesmo estudo, a
menção a antecedentes que remontam ao final do século XVII, quando críticas ao regime
monárquico já apareciam nos escritos de alguns eruditos. Mesmo a atitude antijesuítica do
marquês possui uma referência pertencente à fase joanina, como o embate entre os oratorianos
(FALCON, op. cit., p. 205) e jesuítas sobre o modelo pedagógico empregado pelos últimos.
Flávio Rey de Carvalho, na obra Um iluminismo português? (CARVALHO, 2008, p.
31), considera, na tentativa de responder a questão que dá nome ao livro, o Iluminismo como
uma rede de informações espalhadas em diferentes contextos culturais. A sua manifestação
38
seria um processo reflexivo e complexo, característico de um pensamento desenvolvido na
pluralidade. A ausência de regras prontas, por ser fruto de núcleos de discussão distintos, traz
como tópicos comuns a secularização do Estado, a racionalização e, no caso da arte, a
revalorização dos modelos classicistas.
Relevante mencionar o fortalecimento do setor comercial como uma das diretrizes
norteadoras dos planos de Pombal e este será o porta-voz de uma burguesia em plena
ascensão. Esta classe, em centros como Londres, Roma e Paris, é uma das grandes
patrocinadoras e consumidoras da arte que redescobre a estética greco-romana. Interessa-nos
investigar a atuação dos ricos comerciantes no processo de circulação da arte portuguesa e,
em que medida esta atuação penetra no ambiente colonial.
Poderíamos, então, dizer que o Iluminismo português, posto em prática nas ações
pombalinas, se apropriou de muitos aspectos interessantes ao momento e descartou aquilo que
se julgou nocivo aos valores que buscavam dar continuidade. Muitas vezes paradoxal, a época
de D. José I pode ser entendida como um período de transição, o qual se relaciona muito mais
com os futuros acontecimentos do país do que com o passado imediatamente anterior. A
época conhecida como Viradeira, do reinado de D. Maria I, apresenta mais permanências,
sobretudo no plano das reformas educacionais e econômicas, do que propriamente rupturas.
O racionalismo aparece bem acentuado nas transformações profundas realizadas na
segunda metade do século XVIII, sobretudo após o terremoto que devastou parte de Lisboa,
em 1755. A expulsão dos jesuítas, a reforma na Educação e os incrementos na área econômica
são aspectos afiliados ao pensamento iluminista, ao mesmo tempo em que a manutenção dos
privilégios da monarquia absolutista e a censura a livros considerados nefastos denunciam a
permanência de componentes tradicionais. Esta é a essência do despotismo esclarecido do
39
qual Pombal é o agente maior, ajudando a consolidar no país um modelo de Ilustração
bastante particular.
A reconstrução da área destruída de Lisboa revelou o contraste entre o gosto
arquitetônico do barroco joanino e a sobriedade e simplicidade das novas construções. O
palácio de Mafra, símbolo da opulência da primeira metade do século XVIII, cedeu lugar ao
funcionalismo sem ornamentações das décadas finais dos Setecentos. Apesar da opção pela
sobriedade estar diretamente associada a problemas econômicos e não por filiação a
determinados gostos, a grandiosidade do programa arquitetônico da época inaugurou uma fase
de transformação estética que ficaria, inicialmente, restrito à arquitetura. O que José-Augusto
França chama de estilo pombalino, este relacionado à racionalidade vista como necessária ao
processo imediato de recomposição da capital, acabaria desencadeando o desenvolvimento de
um academismo classicista o qual o Palácio Real da Ajuda foi exemplo significativo
(FRANÇA, 1990, vol. 1, p. 96)8. A arquitetura se coloca como a expressão primeira do
governo josefino, pontuando visualmente a sua diferenciação em relação ao reinado anterior.
O retrato do Marquês de Pombal, feito sob encomenda dos comerciantes Gerard
Devisme e Purry (Figura 1), destaca o programa reformista do ministro em uma sobreposição
de realizações. A paisagem de Belém ao fundo mostra as embarcações dos jesuítas deixando o
reino, enquanto outras, ancoradas no porto, reforçam a imagem da navegação como elemento
essencial à economia. O pintor francês Louis Michel van Loo, renomado retratista de corte,
enfatiza a ligação de Pombal com a ala comerciante ao colocar a maquete da estátua equestre
destinada à Praça do Comércio em uma mesa ao lado do marquês. Juntamente à peça, aparece
uma planta que traz visível o nome da mesma praça, informando sobre a atualidade daquele
projeto.
8 Importante dizer que a retomada das obras do palácio, em 1802, seguiu estritamente o modelo neoclássico já
anunciado em construções anteriores.
40
A disposição das plantas de Lisboa, espalhadas no chão e no tamborete à direita, nos
remete ao empreendimento enérgico de reconstrução da cidade, no qual Pombal foi
protagonista. A posição destas plantas contrasta com o projeto do monumento, este
cuidadosamente arrumado sobre a mesa, o que parece simbolizar o passado e o futuro. Junto
ao ministro, no lado esquerdo da composição, estão as ações a serem realizadas e é o ponto
principal de observação. Sabemos que o escultor Machado de Castro finalizou a escultura em
1775, quase dez anos após a pintura de van Loo.
Figura 1 – Louis Michel van Loo. Retrato do 1
o Marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Melo.
1766. Óleo sobre tela. 2330 x 3040. Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa.
Pombal aparece sentado, representado de corpo inteiro e a três quartos. Olha-nos com
a firmeza de um homem de ações concretas, o que a iconografia não poupa em afirmar. O
braço esquerdo aponta para os jesuítas que deixam o porto de Belém e rumam para o
Atlântico, enquanto o direito repousa sobre a planta da Praça do Comércio. A pose e a
41
organização dos atributos lembram ao espectador o principal motivo que levou Pombal a
extirpar os jesuítas do reino: a posição dos últimos contra os interesses do marquês sobre
assuntos relacionados ao comércio.
Nuvens escuras parecem acompanhar os padres da Companhia de Jesus, contraste
abrupto com a clareza do primeiro plano. Se o pintor quis realmente criar a oposição entre as
trevas do tradicionalismo jesuítico e a iluminação pombalina, ele deixa, entretanto, o Mosteiro
dos Jerônimos pontuando a paisagem, confirmando a manutenção dos valores católicos em
vigor. Aqui o novo e o antigo se misturam, criando o sabor contraditório de um período
mergulhado na complexidade.
O retrato, de grandes dimensões, foi encomendado a um pintor conhecido pela
composição dramática das cenas. A tradição barroca dos retratos de pompa está bem
representada na obra de van Loo, com elementos que denunciam a aderência a componentes
rococós, como podemos observar no mobiliário do plano principal. Se a arquitetura
experimentou primeiro a sobriedade e a economia classicistas, os pintores esperariam a
geração de Vieira Portuense e Domingos Antônio de Sequeira para a absorção do
Neoclassicismo de matriz italiana.
A situação peculiar do reinado de D. José I, que desenvolve a sua própria versão
iluminista, encontra nas artes visuais um desenvolvimento lento, muitas vezes continuador do
que foi realizado na época joanina. É sintomática a presença de artistas consagrados na
primeira metade dos Setecentos como os principais representantes da pintura pombalina,
como Vieira Lusitano e Pedro Alexandrino de Carvalho. Ambos colaboraram para a extensão
do Barroco, este fortemente influenciado pela escola romana, até a década de 1780, somente
quando novas possibilidades compositivas começam a ser sistematicamente exploradas.
42
1.1 O PERÍODO JOANINO: A ASCENSÃO SOCIAL DO PINTOR
A transição entre os governos de D. Pedro II e D. João V foi marcada, inicialmente,
pela continuidade dos valores do Barroco tenebrista praticados por várias gerações de pintores
desde o primeiro quartel do século XVII. A função da pintura era, basicamente, religiosa,
encomendada para a ornamentação de interiores dos templos ou compondo conjuntos
retabulares para as mesmas. Muitos profissionais acumulavam também o ofício de decoração
de azulejos, arte de desenvolvimento notável nos seiscentos e que também integrou o vasto
programa iconográfico da Igreja tridentina portuguesa. A repetição constante de fórmulas
consagradas e a lenta absorção de novos elementos formais contribuíram para que a segunda
metade do século XVII fosse considerada uma época de estagnação, conforme análise de
Vítor Serrão (SERRÃO, 2003, p. 226).
Vale salientar que a centúria seiscentista em muito afastou da memória popular a
gloriosa participação portuguesa nos eventos das grandes navegações. A União Ibérica e a
difícil fase da Restauração deixaram feridas profundas na sociedade, afastando o país, naquele
momento, dos movimentos cientificistas que viram germinar as sementes dos futuros debates
iluministas. Foi, sobretudo, a prosperidade econômica verificada na década final do século
XVII o fator principal das grandes transformações que o reinado de D. João V se beneficiou.
A descoberta do ouro brasileiro, a indústria do vinho, o comércio do açúcar, do tabaco e do
cacau, entre outros produtos, colaboraram para a reintrodução de Portugal no cenário cultural
europeu.
A veia persuasiva do Barroco internacional, a exemplo da corte de Luís XIV,
emprestou sua pompa e fausto ao jovem e próspero rei. A renovação estética pautada nos fins
de construção espetaculosa da imagem política trouxe, para as terras portuguesas, a
iconografia do aparato até então acanhada no país. Consciente do valor simbólico das artes
43
visuais para a divulgação do seu poder, D. João V se preocupou desde cedo em contratar
artistas estrangeiros, encomendar obras e promover a formação de pintores nacionais. A
abertura da Academia Portuguesa de Roma, em 1720, seria a expressão maior da mudança,
pois os alunos bolsistas participariam como interlocutores do que então se praticava na Cidade
Eterna. Vítor Serrão nos diz que:
Conhecem-se diversos pintores que estagiaram em Roma como bolseiros
régios, como sejam Vieira Lusitano (o mais destacado), Inácio de Oliveira
Bernardes, o santareno Inácio Xavier e João Glama Stroberle, que assim
tiveram ocasião de se sensibilizar com a grande maneira de mestres como
Carlo Maratta, Trevisani ou Agostino Masucci. Por outro lado, todo este
ambiente de renovado desenvolvimento – que lembra, de certa maneira, o do
final do século XVI, pela dinamização imposta à propaganda pela pintura –
surge muito florescido pelo impacte das muitas pinturas romanas e genovesas
que o monarca manda adquirir em Itália para décor das iniciativas realengas,
ou de patrocínio da corte (...). (SERRÃO, 2003, p. 226)
Libertos desde 1689 da Casa dos Vinte e Quatro9, os pintores portugueses buscaram
alcançar ascensão social desde então, por não estarem mais atrelados a bandeiras de ofícios.
Este fato inaugurou um arrastado movimento de fortalecimento do papel artista na sociedade,
cujos primeiros frutos brotariam apenas nas décadas finais dos setecentos. No caso da pintura
colonial, os ecos se fariam sentir nos anos iniciais do século XIX e se consolidariam sob a
presença da corte de D. João VI no país.
A filiação à gramática barroca italiana permaneceu como no século anterior, mas com
uma nítida atualização. A arquitetura, como de costume, expressou primeiro o ar de
renovação do momento, com obras de ousada movimentação borromínica. Não é de se
estranhar que esta onda passageira de igrejas de plantas poligonais ou de retângulos com
cantos cortados, além das linhas circulares verificadas em alguns casos excepcionais,
9 As bandeiras de ofícios foram agremiações oriundas do sistema medieval de organização dos profissionais
mecânicos e artesãos, agentes regulamentadoras de todas as relações entre cliente e mão de obra. A Casa dos
Vinte e Quatro era, em Lisboa, a reunião de vinte e quatro homens representantes das corporações de ofícios,
com um membro eleito como juiz e participante do senado. Este tipo de agremiação foi criado em 1383 por D.
João I. Em algumas regiões de Portugal, a casa era composta por apenas doze membros. Toda esta organização
visava a garantia de direitos, por um lado, e a monopolização dos serviços, por outro.
44
encontraria no Brasil um bom local de experimentações10
. O mesmo se pode dizer dos
empreendimentos urbanísticos observados nos dois lados do Atlântico, como a construção de
aquedutos, chafarizes e aberturas de novas ruas.
Interessante notar que a prosperidade do início do século XVIII expressou-se mais
atuante na arquitetura, sendo o palácio de Mafra o seu símbolo maior. O volume de
encomendas de talha dourada para as igrejas, comparativamente superior em relação aos
contratos de pintura, denuncia o gosto então dominante, o que explica em parte o
barateamento do trabalho pictórico. José Alberto Gomes Machado, no seu estudo intitulado
André Gonçalves, pintura do Barroco português, realiza minuciosa pesquisa documental
referente ao período e apresenta vários exemplos de preços contidos nos contratos
sobreviventes (MACHADO, 1995, p. 95). O pintor André Gonçalves, um dos principais
nomes da fase joanina, não ultrapassou a faixa mediana de pagamento, mesmo quando se
tornou renomado mestre. A talha, entretanto, gerou rendimentos maiores aos seus praticantes,
fato corriqueiro até meados do século.
Por mais que os novos tempos proporcionassem o florescimento de uma geração mais
atenta ao modelo internacional, sobretudo romano, verificamos ainda uma estrutura de
produção em muito semelhante à fase seiscentista do Barroco. José Alberto Gomes Machado
explica que:
Igualmente importante é o peso da tradição iconográfica, expressa em formas
e modelos repetidos até a exaustão e que conformavam os limites do gosto
vigente, pouco dado a inovações. Em bom número de contratos, indica-se
expressamente que a obra deve seguir ou imitar uma outra obra, anterior, que
teria merecido o apreço dos comitentes. A margem de liberdade do artista via-
se, assim, bastante reduzida e dependente de estereótipos, em torno dos quais
se fixara o gosto do reduzido público encomendador. Num mercado muito
restrito, dominado pela encomenda religiosa, o artista dificilmente se poderia
dar ao luxo de incorrer no desagrado das irmandades, dos priores ou dos
superiores conventuais, de onde lhe vinha a subsistência, por vezes difícil.
10
As igrejas fluminenses de Nossa Senhora da Glória e de São Pedro dos Clérigos são exemplos de plantas
movimentadas pertencentes à primeira metade do século XVIII. Estas construções, exceções no conjunto
colonial de tradição retangular, foram projetos de engenheiros portugueses, geralmente associados a edificações
militares.
45
Com efeito, não é raro encontrar documentos que atestam dificuldades
econômicas de artistas. (MACHADO, 1995, p. 91)
Não poderíamos deixar de tecer antecipadamente algumas considerações sobre a
pintura colonial, à luz da citação acima. Sabemos que a primeira metade do século XVIII
assistiu a mudanças significativas na forma de produção, como a gradual passagem para as
oficinas leigas dos ofícios antes destinados, em sua grande maioria, aos frades artesãos. José
de Oliveira Rosa é mencionado como o mais antigo pintor conhecido desta inaugural Escola
Fluminense. A submissão aos modelos impostos pelos encomendantes, através das gravuras
importadas das lojas portuguesas, sofria com a pouca variedade de soluções iconográficas e
formais. Não nos causam espanto os inúmeros casos de confusão sobre autorias, devido a
certa homogeneidade de elementos compositivos. O próprio José de Oliveira Rosa foi
colocado equivocadamente como discípulo do beneditino Frei Ricardo do Pilar, certamente
por causa da semelhança entre as obras de narrativas de santos dos dois artistas.
A paradoxal situação social do pintor da corte de D. João V se expressa justamente na
contradição entre a consciência do valor de seu próprio trabalho e a necessidade de se sujeitar
à vontade dos clientes. Consciência que ganharia novos ingredientes no contato dos bolsistas
com os mestres italianos, após a abertura da Academia Portuguesa em Roma. Há também o
vultuoso investimento na decoração do palácio de Mafra que, segundo Vítor Serrão, fez dele o
maior e mais rico repositório de pintura (e de escultura) da escola romana que existe fora da
Itália (SERRÃO, 2003, p. 227). Este contato fomentou a circulação de novidades, quebrando
um pouco o apego aos tradicionais modelos por parte dos próprios clientes.
André Gonçalves, um dos mais atuantes artistas da geração joanina, traz na sua
carreira a marca dos tempos de mudança. Discípulo de Antônio de Oliveira Bernardes,
famoso pintor de D. Pedro II, recebeu inicialmente a carga barroca seiscentista, presente em
algumas de suas primeiras obras. Apesar de nunca ter saído de Portugal, André Gonçalves
46
travou contato com a atualidade italiana ao complementar seus estudos com o mestre genovês
Giulio Cesare Teminé, este radicado em Lisboa desde 1712 (SERRÃO, op. cit., p. 232). Vale
lembrar que ele trabalhou em Mafra, local de grande concentração de obras italianas,
conforme mencionamos anteriormente.
Sua atividade voltava-se também à tentativa de promover a pintura a patamares mais
elevados. Entre as suas proposições figurava a vontade de estabelecer no reino uma academia,
algo que já aparecia manifesto em alguns pintores desde o século XVII, sobretudo na época
da Restauração. Sobre o artista, José Alberto Gomes Machado comenta que:
Mais que uma simples insatisfação quanto ao estatuto social da pintura e dos
pintores, ele revela um desejo de reengrandecimento, que é algo mais que uma
aspiração conservadora ou passadista. Através da sua própria prática pictórica,
denota-se em André Gonçalves uma preocupação de modernidade, que o
levou a escolher, muitas vezes, fontes iconográficas contemporâneas e a
moldar as peculiaridades do seu estilo, segundo o que pôde e escolheu
apreender da lição dos italianos de Setecentos, cujas obras admirou ao vivo,
ou por meio de gravuras. (MACHADO, 1995, 254)
A insatisfação de André Gonçalves denota a transformação em movimento do
processo de produção artística no século XVIII português. Sua consciência sobre o valor do
trabalho de pintor demonstra claramente o que Pierre Bourdieu considera como o gradual
caminho para a autonomia do campo artístico em relação aos demais campos. O sociólogo
afirma que:
À medida que o campo intelectual e artístico amplia a sua autonomia,
elevando-se, ao mesmo tempo, o estatuto social dos produtores de bens
simbólicos, os intelectuais e os artistas tendem progressivamente a ingressar
por sua própria conta, e não mais apenas por procuração ou por delegação, no
jogo dos conflitos entre as frações da classe dominante. (BOURDIEU, 2007,
p. 191)
A geração de André Gonçalves ainda não pode se desvencilhar das vontades impostas
pelos encomendantes, sobretudo quando o contrato referia-se ao espaço religioso. A sua
47
importância reside na reflexão cada vez mais fundamentada sobre os problemas de sua
profissão, como a ausência de uma academia e também de espaços destinados às discussões
sobre o fazer artístico. Sua atuação enquanto pintor engajado nas questões sociais abriu
caminho para o fortalecimento de um ambiente crítico, o que colaborou para o resgate de
teóricos portugueses, como o seiscentista Francisco de Holanda, este bastante utilizado por
Cirilo Wolkmar Machado, no final dos Setecentos.
A iconografia religiosa sofrera poucas alterações, seguindo ainda as premissas contrar-
reformistas conservadas fortes em Portugal. As gravuras funcionaram como as fontes mais
utilizadas de divulgação temática e formal, geralmente chegando ao artista como escolha
prévia de seu cliente. As representações alegóricas e triunfais aparecem com mais frequência,
denotando a preferência setecentista por cenas de maior impacto. O fenômeno dos tetos
forrados por cenas em perspectiva, em vez dos painéis em caixotões, confirma o desejo de
monumentalidade o qual os temas da aparição de Jesus ou da Virgem são exemplos. Esta seria
a maior diferença em relação ao período anterior, considerando que as narrativas de vidas de
santos permaneceram numerosas, tal como ocorrera desde a fase do Maneirismo português.
Os contrastes entre claros e escuros, comuns no tenebrismo da geração seiscentista,
dão lugar ao colorido intenso do qual André Gonçalves é representante e atualizador.
Percebemos que as irmandades religiosas, atentas à respeitabilidade da iconografia santa,
permitiram maior liberdade em relação à forma, apesar de cláusulas dos contratos restringirem
determinados pontos11
. Na verdade, são elas que se beneficiaram do Barroco faustuoso em
maior porção, pois mantendo o controle sobre o conteúdo, a pintura, juntamente com a talha,
poderia oferecer toda uma ambientação projetada para tocar os sentidos.
11
Vale salientar que esta liberdade condicionada refere-se aos artistas mais destacados do momento, os que
realmente forçaram um alargamento de certos limites.
48
Nos anos que trabalhou na decoração do palácio de Mafra, André Gonçalves realizou a
tela Assunção para a capela do Livramento (Figura 2). O modelo compositivo do painel foi
largamente difundido através de gravuras tiradas da original de Guido Reni, a qual se localiza
na Igreja de Santo Ambrósio de Gênova. Há outro bastante semelhante, de Sebastiano Ricci,
com igual tratamento dos planos terreno e celestial, chamando atenção a igual posição da
Virgem, com os braços voltados para o alto. Na obra do pintor português, São Pedro, no
contraponto abaixo, abre os braços no sentido inverso, reforçando, por oposição, a sensação
de ascensão da Virgem.
O plano inferior mostra o túmulo rodeado por apóstolos em uma mistura de espanto e
euforia. O turbilhão de nuvens do plano celestial ajuda a separar os dois mundos, além de
conferir movimentação à cena. Esta movimentação naturalista conduz o espectador ao interior
da cena. O artista dosa as cores em harmonioso contraste de azuis, vermelhos e rosas, com
iluminação uniforme e suave. Todos os espaços são ocupados por elementos vários,
mostrando a familiarização de André Gonçalves com a gramática barroca. Outro artifício
usado para movimentar a Virgem para o alto está no triângulo formado por ela, São Pedro e
São João.
A iconografia da ascensão da Virgem integrou um amplo conjunto temático de defesa
e propaganda de sua imagem, duramente questionadas na Reforma Protestante. Como um dos
aspectos do catolicismo mais atacado desde o século XVI, o culto à Virgem ganhou na
resposta contrarreformista uma profusão de invocações e soluções iconográficas, espalhadas
nas várias igrejas dedicadas a sua devoção. De André Gonçalves, conhecemos várias versões
do tema espalhadas pelas igrejas de Lisboa. Há também, do mesmo artista, numerosos painéis
que narram o ciclo mariano, incluindo abundantes referências aos quatro dogmas, temas
comuns ao Barroco.
49
Figura 2 – André Gonçalves. Assunção. C. 1730. Óleo sobre tela.3570 x 2520.
Mafra, Lisboa.
Com o intuito de criarmos o diálogo entre a produção portuguesa e a colonial
fluminense do mesmo período, buscamos exemplos para identificarmos elementos de
comparação entre as duas escolas. O que observamos no Rio de Janeiro colonial, referente à
fase joanina, é a repetição das necessidades básicas do fazer artístico que organizaram as
linguagens em uma hierarquia identificável. A arquitetura ocupa o patamar mais elevado,
seguida pela escultura e pelo trabalho de talha. Os retábulos do período são a expressão mais
50
abundante do novo gosto formal, deixando a pintura, conforme acontecia nas escolas
portuguesas, em papel secundário. Mesmo assim, contamos com exemplares significativos,
como atesta o monumental forro em perspectiva da Igreja da Venerável Ordem Terceira de
São Francisco da Penitência.
A História da Arte no Brasil resolveu aparentemente a antiga controvérsia em torno da
autoria do ousado projeto acima citado12
. Os principais nomes que aparecem nos escritos
desde Manoel de Araújo Porto Alegre são o fluminense José de Oliveira Rosa e o português
Caetano da Costa Coelho. A falta de tradição em compor obras ilusionistas de grandes
dimensões, fato corroborado pela ausência deste tipo de pintura no Rio de Janeiro, conta
como ponto a favor para Caetano da Costa Coelho. Acreditamos que José de Oliveira Rosa
tenha participado da equipe contratada, pois muitos traços do pintor são reconhecidos nas
figuras humanas e em outros elementos, como o colorido suave, a anatomia das personagens e
os semblantes serenos, entre outros. Vale ressaltar que o pintor se encontrava na igreja na
mesma época para a execução da pintura do forro da Sacristia. Poderíamos supor que a parte
estrutural em perspectiva seria do mestre português, cabendo aos demais envolvidos a feitura
da narrativa iconográfica.
José de Oliveira Rosa não passou por uma fase de desenvolvimento, como André
Gonçalves, de uma arte de transição do tenebrismo para o cromatismo exuberante do tempo
de D. João V, pois não houve a tradição da primeira na pintura fluminense. Os Seiscentos
foram caracterizados, no Rio de Janeiro, por uma produção conventual, muitas vezes realizada
por frades de formação precária. O caso do Frei Ricardo do Pilar constitui uma rara exceção,
pois seu aprendizado germânico trouxe para o Mosteiro de São Bento requinte não observado
12
Manoel de Araújo Porto Alegre defendeu, ainda no século XIX, a autoria do fluminense José de Oliveira Rosa,
mesmo reconhecendo que o contrato da obra estivesse em nome do português Caetano da Costa Coelho. Apesar
da referência documental, são muitos os elementos familiares aos traços do artista brasileiro. O desconhecimento
total da vida e de parte considerável da obra de Caetano da Costa Coelho, na Colônia e na Metrópole, criou
dificuldades para conferir a autoria.
51
com frequência na época. O conjunto de painéis do frei exibe o modelo de narrativas de vidas
de santos e cenas de aparições, várias em tom melancólico e às vezes sofrido. José de Oliveira
Rosa, apesar de seguir seu modelo para manter a coerência formal na decoração da igreja, não
apenas passa a distribuir a luz de forma mais uniforme, como também se apropria dos valores
cromáticos em harmoniosa mistura de tons. A tela Santa Bárbara, apesar de tardia, mostra o
pleno desenvolvimento do artista no domínio do receituário mais consagrado do Barroco
(Figura 3).
A imagem do mestre Rosa revela a vida da santa mártir em tom apoteótico. Este difere
dos costumeiros recortes temporais das narrativas dispostas em sequência de painéis, pois o
tempo é condensado em uma profusão de referências iconográficas que resumem os aspectos
mais relevantes da história. Santa Bárbara teria vivido na época das perseguições romanas aos
cultos cristãos. Ela segura uma torre de três janelas, alusão ao tempo de reclusão obrigatória
forçada pelo próprio pai. O número de janelas simboliza a Trindade, o que denuncia o
fracasso do pai em evitar a conversão da filha. Ele aparece no canto inferior esquerdo,
fulminado por um raio quando partia para decapitar Santa Bárbara com uma espada. No canto
superior do mesmo lado aparece a Trindade personificada, apontando para o anjo que desce
com a coroa de flores e a palma do martírio.
Os atributos desempenham papel fundamental no reconhecimento das personagens e
das cenas narradas. São eles que, em uma obra complexa como esta, facilitam o
encadeamento dos fatos, estes associados às soluções formais orientadores do olhar. Santa
Bárbara, centralizada, forma uma linha diagonal que se encerra na imagem da Trindade,
criando o eixo principal da composição. O espectador é conduzido ao anjo imediatamente
abaixo da figura de Cristo, anjo responsável pelo raio que atinge o pai vingador. Ao retornar à
santa, observamos outro anjo no lado direito que segura o cálice e a hóstia, símbolos da
52
vitória da Eucaristia que, complementada à coroação e à entrega da palma do martírio, logo
acima, fecham a narrativa em espiral da história.
Figura 3 – José de Oliveira Rosa. Santa Bárbara. 1769. Óleo sobre tela. Igreja de Nossa Senhora de
Monteserrate, Rio de Janeiro.
53
A menção a José de Oliveira Rosa objetiva mostrar a similaridade do que ocorria entre
o que se fazia nos dois lados do Atlântico. Ressaltamos aqui o papel preponderante das
irmandades religiosas florescentes nos Setecentos como os agentes principais de circulação
dos bens artísticos. Como encomendantes quase exclusivas, foram elas as responsáveis pela
entrada dos modelos então em voga na Metrópole, através de encomenda de gravuras e de
pinturas de mestres portugueses e dos italianos residentes em Lisboa.
A situação da clientela lisboeta não diferia tanto do caso colonial, pois foi também a
elite eclesiástica a fomentadora da produção artística, sobretudo pictórica. A corte absolutista
de D. João V fincou a imagem de seu poder sob o manto espiritual da Igreja e o palácio de
Mafra, com a monumental basílica dedicada a Nossa Senhora e a Santo Antônio, constitui
exemplo máximo desta filiação. Não surpreende a supremacia da temática religiosa criada na
primeira metade do século XVIII, frente aos outros gêneros, como o retrato e a natureza-
morta.
As características do Barroco português estão em associação direta com a relação entre
o encomendante e o artista. Desde o século XVII as academias haviam proporcionado uma
nova modalidade de produção, alargando a clientela para indivíduos particulares ou
instituições públicas, como ocorria em centros como Paris e Roma. Esta modalidade não
ocorreu em Portugal nem mesmo na centúria posterior. Mantinha-se a velha estrutura
originária dos tempos medievais de mestres e discípulos, copistas de gravuras e repetidores de
fórmulas consagradas, algo que André Gonçalves buscara modificar. Como a religião
praticamente ditava o fazer artístico, podemos dizer que não houve sequer a hierarquização de
gêneros, comum ao Barroco desenvolvido no interior das academias.
Na ausência de uma academia em solo nacional, a instituição fundada em Roma em
1720 funcionou como beneficiária para poucos selecionados. Aos que nunca saíram de
54
Portugal, como André Gonçalves, a necessidade de se atualizar era um caminho mais árduo e
poucos foram os que deixaram seus nomes registrados na história. O próprio artista citado
mantinha laços de amizade com dois viajantes, os pintores Pedro Alexandrino de Carvalho e
Vieira Lusitano. As trocas de experiências constavam como uma espécie de formação não
oficial, um adicional em ambiente que mantinha o modo medieval de ensinar o ofício.
Francisco Vieira de Matos, o Vieira Lusitano, construiu nome respeitável que
perpassou o reinado de D. João V e todo o período pombalino. Foi um caso raro de artista
com alguma fama internacional, com passagens por Londres, Sevilha e Roma (SERRÃO,
2003, p. 237). Contou com a proteção do terceiro Marquês de Fontes, D. Rodrigo Annes de
Sá, o qual patrocinou sua primeira estada em Roma, em 1712 (PEREIRA, 1999, vol. 3, p.
136). A precocidade da viagem – Vieira Lusitano tinha apenas treze anos na ocasião –
mostrou-se fecunda para o artista, pois pôde aprimorar o desenho que seria, desde cedo, a sua
assinatura plástica mais destacada.
O grande painel intitulado Santo Agostinho pisando na Heresia expõe a fase madura
do pintor, contendo as características principais de seu estilo (Figura 4). O efeito cenográfico,
meticulosamente orquestrado para conferir dinamismo à representação, destaca-se como
principal elemento formal. Aponta para o rigoroso estudo, o qual fez de Vieira Lusitano
conhecido pelos projetos que executava antes das encomendas mais suntuosas. Mesmo
submetido ao gosto do encomendante por determinadas gravuras, ele conseguia impor certas
vontades, muitas vezes para corrigir o que considerava fora de ordem. Como mencionamos
anteriormente, o respeito aos aspectos iconográficos era o mais exigido do pintor, sobretudo
na composição de temas religiosos. São vários os desenhos de projetos sobreviventes do
artista, conforme constatação de Vítor Serrão (SERRÃO, op. cit., p. 240).
55
Figura 4 – Vieira Lusitano. Santo Agostinho pisando na heresia. 1736. Óleo sobre
tela. MNAA, Lisboa.
No painel, o espaço foi construído como uma sucessão escalonada de planos. Ao
fundo, mais iluminado, aparece um fragmento de templo ou palácio, o qual em muito se
assemelha à colunata da Praça de São Pedro, no Vaticano. Santo Agostinho, centralizado,
apoia um grande livro no colo e olha para uma figura, localizada no canto superior esquerdo.
56
Esta figura expõe alguns objetos, símbolos da Eucaristia, da Trindade e da cruz
arquiepiscopal, uma referência ao bispado do santo em Hipona.
Santo Agostinho pisa sem grande esforço em uma cabeça feminina, sustentada por um
livro. Ela, a personificação da heresia, fita o olhar diretamente para o espectador, denunciando
derrota e agonia. Abaixo, um anjinho queima os escritos perniciosos, livrando a Igreja do
pensamento perigoso do Maniqueísmo, corrente filosófica que o próprio santo pertenceu antes
de sua conversão ao Cristianismo. Há outra versão da história que conta que a heresia seria
uma referência ao arianismo, corrente dissidente que foi prontamente combatida por Santo
Agostinho no século IV. Simbolicamente, inserida no contexto da Contrarreforma, a imagem
amplia o seu significado a qualquer corrente contrária à doutrina Católica, sobretudo a
protestante.
Santo Agostinho é considerado um dos Doutores da Igreja, principalmente pelos
escritos que deixou como fonte esclarecedora da verdade cristã. Sua referência foi cara à
época barroca, justamente no atendimento às ações de renovação tridentina, como a
divulgação dos princípios morais e alerta contra os perigos dos possíveis desvios do caminho
do bem. Nesse sentido, a obra de Vieira Lusitano enquadra-se no didatismo corrente, com
elementos de clara compreensão. Cada parte da composição se encaixa em um todo objetivo,
cujo significado revela a vitória daqueles que seguem, sem hesitação, o que a Igreja
determina.
Um dos aspectos mais notáveis do presente painel encontra-se no jogo em zigue-zague
das linhas, partindo-se do canto inferior esquerdo até o superior direito (Figura 5). Este efeito
cria intenso dinamismo à composição, direcionando o olhar em movimento de baixo, onde
observamos a presença do mal, para o alto. A posição vertical de Santo Agostinho e da
enorme coluna estriada do fundo, em contraposição à horizontalidade da base que os
57
sustentam, trazem de volta a atenção para o ponto central da cena, servindo como eixo de
equilíbrio e simetria. O espaço é ampliado pela sugestão de cenas exteriores ao limite da tela,
como o anjo que, olhando para algo que não podemos ver, ordena os cães a atacarem a figura
da heresia.
Vieira Lusitano colaborou para a inclusão do projeto de estudo como parte integrante
do trabalho do pintor, principalmente na confecção de obras de maior vulto. Mesmo na
composição de retrato, gênero que gradualmente floresceu ao longo dos Setecentos, as linhas
de força e o desenho são os elementos que submetem os restantes – texturas, volumes e cores
– à sua primazia. Esta característica trouxe ao Barroco português uma roupagem classicista
que ocorria na vertente tardia italiana, absorvida pelo pintor em suas várias estadas em Roma.
Figura 5 – Linhas de força
No Brasil, faltariam ainda algumas gerações para que o desenho ganhasse importância
formativa na pintura. Os modelos compositivos chegavam prontos em estampas desprovidas
de cor, com os elementos compositivos previamente organizados. Bastava ao artista traduzi-lo
58
da gravura para a pintura. Significa dizer que a consciência sobre o processo resumia-se ao
conhecimento de que as personagens principais deveriam, necessariamente, ocupar o centro
do quadro. Além disso, a habilidade era sentida pela capacidade de preencher de cores os
espaços e os volumes. Não admira a constante afirmação de Gonzaga Duque de que os artistas
coloniais eram fracos desenhistas e, muitas vezes, ótimos coloristas (GONZAGA-DUQUE,
1995, p. 80).
Vieira Lusitano pontua o momento de transição da arte portuguesa que se estendeu até
a década final do século XVIII, quando a geração de Domingos Antônio de Sequeira
emprestaria nova feição à pintura do país. São vários os nomes em atividade na fase joanina,
mas, como em qualquer período de transformações, poucos realizaram uma produção
realmente relevante e que apontasse para os novos rumos.
1.2 O PERÍODO POMBALINO: ANTECEDENTES DAS NOVAS RELAÇÕES DE
TRABALHO
Ao fundar a Academia Portuguesa em Roma, D. João V buscara criar subsídios para a
sistematização de um modelo de ensino que pudesse garantir a abertura de uma futura
academia em solo nacional. Esta ideia, contudo, não chegou a se concretizar. O envio de
bolsistas a Roma como iniciativa governamental continuou com gradual irregularidade até os
anos finais do reinado. A partir de 1760, os poucos artistas contemplados à viagem ao
estrangeiro contaram apenas com a proteção de particulares, pois a administração de Pombal
cortara os laços com a Santa Sé. Portugal ficaria por muito tempo arraigado ao sistema
medieval de ensino, confiando aos artistas mais experientes o aprendizado dos discípulos.
59
Os nomes consagrados na primeira metade do século XVIII foram os ativos na época
pombalina, como o anteriormente citado Vieira Lusitano. A Igreja permanecia no papel de
cliente maior dos pintores, reservando ao período a majoritária proliferação de imagens
religiosas. A situação, sob este aspecto, não havia mudado. Enquanto Itália e Inglaterra
respiravam os novos ares classicistas, Portugal repetia o formato barroco tardio
predominantemente cristão, mantido pelos representantes da arte joanina.
As reformas de Pombal na área da Educação não contemplaram diretamente a abertura
de uma aula específica de desenho ou de qualquer outra linguagem artística. O desenho em
especial aparece em cursos voltados para setores funcionais e industriais, como o destinado à
Fundição de Artilharia do Arsenal e o de estuques da Fábrica das Sedas, entre outros
(FRANÇA, 1990, vol. 1, p. 64). Mesmo nas primeiras iniciativas de aulas independentes de
desenho, já no reinado de D. Maria I, o real interesse pelo seu ensino aparece explícito: a
formação para o comércio. José-Augusto França comenta que:
A primeira manifestação de um ensino artístico organizado de maneira
independente nasceu no Porto, em 79, quando o provedor da Junta da
Companhia das Vinhas do Alto Douro (fundação pombalina) propôs a criação
de uma aula pública de debuxo e desenho, num projeto aprovado pelo
marquês de Angeja, presidente do Real Erário, que a considerou de público
interesse para o adiantamento das fábricas mui industriosas que (no Porto) se
erigem. (FRANÇA, op. cit., p.65)
As diferenças entre o aprendizado adquirido pela bolsa destinada à Academia
Portuguesa em Roma e o projetado para as aulas designadas ao fazer industrial denotam
funções distintas, pelo menos até a abertura da Aula Régia de Desenho e Figura, em 1781.
Desta última, apesar do direcionamento técnico, formaram-se os nomes principais do final do
século XVIII, como Vieira Portuense e Domingos Antônio de Sequeira. Dos cursos
anteriores, criaram-se as condições para que profissionais nacionais fossem capazes de servir
60
à indústria em trabalhos como a confecção de padronagens para tecidos, rótulos para vinhos,
projetos para ilustração de porcelanas, entre outros.
A época de Pombal não deixara uma herança pictórica particular, pois que manteve o
padrão do Barroco romano da fase anterior. Enquanto a arquitetura seguia em uma verdadeira
reforma, empurrada pela catástrofe do terremoto de 1755, a pintura reagia à falta de formação
de um gosto próprio da nova classe burguesa do período. José-Augusto França afirma que:
De resto, as gerações de artistas sucediam-se, e o seu gosto não mudava: os
cânones acadêmicos eram sempre seguidos, só as cenas históricas mereciam
figuração e a natureza e os costumes continuavam ignorados. O único quadro
que a catástrofe de Lisboa inspirou, devido a Glama Stroberle (1708-1762),
pintor que passou uma vintena de anos em Roma, não é mais que uma enorme
composição morosamente estática, desprovida de menor emoção. (FRANÇA,
1987, p. 265)
Um dos nomes mais destacados da era pombalina, continuador até certo ponto da
tradição consagrada por André Gonçalves e Vieira Lusitano, foi o pintor Pedro Alexandrino
de Carvalho. A reconstrução da área devastada de Lisboa ofereceu ao artista um leque
formidável de trabalho, sobretudo nas numerosas igrejas da cidade. A atividade incessante na
esfera religiosa tornou-o conhecido como o pintor dos frades (FRANÇA, 1990, vol. 1, p. 34).
Ele participou também do florescimento de outras temáticas, quando recebeu a incumbência
de ornamentar palácios e compor retratos de nobres e de ricos comerciantes, mas já no último
quartel do século XVIII. Pedro Alexandrino de Carvalho pode ser visto, neste período final,
como um pintor de transição, abrindo caminho para a nova geração que desfrutaria da
abertura mais significativa aos vários gêneros, além da absorção de elementos de novos
estilos.
O painel Salvador do Mundo foi realizado no limite entre a queda do Marquês de
Pombal e o início do reinado de D. Maria I (Figura 6). Selecionamos esta obra para mostrar o
quanto a forma barroca de matriz romana avançou por quase todo o Setecentos. O gosto dos
61
encomendantes – as irmandades religiosas em geral – colaborava para a manutenção da
tradição, pois a ornamentação dos templos costumava ser mais conservadora em relação à
permanência de modelos consagrados e aprovados por décadas de experiência.
Figura 6 – Pedro Alexandrino de Carvalho. Salvador do Mundo. 1778. Óleo sobre tela. Sé de Lisboa.
A fórmula empregada na composição repete o modelo abundante de temática religiosa
que organiza a superfície em uma separação entre o mundo celestial e o terreno. André
62
Gonçalves, um dos mestres do artista, realizou dezenas de telas com esta conformação, como
podemos ver nas várias igrejas lisboetas. No presente caso, o efeito divisório funciona em
concordância com o assunto, pois a imagem de Jesus deve aparecer no plano terreno. É ali
que toda a missão divina faz sentido. A referência da materialidade vem representada pela
arquitetura, disposta no canto esquerdo. A cruz realiza um contraponto espiritual e avança do
chão ao plano celestial.
A imagem de Jesus aparece centralizada, ponto organizador de todas as outras figuras
que preenchem a tela. Com o braço direito erguido, exibe para o espectador, no caso o fiel, o
sinal da bênção. Do outro lado, segura uma enorme cruz. As massas são uniformemente
distribuídas com a colocação de anjos de ambos os lados. No alto, exatamente acima de Jesus,
surge a figura de Deus Pai, representado com uma auréola triangular, um cetro e uma taça.
Também o acompanha um cortejo de anjos, dando à composição um aspecto fortemente
espiritual.
Se observarmos as composições religiosas do período pombalino, veremos que a
preferência por cenas alegóricas ou triunfais ditam o gosto, tal como ocorrera no reinado de
D. João V e em boa parte da Europa setecentista. Mesmo com todos os espaços preenchidos
por uma sorte de elementos, comum à gramática barroca, a especificidade portuguesa dos
Setecentos encontra-se fiel ao modelo romano, no que diz respeito à busca por uma roupagem
classicista. Vários painéis são organizados em espaços que desenham triângulos, com massas
distribuídas de forma equilibrada e com figuras sem tanta dramaticidade. Em Pedro
Alexandrino de Carvalho, percebemos narrativas com movimentação e gestos contidos, tal
como acontecia nas obras mais famosas de Vieira Lusitano.
A crítica à estagnação do fazer artístico português foi sentida desde a época áurea de
André Gonçalves, permanecendo como uma queixa por parte dos pintores e escultores em
63
toda a fase pombalina. O problema maior refere-se ao corpo consumidor, que no país não
havia desenvolvido um gosto atualizado, além de manter-se alheio às discussões estéticas. A
sociedade burguesa de Pombal, a qual iria realmente contribuir para as transformações do
final do século, voltava-se, neste momento, para interesses imediatos de seus negócios. Ao
mundo religioso cabiam as encomendas mais significativas, amarrando os artistas menos
habilidosos à cópia de gravuras consagradas.
À época pombalina, no dizer de José-Augusto França, faltavam amadores, aqueles que
movimentam a cultura artística de forma integral (FRANÇA, 1987, p. 300). Os preços
relativamente baixos de seus trabalhos acusam o tipo de percepção que a sociedade tinha
sobre o valor da pintura ou da escultura. A relação entre a produção e a clientela é sintomática
e atua diretamente no conjunto de fatores geradores da obra de arte.
No Rio de Janeiro pombalino, livre dos jesuítas e transformado em capital do vice-
reinado, a situação assemelha-se ao quadro metropolitano. Soma-se ao espaço colonial a falta
de recursos para o desenvolvimento mais efetivo da pintura, além da defasagem do estatuto
social do pintor em relação ao português. Se na Metrópole o artista, mesmo com toda a
dificuldade, possuía a consciência de sua situação a ponto de externá-la em manifestação
literária, como o fez André Gonçalves e Vieira Lusitano, o pintor colonial vivia em outra
realidade. A sociedade, dividida em camadas rigidamente hierarquizadas, reservava à pintura
o mesmo patamar dos demais afazeres manuais. Assim, não admira identificar que a grande
maioria de pintores era de descendência escrava ou oriunda de famílias das classes menos
favorecidas.
Um ponto em comum refere-se ao tipo de cliente predominante: as irmandades. A
expulsão dos jesuítas e a decadência das ordens primeiras não impediram o movimento de
ascensão destas instituições leigas, agentes quase exclusivos da produção das oficinas de
64
pintura setecentista. São elas as responsáveis pelo intercâmbio formal entre a Metrópole e a
Colônia, efetivado na importação de gravuras das lojas lisboetas. Elas colaboraram também
para garantir a longevidade do Barroco romano, o qual lentamente foi recebendo alguns
elementos rococós nas décadas finais do século XVIII.
O entendimento sobre a dinâmica das relações sociais, nas quais as irmandades
religiosas desempenharam papel preponderante, em muito esclarecem dados diretamente
associados à produção artística. Tanto em Portugal como no Brasil, elas funcionaram como
elos entre o espiritual e o material, ou seja, entre a manutenção e exercício da fé católica e os
afazeres comuns, como, por exemplo, o registro de documentos. Em um reino de extremada
religiosidade, a Igreja penetrava em todas as áreas da vida, colaborando para a organização da
estrutura social concordante com o modelo de moral e virtude desejado pela Corte. Mônica de
Souza Martins, no livro Entre a cruz e o capital, estuda o papel dessas associações e diz que:
As irmandades se constituíram como parte da vida cotidiana dos indivíduos,
participando de todos os aspectos ligados a ela. Isso significa dizer que todas
as esferas da vida social pertenciam também à vida religiosa e que o não
pertencimento a uma irmandade poderia constituir motivo de vergonha ou
fator de desprestígio social. Nas relações de trabalho isso não acontecia de
forma diferente: aqueles que não pertencessem ao universo cativo também
deveriam estabelecer seus elos de trabalho a partir de uma irmandade,
tornando-se membros e irmãos de uma associação profissional, a partir de
onde eram estabelecidos compromissos em comum. (MARINS, 2008, p. 59)
Este fato nos ajuda a compreender a complexidade das relações entre o cliente e o
pintor, ambos necessariamente associados a alguma irmandade. Colabora também para o
esclarecimento sobre os motivos da encomenda e o perfil do encomendante, ponto nodal de
nossa análise. Até o último quartel do século XVIII, os casos se assemelham no sentido da
quase exclusividade da função religiosa da pintura e do caráter coletivo de sua produção. Não
são indivíduos com objetivos particulares os consumidores, mas representantes de entidades
com fins sociais e, consequentemente, de natureza pública. A transformação deste quadro
65
encontra-se justamente no período de nosso estudo, quando as relações caminham para a
diversidade e, por conseguinte, para uma visível individualização das transações.
O intercâmbio entre as irmandades oscilava entre trabalhos que envolviam ações
mútuas, competições veladas ou explícitas pela organização das melhores festividades,
concorrência pela ornamentação mais suntuosa de seus templos e assuntos relativos aos
ofícios. Esta comunicação interligada agia diretamente na manutenção da ordem tanto
religiosa quanto régia, fazendo das irmandades os nós aglutinantes entre Estado e Igreja.
Como organizações diversificadas quanto à origem social e à natureza das bandeiras
de ofícios a elas ligadas, elas serviam como espaço de debate e de promoção dos interesses de
grupos identitários. A especificidade das demandas de cada associação conferia, no conjunto,
uma multiplicidade cada vez maior de discussões. O ponto unificador vinha da autoridade do
Estado, buscando regrar as relações em crescente complexidade, como é de se esperar de uma
cidade em expansão. Afinal, as irmandades são agremiações tipicamente urbanas.
O perfil do cliente setecentista é representado, na sua grande maioria, pelos priores das
irmandades. Geralmente eram os responsáveis pela autorização e muitas vezes pela
composição dos contratos de serviço, além de estarem a frente das negociações, fiscalizações
e avaliação dos resultados. Suas identidades variavam conforme o estatuto social do grupo a
que pertenciam. As ordens terceiras, por exemplo, foram lideradas por funcionários da alta
burocracia, como ouvidores, juízes e priores de províncias. As menos abastadas elegiam
aqueles indivíduos de maior destaque, como a figura representante do comércio de uma
determinada área, por exemplo.
Em Portugal, os pintores não pertenciam mais a qualquer tipo de corporação de ofício,
como mencionamos anteriormente. A Sociedade de São Lucas, existente desde 1602, passou a
funcionar como referência da profissão após a libertação das regras rígidas e monopolizadoras
66
da corporação. Apesar de não atuar diretamente nos negócios de seus membros, serviu como
núcleo de contato entre os nomes mais relevantes do período.
O Rio de Janeiro contaria com a criação da Sociedade de São Lucas somente em 1827,
poucos anos depois da extinção de todas as corporações de ofícios por ordem imperial. Não
há registros de corporação específica para os pintores fluminenses, pelo menos ao longo da
segunda metade do século XVIII. Sem ligação com alguma sociedade reguladora, a sua
atividade seria livre e, ao mesmo tempo, problemática. Livre por não precisar de autorização
governamental para exercer sua profissão. Problemática porque os pintores não contavam
com a proteção de uma instituição especializada no ofício, nenhum órgão para mediar
contratos, garantir direitos ou atuar como reclamantes em questões trabalhistas. Cabia à
irmandade a proteção de uma forma geral, sem o compromisso particular ou conhecimento de
causa que uma corporação ofereceria.
Há a hipótese de que o número reduzido de pintores no Rio de Janeiro em um mercado
extremamente limitado seria um dos motivos da provável ausência de uma organização de
classe. Outra razão identificada encontra-se na condição social dos pintores, sempre ocupantes
dos patamares baixos da rígida hierarquia. Bastante diferente dos numerosos artistas da
Metrópole, os coloniais não foram afiliados às irmandades por uma bandeira de ofício, mas a
partir do lugar que ocupava na sociedade. Leandro Joaquim, pintor descendente de escravos e
ativo no último quartel do século XVIII, esteve associado à Irmandade de Nossa Senhora da
Conceição e Boa Morte dos Homens Pardos. Raimundo da Costa e Silva, seu contemporâneo,
pertencia a de São José.
Esta fragilidade atingia diretamente o despertar da consciência sobre o próprio fazer,
algo que se manifestaria timidamente apenas no último quartel do século XVIII. A situação do
Rio de Janeiro como capital, a atuação de vice-reis tomados pelas ideias iluministas, o notável
67
crescimento da malha urbana e o incremento das relações comerciais fomentaram novas
possibilidades de trabalho. Entretanto, no período de atuação do Marquês de Pombal, a
pintura colonial permanecia sujeita a um tipo de encomendante calcado na tradição da arte
religiosa realizada desde a primeira metade dos Setecentos.
O período pombalino não representou uma época de mudanças perceptíveis para a
pintura, ao contrário do que ocorreu com a arquitetura. Foi um tempo preparatório, criador de
condições favoráveis para a composição de um novo tipo de mecenato e do futuro
florescimento de artistas com amplo horizonte de atuação. O maior legado do Marquês de
Pombal advém do fortalecimento da burguesia comercial, classe que conferiu um formato
diferenciado na relação entre cliente e pintor. A fase áurea que se desenvolveu no reinado de
D. Maria I teve curta duração, interrompida prematuramente pela conjuntura política do início
do século XIX. Mesmo assim, os pintores aí formados deixaram uma marca de qualidade
reconhecida e admirada internacionalmente.
1.3 VIEIRA PORTUENSE E DOMINGOS ANTÔNIO DE SEQUEIRA: ARTE E
BURGUESIA
A morte de D. José significou o afastamento do Marquês de Pombal da vida pública e
o retorno de seus antigos inimigos ao centro administrativo da Coroa. Entretanto, as
mudanças foram drásticas somente no campo político, pois as ações antes implementadas nas
áreas da educação e da economia continuaram em marcha no reinado de D. Maria I. A época,
batizada de Viradeira, ou, como bem diz José-Augusto França, de ressurreição dos mortos
(FRANÇA, 1990, vol. 1, p. 24), não impediu o fortalecimento da classe que Pombal ajudou a
formar, a burguesia comercial. Esta, agora misturada com a nobreza cortesã, firmou sua
68
presença como promotora das artes, como atesta, por exemplo, o financiamento da construção
do Teatro de São Carlos de Lisboa pela elite do tabaco (FRANÇA, op. cit., p. 27).
A histórica aliança entre Portugal e Inglaterra, consolidada através de vários tratados
que pontuaram os séculos XVII e XVIII, colaborou para que as relações sociais extrapolassem
a esfera comercial. Os ingleses residentes no Porto e em Lisboa levaram consigo um modelo
cultural que envolvia o consumo de bens artísticos. A circulação de peças e de impressos e o
apadrinhamento de artistas foram alguns dos costumes que serviram como parâmetro para a
burguesia portuguesa. Não admira o fato de terem sido comerciantes ingleses os patronos do
pintor Francisco Vieira Portuense no início de sua carreira. Foram eles, inclusive, os
financiadores da primeira viagem do artista a Roma.
O mecenato burguês trazia para a arte portuguesa um novo comportamento diante da
obra. A função original do objeto continuava como principal direcionadora do fazer, mas o
valor de mercadoria era agora um novo e relevante aspecto a ser considerado. A colônia
inglesa no grand tour italiano13
era a mais numerosa e ativa na segunda metade do século
XVIII, transformando a arte em interessante negócio. Diferente do aspecto religioso e
devocional da tradição pictórica portuguesa, o mecenato burguês percebia na arte um produto
capaz de gerar lucros, e esta percepção alavancava o consumo e conferia um novo formato ao
ato de colecionar.
A carreira de Francisco Vieira Portuense anuncia mais de perto a nova posição do
artista no mundo dos negócios. Aprendeu a profissão de pintor com o pai, como de costume
na antiga tradição hereditária dos ofícios. Recebeu ajuda financeira dos mesmos comerciantes
ingleses que o mandariam futuramente a Roma para matricular-se na Aula Régia de Desenho
e Figura, em Lisboa (GOMES, sd., p. 16). Ficaria ali um ano e meio, viajando para a Itália em
1789. Sabemos que Roma era uma espécie de caldeirão de culturas misturadas com interesses
13
O Grand Tour era uma espécie de turismo cultural, um complemento à formação nobre e criador de
verdadeiras colônias estrangeiras na Itália. Era um fenômeno de intensa troca comercial de bens artísticos,
antigos ou contemporâneos aos visitantes.
69
comuns, ou seja, de conhecer o patrimônio da arte ocidental por ali espalhado e, se possível,
de lucrar com o fervilhante comércio de obras de arte.
Hábil desenhista, Vieira Portuense destacou-se na aula de Domenico Corvi, renomado
pintor italiano, seu primeiro mestre em Roma. Beneficiado com maior liberdade em relação
aos bolsistas da Aula Régia de Desenho e Figura, Vieira Portuense pôde realizar diversas
viagens pela Itália. O contato com as diferentes escolas e a percepção de que havia outra fonte
de renda além da pintura estimularam a sua entrada no mundo dos marchands, algo inovador
para um artista português. Paulo Varela Gomes, em importante estudo biográfico do pintor,
relata que:
Vivendo apenas de magras pensões, Vieira equilibrava as suas finanças
integrando-se neste ativíssimo mercado. Já em Roma, e depois, durante toda a
sua carreira européia, visitava igrejas, conventos e coleções tomando nota
cuidadosa de autorias, técnicas, períodos... e preços. Comprava quadros e
desenhos no intuito de os revender, ou aconselhava a sua compra a
negociantes ingleses e italianos.(GOMES, op. cit., p.20)
Suas amizades incluíam especialistas famosos, editores e gravadores, círculo em
constante procura por negócios lucrativos. A publicação de livros ilustrados rendia bons frutos
e a associação entre um desenhista copista de grandes mestres e um gravador renomado era a
combinação desejada para esta atividade. Após bem-sucedida estada em Parma, onde foi
nomeado Acadêmico de Honra, partiu para a Inglaterra, empurrado pelas forças napoleônicas
que ameaçavam a Itália em 1796. Em Londres, se afiliou a Francesco Bartolozzi, gravador de
grande fama que viveria futuramente em Lisboa. A parceria resultou em diversificados
trabalhos, além da assimilação mais sistemática do gosto neoclássico ao qual Vieira Portuense
ainda mesclava com elementos rococós.
A gravura era o principal meio de circulação de imagens do século XVIII e servia
como alternativa para uma classe intermediária consumir cópias de obras de todas as épocas
por preços acessíveis. Apresentava também composições inéditas de temas conhecidos,
70
muitas vezes compondo ilustrações de clássicos, como Eneida, de Virgílio, e, no caso
português, Os Lusíadas, de Camões. Os vendedores de estampas eram conhecidos nas
principais capitais e sua presença anunciava uma era de reprodução e consumo de imagens
que seria potencializada mais tarde com o advento da fotografia.
A gravura Juramento de Viriato corresponde à tela que Vieira Portuense enviou para o
salão da academia inglesa, em 1799 (Figura 7). A imagem, gravada por Francesco Bartolozzi,
exemplifica a aplicação do receituário neoclássico, tanto na forma como no conteúdo. A
referência a um antigo herói português faz menção simbólica à situação delicada daquele
momento, resgatando do passado um tema de resistência apropriado diante da ameaça
napoleônica que se configurava. O ideal de virtude e o tom patriótico são o testemunho visual
da atualidade de Vieira Portuense em relação ao que se fazia no mundo artístico em Portugal
na mesma época. A mentalidade ao mesmo tempo comercial e revolucionária que ditava a arte
de final de século foi prontamente absorvida pelo pintor.
A história de Viriato remonta ao segundo século antes da Era Cristã. O expansionismo
romano chega à Península Ibérica e encontra forte resistência das tribos lusitanas comandadas
por Viriato. Depois de investidas fracassadas, Roma reconhece a força dos inimigos e propõe
um pacto de paz. O acordo é feito, mas Galba, comandante do exército romano, quebra o
combinado e realiza um ataque não esperado, resultando no massacre de milhares de
lusitanos. Vieira Portuense representou o momento da narrativa em que Viriato percebe a
dimensão da tragédia, incitando os guerreiros a vingar o ato traidor.
A simplicidade da cena e a ênfase na resolução dos corpos trazem referências claras ao
gosto classicista da época. As personagens parecem saídas das escavações arqueológicas,
figuras escultóricas de um passado próximo à própria história de Viriato. O jovem herói exibe
uma força que mistura aparência musculosa com gesto firme e determinado e expressão de
indignação. A perícia do pintor no desenho anatômico ressalta o contraste entre o poder
71
guerreiro masculino e a fragilidade feminina, representada pelo corpo da mulher que jaz no
colo de outra delicada figura. Não é mais a fragilidade sensual do Rococó, mas a reposição do
feminino em um mundo de virtude e heroísmo.
Figura 7 – Vieira Portuense. Juramento de Viriato. 1799. Gravura de F. Bartolozzi.
42 x 28.9 cm. Biblioteca Geral da Faculdade de Ciências do Porto.
Outra obra de tom patriótico e contemporânea à anterior conta a história de luta contra
o rei espanhol Felipe IV, na ocasião em que a União Ibérica é dissolvida. Intitulada Dona
Filipa de Vilhena arma os filhos cavaleiros, a tela consiste em mais um jogo simbólico com
72
clara intenção de associar a iconografia de outro tempo à posição atual de Portugal nos
conflitos com a França (Figura 8). Misto de realidade e mito, a cena exalta a virtude guerreira
masculina e a dignidade feminina na defesa da liberdade, uma alusão ao crescimento do
sentido de identidade nacional que a Revolução Francesa havia ajudado a fortalecer na
Europa.
Dona Filipa de Vilhena era de família nobre seiscentista, casada com o Conde de
Atouguia. O brasão da família aparece estampado na cortina que separa os aposentos, no
canto esquerdo da composição. Centralizada, a mãe demonstra firmeza ao entregar a espada
ao filho, apesar de demonstrar sofrimento em seu semblante ao apontar o destino visível na
paisagem, o porto de Lisboa. Vieira Portuense destacou a figura principal com um vestido de
um intenso branco, com nítido valor simbólico de pureza e virtude, alusão clara ao seu ato de
coragem.
Figura 8 – Vieira Portuense. Dona Filipa de Vilhena arma os filhos cavaleiros. 1800-1801. Óleo sobre tela.
152 x 213 cm. Coleção particular.
73
Mais uma vez, Vieira Portuense organizou a composição de forma clara, com
iluminação uniforme e notável domínio das texturas. A horizontalidade e separação de grupos
em módulos, como um grande friso, contempla o gosto neoclássico praticado por artistas
como Joseph-Marie Vien, Anton Raphael Mengs e Jacques-Louis David. Muitas personagens
parecem apropriadas de artistas ingleses da época, como Gavin Hamilton e Angelica
Kauffman. Paulo Varela Gomes considera a tela pertencente ao estilo internacional, o qual o
pintor soube absorver em sua formação europeia (GOMES, sd., p.74). Juntamente com o
Juramento de Viriato, a presente obra foi confeccionada para a elite portuguesa residente em
Londres, razão da seleção de temas tão específicos da cultura de seu país. Lembramos o
quanto poderia soar estranho à Academia inglesa a iconografia particular e desconhecida de
um lugar periférico em relação à produção artística setecentista.
Os dois exemplos que selecionamos para a análise mostram uma abordagem
diferenciada dos valores neoclássicos então em voga na Itália. Em Vieira Portuense
encontramos o tom politizado característico do Neoclassicismo francês, diferente das buscas
puramente estéticas da versão romana. Em suas viagens, o pintor teve a oportunidade de
entrar em contato com diferentes escolas e sua observação atenta, típica do trabalho como
marchand, colaborou para que sua produção assumisse um caráter heterogêneo. O contato
com obras francesas do período ofereceu ao pintor o repertório formal e iconográfico que
usaria como instrumento político naquele tempo de ameaça à soberania portuguesa.
O ciclo de formação estrangeira se fecha em 1800, quando Vieira Portuense retorna à
pátria como pintor renomado. Sua passagem por diversos locais e o exercício contínuo do
olhar contribuíram para que ele se apropriasse de estilos e formasse o seu misturado, rico em
referências formais e internacional em sua essência. Segundo Paulo Varela Gomes, o
Neoclassicismo tem justamente o caráter da mistura, um melting pot de influências e
tendências (GOMES, op. cit., p. 125). É com este modelo que o pintor voltou a Portugal,
74
atualizado e admirado. Sua situação em muito se afastou dos tantos bolsistas que retornaram
após a formação romana e se apagaram diante de um ambiente pouco fértil para as artes. Com
Vieira Portuense foi diferente; sua clientela também estava em vias de transformação,
preparada agora para absorver o que a Europa há muito consumia. Não fosse a morte
prematura, em 1804, sua vocação para a experimentação poderia ter levado a pintura
portuguesa a outros patamares.
Contemporâneo e rival de Francisco Vieira Portuense foi o lisboeta Domingos
Antonio de Sequeira14
. Pertenceu à primeira turma da Aula Régia de Desenho e Figura,
ministrada na ocasião pelo pintor Joaquim Manuel da Rocha, quando tinha então treze anos.
Sua partida para Roma ocorreu por bolsa concedida pela rainha D. Maria I e lá permaneceu de
1788 a 1795, passando por formação nos ateliês de Antonio Cavallucci e Domenico Corvi.
Apesar de também ter viajado por várias escolas italianas, Sequeira permaneceu inicialmente
romano no gosto, conforme atestam as obras deste período (FRANÇA, 1990, vol. 1, p. 143).
Sua primeira viagem formativa a Roma foi por intermédio particular da rainha e não
como bolsista da Aula Régia de Desenho e Figura, como seria a via mais comum naquele
momento. O ponto favorável deste patrocínio encontrava-se na maior liberdade que esta
condição proporcionava ao pintor, dispensado da necessidade de seguir fielmente as
orientações de uma instituição oficial. O preço da liberdade vinha impresso no valor da
pensão, inferior a dos bolsistas e um dos motivos que pesaram na decisão de Sequeira de
retornar à pátria em 1795, no auge de sua carreira internacional.
O pintor viveu as conturbadas três primeiras décadas oitocentistas da história de
Portugal, algo que se expressa nitidamente no confronto entre sua formação inicial
neoclássica e a absorção de uma espiritualidade angustiada de sua fase romântica. Foi,
14
Falamos aqui de rivalidade no sentido competitivo, pois os dois pintores estiveram na mesma época em Roma
e participaram dos concursos da Academia.
75
entretanto, a fama adquirida na primeira formação na Academia de São Luca, em Roma,
admitido em 1793 após ganhar alguns prêmios, que contribuiu para o seu acolhimento mais
tarde, quando retornou àquele país na condição de exilado voluntário (FRANÇA, op. cit., p.
142). Da formação inicial destaca-se a obra “Alegoria à Casa Pia”, encomenda feita pelo
Intendente de Polícia Pina Manique antes da partida do pintor (Figura 9).
Figura 9 – Domingos Antonio de Sequeira. Alegoria à Casa Pia. Óleo sobre tela. MNAA. Lisboa.
Começada em Roma e terminada após seu regresso a Lisboa, a pintura apresenta os
indícios de seu aprendizado neoclássico, como a organização espacial triangular, a equilibrada
distribuição das massas e as personagens tratadas como esculturas. Na composição, Pina
Manique aparece apresentando um monumento à D. Maria I, cercado por figuras alegóricas
que dão o aspecto monumental à representação. A obra tem um detalhe peculiar, caro à nossa
pesquisa, pois, dispostos no lado direito, estão o autorretrato de Sequeira e o que seria o
76
retrato do pintor fluminense Manoel Dias de Oliveira. O pesquisador português Armando de
Lucena menciona o fato da seguinte forma:
Mas, aconteceu que outras luzes melhor iluminam a meia treva
envolvente do quadro naquele canto direito, onde duas figuras
espreitam o observador: uma, a do próprio Sequeira; a outra, muito
provavelmente será a efígie de Manoel Dias de Oliveira, segundo as
judiciosas palavras do Dr. Xavier da Costa, que, acerca deste pintor
brasileiro, vindo para Lisboa, e acolhido na Casa Pia, onde estudava
na Aula de Desenho, cuja preparação artística e bom aproveitamento
levaram o Intendente a enviá-lo para Roma, onde continuaria a estudar
sob a orientação de Lambruzzi e de Batoni. Sabe-se que em 1796, já
ali, se encontrava nestas condições. (LUCENA, 1969, p. 20)
Mais adiante, Armando de Lucena faz a transcrição da citação de Xavier da Costa:
No grande quadro alegórico da instituição da Casa Pia (...) feito em
Roma, como incumbência de Pina Manique, por Domingos Antonio
de Sequeira, e principiado em 1793, acha-se o retrato de Manoel Dias
de Oliveira junto ao do autor, o qual a efígie do companheiro fez,
previamente, em desenho, também existente no Museu Nacional de
Arte Antiga, esse que é classificado como pintor de história.
(LUCENA, op. cit., p. 20)
O referido desenho encontra-se realmente na coleção do Museu Nacional de Arte
Antiga, juntamente com uma série de cinco estudos de Sequeira para este painel (Figura 10).
Constitui um raro registro iconográfico sobre a fisionomia do pintor fluminense, além de
sugerir a proximidade deste com o colega português. A trajetória dos dois artistas possui
pontos em comum, como a formação inicial na Aula Régia de Desenho e Figura de Lisboa e a
possibilidade de estudar em Roma por patrocínios particulares. Se Sequeira pôde, ao longo de
sua carreira, experimentar mais rapidamente a mudança de gosto que movimentava o cenário
europeu, Manoel Dias de Oliveira, por sua vez, ao regressar ao Brasil, encontrou um ambiente
ainda precário em relação ao ensino artístico, permanecendo fiel ao Neoclassicismo.
77
Figura 10 – Domingos Antonio de Sequeira. Estudo para Alegoria à Casa Pia.
Desenho. MNAA. Lisboa.
Domingos Antonio de Sequeira retornou a Portugal antes da saída de Manoel Dias de
Oliveira e o primeiro impacto que sofreu ao se restabelecer em Lisboa foi a percepção de que
o mercado de arte local, mesmo em transformação, ainda era extremamente acanhado. Esta
situação afetava, inclusive, a estipulação do preço de suas obras. A rejeição da elite local
pelos valores pedidos inicialmente por seus quadros o fez desanimar, depois de ter tentado em
vão convencer outros pintores a mudarem o comportamento diante das negociações. Cirilo
Wolkmar Machado relata que:
78
Chegado a Lisboa visitou Pedro Alexandrino e Cirilo e lastimou-se do
abatimento da Arte, propondo que se unissem todos para a exaltar,
dando-lhe mais estimação e maior valor às obras. Tinha toda a razão,
mas quem pode fazer mudar de repente um antigo costume? Ele
mesmo o experimentou. O Conde de Val de Reis recusou dar-lhe
1.000 moedas que exigia por 10 batalhas para uma de suas ante-
câmaras. Todos pretendiam ter alguma obra do novo Artista, mas
admiravam-se dos preços (...). (MACHADO, 1823, 119)15
A importância deste fato reside justamente de Sequeira, antes mesmo do retorno de
Vieira Portuense, ter travado discussões sobre o estatuto social do pintor português,
aproveitando-se da fama obtida internacionalmente. Em uma época de mudanças, estas
estariam incutidas tanto na ciência dos artistas de experiência formativa externa a Portugal
quanto na percepção dos clientes de que uma nova postura diante da pintura começava a ser
exigida. Lembrando que os pintores estavam habituados aos preços mais baixos que os
trabalhos de talha, desde os fins dos Seiscentos, não surpreende o fato de Sequeira ter
fracassado inicialmente ao tentar convencer nomes consagrados, como Pedro Alexandrino de
Carvalho e Cirilo Wolkmar Machado sobre o problema. Diferentemente das angústias de
André Gonçalves, em meados do século XVIII, a época agora trazia de novo a ascensão de
uma elite com valores em construção, mesmo que ainda soasse como um mecenato amador
(MACHADO, op. cit., 210).
A adaptação de Domingos Antonio de Sequeira à realidade portuguesa foi
inicialmente dolorosa, mas a participação no cenário artístico continuava em pleno
crescimento, sobretudo quando dividiu com Vieira Portuense a direção dos trabalhos de
ornamentação do Palácio da Ajuda, em 1802, além da nomeação como Primeiro Pintor da
Corte. Sua função, apesar do prestígio reconhecido para tal cargo, foi mínima, conforme os
relatos de Cirilo Wolkmar Machado. Importante dizer que a retomada das obras no Palácio da
15
Cirilo Wolkmar Machado foi pintor contemporâneo de Domingos Antonio de Sequeira e autor de reflexões
teóricas sobre arte, além deste importante registro biográfico dos pintores de seu tempo e dos mais antigos.
79
Ajuda consolidou o Neoclassicismo em solo português nas três linguagens principais: a
arquitetura, a escultura e a pintura.
O estilo inicial de Sequeira revela o apreço pelo acabamento, a ênfase na figura
humana e a simplicidade dos fundos da composição. O retrato do Conde de Farrobo,
executado em 1813, mostra o artista no auge de sua atividade, quando recupera sua fama após
os incidentes políticos nos quais se envolvera na época da invasão francesa16
. A visível
dedicação de Sequeira ao modelo, traço marcante nas suas pinturas de retrato, aparece
acentuado na figura do jovem Joaquim Pedro Quintella, barão de Quintella, e, posteriormente,
Conde de Farrobo (Figura 11).
O rapaz, representado de corpo inteiro, fita o espectador em pose descontraída, o que
não chega a interferir no tom aristocrático percebido no seu olhar, na roupa elegante e no livro
que segura com a mão direita. Os atributos são referenciais de uma família abastada, aqui, de
negociantes em plena prosperidade e herdeira da política favorável ao comércio iniciada na
gestão pombalina. A relação de amizade de Sequeira com a família Quintella aponta para uma
realidade diferenciada daquela vivida pelos pintores setecentistas, envolvidos ora com as
irmandades religiosas, ora com os trabalhos de corte. Sequeira foi, no panorama artístico
português, o introdutor do retrato burguês.
O cenário é reduzido ao que parece um pátio, com um muro pálido e geométrico no
qual o conde se apoia. As linhas dos blocos de pedra colaboram para a meticulosa
organização espacial que parece convergir para a personagem. O olho direito do rapaz está
exatamente na linha vertical que parte o quadro em duas metades iguais, efeito muito utilizado
no retrato para conferir certa movimentação do olhar do espectador. O plano de fundo
16
Sequeira, diferente de Vieira Portuense, mostrou-se plenamente favorável às ideias revolucionárias francesas,
vendo nas tropas de Junot a possibilidade de renovação de Portugal, que considerava atrasado culturalmente.
Após a saída do exército francês de Lisboa, Sequeira foi processado e preso por nove meses por associação ao
jacobismo.
80
mantém a economia de elementos com intuito de não distrair a atenção em nenhum instante,
reforçada pela escolha por tons frios e pálidos.
Figura 11 – Domingos Antonio de Sequeira. Retrato do Conde de Farrobo. 1813
110 X 68 cm. MNAA, Lisboa.
81
Além da precisa composição matemática do espaço, a qual confere sensação de
solidez, percebemos a primazia do desenho na obra de Sequeira, com contornos bem
definidos e domínio das proporções anatômicas. O apuro técnico e racional do uso dos
elementos formais não esconde a intensidade psicológica que consegue transmitir com
tamanha simplicidade, algo que encontramos na obra de Pompeo Batoni e de outros artistas
neoclássicos com que travou contato em Roma. Certamente aplicou aqui todo o aprendizado
acadêmico que recebeu desde os tempos da Aula Régia de Desenho e Figura, agora com sabor
notadamente romano.
O período que engloba os anos de 1808 e 1823 foram os mais fecundos para Sequeira.
Como pintor da Corte, realizou inúmeros retratos de D. João VI, ironicamente na ausência do
monarca. São imagens que exaltam a figura do rei com sobriedade, através de poses
idealizadas, gestos contidos e poucos elementos cenográficos. Esta fórmula, vista no retrato
do Conde de Farrobo, se tornaria exemplo para os outros pintores portugueses do início dos
Oitocentos, gosto que Sequeira ajudou a consolidar nas principais escolas nacionais. Foi
também o modelo que Manoel Dias de Oliveira levou para o Brasil, quando sua carreira
esbarrou positivamente no desembarque da Família Real no Rio de Janeiro. Diferente de
Sequeira, o artista fluminense foi retratista de uma Corte presente, fato que não afetou
diretamente na forma de representação, mas que influenciou no processo de mudança de
estatuto do pintor.
A transição do século XVIII para o XIX foi marcada pela transformação lenta, mais
em curso, da relação entre artista e cliente. A rica burguesia comerciante injetava novas
possibilidades de trabalho, como também a aposta em alguns nomes de destaque que
poderiam render bons frutos. Assim foi com Vieira Portuense e Domingos Antonio de
Sequeira, artistas apadrinhados que puderam desfrutar de uma formação acadêmica
tipicamente internacional e não mais calcada em regionalismos. A morte interrompeu
82
prematuramente a jornada de Vieira Portuense e a transferência da Família Real para o Brasil
retirou Sequeira de uma vivência de corte, mas ambos deixaram uma porta aberta à
experimentação, à inclusão mais sistemática e direta do que se fazia nos principais centros
culturais europeus. Sobre a clientela da época, Benedicta Maria Duque Vieira nos diz que:
Os salões, os das nobrezas de corte e da província e os da burguesia
mais endinheirada, são os espaços de sociabilidade e de animação
cultural onde se trocam pontos de vista, se debatem ideias e livros, se
discute a política do dia a dia. Deste, de Arroios, ficou-nos um álbum
que é a prova disso. (VIEIRA, 1996, p. 54)
De forma mais limitada, mas não menos significativa, a passagem de Manoel Dias de
Oliveira por Lisboa e Roma também gerou frutos positivos, pois incluiu o artista na campanha
orquestrada pela classe comercial sobre a necessidade de mudança no sistema de ensino no
Brasil. A abertura da Aula Régia de Desenho e Figura constitui o seu contributo maior como
profissional, o compromisso, assim como o fez Domingos Antonio de Sequeira em 1795, de
devolver aos seus conterrâneos aquilo que lhe foi ofertado.
1.4 OS TRATADOS DE CIRILO WOLKMAR MACHADO: O PINTOR COMO TEÓRICO
DA ARTE
O desenho é a alma da pintura, e o primeiro
dos conhecimentos que deve possuir aquele
que se destina a esta nobre profissão. Ele não
é somente o traço de todos os corpos, mas
ainda, ele exprime a diferença das superfícies,
e as aparências visíveis da matéria de que são
compostos.
Cirilo Wolkmar Machado
A epígrafe acima vem do que seria um tratado de arquitetura, escultura e pintura de
Cirilo Wolkmar Machado. Na verdade, a obra assume a característica de um projeto, muito
mais um esboço em forma de caderno de anotações do que um trabalho teórico finalizado.
83
Mesmo com o formato de inacabado, ou melhor, de gênese de uma profunda discussão ainda
por vir, o manuscrito expõe o pensamento de uma época sobre o gosto e uma reflexão
consciente sobre a primazia do desenho, a imperfeição barroca sob o signo de Borromini e a
necessidade premente de retorno aos valores clássicos da Antiguidade. Como pintor em
atividade e contemporâneo de Francisco Vieira Portuense e Domingos Antonio de Sequeira,
Cirilo Wolkmar Machado deixou como registro escrito aquilo que não apenas se discutia nos
canteiros de obras, mas que também se aplicava nas várias linguagens artísticas que tomou
para si como matéria de estudo e teorização.
As anotações teriam ocorrido entre os anos de 1796 e 1808, conforme ele mesmo
deixou como pista ao escrever na sua coleção de memórias que intentava compor um tratado
para servir de guia a artistas principiantes (MACHADO, 1823a, p. 249). Estas memórias
mencionam a sua permanência no Convênio de Mafra, quando consultou na biblioteca local
obras de diversas procedências, como o Da Arte da Pintura, de Gerardo Lairess e o Reflexões
sobre a beleza e sobre o gosto da pintura, de Anton Raphael Mengs (MACHADO, 2002b, p.
8) 17
. Sua atitude revela a essência do erudito setecentista, o qual buscava na observação direta
do passado e na consulta meticulosa das publicações antigas e contemporâneas as fontes para
a argumentação sobre a necessidade de retorno ao classicismo.
Cirilo Wolkmar Machado nasceu em Lisboa em 1748 e formou-se como pintor nos
moldes tradicionais das oficinas, inicialmente com o seu tio João Pedro Wolkmar. Sua breve
passagem por Roma, entre 1776 e 1777, foi suficiente para absorver as transformações
estéticas então em curso, registrando em forma de desenhos e medidas tudo aquilo que o
passado clássico lhe apresentava. Como ele mesmo diz, elegi os mestres dos maiores mestres,
isto é, Rafael, o antigo, a Natureza e as Ruínas da Antiga Roma (MACHADO, op. cit., p.
246). Estes registros foram utilizados posteriormente no referido manuscrito, sobretudo os
17
A menção sobre Lairess aparece na folha 83 e a de Mengs, na folha 100. Para todas as citações desta obra,
colocaremos o número da página, conforme a publicação da Fundação Calouste Gulbenkian, e a folha
correspondente do manuscrito de Cirilo Wolkmar Machado.
84
relacionados à arquitetura e à pintura (Figura 12). Em uma Lisboa sem academia e sem
circulação de tratados teóricos sobre o fazer artístico, as ideias de Cirilo esperariam quase
duas décadas para começar a ganhar o papel.
O trabalho possui 165 folhas com vários exemplos iconográficos, com boa parte
dedicada à pintura e à escultura, como a imagem abaixo. Em toda a sua extensão, a beleza é
expressa nos princípios do Neoclassicismo, conforme podemos notar na seguinte passagem:
Na beleza a arte pode exceder a natureza. Ainda que a pintura seja imitação da
natureza ela não lhe é inferior em tudo, é mais fraca na luz e na sombra, mas
pode excedê-la na beleza. A natureza produz com sujeição aos acidentes, a
arte obra livremente (...). (MACHADO, op. cit., p. 226)
Em outra parte, Cirilo continua:
Por que as coisas humanas são imperfeitas e do bom só nos ficou o arbítrio de
escolher, a perfeição consiste na escolha, e é grande o que sabe conhecer qual
coisa é mais ou menos grande, e estimável a fim de estudar só o bem e não o
mau. Isto fez distinguir todos os homens grandes estudando só o mais digno
da natureza; os quais se aplicavam as coisas medíocres ou mínimas, passaram
do pequeno ao inútil, ao feio, ao falso e às quimeras. Os gregos do bom tempo
foram os primeiros que elevaram a arte à beleza e bom gosto; como nada ama
o homem tanto como a si mesmo, era o homem o primeiro objeto da arte e dos
seus estudos e preferiram o nu às roupas. (MACHADO, op. cit., p. 228)
É notória a filiação de Cirilo ao pensamento de Mengs e, através deste, dos escritos de
Winckelmann. A correção das imperfeições da natureza, a matemática organização do espaço,
o uso adequado das cores e a submissão dos claros e escuros à ordenação do desenho são
elementos que pontuam toda a obra. A ênfase na figura humana pode ser exemplificada
através das obras que analisamos de Francisco Vieira Portuense e de Domingos Antonio de
Sequeira, tanto pela concepção do espaço que exalta os personagens principais, como no
protagonismo dos mesmos em relação aos demais tratamentos formais, como iluminação e
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314
ANEXOS
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ANEXO 1
O Paiz, 05 de novembro de 1889
Fonte: Seção de Periódicos da Fundação Biblioteca Nacional.
ARTES - França Júnior
Na semana passada fui na Academia das Bellas Artes.
O que me levou àquela casa foi, além do prazer que sinto todas as vezes que visito a
sua pinacotheca, a curiosidade de ver um antigo painel pertencente à capela imperial, o que ali
se está restaurando.
Este painel, que representa a família do príncipe regente em adoração aos pés da
Virgem do Monte Carmelo, tem uma história importante, e recorda o período em que as artes
relativamente mais floresceram no Brazil.
Nos séculos XV, XVI, XVII e XVIII os papas, as testas-coroadas e os grandes
senhores faziam-se retratar com os santos de sua devoção.
As galerias artísticas e as sumptuosas cathedraes da velha Europa estão cheias desses
quadros nativos firmados pelos nomes os mais gloriosos do primeiro Renascimento, que
surgiu por detrás dos Apeninos como um grande pharol a illuminar o mundo, e do segundo,
que desmaiou, pode-se dizer, apenas nasceu em França, depois de um largo período de
decadência.
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O painel é considerado uma das melhores obras do notável artista José Leandro de
Carvalho.
Digno rival de seu chara Leandro Joaquim, o célebre pintor dos quadros da igreja do
Parto, reconstruído por Luiz de Vasconcellos, depois de um grande incêndio, José Leandro
deixou-nos os melhores retratos de el-rei D. João VI, que encontra nelle, para bem dizer, o seu
Apelles.
O painel, que mede 32 palmos de comprimento e 15 de largura, representa na parte
inferior os retratos em corpo inteiro da rainha D. Maria I, que conduz pela mão o príncipe D.
Pedro, e do Sr. D. João VI e da rainha D. Carlota. A parte superior é ocupada pela Senhora do
Carmo, cercada de anjos, tendo um delles uma palma e outro um escudo, onde está escripta a
seguinte legenda: Sub tuum praesidium confugimus. As pessoas reaes, que figuram do lado
direito da composição, são também guardadas por dois anjos, um dos quaes sustenta uma
esphera, onde se lê o seguinte: Nostra deprecationes ne despicias.
Bastante estragado pelo tempo, e estendido sobre uma larga mesa, em vasta sala, onde
outros quadros sombrios, com massas denegridas de betume, pareciam dormir tranquilos
como em uma necropolis o mesmo somno do esquecimento, não pude apreciar segundo
desejava todas as belezas da composição.
Vi, porém, que as figuras eram perfeitamente pintadas.
O colorido conserva ainda todo o vigor.
A technica resente-se entretanto da maneira do tempo, se bem que notam-se em alguns
pontos do quadro pinceladas de grande ousadia.
Disse que o painel tinha uma história.
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E esta história é infelizmente bem triste, porque foi ella, para bem dizer, a causa da
morte do grande pintor.
Ninguém ignora o quanto se exaltavam os ânimos e o que fez a política, que é a sujeita
mais desbragada que conheço, nos acontecimentos de 1831.
A arte, que paira em uma athmosphera límpida e serena com as aguras do antigo céo
de Thessalia, que deverá escapar pela nobreza de seu caráter e da sua missão às lutas de
pequenas misérias e ambições, soffre e bebe muitas vezes até as fezes a taça da armagura,
quando, como um leão indomável, se convulsiona a terra em que ella viu a luz e floresceu.
A mão sacrílega do Courbet, um artista e um artista de gênio, para maior vergonha
sua, deita abaixo a columna de Vendôme!
As balas de Napoleão I não pouparam o Cenacolo de Leonardo da Vinci!
A Venus de Millo, o mais bello padrão que nos legou a estatuaria romana, se não
tivessem enterrado como um thesouro precioso, na ultima guerra que ensanguentou a França e
a Allemanha, não estaria ainda hoje com a sua serenidade olympica inundando de luz a sala
do Louvre.
A política vitimou o painel de José Leandro.
Era preciso pensar uma esponja destruidora sobre aquellas figuras reaes.
Dessa missão foi incubido o pintor Debret.
Debret porém era artista, e artista de coração.
Rejeitou.
O seu pincel creava, não destruía.
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O que não fez, porém, o pincel de um pintor de raça, fe-lo a brocira do caiador.
As figuras de el-rei e de D. Maria I, do príncipe D. Pedro e de D. Carlota
desapareceram sob informes camadas de tinta e pretendendo figurar uma montanha.
O sicário que commetten tal attentado não teve felizmente a ideia de passar a
raspadeira sobre aquellas figuras antes de pintar o pretenso monte.
Leandro não pode resistir ao mutilamento de uma de suas mais bellas obras.
Tempos depois entregava a alma ao Creador.
Dezenove annos esteve occulto a parte inferior do painel.
Felizmente em 1850, se a memória não me falha, o artista João Caetano Ribeiro, um
dos mais notáveis seenographos que temos tido, encarregado de retocar a obra de José
Leandro, fez surgir, por meio de agentes chímicos, das camadas de betume da fatídica
montanha as ephigies da família real.
E a elle deve-se hoje o quadro, tal qual como saiu das mãos do pintor.
Olhando para aquelle painel e para outro que lhe estava ao lado, também pertencente à
capela imperial, o que representa a Ceia do Senhor, trabalho do artista Raymundo, via desfilar
diante de mim todo o nosso passado artístico.
O período colonial desenha-se-me na imaginação como Franz Post e Van Eckant, que
no domínio hollandez foram os primeiros que desbravaram aos europeus as fascinações da
linha e da cor da natureza tropical.
Lembrei-me de frei Ricardo do Pilar, esse pintor que se fez monge beneditino e que é
o ponto de partida donde surgiu a escola de Leandro Joaquim, José Leandro, Manoel da
Cunha, Raymundo e tantos outros.
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A figura gloriosa de Valentim da Fonseca, o qrtista daquella época que mais produziu,
passou-me pela mente com jaqueta preta, o seu calção de ganga, o seu capoto de cabeção e o
chapéu de três bicos.
Vi depois chegar às plagas guanabarenses a família Taunay, essa família abençoada, a
quem o Brazil do passado deve uma geração de artistas, e a do futuro há de dever, no actual
rebento della, ainda cheio de vigor e de crenças, a consolidação da grande obra de 13 de maio.
Ao lado de Nicolao Taunay, Augusto Taunay e Felix Taunay, via Grandjean de
Montigny, o architecto, Debret o pintor, e Ferrez o gravador.
E pergunto a mim próprio:
_ Estaremos hoje mais atrazados em artes que no período colonial e no tempo do Sr.
D. João VI?
Na próxima terça-feira, se Deus me der vida e saúde, hei de dizer o que penso a
respeito.
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ANEXO 2
Certidão de Óbito de Manoel Dias de Oliveira, 25 de abril de 1837.
Fonte: Arquivo Nacional.
Livro de funerais e mais sufrágios da Santa Casa de Misericórdia, de 1792 a 1854, folha
22.
Aos vinte e cinco de Abril de mil oitocentos e trinta e sete, faleceu com todos os Sacramentos
e sem testamento Manoel Dias de Oliveira, de idade de setenta e trez annos e quatro mezes e
trez dias, casado com Dona Maria Fiorencia de Jesus, deixou nove filhos seus universaes
herdeiros, de nomes, Luiz Manoel de Oliveira Dias, Candido Manoel de Oliveira Dias,
Joaquim Manoel de Oliveira Dias, Augusto Candido Dias, Emilia Justina Dias, Bernardina
Joaquina Dias, Candida Dias Manuel, Maria Candida Dias, e Carlota Joaquina Dias:
amortalhado em hábito franciscano, encomendado solemnemente pelo Reverendo Parocho, e
mais Sacerdotes e Sepultado de licença na Capella da Santa Casa de Misericórdia, de que fiz
este assento e assignei.
“O Coadjutor Hygino Avaro Delgado Pimenta”.
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