ulho-agosto de 2004 - ano 12 Revista Brasileira de CIÊNCIAS CRIMINAIS 49 BIBLIOTECA JURÍDICA -3 È J ^ CLÁUDIO GUIMARÃES .1 OBRA N°: 960
u lh o-agosto de 2004 - ano 12
Revista Brasileira de CINCIASCRIMINAIS
49
BIBLIOTECA JURDICA-3 J ^ CLUDIO GUIMARES
.1 OBRA N: 960
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Mi mt;i|t tiui tl)i ( IHuiiising von Albin Eser. Freiburg, 1995, p. 229-247.
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Princpio da ofensividadee crimes de perigo abstrato -
Uma Introduo ao debate sobre o bem jurdico e as
estruturas do delito
Lus GrecoMestre pela Universidade Ludwig Maximian, dc
Munique, e doutorando na mesma instituio.
Sum rio : I - Consideraes introdutrias - I I - O primeiro grupo de dvidas: o conceito de bem jurdico: 1. C onceito dogm tico e conceito poltico-crim inal de bem jurdico; 2. O prim eiro problema: possvel um conceito poltico-crim inal de bem jurdico?; 3. O segundo problema: esse conceito poltico-crim inal de bem jurdico pode ser condio necessria para a incriminao?; 4. O terceiro problema: como distinguir bens jurdicos coletivos autnticos de falsos bens jurdicos coletivos?; 5. Sntese das consideraes sobre o bem ju r d ico -III - O segundo grupo de dvidas: a estrutura do delito: 1. Introduo; 2. A primeira dvida: o que se deve entender por perigo concreto?; 3. A segunda dvida: crimes de perigo abstrato e falsos bens jurdicos coletivos; 4. O caminho promissor: abandono de solues globais em favor de um detalhado desenvolvimento das diversas estruturas do delito; 5. Sntese das consideraes sobre o bem jurdico; 6. Sntese das consideraes sobre a estrutura do delito IV C oncluso - Bibliografia.
R esum o: O autor tom a a cada vez difundida tese da inconstitucionalidade
dos crimes de perigo abstrato com o ponto de partida para um a anlise da teoria
do bem jurdico e das estruturas do delito (isto , dos problemas relativos aos cri
mes de perigo concreto e abstrato). Suas concluses cam inham no sentido da
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im possibilidade de critrios simples e globais, fazendo-se necessria u m a abor
dagem to diferenciada quanto os problem as que ela se prope a resolver.
Palavras-chave: Princpio da lesividade; bem jurdico; crimes de perigo; pe
rigo abstrato; fins do direito penal.
I - Consideraes introdutrias
Adoramos estar na moda. Isso vale para o que o vestimos, comemos, para
os lugares que freqentamos - por que no valeria para as teorias que defende
m os? Pois bem, no existe nada mais in, nada m ais faskion atualmente do que dizer
que os crimes de perigo abstrato seriam in totum inconstitucionais, por violarem
um certo princpio da lesividade ou ofensividade.1 Afinal, segundo esse princ
pio, no haveria crimes sem leso ou perigo concreto de leso a um bem jurdico.2
E como os crimes de perigo abstrato so justam ente aqueles cujo tipo se conside
1. O primeiro a defender esta tese entre ns, segundo vejo, foi Luiz Flvio Gomes, A contraveno do art. 32 da Lei das Contravenes Penais de perigo abstrato ou concreto? (A questo da in- constitucionalidade do perigo abstrato ou presumido), RBCCrim 8/69 et seq. Depois, seguiram-se Paulo Queiroz, Do carter subsidirio do direito penal, Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 112 e 150; Damsio de Jesus, Crimes de trnsito,4 . ed.,So Paulo: Saraiva, 2000, p. 2 et seq., Leiantitxicos, 6. ed., So Pauo: Saraiva,2000, p. 15 et seq.; Luiz Flvio Gomes, Norma ebemjuridico no direito penai, So Paulo: Ed. RT, 2002, p. 30; Maringela Magalhes Gomes, O principio da proporcionalidade no direito penal, So Paulo: Ed. RT, 2003, p. 120 et seq.; Alice Bianchini, Pressupostos materiais mnimos da tutela penal, So Paulo: Ed. RT,2003,p. 67 et seq. M ais contido, Angelo Roberto Ilha da Silva, Dos crimes depertgo abstrato emface da Constituio,SIoVtAo: Ed. RT,2003,p. 95 etseq., que admite alegitimidade destes crimes, desde que respeitados certos princpios.
A doutrina italiana, que a mais importante fonte de inspirao dos crticos nacionais do perigo abstrato, parece j h muito ter abanddhado a atitude meramente negativa em favor de uma anlise mais diferenciada (cf. Fiandaca e Musco, Dirittopenale. Parte generale, 3. ed., Bologna: Zanichelli, 1995, p. 176 etseq.; Fiore, Diritto penale. Parte generale, Torino:Utet, 1999, vol. I.,p . 183 etseq.; Mantovani,Dznrto/?w/e, 3- ed., Padova: Cedam, 1999, p. 232, n. 70a; Marinucci e Doicini, Corso di diritto penale,!. ed.,Milano: Giufr,1999,p.416 et seq.; Padovani, Diritto penale,h. ed., Milano: Giufir,1995,p.l72;Pagiiaro,PnW(z^tVn/0J?2i2/i?,8.ed.,Milano: Giuffr,2003,p.246 etseq.). Radical, ainda, Ferrajoli, Diritto e ragione, 5. ed., Roma/Bari: Laterza, 1996, p. 482 e 739.
2. Por exemplo, Luiz Flvio Gomes, Principio da ofensividade no direito penal, So Paulo: Ed. RT, 2002, p. 14.
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"P rin c p io da o fen siv id ad e " e crim es de oerigo ab strato
ra preenchido sem que o bem jurdico seja sequer exposto a um perigo concreto,
neles o dito princpio da lesividade estaria violado. U m a vez que este princpio
teria hierarquia constitucional,3 os crimes de perigo abstrato seriam simplesmente
contrrios Constituio. Estariam j dm inados de inconstitucionalidade, no
podendo m ais ser aplicados, apenas se passveis de reinterpretao em termos
condizentes com o princpio. N o raro se complementa essa argumentao com
algum as frm ulas tam bm da m oda: os crim es de perigo abstrato no seriam
condizentes com um direito penal garantista, com um direito penal m nim o.4
Violariam a presuno de inocncia, por presumirem um perigo, e o princpio da
culpabilidade. N o examinaremos essa segunda bateria de argumentos. O bjeto
das seguintes reflexes ser unicamente a primeira linha argumentativa, a saber, a
da m edida em que o princpio da lesividade pode levar a que se reconhea a in
constitucionalidade de todos os crimes de perigo abstrato.
O que m ais im pressiona em toda essa argum entao , ao lado de sua
evidente coeso lgica, o grau de convico daqueles que a desenvolvem . Por
trs dessa atitude est o ju stificado descontentam ento com um legislador que
no pra de criar novos crimes - para citar um exemplo recente, a nova L e i so
bre A rm as de Fogo define com o crime inafianvel a conduta de disparo de
arm a de fogo, com inando-lhe pena superior das leses corporais (art. 15, L ei
1 0 .826/2003).; O que me pergunto se este tipo de postura no quase to
descuidada e apressada quanto as norm as que a motivam , porque tal ju zo g lo
bal de condenao dos crim es de perigo abstrato repousa sobre um a srie de
3. C f.idem ,ibidem ,p.58etseq.Jesus, C rr^frra c ,c it.,p .30 ,querextra-lodoart. 98,1, da CF, que fala em infraes de menor potencial ofensivo.
4. C, quanto ao impreciso conceito de direito penal mnimo, Greco, Principio da subsidia- nedade no direito penal, Dicionrio de princpiosjurdicos, no prelo.
5. O dispositivo reza: Disparar arma de fogo ou acionar munio emlugar habitado ou em suas adjacncias, em viapblicaou em direo a ela, desde que essa conduta no tenha como finalidade a prtica de outro crime. Pena-recluso, de dois a quatro anos, e multa. Pargrafo nico. O crime previsto neste artigo inafianvel . Esta conduta era, at ento, mera contraveno penal.
D ire i to Pon.il 91
| h n*" Hi-titt iu mo seguras como parecem supor os
( t f t a u ;!* * .Im I, J.... . Hfl.tiiK nlOo
II i 11 ti i n i(* r grupo de dvidas: o conceito de bem ju-i i i l i i
"P rin c p io d a o fen siv id ad e" e crim es de perigo ab stra to
ciai na norm alidade da vida sexual . Q uanto a este conceito, no h qualquer
dvida ou problema. E le nada m ais que o interesse protegido por determ ina
da norm a, e onde houver uma norm a, haver um tal interesse.
M as quando discutimos os limites do poder legal de incriminar, no esse
o conceito de bem jurdico que nos interessa. Afinal, este conceito est comple
ta disposio do legislador. Com base neste conceito, s se poder dizer se algo
um bem jurdico se o legislador assim houver decidido. O que precisamos saber
se possvel trabalhar com um conceito no m ais dogmtico, e xa. poltico-cri
m inal e. bem jurdico; noutras palavras, se se pode esperar do conceito de bem
jurdico algum a eficcia no sentido de limitar o poder de punir do Estado.
N este trabalho, no trataremos do conceito dogm tico de bem jurdico,
m as unicamente do poltico-criminal. Tal no implica separar dogm tica de po~
ltica-criminal,10 nem desconhecer em que m edida o conceito dogm tico depen
der do conceito poltico-crim inal. A rigor, penso que o conceito dogm tico de
ver ser construdo nos m oldes que lhe sejam fornecidos pelo conceito poltico-
criminal, e alguns apontam entos nesse sentido sero feitos no correr do estudo.
Ocorre que, por razes de espao, concentrarei as atenes no exame do conceito
poltico-crim inal de bem jurdico, fazendo s observaes pontuais a respeito da
relevncia dogm tica dessa categoria poltico-criminal.
2. O -brimeiro problema: possvel um conceito poltico-criminal de hem jurdico?
a) O panorama: entre defensores e cticos
Prim eiram ente, u m curto panoram a sobre a discusso no B rasil e na A le
manha. N o Brasil, a doutrina tradicional, a rigor, nem sempre utilizar as palavras
9. Maurach, DeuschesStrafrecbt-BesondererTeil,4. ed.,Karlsruhe:C.F.Mller, 1964, p. 411.
10. O que no se mostra mais possvel desde o fundamental estudo de Roxin, Poltica criminale ststemajurdico-penal, 2. ed., Crad. Lus Greco, Riode Janeiro: Renovar,2002 { l .aedio publicada originalmente em 1970). M ais detalhes sobre essa abordagem chamada funcional , em Greco, Introduo dogmtica funcionalista: do delito", RBCCrim 32/120 et seq., 2000.
D ireito Penal 93
Lus G reco
bemjurdico, preferindo porvezes o term o objeto ou objetividade jurdica. Com o
esta diferena apenas terminolgica, pode-se dizer que ela j conhecia o concei
to de bem jurdico, mas em sua dim enso exclusivamente dogmtica. O u seja, a
nossa doutrina majoritria, acostumada exclusivamente com o conceito dogmtico
de bem jurdico, no costuma reconhecer qualquer funo crtica ou poltico-cri-
minal idia.11 E m geral, s a partir de investigaes m ais recentes se comeou a
propor um conceito de bem jurdico com o diretriz para o legislador.12 Segundo
vejo, pioneiro aqui foi Juarez Tavares.13
N a Alemanha, ao contrrio do que talvez se pense, a situao no to
diversa. A o lado de alguns defensores do conceito poltico-crim inal de bem
jurd ico ,14 h um a vasta doutrina m ajoritria que ou a rejeita de m odo expres-
11. Cf. Hungria, in: H U N G R IA , Nelson; FR A G O SO , Heleno. Comentrios ao Cdigo Penal.5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978. t. II, vol. I, p. 10 et seq.; Bruno, Direito penal. Parte geral,3. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1967, t. II, p. 212; Magalhes Noronha, Direito -penal, 32. ed., So Paulo: Saraiva, 1997, vol. I, p. 115; Fragoso, Lies de direitopenal. Parte geral, 5. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 268 et seq.
12. Uma pequena amostra, ordenada alfabeticamente, sem qualquer pretenso de ser completa: Nilo Batista, Introduo critica ao direito penal brasileiro, 4. ed.,Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 94 et seq.; Fernando Capez, Consentimento do ofendido e violncia desportiva, So Paulo; Saraiva, 2003,p. 114; Yuri Carneiro Coelho,Bemjurdico-penal. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, passim; Luiz Flvio Gomes, Norma e bemjurdico..., cit.; Ilha da Silva, op. cit., p. 29 et seq.; Magalhes Gomes, op. cit., p. 90 et seq.; Lus Rgis Prado, Bem jurdico-penale Constituio, 3. ed., So Paulo: Ed. RT, 2003, passim; Juarez Tavares, Teoria do injusto penal,2. ed., Belo Horizonte: Del Rey,2002,p. 197 et seq.
13. Com o estudo Critrios de selao de crimes ecominao de penas, RBCCrim, So Paulo,nmero especial de lanamento, p. 78 et seq,, 1992. ,
14. Por exemplo, Freund, in: H E IN T S C H E L -H E IN E G G , Bem d von (Ed.). Mnchener Kommentarzum Strafgesetzbuch. Mnchen: Beck, 2003. vor 1 3 ff/4 2 et seq.; Hassemer, Grundlinien einer personalen Rechtsgutslehre, in: P H ILIPS; S C H O L L E R {&.).Jenseits des Funktionalismus. Heidelberg: Decker u. Mller, 1989. p. 91-92); Darfes Straftatengeben, die ein strafrechdiches Rechtsgut nicht in Mtleidenschaft ziehen?, in: H E F E N D E H L ; W O H LER S;v.H IR SC H (Eds.).Z )?>fo i:to(g'Z/j^cn. BadenBaden:Nom os,2003.p. 64,para o qual proibies penais sem bem jurdico seriam terrorismo estatal"; Herendehl, Kolektive Rechtsgterim Strafrecht, Kln: Heymanns etc.,2002,p. 18 er seq.; D as Rechtsgut ais materialer Angelpunkt einer Strafnorm, in: H E F E N D E H L ; W O H L E R S: v. H IR S C H (Eds.). Die Rechtsgutstheorie. Baden Baden: N om os,2003. p. 119 et seq.;DieTagung aus derPerspektive eines Rechtsgutsbefiinvorters, in: H E F E N D E H L ; W O H L E R S; v. H IR SC H (Eds.). Die
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"P rin c p io d a o fen siv id ad e" e crim es de perigo ab stra ta
so ,15 ou se m antm num a ctica reserva.16 E a C orte C on stitucion al alem ,
que teve em 1994 a oportunidad e de aplicar a teoria do bem jurdico ao exa-
R e c b t s g u s t h e o r ie .Baden: N om os,2003.p.3 8 6 etseq.; Otto, Grundkurs Strafrecht,6.ed., Berlin/NewYork: DeGruyter, 2000, 1/40; Roxin, Wandlung der S trafrechtswissenschaft, JA , p. 223,1980; Zur Entwicklung der Kriminalpolitik seit den Alternativ-Encwrfen,J/, p. 546,1980; Rudolphi,Die verschiedenenAspekte des Rechtsgutsbegriffs , FestschriftfrHomg, Gottingeiv. O tto Schwarz 8cCo., 1970, p. 163 et seq.; SystematischerKommentar, 6. ed., Neuwied: Luchterhand etc., 1997, vor 1/8; Schnemann, Strafrechtsdogmatik ais Wissenschaft, in: SC H N E M A N N er ai. (JL
L u s G reco
m inar a problem tica da proibio d o porte de haxixe para uso pessoal, fez
questo de no o fazer.17 D esde essa deciso pode-se afirmar que os defensores
do conceito poltico-crim inal de bem jurd ico se encontram na defensiva, ha
vendo mesmo quem brinque com a m etfora de estar o conceito de bem jurd i
co moribundo, no leito de morte, ou declarado m orto por seus opositores.18
A inda assim, o conceito poltico-crim inal de bem jurdico teve, ao menos
historicam ente, uma grande conquista', orientou am plas descrim inalizaes no
direito penal sexual alemo. Para lem brar unicamente o exemplo mais significati
vo: na Alemanha, o homossexualismo masculino era uma conduta punvel at a
dcada de 70. A lguns autores valeram -se de um conceito crtico, poltico-crim i
nal de bem jurdico para dizer que tais incriminaes de condutas m eram ente
im orais no tutelavam bem jurdico a lgum , sendo, portanto, ilegtim as.19 E ssa
argumentao acabou por convencer o legislador, que aboliu o referido dispositi
vo, iio lado de muitos outros. M a s m esm o essa conquista atualmente questiona-
dii [)oi muitos. Para Frisch20 e Stratenw erth,21 por exemplo, o conceito de bem
|m idii o aqui pouco fez; a descriminalizao do homossexualismo m asculino de-
niMMiii ilc mudanas culturais, elas sim decisivas.
M,u' ii!|;uns autores no v em no bem jurd ico qualquer contedo
liliruli.MHIr, tKVicnlido que lhe atribudo por muitos, e sim um m ecanism o que
Jh l , lln ltn ' itiji i M , V 27 ct &eq.; Jesch eck e W eigend, Lehrbuch des S tra freck ts-All^emrMin i l l , i u l , Un lin 1 hnti kcr W um blot, 1996,p. 7etseq .;W essekeB eu lk e ,
Allflciiioiuei iu l , * I o l , I Im iotlicin t . !r,M u lle r ,2 0 0 3 ,n .9 .
17. BV alt; cm NJW W . p , \S T l et wq.
18. C fosdoiadflvn iic im ultnon iT ilopollfiio c'rm m ddebem jurdicoH etendehl,D asR echtsgut ais m aterialer...",cr.,p. 1 1 c Hi liltiim iitnii,"1 ) ih Rcchtsgterschutzprinzip...,c it .,p . 133.
19. E m especial Herbcnjl^oi, S/iafyctcfz^r/jringurid Rsebtsgterscutzei Si/ichkeitsdelikten,Stuttgart: Ferdinand Enke Wrlug, 10^7, p, 6 ct seq.; Roxin, Ttenchaft und Tatherrschaji, Hamburg: Cram de Gruyter, 1963, p. 41.} ct 'icq ,,! lanack/Einptiehltessich.die Grenzendes Sexualstrafirechtsneuzubestimmen?, (hiCachtcn Afrder! 47 Deutschenjuristentag,Beck, 1968, n. 29 et seq.
20. F risch ,R ech tsgu t,R ech t,D e!ik sstruk tur,.. ,c it ., p. 218.
21 . Stratenw ertb ,Zum B eg r iff ... ,c it .,p . 3 8 9 ct seq.
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"P rin c ip io da o ten siv id ad e" e crim es de p erig o ab strato
mais e mais serve de base para legitimar a expanso do direito penal.22 Podemos
mencionar aqui Jakobs, para o qual a idia de bem jurdico pode no mxim o che-
o-ar a um direito penai de inimigo, oposto ao direito penal cidado, sendo a fina
lidade deste no a proteo de bens jurdicos, e sim a maximizao de esferas de
liberdade,23 e Volk, que verifica que o conceito de bem jurdico mudou completa
mente de funo, abandonando a funo crtica para passar a fundamentar as novas
incriminaes do direito penal econmico e ambiental.24
Enfim , o conceito de bemjurdico pode ser tudo, menos amplamente aceito.
Pelo contrrio, tanto no Brasil, com o na A lem anha, ele defendido por um a
doutrina minoritria. A nica diferena entre ns e os alemes parece ser que aqui
est na m oda falar de bem jurdico, enquanto l a m oda agora recus-lo. Tais
observaes no significam, porm, que essa doutrina minoritria no possa ter
razo; elas valem, ainda assim , como primeiro sinal de cuidado, no sentido de que
melhor parar e refletir a respeito de nossas certezas. E o que faremos a seguir.
b) A problem tica do conceito poltico-crim inal de bem jurdico : onde
fundam ent-lo?
Q uerem os um conceito de bem jurdico capaz de restringir o poder de
incriminar do legislador.2S O problem a , assim , de onde extra-lo. N a A lem a-
22. Este perigo, em especial no que se refere a bens jurdicos coletivos, apontado mesmo por defensores do conceito poltico-criminal de bem j urdico, como repetidamente faz Hassemer, Grundlinien einer personalen.. cit., p. 89; Symbolisches S trafrechtund Rechtsgterchutz, N SZ , p. 557,1989; Einfhmng in die Grundlagen des Strajrechts, 2. ed., Mnchen: Beck, 1990, p. 275; Strafrechtswissenschaft in der Bundesrepublik Deutschand, in: S IM O N (Ed.). Rechtswissenschaft in derBonner Republik. Frankfurt a. M .: Suhrkamp, 1994. p. 299 e 307; Perspektiven einer neuen Kriminalpoitik, StV, p. 484,1995.
23. Jakobs, Kriminalisierung im Vorfeld..., cit., p. 756.
24. Volk, Strafrechtund Wirtschaftslcriminaiitt^.yZ, p. 88,1982.
25. Estamos abstraindo da pergunta, tambm relevante, quanto a se esta limitao ao poder do legislador tem necessariamente de ser prestada pelo conceito de bemjurdico, e no por alternativas. Uma alternativa que vem ganhando cada vez mais adeptos a teoria da leso a direitos, que remonta iTtneib2.\{c.Ye.\izib/ich.,R.evisionderGrundstzeundGrunbegriffdespositivenpein[ichenRchts, Erfurt: HenningscheBuchhandlung, 1799,reimp. Aalen, 1966, vol. I,p. f>5',Rn)isionderGrundstze und Gnmdbegriffe des potiven peinlcben Rechts, Tasche: Chemnitz, 1800,reimp. Aalen, 1966, vol.
Direito Penai 9 7
L u s G reco
ului, as propostas so as mais variadas. Existem autores que buscam inspirao na
filosofia de Kant e Fichte,26 com o outros que a procuram na filosofia da lingua
gem anglo-saxnica.2' Pode-se observar, contudo, que a maior parte destas pro
postas ficou sem continuidade. U m a nica delas parece de algum modo prospe
rar: a de definir o bem jurdico com arrimo na Constituio.2S Estar-se-ia, assim,
diante de um conceito poltico-criminal de bem jurdico vinculante para o legisla
dor, porque ele seria extrado diretamente da Constituio, sendo portanto dotado
de hierarquia constitucional. E sse parece ser igualmente o caminho preferido pelos
defensores brasileiros do conceito poltico-criminal de bem jurdico.29
c) A problemtica do conceito constitucional de bem jurdico (I): o car
ter aberto e impreciso das Constituies
O problema que tal conceito constitucional de bem jurdico coloca salta aos
olhos j primeira vista. Se a C onstituio necessariamente aberta, se inmeros
valores, m esm o conflitantes, encontram acolhida em seu seio, como se pode flar
numa limitao ao poder do legislador? Tais dvidas, que so colocadas mesmo
II, p. 12 ec seq.; Lehrbuch des gemeinen in Deutschland gltigenpeinlichen Rechts, 14. ed., Giessen: Heyer, 1847, 21); entre os autores atuais, defende posicionamento bastante similar teoria da leso a direito Naucke, Zu Feuerbachs S traftarbegriff, berdieZerbrechlichkeitdesrechtstaatlichen Strafrechts, Baden Baden: N om os, 2000, p. 191 et seq.; mais decididos, Klaus Giinther, MgchkeiteneinerdiskursethischenBegriindurigdes Strafrechts ",in :JU N G et aI.(Eds.).i?
"P rin c p io d a o fen siv id ad e " e crim es de p erig o ab stra to
em face da L e i Fundam ental alem,30 aplicam -se com muito m ais razo diante
de um a C onstituio analtica como a do Brasil. Exem plificando: nem m esm o a
incriminao do homossexualismo poderia ser deslegitim ada com base exclusiva
na Constituio, porque esta tem dispositivos tutelando a famlia (art. 226 et seq.)
e a m oralidade (art. 221, IV ). Foi similar, alis, a argumentao da C orte C o n s
titucional alem, quando, em 1957, se viu obrigada a examinar a constitucionali-
dade da proibio, que foi decidida em sentido afirmativo.31 A pergunta , por
tanto, se a Constituio-, aberta como ela reconhecidamente , pode excluir algum inte
resse, algum valor, para consider-lo impassvel de tutela por meio do direito penal.
Parece-m e que, apesar das consideraes acim a tecidas, a resposta deve
recair em sentido positivo, porque, por exemplo, uma norm a como a L e i de Prote
o do Sangue Alem o e da H onra A lem , de 15.09.1935, que, em seus 1 . e
2 ., proibia a maculao da raa (Rassenschande) pelo casamento ou pelo coito
entre alemes e judeus,32 seria m anifestamente ilegtima em face da ordem cons
titucional tanto alem, com o brasileira, vez que ambas vedam discrim inaes por
motivos de raa ou origem.33 M ais: mesm o a norma que probe o homossexualismo
poderia ser criticada com argumentos de direito constitucional, atinentes a direi
tos fundamentais como a liberdade, a privacidade e a intimidade, que teriam de
prevalecer sobre a tutela constitucional da famlia e da moralidade.
M as, um a vez que se responda a essa pergunta desta maneira, em sentido
afirmativo, cai-se imediatam ente em um novo problema: a argumentao crtica
acima tecida aparentemente dispensa o conceito de bem jurdico. O que se utili
zaram foram valores e princpios constitucionais, e s - se o leitor duvidar, releia
30. Cf.,levando em conta a doutrina do direito consdrucional,Appel, VerfassungundStrafe, cit., p. 476; de acordo tambm Frisch, Rechtsgut, Recht, Delikcsstruktur...", cit., p. 217.
31. BVerfGE 6 (1957), p. 389 et seq.
32. A respeito, c S\gg,DasRassestrajrechtin Dentschlandincfenjahren 1935-1945utiterbesonderer Berchichtigung des Blutschutzgesetzes^ Aarau: Sauerinder, 1951, p. 49 et seq.
33. Nesse sentido tambm Roxin, Strafrecht, cit., 2/11 (sem, claio, falar da Constituio brasileira).
Direito Penal 99
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o pargrafo anterior. N o seria o conceito de bem jurdico algo dispensvel? N o
bastaria afirmar que o direito penal s pode tutelar valores acolhidos, ou ao menos
no-vedados, pela Constituio? C om isso estamos diante do prxim o problema,
que diz respeito necessidade ou no de um conceito constitucional de bem jur
dico ao lado da Constituio de que j dispomos.
d) A problemtica do conceito constitucional de b em jurd ico (II): im
prescindvel ou mera duplicao conceituai?
O conceito de bem jurdico teria alguma funo ao lado do conjunto de
valores constitucionais? N o se poderia dizer que o fim do direito penal pro
teger valores constitucionais, sem precisar propor um novo termo, tornando sem
razo de ser as interminveis discusses a seu respeito? Parece-m e que grande
parte dos defensores do conceito de b em jurd ico , especialm ente entre ns, o
utiliza com o sinnim o d esta d escrio valor acolhido ou no vedado pela
C onstitu io, apesar de isso fazer do conceito algo dispensvel. N o seria,
portanto, m ais adequado renunciar ao conceito de bem jurdco, faar unicamente
em tutela de valores constitucionais, e com isso sim plificar consideravelmente
a teoria geral do direito penal?
C reio que a resposta deve recair em sentido negativo, porque o bem ju-
rdico-penal, apesar de ter de ser arrim ado na Constituio - afinal, doutro modo,
no poderia lim itar o poder do legislador , deve ser necessariam ente m ais res
trito do que o conjunto dos valores constitucionais. N em tudo que a C onstitui
o acolhe em seu bojo pode ser objeto de tutela pelo direito penal. A palavra-
chave aqui o princpio da subsidiariedade, ou da ultima ratio , ou da interveno
mnima: como o direito penal d ispe de sanes especialm ente graves, no basta
um a afetao de qualquer interesse de carter nfim o para legitim ar a interven
o penal.34 A nossa C onstituio protege at m esm o os interesses do C olgio
34. Observe-se que no trabalhei aqui com as tradicionais formulaes do princpio, segundo as quais a pena seria a mais grave das sanes, qual portanto s se poderia recorrer uma vezque o legislador no dispusesse de nenhum outro meio menos grave, como o direito administrativo
1 0 0 R BC C R M 49 - 2004
"P rin c p io d a o fen siv id ad e " e crim es de perigo ab strato
Pedro II , ao qual dedica dispositivo prprio, em que declara: O C olgio Pedro
II, localizado na C idade do R io de Janeiro, ser m antido na rbita federal (art.
242, 2 .) . E necessrio, muito m ais, que o bem seja dotado de algum a rele
vncia, de fundam ental relevncia, de relevncia tamanha que se possa ju stifi
car a gravidade da sano que a sua violao em regra acarreta. D a por que pre
cisam os de um a definio de bem jurdico m ais restrita do que a m era refern
cia a valores constitucionais.
e) A problemtica do conceito constitucional de bem jurdico (III): como
defini-lo?
C om o que estam os diante do seguinte desafio: se o conceito de bem jur
dico no pode servir de mero espelho da Constituio, m as tem de necessaria
m ente excluir algo, com o defini-lo? A qui, as propostas doutrinrias realmente
abundam, e ao contrrio do que declara o conhecido brocardo latino, esta abun
dncia de fato prejudica, porque ela im plica em confuso, em desorientao, quan
do o que se quer justam ente um parmetro para orientar o legislador. J se pro
puseram as m ais diversas definies de bem jurdico, que vo desde interesse
juridicam ente protegido35 a valor objetivo que a lei reconhece com o necessita-
ou o direito civil. E de se dar razo a Tiedemann, que aponta que, muitas vezes, estes outros ramosdodireitopodem ser bem mais limitadores da liberdade do que o direito penal (Tiedemann, Tatbestandsfunktionen im Nebenstrafreckt, Tbingen: M ohr-Siebeck, 1969, p. 145, n. 22; "Wirtschaftskriminalitt ais Problem der Gesetzgebung, In :T IE D E M A N N , Klaus (Ed.). Die Verbrecben in der Wirtscbaft, 2. Aufl. Karlsruhe: C . F. Mller, 1972. p. 9 et seq., SS. 16-17; Wirtschaftsstrafrecht - Einfuhrung und Ubersicht, / ^ , p. 690,1989; Strafrecht in der Marktwirtschaft. In: K PE R ; W E L P (Eds.). Festschriftfr Stres und Wessels. Heidelberg: C. F. M ller, 1993. p. 530-531; de acordo tambm Schnemann, Alternative Kontrolle der W irtschaftskrim ininalitt , in: D O R N S E IF E R et al. (Eds.). Gedchtnisschriftfr Armin Kaufmann. Koln: Heymanns etc., 1989. p. 632; Hefendehl, Koileklive Rechtsger..., cit., p. 234). Parece-me, portanto, que um a tarefa urgente diante da qual a moderna doutrina do direito penai se encontra reestudar o princpio da subsidiariedade, levando em considerao este problema. Para mais reflexes, c Greco, Princpio da subsidiariedade..., cit.
35. Principalmente Liszt, D er Begriff des Rechtsguts im Strafrecht und in der Encyklopdie der Rechtswissenschaft, Z StW 8/133 et seq., 1888; Liszt e Schmidt, Lehrbuch des Deutscben Strafrechts, 26. ed., Berlin/Leipzig: DeGruyter, 1932, p. 4. Similar, Figueiredo Dias, A questo
D ireito Penal 1 0 1
L u s G reco
iln d* "vsilor dem entar da vida em comunidade,3' unidade funcio-
tiijl i< k u IV ^M C lcnso de respeito,39 relao real da pessoa com um valor con-
i id o iTionhccido pela comunidade40 etc.
Creio que este cansativo debate , em grande medida, term inolgico, e
talvez seja por isso que se observa um crescente desinteresse da doutrina a seu
respeito. Tem -se a impresso de estarem todos a dizer aproximadamente a m es
ma coisa, m as valendo-se de palavras distintas. N a verdade, parece-me que o es
sencial , de fato, compreender que existem nada mais do que trs questes fun
damentais no momento de definir o conceito de bem jurdico. A primeira delas
diz respeito a que este interesse, valor, unidade funcional, pretenso de respeito
etc. seja de importncia fundam ental para algum, de modo que a existncia ou o
bem -estar deste algum estariam severam ente ameaados caso a incriminao
inexistisse. A qui, no hproblem a algum ,parece haver grande acordo ou ao menos
possibilidade de acordo na doutrina. A segunda questo diz respeito a este men
cionado algum: para quem o bem jurdico deve ter importncia fundamental?
Para os indivduos, para a coletividade ou para os dois?
E ste tp ico calorosam ente debatido atualm ente na A lem anha. So
imaginveis trs posies, apesar de, na prtica, serem defendidas unicamente
duas. D e um lado, encontram -se os adeptos da cham ada concepo dualista de
do contedo material do conceito de crime (ou fato punvel), in: Questes fundamentais de direito penal revisitadas. So Paulo: Ed. RT, 1999. p. 63.
36. Mezger, Strafrecbt-Ein Lehrbuch, 3. ed., Berlin: Duncker ScHumblot, 1949, p.201. Similar, Bitencourt, Tratado de direito penal, 8. ed., So Paulo: Saraiva,2003, p. 204; Carneiro Coelho, op. d t.,p . 130.
37. Welzei, Dasdeutsche Strafrecbt, 11. ed., Beriin: DeGruyter, 1969,p. 1-2.
38. Rudolphi, Die verschiedenen Aspeke..., cit., p. 163; de acordo, Fiandaca e Musco, op. cit.,p.5.
39. Schmidhuser,
"P rin c p io da o ten siv id ad e" e crim es de p erig o ab stra to
bemjurdico, entre os quais se encontram Tiedem ann,41 Kuhlen,42 Schnemann,43
H efendehl44 e, em Portugal, Figueiredo D ias,45 e que parece ser a posio do
minante: para esta concepo, h bens jurdicos tanto individuais, quanto cole
tivos, e no se pode reduzir os bens jurdicos individuais sua dim enso de in
teresse coletivo e nem vice-versa os bens jurdicos coletivos sua dim enso de
interesse individual. Bens jurdicos individuais e coletivos seriam am bos igual
m ente legtim os e adm issveis. D o outro lado, encontram -se os que pugnam
por uma concepo monista-pessoai de bemjurdico. Para estes autores, atualmen
te encabeados por H assem er, ponto de partida so os interesses individuais.46
Bens jurdicos da coletividade s podem ser reconhecidos na m edida em que
referveis a indivduos concretos. A coletividade por si s no objeto de prote
o do direito penal. A terceira posio se ria m onista-estatal ou monista-
coletivista, para a qual todos os bens jurdicos sero reflexo de um interesse do
Estado ou da coletividade. Bens jurdicos individuais no seriam reconhecveis
enquanto tais, porque o indivduo s seria proteg ido na m edida em que isso
interessasse ao E stad o ou ao coletivo. C om o dissem os, esta posio, pelo seu
evidente autoritarism o, no m ais praticam ente sustentada. E la foi apaixo-
41. Tiedemann, Tatbestands/ifzktionen...,cit.,p. 119 ttseq.;DieNeuordnungdes Umzeltstrajrechts, Beriin/NewYorkDeGruyter,1980,p.28;Wrirtschaftsstrafrecht...,cit.,p.691; Wirtschqftsbetrug, Berlin/NewYork:DeGruyter, 1999, p. XII.
42. Kuhlen, Umweltstraftrecht - Aufder Suche nach einer neuen Dogmatik', ZStWlOS/704, 1993.
43. Schnemann, Kritische Anmerkungen zur geistigen Situation der deutschen Strafrechtswissenschaft,G/, p. 208 et seq., 1994, em spera polmica contrao conceito monista- pessoai de bemjurdico.
44. Hefendehl,Kollektive Rscbtsgter...,cit.,p. 73.
45. Figueiredo Dias, op. cit., p. 63 e 74.
46. Hassemer, Grundlinien einer personalen..., cit., p. 91-92; Kennzeidien und Crisen des modemen Strafrechts, ZRP,p.379,1992; de acordo, tambm, Hohmann,VondenKonsequenzen einerpersonalenRechtsgutsbesmmungimUmweltstrafrecht, GA, p. 76 etseq.,1992;Stchelin, op. cit., p. 100. Entre ns, decidido e enftico, Tavares, Teoria do injusto..., cit., p. 216 et seq.; prximos, ademais, Zaffaroni e Pierangeli, Manual de direito penai brasileiro, So Paulo: Ed. RT, 1997, p. 464 et seq., n. 236.
Direito Peno! 103
L u s G reco
nadam ente propugnada por B indin g47 e, na atualidade, vejo em W eigend seu
nico defensor na A lem anha.48'49
Para se utilizar um exemplo concreto: uma teoria dualista no ter qual
quer dificuldade em reconhecer o meio ambiente como um bem jurdico coletivo,
nem sempre redutvel a bens jurdicos individuais.S0 j uma teoria m onista-pes-
soal poder ter problemas com este conceito, havendo mesm o quem negue a exis
tncia de um bem jurdico coletivo m eio ambiente, considerando todas as infra
es ambientais meros crimes de perigo abstrato contra a vida ou a integridade
fsica de pessoas concretas.51
Creio que a teoria m onista-pessoal do bem jurdico, por interessante que
seja, no pode ser aceita, porque ela lana sobre os bens jurdicos coletivos um
estigm a que no lhes faz verdadeira justia. Bens jurdicos coletivos no so uma
novidade no direito penal. E les no foram introduzidos com o m oderno direito
penai ambiental e econmico. O s crimes de falsidade de moeda e de corrupo,
existentes em toda e qualquer legislao penal desde tempos esquecidos, tutelam
bens jurdicos coletivos, e nada h de errado com isso. O problema dos bens jur
dicos coletivos no est em referi-los a indivduos, e sim, como veremos abaixo,
em distinguir bens jurdicos coletivos autnticos de meras retificaes de bens
47. Binding,DieNormenundihre bertretung,4. ed., Leipzig: FelixMeiner, 1922, vo. I,p . 358.
48. Weigend, ber dieBegriindungder Straflosigkeitbei Einwilligung des Betroffenen, ZStW 98/59,1986.
49. Prximos, tambm, Srgio Salomo Shecariae Alceu Corra Jr ./A finalidade da sano penal, Penas Constituio, So Paulo: E d .R T , 1995, p. 44: a funo da pena a de proteger os bens jurdicos para garantir a sobrevivncia do Estado.
50. Nesse sentido, enfaticamente Schnemann, Krische Anmerkungen... , cit., p. 209; Zur Dogmatikund Krirmnalpolitik des U mweitstrafrechts', in: S C H M O L L E R (Ed.). Festscriftfr Otto Triffterer. W ien/New York: Springer, 1996. p. 437 et seq.; Vom Unterschicht- zum Oberschichtstrafrecht. E in Paradigmawechsel im moralischen Anspruch?, in: K H N E ; M F/AZW A (Ed.). Ahe Strafrecbtsstruktvren und neue gesellschaftiicbe Herausforderung inJapan undDtuischiand. Berlin: Duncker ScHumblot, 2000. p. 27; tTizzmvn.TL,DieNeuordnimgdes..., cit., p. 10,18 e28; Wirtschaftsstrarecht...", cit., p. 693; Kuhlen, "Umwei ts tr aftre cht... , dt.,p. 70S; Heiende-hl, Ko/fekiive Rectsgter..., cit., p. 307.
51. Assim, especialmente,Hohmann, op. cit., p. 82.
1 0 4 R B C C R IM 49 - 2004
"P rin c p io da o fen sv id ad e " e crim es de perigo ab stra to
jurdicos individuais. Veremos que, ao contrrio do que defende a teoria m onista-
pessoal, quanto menos um bem jurdico coletivo se deixar referir a indivduos,
m enos problemtico eie ser. A lm do m ais, nem sempre ser possvel referir o
bem jurdico coletivo aos interesses de indivduos concretos. Para dar um exem
plo:52 a pretenso de arrecadar os im postos devidos continua a ser um bem jurd i
co, ainda que o dinheiro obtido seja utilizado para comprar tanques de guerra e
no para a construo de jardins de infncia. D a m esm a forma, e agora o exemplo
m eu, pouco im porta que nenhum interesse individual seja afetado pela conduta
do particular que em segredo gratifica o funcionrio pblico para que este realize,
j depois do expediente, um ato vinculado a que o pardcular tinha de qualquer
form a direito, mas que s seria praticado bem depois. Se ainda assim, apesar de
ausente qualquer referncia a interesses individuais, os defensores da teoria pes-
soal-m onista quiserem adm itir a punibilidade nestes dois casos (alegando que,
por exemplo, a arrecadao de im postos ou a honestidade da Adm inistrao afe
ta, bastante indiretamente, interesses individuais), ento acabam por trabalhar com
uma noo de referncia indireta ao indivduo to ampla, que s parecem diferir
da concepo dualista no que se refere terminologia. O u seja: temos de p a rtir de
uma teoria dualista do bem jurdico.
Resolvidas estas duas questes, a da fundamental relevncia daquilo que se
entenda por bem jurdico e a do titular do bem jurdico como os indivduos e a co
letividade, resta um a terceira: a de se o bem jurdico deve ser entendido como rea
lidade f tica ou com o um a entidade meramente Ideal. Entre as definies acima
mencionadas, algumas h que com bastante clareza consideram o bem jurdico um
ideal: em especial as que se referem a valores ou pretenso de respeito. J as que
se referem a uma 'unidade social funcional ou a uma relao real buscam fixar o
bem jurdico na realidade.53 M uitas vezes, porm, no da definio do conceito de
52. Retirado de Amelung, op. cit., p. 162.
53. Detalhes sobre a discusso em YQtn&\A,KollekiveRechtsgiiter..., c it, p. 27 et seq.
Oimtu P-enal 105
L u s G reco
bemjurdico, e sim da explicao que d o autor sobre as relaes entre bemjurdico
e objeto da ao que veremos se defende ele um conceito realista ou idealista de
bem jurdico. Assim , por exemplo, Liszt, que definia bem jurdico como interesse
juridicamente protegido, parece primeira vista trabalhar com um conceito realis
ta, mas, ao diferenciar bem jurdico e objeto da ao, diz que s o objeto da ao
pode ser lesionado, enquanto o b em jurd ico , encontrando-se alm do mundo
fenomnico, ou seja, alm do domnio da lei causai, impassvel de qualquer agres
so.54 Esta questo no , ao contrrio do que possa parecer, meramente terminolgica,
porque ela est estreitamente ligada ao problema dos bens jurdicos aparentes ou fal
sos, de que abaixo trataremos. Sem adiantar o que logo alm se ir dizer, declare-se
unicamente que definies de bem jurdico que o transformem em uma entidade
ideal, em um valor, em algo espiritual, desmaterializado, so indesejveis, porque
elas aumentam as possibilidades de que se postulem bens jurdicos la volont., para
legitim ar qualquer norm a que se deseje.55 O rdem pblica, segurana pblica,
incolumidade pblica, confiana, tudo isso pode ser mais facilmente entendido como
bemjurdico se o conceito deste se referir am eras entidades ideais, e no a dados con
cretos. Por isso, parece-me mais desejvel trabalhar com um conceito de bemjurdico
como realidade, posio que entre ns defende Juarez Tavares.56 Note-se que realida
de no o mesmo que realidade emprica, porque o mundo real no se esgota naquilo
que se pode verificar por meio da investigao das cincias naturais:57 a honra, por
exemplo, uma realidade, apesar de no lhe ser essencial o aspecto emprico.
Resolvidas estas trs questes, a sim o resto torna-se problema terminolgico.
Podemos flar em interesses, funes, dados, elementos, no que quisermos. Prero
54. Liszt, Der Begriff des Rechtsguts... , cit., p. 153.
55. Assim, apontando a proximidade entre a concepo ideal de bem jurdico e bens jurdicos falsos, Amelung, op.cit.,p. 173 et seq., e Hefendehl, Kolektive Rechtsgtzr..., cit., p. 33.
56. Cf.Tavares,Critrios de selaode crimes...", cit., p. 79. Cf. ademais Hefendehl, Kolkktive Recbtsgiiter..., cit., p. 28; Amelung, op. cit., p. 166.
57. Por exemplo, Hefendehl, Kollektive Rfchtsgter..., cit., p. 28.
1 0 6 RBC C R IM 49 - 2004
"P rin c p io da o fen siv id ad e" e crim es de perigo ab strato
usar o termo dados, pela sua maior conotao ftica:58 bens jurdicos seriam, por
tanto, dados fundamentais para a realizao pessoal dos indivduos ou para a subsistn
cia do sistema social, nos limites de uma ordem constitucional. Por isso que o fato de o
Colgio Pedro II ser mantido na rbita federal no um bemjurdico, enquanto a
vida, a liberdade, a autenticidade da moeda e a probidade da Administrao59 o so.
3. O segundo problema: esse conceito poltico-criminal de bem jurdico pode ser condio necessria para a incriminao?
A gora tocaremos numa das questes mais delicadas em torno da teoria do
bem jurdico . D efin im os bem jurdico com o dado necessrio para a realizao
pessoal e para a subsistncia de um sistema social. M as estar o direito penal adstrito
exclusiva proteo de bens jurdicos? Ser-lhe- realmente vedado incriminar
uma conduta para proteger algo que no um bem jurdico?
E m regra, especialmente no Brasil, quem se vale de um conceito poltico-
criminal de bem jurdico no duvida desta vedao. Lembremos unicamente a afir
mao de Hassemer, segundo a qual incriminaes sem bens jurdicos no passariam
de terrorismo estatal .60 Afinal, de que valeria a idia de bemjurdico, se o legislador
no estivesse adstrito a ela? J na Alemanha, a situao comea a modificar-se. Pou
cos, mas cada vez mais autores, mesmo entre os defensores da teoria poitico-crimi-
nal do bemjurdico, comeam a aceitar, ainda que em carter excepcional, incriminaes
sem bem jurdico, por alguns chamadas de delitos de comportamento.61
58. No se ignorara as crticas utilizao deste termo (por exemplo, Stratenwerth, Zum Begriff... , cit., p. 381), mas, como dissemos, elas no atingem o cerne da questo, uma vez que ao falar em dados quero apenas sugerir que o bem jurdico uma realidade, e que no pode ser fruto da simples fantasia do legislador (ou do intrprete).
59. Quanto a estes dois ltimos bens jurdicos coletivos, h porm sria controvrsia doutrinria a respeito da formulao adequada. Cf. a nota 143, sobre o segundo deies, por exemplo.
60. Hassemer, D arf es Straftaten geben..., cit., p. 64.
61. Entre os defensores do conceito de bemjurdico, mencionem-se Hefendehl, Kollektive Rscbtsgter...,cit., p. 52 et seq. (em especial p. 64 e p. 73);DasRechtsgutals materialer...,cit.,p.
Direito Penai 1 0 7
L u s G reco
Coloquem os um exemplo. O art. 32 da L e i 9.605/1998 erige em crime a
conduta de praticar ato de abuso, m aus-tratos, ferir ou mutilar anim ais silves
tres, domsticos ou domesticados, nativos ou exticos. Se algum pega seu co e
o tortura, para depois abandon-lo m utilado, deixando-o agonizar por horas, no
consigo duvidar do carter criminoso desta conduta. Contudo, tampouco consi
go vislumbrar aqui qualquer bem jurdico afetado, porque definimos bem jurdi
co como dado fundamental de titularidade ou do indivduo, ou da coletividade.
C ausar horrveis sofrimentos a um co no afeta de m odo algum qualquer esfera
individual. E tampouco se pode dizer que este comportamento fira bens jurdi
cos da coletividade.
Talvez o leitor objete: como no? A revolta que sentimos diante de tal
com portam ento d indcios da existncia de um bem jurdico, sim. E le poderia
formular-se como o sentimento de solidariedade para com certos anim ais supe
riores. Este sentimento tratar-se-ia, obviamente, de um bem jurdico coletivo.
Tal formulao, no o nego, seria possvel e defensvel. E la alis fora pro
posta por Roxin na terceira edio de seu tratado.62 Ocorre que ela cria um grande
problema, talvez maior do que aquele que ela pretende solucionar, porque a partir
do m omento em que sentimentos de revolta pela prtica de dado comportamen
to servem de base para legitim ar a sua punio, pode-se at m esm o declarar o
hom ossexualism o um a conduta punvel, vez que h m uitssim as pessoas que
m anifestam similar revolta diante de tal comportamento. O u, para usar um exem
plo de Jakobs, at a violao de normas de etiqueta m esa poderia ser considera
da um crime:63 im agine-se a revolta que no decorria do fato de algum liberar
sonoram ente gases malvindos num jantar oficial. N outras palavras: o preo de se
128; Andrew v. Hirsch, Der Rechtsgursbegriff und das hartn principie, in: H E FE N D E H L ; W O H L E R S; v. H IR SC H (Eds.).Di?eftegwt&e
"P rin c p io da o fe n s iv id a d e " s crim es de perigo ab stra to
dilatar o conceito de bem jurdico para compreender tambm sentimentos supe
riores implica num abandono de qualquer funo crtica. E por isso que, na ainda
no publicada quarta edio de seu manual, prope Roxin que se reconhea que, na
tutela penal de animais, est-se diante de incriminaes sem bem jurdico.64
Roxin fala ainda em m ais duas excees idia de bem jurdico com o
condio necessria da punio. A lm da proteo de animais e p lantas,65 m en
ciona ele a proteo ao em brio66 e aos interesses de geraes futuras,67 porque,
se verdade que nenhum destes dois interesses passvel de referncia aos in
divduos hoje concretam ente existentes, nem s condies de subsistncia do
atua sistem a social, tam bm verdade que a sua excepcional fragilidade ju sti
fica uma interveno do direito penal. O u seja, seria necessrio reconhecerem-
se trs excees necessidade de um bem jurdico para justificar um a punio.
D eixem os porm de lado estas duas outras excees, e concentrem o-nos uni
camente no delito de m aus-tratos a anim ais, porque tanto o embrio,, com o as
geraes futuras ainda se referem a interesses de seres hum anos, enquanto no
caso da tortura im posta a um co, nem m ediatam ente se pode falar em qual
quer referncia a um interesse hum ano.
Diante deste estado de coisas, so possveis trs posturas. A primeira delas,
radical e conseqente, seria declarar que de fato os interesses envolvidos no tipo
de maus tratos a animais no so bens jurdicos e por isso no podem ser objeto de
tutela penal.68 Creio que este posicionam ento, louvvel por sua consistncia e
64. ^oyim.,Novaverso 2...,x.., n. 52 et seq.; assim tambm Jakobs, Strafrecht, cit., 2/19, e Rudolphi, Systematischer Kommentar, cit., vor 1/11. Para um curto c no muito atualizado panorama das discusses em tomo do objeto tutelado pelo deiito de maus tratos a animais, cW;egand, Die Tierqulerei, Lbeck: Schmidt-Rmhild, 1979, p. 125 et seq.
65. Roxin, Nova verso 2..., cit., n. 55 et seq.
66. Idem ,ibidem ,n.52etseq.
67. Idem,n. 57 et seq.
68. Nesse sentido, pouqussimos autores, como,por exemplo,Dulce Santana Ve,%3.,Laproteccin penal de los bienes jurdicos colecvos, Madrid: Dykinson, 2000, p. 58.
D ireito Penal 109
L u s G reco
coragem - porque a maioria dos defensores intransigentes da proteo de um bem
jurdico como princpio absoluto prefere nem dizer como resolvem este proble
m a impraticvel e indesejvel. E m especial a crescente preocupao com o
meio ambiente, com a biodiversidade, com a subsistncia no s da fauna, como
mesm o da flora, obrigar a que se tutele penalm ente interesses no necessaria
mente referidos ao bem -estar do hom em .
A segunda sada seria a continuao d a proposta acim a eita por m eu h i
pottico leitor. E la consistiria em expandir o conceito de bem jurdico para com
preender tam bm o bem -estar anim al. C o m isso, salvar-se-ia a idia de bem
jurdico com o necessrio p ara qualquer incriminao. M a s o conceito de bem
jurd ico seria de tal m aneira d ilatado que sequer se poderia im aginar algum a
in crim inao que o dispensasse . C a ir - se - ia ou num a teoria que leg itim a a
incriminao do hom ossexualism o ou, caso nos referssem os idia de valores
constitucionais, a incriminao de tentativas de retirar o Colgio Pedro II da
esfera federal.
A terceira proposta nas linhas de R oxin e H efendehl. E la im plica em
reconhecer excees idia de bem jurd ico com o condio necessria para a
incriminao. C laro que ela teria a desvantagem de enfraquecer, prim eira vis
ta, o potencial crtico da categoria do bem jurdico, uma vez que agora se pode
proibir m esm o sem bem jurdico. O corre que tal enfraquecimento , em verda
de, um fortalecim ento, porque a recusa de diluir o conceito de bem jurdico
perm ite dem arcar com preciso em que ponto se esf utilizando o direito penal
para tutelar interesses que j no so referveis ao hom em e ao sistem a social
existentes, im pondo quele que defende um a tal incriminao um forte nus
de fundamentao. A lm disso, abre-se um horizonte completamente novo para
a investigao cientfica, a saber, o da form ulao de critrios para a legitim ao
de incrim inaes sem bem jurd ico . H efen d eh l, por exemplo, esfora-se no
sentido de form ular tais critrios, afirm ando que necessria uma convico
en ra izad a no sen tido da n ecessid ad e de respe itar determ inada norm a de
1 1 0 RBCCRIM 49 - 2004
"P rin c p io da o fen siv id ad e " e crim es de perigo ab stra to
com portam ento.69 verdade que esse critrio tam pouco parece convincente,
mas a necessidade de se pensar a respeito nunca teria sido vista, caso in sistsse
m os em rem endar a definio in icial de bem jurdico. M u ito pelo contrrio,
m uitas incrim inaes j estariam de antem o ju stificadas, porque sem pre se
poderia alegar defenderem elas bens jurdicos, segundo o conceito d ilatado do
segundo cam inho. A terceira proposta merece, assim , nossa acolhida, porque
ela m ostra as coisas com m aior clareza, im pede que, por m eio de um a m odifi
cao adhoc das prem issas iniciais, se jo gue a poeira p ara debaixo do tapete, o
que a nica m aneira de evitar que depois nos deparem os com surpresas desa
gradveis. E la est longe de ser ideal, verdade. O problem a diante do q ual nos
encontram os no passvel de um a soluo perfeita, e o que interessa saber
qual entre as possveis solues a menos ruim . Parece-m e que a terceira o ,
porque, para usar uma im agem , ela ao menos evita que o cavalo de tria atra
vesse as m uralhas do b em jurd ico e acabe por derrub-las de dentro para fora.
O u seja: o b e m ju rd ic o , em regra, necessrio para leg itim ar um a
incrim inao. M as som ente em regra, sendo possveis excees: um a delas o
crime de m aus tratos a anim ais, incrim inao legtim a, apesar de no tutelar
dado necessrio realizao de indivduos, nem tam pouco subsistncia do
sistem a social. Se h outras excees, se elas so as trs apontadaspor R oxin, ou
se tam bm outras, qual o seu fundam ento, tais so problem as relativam ente
recentes e que no m bito deste sucinto trabalho tm de ficar em aberto. E les
m arcam porm pontos nevrlgicos para futuras investigaes.
4. O terceiro problema: como distinguir bensjurdicos coletivos autnticos de falsos bens jurdicos coletivos?
Por fim , o terceiro e ltimo problema a respeito do conceito potico-cri-
minal de bem jurdico. O ptam os por um a concepo dualista do bem jurdico,
69. Hefendehl, KollektiveRechtsgter...,cit., p. 56.
Direito Penai
L u s G reco
isto , reconhecemos bens jurdicos coletivos em seu pleno direito, ao lado de bens
jurdicos individuais. M as um rpido apanhado de bens jurdicos coletivos j de
monstra que nem todos apresentam o m esm o pedigree. D e um lado, tem os bens
jurdicos coletivos como o meio ambiente, a f pblica (crimes de falso), a A dm i
nistrao Pblica e suaprobidade (crimes de corrupo). D e outro, aincolum idade
pblica (chamados crimes de perigo com um 70), a sade pblica (crimes de txi
co),71 a segurana no trnsito (crimes de trnsito),72 as relaes de consumo (cri
mes contra o consumidor).'3 O curioso que este segundo grupo de bens jurdi
cos coletivos proposto e defendido pela generalidade de nossa doutrina, em al
guns casos (crimes de perigo comum) sem maiores questionamentos, em outros,
como nos crimes de txico e de trnsito, justam ente como alternativa constru
o de crimes de perigo abstrato. O u seja, eles so propostos pelos defensores
garantistas do direito penal dito mnimo, que repudia crimes de perigo abstrato.
O que no parece ser visto que, no final das contas, acabou-se por legitimar, da
mesma forma, a antecipao do direito penal.14 S que no caso dos crimes de perigo
abstrato, antecipa-se a proibio; no bem jurdico coletivo, antecipa-se a prpria
70. Criticamente quantoaeste conceitode perigo comum, c Rudolphi, SystematiscberKommentar, cit., vor l/9a, e Heine, em Schonke e Schrder, op. cit., vor 306 fE/19, que acertadamente relevam que o perigo comum no se refere a um bem jurdico supra-individua, e sim a bens jurdicos individuais de vrias pessoas.
71. RudolfSchmitt, Strafrechtlicher Schutz des Opfers vor sich selbst?, in: SC H R O E D E R , F. C.; Z IP F (Es,).Fesiscbri/tJrMauracb. Karlsruhe: C. F. Mller, 1972.p. 125; Endril eMalek,Betuungsmitteistrafrecht,2.cd.,Mimchcn-.Bcck,2QQQ,n.30;K}ausWebzT,Betu>ungsmittelgesetz Kommentar-,2. ed., Mnchen: Beck, 2003, 1/3 etseq.; Boijajim nez, Curso de poltica criminal, Valencia: Tirant lo Blanch, 2003, p. 199; Jesus, Lei antitxicos, cit., p. 12; Celso Delmanto, T xi- cos, So Paulo: Saraiva, 1982,p. 16.
72. Khl, in: LA C K N E R , Karl; K H L, Kristian. Strafgesetzbucb. 24. ed. Mnchen: Beck,2001. 315/1; Wessels e Hettinger, Strafrecht- BesondererTeil, 27. ed., Heidelberg: C . F.Mller,2003, n. 978; Rengier, Strafrecht - Besonderer Teil II, 2. ed., Mnchen: Beck, 1999, 43/1; Jesus, Crimes de trnsito, c it .,p .ll ,p , 13.
73. Jesus, Nova viso da natureza dos crimes contra as relaes de consumo, RBCCrim 4/81 et seq., 1993.
74. Jesus, Crimes de trnsito, cit., p. 25, chega a antever esta crtica, e responde com pouca clareza.
1 1 2 R BC C R IM 4 9 - 2 0 0 4
leso. E mais: com o agora haveria verdadeira leso, e no m ais mero perigo abstra
to, como a sade pblica seria lesionada, e no somente posta em perigo abstrato
pelo porte de entorpecentes (art. 16 da L e i de Txicos), desaparecem todos e quais
quer problemas de legitim idade. A final, o tal princpio da lesividade, que exige
leso (ou perigo concreto) a um bem jurdico, estaria atendido - com o que sur
gem dvidas a respeito de se no dem os um a grande volta para acabar em situa
o pior daquela da qual sam os, pois ao menos os crimes de perigo abstrato tinham a
virtude de no ocultar o fa to de que o direito penal est realmente se antecipando, j
certos bens jurdicos coletivos resolvem tudo, acabam com todos os problemas, e
nisto, justam ente, que est o maior problema.
Pois bem , este artifcio no um a construo nacional. J h dcadas
em penham -se vrios autores em inventar bens jurdicos coletivos a todo momento
que necessitam de um fundamento para legitim ar uma proibio um tanto estra
nha.75 E isso no tem interesse meramente terico, porque a postuiao de um
bem jurdico coletivo acaba tendo um segundo efeito prtico, alm da j aponta
da legitim ao da crim inalizao antecipada por meio de sua ocuitao: uma
legitimao da sano exasperada. Vejamos alguns exemplos.
O art. 311 da L e i de Trnsito define como crime a conduta de velocidade
incompatvel, definida nos seguintes termos: trafegar em velocidade incom pa
tvel com a segurana nas proximidades de escolas, hospitais, estaes de embar
que e desem barque de passageiros, logradouros estreitos, ou onde haja grande
movim entao ou concentrao de pessoas, gerando perigo de dano. Pena - de
teno, de seis meses a um ano, ou multa. J a leso corporal culposa (art. 121, 6.,
do C P ) punida com deteno de dois meses a um ano. Dam sio de Jesus conside
ra o referido crime um delito de leso ao bem jurdico coletivo incolumidade pbli
75. C,alm dos autores citados nas notas anteriores, principalmenteTiedemann, por exemplo, Wirtschaftsbetrug, cit., 265/6, onde argumenta ser necessrio postular um bemjurdico coletivo no crime de fraude contra seguro, pois doutro modo no se conseguiria explicar (isto ,justificar) a elevada cominao penai. Tambm admitindo um bemjurdico coletivo neste crime, Lackner e KM, op. cit., 265/3.
''P rincip io d a o fen siv id ad e" e crim es de perigo ab strato
Direito Penal 113
L u s G reco
ca;76 por isso, sequer se v diante do problem a da sano absurda. J quem con
sidere tal crime um crime de perigo77 ter em suas mos o instrum entrio ade
quado p ara criticar a com inao legal. A final, puniu-se a mera exposio a pe
rigo com pena m ais grave do que a prpria leso ao bem jurdico individual in
tegridade fsica.
O utro exemplo ainda m ais gritante, alis um dos mais gritantes de todos,
a L ei deTxicos,que pune o trfico de entorpecente com pena de 3 a 15 anos de
recluso e multa (art. 12). Se temos um bem jurdico sade pblica, mais facil
tentar explicar o porqu de tal sano draconiana.78 O crime passa a ser, afinal,
crime de leso!79 Se dispensarmos, porm , esse bem jurdico coletivo e trabalhar
m os unicamente com bens jurdicos individuais, em especial com a integridade
fsica de quem recebe o txico, transformando estes crimes em crimes de perigo
abstrato, ganhamos duas coisas. Prim eiram ente, vem os a criticabilidade da proi
bio, que tutela um bem jurdico individual mesm o contra a vontade de seu titu
lar. E com isso abrimos as portas para uma interpretao teleolgica restritiva do tipo:
este tipo s dever aplicar-se caso a vontade do titular do bem jurdico seja jurid i
camente irrelevante, por estar viciada de erro, por ser ele doente mental, menor,
louco ou inculpvel por qualquer outro motivo.80 O segundo problema deste bem
jurdico coletivo legitimar a sano absurda, pois se o trfico de txico nada mais
do que uma conduta que gera um perigo abstrato de leso integridade fsica,
esta conduta no pode sofrer pena m ais grave do que a do respectivo crime de
76. Crimes de trnsito, cit., p. 227.
77. Observe-se que a norma fala em gerar perigo de dano, o que indicao clara de perigo concreto, e no s abstrato. M as at a interpretao deste tipo como de perigo abstrato seria mais benfica do que a postulao do bemjurdico coletivo.
78. Se bem que nem assim isso seja de todo possvel, como apontei em meu estudo Tipos de autor e Lei deTxicos, RBCCrim 43/226.
79. Assim Jesus, Leiantitxicos, cit., p. 16.
80. Concluso prximaemFrisch,An denGrenzen...,cit.,p.95;'cWesentlicheVoraussetzungen...", cit., p. 218; e Queiroz, op. cit., p. 116. Isso independentemente de outras consideraes restritivas, tais como as que propus em meu estudo citado na penltima nota.
1 1 4 RBCCRIM 4 9 - 2 0 0 4
"P rin c p io da o fen siv id ad e " e crim es de perigo ab stra to
leso, no caso as leses corporais. Estas so punidas em sua form a sim ples com
deteno, de trs meses a, no mximo, um ano.
E por isso que parte da doutrina em barcou num em preendim ento que,
segundo m e parece, ser u m a das mais fecundas utilizaes da teoria do bem
ju rd ico : a desconstruo de bens ju rdicos s aparentemente coletivos. R o x in ,31
Schnem ann,82 H efendehl83 e A m elung,S4 entre outros, esforam -se por criti
car certos bens jurdicos, com o os acima apontados, e m ais alguns, interpretan
do os respectivos tipos com o crimes de perigo abstrato para um b em jurd ico
individual. A rgum enta-se em especial que os referidos bens jurdicos s so apa
rentemente coletivos, um a vez que eles no passam da som a de vrios bens ju
rdicos individuais .8S A som a de vrios bens jurdicos individuais no suficiente,
porm , para constituir um b em jurd ico coletivo, porque este caracterizado
pela elem entar da no-distributividade, isto , ele indivisvel entre diversas
pessoas.36 A ssim , cada qual tem a sua vida, a sua propriedade, independente das
dos dem ais, m as o meio am biente ou a probidade da A dm inistrao Pblica
so gozados por todos em sua totalidade, no havendo uma parte do m eio am
biente ou da probidade da A dm inistrao Pblica que assista exclusivamente a
A ou a B. J o b em jurd ico sade pblica, por exemplo, nada m ais do que a
som a das vrias integridad.es fsicas individuais, de m aneira que no passa de
um pseudo-bem coletivo.
81. Roxin, Nova verso 2..., cit., n. 79.
82. Schnem ann, D as R echtsgterschutzprinzip... , cit., p. 149; cf. tam bm Vom Unterschicht- zum Oberschichtstrafrecht... , cit., p. 26, 28.
83. Hefendehl, Kollektive Recktsgter..., cit., p. 139 et seq.
84. Amelung,op.cit.,p. 171 etseq.
85. C as passagens citadas nas notas anteriores. S Amelung trabalha com consideraes um pouco diversas: para ele, estaremos diante de um bem jurdico aparente quando o suposto bem jurdico no passar de uma descrio substantivadado prprio comportamento em conformidade norma, tal como seria o caso no suposto bemjurdico moralidade.
86. Cf. Hefendehl, KollektiveRechtsgter..., cit., p. 112 e 123.
Direito Pnal 1 15
Lu s G reco
Este empenho no sentido de desconstruir pseudo-bens jurdicos coletivos
extremamente recente e tem sido levado adiante de m odo ainda muito intuitivo.
N o est claro se e em que medida o critrio da no-distributividade realmente
capaz de efetivar aquilo que ele promete, a separao entre o joio e o trigo, porque os
defensores de tais bens coletivos no se cansam de afirmar que eles so mais do que
a soma dos diversos bens individuais.87 E o momento, a meu ver, de se pensar em
critrios para a postulao de bens jurdicos coletivos, para impedir que se legitimem
leis absurdas com construes adhoc, sem qualquer fundamento, mantendo a cons
cincia dos penalistas limpa e imper turbada, em razo de estarem respeitando o tal
princpio da lesividade - ao menos da boca para fora. M as esta necessidade de se
formularem critrios para postulao de bens jurdicos coletivos no foi vista nem
mesm o na Alemanha. A qui se abre todo um campo para um trabalho pioneiro.
5. Sntese das consideraes sobre o bemjurdico
E m sntese, podem os observar trs aspectos:
- 0 conceito poltico-crim inal de bem jurdico possvel. E le tem de estar
arrim ado na C onstituio, mas no se lim ita a meramente refletir os valores que
a C onstituio consagra, um a vez que som ente valores fundam entais podem
justificar a gravidade da interveno penal (princpio da subsidiariedade). E s
tes valores podem ser tanto do indivduo, com o da coletividade, m erecendo
acolhida a concepo dualista de bem jurdico. A ssim sendo, definim os bem
jurd ico com o dado fundam ental p ara a realizao pessoal dos indivduos ou
para a subsistncia do sistem a social.
A tutela de um bem jurdico no , porm, condio necessria p ara a legiti
midade de uma incriminao. E m casos excepcionais, como o dos m aus tratos a
87. Tiedemann, Die Verbrechen..., cit., p. 10 et seq.; Welche strafrechtliche Mittei empfehlen sich fiir eine wirksamere Bekmpfung der W irtschaftskriminalitt?, Verhandlungen des 49, DeutschenJuristentages,Mnchen: Beck, 1972, p. C 19 et seq.; Jesus, Lei antitxicos, cit., p. 11.
1 1 6 RBCCRIM 49 - 2004
"P rin c p io d a o fen siv id ad e " e crim es de perigo ab strato
animais, no ser possvel falar em bem jurdico no sentido acim a proposto. Para
evitar uma total diluio do conceito de bem jurdico, com sacrifdo de seu car
ter crtico, melhor adm itir excees -* ainda que com enorme cautela. Abre-se,
com isso, todo um novo cam po para a investigao cientfica, que diz respeito aos
critrios com base nos quais se podem reconhecer tais excees.
- Por fim, preciso cuidado com pseudo-bensjurdicos coletivos. Falar em sa
de ou incolumidade pblica, por exemplo, esconde os dficits de legitim idade de
antecipaes da tutela penal. A categoria dos crimes de perigo abstrato, referida
a um bem jurdico individual, m uito mais crtica, porque expe estes problemas
com toda clareza. E necessrio, porm , formular critrios para a distino entre
bens jurdicos coletivos autnticos e aparentes, algo que nem mesmo na A lem a
nha se viu ser necessrio.
III - O segundo grupo de dvidas: a estrutura do delito
1. Introduo
D em os incio a nossas consideraes ao examinarmos a assertiva segundo
a qual crimes de perigo abstrato seriam inconstitucionais, em razo do tal princ
pio da lesividade. Ocorre que, aps a anlise do bem jurdico acima realizada, ainda
no com eam os a falar verdadeiramente da problemtica dos crimes de perigo
abstrato, porque, como foi s recentemente visto na Alemanha, mas no ainda
entre ns,88 o problema dos crimes de perigo abstrato pouco tem a ver com a questo
do bem jurdico. A legitim ao dos crimes de perigo abstrato no deve ser discu
tida luz de consideraes sobre o bem jurdico, e sim sobre outro tpico, que
alguns autores comeam a chamar de estrutura do delito {Deliktstruktur). Ao tratar
88. Uma aparente exceo seria Luiz Flvio Gomes, Princpio da ofensividade..., cit., p. 43, em suas consideraes a respeito da relao entre o que ele chama de princpio da ofensividade e oprincpio da proteo de bens jurdicos. M as aleitura do resto do trabalho demonstra que ele de fato no diferencia suficientemente as duas questes.
Direito Penal 1 1 7
L u s G reco
do bemjurdico, est-se diante da pergunta: o que proteger? Ao tratar da estrutura do
delito, o problema j no mais o que proteger, e sim: como proteger?
E neste como, na questo da estrutura do delito, que devemos examinar a
problemtica do crime de perigo abstrato. Explicitemos a questo por meio de um
exemplo, a saber, o bem jurdico individual vida. Aqui, a primeira pergunta, quanto
existncia de bem jurdico, se responde facilmente em sentido afirmativo, porque
a vida dado necessrio para a realizao pessoal, subsumindo-se, portanto, defi
nio acima proposta. A segunda ordem de consideraes diz respeito estrutura
dos delitos que protegem a vida. E sta proteo pode ser efetivada por meio de de
litos de leso: pensemos no homicdio culposo e no homicdio doloso, sem falar em
vrios outros crimes em que a destruio da vida figura como qualificadora (leso
corporal seguida de morte, estupro com resultado morte). O utra estrutura de pro
teo a dos delitos de perigo concreto: a vida protegida por meio desta estrutura nos
crimes de perigo para a vida ou sade de outrem (art. 132, C P ), no abandono de
incapaz (art. 133),89 no incndio (art. 250).90 Aqui, necessrio que de uma pers
pectiva expost resulte efetivamente um a situao de fragilidade para o bemjurdico
tutelado, que s se salva por obra do acaso.91 Por fim, o bem jurdico vida pode ser
protegido tambm por meio de crimes de perigo abstrato: por exemplo, o legisla
dor probe a rixa (art. 137) no s no interesse da incolumidade pblica,92 como,
principalmente, porque essa conduta pode provocar mortes.
Com o vimos, entre ns tornou-se costumeiro declarar inconstitucionais
in totum os crimes de perigo abstrato. D iz-se que isso resultaria do princpio da
89. Apesar de parte da doutrina falar em m bemjurdico segurana (Bitencourt, Cdigo Penal comentado, cit., p. 482).
90. Apesar de parte da doutrina falar no pseudo-bem jurdico coletivo incolumidade pblica (Bitencourt, Cdigo Penal comentado, cit., p. 954).
91. Mais detalhes a respeito deste conceito normativo de perigo concreto abaixo, 2.
92. Para alguns autores, este bemjurdico figura ao lado do bemjurdico individual como objeto de tutela penal (Bitencourt, Cdigo Penal comentado, cit., p. 511). Para a posio aqui defendida, trata-se de um falso bemjurdico.
1 18 RBCCRIM 49 - 2004
"P rin c p io da o fen siv id ad e" e crim es de perigo ab stra to
lesividade, da necessria referncia a um bem jurdico. Podem os afirmar, j de agora,
que tal colocao do problem a falha, por tratar-se de um erro categorial. N os
crimes de perigo abstrato, o problema, em geral, no est no bem jurdico a ser
protegido, pois este o m esm o dos crimes de perigo concreto e dos crimes de
leso, a respeito de cuja legitimidade muitas vezes no se pode duvidar. O que se
est afirmando, a rigor, que as estruturas do delito legtimas se restringem a uni
camente duas form as: do delito de leso e do delito de perigo concreto. E ssa
afirm ativa j pouco tem a ver com o problem a do bem jurd ico , previamente
tratado. O prprio termo princpio da lesividade ou ofensividade convida a
que se confiinda a questo do bem jurdico com a questo da estrutura do deli
to. So estas as duas questes verdadeiramente decisivas, e por isso que parece
m elhor no trabalharm os m ais com a denom inao princpio da ofensividade
ou lesividade, e sim com a distino entre proteo de bens jurdicos e estrutura
do delito. J tratam os acima do primeiro destes tpicos, atinente ao b em jurd i
co. Resta-nos o segundo, referente s estruturas do delito, com o que surge toda
um a srie de questionam entos, a que agora darem os voz.
2. A prim eira dvida: o que se deve entender por perigo concreto?
A linha divisria entre o legtimo e o ilegtimo, segundo a tese da ilegiti
m idade do perigo abstrato que agora examinam os, seria dada pelo carter con
creto ou abstrato do perigo criado. O u seja, defender esta tese erige ao status de
problema fundamental a definio do que seja perigo concreto, uma vez que ela
demarcar os limites do ainda punvel. M as, curiosamente, todo o esforo de d is
cusso da doutrina m odem a sobre o conceito de perigo parece ser soberanam en
te ignorado pelos inimigos dos crimes de perigo abstrato, porque eles raramente
se referem a esta discusso, e muito menos tom am partido em favor de um a ou
outra das posies neia defendidas.
Direito Pena] 1 1 9
L u s G reco
Ponto comum grande maioria dos que se im portam em definir o que seja
perigo concreto a perspectiva com base na qual ele deve ser ajuizado: trata-se da
perspectiva expost, isto , levam-se em conta todas as circunstncias reais, m esmo
as somente conhecidas e cognoscveis aps a realizao do fato.93 Q uanto a isto,
no parece haver dvida na doutrina aiem. A inda assim , os crticos do perigo
abstrato s raramente esclarecem se partem d e um a perspectiva ex ante ou expost.9*
E mais: a principal fonte de inspirao dos crticos nacionais do perigo abstrato,
a doutrina italiana, considera amplamente que o ju zo de perigo concreto deve
formular-se segundo umaperspectiva ex ante, isto , levando em conta unicamente
as circunstncias conhecidas e cognoscveis no momento da prtica do fato.95 C om
isso, os autores italianos acabam tendo um conceito de perigo concreto que muito
m ais amplo do que o dos alemes, um conceito que compreende grande parte
daquilo que os alemes chamam de perigo abstrato.96
Continuemos, porm, a nossa exposio, para depois tirarmos concluses.
H , fundamentalmente, duas posturas arespeito do que seja perigo concreto. Um a,
de natureza ontolgica, proposta sobretudo por H orn e que acabou por encontrar
pouqussimos seguidores, afirma existir perigo concreto quando a no-ocorrn-
cia do resultado no cientificamente explicvel por meio de um a lei natural.97
Segundo H orn, se no fosse possvel afirm ar em razo de qual lei natural o resul-
93. Hirsch, Gefahr und Gefhrlichkeit", in: H A F T et al. (Ed.). Festschriftfr Arthur Kaufmann. Heidelberg: C . F. Mller, 1993. p. 557 etseq.; Roxin, Strafrecht,c it., 11/121; contra, pela perspectiva exante, Koriath, Zum S treit um die Gefhrdungsdelikte, GA, p. 52, p. 60 et seq., 2001.
94. Uma aparente exceo Jesus. Crimes de trnsito, cit., p. 6, que fala em perspectiva expost, digo aparente, porque, corno veremos, este autor logo introduz mecanismos que compensam a restrio de punibilidade resultante da adoo desta perspectiva (perigo comum, difuso ou coletivo").
95. C f Fiore, op. dt.,p . 183;Mantovani,op. cit.,p. 223 etseq.;Padovani,op. cit.,p. 170.
96. Ao leitor que ainda no estiver familiarizado com os termos ex ante e ex post, peo que tenha i pacincia de prosseguir naleitura, pois logo adiante, em dois pargrafos, trarei um exemplo que deve esclarecer o teor da argumentao.
97. Horn, Kankrete Gefhrdungsdeiikte, Kln: O tto Schmidt, 1973, p. 159.
1 2 0 RBC C R IM 49 - 2004
P rincpio Ga o fen s v id a d s /r a crim es de perigo ab strato
tado danoso deixou de ocorrer, se as leis naturais de que dispom os levassem-nos
a diagnosticar a ocorrncia de um resultado o qual, na verdade, no se sucedeu,
ento estaramos diante de um a verdadeira situao de perigo concreto. J a se
gunda concepo, de carter normativo, rechaa a possibilidade de que se possa
recorrer a dados nticos, inerentes ao m undo do ser, para definir quando h peri
go concreto. P aia este conceito normativo d e perigo, na formulao que ele rece
be de Schnemann,98 estaremos diante de um perigo concreto somente quando
no se pudesse ter confiado na no-ocorrncia do resultado. N outras palavras: o
bem jurdico ter passado p o r perigo concreto quando a inocorrncia da leso
parece m era obra do acaso, quando um hom em racional no pudesse contar com
um final feliz para os acontecimentos. E ste conceito normativo de perigo parte
de longa tradio, tradio essa tanto doutrinria, podendo encontrar-se form u
laes similares ao menos desde Binding, que falava em abalo da certeza exis
tencial de um bem jurdico ,99 com o jurisprudencial, havendo vrios ju igados em
que aparece a idia da no-ocorrncia do resultado por m ero acaso.100 E este o
conceito de perigo concreto hoje m ajoritrio.101
A gora surge a seguinte indagao: ser esta a compreenso de perigo con
creto acolhida por aqueles que consideram ilegtim os os crimes de perigo ab s
trato? P ara dar um exem plo: d igam os que algum , em estado de em briaguez,
ultrapasse um m otociclista pela direita, alm disso saindo de sua faixa e avan
ando bastante sobre a do m otociclista. O corre que este m otociclista compete
em motocross e no tem a m enor d ificu ldade em recuar u m pouco a prpria
98. Schnem ann, M oderne Tendenzen in der D ogm atiic der Fah lrssigkeits-und G efah rdu n gsdelik te^ J^p . 796 ,1975.
99. Binding, op. cit., p. 372-373.
100. Por ltimo, B G H N StZ 1996, p. 83 et seq.
101. Por exemplo, Roxin, Strafrecbt, cit., 11/125; Wo\tei-,ObjekiveundfersonaleZiirechnungvon Verbalten, Gefahrund Verletzungin einemfunktionaen Straftatsystem, Berlin: Duncker&.Humbiot, 1981,p.223 et seq.; Ostendorf,Grundzge des konkreten Gehrdungsdelikts",/^?, p. 430,1982. Entre ns, Damsio de Jesus, Crimes de trnsito, cit., p. 6.
D ireito Penal 1 2 1
L u s G reco
m otocicleta, evitando, assim , um acidente. Ser que aqui a doutrina brasileira
consideraria inaplicvel o dispositivo do art. 306 do C digo de Trnsito, o qual
incrim ina a conduta de conduzir veculo autom otor, na via pblica, sob influn
cia de lcool ou de substncia de efeitos anlogos, expondo a dano potencial a
incolum idade de outrem? Se realmente o entender como crime de perigo con
creto, a resposta s pode ser afirmativa, um a vez que, aqui, o resultado no dei
xou de ocorrer por acaso, e sim pelas superiores capacidades do m otociclista.
D e um ponto de vista expost, essas superiores capacidades devem ser levadas
em conta, e elas refutam a su speita de que haveria perigo. M as L u iz F lvio
G om es, por exemplo, insiste que o tipo no exige perigo concreto para pessoa
determ inada, ao contrrio, trata-se de perigo a um nmero indeterminado de
pessoas (perigo indireto ou com um ), que entraram no raio de ao da conduta
causad ora de riscos .102 D a m esm a form a, D am sio de Jesus, que, apesar de
adotar o conceito de perigo concreto da m oderna doutrina dom inante,103 o faz
s nom inalm ente, uma vez que se lim ita a exigir um perigo com um (difuso ou
coletivo) , declarando que, no crime de em briaguez ao volante, ainda que ne
nhum indivduo da coletividade venha a ser exposto a perigo, h crime, desde
que ocorra rebaixamento do nvel de segurana do trfego .104-105 E quem en
tender, na esteira da doutrina italiana, que o ju zo de perigo se formula de uma
perspectiva ex ante, no poder levar em conta o fato de que o m otociclista
com petidor de motocross algo de que s se pode saber depois da prtica do
fato, ou seja, expost - para excluir a existncia do perigo concreto.
A rigor, nossos crticos do perigo abstrato s conseguem ser to radicais
porque trabalham com um conceito de perigo concreto bem m ais amplo, bem
102. Luiz Flvio Gomes, Principio da ofensividade..., cit., p. 105.
103.Como observei em nota anterior, de nmero 101.
104.Jesus, Crimes de trnsito, cit., p. 8.
105. Substancialmente idntica tambm Bianchini, op. cit., p. 69.
1 2 2 R B C C R IM 49 - 2004
"P rincp io d a o fen siv id a d e " e crim es de perigo a b stra to
menos severo, do que o proposto pela doutrina alem, porque se at perigo co
m um, perigo para nmero indeterminado de pessoas, perigo concreto, se exis
te uma teoria do perigo concreto indireto,106 ento grande parte daquilo que a
doutrina dominante pode, no mximo, considerar crime de perigo abstrato aca
bou sendo elevado categoria dos crimes de perigo concreto e tornada legtima.
O u seja: o primeiro problema da crtica global aos crimes de perigo abs
trato no explicitar o conceito de perigo concreto do qual ela parte. E s ta
indeterminao acaba por flexibilizar e atenuar a radicalidade da tese analisada,
porque m uito do que costum am os compreender por crimes de perigo abstrato j
passar a ser, segundo a im precisa concepo examinada, perigo concreto - e es
capar facilmente do ju zo de ilegitimidade.
3. A segunda dvida: crimes de perigo abstrato e falsos bens jurdicos coletivos
A radicalidade da tese defendida pelos inimigos do crime de perigo abs
trato levaria, se fosse ela real, inconstitucionalidade de m uitos m ais dispositivos
do que eles parecem imaginar. Isso porque muito facil recusar globalmente es
tes crimes, se se continua a trabalhar com aqueles bens jurdicos coletivos que
acim a criticamos, com o a p az pblica, a incolumidade pblica, a sade pblica
etc. M as, uma vez que se recusem tais bens jurdicos, que devem ser decom postos
em bens ju rd icos in div iduais que na verdade so, ver-se- que m uitssim as
incriminaes antes incontroversas no passam de crimes de perigo abstrato - e
que nada h de errado com isso.
Vejam os, por exem plo, o crime de envenenamento de gua potvel ou de
substncia alim entcia ou m edicinal (art. 2 7 0 ): envenenar gua potvel, de
uso com um ou particular, ou substncia alim entcia ou m edicinal d estinada a
consum o. A doutrina dom inante ainda trabalha com um bem jurd ico cole-
106.Assim, Luiz Flvio Gomes, Principio da ofensividade..., cit., p. 105.
D ireito Penal 1 2 3
L u s G reco
tivo: a incolum idade pblica.l/ S e com preenderm os este delito com o um delito
para a proteo de bens ju rdicos individuais, com o a vida e a integridade f
sica, ser ele transform ado em um crim e de perigo abstrato.108 D uvidar al
gum da legitim idade desta incrim inao? A lis, um a vez que se recuse tanto
o bem jurd ico incolum idade pblica, quanto a sade pblica, quase todos os
crimes do T tu lo V III (D o s crimes de perigo com um ), C aptu lo III (D o s
crimes contra a sade pblica), passaro a ser crim es de p erigo abstrato con
tra bens ju rd icos individuais.
E isso com o ganho acim a explicitado: primeiramente, abre-se todo um
novo campo p a ra interpretar restritivamente o alcance da proibio nos referidos tipos.
Por exemplo, o crime de charlatanism o (art. 283), que pune o ato de inculcar
ou anunciar cura por meio secreto ou infalvel , uma vez entendido como crime
de perigo abstrato em defesa especialm ente da integridade fsica, mas em casos
limite tam bm da vida da pessoa enganada, tem seus alicerces profundam ente
abalados, pois, em princpio, a vtim a pode autocolocar-se em perigo, sem que
isto gere qualquer responsabilidade para terceiros que venham a participar de
tal ao perigosa .109 Q uem acredita em cura por m eio secreto ou infalvel o
faz, em regra, a prprio risco, porque, nos dias de hoje, am plam ente sabido
que tais m eios no existem. A exceo a esta regra ser o caso em que a vtim a
padece de algum dficit de responsabilidade: por exemplo, ela sofre de um mal
grave, que turva a sua capacidade de com preenso ou de autodeterminao, em
termos anlogos aos do art. 26 do C P (que trata da inim putabilidade), ou m e
nor, ou doente m ental, ou est laborando em erro no im putvel a ela m esm a.
O utro exemplo acima examinado foi o dos crimes de txicos.
107.Bitencourt, Cdigo Penal comentado, cit., p. 991.
108.Cf. Lackner e Khl, op. cit., 314/1; Heine, em Schnke e Schrder, op. cit., 314/2. No sentido do crime de perigo abstrato, tambm, Bitencourt, Cdigo Penalcomentado, cit., p. 992, se bem que o autor dirija este perigo incolumidade pblica e no a bens jurdicos individuais.
109. Cf. a respeito Roxin, Funcionalismo e imputao objetiva, trad. Lus Greco, Rio de Janeiro: Renovar, 2002, 11/91 etseq.
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"P rin c p io da o fen siv id ad e ' e c rim e s de perigo ab strato
E m segundo lugar, como acima j apontam os, a desmistificao de bens ju
rdicos coletivos f a z penas desproporcionadas saltarem aos olhos. N o precisamos ci
tar outra vez os exemplos acima dados; darem os unicamente m ais um , o do art.
270, o crime de envenenamento de gua potvel ou de substncia alimentcia ou
medicinal. A cabam os de dizer que ningum pode duvidar da legitim idade desta
incriminao. E verdade; m as pode-se e deve-se duvidar da legitim idade da pena
de recluso, de dez a quinze anos, porque, por mais perigosa que seja a presente
ao, ela no deixa de ser um mero crime de perigo abstrato, que jam ais pode ser
punido com pena m ais alta que a do prprio delito de leso. E os respectivos cri
mes de leso, aqui, so punidos ou com recluso, de dois a oito anos (tomemos
unicamente a leso corporal gravssim a), ou com recluso, de seis a vinte anos
(homicdio simples). O nico ponto de vista que poderia justificar penas relativa
mente m ais elevadas seria, aqui, o fato de que o perigo gerado para um nmero
indeterminado de pessoas. M as ainda assim esse ponto de vista no poderia fazer
a pena mnima comear acima da do crime de homicdio.
A s vantagens de se recusarem bens jurdicos pseudo-coletivos so, portanto,
muitas. O que perguntamos, assim, o seguinte: como se posicionam os crticos do
crime de perigo abstrato em relao a este problema,j que eles tm, a rigor, duas opes?
A primeira acolherem as crticas aqui formuladas a tais bens jurdicos falsamente
coletivos e com isso terem de declarar inconstitucionais quase todos os chamados cri
mes contra a sade pblica, por exemplo. E a segunda , para salvarem a constitudo-
nalidade de tais proibies, terem de admitir a postulao de bens jurdicos coletivos
a gosto, aqui e toda vez que se queira resgatar a legitimidade de alguma incriminao.
E infelizmente esta segunda postura a mais difundida entre os crticos brasileiros do
crime de perigo abstrato. Alguns chegam mesmo a declarar que o bemjurdico cole
tivo desejvel, justamente por resolver todos os problemas,110 deixando de ver que
exatamente nesta aparente simplificao que est o problema.
llO .Assim , especialmente, Jesus, Crimes de trnsito, cit., p. 23; LuizFlvio Gomes, Princpio da ofensividade..., cit.,p, 103, que fala na necessidade de descobrir o bem supra-ndividual afetado,
Direito Penal 125
Lu s G reco
O u seja: a radicalidade da tese examinada, segundo a qual os crimes de
perigo abstrato seriam inconstitucionais, sofre uma segunda atenuao, porque
seus defensores no hesitam em postular falsos bens jurdicos coletivos toda vez
que se vem diante de um tipo que querem imunizar contra a crtica.
4. 0 caminhopromissor: abandono de solues globais em f a vor de um detalhado desenvolvimento das diversas estruturas do delito
E por isso que um setor da doutrina moderna vem propondo uma ter
ceira via, que renuncia s pretenses das quais parte um vasto setor de penalistas
no s brasileiros, no sentido de que seja possvel uma soluo global. Prope-se,
muito mais, um a soluo diferenciada: da m esm a form a que, na questo do bem
jurdico, tentou-se separar o jo io do trigo, excluindo bens jurdicos s aparente
mente coletivos, agora, em face do problem a da estrutura do delito, tentar-se-
form ular critrios para distinguir os crimes de perigo abstrato legtimos dos ileg-
timos, porque, se por um lado tem os delitos de perigo abstrato indubitavelm ente
legtim os, de outro tem os crim es com o o disparo de arm as de fogo, recente
mente introduzido pela nova L e i de A rm as de Fogo, acim a m encionado. Ou
seja, preciso form ular critrios de distino um pouco m ais com plexos do
que um mero tudo ou nada, num a postura que no pode ser nem d e aceitao
global, nem de obstinada recusa, m as de busca de um