-
1
PONTFICIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE
TEOLOGIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM TEOLOGIA MESTRADO EM TEOLOGIA
SALETE VERONICA DAL MAGO
LUGARES TEOLGICOS DA REVELAO DIVINA NO PENSAMENTO
DE ANDRS TORRES QUEIRUGA
Prof. Dr. Luiz Carlos Susin
Orientador
Porto Alegre
2009
-
2
SALETE VERONICA DAL MAGO
LUGARES TEOLGICOS DA REVELAO DIVINA NO PENSAMENTO DE ANDRS
TORRES QUEIRUGA
Dissertao apresentada Faculdade de Teologia, da Pontifcia
Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, como requisito parcial
para obteno do grau de Mestre em Teologia, rea de Concentrao em
Teologia Sistemtica.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Carlos Susin
Porto Alegre
2009
-
3
-
4
A gratido a memria do corao. Meu agradecimento a Deus e
Congregao das Irms Franciscanas de Nossa Senhora Aparecida pela
oportunidade desse aprofundamento teolgico. Agradeo tambm ao meu
orientador Prof. Dr. Luiz Carlos Susin, que me orientou no decorrer
deste trabalho.
-
5
RESUMO
A presente dissertao sobre os Lugares teolgicos da revelao
divina no pensamento de Andrs Torres Queiruga tem por objetivo
aprofundar a compreenso dos lugares da revelao divina tendo como
base as ideias do grande autor moderno, Andrs Torres Queiruga.
Inicialmente analiso a questo da revelao como experincia humana,
tendo Deus como sujeito. Na perspectiva de Queiruga, a revelao no
cai do cu, como algo estranho aos humanos. O processo revelador
integra-se na prpria constituio do ser humano. Deus toma a
iniciativa de se revelar. Revela-se a todos e desde sempre na
generosidade irrestrita de seu amor. Seguindo os passos de
Queiruga, nesta dissertao, investigo ainda o modo como Deus se
revela na tradio, na palavra e na histria, chegando culminncia da
revelao em Jesus de Nazar, considerando a cruz e a ressurreio como
parte dessa revelao de Deus em Jesus Cristo. Por fim, analiso o
pensamento de Queiruga sobre a revelao de Deus nas diferentes
manifestaes religiosas. Para o autor, todas as religies so
verdadeiras e constituem, por isso mesmo, caminhos reais de salvao,
para os que buscam viver a f de forma honesta.
Palavras-chave: Deus. Revelao. Experincia. Tradio. Histria.
Jesus Cristo. Religies.
-
6
ABSTRACT
This dissertation about the Theological places of divine
revelation aims at broadening the knowledge about the places of
divine revelation having as fundamentals the ideas of the great
modern author, Andrs Torres Queiruga. It initially analyses the
revelation as a human experience that has God as subject. According
to Queiruga, the revelation should not be considered something
supernatural that is far away from humans, because the revelation
process is part of the human constitution. God, with great loving
generosity, reveals himself to everyone, and it has always been
this way. In the light of Queiruga, I investigate how God reveals
himself in tradition, word and history, arriving at the revelation
as Jesus of Nazareth, considering the cross and the resurrection as
part of Gods revelation as Jesus Christ. Finally, I analyze the
thoughts of Queiruga about Gods revelation in different religious
manifestations. The author believes that all religions are truthful
and, because of that, are actual paths leading to salvation to all
who honestly live their faith.
Keywords: God. Revelation. Experience. Tradition. History. Jesus
Christ. Religions.
-
7
SUMRIO
RESUMO..............................................................................................................................
5
ABSTRACT..........................................................................................................................
6
INTRODUO....................................................................................................................
8 1. EXPERINCIA E REVELAO DE DEUS
............................................................ 15
1.1 O LUGAR DA
REVELAO................................................................................
17 1.2 DEUS COMO SUJEITO DA REVELAO
......................................................... 21 1.3
EXPERINCIA HUMANA DA REVELAO
.................................................... 27
2. HISTRIA E REVELAO DE DEUS
....................................................................
37 2.1 A REVELAO NA HISTRIA
...........................................................................
38 2.2 A PALAVRA LUGAR DA
REVELAO...................................................... 43
2.3 A TRADIO COMO PLENITUDE DA REVELAO NA HISTRIA ....... 47 2.4
HISTRIA DA SALVAO E HISTRIA
UNIVERSAL................................... 49
3. JESUS DE NAZAR REVELAO PLENA
........................................................... 54 3.1
JESUS DE NAZAR, REVELAO
PLENA....................................................... 55
3.1.1 A Cruz como sinal
revelador...............................................................................
60 3.1.2 A revelao de Deus na Ressurreio de Jesus
................................................... 63
3.2 UNIVERSALIDADE DA REVELAO NO ENCONTRO COM AS
RELIGIES.............................................................................................................
67
3.3 A REVELAO COMO REALIZAO LTIMA DO SER HUMANO EM PLENITUDE
ESCATOLGICA............................................................................
75
CONCLUSO....................................................................................................................
78
REFERNCIAS.................................................................................................................
84
-
8
INTRODUO
Neste momento histrico, mais do que nunca se constata a
necessidade de experincias profundas que contribuam para a
existncia de pessoas mais integradas, voltadas para o transcendente
e com um sentido para a vida. Nas mais diferentes expresses
religiosas, revela-se a busca do ser humano por um encontro consigo
mesmo e com Deus, fonte de sentido para a vida.
A modernidade e ps-modernidade, com toda a sua carga de
novidades, parecem explicar e traar o caminho da felicidade. O
unilateral progresso, no entanto, provocou grandes desequilbrios
entre os povos, tornando-se superficial, no atendendo ao ser humano
enquanto pessoa na sua singularidade. Por sua vez, o excessivo
racionalismo no educa para a sensibilidade, para gestos solidrios e
o compromisso social. Tendncias em nossa sociedade, como o
individualismo, egocentrismo, materialismo, indiferena, consumismo,
explorao e competio, tornam a sociedade fechada sobre si mesma e
destituindo-a de sua abertura ao transcendente. A novidade radical
do mundo moderno desconcertou o pensamento religioso. A secularizao
e o atesmo so os sinais mais evidentes de uma crise que afetou
tudo.
No entanto, se o novo desconcerta, tambm traz consigo
possibilidades novas. Por trs das mudanas, h foras que trabalham a
histria, buscando fundamentos para uma nova e mais adequada forma
de sentido no momento atual da humanidade. Busca-se reestruturar a
totalidade, numa compreenso mais global. A grande dificuldade que
se apresenta nessa nova realidade a acomodao ou inrcia, resistindo
mudana ou defendendo-se com pequenos arranjos que no vo raiz das
questes. Impe-se, pois, a necessidade de repensar conceitos e o
prprio modo de entender nossa relao com Deus. Ou seja, uma inverso
radical na vivncia e nos conceitos que corresponda a levar a srio a
absoluta primazia do Deus que nos criou e continua nos criando por
amor; nica e exclusivamente por amor1.
1 TORRES QUEIRUGA, A. Fim do Cristianismo pr-moderno, p.16.
-
9
Diante desta realidade, torna-se relevante aprofundar como se d
a revelao de Deus na experincia humana, na Tradio, na Palavra, na
Histria e de modo singular em Jesus Cristo, sua vida, morte e
ressurreio. Quanto mais a pessoa cresce na experincia humana de
integrao consigo mesma, com sua verdade e com o outro, a partir de
Jesus Cristo e seu projeto, quanto mais encontra um sentido para
sua vida e capaz de reconhecer Deus atuando na histria humana, mais
humana, mais solidria e fraterna esta ser, e mais comprometida na
luta pela justia e a defesa da vida. Assim ao longo da histria,
Deus foi se manifestando contando com pessoas que constitussem sua
revelao no mundo.
A presente dissertao fruto de uma pesquisa bibliogrfica sobre o
tema: Lugares teolgicos da Revelao Divina no pensamento de Andrs
Torres Queiruga. Busca expor sistematicamente o contedo, tendo como
texto base o livro: A revelao de Deus na realizao humana, mas tambm
contando com as demais obras do autor, e de alguns confrontos com
outros autores que abordam o mesmo tema.
Andrs Torres Queiruga um dos principais telogos europeus da
atualidade2. Tem-se caracterizado pela abordagem renovada das
grandes questes teolgicas, que esto no corao da f e da pregao
crist, buscando fidelidade ao ensino das Escrituras e da Tradio.
Pensando estas questes, em coerncia com as exigncias metodolgicas e
crticas da modernidade, em confronto com o pensamento, a cultura e
as tradies religiosas de nossos dias. Seus escritos apresentam com
simplicidade e rigor cientfico a f crist, em categorias de nosso
tempo. Tanto que se transforma, aos poucos em marco referencial no
pensamento teolgico atual, e sua leitura se torna imprescindvel no
contexto latino-americano. Como destaca Afonso M. L. Soares, o
telogo galego Andrs Torres Queiruga algum com quem se pode
estabelecer um dilogo franco, respeitoso e sem falsas concesses. O
prprio autor retoma vrias vezes, em seus livros, o propsito de
estar
2ANDRS TORRES QUEIRUGA nasceu em 1940. sacerdote e telogo.
Licenciado em Filosofia e Teologia pela Universidade de Comillas,
Espanha. Doutorou-se em Filosofia pela Universidade de Santiago de
Compostela, Espanha e em Teologia pela Universidade Gregoriana de
Roma, Itlia. Lecionou Teologia Fundamental no Instituto Teolgico de
Santiago de 1968 a 1987. Atualmente, professor de Teologia
Fundamental no Instituto Teolgico Compostelano e de Filosofia da
Religio na Universidade de Santiago de Compostela, Espanha. membro
da Real Academia Galega e Diretor de Encrucillada: Revista Galega
de Pensamento Cristin; tambm membro do Conselho Editorial de
Iglesia Viva, consultor da Revista Portuguesa de Filosofia e membro
co-fundador da Sociedade Espanhola de Cincias da Religio. Entre
suas muitas publicaes incluem-se: Recuperar la salvacin (1977,
2001); Creo em Dios Padre (1998), Recuperar la creacin (1997); Fin
Del cristianismo pre moderno (2000); Repensar la resurreccin
(2003); Esperanza apesar del mal (2005); La revelacin divina en la
realizacin humana (Madri 2008; ed. rev. de 1977). Endereo: O.
Courralin 23 G, 15705 Santiago de Compostela, L Corun, Espanha.
Notas bibliogrficas sobre Andrs Torres Queiruga, Cf. Concilium n
326, 2008/3, p. 148.
-
10
em sintonia com as mais justas inquietaes e questionamentos da
sensibilidade atual. A teologia de Torres Queiruga representa uma
tentativa bem sucedida de pensar a inculturao da f na sociedade
moderna e que pode servir de chave de leitura para outras possveis
inculturaes3.
O autor no qual desenvolve-se o tema referido trabalha
atualmente no contexto leigo, de uma universidade pblica, tendo
como foco a filosofia da religio. Esse contexto explica o vis de
sua contribuio teologia catlica.
No decorrer do trabalho busca-se elucidar os lugares teolgicos
da revelao de Deus, segundo o autor, a saber: a revelao como
experincia humana, a revelao na Escritura, na Tradio, na Histria,
em Jesus, sua morte e ressurreio como a revelao plena; e tambm a
revelao de Deus nas diferentes expresses religiosas, o que foi
objeto de suas pesquisas mais recentes. O presente trabalho no
segue a linha histrico-gentica do pensamento de Queiruga. Est
focado num tema especfico e em sua exposio sistemtica.
Para desenvolver o tema proposto, no primeiro captulo, tratada a
dimenso da experincia e revelao de Deus que se d no ser humano.
Deus, que na liberdade de seu amor irrestrito se entrega sem
reservas, e a pessoa que acolhe a revelao como
experincia concedida por iniciativa divina. A revelao de Deus ao
ser humano permite perceber como o encontro com Deus possibilita
pessoa construir-se em liberdade e alcance o sentido ltimo e sua
mxima realizao. A revelao significa o progressivo fazer-se real, o
histrico realizar-se do ser humano em sua ltima e mais profunda
dimenso4. Segundo o autor, a primeira experincia a permear todo o
projeto cristo a de estarmos todos, a humanidade inteira,
mergulhados no amor desmesurado de um Deus que se nos d sempre e
plenamente. A cultura, como tambm a tradio religiosa, pode ser uma
tentativa autntica de resposta a quem primeiro nos amou. E seu amor
no se exaure nem mesmo se a nossa resposta for negativa5.
A revelao de Deus na experincia humana, segundo o autor, no algo
que cai do cu como coisa estranha ao ser humano; ao contrrio, o
processo revelador faz parte da prpria constituio do ser humano.
Deus o sujeito da revelao, vindo ao nosso encontro. Do lado humano,
necessrio perceber-se de que algum est presente, falando, animando,
interpelando. Pois Deus no se revela de modo arbitrrio e mesquinho,
revela-se
3 Cf.TORRES QUEIRUGA, A. Do Terror de Isaac ao Abb de Jesus, p.
8.
4 TORRES QUEIRUGA, A. A Revelao de Deus na realizao humana, p.
239.
5 Cf. Ibidem, p. 10.
-
11
a todos e desde sempre, na generosidade irrestrita de seu amor.
No h silncio de Deus e, sim, incapacidade humana para captar,
imediata e claramente a sua voz.
a partir desta afirmao que se torna fecundo e necessrio o dilogo
entre as diversas religies, pois cada uma, a partir de sua tradio,
capta a manifestao de Deus na vida. Falar da experincia humana da
revelao, nada mais do que dizer que Deus no se revela, a no ser na
e para a humanizao de homens e mulheres que buscam dar sentido para
suas vidas. Deus se revela para nos tornar mais humanos, mais
solidrios, mais fraternos.
No segundo captulo descrito sobre a histria e revelao de Deus.
Segundo Torres Queiruga, Deus age na histria. Desde o incio da vida
humana Deus se revelou na histria de homens e mulheres. A prpria
religio, os ritos e mitos comprovam isso. O mistrio divino se
manifesta dentro de nosso mundo. Podemos encontr-lo na natureza,
que, enquanto criao de Deus, nos remete ao Criador e tambm se
manifesta na pessoa e na histria que vive de uma esperana que
significa algo mais que a prpria Histria.
Para Torres Queiruga, a Palavra tambm lugar da revelao. A
Palavra revelada nos profetas e na Histria do povo de Israel no
aparece como palavra feita, mas como uma experincia viva, como um
dar-se conta da presena divina. Segundo o autor, na Histria da
humanidade, houve poucas linguagens to fecundas quanto linguagem
dos profetas bblicos. Falar em revelao nas Escrituras implica em
falar de Tradio. Ambas podem ser concebidas no como grandezas
paralelas e sim como mutuamente implicadas. A Escritura como tal
est mais envolvida pela Tradio. A Tradio, tomada como ato da
Igreja, no pode em absoluto ser concebida sem a Escritura. Segundo
o que nos diz a Dei Verbum, o que os apstolos transmitiram
compreende o suficiente para que as pessoas possam viver uma vida
evanglica e santa. A Igreja tem por isso a misso de conservar e
transmitir a todos as razes da f.
Segundo o autor, Deus se revelou na histria da salvao desde o
Antigo Testamento at Jesus de Nazar. Essa revelao, que oferecida a
toda pessoa humana, por isso universal. Mais do que nunca, hoje, o
cristianismo est confrontado com sua misso universal. Jesus de
Nazar se torna o arqutipo real de um sujeito universal para a
Histria, sem ttulos nem glrias, seno o de sua profunda humanidade.
O verdadeiro servo de Jav, conforme o anncio de Isaias (Is 52, 53).
Aquele que no tinha onde reclinar a cabea (Mt 8,20), assumindo a
condio de escravo (Fl 2,5). Nisso est o amor absolutamente
universal que marca o dinamismo da revelao.
-
12
Ao se falar em revelao na Histria da Salvao em confronto com a
Histria Universal se toca a essncia da experincia crist, ou seja,
aquilo que ela descobre no est separado do que descobrem os demais,
pois o mesmo Deus que salva que est trabalhando com sua graa em
toda humanidade. Portanto, o anncio da experincia crist deve dar-se
de forma simples e humilde, dando-se conta de que as sementes do
Verbo j esto presentes em cada cultura. O dilogo assim se torna
possvel, pois consiste em avanar no seio de uma mesma experincia. A
universalidade crist no pode impor na Histria qualquer
particularismo cultural, mas deve estar disposta a encarnar-se em
cada cultura. A relao entre Histria Universal e Histria da Salvao
tal que a Histria da Salvao no quer de forma alguma ser a negao da
Histria do mundo e sim sua capacitao e vivncia a partir de uma nova
e mais profunda relao.
No terceiro captulo, busca-se descrever, Jesus de Nazar como a
revelao plena. O ser humano vai pouco a pouco descobrindo o
verdadeiro rosto de Deus e, a partir dele, a verdadeira orientao
para vida. Em Jesus Cristo, a pessoa experimenta a possibilidade
mxima. Nele o ser humano desvenda a chave fundamental de sua
existncia, na qual se abre a possibilidade de realizar-se de modo
pleno.
A comunho salvadora e amorosa de Deus com a pessoa que alcana em
Cristo sua plenitude, no significa um fim, mas o grande comeo, a
nova criao, o espao onde a todo ser humano aberta a possibilidade
de avanar para a idade adulta, at a estatura que corresponde
plenitude em Cristo (Ef 4,13).
A revelao plena est includa no mistrio de Cristo e s a partir
dele pode ser entendida. Nele aconteceu de modo insupervel o
encontro revelador de Deus com o ser humano. Na Histria da Salvao,
antes de Cristo, tudo foi um caminho para Ele, e, depois dele, um
caminhar a partir de sua plenitude. Em Jesus a revelao no um
ditado, mas uma experincia pessoal com toda riqueza do humano em
todas as dimenses.
Segundo Torres Queiruga, em Jesus Cristo como plenitude da
existncia concreta, na acolhida e na entrega, acontece ao mximo a
capacidade de infinito. Realiza-se na Histria aquilo que parecia
impossvel, Jesus se torna presena pessoal de Deus para o ser
humano, sem nenhum tipo de reserva. Jesus revela o mistrio absoluto
de seu amor e de sua deciso salvadora.
Totalmente entregue Histria, Jesus recolhe em si, elevando-o ao
pleno cumprimento todo processo revelador anterior. E mais do que
isso, a partir dele, toda a humanidade encontra acesso a essa
plenitude, podendo participar da realizao definitiva.
-
13
Para o autor, Deus revela-se na Histria de cada pessoa que se
abre ao divino, como tambm, ao longo da Histria da Salvao, foi se
revelando de diferentes formas assumindo a plenitude em Jesus de
Nazar. A plenitude da revelao como abertura histrica nos apresenta
a revelao como algo sempre atual e aberto ao futuro. Jesus Cristo
plenitude da palavra definitiva de Deus fecha em si toda a revelao
da Histria da Salvao; ao mesmo tempo abre-se como palavra
reveladora toda a Histria da Salvao passada, presente e futura. A
historicidade do homem no fica, pois, anulada. Ao contrrio, fica
estabelecida em seu mbito definitivo e carregada com as
possibilidades de uma promessa infinita6.
Uma das formas da revelao de Deus a ns foi atravs da cruz e
ressurreio de Jesus, tema desenvolvido no terceiro captulo. Deus
nunca esteve to perto de Jesus como na cruz. Ele no quis a morte do
Filho, assim como no quer o mal no mundo. O sofrimento algo sobre o
qual Deus se compadece. Para Jesus, a cruz foi manifestao do amor
levado s ltimas consequncias. Foi fiel misso, deu-se sem reserva,
sem guardar nada pra si, nem a prpria vida.
Jesus morre na cruz, condenado pela religio e pela poltica, como
tantos profetas de ontem e de hoje, e, de certo modo, como todos
aqueles que lutam em favor da vida para todos. Sua perseverana at o
fim o selo de seu amor. Torna-se para ns modelo no assumir na
esperana o prprio fracasso e na entrega ao amor apesar de toda
incompreenso. Diante desta realidade que podemos entender a cruz
como sinal revelado, ou seja, como expresso do amor absoluto e da
entrega da vida do prprio Filho de Deus.
Como o conceito de revelao, entende Queiruga, a revelao na
ressurreio de Jesus no pode ser compreendida como algo milagroso,
alheio realidade humana, sem conexo com a experincia. Deve-se
perceber a revelao de Deus na realidade bem humana de Jesus, como
tambm no contexto em que viveram Ele e seus discpulos. A ressurreio
de Jesus situa-se, portanto, numa situao nova, que supe uma
experincia nova, no milagrosa, mas real. Experincia vista aqui como
resultado integrador de diferentes experincias, como resultado de
toda sua vida. Ao se falar em ressurreio, preciso referir-se a uma
experincia global desse tipo.
Neste mesmo captulo busco tambm descrever o pensamento do autor
sobre a universalidade da revelao que se concretiza nas diferentes
expresses religiosas, ou seja, no encontro com as religies. O Deus
que cria por amor, vive debruado com generosidade
6 TORRES QUEIRUGA, A. A Revelao de Deus na realizao humana, p.
255.
-
14
irrestrita sobre todas e cada uma de suas criaturas. Portanto,
todas as religies so verdadeiras e constituem, por isso mesmo,
caminhos reais de salvao para os que buscam praticar delas
honestamente.
Deus revela-se nas diferentes formas de acolher a f, pois no
existe religio sem alguma verdade, como tambm nenhuma absolutamente
perfeita. Deus se d totalmente em todas, mas a acolhida por parte
da pessoa que difere em cada uma.
A revelao de Deus o ncleo central de toda experincia religiosa,
como tambm o lugar do encontro e do dilogo entre as diversas
religies e a cultura secular. O autor chega a afirmar que Deus no
cria homens e mulheres religiosos, cria simplesmente
homens e mulheres humanos. Porque, em se tratando de religio
como um pensar Deus e servir a Deus, convm lembrar que o Abb de
Jesus no procura buscar a si mesmo, nem busca ser servido. Jesus
Cristo em sua prtica pensa em ns e busca exclusivamente nosso
bem.
Para o autor, as consequncias desta compreenso so importantes
para uma viso que nasce de um modo aberto e positivo de situar-se
no mundo. As prticas que contribuem para o crescimento e
amadurecimento da vida humana colocam-se no dinamismo do Criador.
Com esta nova imagem de Deus, somos conseqentemente conduzidos a
uma nova imagem do cristianismo. Uma imagem que leva a uma nova
relao com as outras religies e com a prpria sociedade, buscando
valorizar e respeitar o Deus que se revela nas diferentes formas de
expresso da f e nas diferentes realidades humanas e sociais.
Por fim, na concluso, destaca-se a importncia de poder
aprofundar um tema como este com os elementos relevantes que o
autor apresenta, e ao mesmo tempo, os desafios que permanecem, sem
a pretenso de esgotar a reflexo.
-
15
1. EXPERINCIA E REVELAO DE DEUS
Ao iniciarmos a reflexo sobre este tema, faz-se necessrio
esclarecer o sentido dos termos experincia e revelao. Segundo o
dicionrio Aurlio, a experincia consiste no ato ou efeito de
experimentar, a prtica da vida, ou seja, uma pessoa vivida, cheia
de experincia. a habilidade prtica adquirida atravs do exerccio
constante de uma profisso, de uma arte7.
Segundo Torres Queiruga, o conceito de revelao que chegou at ns
e que prevaleceu no imaginrio coletivo, se apresenta como uma lista
de verdades cadas do cu, atravs do milagre da inspirao, operado na
mente de algum profeta ou hagigrafo. Verdades, na sua origem,
inacessveis razo humana e que ns devemos crer, pois so inspiradas.
Deus nos disse tais verdades, sem que tenhamos possibilidade de
comprov-las. Torna-se, assim, uma revelao imposta de fora sem
responder a nossas necessidades e perguntas. Faz-se necessrio,
portanto, reafirmar o que nos diz a f bblica, a revelao de um Deus
que na liberdade de seu amor irrestrito e sempre em ao, se entrega
sem reservas e sem medida.
Para Torres Queiruga, a Palavra revelada ajuda a dar luz, a ver
com os prprios olhos a realidade enquanto habitada por Deus. Por
isso, todo crente deve e pode chegar a dizer por si mesmo, o que o
povo disse samaritana: J no cremos por causa daquilo que voc disse.
Agora, ns mesmos ouvimos e sabemos que este , de fato, o Salvador
do mundo (Jo 4,42), ou seja, a revelao passa a ser uma experincia
pessoal. Um encontro pessoal com Jesus Cristo, revelao plena de
Deus. Experincia que perpassa todo o ser humano e que faz olhar
para si, para o outro e a realidade a partir de Deus e de seu
projeto de amor8.
A pessoa vive e acolhe a revelao como experincia dada por Deus,
ou seja, como iniciativa divina, revelao, palavra, mandato. Temos
como exemplo Moiss e, mais tarde, os outros profetas. A
autenticidade da vivncia da revelao de Deus na vida dessas
7 Cf. Experincia. FERREIRA, Aurlio Buarque de Holanda. Dicionrio
da Lngua Portuguesa, p. 862.
8 TORRES QUEIRUGA, A. Anotaes da palestra: A teologia desde a
modernidade, proferida em So
Leopoldo, na Unisinos, em 27.05.2004.
-
16
pessoas to manifesta que seria superficial pensar numa simulao.
Naquele que
receptivo iniciativa de Deus inicia-se um processo de apropriao,
pois o chamado se dirige bem concretamente pessoa em sua
realidade.
Segundo o pensamento de Queiruga h na revelao uma verdadeira
apropriao. A comunidade no se sente convocada a algo alheio. Ela
experimenta sua presena e vive a partir disso uma transformao;
assim, o Deus de nossos pais e o Deus de Moiss passou a ser o nosso
Deus, da mesma forma que, mais tarde, o Pai de Jesus passa a ser o
nosso Pai. Esta constatao muito importante, por mostrar que na
apropriao
comunitria da revelao d-se uma dialtica muito peculiar de
exterioridade e interioridade... apia-se na palavra do mediador,
mas dentro de uma dinmica que leva experincia e intuio direta9.
Segundo o autor, dentro dessa realidade, detendo-nos agora
questo do testemunho, vemos que este torna-se como que um
contraponto experincia, como um
conhecimento que no alcana a coisa mesma, mas que depende do
enunciado de outra realidade, sem entrar em contato direto com a
experincia e sem que caiba a possibilidade de se independizar dos
enunciados comunicados10. Na revelao de Deus, ao contrrio, tudo se
apia na novidade de uma origem histrica. O ser humano no se
manifesta por si mesmo, seno pela livre iniciativa da ao de Deus.
No se trata de um desdobrar-se imanente de sua essncia e sim de uma
determinao realizada por Deus na Histria. Lessing, que se serve da
categoria da educao para falar da revelao, assim se expressa: O que
a educao para o indivduo, isso a revelao para o gnero humano. A
educao no d ao homem nada que este no pudesse alcanar por si mesmo;
d-lhe o que poderia alcanar por si, s que assim o obtm mais fcil e
rapidamente. Igualmente a revelao no d ao gnero humano nada que a
inteligncia humana no poderia eventualmente alcanar por si
mesma11.
9 Cf. TORRES QUEIRUGA, Andrs. A revelao de Deus na realizao
humana, p. 108.
10 Ibidem, p.109-110.
11 Cf. Ibidem, p.127-128.
-
17
1.1 O LUGAR DA REVELAO
Para Queiruga, a transcendncia e imanncia da revelao, tm o papel
irrenuncivel de manter erguida e irredutvel, diante da crtica, a
transcendncia da revelao, sempre exposta a perder-se em meio ao
interesse de cada poca. Se a palavra reveladora, assim como se
encontra na Bblia aparece como unidade inseparvel da palavra humana
e da palavra divina, sua interpretao estar sempre aberta dupla
possibilidade de atender mais ao lado humano, arriscando-se a
descuidar do divino, ou atender mais ao lado divino, arriscando-se
a descuidar do humano12.
Para a Igreja Catlica, a reao contra a tendncia a ressaltar
unilateralmente o carter transcendente da revelao, destacam-se dois
meios pelos quais se assegurou um conceito de revelao mais adequado
e justo. O primeiro foram os estudos bblicos, que, apesar das
dificuldades, foram impondo um novo modo de considerar a Revelao. O
segundo foi o contato com a teologia protestante, que, parte, o
fato de operar nesta mesma direo, proporcionava sugestes e abria
novas perspectivas. A teologia elaborada nesse ambiente e acolhida
afinal na constituio Dei Verbum, do Vaticano II, renovou a fundo o
tratamento da questo: a situao atual teve a sua condio de
possibilidade13.
Segundo Torres Queiruga, a revelao, ao ser algo que acontece
entre Deus e o homem na histria, implica necessariamente trs
dimenses fundamentais: divina, subjetiva e histrica.
Dimenso Divina Queiruga faz meno a Karl Barth,14 dizendo que o
pensamento tradicional tem aqui seu espao medida que continua tendo
seus representantes. Ou seja, a revelao como palavra autorizada de
Deus apenas atendia s condies subjetivas do homem a quem era
dirigida. O maior defensor desta tendncia Karl Barth. Para ele, a
revelao no mais que manifestao na histria humana da mesma histria
primognita divina. A eleio ou predestinao do Filho pelo Pai,
eternamente realizada e manifestada pelo Esprito, reflete-se no
tempo atravs da eleio do homem em Jesus Cristo. Por isso,
12 Cf. TORRES QUEIRUGA, A. A revelao de Deus na realizao humana,
p. 80.
13 Cf. Ibidem, p. 86-87.
14 KARL BARTH telogo cristo protestante, pastor da Igreja
Reformada. Um dos lderes da Teologia
dialtica. Nasceu em Basilia e foi criado em Berna (Sua). Suas
principais obras: A carta aos Romanos (1922) e Dogmtica Eclesistica
(1932-1968).
-
18
Deus o sujeito absoluto; o homem, a rigor, nem sequer pode
perguntar, e a prpria recepo da revelao realizada pelo Esprito
Santo. A revelao consiste assim na Palavra de Deus no sentido mais
rigoroso e exclusivo da expresso15.
Dentro do catolicismo, paralelo a Barth, temos o famoso natural
sobrenatural representado por Hans Urs Von Baltasar16. Tambm para
ele a revelao consiste, antes de tudo, na manifestao dentro de
nossa histria do amor intratrinitrio de Deus. Manifestao que
acontece em Cristo, sobretudo na obedincia e amor totais da cruz e
que, diferentemente da concepo barthiana, inclui toda a criao e
toda a histria, desvelando seu sentido17. Balthasar deixa a desejar
quando manifesta pouca ateno s mediaes humanas da revelao. A figura
da revelao contemplada diretamente em si mesma, sem se preocupar em
mostrar os mltiplos condicionamentos humanos de sua gnese e de sua
formulao18.
Dimenso Subjetiva Segundo Torres Queiruga, a dimenso subjetiva
foi em muitos aspectos o motor da renovao. Seu movimento amplo e
difcil de ser classificado. Indicar-se-o apenas algumas dimenses da
subjetividade. Andrs Torres Queiruga, ao se referir ao pensamento
de Rudolf Bultmann,19 ressalta que, apesar de sua tendncia teologia
dialtica, a preocupao exegtica e o contato com a filosofia
existencial de Heidegger o levam a concentrar sua preocupao sobre o
sujeito, acentuando a subjetividade existencial, entre as dimenses
da revelao. Em ltima anlise, a revelao consiste numa Palavra de
Deus que no revela nada fora do ser autntico do homem. E este,
reconhecendo-se pecador, no se absolutiza a si mesmo e abre-se graa
da justificao: que foi, afinal, revelado? Absolutamente nada, se a
questo da revelao
15 Cf. TORRES QUEIRUGA, A. A revelao de Deus na realizao humana,
p. 88.
16 HANS URS VON BALTHASAR, sua reflexo teolgica e cultural visa
sobretudo confirmar sua intuio
fundamental: demonstrar a realidade de Cristo como a coisa mais
importante, pois precisamente a Palavra humana de Deus para o
mundo. Intuio que se explicita especificamente em dois ensaios:
Derrubar os basties (1952) S o amor crvel (1963). Cf. GIBELLINI,
Rosino. A Teologia do sculo XX, p. 237ss. 17
Cf. TORRES QUEIRUGA, A. A revelao de Deus na realizao humana, p.
89. 18
Ibidem, p. 89. 19
A obra mais significativa do telogo Rudolf Bultmann, so os
quatro volumes que renem seus mais importantes ensaios de teologia
sistemtica e traz o significativo ttulo Crer e Compreender
(1933-1965). A Teologia de Bultmann efeito de uma coerente aplicao
da interpretao existencial dos enunciados centrais do Novo
Testamento: Teologia como interpretao existencial. A Teologia
Existencial uma modalidade de teologia da Palavra. A revelao
acontece como tal, como Palavra de Deus. Bultmann admitia, no fundo
apenas um sacramento, o da Palavra. Alguma, entre muitas obras do
autor, destaca-se aqui: Ges (1926), Il Cristianesimo primitivo nel
quadro delle religioni antiche (1949), Prediche di Marburg (1956),
Storia ed escatologia (1957). Cf. GIBELLINI R. Op. Cit, p. 37.
-
19
pergunta por doutrinas (...). Porm tudo, enquanto o homem tem
seus olhos abertos sobre si mesmo e pode se entender de novo a si
mesmo20.
Paul Tillich,21 que tambm partilha da preocupao existencial,
amplia e enriquece ainda mais esta perspectiva. Acentua a
subjetividade profunda e cultural da revelao. O profundo, o abismo,
o fundo do ser, so smbolos do divino. Quando este consegue
manifestar-se, emergindo a conscincia, nasce a revelao, que
manifestao do fundo do ser para o conhecimento humano22. Desta
forma na revelao esto integrados todos os estratos da subjetividade
desde sua raiz mais profunda, como tambm a sntese do racional e do
emocional. O inteiro ser do homem entra assim em jogo na revelao,
tanto o individual como o coletivo. Para Tillich a revelao a
manifestao da profundidade do ser.
Torres Queiruga descreve que algo semelhante podemos constatar
em Karl Rahner,23 sendo que o mais original de sua contribuio
consiste em acentuar a subjetividade transcendental da revelao.
Para ele, a partir da profunda reconfigurao ontolgica que supe o
existencial-sobrenatural, todo homem e o homem todo est impregnado
pela presena da revelao. constitutiva do homem a vocao a ser
ouvinte da Palavra, o prprio movimento de sua existncia j vocao
transcendental24.
Dimenso Histrica Torres Queiruga, falando sobre a dimenso
histrica, ressalta a primazia do espao aberto pela comunicao entre
Deus e o homem como lugar em que se realiza a revelao. Lugar do
qual diversas teorias ressalta distintas dimenses. Numa primeira
teoria cabe assinalar a concepo personalista. Martin Buber25 abriu
caminho ao assinalar a realidade unificante do entre, isto , do
espao vital entre o eu e o tu, que o que os constitui num ns
dialogante. A revelao deixa de ser um processo meramente
20 TORRES QUEIRUGA, A. A revelao de Deus na realizao humana, p.
90.
21 PAUL TILLICH nasceu na Prssia, na aldeia de Starzaddel, nas
proximidades de Guben, em 1886. Sua
principal obra: Teologia Sistemtica (1951-1963). 22
TORRES QUEIRUGA, A. A revelao de Deus na realizao humana, p. 91.
23
KARL RAHNER (1904-1984), nasceu em 5 de maro de 1904 em Friburgo
(Alemanha). Sua principal obra: Curso Fundamental da F. Outras
obras: Misso e Graa (1959); Ouvintes da Palavra (Barcelona 1968).
Cf. Gibellini, R. Op. Cit, p. 223. 24
Cf. TORRES QUEIRUGA. A revelao de Deus na realizao humana, p.
92. 25
MARTIN BUBER filsofo, escritor e pedagogo. Judeu de origem
austraca. Em suas publicaes filosficas, enfatizou que no h
existncia sem comunicao e dilogo. As palavras-princpio, eu-tu
(relao), eu-isso (experincia), demonstram as duas dimenses da
filosofia do dilogo, que segundo Buber, abarcam a existncia.
Algumas obras: Histrias de Rabi; O socialismo utpico; Eu e Tu.
-
20
objetivo para fazer-se comunicao viva e pessoal, encontro entre
Deus que chama e salva, e o homem que escuta e aceita26.
Para o autor, diante do intimismo da teologia existencial de
Rodolf Bultmann, o mrito foi de Oscar Culmann27 que deu nfase
definitiva Histria da Salvao. Remeteu-se objetividade da
histria:
Aos fatos salvadores em que a revelao de Deus se mostrava como
ao no espao aberto pela dialtica promessa-cumprimento. Sobretudo
para teologia catlica, sempre ameaada pelo abstracionismo
escolstico, significou enriquecimento e concreo. Sua influncia na
Constituio sobre a Revelao Divina (Dei Verbum) do Vaticano II e a
orientao global da obra coletiva Mysterium Salutis so disso uma boa
prova. 28
Na teologia evanglica, Gerhard Ebeling29 chama a ateno para o
dficit de experincia na teologia e destaca o papel da Experincia.
Na teologia catlica essa a ocupao mais intensa de Edward
Schillebeeckx.30 A revelao, nos diz ele, por sua prpria natureza
tem a ver com a experincia humana. A revelao uma experincia
expressa com palavras; a ao salvfica de Deus enquanto
experimentada e expressa pelo homem31.
Segundo Torres Queiruga, no se podem negar as imensas
dificuldades em relao ao tema da revelao, mas tambm no se pode
negar que nele aparece envolvidos, o homem bblico, do mesmo modo
que, em geral, o homem religioso, que experimenta sempre a revelao
primordial e originariamente como algo prprio, que lhe permite
26 Cf. TORRES QUEIRUGA, A. A revelao de Deus na realizao humana,
p. 92-93.
27 OSCAR CULMANN, telogo evanglico. Uma de suas principais obras
so o livro Cristo e o Tempo
(Barcelona 1946). Cf. Gibellini, R. Op.Cit, p. 256. 28
TORRES QUEIRUGA, A. A revelao de Deus na realizao humana, p. 93.
29
GERHARD EBELING nasceu em 1912; foi discpulo de Bultmann em
Marburg. autor do denso artigo sobre Hermenutica. Para ele, a
hermenutica a doutrina do compreender, mas, enquanto tal,
configura-se como doutrina da Palavra, uma vez que o compreender se
articula em linguagem e palavras. Cf. Gibellini, R. Op. Cit, p. 71.
30
EDWARD SCHILLEBEECKX nasceu em 12 de novembro de 1914, em
Anturpia, Blgica. Doutorou-se em 1951 e, Le Saulchoir, com o tema:
A economia sacramental da salvao. Que deu origem a seu primeiro
livro de Sacramentele Heilseconomie (A economia sacramental da
salvao). Nesta obra apresentou os sacramentos como sinais. Em 1956,
foi nomeado professor do Instituto Superior de Cincias Religiosas
em Lovaina e, a partir de 1957, professor ordinrio de Dogmtica e de
Histria da Teologia na Universidade Catlica de Nimega. Cf.
HACKMANN, G. L. Borges. Servir a Cristo na Comunidade, p. 9-10.
31
TORRES QUEIRUGA, A. A revelao de Deus na realizao humana, p.
94.
-
21
compreender e realizar a si mesmo, desde seu ser mais profundo.
Os questionamentos, por mais corretos e justificados que sejam,
aparecem sempre depois e justamente isso: questionamentos dos
aspectos obscuros deste dado fundamental. Gerhard Von Rad,
considerando isso a partir da Bblia, diz : Israel descobriu Deus na
Histria e, ao faz-lo, foi-se descobrindo a si mesmo32. A insistncia
na identidade humana da revelao, no entanto, no d conta de toda
experincia religiosa. Na revelao o homem se sente certamente levado
ao mais profundo de si mesmo. Porm, com igual direito, pode-se
afirmar que se sente tambm levado para alm de si mesmo, elevado
acima de suas potencialidades33.
1.2 DEUS COMO SUJEITO DA REVELAO
Segundo Andrs Torres Queiruga, a revelao de Deus no algo que
extraordinariamente tenha cado do cu, sobre alguns profetas ou
escritores" e que ns simplesmente precisamos acolher, aceitar. Ao
contrrio: a revelao algo que nasce de dentro: um dar-se conta do
que Deus est procurando dar-nos a conhecer atravs da realidade. Da
realidade em seu modo de ser criatura, com os fortes impulsos que
procuram orientar o mundo e a histria para sua humanizao, e com os
impulsos que dentro de ns procuram levar-nos ao bem, fraternidade e
plenitude na comunho com Ele. Deus est se manifestando a ns
continuamente atravs de tudo, tratando de abrir um pouco mais nossa
capacidade, de vencer nossas cegueiras, de superar nossas
resistncias34.
O autor afirma com segurana e deciso de que o limite da revelao
no imposto por Deus, e sim pela impossibilidade da criatura. O
divino sempre experimentado como transcendncia ativa, que sai por
prpria iniciativa ao encontro do homem. Um modo de ser de Deus que
no pode ser chamado de pura revelao. Fica evidente que h outro modo
que o que o uso teolgico vivenciou como relao. Enquanto o homem
experimenta em si mesmo, na natureza ou na histria a Deus chegando
a ele, como se manifestando a ele, est tendo a experincia radical
da revelao35. Deus ao longo da Histria vai se
32 Cf. TORRES QUEIRUGA, A. A revelao de Deus na realizao humana,
p. 103-104.
33 Cf. Ibidem, p. 105.
34 Cf. Idem, O que queremos dizer quando dizemos inferno? p.
18.
35 Idem, A revelao de Deus na realizao humana, p. 149.
-
22
revelando, e ns o percebemos a partir do momento em que, como
humanos, sabemos contemplar e perceber atravs de nossa
sensibilidade a ao reveladora de Deus. Deus est realmente presente
em todas as pessoas, e se revela a elas, apesar de todas as
deformaes. Revela-se, sobretudo, nas experincias mediadoras das
tradies religiosas. Existe um continuum salvfico e revelador na
experincia religiosa da humanidade36. Segundo o autor, a revelao de
Deus se deu ao longo da Histria de forma real e concreta a um povo,
o povo de Israel.
Deus est realmente presente em todos os homens; estes, em sua
experincia religiosa, captam essa presena como revelao ativa e
salvadora: entre eles h um povo, o de Israel, que vive e expressa
de modo especfico, por sua intensidade e por sua pureza essa
revelao iniciando assim a histria santa que aparece recolhida na
Bblia. 37
A revelao de Deus ns a podemos perceber a partir da experincia
que o ser humano vai realizando no decorrer de sua vida. Na medida
em que vai permitindo e acolhendo a revelao em si mesmo. A unio com
Deus no algo que vem de fora, mas algo que parte de dentro e vai se
constituindo, moldando o ser humano. Para Torres Queiruga, a
revelao no tem de entrar na vida do homem, visto que a presena viva
daquele mesmo que est suscitando seu ser, suscitando sua liberdade
e empurrando sua histria. Deus no necessita chegar ao homem porque
est sempre com Ele. Por isso,
para o homem, a revelao efetiva sempre uma experincia realizada,
algo com o qual se encontra no mesmo ato de tomar conscincia dela.
aperceber-se de que algum est j presente, falando, perdoando,
animando, interpelando38.
Em todo processo revelador, segundo o autor, Deus que vai
tomando a iniciativa, Ele se coloca como algum que vem ao encontro
do ser humano e quer revelar-se da mesma forma a todos,
independente de raa, cultura ou condio social. No um Deus que se
oculta porque quer, que vai se mostrando com maior ou menor
evidncia para esta ou aquela pessoa, que se manifesta a muitos ou a
poucos, que deixa para mais adiante o que poderia ter revelado
agora. Mas um Deus que se apressa em tomar a
36 Cf. TORRES QUEIRUGA, A. A revelao de Deus na realizao humana,
p. 151.
37 Ibidem, p. 151.
38 Cf. Ibidem, p.154-155.
-
23
iniciativa, cujo amor urgente, que quer revelar-se o mais rpido
possvel, a um maior nmero possvel de pessoas, que desejaria abrir
os olhos e o corao do ser humano ao dom desde sempre disponvel.
Para o autor, l onde o ser humano se apresenta aberto, Deus
aparece como luz fazendo emergir e sentir sua presena. Quando
aparece uma ocasio, em que o ser humano cede experincia de amor,
Deus concentra ali todo o seu amor pessoa e prossegue apoiando-a
com todos os meios de sua graa. Quando nos referimos liberdade
divina e o sentido da eleio, o que se percebe que o prprio fato da
revelao pura e incondicionada liberdade, pois, se Deus no quisesse
revelar-se de nenhuma forma o ser humano poderia alcanar sua
intimidade39.
Portanto, a eleio no prvia a isso, mas deve ser interpretada
justamente a partir disso. A eleio no como um favoritismo por estar
radicalmente destinada a todos; porm como um meio de acidente, pois
Deus est total e pessoalmente em sua relao concreta com cada
homem40. Deus foi se revelando ao longo da Histria da Salvao no
Antigo Testamento e nas diferentes religies, mas em Jesus Cristo,
graas sua humanidade totalmente aberta ao seu amor e ao seu
convite, Deus finalmente pde mostrar seu rosto mais verdadeiro e
definitivo41.
Segundo Torres Queiruga, a revelao de Deus real e verdadeira no
apenas porque tenha de entrar no mundo irrompendo seus mecanismos e
fazendo-se sentir de forma milagrosa. real, pelo fato de estar
doando-se desde sempre num gesto expressivo de sua presena criadora
e salvadora. O prprio fato da criao j sua revelao fundamental; e a
prpria criao, em seu modo de ser, em seus dinamismos e em suas
metas e aspiraes, vo desvelando no tempo e na histria tanto o
projeto de Deus sobre ela como o que, em cada momento, est
procurando realizar. Enfim, a revelao consiste em aperceber-se do
Deus que, como origem fundante e amor comunicativo, est j dentro,
habitando a criao e manifestando-se nela42.
O processo revelador, conforme o autor, pode, por vezes,
tornar-se difcil ou lento, mas com certeza, no por parte de Deus
seno do ser humano, de sua pequenez ou de sua prepotncia. Da parte
de Deus, se ele no quisesse manifestar-se, nada saberamos dele.
Como tambm, nenhum conhecimento concreto e real de Deus vem a ser
possvel pela
39 Cf. TORRES QUEIRUGA, A. A revelao de Deus na realizao humana,
p. 289.
40 Ibidem, p. 289.
41 Cf. Idem. O Mistrio de Jesus o Cristo: divindade na
humanidade. Concilium, n 326, 2008, p. 38.
42 Cf. Idem. Repensar a ressurreio, p.104.
-
24
simples iniciativa humana. O ser humano pode dar-se como
resposta sua iniciativa. S Deus pode ser conhecido por Deus, diz
uma frase clssica. E vale notar que, se bem considerada, essa ,
nada mais e nada menos, que a definio da revelao43.
Segundo Torres Queiruga, Deus vai se revelando ao ser humano num
movimento constante de surpresa e descoberta, na presena como tambm
na ausncia, no encontro e na procura constante daquele que sacia a
fome de vida, paz, justia e amor. De alguma maneira o homem est
sempre vendo a Deus, co-afirmando sua presena. Na vida ordinria,
ele to somente necessita que algo o desperte, que sacuda sua
ateno44.
Por vezes, as situaes da vida sacodem a conscincia da pessoa,
rompendo sua rotina e abrindo-a ao chamado divino, ou seja: Uma
situao que com sua estranheza, mesmo sendo natural, rompe a
superfcie do ordinrio e faz com que se quebre o gelo, que amanhea a
luz, que caia a ficha, isto , que numa experincia de desvelamento
se abra a dimenso religiosa da realidade45.
O autor, descrevendo sobre Deus como sujeito da revelao, nos diz
que, porque Deus nos ama, o mundo torna-se habitvel e visvel. Ele
nos ama de maneira nica, nos criou por amor e no amor permanece
como um Pai-Me, voltado sobre nossa Histria, a fim de nos ajudar e
salvar-nos. Se ele cria por amor, quer dar-se a todos e dar-se
totalmente46. Sua presena total, abrangendo toda realidade, dando
com isso um colorido existencial. O tema da revelao ficaria a
desejar se no falssemos da questo da linguagem religiosa: Nela se
revela necessariamente ndole da experincia reveladora que a
sustenta, e por sua vez constitui o ponto de sua decisiva
iluminao47.
Aqui se reflete tambm o desvelamento do mistrio na abertura do
ordinrio, ou seja: a revelao no cria uma linguagem prpria e
exclusiva, que seria, bem por isso, ininteligvel e intil, mas
transforma a linguagem ordinria, de maneira que atravs dela aparea
o mistrio. Trata-se de uma transformao da linguagem mediante a
prpria linguagem, com ajuda de estratgias adequadas, que tornam
patente sua radical e infinita abertura48. H, pois, um poder
revelador na linguagem religiosa, que rompe cada um dos nossos
intentos de fazer de nossa experincia um sistema fechado49. A
presena de Deus
43 TORRES QUEIRUGA, A. Repensar a ressurreio, p. 105.
44 Cf. Idem. A revelao de Deus na realizao humana, p. 179.
45 Ibidem, p.180.
46 Cf. Idem. Do Terror de Isaac ao Abb de Jesus, p. 31-32.
47 Idem. A revelao de Deus na realizao humana, p. 183.
48 Cf. Ibidem, p.184.
49 Ibidem, p. 187.
-
25
na realidade total, se coloca como uma presena reveladora e
capaz de expressar-se em atos concretos, no como algo do tipo
intencionalista, mas como presena real.
At aqui insistimos no movimento que vai de ns at Deus e no
carter do Deus sempre a, como uma presena a ser descoberta, agora
iremos destacar que,
a revelao , antes de tudo, um movimento de Deus at ns e que tem
carter dinmico: o sempre a indica to somente que a presena
sustentadora e a unio radicam Deus-homem como raiz que alimenta e
possibilita seu chegar sempre novo, vivo e histrico.50
A revelao de Deus acontece l onde a pessoa, por sua fidelidade
ou situao pessoal que vive, se apercebe. No foi Deus, que j estava
ali falando no gesto vivo e sempre atual de cada situao concreta,
quem mudou; quem mudou foi o ser humano, que, por fim, descobre o
que lhe estava sendo dito: o Senhor estava neste lugar, e eu no
sabia (Gn 28,16), e ao descobr-lo transforma a sua vida51.
Em Moiss podemos constatar como a revelao de Deus no algo
espetacular. Ele vai se revelando medida que ns humanos lhe
permitimos e somos sensveis sua presena. Para Moiss, a revelao se
produziu quando ele se apercebeu de que, na rebeldia que sentia
contra a opresso injusta do fara estava se manifestando a voz de
Iahweh. No prprio sentimento, enquanto expresso do ato criador e
salvador de Deus, soube ler que este est sempre nos dizendo que se
compadece de toda a opresso e de todo o sofrimento52.
Segundo Torres Queiruga, percebe-se aqui claramente que Deus no
mudou em si mesmo no sentido de que, a partir da constatao de Moiss
diante das injustias, Deus tivesse se tornado mais compassivo e
misericordioso, mas mudou para Moiss e, a partir de Moiss, tambm
para ns hoje.
A realidade que nos cerca, o espao, o corpo onde Deus se
expressa, ou podemos at dizer que o rosto onde as pessoas podem ver
e sentir a manifestao da presena divina. A inteira realidade um
gesto ativo e voluntrio de Deus, que atravs dela se
50 TORRES QUEIRUGA, A. A revelao de Deus na realizao humana, p.
189.
51 Idem. Repensar a ressurreio, p. 106.
52 Cf Ibidem, p.106.
-
26
manifesta e se revela ao homem53. Olhando para a realidade e sua
evoluo, os processos histricos e o crescimento da pessoa humana
vemos a, a manifestao de Deus.
Quando o homem consegue descobrir em tudo isso a ao criadora de
Deus, que o sustenta para que se realize; quando percebe a a
liberdade divina, que amorosamente vai empurrando-o para
autenticidade; quando escuta a a palavra de amor que chama, ento
est acontecendo a revelao 54.
Para Torres Queiruga, podemos dizer que este o segredo de muitos
msticos que conseguem captar em tudo a presena de Deus, sua ao
criadora e salvadora. como despertar do sono da aparncia ordinria
para realidade e poder constatar em tudo a presena do Criador. Para
estes msticos o mundo se converte num espelho fludo e transparente
em que o homem, contemplando seu rosto, descobre o rosto do bem
amado, seu rosto verdadeiro55. Lembra-nos isso tambm o apstolo
Paulo quando fala aos judeus convertidos: Deus que fez o homem para
que este o encontre, Deus, a quem tentamos apreender atravs do
andar s apalpadelas de nossas vidas, este Deus se encontra to
estendido e to palpvel como uma atmosfera que nos banhasse. Por
toda a parte nos envolve, como ao prprio mundo56.
A invisibilidade de Deus no mundo no significa um problema, mas
ao contrrio a figura concreta da revelao. Deus conhecido quando vem
ao mundo e se revela, mas no pode ser visto a partir das condies
deste mundo. Pois o modo divino de Deus aparecer supera as
possibilidades deste mundo que, como tal, dissocia no espao, no
tempo e dentro do tempo, nos diversos modos temporais57.
Na experincia da revelao, quando autntica, a pessoa humana capaz
de compreender que toda iniciativa em se revelar vem de Deus. E que
somente, ao vir Deus ao seu encontro, cabe ao ser humano
reconhec-lo. Por isso o homem verdadeiramente religioso proclamou
sempre que Deus quem fala, ama, perdoa... e que o homem unicamente
responde na f, na orao, no louvor, na adorao58. Para Torres
Queiruga,
53 TORRES QUEIRUGA, A. revelao de Deus na realizao humana,
p.189.
54 Ibidem, p.189.
55 Ibidem, p.190.
56 Ibidem, p.190.
57 Ibidem, p. 191.
58 Ibidem, p. 193.
-
27
aqui, encontra-se tambm uma das dificuldades da pessoa em querer
objetivar, coisificar Deus, querendo apoderar-se dele, ou
rebaixando-o condio de um objeto passivo da atividade humana.
Segundo o autor, a revelao no consiste em algo esttico mas traz
em si uma dinamicidade, num constante dar-se a conhecer dinmico. A
pessoa s conhecida enquanto se d a conhecer, s est presente
enquanto se faz presente59. Toda a relao de amizade abre pessoa um
mundo cheio de surpresas, de realizaes. A partir desta chave de
leitura podemos ler toda a revelao Bblica. No encontro com Deus,
que est desde sempre chamando o homem, vo aparecendo novas dimenses
e abrindo-se profundezas de nenhuma maneira suspeitadas nem
dedutveis desde os primeiros estdios60.
Deus no algum estagnado, parado, pelo contrrio, sempre ato. No
um profeta que aparece e se retira, que se cansa e se anima
novamente. Como ato puro,
algum que est sempre em ao. Meu Pai continua trabalhando e eu
tambm trabalho (Jo 5,17). Presente a toda a criao e atento a cada
um em particular, movendo os coraes com seu esprito, em todo tempo
e circunstncia (cf. Rm 8,22-30). De uma maneira que ultrapassam
todos os limites de nossa compreenso, revela-se sempre ao homem,
pressionando a conscincia humana para que cada pessoa em cada
circunstncia o possa descobrir. E quando a descoberta se produz,
sempre descoberta do Deus que estava a, mas chega e se revela
porque quer61. Para Queiruga, a revelao se d como um ato livre e
concreto do amor de Deus. Ele determina seu prprio ser. Isso no
significa submisso ao homem, nem mesmo uma distncia indiferente,
mas uma liberdade que se d no amor. pura adeso e entrega gratuita
por parte de Deus. Toda a presena divina ao homem, em qualquer
tempo, modo ou lugar, sempre ato concreto e deciso livre de
Deus.
1.3 EXPERINCIA HUMANA DA REVELAO
Quando falamos de experincia, partimos da definio de que o ato
ou efeito de experimentar, ou a prtica que vamos adquirindo em
nossa vida. a prtica adquirida com o exerccio constante de algo.
Dizemos: aquela pessoa cheia de experincia, ou seja,
59 TORRES QUEIRUGA, A. A revelao de Deus na realizao humana, p.
195.
60 Ibidem, p. 196.
61 Cf. Ibidem, p.197.
-
28
adquiriu com exerccio constante de uma profisso uma prtica capaz
de responder por determinado trabalho. Segundo Andrs Torres
Queiruga, ao se falar de experincia, tratamos de evocar seu carter
de vivncia presente, de presena atual, de influncia operativa sobre
o sujeito, ante o que poderia ser mera recordao do passado ou
simples aceitao, porque outros o dizem, de algo externo e
alheio62.
Na verdade o autor ao falar em experincia e revelao, responde a
um dos grandes desafios deste tempo moderno, que o da f, ou da
revelao de Deus, que parte da experincia. No entanto no esclarece
muito o conceito de experincia. E, alm do mais, aborda esse
conceito, partindo da experincia emprica e cientfica, mas a
experincia da revelao de Deus tambm traz o lado de experincia que
mistrio e que experincia amorosa.
Diante do termo experincia, importante distinguir as diferentes
expresses com que se conjugam as experincias. Como, por exemplo, a
experincia cientfica da experincia existencial. A experincia
cientfica aquela que se conhece atravs da cincia, em que se d a
relao entre sujeito e objeto. Nessa experincia de relao se exerce
um controle entre sujeito e objeto. Na experincia existencial, a
experincia conduz o ser humano e o ser humano atingido, ou sofre a
experincia.
Entre as experincias existenciais humanas, a experincia amorosa
e a experincia
mstica so as duas mais caractersticas. A experincia amorosa est
ligada ao relacionamento com a alteridade. O ser humano vai ao
encontro do outro porque tem dentro de si a possibilidade
existencial concreta de sair de si e estabelecer uma relao de amor,
de encontro com o outro, uma experincia amorosa. Esta capacidade de
sair de si torna o ser humano aberto relao com o transcendente,
experincia mstica. A experincia mstica est ligada ao mistrio, ao
inefvel, algo dado gratuitamente por Deus. Ele vem ao encontro,
toma a iniciativa, revela-se, deixa-se encontrar. uma experincia
que no tem como dizer, mistrio.
Outras experincias que caracterizam o ser humano so as
experincias limites, ou
seja, a experincia da morte, da solido, do sofrimento inocente,
do erro. Na experincia de morte est a experincia da finitude
humana. Da incapacidade do ser humano de fazer frente a essa
realidade, a nica certeza que est subjacente ao nosso viver. Outra
experincia limite a da solido. Estar sozinho pode ser uma
experincia positiva, boa, desde que se tenha conscincia. A escolha
de ficar sozinha durante um tempo pode ser
62 TORRES QUEIRUGA, A. A revelao de Deus na realizao humana, p.
256.
-
29
enriquecedora. Olhando para a experincia do limite da solido o
ser humano passa por um estado de profunda separao, isso pode se
manifestar no sentimento de abandono, rejeio, insegurana, falta de
esperana. Enfim a experincia de estar s consigo mesmo numa solido
profunda, numa experincia limite.
A experincia limite do sofrimento inocente. Fazer a experincia
de sofrer por algo que no se praticou. Experimentar o limite de
pagar injustamente por aquilo que a conscincia no acusa. Temos em
Jesus o exemplo de algum que na experincia da cruz experimentou a
mxima expresso do sofrimento inocente, mas que nele se tornou um
sofrimento redentor, fonte de sentido para todo sofrimento
humano.
E, por fim, a experincia humana do limite do erro, do pecado, da
fragilidade. Faz parte da nossa experincia ordinria a imperfeio, o
erro e a ruptura. Queremos ser perfeito, nunca falhar. Mas a vida
mostra-nos quanto falhamos. Apesar de no ser preciso errar para ser
humano, a verdade que errar faz parte do limite da experincia
humana.
Jrgen Moltmann, no seu livro O Esprito da Vida, descreve o
conceito de experincia e, mais concretamente a experincia a partir
do Esprito. Segundo ele, tanto na Filosofia quanto na Teologia o
conceito de experincia um dos menos esclarecidos. E pelo fato de o
conceito no estar estabelecido, logo a curiosidade desperta quando
se parte de experincias. Experincia, no sentido mais amplo, designa
a totalidade daquilo que ocorre ao homem na vida de sua
conscincia63, ou que, experincia, abrange a totalidade daquilo que
a razo adquire no exerccio de sua atividade64.
Para Moltmann, no entanto, a maioria de nossas experincias no as
fazemos com a conscincia nem com a razo, ou inteno consciente. Ao
contrrio,
percebemos com nossos sentidos as ocorrncias que nos atingem,
elas tocam-nos o corpo, penetram nas camadas inconscientes de nossa
alma, e de certo s uma pequena parte delas se torna consciente e
adquirida pela razo no exerccio de sua atividade reflexiva e
interpretativa.... evidente que a conscincia, a razo e a vontade
racional fazem parte do sentir e do elaborar as experincias. Mas
nossa totalidade corprea tambm experimenta de outra maneira e tambm
elabora as experincias de outras maneiras.65
63 MOLTMANN, J. O Esprito da Vida, p. 30.
64 Ibidem, p. 30.
65 Ibidem, p. 32.
-
30
Diz Moltmann que a experincia do esprito de Deus no est limitada
autoexperincia do sujeito humano, mas um elemento constitutivo
tambm na experincia do tu, experincia da comunho e na experincia da
natureza66. Portanto, na medida em que Deus est em todas as coisas
e todas as coisas esto em Deus, e, portanto, o prprio Deus sua
maneira, experimenta todas as coisas, possvel a experincia em, com
e ao lado de toda a experincia diria do mundo.
Segundo Moltmann, a possibilidade que temos de reconhecer Deus
em todas as coisas e todas as coisas em Deus, fundamenta-se
teologicamente na compreenso do Esprito de Deus como fora de toda a
criao e fonte da vida. Como nos diz o salmo Escondes tua face e
eles se apavoram, retiras sua respirao e eles expiram, voltando ao
seu p. Envias teu sopro e eles so recriados, e assim renovas a face
da terra (Sl 104, 29-30). Portanto, para Moltmann, toda a
experincia de uma criatura do esprito tambm uma experincia do
prprio esprito. Assim, toda a autoexperincia passa a ser tambm uma
experincia do esprito, de vida de Deus no ser humano.
O telogo Karl Rahner, ao se referir relao do homem com o
transcendente, enquanto criatura, frisa que essa experincia
transcendental necessariamente nos remete ao mistrio:
est dado o que venha a ser condio de criatura e na verdade como
algo que experimentado imediatamente nessa experincia. O termo
condio de criatura interpreta corretamente essa experincia original
da relao entre ns e Deus. Em primeira instncia e originariamente, a
condio de criatura refere-se a uma relao cuja natureza s pode
descobrir no seio da experincia transcendental como tal e no no
fato de uma coisa fundar-se na outra do mesmo gnero dela.67
Segundo Andrs Torres Queiruga, a revelao de Deus na realizao
humana vai se realizando numa progressiva relao com Deus.
Unicamente medida que a livre e consciente subjetividade do homem
vai-se apropriando na histria do manifestar-se de
66 MOLTMANN, J. O Esprito da Vida, p. 44.
67 RAHNER, K. Curso Fundamental da F, p. 97.
-
31
Deus, pode acontecer a revelao. Por isso, esta no pode vir
pronta, cada do cu.Tem de fazer-se no prprio ir-se fazendo do
homem68.
A revelao de Deus na realizao humana nada mais do que dizer que
Deus no se revela, a no ser na e para humanizao dos homens e
mulheres que buscam dar maior sentido e razo de ser para a sua
existncia.Deus se revela para nos tornar mais humanos, solidrios e
fraternos, construindo o sonho de Deus de uma sociedade de irmos e
irms.
Segundo o autor, se Deus cria o ser humano por amor, e por amor
se oferece gratuitamente a ele, ento o ser humano aquele que
recebe, que acolhe, que deixa ser a ao de Deus em si mesmo. Para
Queiruga, a idia do Deus que cria por amor, parece ser uma das
chaves de leitura importante para uma nova forma de compreender a
relao imanncia-transcendncia.
Falando de criao, preserva a mxima diferena; mas vendo-a a
partir do amor, assegura a mxima identidade, (maior que a me com
sua criatura: Is 49,15). Fundando e sustentando o mundo, Deus
promove sua autonomia sem nela interferir, presena viva sem ter que
entrar em um espao que j est sempre cheio de sua presena ativa, com
iniciativa irrestrita e absoluta.69
Segundo o nosso autor, a Palavra de Deus que nunca se esgota num
nico paradigma, se encarna sempre, criando Histria e assumindo as
questes vitais e cruciais do ser humano. Ela no se realiza seno na
vivncia cotidiana, mediante a aceitao do homem. Deus algum que se
aproxima do ser humano, para auxili-lo, no o tolhe na liberdade. A
dinmica da salvao consiste na real dialtica entre Deus e a pessoa.
De um lado est Deus em pura e constante doao e do outro, o ser
humano e seu empenho por receber e acolher a bondade divina. Neste
contexto o ser humano realiza a experincia de Deus que, em sua
bondade possibilita ao ser humano fazer a experincia do divino.
68 TORRES QUEIRUGA, A. A revelao de Deus na realizao humana, p.
292.
69 Idem. O Vaticano II e a Teologia. Concilium, n 312, 2005, p.
26-27.
-
32
Ao se falar em experincia, e aqui experincia de Deus que se
revela no humano, tem tambm o confronto com Edward Schillebeeckx,
que trata deste assunto70. Para ele, sem experincia no h revelao.
De um lado, nenhum argumento que venha desde fora da f crist poder
justificar esta f, por outro lado, a salvao que se nos oferece
generosamente no pode ser vista fora da vida e da experincia
humana71. A revelao por sua prpria natureza tem a ver com a
experincia humana, uma experincia expressa em
palavras. a ao salvfica de Deus enquanto experimentada e
expressada pelo homem72. O prprio Torres Queiruga, na apresentao do
livro F cristiana y Sociedad moderna, de Schillebeeckx, comenta
sobre a sua meta principal de romper com a oposio entre a revelao
concebida como mistrio e a experincia humana. Mostra como a
experincia cotidiana tem muito carter revelador, e por outro lado,
a revelao religiosa s chega a ns e resulta como significativa se
conectada com a experincia. Desta forma a revelao no se impe
arbitrariamente, seno traz em si a autoridade da experincia.
Segundo a apreciao de Queiruga, Schillebeeckx termina a obra
falando da possibilidade de uma experincia de f efetiva nas condies
da sociedade atual. A dificuldade vem, de uma parte, da pobreza
experiencial da sociedade e de outra, das mudanas profundas na
socializao do cristianismo. Segundo ele, somente uma Igreja que
70 Para Edward Schillebeeckx a experincia mais que mera vivncia.
A experincia realiza-se em processo
dialtico com o concurso de perceber e pensar e de pensar e
perceber. O pensar torna possvel a experincia, e experincia torna
necessrio novo pensar. Schillebeeckx em seus estudos busca
compreender a experincia crist, concreta e contempornea. Segundo
ele, falta teologia catlica uma hermenutica. O que se utiliza na
teologia catlica, como equivalente a uma teoria hermenutica, a
teoria da evoluo do dogma, que permite explicar a persistncia da
mesma verdade dogmtica nas manifestaes da f em contexto cultural
que passou por mudanas, como desenvolvimento legtimo e homogneo do
implcito para o explcito. Segundo Schillebeeckx, a conscincia
humana que faz experincia no uma folha em branco e jamais se
realiza em vcuo psquico ou scio-histrico. H aspectos complexos em
relao estrutura de nossas experincias. Para o autor, uma experincia
para ser competente, ter autoridade, dever ser pesquisada racional
e criticamente. A experincia s se torna competente quando leva
criticamente em conta os pressupostos do seu surgimento.
Experincias humanas so mediadas social e politicamente. Portanto,
preciso anlise exata da situao atual, para que novas experincias
possam manifestar sua fora originria. ( Cf. Gibellini, R. Op. Cit,
p. 325). Para Schillebeeckx, a revelao s chega propriamente sua
plenitude como revelao real na resposta de f a uma situao muito
concreta com um horizonte prprio de questes. Insiste em que toda a
experincia existe sempre enquanto interpretada. Isso vale contra
todo fundamentalismo bblico por parte dos fiis e contra toda acusao
apressada de extrinsecismo por parte dos no fiis. No existe oposio
entre experincia e interpretao, de maneira que a f pudesse ser to-s
uma interpretao, e apenas a no-f se apoiasse na experincia. Ambos,
fiel e no-fiel, experimentam interpretando. necessria a experincia
viva e real para que haja interpretao cristolgica autntica: nenhuma
revelao sem experincia. A ruptura entre f e experincia uma das
causas fundamentais da crise atual entre os cristos fiis Igreja.
Cf. TORRES QUEIRUGA, A. Repensar a Cristologia, p.74. 71
SCHILLEBEECKX, E. Cristo Y los cristianos, p. 39. 72
Ibidem, p. 39.
-
33
seja capaz de renunciar uniformidade, aproveitando a plural
riqueza dos grupos e comunidades, ter uma presena profunda73.
A revelao pela histria se realiza tambm na histria individual. A
crise da comunidade no exilio babilnico sups um avano culminante no
processo revelador.
O homem experimentou com decisiva nitidez a presena de Deus no
prprio ncleo de seu estar sendo pessoa. A intimidade dramtica da
vida de Jeremias como lugar em que descobre o Senhor em
proximidade, fora e vivacidade nunca vista at ento, constitui um
exemplo bem significativo.74
Para o autor, a conscincia da pessoa constitui um lugar
privilegiado no anncio do divino para o homem. Considerada em toda
sua radicalidade e amplitude, a conscincia constitui de algum modo
a determinao ontolgica do homem em sua mais ntima especificidade75.
Todo nosso ser , enfim, um gesto real de Deus feito desde seu poder
e sua liberdade criadora. Gesto intencionado, dirigido a ns para
que o captemos: na realidade csmica, na realidade histrica ou na
realidade individual. No h outra possibilidade, dada a diferena
ontolgica entre o criador e a criatura. Captar este gesto acolher
na intencionalidade humana a ativa intencionalidade Divina que a
ela se dirige: a revelao.
O ser humano emergente, ou seja, no est plantado na
horizontalidade de um mundo redondo, mas um ser aberto e dinmico,
que continua por outros caminhos, o processo. Descobrindo, ao olhar
para trs, o processo evolutivo, movido por um dinamismo infinito,
aberto a uma plenitude que lhe chegue a partir de fora e a partir
de cima. Dentro desta realidade e falando agora a partir da
perspectiva religiosa e iluminado por ela, o homem se sente, por
trs, modelado desde a raiz pela mo criadora de Deus que o
impulsiona e, pela frente, colado ao rosto desse mesmo Deus, que o
chama e lhe vem ao encontro nas mil figuras, da realidade total. A
revelao se insere nesta abertura. justamente a descoberta deste
rosto e a escuta de sua palavra76.
73 Cf. SCHILLEBEECKX, E. F cristiana Y sociedad moderna, p.
10-12.
74 TORRES QUEIRUGA, A. A revelao de Deus na realizao humana, p.
168.
75 Ibidem, p. 169.
76 Cf. Ibidem, p. 174.
-
34
Segundo o nosso autor, a revelao por parte de Deus sempre se
realiza na liberdade do homem. A relao pessoal do ser humano com
Deus, embora oferecida e disponvel por parte de Deus, s efetivada
quando acolhida por parte de quem recebe a doao, ou seja, to
somente na resposta da pessoa se faz realidade concreta. Portanto,
o processo da revelao se identifica com a histria do homem,
avanando com ele em sua caminhada e realizando-se em sua realizao.
Estamos muito acostumados a identificar o real com o fsico quando
no homem o real o espiritual. Atravs do corpo recupera-se todo o
esforo constitutivo do cosmos e da vida, que se traduz em
conscincia e liberdade. A revelao implica pois, em algo bem
simultneo: ao de Deus e a realizao do homem.
A pessoa humana descobre em sua emergncia a fora criadora e
salvadora de Deus que o pressiona para sua realizao, mas sabe,
tambm, que essa realizao sua, que ela mesma que cresce.
Descobrir-se desde Deus maturar o prprio ser, ir dando a ele a
substncia de seu ltimo e mais autntico crescimento; ao mesmo tempo
este crescimento vai possibilitando uma dialtica progressiva, novas
capacidades de acolher a ao de Deus77. Continuando com a concretude
da revelao pode-se intuir que a presena de Deus na liberdade humana
possui uma eficcia indita que, sem romper com a transcendncia, o
faz distinta da presena em tudo o mais. O ser humano que emerge no
mundo, realizando-se no encontro com Deus, o ponto em que a ao
divina encontra uma possibilidade de ao dirigida imediatamente
mudana, transformao ou converso da pessoa78.
Para Torres Queiruga a presena de Deus se revela como chamado
mudana, converso de vida, convite ao novo. Deus assim, pode influir
diretamente no homem atravs da liberdade. Fazendo-o receber
influxos a cada momento por meio da natureza, da histria e do
prprio Deus. Ele no entra em concorrncia com a liberdade humana, a
graa da revelao consiste em que Deus se manifeste e confirme sua
liberdade no quadro da livre atividade do homem. medida que Deus
vai adentrando a liberdade humana, tambm capacita o homem para que
oriente na justa direo o mundo. Deus entra na histria e transforma
o mundo no base de milagres e intencionismo, e sim atravs de sua
presena reveladora na liberdade do homem79.
Deus no se manifesta como milagreiro que vai salvar a pessoa
humana tirando-a da opresso, injustias, guerras, enfermidades, mas
busca entrar na histria humana atravs de nossa liberdade, para
transformar tudo isso. Para abrir um horizonte de esperana,
onde
77 Cf. TORRES QUEIRUGA, A. A revelao de Deus na realizao humana,
p. 202.
78 Cf. Ibidem, p. 203.
79 Ibidem, p. 205.
-
35
tudo possa ser assumido sem destruir o sentido de nosso ser e
aniquilar nossa possibilidade de realizao80. Influir no mundo
atravs da liberdade, do amor que chama, corrige, potencializa. A
revelao se realiza no face a face do encontro. Aperceber-se da
presena de Deus no descobrir um espao neutro que a pessoa explora
por sua iniciativa; ao contrrio, sentir-se chamado, interpelado,
levado sempre mais alm de si mesmo por caminhos nunca antes
suspeitados, que um amor livre e gratuito vai traando e iluminando.
Quanto mais intensa a descoberta, mais evidente se faz seu carter
de dom81.
Segundo Torres Queiruga, a revelao consiste em ir descobrindo a
ao de Deus atravs de nosso ser, no algo misterioso que irrompe na
realidade. Podemos dizer comparativamente que a revelao no a
cegonha e sim a parteira, ela ajuda a dar a luz o que est dentro.
Deus no falha, ns que falhamos, por isso no tem sentido entender a
revelao como um milagre intervencionista na histria humana. Que
Deus esse, que faz milagre a um e no a outro? Um Deus limitado no
Deus, Ele continua sendo onipotente, a culpa existe em ns, porque
somos seres finitos. No h nenhum conhecimento de Deus que no seja
revelao. Se algo descobriu de Deus, porque Ele se deixa
revelar82.
O que chamamos de revelao uma resposta real e concreta a
perguntas humanas e por isso mesmo, so sempre as mesmas perguntas.
Dessa forma, descobrimos a revelao, porque algum no-la anuncia; mas
a aceitamos porque, despertados pelo anncio, vemos por ns mesmos
que essa a resposta certa83.
Diante da religio, o seu fundador no coloca nos ouvintes algo
externo que lhes seja alheio, mas ajuda as pessoas a dar-se conta,
a dar luz. a arte da parteira. Aquilo que eles ou elas j so em sua
realidade mais ntima, a partir da presena viva e atuante de Deus na
criao e na Histria84.
Se a revelao consiste em dar-se conta de que Deus j estava a,
porque a partir de seu amor, Ele estava fazendo todo o possvel para
se manifestar, na mxima medida. O limite no fruto da mesquinhez
divina que podendo revelar-se mais, ou melhor, no quer faz-lo.
fruto da inevitvel limitao humana, infinitamente desproporcional ao
mistrio que, como generosidade irrestrita, procura dar-se e
manifestar-se por todos os meios85.
80 TORRES QUEIRUGA, A. A revelao de Deus na realizao humana, p.
206.
81 Cf. Ibidem, p. 211.
82 Idem. Anotaes pessoais da palestra: O fazer teolgico em
tempos ps-modernos, proferida em So
Leopoldo, na Unisinos, em 27.05.2004. 83
Idem. Autocompreenso crist, p. 18. 84
Cf. Ibidem, p. 18. 85
Ibidem, p. 20.
-
36
Deus no cria por amor a si mesmo, mas por amor a todo homem e a
toda mulher. Oferece-nos como dom a participao em sua plenitude. A
nica coisa que no pode nem quer romper os limites de sua finitude;
preciso respeitar o crescimento da liberdade e o trabalho da
histria, sem os quais a existncia humana no pode ser, nem
realizar-se86.
86 TORRES QUEIRUGA, A. Autocompreenso crist, p. 20.
-
37
2. HISTRIA E REVELAO DE DEUS
Segundo Torres Queiruga, hoje, mais do que nunca se faz
necessrio retomar a Histria e a forma como Deus foi se manifestando
ao longo desta Histria. Por muito tempo se herdou a idia de ver a
Histria sob a seqncia paraso queda castigo redeno glria. Seqncia
esta que, de certa forma, est incrustada no imaginrio coletivo
tanto secular como religioso. Portanto, importante romper com esse
esquema
buscando uma leitura mais condizente e que leve a srio Deus em
seu amor incondicional. Ou seja, um esquema que, em lugar de ver um
Deus que castiga implacavelmente
uma falta original, no s expulsando do paraso e introduzindo o
sofrimento e a morte no mundo, mas exigindo inclusive o sacrifcio
de seu Filho para outorgar o perdo, prope uma sequncia radicalmente
distinta: a do Deus que por amor traz existncia sua criatura que,
como no poderia deixar de ser, nasce imperfeita, mas sustentada
incansavelmente em seu crescimento ao longo de toda sua histria que
culmina em Cristo e que, graas ressurreio, se abre esperana da
glria definitiva, sem sombras nem fissuras87.
Deus no cria o ser humano primeiro como criatura neutra natural
para depois elev-la a um estgio superior sobrenatural. Criada por
amor, no amor e para o amor, a criatura humana est desde sempre
envolvida na graa salvadora de Deus, que a sustenta no ser e a
promove na sua realizao possvel na histria, at a plenitude da
comunho definitiva88. Com isso, segundo Torres Queiruga, possvel
compreender a imagem divina a partir de um Deus amoroso, prximo,
sem perder nada da riqueza que se buscava expressar, mas igualmente
sem cair em um otimismo fcil. O mal continua sendo real e no se
nega sua dura presena, mas no castigo divino, antes um obstculo
que, opondo-se igualmente criatura e ao impulso criador que a
sustenta, representa aquilo que Deus no quer e em cuja superao
Deus, como Pai-Me ao lado de seus filhos e filhas, trabalha ele
mesmo, apoiando e inspirando nosso esforo.
87 Cf. TORRES QUEIRUGA, A. Esperana apesar do mal, p. 11.
88 Ibidem, p. 78.
-
38
A salvao em Jesus Cristo no o preo a se pagar a um 'Deus' irado;
exatamente o contrrio: a culminao da luta amorosa que, ao longo e
no espao de toda a histria, o Deus-abb sustenta contra nossos
limites inevitveis e contra nossas resistncias culpveis, com o nico
fim de nos dar a conhecer seu amor e fazer-nos capazes de acolher
sua ajuda.89
2.1 A REVELAO NA HISTRIA
Percebendo a Histria como uma dos espaos teolgicos da revelao de
Deus, Torres Queiruga entende que a revelao de Deus na Histria de
homens e mulheres de f se manifestou desde o incio da vida humana.
Por sua vez, a revelao na histria aparece partindo de sua prpria
raiz, no s nascendo na histria, mas tambm criando histria e
realizando-se nela90.
Para o autor, desde sempre o ser humano constatou que Deus se
nos manifesta, como o comprovam as religies, os mitos e os ritos da
humanidade, que pressupem uma comunicao real entre Deus e o
homem91.
O mistrio divino se manifesta dentro de nosso mundo. Podemos
encontr-lo na natureza, que, enquanto criao de Deus, nos remete ao
Criador; no mistrio que se revela no homem mesmo; e na histria, que
vive de uma esperana que significa algo mais que a histria.92
A plenitude da revelao com seu dinamismo no oferece resistncia
histrica. Contudo, corre o risco de recair em frmulas ou esquemas
intelectuais. A Dei Verbum um exemplo disso, quando afirma a
revelao como o revelar-se a si mesmo, manifestando o mistrio de sua
vontade por parte de Deus. Ou ainda, ao centrar em Cristo a
plenitude da revelao, mas que no final apresenta a revelao como
algo feito e fechado. No h de se
89 TORRES QUEIRUGA, A. Esperana apesar do mal, p. 78-79.
90Idem. A revelao de Deus na realizao humana, p. 140. 91
Cf. Ibidem, p. 144. 92
Ibidem, p. 148.
-
39
esperar outra revelao pblica antes da gloriosa manifestao de
Jesus Cristo nosso Senhor93.
Segundo Queiruga, a plenitude da revelao, como abertura
histrica, nos apresenta a revelao como algo sempre atual e aberto
ao futuro, com o cuidado sempre novo de no cair na armadilha da
linguagem. Compara isso com uma amizade ou um amor, que, depois de
um longo tempo de gestao chega a um ponto em que a confiana total e
a entrega, sem reservas. Pensar no trmino deste amor seria no
entender nada, pelo contrrio, neste momento que se desenvolve todas
as potencialidades e possibilidades, numa abertura ao futuro94. A
mesma coisa, at mais rica e profunda, podemos dizer da revelao.
Que a comunho salvadora e amorosa de Deus com o homem alcance em
Cristo a plenitude, no significa um fim, mas o grande comeo, a nova
criao, o espao onde, a todo o homem aberta a possibilidade de
avanar para a idade adulta, at a estatura que corresponde plenitude
de Cristo (Ef 4,13). 95
Jesus Cristo plenitude da palavra definitiva de Deus, fecha em
si toda revelao da histria da salvao ao mesmo tempo, abre-se como
reveladora toda histria da revelao passada, presente e futura. A
historicidade do homem no fica, pois, anulada. Ao contrrio, fica
estabelecida em seu mbito definitivo e carregada com as
possibilidades de uma promessa infinita96. Portanto, a revelao
definitiva, como oferecimento histrico, no passa a ser uma figura
morta do passado, destinada apenas repetio da memria. a vida
insupervel, porm sempre aberta a realizar-se na prpria vida da
histria humana97.
Segundo o telogo Joo Batista Libnio, existe um crculo
hermenutico entre a histria e a revelao: a Histria permite
compreender a revelao e a concepo de histria afetada pela revelao.
Porm, histria e revelao no so grandezas da mesma natureza, mas se
nutrem da mesma fonte de verdade98. Na revelao Deus toma a
iniciativa
93 TORRES QUEIRUGA, A. A revelao de Deus na realizao humana, p.
251.
94 Cf. Ibidem, p. 252.
95 Ibidem, p. 253.
96 Ibidem, p. 255.
97 Ibidem, p. 255.
98 Cf. LIBNIO, Joo B. Teologia da revelao a partir da
Modernidade, p. 287.
-
40
e vem ao encontro do ser humano num dilogo amoroso, enquanto a
histria construo humana. Mas ambas se complementam, se projetam
para a mesma direo, a plenificao da histria e a totalizao da
revelao.
Consciente de que o limite da revelao no algo imposto por Deus e
sim pela impossibilidade da criatura, que, hoje mais do que em
outros tempos, a sensibilidade faz superar com maior profundidade e
coerncia esta intuio. Isso no apenas se pode dizer pela simples
tradio bblica, que rompendo a circularidade do tempo d primazia ao
futuro, mas pela irrenuncivel historicidade do homem. Este consiste
em realizar-se na histria, mediante o exerccio da prpria
liberdade99.
Torres Queiruga afirma que histria e revelao podem ser
entendidas como dimenses que so afetadas pela ao de Deus e da
pessoa humana. na histria que Deus se revela, por amor ao ser
humano e por respeito sua liberdade de criatura que faz histria. O
projeto de Deus, portanto, no se impe, mas dom gratuito. O telogo
Wolfhart Pannenberg tambm defende a idia da teologia como
histria.
No se pode falar de revelao como palavra, e sim de revelao como
histria; Deus no se auto-revela diretamente por sua palavra
endereada ao homem, e sim indiretamente, na lngua dos fatos, isto ,
por meio de suas intervenes na histria, entre as quais a ressurreio
de Jesus Cristo.100
Confrontando os espaos teolgicos da revelao de Deus descritos
por Torres Queiruga, o telogo Luiz Carlos Susin101 no livro Descer
da cruz os pobres, relata que, por muito tempo, o lugar que
pretendeu ser espao humano do divino, a mediao reveladora, foi o
lugar teolgico do poder. Quanto maior a potncia, mais revelaria a
onipotncia divina102. Ao referir-se histria como um dos espaos
teolgicos da revelao de Deus, o Conclio Vaticano II, a partir da
sensibilidade pastoral de muitos bispos, falando dos
99 TORRES QUEIRUGA, A. A revelao de Deus na realizao humana, p.
287.
100 GIBELLINI, R. A Teologia do Sculo XX, p. 273.
101 LUIZ CARLOS SUSIN frade Capuchinho. Nasceu em Caxias do Sul
em 1949. Atualmente professor
da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, e colega
de Torres Queiruga no Comit de redao da Revista Internacional de
Teologia Concilium. 102
Cf. SUSIN, Luiz C. O privilgio e o perigo do lugar teolgico dos
pobres na Igreja. In: VIGIL, J. M. (org) Descer da cruz os pobres,
p. 324.
-
41
sinais dos tempos, define com toda deciso a histria e seus
acontecimentos como lugar teolgico.
A teologia latino-americana, entretanto, passa a perceber essa
histria como um dos lugares teolgicos da revelao, mas, a partir de
seu reverso. A partir daqueles que no tm poder, que no triunfam,
que historicamente foram explorados, ou seja, os pobres. O lugar do
pobre o lugar da universalidade, a partir do qual todos tm
possibilidade de encontrar Deus, de entend-lo e de receber a salvao
universal103.
Para Torres Queiruga, a histria criao de Deus na medida em que
toda sua realidade e toda energia nela desenvolvida est fluindo
constantemente de suas mos criadoras. O que sucede que essa ao
divina se realiza atravs da liberdade humana. A ao de Deus se
realiza em e atravs da liberdade humana por ela sustentada. O
exerccio autntico dessa liberdade o lugar privilegiado no qual Deus
se faz presente como fonte de energia que suscita e como plo de
amor que atrai. O divino como constitutivo nuclear da experincia
social, a densidade sacral do mundo da fertilidade, verdadeira
transio entre a natureza e a cultura; as funes sociais com seus
ritos de iniciao, consagrao e passagem; a prpria histria do cl, da
tribo ou nao, com seus deuses protetores e suas peculiares
configuraes religiosas foram sempre fontes fecundas de manifestao
do sagrado104.
Para o nosso autor, o povo de Israel, na origem de sua histria,
no momento de sua decadncia, na experincia do caos, como tambm na
sua plenitude, descobriu a presena ativa de Deus. No prprio esforo
por afirmar-se atravs da dor e da alegria, da escravido e da
libertao conseguiu descobrir a presena viva de Deus. Descoberta que
tem a mesma verdade daquela feita a partir da natureza.
Diferentemente da natureza, com sua ordem imutvel, na histria essa
descoberta se realiza numa interao aberta, que se vai aprofundando
e auto-desdobrando acumulativamente como impacto de cada nova
experincia105.
Atravs da natureza contemplamos a glria e a grandeza da
divindade, tendendo a uma religio epifnica, na Histria, pelo
contrrio, se avana com a narrao do tempo real, com a presena de
Deus se realizando no processo mesmo da realizao do homem.
103 Cf. SUSIN, Luiz C. O privilgio e o perigo do lugar teolgico
dos pobres na Igreja. In: VIGIL, J. M.
(org) Descer da cruz os pobres,, p. 327. 104
Cf. TORRES QUEIRUGA, A. A revelao de Deus na realizao humana,
p.163-164. 105
Ibidem, p.165.
-
42
Em lugar da criao aparece a aliana como matriz fecundssima de
sentido, que tende a historicizar o prprio mito, e abre a
inesgotvel riqueza de atributos ticos de Deus106.
Torres Queiruga, em seu livro A revelao de Deus na realizao
humana, descreve que toda a criana israelita do futuro sempre poder
perguntar a seu pai o significado daquela histria (Ex 12, 21-27)
para conhecer assim a fidelidade de Iahweh e aprender a descobri-la
na prpria vida. Esta mesma constatao possvel faz-la atravs da
revelao proftica.
Para o autor, captar a revelao um processo de toda a pessoa. Tem
lugar na vida cognitiva e na emotiva, mas igualmente, e de modo
decisivo o tem, na conduta prtica. O homem, cuja conduta se deixa
guiar pelo dinamismo do amor e do servio, est, mesmo sem sab-lo,
captando e obedecendo ao chamado da graa; nele acontece e se
manifesta estritamente a revelao de Deus. Por sua vez, quem diz ter
captado cognoscitivamente a revelao, ter de mostr-lo em sua prxis
real, pois aceitar a revelao de Deus aceitar seus caminhos107.
A descoberta de Deus na histria no acontece sem alguns
pressupostos, vemos assim o exemplo na prpria experincia fundante
do xodo, em que Moiss, no partia do zero, pois tinha por trs no s a
tradio dos pais, mas tambm as religies vizinhas como a madianita e
a egpcia. A histria da revelao ser a histria religiosa da
experincia cada vez mais profunda e intensa na existncia do
individuo e na vida do povo. Com toda evidncia, Israel chegou a uma
viso histrica impregnada pela f, tendo como centro dinamizador a
experincia da libertao do Egito.
Sem buscar exclusivismo, nem querendo ser melhores do que os
outros, o autor defende que a religio bblica se caracteriza, entre
as demais, como uma religio aberta Histria. Que vai descobrindo-se
a si mesma no decorrer do tempo, enfrentando novas situaes, novos
problemas. Descobrindo a Deus, naquilo que Ele quer ser para nossa
vida e nossas atitudes diante dele e dos demais. Somos chamados a
estar bem atentos histria, ao que acontece na comunidade, na
sociedade, na nao e no mundo, porque a que vamos encontrar o Deus
real e verdadeiro. Eu serei aquele que serei, disse a voz da sara a
Moiss; ou seja, Deus aquele que vai mostrando-se com sua presena
ativa nas diversas transformaes da Histria. A que iremos
encontrando, a que iremos descobrindo os traos autnticos de seu
rosto salvador108.
106 TORRES QUEIRUGA, A. A Revelao de Deus na realizao humana,
p.165.
107 Cf. Ibidem, p. 166-167.
108 Cf. Idem. O Cristianismo no mundo de hoje, p. 21.
-
43
2.2 A PALAVRA LUGAR DA REVELAO
Para Torres Queiruga, a Palavra um dos lugares por excelncia da
revelao de Deus. Ao longo da