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RELEITURAS CONTEMPORÂNEAS DA GUERRA DOS FARRAPOS NA
LITERATURA SUL-RIO-GRANDENSE
Elcio Loureiro Cornelsen1
Resumo: Nossa contribuição visa a apresentar reflexões sobre a
relação entre
Literatura e História à luz das releituras contemporâneas da
Guerra dos Farrapos na literatura sul-rio-grandense. Nas últimas
décadas, com a chamada “virada” cultural, que também atingiu seus
alicerces teóricos – se pensarmos, com Hyden White e Sandra Jatahy
Pesavento, na Nova História e, respectivamente, na Nova História
Cultural –, a História tem sido objeto de releituras ficcionais dos
mais variados eventos. Como objetos de análise, elegemos os
romances Netto Perde sua Alma (2001), de Tabajara Ruas e A Casa das
Sete Mulheres (2002), de Letícia Wierzchowski. A relação entre
Literatura e História possibilita-nos vislumbrar aspectos
constitutivos das obras em questão, pois implica pensá-las na
confluência entre a narrativa histórica e a narrativa ficcional a
partir de seus elementos estruturantes básicos – tempo, espaço,
narrador, personagem etc. Em termos de releitura, no caso
específico da Guerra dos Farrapos, nota-se um deslocamento da
visão, por exemplo, no romance de Letícia Wierzchowski, em que a
guerra é vislumbrada a partir do olhar feminino. Já as obras do
escritor e cineasta Tabajara Ruas integram influências do cinema no
modo de narrar cenas de guerra, além da intensa presença do onírico
na constituição do enredo e das personagens. Palavras-Chave: Guerra
dos Farrapos; Releitura; Nova História Cultural; Literatura e
Guerra. Abstract: Our contribution aims to forward remarks on
the relation between Literature
and History on the basis of contemporary readings of the
Farrapos War in literature from Rio Grande do Sul. In the past
decades, with the so-called cultural “turn”, which also reached its
theoretical grounds – having in mind Hyden White and Sandra Jatahy
Pesavento, in New History and, respectively, in the New Cultural
History –, History has been the object of new fictional readings of
the most varied events. We have chosen the novels Netto Perde sua
Alma (2001), by Tabajara Ruas, and A Casa das Sete Mulheres (2002),
by Letícia Wierzchowski, as objects for analysis. The relation
between Literature and History enables us to envisage constituting
aspects of the mentioned works since it implies viewing them at the
junction between historical narrative and fictional narrative from
their basic structuring elements – time, space, narrator, character
etc. In terms of re-reading, in the specific case of the Farrapos
War, a shifting of view is noted in Letícia Wierzchowski „s novel,
for instance, where the war is perceived under a female gaze. For
their part, the works by writer and filmmaker Tabajara Ruas bring
cinematic influences into the mode of narrating war scenes, in
addition to an intense presence of the dreamlike in the make up of
plot and characters. Keywords: Farrapos War; Re-reading; New
Cultural History; Literature and War.
1 Professor de Língua e Literatura Alemã (graduação) e de Teoria
da Literatura e Literatura
Comparada (pós-graduação) na Faculdade de Letras da UFMG; membro
do Grupo Integrado de Pesquisa “Literatura e Autoritarismo” (UFSM)
desde 2000, e do Núcleo de Estudos sobre Guerra e Literatura (UFMG)
desde 2009; e-mail: [email protected]
mailto:[email protected]
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1. Introdução: Releituras ficcionais da História e suas
implicações
Em entrevista concedida ao jornal Estado de Minas por ocasião
do
lançamento do romance Na noite do ventre, o diamante (2005), o
escritor
Moacyr Scliar falou, entre outras coisas, “da história como
fonte inspiradora da
ficção” (2005, p. 5). Para Scliar, a História é “[...] um filão
inesgotável. Agora, é
importante visitar a História com o olhar ficcional de hoje. Não
se trata de
„recuperar‟ o passado – isso é coisa para historiadores,
trata-se de recriá-lo
ficcionalmente. Não é a História que foi, é a História que
poderia ter sido. São
as emoções do passado transpostas para o presente” (2005, p. 5;
ênfase
nossa).
Por sua vez, ao se referir à obra do historiador Ramón Iglesia a
partir da
relação entre História e Literatura, Álvaro Matute apresenta a
proposta de uma
releitura da História a partir do olhar dos “índios”, dos
“vencidos”, dos
“colonizados” diante da chegada dos colonizadores europeus, a
partir da
“apelación a lo contrafactual” (Matute, 2003, p. 386). Para
isso, o crítico
mexicano recorre à “ficção” como pressuposto para a releitura da
Historia: “en
la ficción de imaginar por un momento lo que pudo haber pasado
en la mente
de los indígenas de Guanahani, al „descubrir‟ a sus
„descubridores‟” (Matute,
2003, p. 387; ênfase nossa). Nesse sentido, devemos entender o
processo de
releitura ficcional da História intrinsecamente associado à
noção de alteridade.
Tal postura, aliás, contribuiria para a tarefa de se “escovar a
história a
contrapelo” (Benjamin, 1994, p. 225), noção cara ao pensador
alemão Walter
Benjamin.
Outra questão importante a se considerar ao lidarmos com a
relação
entre Literatura e História seria: Por que temas históricos
atraem tanto os
escritores? Segundo a historiadora Maria Teresa de Freitas, tal
atração resulta
da “grande variedade de situações ricas em peripécias e emoções
– dois
ingredientes básicos da literatura de ficção – que [os temas
históricos]
oferecem” (Freitas, 1987, p. 605), sobretudo pelo “componente
básico da
tragédia – a catástrofe – através do qual sentimentos e
situações são levados
ao paroxismo” (1987, p. 606).
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Portanto, mais do que aludirem a situações históricas ou
mesmo
situarem “sua intriga num determinado contexto sócio-histórico,
que lhe serve
de pano de fundo, numa preocupação de dar maior realismo ao
texto” (Freitas,
1987, p. 606), toda obra de ficção que “se pauta por uma
releitura da História
toma uma realidade qualquer do universo histórico – um
acontecimento, uma
situação, uma personagem – e a transforma em seu próprio tema,
ou seja, em
parte integrante de sua estrutura interna, fazendo dela matéria
estética” (1987,
p. 607).
Entretanto, como bem aponta Maria Teresa de Freitas, o
aspecto
estético não é o interesse último de obras ficcionais que
propõem releituras da
História: “[...] o texto literário que se apodera de uma série
histórica terá com
certeza uma significação outra, tentará passar um conhecimento
de outra
natureza, uma verdade de outra ordem” (Freitas, 1987, p.
608-609; ênfase
nossa). Nesse mesmo sentido, Benedito Nunes afirma que, grosso
modo, “a
imaginação do historiador pretende ser verdadeira”, enquanto a
ficção seria
“sinônimo de irreal”; ela se liga à “recriação artística dos
fatos” (Nunes, 1988, p.
12).
Associada à categoria de tempo, a releitura ficcional da
História pode ser
pensada como um modo de reler o passado não mais na crença de
sua
apreensão total – cuja impossibilidade Walter Benjamin bem
destaca (1994, p.
225) –, mas sim como o passado “relampeja” no presente. Além
disso, no
modo de tratamento do tempo, como ressalta Benedito Nunes,
“nada
constrange o tempo ficcional a não ser a própria estrutura da
narrativa que o
articula; as anacronias interrompem e invertem o tempo
cronológico,
deslocando presente, passado e futuro; e a sucessão pode
contrair-se num
momento único, acrônico e intemporal” (Nunes, 1988, p. 25). Ao
contrário da
ficção, “[e]ssas modalidades de experiência temporal estão
vedadas à História,
sobre a qual pesa o constrangimento do tempo cronológico. À
irrealidade sui
generis da Ficção com o seu quase-passado, opõe-se o passado
real da
História” (1988, p. 25).
Poderíamos afirmar, então, que as releituras ficcionais da
História têm
por objetivo combater os silenciamentos e as possíveis rasuras
disseminadas
por discursos hegemônicos e, ao mesmo tempo, promover os
discursos dos
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“vencidos”, das “minorias”, dos que estão “à margem”. É nesse
sentido que
José Luiz Foureaux de Souza Júnior propõe a seguinte
reflexão:
De fato, a História é cheia de possibilidades frustradas, de
acontecimentos que não se realizaram. Ninguém será historiador se
não perceber, em torno da história que se conta, uma multidão
indefinida de outras histórias „compossíveis‟ de coisas que
poderiam ser de outra maneira, para reforçar o que foi dito aqui.
Aí está o ponto de convergência entre a Literatura e a História,
numa certa medida. (Souza Júnior, 2000, p. 42)
Dessa forma, o romance histórico, pensado como um subgênero
do
romance, teria muito a contribuir, pois, como aponta Foureaux,
“o romance
histórico pode problematizar, numa outra visada, as mesmas
questões [que a
História], sem propor soluções aparentemente fáceis, como
sonhava um certo
positivismo, infelizmente renitente” (Souza Júnior, 2000, p.
44).
No mesmo sentido, a historiadora Elaine de Freitas Dutra
lembra-nos
que há um espaço comum entre a Literatura e a História:
[...] aliás o mesmo espaço comum da criação poética e da
escritura da história – o do verossímil. Ora, o verossímil, tal
como já foi reiterado por muitos daqueles que se ocupam das
relações entre história e ficção, é o que faz a mediação entre a
ficção e a verdade, e ao mesmo tempo estabelece as funções
cognitiva e comunicativa do ficcional face ao factual. (Dutra,
2001, p. 152)
Podemos pensar, também, que as releituras literárias de fatos
históricos
são produzidas em tempos e contextos diferentes, para públicos
igualmente
diferentes. Além disso, toda releitura literária pressupõe a
apropriação e a
ressignificação do evento histórico, em geral, de um passado
mais distante, no
intuito de atribuir-lhe novas significações e sentidos,
atualizando-o de acordo
com interesses e pontos de vista do presente.
2. A Guerra dos Farrapos na Literatura: pressupostos e
exemplos
A historiadora Sandra Jatahy Pesavento, uma das principais
estudiosas
brasileiras no campo da Nova História Cultural, certa vez,
chamou a atenção
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para possibilidades de apropriação temática do passado
relacionado à Guerra
dos Farrapos, ocorrida de 1835 a 1845 no Sul do Brasil:
Uma coisa seria um retorno ao passado, enquanto objeto de
estudo, com os olhos do presente, ou seja, acompanhado de uma visão
crítica possibilitadora de melhor entendimento da realidade de hoje
e, por sua vez, orientadora da tomada de decisões; outra é retomar
o passado por si mesmo, numa visão saudosista de tempos heróicos,
que se encerram em uma época que passou, uma vez que a história não
se repete... (Pesavento, 1990, p. 72)
Tal postura proposta por Pesavento frente a narrativas de
releitura
histórica busca novas formas de lidar com o passado histórico de
maneira
crítica e alicerçada pela preocupação de dar voz àqueles que
permaneceram –
e ainda permanecem – marginalizados pela narrativa histórica
tradicional;
entretanto, é necessário verificar se tal “releitura”, neste
caso, também não
incorpora em si “teses revisionistas” fundamentadas em
posicionamento
ideológico.
Em nosso caso específico, o tratamento literário da Guerra dos
Farrapos
remonta ao século XIX e tem como um de seus ícones o romance O
Gaúcho
(1870), de José de Alencar (1829-1877). Um dos alicerces das
obras de José
de Alencar é o projeto literário de construção do sentimento de
nacionalidade
do Brasil a partir da representação dos tipos humanos
brasileiros e de seus
traços culturais peculiares. As obras O Guarani (1857), Iracema
(1865), O
Gaúcho (1870) e O Sertanejo (1875) podem ser agrupadas sob este
aspecto e
elevam os tipos regionais a heróis romanescos.
Sem dúvida, o romance O Gaúcho, publicado em 1870, foi produzido
no
clima dos acontecimentos em torno da “Guerra do Paraguai”,
transcorrida entre
os anos de 1864 e 1870. Na época de seu lançamento, o romance
foi alvo de
severas críticas por parte daqueles que atribuíam à obra de
Alencar falta de
rigor e desconhecimento do mundo gaúcho, de seus traços
culturais e de sua
história. Na referida obra, o gaúcho é associado ao cavalo e à
atividade pastoril
no vasto pampa e surge como “o centauro da América”,
materializado,
sobretudo, na figura do protagonista Manuel Canho.
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A título de exemplificação, tomemos o capítulo “Camarada”
(Alencar,
1999, p. 135-141), em que o crescente descontentamento na
Província do Rio
Grande do Sul em relação à política central do Império é
apresentado ao leitor
como fruto de conspirações e interesses do oficial uruguaio D.
Juan Lavalleja:
Desde 1832, quando se realizou em Jaguarão o desarmamento de D.
Juan Lavalleja pelo coronel Bento Gonçalves da Silva, plantaram-se
na província os germes de uma conspiração, no sentido de proclamar
a independência e a república. O caudilho oriental tinha empregado
os maiores esforços para fomentar essa propaganda, que favorecia
seus planos de trêfega ambição. (Alencar, 1999, p. 136)
Na construção ficcional dessa personagem histórica, é atribuído
ao
“outro” o interesse por uma possível instabilidade política na
região que lhe
favorecesse no sentido de poder levar a Província do Rio Grande
do Sul ao
separatismo, assim como havia ocorrido na Província Cisplatina
anos antes;
com isso, o “caudilho oriental” é revestido de um sentido
pejorativo como
aquele que plantara uma “conspiração” na região para se formar
a
“Confederação do Prata”. Aliás, as personagens estrangeiras que
aparecem no
romance O Gaúcho, em geral, são construídas a partir de
atributos negativos, e
este aspecto se torna parte do próprio projeto de construção
nacional,
defendido por Alencar. Sendo assim, podemos dizer que a obra de
Alencar
acaba por cristalizar certos estereótipos tanto em relação à
construção da
imagem do gaúcho quanto do estrangeiro, ou seja, do “eu”
(identidade) e do
“outro” (alteridade).
Enquanto o romance de José de Alencar está associado a um
projeto de
construção de unidade nacional, a obra Contos Gauchescos &
Lendas do Sul
(1912), de Simões Lopes Neto pauta-se por um caráter
eminentemente
regional. O escritor gaúcho Simões Lopes Neto (1865-1916) é um
dos
expoentes da literatura sul-rio-grandense e regionalista dentro
da série literária
brasileira. Para produzi-la, o autor coletou lendas e casos da
tradição gaúcha,
dando-lhes forma literária, além de revelar toda a riqueza do
linguajar típico da
região. Seu regionalismo não é apenas marcado pela descrição de
paisagens
típicas sulinas, mas também pela maneira como constrói suas
personagens,
apoiando-se para isso no linguajar todo peculiar dessa
região.
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No conto “Duelo de Farrapos” (Lopes Netto, 2002, p. 122-129),
por
exemplo, a instância narrativa se constitui em primeira pessoa,
um narrador-
personagem chamado Blau Nunes, apresentado no primeiro conto da
obra, o
qual atrela os diversos contos em torno daquele contador de
“causos”. Blau
Nunes afirma ter sido “ordenança do meu general Bento Gonçalves”
(2002, p.
122). Em tom de oralidade, Blau Nunes interpela até mesmo o
leitor: “vancê
desculpe... estou velho, mas inté hoje, quando falo na República
dos Farrapos,
tiro o meu chapéu!...” (p. 122). Sua narrativa é lacunar,
apresenta marcas de
esquecimento: “O jornal do governo deu uma relação deles e dos
votos que
tiveram. Que eu sabia, mas já esqueci.” (p. 122); “que era
assim, se bem me
lembro” (p. 122).
Além disso, o emprego de expressões dialetais e coloquiais
produz o
efeito de distanciamento do discurso despersonalizado em
terceira pessoa,
recorrente em relatos históricos, de modo que o relato do
contador de “causos”
Blau Nunes não busca produzir o efeito discursivo do “real”. No
conto “Duelo de
Farrapos”, a memória do duelo entre Bento Gonçalves e Onofre
Pires, também
personagem histórica, surge como lacunar e é orientada pelo
olhar do
narrador-personagem: “deste lado, eu, sabendo, mas não podendo
me
intrometer...” (Lopes Netto, 2002, p. 128-129) / “E creia vancê
que lhe rezei
este rosário sem falha duma conta, apesar de já sentir a memória
mais
esburacada que poncho de calavera... Pois faz tanto ano!...” (p.
129).
O olhar do narrador-personagem também determina a construção
da
imagem de si e do outro. No conto “Chasque do imperador” (Lopes
Netto,
2002, p. 67-73), D. Pedro II é apresentado por Blau Nunes como
“gringo”,
“ruivo”; “Eu pensava que o imperador era um homem diferente dos
outros...
assim todo de ouro, todo de brilhantes, com olhos de pedras
finas...” (2002, p.
70); “era um homem de carne e osso, igual aos outros...” (p.
70); “O imperador
– esse era meio maricas, era! –” (p. 73). Com isso,
estabelece-se uma
diferenciação entre o gaúcho (identidade) e o imperador
(alteridade).
Outro marco literário que tem por cenário a Guerra dos Farrapos
é a
obra Um Certo Capitão Rodrigo (1949), de Erico Veríssimo
(1905-1975). Trata-
se do terceiro episódio do primeiro volume de O Continente (2
vol.; 1949),
primeira parte da trilogia O Tempo e o Vento (1949-1962),
composta também
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por O Retrato (parte II; 2 vol.; 1951) e O Arquipélago (parte
III; 3 vol.; 1961-
1962).
Em Um Certo Capitão Rodrigo, a instância narrativa é construída
como
um narrador onisciente, que muitas vezes mescla em sua voz a voz
das
personagens, como, por exemplo, na cena em que o padre Lara
hesita em dar
a Bibiana a notícia de que Rodrigo havia sido ferido
gravemente:
O pe. Lara caminhava na direção da casa de Bibiana. Como havia
de lhe transmitir a notícia? Dizer tudo de chofre? Ou primeiro
mentir que o capitão estava ferido... gravemente, e depois, aos
poucos, preparar-lhe o espírito para o pior? Talvez ela lesse no
rosto dele o que havia acontecido. Talvez já tivesse adivinhado
tudo. Essas mulheres às vezes têm uma intuição dos diachos...
(Veríssimo, 2004, p. 167)
Além disso, o narrador conhece os pensamentos das personagens:
“A
noite estava calma. Galos de quando em quando cantavam nos
terreiros. Os
galos não sabem de nada – refletiu o padre. Sempre achara triste
e agourento
o canto dos galos. Era qualquer coisa que o lembrava da morte.”
(Veríssimo,
2004, p. 166).
Por sua vez, a personagem Bibiana parece se aproximar
daquela
imagem cristalizada da mulher nos bastidores da guerra. Além dos
afazeres
domésticos, restava-lhe apenas uma coisa: rezar e esperar pelo
regresso de
Rodrigo Cambará:
Achou que só tinha uma coisa a fazer. Rezar. Começou a dizer:
“Ave Maria cheia de graça...”. E seus lábios se moviam, e ela
murmurava a oração como se estivesse cochichando ao ouvido da
santa. Disse uma salve-rainha, e depois um padre-nosso, mas ia
repetindo as palavras sem prestar atenção nelas, pensando todo o
tempo no marido. Queria vê-lo mais uma vez, só uma vez. Deus não ia
ser tão mau que não lhe permitisse essa alegria. (Veríssimo, 2004,
p. 162)
Entretanto, há um aspecto significativo no romance de Erico
Veríssimo,
ausente em obras anteriores: a “verdade” em relação à guerra é
posta em
questão no final do texto. As versões da guerra são apresentadas
pela
personagem Bibiana, sem que ela assuma uma como verdadeira e
legítima:
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Diziam que os imperiais tinham de novo tomado Porto Alegre.
Bibiana não sabia nem queria saber se aquilo era verdade ou não.
Não entendia bem aquela guerra. Uns diziam que os farrapos queriam
separar a Província do resto do Brasil. Outros afirmavam que eles
estavam brigando porque amavam a liberdade e porque tinham sido
espezinhados pela Corte. Só duma coisa ela tinha certeza: Rodrigo
estava morto e rei nenhum, santo nenhum, deus nenhum podia fazê-lo
ressuscitar. (Veríssimo, 2004, p. 169)
Entretanto, se já notamos alterações no modo da construção
ficcional da
Guerra dos Farrapos na obra de Erico Veríssimo em relação ao
romance O
Gaúcho, de José de Alencar, com seu projeto de unidade nacional,
e aos
Contos Gauchescos & Lendas do Sul, de Simões Lopes Netto,
fortemente de
caráter regionalista, é a partir dos anos 1980 que constatamos
uma
proliferação de romances que intensificarão o processo de
releituras da guerra,
entre outros, o romance A Guerra dos Farrapos (1985), de Alcy
Cheuíche; o
romance Garibaldi e Manoela (1986), de Josué Guimarães; o
romance Netto
Perde sua Alma (2001) e a trilogia Os Varões Assinalados (2005),
de Tabajara
Ruas; Uma História Farroupilha (2004), novela de Moacyr Scliar;
os romances
A Casa das Sete Mulheres (2002) e Um Farol no Pampa (2004), de
Letícia
Wierzchowski.
3. O romance Netto pede sua alma – o delírio e o onírico
A primeira obra eleita para nossas reflexões sobre releituras
ficcionais
contemporâneas da Guerra dos Farrapos é Netto Perde sua Alma
(2001), de
Tabajara Ruas, obra ficcional sobre o general farroupilha
Antonio de Sousa
Netto, proclamador da República Rio-Grandense em 11 de setembro
de 1936
(Fagundes, 2003, p. 44-45), que mais tarde viria a tomar parte
na Guerra do
Paraguai. O romance deu origem também ao filme homônimo,
dirigido pelo
próprio escritor em parceira com o cineasta Beto Souza.
Embora se trate de um romance histórico, Netto Perde sua Alma
se
diferencia de maneira acentuada no modo como Tabajara Ruas lida
com a
temática e com a representação de um dos protagonistas da Guerra
dos
Farrapos, rompendo, assim, com estratégias que poderiam, de
certa forma,
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aproximar as narrativas histórica e ficcional. No romance, o
general Netto surge
como alguém engajado no seu propósito bélico e militar, e que
procura ser
ético e justo, por exemplo, em relação ao desfecho da Guerra dos
Farrapos e
com a decepção dos lanceiros negros, ou ainda com a obrigação de
se vingar
da morte do capitão de los Santos; por outro lado, Netto parece
estar em
permanente delírio, tanto pelos medicamentos que recebe no
hospital em
Corrientes, quanto pela malária que contraiu nos charcos durante
os primeiros
anos da Guerra do Paraguai. De todo modo, Netto é atormentado
pela própria
consciência. Aliás, o leitor se depara no quarto do hospital de
Corrientes com o
oficialado da Tríplice Aliança enquanto tipificações: o capitão
de los Santos
como vítima; o major Ramírez como um criminoso de guerra; o
general Netto,
atormentado por sua consciência, seus sonhos e delírios.
O romance Netto Perde sua Alma está estruturado em um
“Prólogo”
(Ruas, 2001, p. 9-10) e seis partes: “Corrientes” (p. 11-42),
“Reunião no morro
da Fortaleza” (p. 43-70), “Dorsal das Encantadas” (p. 71-87),
“Último verão no
Continente” (p. 89-102), “Piedra Sola” (p. 103-136) e
“Corrientes” (p. 137-157).
De tal estruturação derivam certas implicações para a construção
do eixo
temporal, pois se estabelece uma espécie de movimento circular
do presente
em direção ao passado e, por sua vez, um retorno gradativo do
passado ao
presente. O romance se inicia com um “Prólogo” que situa a
história no
presente, quando a enfermeira-chefe Rosita Zubiaurre encontra
mortos o major
Ramírez e o general Netto, ambos feridos de guerra que se
encontravam em
tratamento num hospital de Corrientes, na Argentina, durante a
Guerra do
Paraguai; em seguida, a parte I – “Corrientes” (Ruas, 2001, p.
11-42) –, como
as demais, exibe informações que ancoram o romance ao eixo
sócio-histórico:
“Hospital Militar de Corrientes, República Argentina, 1º de
julho de 1866. /
Segundo ano da guerra entre a Tríplice Aliança e o Paraguai. /
Madrugada.”
(2001, p. 11); a parte II – “Reunião no Morro da Fortaleza” (p.
43-70)
representa um primeiro mergulho em direção ao passado, no ano de
1840:
“Vinte e seis anos antes: Província de São Pedro do Rio Grande,
margem
esquerda do rio Guaíba, 8 de abril de 1940. / Quinto ano da
rebelião rio-
grandense contra o Império do Brasil. / Onze horas da noite.”
(p. 43); a parte III
– “Dorsal das Encantadas” (p. 71-87) representa um segundo
mergulho em
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direção ao passado, no ano de 1836: “Quatro anos antes: campos
do Seival,
arredores de Bagé, Província de São Pedro do Rio Grande, 11 de
setembro de
1836. Primeiro ano da rebelião rio-grandense contra o Império do
Brasil. / Nove
horas da noite.” (p. 71); a parte IV – “Último verão no
Continente” (p. 89-102) –
inicia o retorno gradativo ao presente, numa primeira parada no
ano de 1845:
“Nove anos depois, vilarejo de Ponche Verde, município de D.
Pedrito,
Província de São Pedro do Rio Grande, 2 de março de 1845. / Três
horas da
tarde.” (p. 89); a parte V – “Piedra Sola” (p. 103-136) – avança
um pouco mais
no tempo, chegando a 1861: “Dezesseis anos depois: arredores
de
Taquarembó, República Oriental do Uruguai, 25 de junho de 1861.
/ Sete horas
da manhã.” (p. 103); a parte VI – “Corrientes” (p. 137-157) –
retorna ao ponto
de partida, em 1866: “Cinco anos depois: Hospital Militar de
Corrientes,
República Argentina, 1º de julho de 1866. / Segundo ano da
guerra entre a
Tríplice Aliança e o Paraguai. / Madrugada.” (p. 137).
Alguns elementos épicos reforçam a estruturação do romance.
O
“Prólogo” adianta ao leitor a morte do general Netto; agora
resta a este saber
como um dos protagonistas da Guerra dos Farrapos “perdeu sua
alma”; o início
de cada capítulo localiza a história no espaço e no tempo, de
acordo com o
eixo espaço-temporal, e temática em relação aos fatos históricos
associados à
vida do protagonista. Cabe lembrar que a própria segmentação
produz efeitos
genuinamente épicos, na medida em que pode, em cada unidade,
construir seu
próprio sentido interno, episódico.
Se pensarmos em termos narrativos, a estruturação do romance
Netto
Perde sua Alma contribui para um distanciamento da linearidade
temporal,
presente na narrativa histórica. Flashback e flash forward são
recursos
genuinamente literários, empregados com propriedade por Tabajara
Ruas ao
tratar literariamente de um tema histórico e ao construir a
imagem ficcional de
um dos protagonistas da Guerra dos Farrapos.
O romance de Tabajara Ruas é marcado por um tom onírico em
relação
ao protagonista. Convalescendo de ferimento grave, num hospital
de
Corrientes, e sob os cuidados de um médico francês, o
tenente-coronel
Philippe Fointainebleux, tido como “carniceiro”, o general Netto
tem visões de
um de seus comandados, o sargento Caldeira: “É possível que
tenha
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adormecido, porque abriu os olhos quando ouviu a porta bater em
algum lugar
e deparou com o sargento Caldeira debruçado sobre ele. Por algum
efeito da
luz ou da febre, o sargento Caldeira pareceu-lhe transparente”.
(Ruas, 2001, p.
35) Na verdade, o sargento Caldeira, velho companheiro do
general Netto,
ainda nos tempos da Guerra dos Farrapos, havia morrido em
combate na
batalha de Tuyuty e, agora como uma espécie de espectro, está
ali para matar
o major Ramírez, descrito no relato do sargento como uma espécie
de
“sanguinário” e “genocida”, por assim dizer, servindo de pólo
antagônico em
relação ao próprio general Netto. Mas que, na verdade, se trata
de uma figura
emanada dos delírios do general, isso o leitor vai apreendendo
gradativamente,
e o todo faz sentido ao final da narrativa.
Em forma de flashbacks, a Guerra dos Farrapos também se
apresenta
ao leitor ao longo do romance. O general Netto surge como o
fundador e líder
do 1º Corpo de Lanceiros, um batalhão de cavalaria composto
apenas por
soldados negros:
À frente, cercado por estandartes e bandeiras, estava Netto com
os oficiais. O coronel Joaquim Pedro ergueu o braço. Um clarim
soou, e à luz dourada do sol que surgia na linha do horizonte, o
exército começou a se mover. Milonga nunca tinha visto nada tão
bonito em toda a sua vida. Marchava junto com o 1º Corpo de
Lanceiros, orgulhoso, olhando com respeitosa inveja os uniformes
vistosos dos soldados antecipando o prazer de vestir a blusa
vermelha com dragonas douradas, as calças azul-marinho com a lista
preta, os chapéus negros, de copa alta e aba estreita, elegantes e
severos. (Garibaldi adotaria aquele uniforme para suas brigadas na
Itália.) (Ruas, 2001, p. 67)
Nessa passagem do romance, a instância narrativa se estabelece
como
terceira pessoa do singular. Mas a Guerra dos Farrapos não surge
apenas
através do narrador, como também no diálogo do moribundo general
Netto com
o “fantasma” do sargento Caldeira, quando este lê trechos de uma
suposta
carta de Garibaldi enviada da Itália aos antigos companheiros
nos tempos da
guerra:
– O conselheiro Domingos teve a bondade de copiar trechos da
carta do capitão Garibaldi, general, e pediu que se fosse possível,
que eu le mostrasse. – Leia no más. – Escute. É dele, do capitão
Garibaldi.
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O sargento Caldeira empostou a voz: – “Eu vi batalhas mais
disputadas, mas nunca vi em nenhuma parte homens mais valentes nem
cavaleiros mais brilhantes que os da cavalaria rio-grandense, em
cujas fileiras comecei a desprezar o perigo e combater dignamente
pela causa sagrada das gentes.” Netto aprovou com a cabeça. (Ruas,
2001, p. 39)
No romance, além do sargento Caldeira, há também uma
personagem
que desempenha uma função fundamental: o jovem Milonga, escravo
que se
junta voluntariamente ao 1º Corpo de Lanceiros, sob comando do
general
Netto. A trajetória de Milonga vai da euforia inicial diante do
contingente
farroupilha, conforme citação anterior (Ruas, 2001, p. 67), à
total desolação
com o desfecho da guerra. Mutilado, tendo perdido um braço,
Milonga cobra o
general pelo fracasso:
– A guerra terminou, Milonga. – A guerra terminou e eu continuo
escravo. – Para mim tu não és escravo, Milonga. – General, onde
está a República que vosmecê proclamou? – Ela não existe mais,
Milonga. – Vosmecê mentiu para nós. – Não, Milonga, eu não menti.
Apenas perdi a guerra. – Onde está o Gavião? – O coronel Teixeira
morreu, Milonga. Milonga olhou para o céu avermelhado e deu um
grito agudo, que fez Netto estremecer. Depois, olhou para Netto com
olhos frios. – Morre, general! Apanhou o revólver, apontou para
Netto e apertou o gatilho. O tiro saiu para o alto. No momento do
disparo, Milonga foi sacudido por um tremor, atingido pela descarga
duma carabina. Dobrou-se sobre o pescoço do cavalo e caiu no chão
seco. Todos olharam para o sargento Caldeira, que segurava nas mãos
a carabina fumegante. O sargento Caldeira aproximou-se do corpo
caído e curvou-se sobre ele. (Ruas, 2001, p. 102)
No romance de Tabajara Ruas, Milonga é a representação daqueles
que
lutaram por acreditar na causa dos republicanos, mas que se
decepcionaram
com o desfecho e com sua volta à condição de escravo. É, ao
mesmo tempo,
um elo entre as trajetórias de Netto e do sargento Caldeira.
Mas, sem dúvida, é através da personagem do sargento Caldeira
que o
leitor, gradativamente, pode unir os vários fios da meada ao
longo da narrativa,
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seja nas imagens de delírio do general no hospital em Corrientes
durante a
Guerra do Paraguai, seja nas cenas da Guerra dos Farrapos, três
décadas
antes. Podemos dizer que se trata de uma personagem
extremamente
complexa, pois se insere nos delírios e sonhos do general Netto,
e também se
torna uma espécie de ponto de cruzamento de um passado comum. Se
é
Caldeira aquele que, no passado, salva o general, matando
Milonga, também é
o sargento – já morto – que acompanha Netto nos últimos momentos
de vida,
mesmo que apenas em forma de uma miragem. Diante de seu
comandado,
próximo do momento derradeiro, Netto revê sua trajetória de
sangue e
matança:
– Eu matei índios. Matei negros. E matei brancos. Mais do que
isso, matei castelhanos: uruguaios, argentinos, paraguaios
chilenos. Matei portugueses. Matei galegos. Aqui neste quarto eu
ficava matutando comigo mesmo nessa gente toda que matei e me dava
um peso enorme no coração, sargento. Acho que buscava um pretexto,
queria justificar, dar um sentido decente a essa sangueira toda,
mas a razão falta quando a gente se lembra de tanto sangue. A gente
não quer acreditar que tudo é inútil. A gente quer se lembrar por
que matou tanto e pensa nas idéias, nas grandes palavras, e não
acha resposta que valha a pena tanto sangue. Não me lembro mais das
palavras, só me lembro dos mortos, um a um. Negros, brancos,
índios, cafuzos, a interminável procissão de gente morta nessas
guerras do pampa. – Eu só me lembro dum negrinho. (Ruas, 2001, p.
143)
Além disso, a presença do sargento Caldeira se associa também a
uma
espécie de leitmotiv que perpassa toda a narrativa. Logo no
início do romance,
chama a atenção um aspecto descritivo que se torna recorrente: o
reflexo de
água no teto do quarto em que o general se encontrava juntamente
com outros
feridos de guerra: “Havia uma porta batendo em algum lugar.
Havia um reflexo
de água brilhando no teto do quarto”. (Ruas, 2001, p. 13) Em
outra passagem
do romance, lê-se:
Há uma porta batendo em algum lugar. A cama da direita está
vazia. A cama da esquerda tem o corpo enorme do major Ramírez,
respirando pesadamente, fazendo gestos confusos. Há um reflexo de
água brilhando no teto do quarto. Quando o trouxeram para o
hospital, Netto viu o pequeno jardim com a fonte. Deve ser o
reflexo do tanque onde está a fonte, um ser híbrido de peixe e
homem com um arpão, cuspindo um jato de
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água. Choveu toda a noite, monotonamente, uma chuva parelha e
adormecedora, varada pela brisa que agitava os mosquiteiros e fazia
essa porta bater em algum lugar. (Ruas, 2001, p. 17)
Mais adiante, quase ao final do romance, a imagem se
modifica,
tornando-se ameaçadora, pois, no delírio do general, ganha
contornos mais
nítidos: “Há uma porta batendo em algum lugar. Há um reflexo de
água
brilhando no teto do quarto. O reflexo é uma ameaça. É um jaguar
de olhos
amarelos” (Ruas, 2001, p. 139). E após revelar-se arrependido
das mortes que
provocara, o general volta a mirar o teto: “Netto ficou olhando
a umidade no
forro, os reflexos de água” (2001, p. 143). O sargento Caldeira
ajuda o general
a se vestir e eles deixam o hospital de madrugada, debaixo de
chuva.
Caminham por um bosque até a margem de um rio, onde, segundo
Caldeira,
um canoeiro deveria estar esperando. Com isso, a imagem da água
refletida no
teto, ao longo da narrativa, revela-se como prenúncio da morte
de Netto.
Além disso, as frases recorrentes “havia/há uma porta batendo
em
algum lugar” e “havia/há um reflexo de água brilhando no teto do
quarto”
instauram uma voz narrativa que não é totalmente onisciente: por
um lado, a
porta batendo em algum lugar parece anunciar a entrada do
sargento Caldeira,
agente da morte, no hospital; por outro, o reflexo de água
parece estabelecer
uma relação homológica com o rio e a necessidade de sua
travessia ao final do
romance. Em suma, a morte se faz simbolicamente presente no
hospital e no
quarto em que está o general Netto.
Para construir a cena final do romance Netto Perde sua Alma,
Tabajara
Ruas valeu-se do mito de Caronte, o barqueiro dos mortos na
mitologia grega e
na Divina Comédia, de Dante Alighieri, que transportava em seu
barco a alma
dos mortos para a travessia do Aqueronte, um dos rios do reino
subterrâneo de
Hades. Todavia, para isso o morto deveria ser sepultado com uma
moeda de
baixo da língua (o óbolo), para pagamento da travessia do rio.
Sem isso, as
almas ficariam vagando. No romance, lê-se:
Chegaram na margem. A massa esbranquiçada da neblina pairava no
meio do rio. O sargento olhou em todas as direções. Parecia
procurar algo. – O canoeiro devia estar aqui.
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– Canoeiro? Netto olhou ao redor, preocupado. Soprava um vento
ainda tênue, que começou a interferir na formação compacta da
neblina. A praia era comprida e deserta. Além da onipresença dos
sapos, o silêncio era completo. Ouviu um leve rumor de água
agitada. Firmou os olhos, mas nada era visível. E então, pouco a
pouco, do interior da neblina, foi tomando forma, lento e
silencioso, longo e escuro, o perfil de uma canoa. Era conduzida
por um homem coberto por uma capa negra. O homem impulsionava a
canoa com uma vara comprida, seguro do rumo, sem pressa. (Ruas,
2001, p. 154-155)
Todavia, a travessia do general deveria ser apenas em companhia
do
barqueiro, separando-se assim de seu fiel comandado:
Era uma canoa de madeira, comprida e estreita. Encostou na praia
a alguns metros deles. O canoeiro saltou para a margem. Netto não
viu seu rosto. A capa negra arrastava no chão. O canoeiro ficou
parado, silencioso. O sargento tocou no braço de Netto. – Vosmecê
deve tomar essa canoa, general. – Bem pensado, sargento. Para onde
nos leva? – Para a outra margem. Mas eu o acompanho até aqui no
más. Vosmecê vai só. Netto estremeceu com violência. – E por que
isso? – Eu já atravessei esse rio, general. [...] – Já o
atravessou? Quando, sargento? – Em Tuyuty, general. Encarou num
instante de fascinado terror o espectro do sargento Caldeira. É a
febre! [...] – Não tem importância, sargento. Essa travessia a
gente deve fazer sozinho mesmo. Hasta la vista. – Hasta la vista,
general. (Ruas, 2001, p. 155-156)
Nesse sentido, o sargento Caldeira parece ser uma espécie de
“agente
da morte”, que está ali no quarto do hospital de Corrientes para
matar o major
Ramírez e, de certo modo, o próprio general Netto. Cabe lembrar
que, no
contexto da proclamação da República Rio-Grandense, o sargento
Caldeira diz
ao então coronel Netto: “– Se vosmecê fundar um país, coronel,
eu o
acompanho até a porta do inferno.” (Ruas, 2001, p. 87) Ao final
do romance, o
sargento Caldeira parece ter cumprido tal promessa.
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Na última frase do romance, inicia-se a travessia: “Netto
empurrou a
canoa e saltou para dentro dela” (Ruas, 2001, p. 157). Sem
dúvida, Netto
Perde sua Alma é um dos exemplos mais significativos da
literatura sul-
riograndense em termos de releitura ficcional de eventos
históricos, neste caso,
da Guerra dos Farrapos e da Guerra do Paraguai. A relação entre
Literatura e
História ganha contornos muito bem delimitados nessa obra. Pois
Tabajara
Ruas investe em estratégias eminentemente ficcionais para tratar
do conflito. O
escritor investe numa instância narrativa que se distancia
daquele narrador
histórico despersonalizado, em terceira pessoa, como se os fatos
narrassem de
per si. Ao contrário, a visão do narrador parece limitar-se à
visão do
protagonista – o general Netto –, figura histórica construída
ficcionalmente não
como o herói da jornada épica farroupilha, mas como homem com
suas
virtudes e fraquezas. O onírico em si abre possibilidades
genuinamente
literárias, pois suspende necessariamente a fronteira entre o
ficcional e o
histórico, além de frisar o caráter subjetivo, no romance em
questão, de uma
personagem histórica, “humanizando-a”. O onírico apresenta-se
como uma
mescla de pesadelos, delírios e alucinações de um moribundo e
torna-se
fundamental para produzir o efeito de relativização de supostas
certezas e
verdades. Por assim dizer, o romance contribui mais para a
desconstrução do
mito em torno da figura do general, do que propriamente o
alimenta.
4. O romance A casa das sete mulheres – o olhar feminino e as
imagens
visionárias
Outro exemplo literário muito rico em termos de releitura
contemporânea
da Guerra dos Farrapos é o romance A Casa das Sete Mulheres
(2001), da
escritora gaúcha Letícia Wierzchowski. Como Tabajara Ruas
ressalta na orelha
da capa do romance, trata-se de uma “narrativa claustrofóbica e
íntima”:
“História e ficção, realidade e fantasia, o natural e o
sobrenatural se
interpenetram no cotidiano das sete mulheres, cada dia mais
violento e
sufocante e imutável”.
Se encontramos o olhar feminino sobre a guerra em obras
anteriores
analisadas brevemente, como é o caso da personagem Bibiana em Um
Certo
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Capitão Rodrigo (1949), de Erico Veríssimo, é com Letícia
Wierzchowski que
esse olhar ganhará primazia na construção tanto da narrativa
quanto do
enredo. A releitura ficcional da guerra pautar-se-á justamente
por esse olhar.
O romance A Casa das Sete Mulheres está estruturado em 11
capítulos,
correspondendo a cada ano no período de 1835 a 1845 – 1835
(Wierzchowski,
2002, p. 15-72), 1836 (p. 73-139), 1837 (p. 141-189), 1838 (p.
191-237), 1839
(p. 239-310), 1840 (p. 311-368), 1841 (p. 369-414), 1842 (p.
415-446), 1843 (p.
447-481), 1844 (p. 483-499), e 1845 (p. 501-511). A estes,
antecede
fragmentos de um texto de Jorge Luis Borges – “Os gaúchos –
Elogio da
sombra” (Wierzchowski, 2002, p. 7) –, um breve relato sobre o
início da Guerra
dos Farrapos e a decisão de Bento Gonçalves em manter as
mulheres de sua
família distante do cenário da guerra, na Estância da Barra,
próxima ao rio
Camaquã (p. 9), e uma primeira apresentação dos “Cadernos de
Manuela” (p.
11-14), diários da narradora-protagonista, cujos relatos comporá
todo o
romance, além de cartas trocadas entre as personagens.
Por sua vez, cada um dos 11 capítulos que compõem o romance A
Casa
das Sete Mulheres apresenta estrutura própria e complexa, numa
variedade de
textos e dicções narrativas. A título de exemplo, apresentamos a
estrutura do
capítulo 1, intitulado “1835” (Wierzchowski, 2002, p. 15-33),
que é composto
por 09 segmentações de acordo com a seguinte seqüência: relato
(p. 15-33) →
carta de Caetana (p. 33-34) → Cadernos de Manuela (p. 35-37) →
relato (p.
39-43) → carta de Bento (p. 43-44) → relato (p. 44-54) →
Cadernos de
Manuela (p. 55-58) → relato (p. 59-69) → Cadernos de Manuela (p.
70-72).
Portanto, podemos constatar que o referido capítulo se constitui
de quatro
relatos, intercalados por três extratos dos “Cadernos de
Manuela” e,
respectivamente, por duas cartas (uma de Caetana e uma, de
Bento
Gonçalves).
De início, devemos nos indagar sobre a função do breve relato
que
antecede os “Cadernos de Manuela”. Em princípio, ele visa à
ancoragem
espaço-temporal a partir de uma narrativa – que poderíamos
chamar de
“histórica” – em terceira pessoa e no tempo presente. Este, por
assim dizer,
situa o leitor e presentifica a situação, o que normalmente não
ocorre na
narrativa histórica:
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No dia 19 de setembro de 1835 eclode a Revolução Farroupilha no
Continente de São Pedro do Rio Grande. Os revolucionários exigem a
deposição imediata do presidente da província, Fernandes Braga, e
uma nova política para o charque nacional, que vinha sendo taxado
pelo governo, ao mesmo tempo em que era reduzida a tarifa de
importação do produto. O exército farroupilha, liderado por Bento
Gonçalves da Silva, expulsa as tropas legalistas e entra na cidade
de Porto Alegre no dia 21 de setembro. A longa guerra começa no
pampa. Antes de partir à frente de seus exércitos, Bento Gonçalves
manda reunir as mulheres da família numa estância à beira do Rio
Camaquã, a Estância da Barra. Um lugar protegido, de difícil
acesso. É lá que as sete parentas e os quatro filhos pequenos de
Bento Gonçalves devem esperar o desfecho da Grande Revolução.
(Wierzchowski, 2002, p. 9)
Já os “Cadernos de Manuela” (Wierzchowski, 2002, p. 11-14),
inicialmente, têm por função instaurar o foco narrativo, ou
seja, o olhar de
Manuela, narradora-protagonista do romance e sobrinha de Bento
Gonçalves,
que inicia sua narrativa em primeira pessoa, e que relata em
forma de diário
suas impressões a partir da ceia de Ano Novo com a chegada de
1835, quando
a família se reuniu para comemorar a passagem do ano:
[...] minhas duas irmãs, Antônio, meu irmão mais velho, o pai, a
mãe, D. Ana, minha tia, acompanhada de seu marido e dos dois filhos
barulhentos e alegres, meu tio, Bento Gonçalves, sua mulher de
lindos olhos verdes, Caetana, a prima Perpétua e meus três primos
mais velhos, Bento Filho, Caetano e, à minha frente, olhando-me de
soslaio de quando em quando, com os mesmos pequenos olhos ardentes
do pai, Joaquim, a quem eu fora prometida ainda menina, [...] Os
filhos pequenos de meu tio Bento e de sua esposa estavam lá para
dentro, com as negras e as amas [...] (Wierzchowski, 2002, p.
12).
No apontamento de Manuela por ocasião da cena da ceia de Ano
Novo,
um aspecto genuinamente literário atribui-lhe um caráter que
diferencia a
narrativa ficcional da narrativa histórica: o emprego recorrente
de figuras de
linguagem: o ano de 1835 “em seu rastro luminoso de cometa”
(Wierzchowski,
2002, p. 11); o soar das badaladas do relógio “cortando a noite
fresca e
estrelada como uma faca que penetra na carne tenra e macia de
um
animalzinho indefeso” (p. 11), “Quando o relógio cessou de soar
o seu grito” (p.
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11), “quando do relógio não mais se ouvia um suspiro ou lamento”
(p. 11), “o
ano de 1835 veio pousar entre nós” (p. 12), “a voz de minha irmã
Rosário levou
embora de meus ouvidos o sopro cruel do vento de inverno” (p.
13), “donde
podia ver a noite calma, o céu estrelado e límpido que se abria
sobre tudo,
campo e casa, derramando no mundo uma luz mortiça e lunar” (p.
13-14), onde
se lê, ainda,
[o] ano de 1835 estava entre nós como uma alma, a barra de suas
saias alvas acarinhava minha face como um sopro; 1835 com suas
promessas e com todo o medo e a angústia de seus dias ainda sendo
feitos na oficina da vida. Nenhum dos que ali estavam sequer viu o
seu vulto ou ouviu sua voz de mistério, abafada constantemente
pelos ruídos dos talheres e pelos risos (Wierzchowski, 2002, p.
13)
Com isso, a personagem Manuela, de início, não só é construída
pela
própria narrativa como alguém que escreve com competência, como
também
uma pessoa de extrema sensibilidade diante dos acontecimentos
que estariam
por vir naquele ano de 1835, a despeito do comportamento,
aparentemente,
indiferente daqueles que a rodeiam. Grito, dor, lamento,
angústia, crueldade,
violência: esses são os traços que emanam da natureza, dos
objetos e das
ações à sua volta. E como mulher, Manuela descreve as mulheres
de sua
família dentro de uma estrutura patriarcal, divididas entre os
afazeres diários no
cuidado com a casa e os filhos e das preocupações com os
homens:
As mulheres ocupavam-se com seus assuntos menores, seus anseios,
não reles em tamanho, pois dessa delicada fímbria feminina é que
são feitas as famílias e, por conseguinte, a vida; falavam dos
filhos, do calor, do verão, dos partos recentes; tinham um olho
posto nas conversas, os risos doces, a alegria; porém, com o outro,
fitavam seus homens: tudo o que lhes faltasse, de comer ou de
beber, do corpo ou da alma, eram elas que proviam. (Wierzchowski,
2002, p. 12-13)
Todavia, a descrição da cena da ceia no relato de Manuela é
invadida
por imagens visionárias que antecipam acontecimentos que estão
por vir
naqueles fatídicos anos de guerra. A sobrinha de Bento Gonçalves
tem visões
de Giuseppe Garibaldi e da guerra:
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À minha frente, Joaquim sorria, contava um caso do Rio de
Janeiro com sua voz alegre de moço. Sob a névoa dos meus olhos, eu
mal podia percebê-lo. Via, isso sim, agarrado ao mastro de um
navio, um outro homem, mais velho, de cabelos muito loiros, não
negros como os de meu primo, de olhos doces. E via as ondas, a água
salgada comprimia minha garganta, afogando-me de susto. E via
sangue, um mar de sangue, e o minuano começou então a soprar
somente para os meus ouvidos. O vulto do novo ano, pálido e
feminil, estendeu então sua mão de longos dedos. Pude ouvi-lo
dizendo que eu fosse para a varanda, ver o céu. [...] E foi então
que vi, para as bandas do oriente, a estrela que descia num rastro
de fogo vermelho. E não era o boitatá que vinha buscar meus olhos
arregalados, era sangue, sangue morno e vivo que tingia o céu do
Rio Grande, sangue espesso e jovem de sonhos e de coragem. Um gosto
amargo inundou minha boca e tive medo de morrer ali, postada
naquela varanda, aos primeiros minutos do ano novo. [...] A estrela
de sangue confidenciou-me este terrível segredo. 1835 abria suas
asas, ai de nós, ai do Rio Grande. [...], como um pássaro negro que
pousa numa janela, trazendo sua inocência e seus agouros. [...]
(Wierzchowski, 2002, p. 13-14)
Além disso, através de seu relato, Manuela diferencia a si dos
demais
que estão ceando pela consciência que tem de enxergar o que os
outros não
vêem: “Só eu, sentada em minha cadeira, ereta, mais silenciosa
do que de
costume, somente eu, a mais moça das mulheres daquela mesa, pude
ver um
pouco do que nos aguardava” (Wierzchowski, 2002, p. 13); e,
prosseguindo, se
indaga: “Como não percebem?, foi o que pensei com toda a força
da minha
alma” (p. 14); e lê-se, ainda: “Dentro da casa, a festa
prosseguia, alegre. Eram
quinze pessoas em torno da mesa posta, e nenhuma delas viu o que
eu vi. Foi
por isso que, desde essa primeira noite, eu já sabia de tudo”
(p. 14).
Sem dúvida, podemos afirmar que as imagens visionárias
trazem
implicações para a narrativa em relação ao eixo temporal. O
olhar de Manuela
se projeta do presente ao futuro, de modo que se expressa, por
exemplo, como
se ela olhasse de um ponto no tempo que ainda não aconteceu, “ao
ver uma
fresta do futuro...” (Wierzchowski, 2002, p. 14). Ao construir
sua narradora-
protagonista dotada desse dom, a escritora Letícia Wierzchowski
lança mão de
estratégias eminentemente ficcionais que afastam a narrativa do
discurso
histórico. Além das visões nefastas, o temperamento melancólico
de Manuela
permite ao leitor um olhar diferenciado – diríamos, irrequieto e
insatisfeito –
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diante do que transcorre a sua volta. Não é por acaso que,
justamente,
Manuela irá se rebelar contra os ditames de sua mãe, D. Maria
Manuela, com
relação à insistência de que ela se case com o primo Joaquim,
filho de Bento
Gonçalves, e abandone de vez a paixão que sente por
Garibaldi.
Em outro apontamento dos “Cadernos de Manuela”
(Wierzchowski,
2002, p. 35-37), datado de 21 de setembro de 1835, surge o tema
da espera,
por ocasião do testemunho de Manuela da cena do almoço, quando
ficou
observando a tia Caetana, esposa de Bento Gonçalves:
Tive vontades de sentar ao seu lado e de dizer-lhe que também eu
sei do que ela sabe. Sim, pois ela sabe... Ficaremos aqui muito
tempo. Mais tempo do que qualquer uma de nós possa imaginar.
Ficaremos aqui esperando, esperando, esperando. Da estrela de fogo
que vi na noite do novo ano, não falei a ninguém, mas tenho seu
recado marcado a ferro em minha alma. (Wierzchowski, 2002, p.
36)
Para a sobrinha de Bento Gonçalves, a imposição dos homens traz
o
sofrimento a todos, indiscriminadamente. A aparente proteção na
Estância da
Barra não impede que Manuela reflita sobre a insensatez da
guerra e dos anos
perdidos com uma vida de violência e de privações para todos, em
que as
mulheres também tinham um quinhão de sofrimento a pagar:
Sim, sempre os homens se vão, para as suas guerras, para as suas
lides, para conquistar novas terras, para abrir os túmulos e
enterrar os mortos. As mulheres é que ficam, é que aguardam. Nove
meses, uma vida inteira. Arrastando os dias feito móveis velhos, as
mulheres aguardam... Como um muro, é assim que uma mulher do pampa
espera pelo seu homem. Que nenhuma tempestade a derrube, que nenhum
vento a vergue, o seu homem haverá de necessitar de uma sombra
quando voltar para a casa, se voltar para a casa... (Wierzchowski,
2002, p. 72)
Nesse sentido, Manuela apresenta em seus “cadernos” o sofrimento
das
mulheres da família: “Minhas irmãs, por certo, ririam de mim.
Dizem-me densa.
Densa como a cerração que cobre estes campos ao alvorecer, um
manto
opaco de água condensada, um manto, talvez, de lágrimas,
lágrimas choradas
pelas mulheres daqui, por Caetana, quem sabe”. (Wierzchowski,
2002, p. 36) E
Manuela ressalta a incomunicabilidade entre as mulheres quando o
assunto
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são os seus próprios sofrimentos: “Mas ninguém terá coragem de
formular a
pergunta, a terrível pergunta, e os segundos passarão por nós
com suas
lâminas afiadas de tempo, sem que ninguém interrompa o bordado
ou a leitura
por mais de um momento que seja, um momento imperceptível. A
arte de
sofrer é inconsciente... E é preciso fingir que se vive, é
preciso”. (Wierzchowski,
2002, p. 36)
Além disso, os cadernos são para Manuela um modo de preencher
o
tempo de espera e também para que ela preste testemunho da vida
das
mulheres em tempo de guerra, mesmo que seja apenas para sua
própria leitura
no futuro: “[...] risadas chegam da sala. E eu estou aqui,
quieta, escrevendo
estas linhas. Para quem? Para que eu as leia, anos mais tarde, e
lembre deste
tempo aqui na Barra, destes dias silenciosos que gastamos
esperando à beira
do Camaquã? Não sei por que escrevo, mas algo me impele, uma
vontade
toma meus dedos, empurra a pena para a frente...” (Wierzchowski,
2002, p. 71-
72).
Sem dúvida, enquanto unidades textuais dentro do próprio
romance, os
“Cadernos de Manuela” proporcionam ao leitor o olhar de uma de
suas
protagonistas, fundamental no processo de releitura ficcional da
Guerra dos
Farrapos. Eles funcionam como uma espécie de “fio condutor” que,
ao mesmo
tempo, une e polemiza com os demais segmentos que compõem o
romance,
ou seja, as cartas e os relatos. Mas isso não significa que os
relatos através de
uma instância narrativa em terceira pessoa do singular, que
compõem cada
capítulo, sejam alheios a esse olhar. Podemos constatar esse
aspecto na
seguinte passagem, em que o ato de tecer é aplicado
metaforicamente à
natureza:
Na manhã do dia dezenove de setembro daquele ano, sob um céu tão
azul e plácido onde, ora aqui, ora ali, finíssimas nuvens de renda
branca repousavam, isto formando um conjunto tão delicado quanto o
de uma rica toalha de mesa bordada por hábeis dedos e estendida
sobre tudo, arvoredo, rios, açudes, bois e casario, a Estância da
Barra estava em polvorosa. (Wierzchowski, 2002, p. 17)
Entretanto, em certos momentos ao longo do romance, nota-se
uma
diferenciação entre a voz narrativa em terceira pessoa e o
relato de Manuela
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em seus cadernos. Na passagem em que Perpétua, prima de Manuela
e filha
de Bento Gonçalves, é apresentada ao leitor, estabelece-se uma
diferenciação
da voz narrativa em relação à Manuela e suas “visões”:
Não imaginava ela [i.e., Perpétua] o que o futuro estava
reservando à província, nem nenhuma das mulheres o imaginava
naquele princípio manso de primavera nos pampas. Perpétua Garcia
Gonçalves da Silva tinha esperanças de que o verão já lhes
trouxesse a paz. A paz e a vitória. E os bailes elegantes onde
desfilaria os vestidos vindos de Buenos Aires e os sapatos de
veludo que mandara buscar na Corte. (Wierzchowski, 2002, p. 25)
Em contrapartida, Manuela não só o imaginava como tinha visões
sobre
o futuro de violência, sangue e sofrimento que se abateria sobre
o Rio Grande
nos próximos dez anos. Porém, em outros momentos do romance,
parece
haver uma contradição, na medida em que a instância narrativa se
apresenta
onisciente, inclusive em relação às visões de Manuela: “Manuela,
da sua
cadeira, olhava os rostos das tias e da mãe. Sabia o que iriam
ouvir, sempre
soubera, desde aquela noite... Nunca mais tinha visto a estrela
de fogo no céu,
mas não pudera esquecê-la. E nem seu rastro, seu rastro de
sangue”.
(Wierzchowski, 2002, p. 87)
Por sua vez, as visões da guerra por parte daquelas que aguardam
seus
pais, tios, maridos e filhos são as mais diversas: na visão de
D. Antônia, viúva
e irmã de Bento Gonçalves, embora a guerra lhe cause “um longo
arrepio”, o
fato de o irmão ter declarado guerra ao império “a enchia de
aflição e de
orgulho” (Wierzchowski, 2002, p. 19); já para D. Ana, também
irmã do líder
farroupilha, a guerra era tempo de sofrimento, de tristeza e de
rezas:
Teriam pela frente muitos dias de angústia, à espera de uma
notícia, de boa sorte ou de malogro, e então, só então, se fosse o
caso, viria a tristeza estar com elas. A tristeza serena que era
companheira constante das mulheres do pampa. Sim, pois não havia
uma mulher que não tivesse passado pela espera de uma guerra, que
não tivesse rezado uma novena pelo marido, acendido uma vela pelo
filho ou pelo pai. Sua mãe conhecera a angústia de espera, e antes
dela sua avó e sua bisavó... (Wierzchowski, 2002, p. 28)
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Entretanto, Manuela não é a única que tem visões, se bem que as
suas
são de outra ordem, premonitórias. Sua irmã Rosário também tem
visões de
Esteban, oficial do exército imperial, que a salvou de ser
violentada por
soldados de seu exército, e por quem Rosário se apaixonou. Após
ser ferido
mortalmente, Esteban aparece para Rosário em plena estância:
Seus olhos azuis vêem, encostado à estante, o vulto do jovem
oficial. Ele não se mexe. Uma bandagem ensangüentada cobre sua
testa, e ele está pálido feito as mãos de Rosário, feito a parede
que segura a estante. Está lívido, mas sorri. [...] Está assustada,
seu corpo não obedece, o cheiro de flores a sufoca, um homem entrou
no gabinete sem que fosse convidado, um estranho, um jovem
estranho, é verdade, um belo oficial de algum exército desconhecido
que lhe fala castelhano. (Wierzchowski, 2002, p. 49)
O delírio de Rosário a leva a degolar Regente, por acreditar que
o
cãozinho de Manuela perseguia Steban no jardim da estância
(Wierzchowski,
2002, p. 397). Por suas atitudes, Rosário seria castigada e
enviada a um
convento a mando da mãe, D. Maria Manuela, onde morreu em 1845:
“A pobre
Rosário faleceu com a República que ela mesma tantas vezes
reprovou” (2002,
p. 328).
Além disso, assim como havíamos constatado um processo de
“humanização” em relação à construção da personagem histórica do
general
Antônio da Souza Netto no romance Netto Perde sua Alma,
verificamos o
mesmo procedimento em relação à construção das personagens
históricas em
A Casa das Sete Mulheres. Na passagem a seguir Bento Gonçalves
sente-se
cansado, abatido e desgostoso pelos rumos da guerra, longe do
aconchego do
lar:
Essas últimas palavras ficam latejando por muitas horas na sua
cabeça. Não haverá a paz. Ainda morrerão muitos, ainda se derramará
sangue, embora o povo já esteja cansado de tantas pelejas. Bento
Gonçalves da Silva sente o cansaço como uma coisa palpável, há um
mundo sobre suas costas exaustas, um mundo ensangüentado e hostil.
A febre lhe vem outra vez, grácil como uma cobra, esquiva,
devastadora. E ele sente saudades de casa, do abraço morno de
Caetana, das longas e silenciosas tardes de inverno da estância.
(Wierzchowski, 2002, p. 367-368)
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Num de seus vários apontamentos, já no ano de 1890, Manuela
reflete
sobre o tio e sua imagem derrotada, nada adequada ao mito em
torno de sua
figura: “Bento Gonçalves da Silva não era perene, não era um
deus e nem
possuía qualquer arremedo de divindade – era como nós, mortal,
sofredor, um
iludido com a vida” (Wierzchowski, 2002, p. 476).
Aliás, através dos “Cadernos de Manuela”, o romance A Casa das
Sete
Mulheres se entretece a partir de um contínuo jogo de flashback
e flash
forward, em saltos temporais em retrocesso ou avanço, ou mesmo
em
adensamentos. E, posteriormente, eles surgem também como
releitura, pois,
no passado, após a frustração em sua relação amorosa com
Giuseppe
Garibaldi, num rompante de fúria, Manuela quisera destruir os
cadernos, mas
foi impedida de tal ato pela irmã, Mariana, que guardou os
cadernos e os
devolveu aos poucos, décadas depois. Relendo-os, a sobrinha de
Bento
Gonçalves pouco se reconhecia: “Eu os lia como se não tivessem
saído das
minhas mãos, linhas traçadas por outra mulher, uma que
acreditava no amor,
no futuro. Não eu, moça sem horizontes, inundada de saudades que
nunca
haveriam de se aplacar”. (Wierzchowski, 2002, p. 477) Para
Manuela, restaram
apenas as lembranças daqueles tempos de revolução nos pampas:
“Hoje, sou
velha, velha o bastante para contar da Revolução Farroupilha
para quem não a
viveu e pouco sabe daquele tempo. Hoje sou feita de lembranças.
As pessoas
me apontam na rua, sou como uma lenda, uma coisa entre o
grotesco e o
misterioso: a „noiva‟ de Garibaldi. O quase. Sou aquela que não
se
concretizou.” (2002, p. 478)
Mas os “Cadernos de Manuela”, por assim dizer, “documentam” não
só o
seu sofrimento e suas decepções durante a guerra, ou mesmo o
sofrimento
das mulheres na Estância da Barra com a derrota iminente, como
também o
sofrimento dos outros. Um exemplo singular é o massacre de
negros do Corpo
de Lanceiros que combatiam sob o comando de Netto na batalha do
Cerro dos
Porongos, em 14 de novembro 1844, evento histórico e exemplo da
barbárie
(Telles, 2004, p. 88-89), notadamente o único momento ao longo
romance, em
que as personagens negras recebem voz através dos apontamentos
da
sobrinha de Bento Gonçalves:
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A batalha de Porongos foi a última grande tragédia daquela
guerra. Não recordo se chorei por essa notícia. Havia já então um
adormecimento em minha alma, tantas as tristezas que havíamos
passado. Mas lembro que Zefina, criada de D. Ana, sentou no quintal
e se lanhou e gritou por um dia inteiro. Tinha um irmão lutando com
o coronel Teixeira. Um irmão moço, de dezenove anos, que lutava
pela sua liberdade. Morreu em Porongos. Não recebeu nem um punhado
de terra sobre a cabeça. (Wierzchowski, 2002, p. 498)
Sem dúvida, a série de passagens do romance, aqui
analisadas,
demonstra que a obra de Letícia Wierzchowski contribui
decisivamente para a
apresentação ficcional da Guerra dos Farrapos a partir da
perspectiva das
mulheres como elemento estruturante da narrativa, através de um
olhar, muitas
vezes, à margem, seja espacial ou socialmente.
5. Considerações Finais
Releituras ficcionais contemporâneas da Guerra dos Farrapos
demonstram certas intenções em relação ao presente. Podemos
subsumir
essas intenções em relação às obras analisadas mais detidamente
neste breve
estudo a, especificamente, duas: no romance Netto Perde sua
Alma, Tabajara
Ruas, por assim dizer, desconstrói o mito em torno de uma das
principais
figuras do exército farroupilha, tornando-o humano com suas
fraquezas, medos
e incertezas; no romance A Casa das Sete Mulheres, Letícia
Wierzchowski
investe no olhar feminino em relação à guerra, geralmente,
ausente em relatos
ufanistas em torno da “Revolução Farroupilha”. E em ambas as
obras, seus
autores transmitem uma postura crítica em relação à insensatez
da guerra.
Outro aspecto a se destacar com relação às obras de Tabajara
Ruas e
de Letícia Wierzchowski é o fato de que, em ambas, seus autores
lançam mão
do onírico – os delírios de Netto e, respectivamente, as visões
de Manuela –,
estratégia eminentemente ficcional que afasta toda a
possibilidade de um relato
tradicional, colado ao discurso histórico. Além disso, o jogo
temporal em forma
de flashbacks e flash forwards, presente em Netto Perde sua Alma
e A Casa
das Sete Mulheres, também colabora para essa quebra com o
relato
tradicional.
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Por fim, ressaltamos a relevância de obras como as de Tabajara
Ruas e
de Letícia Wierzchowski, por se tratarem de exemplos inequívocos
não só da
possibilidade de se propor releituras ficcionais de eventos
históricos, muitas
vezes traumáticos como uma guerra, como também da premência
desse tipo
de procedimento literário frente aos silenciamentos,
apagamentos, interdições,
rasuras e mitificações presentes nos discursos hegemônicos em
nosso
Continente.
6. Referências Bibliográficas
6.1. Literatura Primária
ALENCAR, José de. O Gaúcho. Porto Alegre: L&PM, 1999.
LOPES NETO, João Simões. Contos Gauchescos & Lendas do Sul.
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RUAS, Tabajara. A Carga dos Lanceiros. Os varões assinalados
III, Porto
Alegre: L&PM, 2005. RUAS, Tabajara. A República de Anita. Os
varões assinalados II, Porto Alegre:
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RUAS, Tabajara. Netto Perde sua Alma. Rio de Janeiro: Record,
2001. RUAS, Tabajara. O País dos Centauros. Os varões assinalados
I, Porto Alegre:
L&PM, 2005.
VERÍSSIMO, Érico. Um Certo Capitão Rodrigo. São Paulo: Companhia
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WIERZCHOWSKI, Letícia. A Casa das Sete Mulheres. Rio de Janeiro:
Record, 2002.
WIERZCHOWSKI, Letícia. Um Farol no Pampa. Rio de Janeiro:
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6.2. Literatura Subsidiária
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Walter. Magia
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Brasiliense, 1994, p. 222-232. – (Obras escolhidas; v. 1)
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DUTRA, Elaine de Freitas. Memórias do cárcere: do livro ao
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História. In: FERREIRA, Jorge Luiz; SOARES, Mariza de Carvalho
(Orgs.). A História vai ao Cinema. Rio de Janeiro: Record, 2001, p.
147-160.
FAGUNDES, Antonio Augusto. Revolução Farroupilha: Cronologia do
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35. PESAVENTO, Sandra Jatahy. A Revolução Farroupilha. 3. ed.,
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SOUZA JÚNIOR, José Luiz Foureaux. O narrador, a literatura e a
História: questões críticas. In: BÖECHAT, Maria Cecília Bruzzi;
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TELLES, Jorge. Farrapos: a guerra que perdemos. 2. ed., Porto
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