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O coração tem que se apresentar diante do Nada sozinho e sozinho bater em silêncio de uma taquicardia nas trevas. A experiência da protagonista desta aprendizagem mostra afinidades tanto com as provações da bela Psique, do mito grego, quanto com a mística aventura da alma, ao atravessar a noite escura no "Cântico Espiritual" de São João da Cruz. Como um quadro cujas linhas mestras o recortassem do grande mistério que tudo contém, este livro que se pediu uma liberdade maior, é a narrativa de uma iniciação e um extraordinário hino ao amor. Lóri, a mulher, faz uma longa viagem ao mais profundo de si mesma e chega à consciência total de ser. Diz: eu é; o homem, Ulisses, um professor de filosofia que possui fórmulas para explicar o mundo, transforma-se em algo mais simples, um simples homem. Ambos serão iniciados: Ulisses fecha os ouvidos para as outras sereias porque só está disponível para Lóri, cujo verdadeiro nome é Loreley, como a personagem de Heine e de Apollinaire, uma ondina ou sereia que costumava atrair para os rochedos os barqueiros do Reno. Na verdade, cada um vai encontrar-se
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Lispector, clarice. uma aprendizagem ou o livro dos prazeres

Nov 01, 2014

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Rebeca Xavier

 
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  • 1. O corao tem que se apresentar diante do Nada sozinho e sozinho bater emsilncio de uma taquicardia nas trevas. A experincia da protagonista desta aprendizagem mostra afinidades tanto comas provaes da bela Psique, do mito grego, quanto com a mstica aventura da alma, aoatravessar a noite escura no "Cntico Espiritual" de So Joo da Cruz. Como um quadro cujas linhas mestras o recortassem do grande mistrio quetudo contm, este livro que se pediu uma liberdade maior, a narrativa de uma iniciaoe um extraordinrio hino ao amor. Lri, a mulher, faz uma longa viagem ao mais profundode si mesma e chega conscincia total de ser. Diz: eu ; o homem, Ulisses, umprofessor de filosofia que possui frmulas para explicar o mundo, transforma-se em algomais simples, um simples homem. Ambos sero iniciados: Ulisses fecha os ouvidos paraas outras sereias porque s est disponvel para Lri, cujo verdadeiro nome Loreley,como a personagem de Heine e de Apollinaire, uma ondina ou sereia que costumavaatrair para os rochedos os barqueiros do Reno. Na verdade, cada um vai encontrar-se
  • 2. consigo mesmo em face do outro. Por ser trabalho, ascese, viagem, o amor de Lri e Ulisses vence a diferena, oestranhamento, vence at mesmo a morte, ou o medo da morte. E a entrega finalmentefsica dos personagens se realiza com fora tntrica de xtase, de epifania. Para Lri, aatmosfera era de milagre; Ulisses, estava sofrendo de vida e de amor. Nada termina, porm, o momento anuncia uma nova aurora: Ambos estavamplidos e ambos se acharam belos. Clarice, que se insere sabiamente no possvel, fechacom dois pontos a narrativa que comeara com uma vrgula.
  • 3. OBRAS DA AUTORAPerto do corao selvagem, romanceO lustre, romanceA cidade sitiada, romanceA ma no escuro, romanceA paixo segundo G.H., romanceUma aprendizagem ou o livre dos prazeres, romancegua viva, romanceUm sopro de vida, romanceA hora da estrela, novelaA bela e a fera, contosLaos de famlia, contosA legio estrangeira, contosFelicidade clandestina, contosOnde estivestes de noite, contosA via crucis do corpo, contosDe corpo inteiro, entrevistasPara no esquecer, crnicasA descoberta do mundo, crnicasO mistrio do coelho pensante, infantilA mulher que matou os peixes, infantilA vida ntima de Laura, infantilQuase de verdade, infantilComo nasceram as estrelas, infantil Clarice Lispector UMA APRENDIZAGEM OU
  • 4. O LIVRO DOS PRAZERES Romance Rio de Janeiro - 1998 1969, Clarice Lispector, Paulo Gurgel Valente e Pedro Gurgel Valente estabelecimento do texto MARLENE GOMES MENDES (Dra. em Literatura Brasileira pela USP/Prof" de Crtica Textual na UFF) Depois disto olhei, e eis que vi uma porta aberta no cu, e a primeira voz queouvi era como a trombeta que falava comigo, dizendo: sobe aqui, e mostrar-te-ei ascoisas que devem acontecer depois destas. Apocalipse, IV, 1 Provo..................................................... Que a mais alta expresso da dor......... Consiste essencialmente na alegria....... Augusto dos Anjos Jeanne: Je ne veux pas mourir! Jai peur! II y a la joie qui est la plus forte! (Oratrio dramtico de Paul Claudel para msica de Honneger, Jeanne dArc an
  • 5. bucher.) NOTA Este livro se pediu uma liberdade maior que tive medo de dar. Ele est muitoacima de mim. Humildemente tentei escrev-lo. Eu sou mais forte do que eu. CL. NOTA PRVIA Todo texto com tradio tomada a palavra no sentido que a Crtica Textual lheempresta tende a apresentar, nas reprodues que dele so feitas, um maior ou menornmero de alteraes que vo, desde os erros cometidos por distrao de digitadores atas "correes" bem intencionadas de revisores ou copidesques. Por isso, necessrioque se proceda ao estabelecimento desse texto, procurando, no confronto com asedies publicadas em vida do autor, restituir-lhe sua fidedignidade e genuinidade. Clarice Lispector escrevia e reescrevia seus textos, mas no se preocupava emguardar manuscritos e originais, como se pode verificar no arquivo que se encontra naFundao Casa de Rui Barbosa, cujo inventrio foi organizado por Eliane Vasconcellos, epublicado em 1994. De toda sua obra ficcional, s restou um original datilografado: o degua viva, a propsito do qual fala em carta a Olga Borelli, mostrando como trabalhavaexaustivamente o texto: "...No pude te esperar: estava morrendo de cansao, porqueestou trabalhando ininterruptamente desde as cinco da manh. Infelizmente eu quetenho que fazer a cpia de Atrs do pensamento, sempre fiz a ltima cpia dos meuslivros anteriores porque cada vez que copio vou modificando, acrescentando, mexendoneles, enfim" (grifo nosso). No entanto, depois de encaminhar o texto editora, Clarice no se interessavamais por ele, conforme declara em entrevista concedida a Affonso Romano de SantAnnae Marina Colasanti, para o Museu da Imagem e do Som, em 20 de outubro de 1976: "Affonso Voc tem os seus textos escritos na cabea. E uma vez voc medisse uma coisa impressionante: voc nunca rel um texto seu. Clarice No. Enjo. Quando publicado, como livro morto. No quero mais
  • 6. saber dele. E quando eu leio, estranho, acho ruim. A no leio, ora!" Olga Borelli, grande amiga e companheira de Clarice Lispector, com quemconversamos recentemente, nos assegurou que, de fato, Clarice no revia seus textosdepois que encaminhava os originais editora. Assim, no possvel trabalhar com textos de Clarice Lispector, ignorando-se ofato de que no os revia e, portanto, no fazia mudanas de uma edio para outra. Umaaprendizagem ou o livro dos prazeres teve quatro edies publicadas em vida da autora:as duas primeiras, de 1969 e 1973, publicadas pela Editora Sabi e duas pela JosOlympio, 1974 e 1976. Nas edies que se seguiram, incorporaram-se incorrees que procuramoscorrigir nesta edio, cuidadosamente confrontada com a primeira, escolhida como textode base. Marlene Gomes Mendes A Origem da Primavera ou A Morte Necessria em Pleno Dia , estando to ocupada, viera das compras de casa que a empregada fizera spressas porque cada vez mais matava servio, embora s viesse para deixar almoo ejantar prontos, dera vrios telefonemas tomando providncias, inclusive um dificlimo parachamar o bombeiro de encanamentos de gua, fora cozinha para arrumar as compras edispor na fruteira as maas que eram a sua melhor comida, embora no soubesseenfeitar uma fruteira, mas Ulisses acenara-lhe com a possibilidade futura de por exemploembelezar uma fruteira, viu o que a empregada deixara para jantar antes de ir embora,pois o almoo estivera pssimo, enquanto notara que o terrao pequeno que era privilgiode seu apartamento por ser trreo precisava ser lavado, recebera um telefonemaconvidando-a para um coquetel de caridade em benefcio de alguma coisa que ela noentendeu totalmente mas que se referia ao seu curso primrio, graas a Deus que estavaem frias, fora ao guarda-roupa escolher que vestido usaria para se tornar extremamente
  • 7. atraente para o encontro com Ulisses que j lhe dissera que ela no tinha bom-gosto parase vestir, lembrou-se de que sendo sbado ele teria mais tempo porque no dava nessedia as aulas de frias na Universidade, pensou no que ele estava se transformando paraela, no que ele parecia querer que ela soubesse, sups que ele queria ensinar-lhe a viversem dor apenas, ele dissera uma vez que queria que ela, ao lhe perguntarem seu nome,no respondesse "Lri" mas que pudesse responder "meu nome eu", pois teu nome,dissera ele, um eu, perguntou-se se o vestido branco e preto serviria, ento do ventremesmo, como um estremecer longnquo de terra que mal se soubesse ser sinal deterremoto, do tero, do corao contrado veio o tremor gigantesco duma forte dorabalada, do corpo todo o abalo e em sutis caretas de rosto e de corpo afinal com adificuldade de um petrleo rasgando a terra veio afinal o grande choro seco, choromudo sem som algum at para ela mesma, aquele que ela no havia adivinhado, aqueleque no quisera jamais e no previra sacudida como a rvore forte que maisprofundamente abalada que a rvore frgil afinal rebentados canos e veias, entosentou-se para descansar e em breve fazia de conta que ela era uma mulher azul porqueo crepsculo mais tarde talvez fosse azul, faz de conta que fiava com fios de ouro assensaes, faz de conta que a infncia era hoje e prateada de brinquedos, faz de contaque uma veia no se abrira e faz de conta que dela no estava em silncio alvssimoescorrendo sangue escarlate, e que ela no estivesse plida de morte mas isso fazia deconta que estava mesmo de verdade, precisava no meio do faz de conta falar a verdadede pedra opaca para que contrastasse com o faz de conta verde-cintilante, faz de contaque amava e era amada, faz de conta que no precisava morrer de saudade, faz de contaque estava deitada na palma transparente da mo de Deus, no Lri mas o seu nomesecreto que ela por enquanto ainda no podia usufruir, faz de conta que vivia e no queestivesse morrendo pois viver afinal no passava de se aproximar cada vez mais damorte, faz de conta que ela no ficava de braos cados de perplexidade quando os fiosde ouro que fiava se embaraavam e ela no sabia desfazer o fino fio frio, faz de contaque ela era sbia bastante para desfazer os ns de corda de marinheiro que lhe atavamos pulsos, faz de conta que tinha um cesto de prolas s para olhar a cor da lua pois elaera lunar, faz de conta que ela fechasse os olhos e seres amados surgissem quandoabrisse os olhos midos de gratido, faz de conta que tudo o que tinha no era faz deconta, faz de conta que se descontraa o peito e uma luz douradssima e leve a guiava poruma floresta de audes mudos e de tranqilas mortalidades, faz de conta que ela no eralunar, faz de conta que ela no estava chorando por dentro pois agora mansamente,
  • 8. embora de olhos secos, o corao estava molhado; ela sara agora da voracidade deviver. Lembrou-se de escrever a Ulisses contando o que se passara, mas nada sepassara dizvel em palavras escritas ou faladas, era bom aquele sistema que Ulissesinventara: o que no soubesse ou no pudesse dizer, escreveria e lhe daria o papelmudamente mas dessa vez no havia sequer o que contar. Agora lcida e calma, Lri lembrou-se de que lera que os movimentos histricosde um animal preso tinham como inteno libertar, por meio de um desses movimentos, acoisa ignorada que o estava prendendo a ignorncia do movimento nico, exato elibertador era o que tornava um animal histrico: ele apelava para o descontrole durante o sbio descontrole de Lri ela tivera para si mesma agora as vantagenslibertadoras vindas de sua vida mais primitiva e animal: apelara histericamente paratantos sentimentos contraditrios e violentos que o sentimento libertador terminaradesprendendo-a da rede, na sua ignorncia animal ela no sabia sequer como, estavacansada do esforo de animal libertado. E agora chegara o momento de decidir se continuaria ou no vendo Ulisses. Emsbita revolta ela no quis aprender o que ele pacientemente parecia querer ensinar e elamesma aprender revoltava-se sobretudo porque aquela no era para ela poca de"meditao" que de sbito parecia ridcula: estava vibrando em puro desejo como lheacontecia antes e depois da menstruao. Mas era como se ele quisesse que elaaprendesse a andar com as prprias pernas e s ento, preparada para a liberdade porUlisses, ela fosse dele o que que ele queria dela, alm de tranqilamente desej-la?No comeo Lri enganara-se e pensara que Ulisses queria lhe transmitir algumas coisasdas aulas de filosofia mas ele disse: "no de filosofia que voc est precisando, se fosseseria fcil: voc assistiria s minhas aulas como ouvinte e eu conversaria com voc emoutros termos", pois que agora o terremoto serviria sua histeria e agora que estavalibertada podia at adiar para o futuro a deciso de no ver Ulisses: s que hoje queriav-lo e, apesar de no tolerar o mudo desejo dele, sabia que na verdade era ela quem oprovocava para tentar quebrar a pacincia com que ele esperava; com a mesada que opai mandava comprava vestidos caros sempre justos, era s isso que sabia fazer paraatra-lo e estava na hora de se vestir: olhou-se ao espelho e s era bonita pelo fato de seruma mulher: seu corpo era fino e forte, um dos motivos imaginrios que fazia com queUlisses a quisesse; escolheu um vestido de fazenda pesada, apesar do calor, quase semmodelo, o modelo seria o seu prprio corpo mas enfeitar-se era um ritual que a tornavagrave: a fazenda j no era um mero tecido, transformava-se em matria de coisa e era
  • 9. esse estofo que com o seu corpo ela dava corpo como podia um simples pano ganhartanto movimento? seus cabelos de manh lavados e secos ao sol do pequeno terraoestavam da seda castanha mais antiga bonita? no, mulher: Lri ento pintoucuidadosamente os lbios e os olhos, o que ela fazia, segundo uma colega, muito malfeito, passou perfume na testa e no nascimento dos seios a terra era perfumada comcheiro de mil folhas e flores esmagadas: Lri se perfumava e essa era uma das suasimitaes do mundo, ela que tanto procurava aprender a vida com o perfume, de algummodo intensificava o que quer que ela era e por isso no podia usar perfumes que acontradiziam: perfumar-se era de uma sabedoria instintiva, vinda de milnios de mulheresaparentemente passivas aprendendo, e, como toda arte, exigia que ela tivesse ummnimo de conhecimento de si prpria: usava um perfume levemente sufocante, gostosocomo hmus, como se a cabea deitada, esmagasse hmus, cujo nome no dizia anenhuma de suas colegas-professoras: porque ele era seu, era ela, j que para Lriperfumar-se era um ato secreto e quase religioso usaria brincos? hesitou, pois queriaorelhas apenas delicadas e simples, alguma coisa modestamente nua, hesitou mais:riqueza ainda maior seria a de esconder com os cabelos as orelhas de cora e torn-lassecretas, mas no resistiu: descobriu-as, esticando os cabelos para trs das orelhasincongruentes e plidas: rainha egpcia? no, toda ornada como as mulheres bblicas, ehavia tambm algo em seus olhos pintados que dizia com melancolia: decifra-me, meuamor, ou serei obrigada a devorar, e agora pronta, vestida, o mais bonita quanto poderiachegar a s-lo, vinha novamente a dvida de ir ou no ao encontro com Ulisses pronta,de braos pendentes, pensativa, iria ou no ao encontro? com Ulisses ela se comportavacomo uma virgem que no era mais, embora tivesse certeza de que tambm isso eleadivinhava, aquele sbio estranho que no entanto no parecia adivinhar que ela queriaamor. Mais uma vez, nas suas hesitaes confusas, o que a tranqilizou foi o quetantas vezes lhe servia de sereno apoio: que tudo o que existia, existia com umapreciso absoluta e no fundo o que ela terminasse por fazer ou no fazer no escapariadessa preciso; aquilo que fosse do tamanho da cabea de um alfinete, no transbordavanenhuma frao de milmetro alm do tamanho de uma cabea de alfinete: tudo o queexistia era de uma grande perfeio. S que a maioria do que existia com tal perfeio era,tecnicamente, invisvel: a verdade, clara e exata em si prpria, j vinha vaga e quaseinsensvel mulher. Bem, suspirou ela, se no vinha clara, pelo menos sabia que havia um sentido
  • 10. secreto das coisas da vida. De tal modo sabia que s vezes, embora confusa, terminavapressentindo a perfeio de novo esses pensamentos, que de algum modo usavacomo lembrete (de que, por causa da perfeio que existia, ela terminaria acertando) mais uma vez o lembrete agiu nela e com seus olhos ainda escuros agora pelopensamento perturbado, decidiu que veria Ulisses pelo menos mais esta vez. E no era porque ele esperava por ela, pois muitas vezes Lri, contando com a jinsultuosa pacincia de Ulisses, faltava sem avisar-lhe nada: mas idia de que apacincia de Ulisses se esgotaria, a mo subiu-lhe garganta tentando estancar umaangstia parecida com a que sentia quando se perguntava "quem sou eu? quem Ulisses? quem so as pessoas?" Era como se Ulisses tivesse uma resposta para tudoisso e resolvesse no d-la e agora a angstia vinha porque de novo descobria queprecisava de Ulisses, o que a desesperava queria poder continuar a v-lo, mas semprecisar to violentamente dele. Se fosse uma pessoa inteiramente s, como era antes,saberia como sentir e agir dentro de um sistema. Mas Ulisses, entrando cada vez maisplenamente em sua vida, ela, ao se sentir protegida por ele, passara a ter receio deperder a proteo embora ela mesma no soubesse ao certo que idia fazia de "serprotegida": teria, por acaso, o desejo infantil de ter tudo mas sem a ansiedade de deverdar algo em troca? Proteo seria presena? Se fosse protegida por Ulisses ainda maisdo que era, ambicionaria logo o mximo: ser to protegida a ponto de no recear ser livre:pois de suas fugidas de liberdade teria sempre para onde voltar. Por ter de relance se visto de corpo inteiro ao espelho, pensou que a proteotambm seria no ser mais um corpo nico: ser um nico corpo dava-lhe, como agora, aimpresso de que fora cortada de si prpria. Ter um corpo nico circundado peloisolamento, tornava to delimitado esse corpo, sentiu ela, que ento se amedrontava deser uma s, olhou-se avidamente de perto no espelho e se disse deslumbrada: como soumisteriosa, sou to delicada e forte, e a curva dos lbios manteve a inocncia. Pareceu-lhe ento, meditativa, que no havia homem ou mulher que por acasono se tivesse olhado ao espelho e no se surpreendesse consigo prprio. Por umafrao de segundo a pessoa se via como um objeto a ser olhado, o que poderiam chamarde narcisismo mas, j influenciada por Ulisses, ela chamaria de: gosto de ser. Encontrarna figura exterior os ecos da figura interna: ah, ento verdade que eu no imaginei: euexisto. E pelo mesmo fato de se haver visto ao espelho, sentiu como sua condio erapequena porque um corpo menor que o pensamento a ponto de que seria intil ter
  • 11. mais liberdade: sua condio pequena no a deixaria fazer uso da liberdade. Enquanto acondio do Universo era to grande que no se chamava de condio. A condiohumana de Ulisses era maior que a dela que, no entanto, tinha um cotidiano rico. Mas seudescompasso com o mundo chegava a ser cmico de to grande: no conseguira acertaro passo com as coisas ao seu redor. J tentara se pr a par do mundo e tornara-seapenas engraado: uma das pernas sempre curta demais. (O paradoxo que deveriaaceitar de bom grado essa condio de manca, porque tambm isto fazia parte de suacondio). (S quando queria andar certo com o mundo que se estraalhava e seespantava). E de repente sorriu para si prpria com um sorriso amargo, mas que no eramau porque tambm ele era de sua condio. (Lri se cansava muito porque ela noparava de ser). Pareceu-lhe que Ulisses, se ela tivesse coragem de contar-lhe o que sentia, ejamais o faria, se lhe contasse ele responderia mais ou menos assim e bem calmo: acondio no se cura mas o medo da condio curvel. Ele diria isso ou qualquer outracoisa irritou-a porque cada vez que lhe ocorria um pensamento mais agudo ou maissensato como este, ela supusesse que Ulisses era quem o teria, ela, que reconhecia comgratido a superioridade geral dos homens que tinham cheiro de homens e no deperfume, e reconhecia com irritao que na verdade esses pensamentos que elachamava de agudos ou sensatos j eram resultado de sua convivncia mais estreita comUlisses. E mesmo o fato de seus "sofrimentos" serem agora mais espaados, o que deviaa Ulisses "sofrimentos"? Ser era uma dor? E s quando ser no fosse mais uma dor que Ulisses aconsideraria pronta para dormir com ele? No, no vou ao encontro, pensou ento paradesligar-se dele. Mas desta vez no quis que ele fosse ao bar esper-la: para ofend-loquis dizer-lhe que no ia, ele que estava habituado a v-la faltar e no avisar sequer.Dessa vez ela lhe diria que no ia, o que era uma ofensa mais positiva. Haviam-se passado momentos ou trs mil anos? Momentos pelo relgio em quese divide o tempo, trs mil anos pelo que Lri sentiu quando com pesada angstia, todavestida e pintada, chegou janela. Era uma velha de quatro milnios. No no fazia vermelho. Era a unio sensual do dia com a sua hora maiscrepuscular. Era quase noite e estava ainda claro. Se pelo menos fosse vermelho vistacomo o era nela intrinsecamente. Mas era um calor de luz sem cor, e parada. No, amulher no conseguia transpirar. Estava seca e lmpida. E I fora s voavam pssaros depenas empalhadas. Se a mulher fechava os olhos para no ver o calor, pois era um calor
  • 12. visvel, s ento vinha a alucinao lenta simbolizando-o: via elefantes grossos seaproximarem, elefantes doces e pesados, de casca seca, embora mergulhados no interiorda carne por uma ternura quente insuportvel; eles eram difceis de se carregarem a siprprios, o que os tornava lentos e pesados. Ainda era cedo para acender as lmpadas, o que pelo menos precipitaria umanoite. A noite que no vinha, no vinha, no vinha, que era impossvel. E o seu amor queagora era impossvel que era seco como a febre de quem no transpira era amor sempio nem morfina. E "eu te amo" era uma farpa que no se podia tirar com uma pina.Farpa incrustada na parte mais grossa da sola do p. Ah, e a falta de sede. Calor com sede seria suportvel. Mas ah, a falta de sede.No havia seno faltas e ausncias. E nem ao menos a vontade. S farpas sem pontassalientes por onde serem pinadas e extirpadas. S os dentes estavam midos. Dentro deuma boca voraz e ressequida os dentes midos mas duros e sobretudo a boca vorazpara nada. E o nada era quente naquele fim de tarde eternizada pelo planeta Marte. Seus olhos abertos e diamantes. Nos telhados os pardais secos. "Eu vos amo,pessoas", era frase impossvel. A humanidade lhe era como morte eterna que no entantono tivesse o alvio de enfim morrer. Nada, nada morria na tarde enxuta, nada apodrecia.E s seis horas da tarde fazia meio-dia. Fazia meio-dia com um barulho atento demquina de bomba de gua, bomba que trabalhava h tanto tempo sem gua e que virarferro enferrujado: h dois dias faltava gua em diversas zonas da cidade. Nada jamaisfora to acordado como seu corpo sem transpirao e seus olhos-diamantes, e devibrao parada. E o Deus? No. Nem mesmo a angstia. O peito vazio, sem contrao.No havia grito. Enquanto isso era vero. Vero largo como o ptio vazio nas frias da escola.Dor? Nenhuma. Nenhum sinal de lgrima e nenhum suor. Sal nenhum. S uma dourapesada: como a da casca lenta dos elefantes de couro ressequido. A esqualidez lmpida equente. Pensar no seu homem? No, era a farpa na parte corao dos ps. Lamentar noter casado e no ter filhos? Quinze filhos dependurados, sem se balanarem ausnciade vento. Ah, se as mos comeassem a se umedecer. Nem que houvesse gua, pordio no se banharia. Era por dio que no havia gua. Nada escorria. A dificuldade erauma coisa parada. E uma jia diamante. A cigarra de garganta seca no parava de rosnar.E se o Deus se liquefaz enfim em chuva? No. Nem quero. Por seco e calmo dio, queroisso mesmo, este silncio feito de calor que a cigarra rude torna sensvel. Sensvel? Nose sente nada. Seno esta dura falta de pio que amenize. Quero que isto que
  • 13. intolervel continue porque quero a eternidade. Quero esta espera contnua como o cantoavermelhado da cigarra, pois tudo isso a morte parada, a Eternidade de trilhes deanos das estrelas e da Terra, o cio sem desejo, os ces sem ladrar. nessa hora que obem e o mal no existem. o perdo sbito, ns que nos alimentvamos com gostosecreto da punio. Agora a indiferena de um perdo. Pois no h mais julgamento.No um perdo que tenha vindo depois de um julgamento. a ausncia de juiz econdenado. E no chove, no chove. No existe menstruao. Os ovrios so duasprolas secas. Vou vos dizer a verdade: por dio seco, quero isto mesmo, e que nochova. E exatamente ento ela ouve alguma coisa. Uma coisa tambm seca que a deixaainda mais seca de ateno. um rolar de trovo seco, sem uma saliva, que rola, masaonde? No cu nu e absolutamente azul nenhuma nuvem de amor que chore. Deve serde muito longe o trovo. Ao mesmo tempo o ar tem um cheiro adocicado de elefantesgrandes, e de jasmim adocicado na casa ao lado. A ndia invadindo o Rio de Janeiro comsuas mulheres adocicadas. Um cheiro de cravos de cemitrio. Ir tudo mudar to derepente? Para quem no tinha nem noite nem chuva nem apodrecimento de madeira nagua para quem no tinha seno prolas, ser que a noite vai chegar? Vai ter madeiraenfim apodrecendo, cravo vivo de chuva no cemitrio, chuva que vem da Malsia? A urgncia ainda imvel mas j tem um tremor dentro. Lri no percebe que otremor seu, como no percebera que aquilo que a queimava no era o fim da tardeencalorada, e sim o seu calor humano. Ela s percebe que agora alguma coisa vai mudar,que chover ou cair a noite. Mas no suporta a espera de uma passagem, e antes dachuva cair, o diamante dos olhos se liquefaz em duas lgrimas. E enfim o cu se abranda. Lri ligou o nmero de telefone: No poderei ir, Ulisses, no estou bem. Houve uma pausa. Ele afinalperguntou: fisicamente que voc no est bem? Ela respondeu que no tinha nada fsico. Ento ele disse: Lri, disse Ulisses, e de repente pareceu grave embora falasse tranqilo, Lri:uma das coisas que aprendi que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer.Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes o prprioapesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angstia queinsatisfeita foi a criadora de minha prpria vida. Foi apesar de que parei na rua e fiquei
  • 14. olhando para voc enquanto voc esperava um txi. E desde logo desejando voc, esseteu corpo que nem sequer bonito, mas o corpo que eu quero. Mas quero inteira, com aalma tambm. Por isso, no faz mal que voc no venha, esperarei quanto tempo forpreciso. Por que que voc nunca se casou? perguntou ela incongruentemente. que e sua voz era a voz de quem sorria que no senti necessidade epor sorte tive as mulheres que eu quis. Ela se despediu, abaixou a cabea em pudor e alegria. Pois apesar de, ela tiveraalegria. Ele esperaria por ela, agora o sabia. At que ela aprendesse. Tudo estava tranqilo agora. E ao lembrar-se de sua prpria imagem bblica, aose ter olhado antes ao espelho, achou-a to de algum modo bonita, que tinha que daresse aspecto de beleza a algum. E esse algum s podia ser Ulisses que sabia ver abeleza disfarada e to recndita que um ser vulgar no poderia. Mas ele, a um olhar,podia. Ele era um homem, ela era uma mulher, e milagre mais extraordinrio do que esses se comparava estrela-cadente que atravessa quase imaginariamente o cu negro edeixa como rastro o vivido espanto de um Universo vivo. Era um homem e era umamulher. Ela que tantas vezes chegara a odiar Ulisses, mesmo continuando a fazer comque ele a desejasse. Ah! gritou-se muda de repente, que o Deus me ajude a conseguir o impossvel,s o impossvel me importa! Nem sequer entendeu o que queria dizer com isso, mas como se tivesse sidoatendida no maior apelo humano e de algum modo, s por desej-lo, tivesse tocado noimpossvel, disse baixo, audvel, humilde: obrigada. Atravs de seus graves defeitos que um dia ela talvez pudesse mencionarsem se vangloriar que chegara agora a poder amar. At aquela glorificao: elaamava o Nada. A conscincia de sua permanente queda humana a levava ao amor doNada. E aquelas quedas como as de Cristo que vrias vezes caiu ao peso da cruz eaquelas quedas que comeavam a fazer a sua vida. Talvez fossem os seus "apesar de"que, Ulisses dissera, cheios de angstia e desentendimento de si prpria, a estivessemlevando a construir pouco a pouco uma vida. Com pedras de material ruim ela levantavatalvez o horror, e aceitava o mistrio de com horror amar ao Deus desconhecido. Nosabia o que fazer de si prpria, j nascida, seno isto: Tu, Deus, que eu amo comoquem cai no nada.
  • 15. Depois foi fcil telefonar para Ulisses e dizer-lhe que mudara de idia e que podiair esper-la no bar. Era cruel o que fazia consigo prpria: aproveitar que estava em carneviva para se conhecer melhor, j que a ferida estava aberta. Mas doa demais mexer-senesse sentido. Ento preferiu apaziguar-se e planejou que, no txi, pensaria no nariz retode Ulisses, na sua cara marcada pela aprendizagem lenta da vida, nos seus lbios queela jamais beijara. S que ela no queria ir de mos vazias. E assim como se lhe levasse uma flor,ela escreveu num papel algumas palavras que lhe dessem prazer: "Existe um ser quemora dentro de mim como se fosse casa dele, e . Trata-se de um cavalo preto e lustrosoque apesar de inteiramente selvagem pois nunca morou antes em ningum nem jamaislhe puseram rdeas nem sela apesar de inteiramente selvagem tem por isso mesmouma doura primeira de quem no tem medo: come s vezes na minha mo. Seu focinho mido e fresco. Eu beijo o seu focinho. Quando eu morrer, o cavalo preto ficar semcasa e vai sofrer muito. A menos que ele escolha outra casa e que esta outra casa notenha medo daquilo que ao mesmo tempo selvagem e suave. Aviso que ele no temnome: basta cham-lo e se acerta com seu nome. Ou no se acerta, mas, uma vezchamado com doura e autoridade, ele vai. Se ele fareja e sente que um corpo-casa livre, ele trota sem rudos e vai. Aviso tambm que no se deve temer o seu relinchar: agente se engana e pensa que a gente mesma que est relinchando de prazer ou declera, a gente se assusta com o excesso de doura do que isto pela primeira vez". Ela sorriu. Ulisses ia gostar, ia pensar que o cavalo era ela prpria. Era? Como se uma manada de gazelas transparentes se transladassem no ar domundo ao crepsculo foi isso o que Lri conseguiu vrias semanas depois. A vitriatranslcida foi to leve e promissora como o prazer pr-sexual. Ela se tornara mais habilidosa: como se aos poucos estivesse se habituando terra, Lua, ao Sol, e estranhamente a Marte sobretudo. Estava numa plataformaterrestre de onde por timos de segundos parecia ver a super-realidade do que verdadeiramente real. Mais real disse-lhe Ulisses quando ela a seu jeito contou-lhe oquase no acontecimento mais real que a realidade. No dia seguinte tentou pacientemente de novo o crepsculo. Estava espera.Com os sentidos aguados pelo mundo que a cercava como se entrasse nas terrasdesconhecidas de Vnus. Nada aconteceu.
  • 16. Luminescncia De Ulisses ela aprendera a ter coragem de ter f muita coragem, f em qu?Na prpria f, que a f pode ser um grande susto, pode significar cair no abismo, Lritinha medo de cair no abismo e segurava-se numa das mos de Ulisses enquanto a outramo de Ulisses empurrava-a para o abismo em breve ela teria que soltar a mo menosforte do que a que a empurrava, e cair, a vida no de se brincar porque em pleno dia semorre. A mais premente necessidade de um ser humano era tornar-se um ser humano. E houve a noite de terror. Ela ouvia passos indo e vindo. Olhou pela fresta dajanela e viu que era o mesmo homem meio doido, com braos compridos de macaco, quedurante o dia a seguira. Os passos vagarosos que vinham e iam e voltavam. Lri sabiaque ele esperava por ela. Pela fresta viu que ele fumava e pacientemente andava para ce para I. Ela no suportou mais e telefonou para Ulisses. Ele disse que em minutos estariaI. Minutos ou horas interminveis? Ter-se-ia quebrado o freio de seu carro ou coisasemelhante? Finalmente ouviu o carro parar. Viu pela janela os dois homens falando, e umsussurro calmo que se prolongava demais. Afinal viu o homem se afastar, ao mesmo tempo que Ulisses dizia-lhe baixo: Lri, est tudo bem. Foi um homem que voc hoje ficou olhando muito,possivelmente distrada, e ele com esperana acompanhou voc esperando que vocabrisse a porta. Venha at a porta. Ele foi: Quer tomar um caf? perguntou ela como pretexto para faz-lo entrar. Ele ficou no limiar. Ela estava de p, em camisola curta e transparente. Ele iadizer: "pode dormir descansada, eu dissuadi o homem a meu modo". Mas antes de dizerisso ele parou inteiramente, com os lbios apertados, e olhou-a de alto a baixo. Afinaldisse: De dia telefono para voc. Com o desespero de fmea desprezada, ouviu o carro dele se afastar. A viso de Ulisses tirara-lhe o sono. Olhou-se de corpo inteiro ao espelho paracalcular o que Ulisses vira. E achou-se atraente. No entanto ele no quisera entrar. Esperou sem pressa pela madrugada. A melhor luz de se viver era na
  • 17. madrugada, leve to leve promessa de manhzinha. Ela sabia disso, j passara inmerasvezes por isso. Como para um pintor que escolhe a luz que lhe convm, Lri preferia paraa descoberta do que se chama viver essas horas tmidas do vago comeo do dia. Demadrugada ia ao pequeno terrao e quando tinha sorte era madrugada com lua-cheia.Tudo isso ela j aprendera atravs de Ulisses. Antes ela evitara sentir. Agora ainda tinhaporm j com leves incurses pela vida. Mas da lua ela no tinha receio porque era mais lunar que solar e via de olhosbem abertos nas madrugadas to escuras a lua sinistra no cu. Ento ela se banhavatoda nos raios lunares, assim como havia os que tomavam banhos de sol. E ficavaprofundamente lmpida. Nesta madrugada fresca foi ao terrao e refletindo um pouco chegou assustadora certeza de que seus pensamentos eram to sobrenaturais como uma histriapassada depois da morte. Ela simplesmente sentira, de sbito, que pensar no lhe eranatural. Depois chegara concluso de que ela no tinha um dia-a-dia mas sim umavida-a-vida. E aquela vida que era sua nas madrugadas era sobrenatural com suasinmeras luas banhando-a de um prateado lquido to terrvel. Sobretudo aprendera agora a se aproximar das coisas sem lig-las sua funo.Parecia agora poder ver como seriam as coisas e as pessoas antes que lhes tivssemosdado o sentido de nossa esperana humana ou de nossa dor. Se no houvesse humanosna terra, seria assim: chovia, as coisas se ensopavam sozinhas e secavam e depoisardiam secas ao sol e se crestavam em poeira. Sem dar ao mundo o nosso sentido, comoLri se assustava! Tinha medo da chuva quando a separava da cidade e dosguarda-chuvas abertos e dos campos se embebendo de gua. Ento o que chamava demorte a atraa tanto que s poderia chamar de valoroso o modo como, por solidariedade epena dos outros, ainda estava presa ao que chamava de vida. Seria profundamenteamoral no esperar pela morte como os outros todos esperam por esta hora final. Teriasido esperteza dela avanar no tempo, e imperdovel ser mais sabida que os outros. Porisso, apesar da curiosidade intensa que tinha pela morte, Lri esperava. Amanheceu. O que se passara no pensamento de Lri naquela madrugada era to indizvel eintransmissvel como a voz de um ser humano calado. S o silncio da montanha lhe eraequivalente. O silncio da Sua, por exemplo. Lembrou-se com saudade do tempo emque o pai era rico e viajavam vrios meses por ano. Por mais intransmissvel que fossem os humanos, eles sempre tentavam se
  • 18. comunicar atravs de gestos, de gaguejos, de palavras mal ditas e malditas. J era demanh mais alta quando ela preparou caf forte, tomou-o e disps-se a se comunicar comUlisses, j que Ulisses era o seu homem. Escreveu: "E to vasta a noite na montanha. To despovoada. A noite espanhola tem operfume e o eco duro do sapateado da dana, a italiana tem o mar clido mesmo seausente. Mas a noite de Berna tem o silncio. Tenta-se em vo ler para no ouvi-lo, pensar depressa para disfar-lo, inventarum programa, frgil ponte que mal nos liga ao subitamente improvvel dia de amanh.Como ultrapassar essa paz que nos espreita. Montanhas to altas que o desespero tempudor. Os ouvidos se afiam, a cabea se inclina, o corpo todo escuta: nenhum rumor.Nenhum galo possvel. Como estar ao alcance dessa profunda meditao do silncio?Desse silncio sem lembrana de palavras. Se s morte, como te abenoar? um silncio, Ulisses, que no dorme: insone: imvel mas insone e semfantasmas. E terrvel sem nenhum fantasma. Intil querer povo-lo com a possibilidadede uma porta que se abra rangendo, de uma cortina que se abra e "diga" alguma coisa.Ele vazio e sem promessa. Como eu, Ulisses? Se ao menos houvesse o vento. Vento ira, ira a vida. Mas nas noites que passei em Berna no havia vento e cada folha estavaincrustada no galho das rvores imveis. Ou se fosse poca de cair neve. Que mudamas deixa rastro tudo embranquece, as crianas riem brincando com os flocos, ospassos rangem e marcam. Isso durante o dia to intenso que a noite ainda povoada.H uma continuidade que a vida. Mas este silncio no deixa provas. No se pode falardo silncio como se fala da neve. O silncio a profunda noite secreta do mundo. E nose pode falar do silncio como se fala da neve: sentiu o silncio dessas noites? Quemouviu no diz. H uma maonaria do silncio que consiste em no falar dele e de ador-losem palavras. A noite, Ulisses, desce com suas pequenas alegrias de quem acende lmpadas,com o cansao que tanto justifica o dia. As crianas de Berna adormecem, fecham-se asltimas portas. As ruas brilham nas lajes e brilham j vazias. E afinal apagam-se as luzesdas casas. S um ou outro poste iluminado para iluminar o silncio. Mas este primeiro silncio, Ulisses, ainda no o silncio. Que se espere, poisas folhas das rvores ainda se ajeitaro melhor, algum passo tardio talvez se oua comesperana pelas escadas. Mas h um momento em que do corpo descansado se ergue o esprito atento, eda Terra e da Lua. Ento ele, o silncio, aparece. E o corao bate ao reconhec-lo: pois
  • 19. ele o de dentro da gente. Pode-se depressa pensar no dia que passou. Ou nos amigos que passaram epara sempre se perderam. Mas intil esquivar-se: h o silncio. Mesmo o sofrimentopior, o da amizade perdida, apenas fuga. Pois se no comeo o silncio parece aguardaruma resposta como arde, Ulisses, por ser chamada e responder; cedo se descobreque de ti ele nada exige, talvez apenas o teu silncio. Mas isto os da maonaria sabem.Quantas horas perdi na escurido supondo que o silncio te julga como esperei emvo ser julgada pelo Deus. Surgem as justificaes, trgicas justificaes forjadas,humildes desculpas at indignidade. To suave para o ser humano enfim mostrar suaindignidade e ser perdoado com a justificativa de que se um ser humano humilhado denascena. At que se descobre, Ulisses nem a tua indignidade ele quer. Ele o Silncio.Ele o Deus? Pode-se tentar engan-lo tambm. Deixa-se como p< acaso o livro da cabeceiracair no cho. Mas horror o livro cai dentro do silncio e se perde na muda e paradavoragem deste. E se um pssaro enlouquecido cantasse? Esperana intil. O cantoapenas atravessaria como uma leve flauta o silncio. O que mais se parecia, no domniodo som, com o silncio, era uma flauta. Ento, se h coragem, no se luta mais. Entra-se nele, vai-se nele para oInferno? Vai-se com ele, ns os nicos fantasmas de uma noite em Berna. Que se entre.Que no se espere o resto da escurido diante dele, s ele prprio. Ser como seestivssemos num navio to descomunalmente enorme que ignorssemos estar numnavio. E este singrasse to largamente que ignorssemos estar indo. Mais do que isso umhomem no pode. Viver na orla da morte e das estrelas vibrao mais tensa do que asveias podem suportar. No h sequer um filho de astro e de mulher como intermediriopiedoso. O corao tem que se apresentar diante do Nada sozinho e sozinho bater emsilncio de uma taquicardia nas trevas. S se sente nos ouvidos o prprio corao.Quando este se apresenta todo nu, nem comunicao, submisso. Pois ns nofomos feitos seno para o pequeno silncio, no para o silncio astral. Se no h coragem, que no se entre. Que se espere o resto da escurido diantedo silncio, s os ps molhados pela espuma de algo que se espraia de dentro de ns.Que se espere. Um insolvel pelo outro. Um ao lado do outro, duas coisas que no vemna escurido. Que se espere. No o fim do silncio mas o auxlio bendito de um terceiroelemento: a luz da aurora.
  • 20. Depois nunca mais se esquece, Ulisses. Intil at fugir para outra cidade. Poisquando menos se espera pode-se reconhec-lo de repente. Ao atravessar a rua nomeio das buzinas dos carros. Entre uma gargalhada fantasmagrica e outra. Depois deuma palavra dita. s vezes no prprio corao da palavra se reconhece o Silncio. Osouvidos se assombram, o olhar se esgazeia ei-lo. E dessa vez ele fantasma." Escrever aliviou-a. Estava de olheiras pela noite no dormida, cansada, mas porum instante ah como Ulisses gostaria de saber feliz. Porque, se no expressara oinexpressvel silncio, falara como um macaco que grunhe e faz gestos incongruentes,transmitindo no se sabe o qu. Lri era. O qu? Mas ela era. O que acontecia na verdade com Lri que, por alguma deciso to profundaque os motivos lhe escapavam ela havia por medo cortado a dor. S com Ulisses vieraaprender que no se podia cortar a dor seno se sofreria o tempo todo. E ela haviacortado sem sequer ter outra coisa que em si substitusse a viso das coisas atravs dador de existir, como antes. Sem a dor, ficara sem nada, perdida no seu prprio mundo eno alheio sem forma de contato. Fora ento que Ulisses aparecera casualmente na sua vida. Ele, que seinteressara por Lri apenas pelo desejo, parecia agora ver como ela era inalcanvel. Emais: no s inalcanvel por ele mas por ela prpria e pelo mundo. Ela vivia de umestreitamento no peito: a vida. Ento que haviam comeado os encontros: ela s parecia querer dele aprenderalguma coisa e enganara-se pensando que queria aprender pelo fato de Ulisses serprofessor de Filosofia, usando-o nessa esperana. Quando esta morreu, ao ver que eleno tinha a menor inteno de ensinar-lhe um modo de viver "filosfico" ou "literrio", jera tarde: estava presa a ele porque queria ser desejada, sobretudo gostava de serdesejada meio selvagemente quando ele bebia demais. J tinha sido desejada por outroshomens mas era novo Ulisses querendo-a e esperando com pacincia mesmo quandoestava embriagado, o que no lhe tirava o controle e esperando com pacincia que elaestivesse pronta, enquanto ele prprio dizia de si mesmo que estava em plenaaprendizagem, mas to alm dela que ela se transformava em nfimo corpo vazio edoloroso, apenas isso. E ela ansiava por ele porque exatamente ele lhe parecia ser olimite entre o passado e o que viesse o que viria? Nada, pensava em desespero.Esperava, j que no tinha a fazer seno dar aulas de manha no curso primrio ou entoestar de frias como agora, ler um pouco, comer e dormir, e encontrar-se com Ulisses quepouco a transformava, ou se a transformava era pouco demais. E esperar.
  • 21. No entanto era o seu pavor de uma possvel intimidade de alma com Ulisses oque a deixava irritada com ele. Estaria na verdade lutando contra a sua prpria vontadeintensa de aproximar-se do impossvel de um outro ser humano? Ah, que no fosse maisa dor, e ajudava Ulisses aplicando-se depressa em aprender o qu? por medo deque ao final ele achasse que j era tarde demais para ela e recuasse gentilmente.Parecia-lhe no entanto que ela prpria dificultava a misso de ambos. Porque emborasem saber o que queria, alm de um dia vir a dormir com ele, adivinhava que seria algoto difcil de dar e receber que ele talvez se recusasse. A prpria Lri tinha uma espcie de receio de ir, como se pudesse ir longedemais em que direo? O que dificultava a ida. Sempre se retinha um pouco como sereti-vesse as rdeas de um cavalo que poderia galopar e lev-la Deus sabe onde. Ela seguardava. Por que e para qu? Para o que estava ela se poupando? Era um certo medoda prpria capacidade, pequena ou grande, talvez por no conhecer os prprios limites.Os limites de um humano eram divinos? Eram. Mas parecia-lhe que, assim como umamulher s vezes se guardava intocada para dar-se um dia ao amor, que ela queria morrertalvez ainda toda inteira para a eternidade t-la toda. Queria ela a salvao? A dor fora anquilosada e paralisada dentro de seu peito,como se ela no quisesse mais us-la como forma de viver. Mas essa precauo vindadepois de Ulisses no era ainda a que a salvaria: pois em lugar da dor, nada vieraseno a parada da vida dos sentimentos. Se era a salvao que ela esperava de Ulisses,isso seria pedir tanto e to grande que ele negaria? Ela nunca vira ningum salvar o outro,ento temia uma aproximao que s faria desiludi-la na confirmao de que um ser notranspassa o outro como sombras que se trespassam. s vezes regredia e sucumbia a uma completa irresponsabilidade: o desejo deser possuda por Ulisses sem ligar-se a ele, como fizera com os outros. Mas tambmnisso poderia falhar: era agora uma mulher de grande cidade mas o perigo que tambmhavia uma forte herana agrria vinda de longe no seu sangue. E sabia que essa heranapoderia fazer com que de repente ela quisesse mais, dizendo-se: no, eu no quero sereu somente, por ter um eu prprio, quero a ligao extrema entre mim e a terra frivel eperfumada. O que chamava de terra j se tornara o sinnimo de Ulisses, tanto ela queriaa terra de seus antepassados. Com as crianas que ela ensinava de manh, noconseguia unir-se terra, como se no estivesse pronta para ter a ligao de mulher como que representava filhos. E restava, ainda como sombra da dor sombria de que fora feitaantes de Ulisses, o pensamento desalentado: o que ela era, era apenas uma pequena
  • 22. parte de si mesma. Sua alma incomensurvel. Pois ela era o Mundo. E no entanto vivia o pouco. Issoconstitua uma de suas fontes de humildade e forada aceitao, e tambm a enfraqueciadiante de qualquer possibilidade de agir. Alis sentir-se humilde demais era de onde paradoxalmente vinha a sua altivezde pessoa. E que sua altivez que se refletia no modo flexvel e tranqilo de andar sua altivez vinha da certeza obscura de que suas razes eram fortes, e que sua humildadeno era apenas humildade humana: que qualquer raiz era forte, e sua humildade vinhada certeza obscura de que todas as razes eram humildes, terrosas e cheias de midovigor na sua modstia nodosa de raiz. claro que tudo isso no era pensado: era vivido, com uma ou outra rpidapassagem de luz de holofote na noite iluminando o cu por um timo de segundo depensamento a escurido. O que tambm salvara Lri que sentia que se o seu mundo particular no fossehumano, tambm haveria lugar para ela, e com grande beleza: ela seria uma manchadifusa de instintos, douras e ferocidades, uma trmula irradiao de paz e luta, como erahumanamente, mas seria de forma permanente: porque se o seu mundo no fossehumano ela seria um bicho. Por um instante ento desprezava o prprio humano eexperimentava a silenciosa alma da vida animal. E era bom. "No entender" era to vasto que ultrapassava qualquer entender entender era sempre limitado. Mas no-entender no tinha fronteiras e levava ao infinito,ao Deus. No era um no-entender como um simpies de esprito. O bom era ter umainteligncia e no entender. Era uma bno estranha como a de ter loucura sem serdoida. Era um desinteresse manso em relao s coisas ditas do intelecto, uma doura deestupidez. Mas de vez em quando vinha a inquietao insuportvel: queria entender obastante para pelo menos ter mais conscincia daquilo que ela no entendia. Embora nofundo no quisesse compreender. Sabia que aquilo era impossvel e todas as vezes quepensara que se compreendera era por ter compreendido errado. Compreender erasempre um erro preferia a largueza to ampla e livre e sem erros que era no-entender.Era ruim, mas pelo menos se sabia que se estava em plena condio humana. No entanto s vezes adivinhava. Eram manchas csmicas que substituamentender. Lri j havia contado a Ulisses sobre o tempo que, em Campos, os pais eram
  • 23. ricos e viajavam, demorando-se meses com os filhos num pas ou outro, at que, aomesmo tempo em que a me morrera, a fortuna se reduzira a um tero. Ulisses, apesarde nunca ter viajado seno pelo Brasil, jamais lhe fizera perguntas tursticas. Nem ela asdescrevia. Lri falava sucintamente sobre si mesma em outros pases. Dissera pouco masele, pela ateno que lhe dera, parecia ter ouvido alm do que ela contara. Ela falara de Paris mas no da terra chamada Paris. Falara de como o inverno Iera cheio de trevas no crepsculo e de como nevava neve ruim, no da leve mas dagrossa, e ainda mais: os flocos gelados batiam-lhe no rosto j rgido de frio trazidos pelasrajadas de vento. Contara por alto que um dia, ao escurecer, comeara numa esquina achorar de manso. No havia ningum por perto, e ento ela comeara a falar sozinha: "ODeus que me ajude nessas trevas geladas que so as minhas." Nessa esquina, dissera ela a Ulisses com sua voz sempre mansa, eu me sentiperdida, salva de algum naufrgio e jogada numa praia escura, fria, deserta. Paris, de sbito, aquela terra estranha, dera-lhe a dor mais inslita a de suaperdio real. Estar perdida no era a verdade corriqueira mas era a irrealidade que lhevinha dar a noo de sua condio verdadeira. E a de todos. Contou tambm de como no inverno ainda em Paris, ela procurara umacostureira num bairro distante do hotel. Dentro de casa no sentira a tarde cair e, estandoa lareira acesa, no percebera que o frio com a noite precoce se tornara gelado. Era novede fevereiro. Ao sair assustara-se ao encontrar noite feita. No conhecia o bairro e ostxis eram raros, os que passavam naquela rua negra j vinham com passageiros. Notinha exata noo a que distncia se achava do hotel. Ficara ali de p esperandoinutilmente um txi. E se esquecesse o nome do hotel? E de repente no tivera a menoridia do nome do seu, tanto o nome dos hotis em todas as cidades do mundo separeciam e ela morara ou apenas pousara em tantos. Se no se lembrasse nunca maisdo nome do hotel, ningum a encontraria, ela ficaria morando naquele bairro sujo e negroe de edifcios enegrecidos, isolada do resto de Paris e teria que mudar de vida parasobreviver. Moraria ali mesmo onde se perdera: era raro uma pessoa tocar to de perto asua prpria perdio. Para ter o que comer iria se prostituir? De acordo como era feitaparecia-lhe mais fcil e menos angustioso do que trabalhar atrs do balco de uma loja. Perdera a noo de quanto tempo estava ali naquela noite. O frio aumentaratanto que homens haviam acendido uma fogueira cor de flama intensa dentro de uma latadepositada na calada. Aproximou-se tambm e, como os homens, para no sentir adormncia crescente dos ps frgidos, sapateava de vez em quando imitando-os e, ainda
  • 24. imitando-os, esfregava as mos enluvadas uma na outra at que de repente oinesperado: o txi vazio passando. Mandou-o parar. E o nome do hotel? "V andando", disse ela ao chofer."Andando para onde?" respondera mal-humorado como todos os choferes em Paris. "Vandando", repetiu com fingida dureza. Esqueceria de fato o nome do hotel? Sentia-secomo quando era criana e tomava parte em representaes teatrais, e nos bastidores,antes de entrar no palco, estremecia de pavor porque simplesmente havia esquecido asprimeiras linhas do que devia dizer. Embora, uma vez entrando no palco, falasse derepente como uma sonmbula, e s mais tarde fosse aos poucos tomando conscincia desi e do pblico e conseguisse representar seu papel. Foi a uma freada sbita do txi, acompanhada de palavres do chofer, que lhedeu o choque necessrio e de sbito lembrara-se do nome do hotel. Disse-o ao chofer eimediatamente caiu num choro abafado de alvio e sofrimento. Ulisses ouvira de testa franzida. E depois dissera: E ento voc no quis mais nada disso. E parou com a possibilidade de dor, oque nunca se faz impunemente. Apenas parou e nada encontrou alm disso. Eu no digoque eu tenha muito, mas tenho ainda a procura intensa e uma esperana violenta. Noesta sua voz baixa e doce. E eu no choro, se for preciso um dia eu grito, Lri. Estou emplena luta e muito mais perto do que se chama de pobre vitria humana do que voc, mas vitria. Eu j poderia ter voc com o meu corpo e minha alma. Esperarei nem que sejamanos que voc tambm tenha corpo-alma para amar. Ns ainda somos moos, podemosperder algum tempo sem perder a vida inteira. Mas olhe para todos ao seu redor e veja oque temos feito de ns e a isso considerado vitria nossa de cada dia. No temos amado,acima de todas as coisas. No temos aceito o que no se entende porque no queremospassar por tolos. Temos amontoado coisas e seguranas por no nos termos um ao outro.No temos nenhuma alegria que j no tenha sido catalogada. Temos construdocatedrais, e ficado do lado de fora pois as catedrais que ns mesmos construmos,tememos que sejam armadilhas. No nos temos entregue a ns mesmos, pois isso seriao comeo de uma vida larga e ns a tememos. Temos evitado cair de joelhos diante doprimeiro de ns que por amor diga: tens medo. Temos organizado associaes e clubessorridentes onde se serve com ou sem soda. Temos procurado nos salvar mas sem usara palavra salvao para no nos envergonharmos de ser inocentes. No temos usado apalavra amor para no termos de reconhecer sua contextura de dio, de amor, de cime ede tantos outros contraditrios. Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar
  • 25. nossa vida possvel. Muitos de ns fazem arte por no saber como a outra coisa. Temosdisfarado com falso amor a nossa indiferena, sabendo que nossa indiferena angstiadisfarada. Temos disfarado com o pequeno medo o grande medo maior e por issonunca falamos no que realmente importa. Falar no que realmente importa consideradouma gafe. No temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos atempo dos falsos deuses. No temos sido puros e ingnuos para no rirmos de nsmesmos e para que no fim do dia possamos dizer "pelo menos no fui tolo" e assim noficarmos perplexos antes de apagar a luz. Temos sorrido em pblico do que nosorriramos quando ficssemos sozinhos. Temos chamado de fraqueza a nossa candura.Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso consideramos a vitria nossade cada dia. Mas eu escapei disso, Lri, escapei com a ferocidade com que se escapa dapeste, Lri, e esperarei at voc tambm estar mais pronta. Lri sempre se espantava de como Ulisses a conhecia. Mas apesar de ele podercompreender, receava sua censura ou de que ele desanimasse e a abandonasse, enunca lhe dissera que o "mal" muitas vezes voltava: o ar dentro dela tinha ento cheiro depoeira molhada. Vai recomear, meu Deus? Perguntava-se ento. E reunia toda a suafora para parar a dor. Que dor era? A de existir? A de pertencer a alguma coisadesconhecida? A de ter nascido? E depois, estancada a dor como se no tivesse sequer havido, exausta, aps ternadado quilmetros no universo vazio, ficara ofegante, jogava-se nas areias brilhantes deum planeta, imvel, de bruos. Tambm no dissera a Ulisses de como melhorara a penosa sensao de estarsolta o fato de estar solta mesmo: o pai perdendo o grosso da fortuna, ela mudara-sesozinha de Campos para o Rio, comprara o pequeno apartamento onde vivia, sustentadaregiamente pela mesada do pai. Com quatro irmos homens, e ela filha nica, o pai lhemandava o que ela quisesse. Com um tero da fortuna que restara dava para elesviverem como ricos, mas felizmente para ela acabara-se a possibilidade de viajar semparar pela Europa. No contara a Ulisses por vergonha: ele era, ao que ela entendera,socialista e no admitiria sem escrnio ou revolta dar-se com ela sem desprezo. Por que voc veio para o Rio? No existem escolas primrias em Campos? E que eu no queria... no queria me casar, queria certo tipo de liberdade queI no seria possvel sem escndalo, a comear pela minha famlia, I tudo se sabe, meupai me manda mesada porque o dinheiro da escola eu no poderia Quantos amantes voc j teve? interrompeu ele. Ela silenciou. Depois disse:
  • 26. No foram propriamente amantes porque eu no os amava. Nas frias, como agora, voc no se sente muito sozinha? Antes de mim,quero dizer. Alguma companhia eu tenho porque sempre posso conversar um pouco com aempregada antiga que vem por horas arrumar a casa e deixar pronto almoo e jantar. Etem uma cartomante que de vez em quando eu visito. Ele no riu: E de amigas, voc no sente falta? J que ele no rira, ela pde dizer: Mas a cartomante minha amiga, ela nem me cobra consulta. E eu estavacansada de viver em companhia de quatro irmos e de meu pai e de todos os conhecidose conhecidas. Amiga s tive enquanto estudava. Agora prefiro ficar sozinha. Escute, Lri, voc sabe muito bem como conheci voc e quero de propsitorelembr-lo: voc estava esperando um txi e eu, depois de olhar muito para voc, poisfisicamente voc me agradava, simplesmente abordei voc com um comeo de conversaqualquer sobre a dificuldade de encontrar txi quela hora, ofereci-lhe lev-la no meucarro para onde voc quisesse, no fim de cinco minutos de rodagem convidei voc paraum usque e voc sem nenhuma relutncia aceitou. Com os seus amantes voc foiabordada na rua? Ela se ofendeu e respondeu dura e sincera: Claro que no. Eu no quero falar neles. Eles no tinham importncia senorelativa e passageira. E no pergunto sequer se voc agora mesmo no tem uma amante.Ficaram calados. Ele talvez pensando com cautela que era a sua primeira cena de cimes.Ela feliz, pensando que essa era a sua primeira cena de cimes. Quantos amantes voc teve? perguntou abruptamente. Ela fazendo um esforo sobre si mesma disse rpido: Cinco. Ele engoliu a dor e mudou de assunto: Mas nas suas viagens impossvel que voc nunca tenha estado entrelaranjeiras, sol, e flores com abelhas. No s o frio escuro mas tambm o resto? No, disse sombria. Essas coisas no so para mim. Sou mulher de cidadegrande. Em primeiro lugar, Campos no o que se chama de cidade grande. E depoisessas coisas, como smbolo, so para todo o mundo. E porque voc no aprendeu at-las.
  • 27. E isso se aprende? Laranjeiras, sol e abelhas nas flores? Aprende-se quando j no se tem como guia forte a natureza de si prprio.Lri, Lri, oua: pode-se aprender tudo, inclusive a amar! E o mais estranho, Lri, pode-seaprender a ter alegria! Diga o que voc quer que eu aprenda, disse ela com inesperada ironia. OCntico dos Cnticos? Talvez, por que no? respondera ele mais srio. Voc diz isso porque est pronto. Pronto em todos os sentidos eu nunca estarei, Lri, eu no me engano. Eles silenciaram, Ulisses pediu mais uma dose de usque. Por que, perguntou ele, voc me d a impresso de que voluntariamente seseparou das pessoas? Um dia digo talvez a voc, se tiver a coragem de falar muito. Era raro ele se mostrar claramente mais srio. Lri reconhecia que ele tinhaconcentrao, intensidade, delicadeza e discrio, embora tudo fosse quase sempreencapado por um tom leve para no mostrar emoo. Sabe, Lri, disse ele agora sorrindo. Depois que encontrei voc umas trs ouquatro vezes por Deus, talvez tenha sido exatamente da primeira vez que vi voc! pensei que poderia agir com voc com o mtodo de alguns artistas: concebendo erealizando ao mesmo tempo. que de incio pensei ter encontrado uma tela nua e branca,s faltando usar os pincis. Depois que descobri que se a tela era nua era tambmenegrecida por fumaa densa, vinda de algum fogo ruim, e que no seria fcil limp-la.No, conceber e realizar o grande privilgio de alguns. Mas mesmo assim no tenhodesistido. No, continuou ele falando como se ela no estivesse ali, no mesmo combons sentimentos que se faz literatura: a vida tambm no. Mas h algo que no bomsentimento. E uma delicadeza de vida que inclusive exige a maior coragem para aceit-la. Lri ficou quieta. Percebia que ele pensava alto e que ela no precisava entender.Mas era to bom ouvir. Ela tambm quis se fazer ouvir e disse com algumavoluptuosidade na voz, o que nada combinava com ela e fez com que ele erguesse eminterrogao as sobrancelhas: Estive lendo um dia um filsofo, sabe. Uma vez segui um conselho dele e deucerto. Era mais ou menos isto: s quando esquecemos todos os nossos conhecimentos que comeamos a saber. Ento pensei em voc que no fala uma palavra de filosofiacomigo e quando estamos juntos, pois , quando estamos juntos voc at parece um
  • 28. sbio que no quer mais ser sbio e at, sabe, at se d ao luxo de disfaradamente seangustiar como qualquer um de ns. Ulisses estava atento, imvel. Lri continuou: Parece to fcil primeira vista seguir conselhos de algum. Seus conselhos,por exemplo. J agora ela falava srio: Seus conselhos. Mas existe um grande, o maior obstculo para eu ir adiante:eu mesma. Tenho sido a maior dificuldade no meu caminho. E com enorme esforo queconsigo me sobrepor a mim mesma. Ela jamais falara tantas palavras em seguida. Por isso queria evitar o principal.De repente porm notou que se no dissesse o final, nada teria dito, e falou: Sou um monte intransponvel no meu prprio caminho. Mas s vezes por umapalavra tua ou por uma palavra lida, de repente tudo se esclarece. Sim, tudo se esclarecia e ela surgia de dentro de si mesma quase comesplendor. Sim, disse Ulisses. Mas voc se engana. Eu no dou conselhos a voc. Eusimplesmente eu eu acho que o que eu fao mesmo esperar. Esperar talvez quevoc mesma se aconselhe, no sei, Lri, juro que no sei, s vezes me parece que estouperdendo tempo, s vezes me parece que pelo contrrio, no h modo mais perfeito,embora inquieto, de usar o tempo: o de te esperar. Voc sabe rezar? O qu? perguntou ela em sobressalto. No rezar o Padre-Nosso, mas pedir a si mesma, pedir o mximo a si mesma? No sei se sei, nunca tentei. Isto um conselho? perguntou com ironia. Ele se perturbou: Acho que foi. Esquea o que eu disse. Mas ela no esqueceu. Lavava o rosto devagar, penteava-se devagar, j de camisola para dormir.Adiava, adiava. Escovou mais uma vez os dentes. Sua testa estava franzida, sua almatrmula. Ela sabia que ia tentar rezar e assustava-se. Como se o que fosse pedir a simesma e ao Deus precisasse de muito cuidado: porque o que pedisse, nisso seriaatendida. Foi geladeira, bebeu um copo de gua: agia como se tivesse sido hipnotizadapor Ulisses. E ainda um nfimo movimento de revolta contra o hipnotismo a que pareciater sido sujeita fazia-a adiar o que viesse. Pedir? Como que se pede? E o que se pede? Pede-se vida?
  • 29. Pede-se vida. Mas j no se est tendo vida? Existe uma mais real. O que real? E ela no sabia como responder. s cegas teria que pedir. Mas ela queria que,se fosse s cegas, pelo menos entendesse o que pedisse. Ela sabia que no devia pediro impossvel: a resposta no se pede. A grande resposta no nos era dada. perigosomexer com a grande resposta. Ela preferia pedir humilde, e no sua altura que eraenorme: Lri sentia que era um enorme ser humano. E que devia tomar cuidado. Ou nodevia? A vida inteira tomara cuidado em no ser grande dentro de si para no ter dor. No, no devia pedir mais vida. Por enquanto era perigoso. Ajoelhou-se trmulajunto da cama pois era assim que se rezava e disse baixo, severo, triste, gaguejando suaprece com um pouco de pudor: alivia a minha alma, faze com que eu sinta que Tua moest dada minha, faze com que eu sinta que a morte no existe porque na verdade jestamos na eternidade, faze com que eu sinta que amar no morrer, que a entrega de simesmo no significa a morte, faze com que eu sinta uma alegria modesta e diria, fazecom que eu no Te indague demais, porque a resposta seria to misteriosa quanto apergunta, faze com que me lembre de que tambm no h explicao porque um filhoquer o beijo de sua me e no entanto ele quer e no entanto o beijo perfeito, faze comque eu receba o mundo sem receio, pois para esse mundo incompreensvel eu fui criadae eu mesma tambm incompreensvel, ento que h uma conexo entre esse mistriodo mundo e o nosso, mas essa conexo no clara para ns enquanto quisermosentend-la, abenoa-me para que eu viva com alegria o po que eu como, o sono quedurmo, faze com que eu tenha caridade por mim mesma pois seno no poderei sentirque Deus me amou, faze com que eu perca o pudor de desejar que na hora de minhamorte haja uma mo humana amada para apertar a minha, amm. No era toa que ela entendia os que buscavam caminho. Como buscavaarduamente o seu! E como hoje buscava com sofreguido e aspereza o seu melhor modode ser, o seu atalho, j que no ousava mais falar em caminho. Agarrava-se ferozmente procura de um modo de andar, de um passo certo. Mas o atalho com sombrasrefrescantes e reflexo de luz entre as rvores, o atalho onde ela fosse finalmente ela, issos em certo momento indeterminado da prece ela sentira. Mas tambm sabia de umacoisa: quando estivesse mais pronta, passaria de si para os outros, o seu caminho era osoutros. Quando pudesse sentir plenamente o outro estaria salvo e pensaria: eis o meu
  • 30. porto de chegada. Mas antes precisava tocar em si prpria, antes precisava tocar no mundo. Da vez seguinte em que se encontraram no terrao do bar, uma semana depois,Ulisses estava com o seu ar moroso e desinteressante. Mas Lri j o conhecia: este arvinha de que ele tranqilamente treinava instante por instante um modo de abrir caminho.Se saa desse ar longnquo era para olh-la com um vago desejo que no parecia quererse tornar mais forte. Lri manteve-se em silncio, deixando que ele bebesse em silncio, sem olh-lo.Foi pois com um pequeno susto que o ouviu dirigir-se a ela, e no saberia h quantotempo ele a contemplara para dizer-lhe: Voc to antiga, Lri, disse ele e para surpresa dela havia ternura na suavoz. Voc to antiga, minha flor, que eu deveria lhe dar a beber vinho numa nfora,disse j sem ternura e chamara-a de "minha flor" como ela o ouvira chamar a secretriadele, da vez em que a haviam encontrado na rua. Era um modo disfarado de uma falsacamaradagem, assim como Lri agia em relao a ele com certa secura. Mas haviatenacidade em Ulisses, havia tenacidade em Lri. Ulisses agora olhava-a curioso: Lri, voc nem ao menos consegue sentir o que h de profunda e arriscadaaventura no que ns dois tentamos? Lri, Lri! Ns estamos tentando a alegria! Voc aomenos sente isso? E sente como nos arriscamos no perigo? Voc sente que h maissegurana na dor morna? Ah Lri, Lri, voc no consegue recuperar, mesmo vagamente,na lembrana da carne, o prazer que pelo menos no bero voc deve ter sentido porestar? Por ser? Ou pelo menos outra vez na vida, no importa quando, nem por qu? Lri no respondeu, sabia que ele adivinhava que a resposta era negativa. Voc prefere a dor? Tambm a isso ela no respondeu, sabia que ele adivinhava que a resposta seriade novo: no. O que ? Para aprender a alegria voc precisa de todas as garantias? Ela ficou em silncio, porque o tom de Ulisses mudara e em vez de ardente setornara sardnico e era para feri-la. Ele reclinou-se na cadeira um pouco cansado e disse: Voc das que precisam de garantia. Quer saber como eu sou para meaceitar? Vou me fazer conhecer melhor por voc, disse com ironia. Olhe, tenho uma almamuito prolixa e uso poucas palavras. Sou irritvel e firo facilmente. Tambm sou muitocalmo e perdo logo. No esqueo nunca. Mas h poucas coisas de que eu me lembre.
  • 31. Sou paciente mas profundamente colrico, como a maioria dos pacientes. As pessoasnunca me irritam mesmo, certamente porque eu as perdo de antemo. Gosto muito daspessoas por egosmo: que elas se parecem no fundo comigo. Nunca esqueo umaofensa, o que uma verdade, mas como pode ser verdade, se as ofensas saem de minhacabea como se nunca nela tivessem entrado? Lri comeava a achar que Ulisses zombava dela. E apertou os lbios em clera.S que no podia se impedir de querer ouvi-lo, sua curiosidade crescia medida que,mesmo sabendo que ele brincava, tambm falava a verdade. Tenho uma paz profunda, continuou ele, somente porque ela profunda e nopode ser sequer atingida por mim mesmo. Se fosse alcanvel por mim, eu no teria umminuto de paz. Quanto minha paz superficial, ela uma aluso verdadeira paz. Outracoisa que esqueci que h outra aluso em mim a do mundo grande e aberto. Souprofessor de Filosofia porque o que eu mais estudei e no fundo gosto de me ouvirfalando sobre o que me interessa. Tenho um senso didtico pronunciado que faz com quemeus alunos se apaixonem pela matria e me procurem fora das aulas. Este meu sensodidtico, que uma vontade de transmitir, eu tambm tenho em relao a voc, Lri, sebem que voc seja a pior de meus alunos. Bom, apesar de meu ar duro, que alis vemtambm do fato de meu nariz ser to reto, apesar de meu ar duro, sou cheio de muitoamor e isso o que certamente me d uma grandeza, essa grandeza que voc percebe ede que tem medo. Como se de sbito tivesse notado que falara srio, parou e riu para desfazer tudoo que dissera: Meu amor pelo mundo assim: eu perdo as pessoas terem um nariz malfeito ou terem lbios finos demais e serem feias todo erro dos outros e nos outros uma oportunidade para mim de amar. Veja, no permito que ningum mande em mim, eno entanto no me incomodo por exemplo de simplesmente seguir o programa traado nafaculdade para o ensino de cada classe. Ulisses finalmente notou a clera muda de Lri. Ento disse simples e sincero: Bem sei que estava brincando, mas no menti nenhuma vez, tudo o que eudisse verdade. E se me confessei, no importa, sobretudo se foi a voc. Alis eu meconfessaria tambm a outros, sem nenhum perigo: ningum pode fazer uso do que osoutros so, nem mesmo uso mental, por isso, esse tipo de confisso no jamaisperigoso. Talvez agora voc ainda me desconhea mais. O melhor modo de despistar dizer a verdade, embora eu no tenha tentado nenhuma vez despistar voc, Lri, disse
  • 32. ele. Com alguma dor ento Lri percebeu que Ulisses, apesar de dizer o contrrio, noqueria se dar a ela. E ela pagaria com a mesma moeda. Talvez antes de ele falar, elativesse a inteno de um dia dar-se, pois sabia que teria de dar a algum o que ela era,seno o que faria de si? Como morrer antes de dar-se, mesmo em silncio? Porque nodar-se teria enfim uma testemunha de si prpria. E porque Ulisses tambm teria pensadona morte, ele disse: Antes de morrer se vive, Lri. E uma naturalidade morrer, transformar-se,transmutar-se. Nunca se inventou nada alm de morrer. Como nunca se inventou ummodo diferente de amor de corpo que, no entanto, estranho e cego e no entanto cadapessoa, sem saber da outra, reinventa a cpia. Morrer deve ser um gozo natural. Depoisde morrer no se vai ao paraso, morrer que o paraso. Ficaram em silncio muito tempo, um silncio que no pesava. At que ele, comose quisesse lhe dar alguma coisa, disse: Olhe para esse pardal, Lri mandou ele no pra de ciscar o cho queaparentemente est vazio mas com certeza seus olhos vem a comida. Obediente, ela olhou. E de sbito eis que o pardal alou vo, e na surpresa Lriesqueceu-se de si prpria e disse como uma criana para Ulisses: to bonito que voa! Falara com a inocncia que usava nas aulas com as crianas, quando no temiaser julgada. Inquieta ento olhou rpido para o lado de Ulisses. Ele a olhava. Com umsusto Lri notou: era um olhar... de amor? Uma semana depois Lri ainda pensava nesse ltimo encontro. No vira maisUlisses, nem ele lhe telefonara. H uma semana que ela bordava uma toalha de mesa, ecom as mos ocupadas e destras conseguia passar os longos dias das frias escolares.Bordava, bordava. s vezes, ao cair da noite, ela se enfeitava demoradamente e ia aocinema. Mas sentia uma pressa por dentro, sentia pressa: havia alguma coisa que elaprecisava saber e experimentar, e no estava sabendo e nunca soubera. E o tempo dealgum modo estava ficando curto, no demorava que voltassem a funcionar as escolas.Temia que Ulisses se cansasse daquela sua resistncia paquidrmica em deixar o mundoentrar nela, e desistisse. E o desespero a tomava. Sabia que ainda no estava prontapara dar-se a ele nem a ningum, e nesse nterim talvez ele a largasse. O desesperonuma dessas tardes ensolaradas cresceu. De repente deixou-se deitar na cama debruos, com o rosto quase enterrado no travesseiro: a dor voltara.
  • 33. A dor voltara quase fisicamente, e ela pensou em rezar. Mas logo descobriu queno queria falar com o Deus. Talvez nunca mais. Lembrou-se de que uma vez, de friasnuma fazenda, deitara-se de bruos numa clareira do matagal, encostando o peito naterra, os membros na terra, s o rosto virado para o cho era protegido por um dos braosdobrados. A essa lembrana, que visualizou de novo, pensou que de agora em diante eras isso o que ela queria do Deus: encostar o peito nele e no dizer uma palavra. Mas seisso era possvel, s seria depois de morta. Enquanto estivesse viva teria que rezar, o queno queria mais, ou ento falar com os humanos que respondiam e representavam talvezDeus. Ulisses sobretudo. Embora, por deformao profissional, Ulisses ensinasse demais. No tinha ardoutorai, parecia mais com um estudante que fosse mais velho, e que suas palavras novinham de livros e sim de uma vida que ela adivinhava plena. O que no impedia que elefosse sem querer um pouco pedante. Irritava-a como ele queria parecer... o qu?Superior? Ulisses, o sbio Ulisses, algum dia ia cair como uma esttua de seu pedestal.Lri sabia que pensava tudo isso por raiva, de dor, com o rosto enterrado no travesseiro. No sabia mais de nada. E apesar de se sentir agora muda em relao ao Deus,percebia em si a vontade intensa quase pungente de se lamentar, de acusar, sobretudode reivindicar. Parecia-lhe que j fora to experimentada que agora lhe deveria chegar,dentro da lgica romntica dos humanos, a hora de receber a paz. J nem ousava pensarem alegria, que ela no sabia propriamente como era, mas em paz. O que seria umaalegria? Ainda teria capacidade de reconhec-la, se viesse? Ou j era tarde demais paraque soubesse distingui-la. Pois ela adivinhava que a alegria viria talvez como um somsimples quase aqum do nvel de audio. Ento ela, que nunca mais falara com o Deuscsmico, disse-Lhe em sbita clera: eu nada Vos dou porque nada me destes. Porque ela parecia saber que existia algo o qu que os humanos davampara o Deus como? E ela nem mesmo queria mais saber o que era. S que sentiu queo Deus tambm precisava dos humanos e ento negou-se a Ele. Seria talvez possvel que a um certo ponto da vida o mundo se tornasse bvio?Tinha medo de perder a vida da surpresa contnua se chegasse a esse ponto, e noentanto ele se tornaria uma fonte de paz. Ou no seria paz o que ela queria? Sem poder, no entanto, impedir de quase jusufruir o que imaginava que acontecia depois de morrer como encostara o corpo naterra, encostar-se toda at ser absorvida pelo Deus. J quis estar morta, no porque no
  • 34. quisesse a vida a vida que ainda no lhe dera o seu segredo mas porque ansiavapor essa integrao sem palavras. Mas a palavra de Deus era de tal mudez completa queaquele silncio era Ele prprio. Tambm no queria mais entrar numa igreja, nem quefosse apenas para respirar a penumbra fresca e recolhida. Ela agora estava s para a dor que tivesse que vir. Sabia que, se estava s epara a dor que viesse mas isso no vinha da humildade de uma aceitao ou de umacoragem. Mas como um desafio ao Deus com que agora, por desiluso e solido, elaparecia querer medir foras. Tu me criaste atravs de um pai e de uma me e depois melargaste no deserto. Em vingana estranha, pois era contra si mesma, contra uma crianado Deus, era no deserto ento que ela ficaria, e sem pedir gua para beber. Quemsofreria mais com isso era ela mesma, mas o principal que com o seu sofrimentovoluntrio ofendia o Deus e ento pouco lhe importava a dor. Mas seu Deus no lhe servia: fora feito sua prpria imagem, parecia-se demaiscom ela, tinha alguma ansiedade nas solues s que Nele era ansiedade criadora a mesma severidade que era dela. E quando Ele era bom, o era igual a ela se tivessebondade. O verdadeiro Deus, no feito sua imagem e semelhana, era por issototalmente incompreendido por ela, e ela no sabia se Ele poderia compreend-la. O seuDeus at agora fora terrestre, e no era mais. De agora em diante, se quisesse rezar,seria como rezar s cegas ao cosmos e ao Nada. E sobretudo no podia mais pedir aoDeus. Descobriu que at agora rezara para um eu-mesmo, s que poderoso,engrandecido e onipotente, chamando-o de o Deus e assim como uma criana via o paicomo a figura de um rei. Depois Lri despertou um pouco para uma realidade mais objetiva em torno de si,mudou de posio de cabea sobre o brao dobrado. Pensou que h minutos lutava como Deus, cansada, exausta, murmurou sem timbre de voz: no entendo nada. Era umaverdade to indubitvel que tanto seu corpo como sua alma vergaram-se ligeiramente eassim ela repousou um pouco. Naquele instante era apenas uma das mulheres do mundo,e no um eu, e integrava-se como para uma marcha eterna e sem objetivo de homens emulheres em peregrinao para o Nada. O que era um Nada era exatamente o Tudo. Havia desmistificado uma das poucas grandezas de que vivia. Sabia que por enquanto doa muito e que depois ainda doeria mais pois sofreriaa falta dAquele que, mesmo se no existisse, ela amava porque era uma clula dele. Etalvez viesse a se salvar: porque a angstia era a incapacidade de enfim sentir a dor.Pensou: eu nunca tive a minha dor. Por falta de grandeza, sofrer suportavelmente tudo o
  • 35. que nela havia a sofrer. Mas agora sozinha, amando um Deus que no existia mais,talvez tocasse enfim na dor que era dela. Angstia tambm era o medo de sentir enfim ador. J estava com saudade do que fora: nem mesmo Igreja de Santa Luzia, queera o refgio no calor entorpecente da cidade, ela iria mais. Lembrava-se da ltima vezque entrara I e sentara-se na sombra lmpida entre santos. Pensara ento: "Cristo foiCristo para os outros, mas quem? Quem fora um Cristo para o Cristo?" Ele tivera que irdiretamente ao Deus. E ela, sentada ento no banco da igreja, quisera tambm poder irdireto Onipotncia, sem ser atravs da condio humana de Cristo que era tambm asua e a dos outros. E, oh Deus, no querer ir a Ele atravs da condio misericordiosa deCristo talvez no passasse de novo do medo de amar. Levantou-se e tornou a bordar. Foi ento que o telefonou tocou. Mesmo antes de atender ela sabia que devia serUlisses. Depositou o bordado numa cadeira e deixou o telefone tocar um pouco mais, noqueria mostrar avidez. Era ele, sim. E como se no se tivesse passado uma semana, disse que estavana piscina do clube e por que que ela no vinha encontr-lo, era s dizer na portaria queera convidada dele. No era na piscina que ela queria v-lo, mas o medo de perd-lo fezcom que ela aquiescesse, embora temendo o momento de se verem quase nus. Uma hora e meia depois o tempo de comprar um maio novo ela j estavade roupa mudada na cabine, e sem coragem de sair. Envolveu-se no roupo e foiencontr-lo sentado borda da piscina. Procurou disfarar a dura relutncia em ficarpraticamente nua, afinal tirou o roupo, ela nem sequer o olhava. Sentaram-se sem falar,ele bebia um gim-tnica. Muito tempo se passara ou talvez no muito mas para ela o silncio estava setornando intolervel, enquanto para disfarar, balanava os ps dentro da gua verde. Atque enfim ele falou e sem rudeza disse: Veja aquela moa ali, por exemplo, a de maio vermelho. Veja como anda comum orgulho natural de quem tem um corpo. Voc, alm de esconder o que se chama alma,tem vergonha de ter um corpo. Ela no respondeu, mas, atingida, tornou-se imperceptivelmente mais rgida.Depois, como sentiu que ele no ia dizer mais nada, pde aos poucos relaxar osmsculos. Pensou tanto quanto lhe era possvel pensar estando de maio na frente dele pensou: como que explicaria a ele, mesmo que quisesse, e no queria, o longocaminho andado at chegar quele momento possvel em que suas pernas se
  • 36. balanavam dentro da piscina. E ele ainda achava pouco. Como explicar que, do longe deonde de dentro de si ela vinha, j era uma vitria estar semivivendo. Porque enfim, umavez quebrado o susto da nudez diante dele, ela estava respirando de leve, jsemivivendo. A um movimento seu, que era o de jogar os cabelos para trs, viu num relance orosto dele, percebeu que ele a olhava e que a desejava. Sentiu ento um pudor que jdiferia do que ele chamara de pudor de ter um corpo. Era um pudor de quem tambmdeseja, assim como Lri desejara colar o peito e os membros no Deus. Ao perceber muitoclaro o prprio desejo, tornou-se arisca e dura, e ficaram em silncio o resto da tarde. Elafoi se tranqilizando e perdeu o medo maior que tinha: o de perd-lo por se atardar tanto. Surpreendeu seu prprio pensamento: ento ela planejava de fato um dia sersua? Pois enganava-se sempre pensando que se tratava de uma espcie estranha deamizade e que assim continuaria sempre, at murchar como uma fruta que no colhidaa tempo e cai apodrecida da rvore para o cho. Os gritos de alegria e sustos das crianas j no se ouviam mais: era bem maistarde e o sol tinha enfraquecido, a piscina vazia. H quanto tempo estavam em silncio?A solido dos dois s era entrecortada pela chegada silenciosa e pressurosa do garomque vinha imediatamente encher o copo de Ulisses mal esse esvaziava-se. O silncio do entardecer. Ela olhou para Ulisses, e este olhava de olhossemicerrados para o longe. Ela olhou-o. E quela hora vinha dele uma irradiaoluminosa. Depois Lri percebeu que esse fulgor eram os reflexos do sol antes dedefinitivamente morrer. Olhou para as mesinhas com pra-sol dispostas em torno dapiscina: pareciam sobrepairar na homogeneidade do cosmo. Tudo era infinito, nada tinhacomeo nem fim: assim era a eternidade csmica. Da a um instante a viso da realidadese desfazia, fora apenas um timo de segundo, a homogeneidade desaparecia e os olhosse perdiam numa multiplicidade de tonalidades ainda surpreendentes: viso aguda einstantnea seguira-se algo mais reconhecvel na terra. Quanto a Ulisses, nessas novascores que enfim Lri tinha a capacidade de ver, quanto a Ulisses estava agora a umtempo slido e transparente, o que o enriquecia de ressonncias e esplendor. Podia-secham-lo de um homem belo. Pela primeira vez ento olhou-o sob o ponto de vista de beleza estritamentemasculina, e viu que havia nele uma calma virilidade. Sob a nova luz, Ulisses estava irreale no entanto verossmil. Irreal pela sua espcie de beleza, que agora flutuava com asflutuaes ltimas do sol. Verossmil porque bastaria estender a mo e, no que esta o
  • 37. tocasse, encontraria a resistncia do que slido. Lri teve receio de que lhe poderiaacontecer a ela, j que era uma adoradora dos homens. Ulisses voltou o rosto para ela e descobriu que era examinado. No entanto, descoberta, foi Lri que enrubesceu, desviando os olhos. No tenha medo, disse ele sorrindo, no tenha medo de meu silncio... Souum louco mas guiado dentro de mim por uma espcie de grande sbio... Ele no a entendera, pois: pensara que ela estava perturbada pelo silncio. Lrino respondeu. J estava habituada ao tom didtico de Ulisses que na verdade no erapedante. Relanceou-o: ele estava to calmo como se fosse ela apenas que sofresse e elenunca tivesse conhecido a dor de no ter futuro seno o de continuar existindo. Ele no aentendera, e isso alegrou-a. Pois Lri descobriu o que estava acontecendo com enormedelicadeza: aquilo que ela julgara ser apenas o seu olhar direto para Ulisses e para arealidade dele fora o primeiro passo assustador para alguma coisa. Ou ele percebera?Percebera, sentiu ela, mas sem saber do que se tratava, sentira que ela avanara e entoquisera assegur-la com a segurana de retomar o silncio. Pois ela estava como na sua primeira infncia e sem medo de que a angstiasobreviesse: estava em encantamento pelas cores orientais do Sol que desenhava figurasgticas nas sombras. Pois que o Deus foi nascido da Natureza e por sua vez Ele interferiunela. As ltimas claridades ondulavam as guas paradas e verdes da piscina.Descobrindo o sublime no trivial, o invisvel sob o tangvel ela prpria toda desarmadacomo se tivesse naquele momento sabido que sua capacidade de descobrir os segredosda vida natural ainda estivesse intacta. E desarmada tambm pela leve angstia que lheveio ao sentir que podia descobrir outros segredos, talvez um mortal. Mas sabia que eraambiciosa: desprezaria o sucesso fcil e quereria, mesmo com medo, subir cada vez maisalto ou descer cada vez mais baixo. Ulisses falou: Bem tranqila, Lri, v bem tranqila. Mas cuidado. melhor no falar, nome dizer. H um grande silncio dentro de mim. E esse silncio tem sido a fonte deminhas palavras. E do silncio tem vindo o que mais precioso que tudo: o prpriosilncio. Por que que voc olha to demoradamente cada pessoa? Ela corou: No sabia que voc estava me observando. No por nada que olho: queeu gosto de ver as pessoas sendo. Ento estranhou-se a si prpria e isso parecia lev-la a uma vertigem. que ela
  • 38. prpria, por estranhar-se, estava sendo. Mesmo arriscando que Ulisses no percebesse,disse-lhe bem baixo: Estou sendo... Como? perguntou ele quele sussurro de voz de Lri. Nada, no importa. Importa sim. Quer fazer o favor de repetir? Ela se tornou mais humilde, porque j perdera o estranho e encantado momentoem que estivera sendo: Eu disse para voc Ulisses, estou sendo. Ele examinou-a e por um momento estranhou-a, aquele rosto familiar de mulher.Ele se estranhou, e entendeu Lri: ele estava sendo. Ficaram calados como se os dois pela primeira vez se tivessem encontrado.Estavam sendo. Eu tambm, disse baixo Ulisses. Ambos sabiam que esse era um grande passo dado na aprendizagem. E nohavia perigo de gastar este sentimento com medo de perd-lo, porque ser era infinito, deum infinito de ondas do mar. Eu estou sendo, dizia a rvore do jardim. Eu estou sendo,disse o garom que se aproximou. Eu estou sendo, disse a gua verde na piscina. Euestou sendo, disse o mar azul do Mediterrneo. Eu estou sendo, disse o nosso mar verdee traioeiro. Eu estou sendo, disse a