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VERSOS PS-COLONIAIS: MANIFESTAES POTICAS EM SO TOM E PRNCIPE
Anselmo Peres ALS*
RESUMO: Este artigo pretende analisar alguns aspectos da poesia
de So Tom e Prncipe, particularmente os trabalhos de Francisco Jos
Tenreiro, Alda do Esprito Santo e Maria Manuela Margarido, vozes
fundacionais no que diz respeito literatura desse pas. Realiza-se
aqui uma reflexo sobre a questo da memria e do imaginrio
ps-colonial no campo da escritura potica. Busca-se compreender de
que maneira a poesia pode colaborar para uma descolonizao do
imaginrio nas literaturas das ex-colnias portuguesas, dando
particular ateno ao caso de So Tom e Prncipe. Os aspectos dialgicos
entre margens e centro no que diz respeito poesia africana escrita
em portugus so tambm observados em suas relaes com as contingncias
do mundo ps-colonial.
PALAVRAS-CHAVE: So Tom e Prncipe. Literatura. Poticas
fundacionais. Ps-colonialismo. Lusofonia.
O despontar das literaturas africanas de expresso portuguesa no
pode ser devidamente compreendido sem que se faa meno ao processo
histrico que possibilitou a sua origem: a expanso do Imprio
lusitano mediante as grandes navegaes que tiverem incio no sculo
XIV, as quais se iniciaram com a rota pela frica, e depois se
estenderam rumo a sia, Oceania e Amricas. Em nome da expanso da f
crist em um mundo dominado pela barbrie, os portugueses exerceram
uma das maiores empreitadas de imperialismo e dominao cultural da
histria ocidental. Mesmo na epopeia camoniana, possvel vislumbrar
como a cultura foi colocada a servio da justificao da misso
civilizadora do colonialismo lusitano, de maneira metafrica, como
no episdio do Gigante Adamastor, descrito no Canto V, no qual os
portugueses vencem o gigante em razo de uma toro que fazem na
prpria retrica de Adamastor. Paradoxalmente, ser por meio da
retrica do lirismo que se textualizam as primeiras manifestaes do
veio nacionalista nas ex-colnias portuguesas.
De acordo com Manuel Ferreira (1977, p.8), a chegada dos
portugueses Foz do Zaire ocorre em 1842, e a fundao do primeiro
vilarejo em frica se d em
* UFSM Universidade Federal de Santa Maria. Centro de Artes e
Letras Departamento de Letras Vernculas. Santa Maria RS Brasil.
97105-900 [email protected]
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Anselmo Peres Als
1575: So Paulo de Assuno de Loanda, hoje Luanda, capital de
Angola. Todavia, os navegadores portugueses j haviam abarcado em
Cabo Verde em 1460, e em So Tom e Prncipe em 1470. A chegada a
Moambique ocorre apenas mais de vinte anos depois, em 1498.
Entretanto, a produo literria impressa inicia-se muito mais tarde,
apenas nos anos 40 do sculo XIX, com a instalao do primeiro prelo.
As primeiras mquinas de imprensa foram instaladas nas ex-colnias
portuguesas nas seguintes datas: em Cabo Verde, no ano de 1842; em
Angola, no ano de 1845; em Moambique, no ano de 1854; em So Tom e
Prncipe, no ano de 1857; e em Guin-Bissau, no ano de 1879
(FERREIRA, 1977, p.94). Entre as primeiras obras impressas em frica
em lngua portuguesa, cabe registrar o livro Espontaneidades da
minha alma (1849), do angolano Jos da Silva Maia Ferreira,
considerado o primeiro livro impresso na frica lusfona.1
Manuel Ferreira distingue dois momentos precisos da produo
literria nas ex-colnias portuguesas: a literatura colonial e a
literatura africana de expresso portuguesa. No primeiro grupo,
estariam includas as obras que, mesmo tendo sido escritas por
africanos e publicadas em frica, no refletem o espao cultural
africano. Pelo contrrio, essas obras, marcadas por um etnocentrismo
de matriz europeia, reiteram os mitos da supremacia da raa branca e
da inferioridade da raa negra, abonando a misso civilizadora dos
portugueses em frica:
A literatura africana chama a si mais de um sculo de existncia.
Este longo perodo de mais de um sculo de actividade literria est,
porm, contido em duas grandes linhas: a literatura colonial e a
literatura africana de expresso portuguesa. A primeira, a
literatura colonial, define-se essencialmente pelo facto de o
centro do universo narrativo ou potico se vincular ao homem europeu
e no ao homem africano. No contexto da literatura colonial, por
dcadas exaltada, o homem negro aparece como que por acidente, por
vezes visto paternalisticamente e, quando tal acontece, j um avano,
porque a norma a sua animalizao ou coisificao. O branco elevado
categoria de heri mtico, o desbravador das terras inspitas, o
portador de uma cultura superior. (FERREIRA, 1977, p.10, grifo do
autor).
A chamada literatura colonial, relativa s naes africanas de
lngua oficial portuguesa, no deve ser considerada como expresso
literria nacional legtima, a no ser na forma de antecedente
histrico do fenmeno literrio em Moambique, Angola, Cabo Verde, So
Tom e Prncipe e Guin-Bissau, que nessa poca ainda eram territrios
ultramarinos sob a jurisdio de Portugal. Essas manifestaes
literrias, escritas majoritariamente por portugueses, brancos ou
mestios, no instauram um imaginrio africano local, mas sim um
imaginrio portugus com relao aos territrios sob o jugo colonial:
esta literatura, nascida de uma
1 Da primeira edio deste livro, so conhecidos dois exemplares:
um est na New York Public Library; o outro, na Biblioteca da
Companhia de Diamantes de Angola.
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Versos ps-coloniais: manifestaes poticas em So Tom e Prncipe
experincia planetria, em uma poca em que o mundo cristo
reconhecia o direito dominao, depredao e at barbrie (a cruz numa
mo, e a espada noutra) nada tem a ver com a literatura africana de
expresso portuguesa (FERREIRA, 1977, p.8). Mais apropriado, talvez,
seria incluir essas produes no rol da literatura de viagem dentro
do sistema literrio portugus.
A ttulo de exemplo, pode-se elencar, entre tais obras, Os sertes
dfrica, de Alfredo de Sarmento (1880); Nova largada, de Augusto
Casimiro (1929); Almas negras, de Joo de Lemos (1937); Ana a
Calunga, de Hiplito Raposo (1926); A primeira viagem, de Maria da
Graa Freire (1952); Sangue cuanhama, de Antnio Pires (1949); e
Roteiro de frica, de Jos Osrio de Oliveira (1936). De acordo com
Manuel Ferreira, entretanto, tais obras no so dignas da ateno da
crtica literria:
Hoje, no h lugar para dvidas: muitas dessas obras esto
condenadas ao esquecimento, salvando-se aquelas que, apesar de
prejudicadas pelas contingncias de uma poca e de uma mentalidade
coloniais, evidenciam contudo um certo esforo humanstico e uma real
qualidade esttica. Mas, no conjunto, a histria vai ser de uma
severidade implacvel e arrumar a quase totalidade desta literatura
no discurso da aco colonizadora ou no nacionalismo imperial,
saudosista e deslumbrado. (FERREIRA, 1977, p.12-13).
Ao contrrio dos temas abordados pela literatura colonial, as
primeiras manifestaes da poesia de So Tom e Prncipe so fortemente
marcadas por uma tendncia de resistncia ao jugo colonial portugus.
Embora a literatura de So Tom e Prncipe seja uma das menos
estudadas no conjunto das literaturas africanas lusfonas, cabe
reservar um lugar de destaque a Francisco Jos Tenreiro, um dos
primeiros poetas do mundo lusfono africano a tentar recuperar a voz
e a cultura autctones dos africanos em seus versos, ainda que, para
tanto, utilizasse a lngua do colonizador europeu.
A Repblica de So Tom e Prncipe est localizada situada na costa
oeste africana, no Golfo da Guin, com uma rea de aproximadamente
1.001 quilmetros quadrados e uma populao de cerca de 74 mil
habitantes. Trata-se de uma jovem e pequena nao (independente desde
1975) cujo territrio constitudo por duas ilhas vulcnicas (So Tom e
Prncipe), por dois ilhus (denominados Ilhu das Rocas e Ilhu das
Cabras, e ainda por dois penedos desabitados, as Pedras Tinhosas
(Tinhosa Grande e Tinhosa Pequena). Trata-se de um pequeno pas
agrrio, produtor de banana, coco, azeite de dend e cacau. A pesca
tambm sempre foi uma atividade de grande importncia. Tal como
ocorre na literatura cabo-verdiana, a condio insular uma das
determinantes que recorre a obra de muitos dos poetas desse
arquiplago.
A primeira obra literria publicada em portugus da qual se tem
conhecimento, e que est relacionada com So Tom e Prncipe, o livro
de poemas Equatoriaes (1896), do poeta portugus Antnio Almada
Negreiros (1868-1939), que ali viveu
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Anselmo Peres Als
muitos anos. De acordo com Manuel Ferreira, os primeiros indcios
de produo potica de veio nacionalista esto associados, nas naes
africanas de expresso portuguesa, com os seguintes marcos
fundadores, embora j houvesse, na maior parte dessas naes, a
presena da literatura colonial:
Ora, os fundamentos irrecusveis de uma literatura africana de
expresso portuguesa vo definir-se, com preciso, deste modo: a) em
Cabo Verde a partir do revista Claridade (19361960); b) em S. Tom e
Prncipe com o livro de poemas Ilha de nome santo (1943), de
Francisco Jos Tenreiro; c) em Angola com a revista Mensagem
(19511952); d) em Moambique com a revista Msaho (1952); e) na
Guin-Bissau com a antologia Mantenhas para quem luta! (1977).
(FERREIRA, 1977, p.32).
O poeta so-tomense Francisco Jos Tenreiro, ademais de ser um
marco na literatura de seu pas, tambm credenciado como o primeiro
poeta africano de lngua portuguesa a refletir, em sua produo
literria, elementos advindos do movimento da negritude. Francisco
Jos Tenreiro nasceu na ilha de So Tom, de onde partiu para estudar
em Lisboa. Tenreiro chega em Lisboa em um momento histrico no qual
os ecos da ngritude, advindos dos Estados Unidos e da Frana,
comeavam a influenciar a produo potica dos emigrantes vindos das
colnias africanas. Entre suas obras, destacam-se Ilha do nome santo
(1942); Obra potica, que inclui os poemas de Ilha do nome santo
(1967); e o livro A ilha de So Tom: estudo geogrfico (1961). A Obra
potica foi reeditada, em 1982, com um novo ttulo: Corao em frica.
Em parceria com o angolano Mrio Pinto de Andrade, publica, em
Lisboa, o volume Poesia negra de expresso portuguesa (1953).
Mrio Pinto de Andrade descreve Tenreiro como um dos
representantes da primeira fase do que chama de a moderna poesia
africana de escrita portuguesa, na qual se vislumbra a presena de
ecos da negritude e do pan-africanismo (ANDRADE, 1975, p.7). No
contexto do projeto potico de Francisco Jos Tenreiro, a negritude
no se define como uma busca por uma suposta identidade nacional
so-tomense, mas pela busca de uma esttica transnacional de matriz
africana cuja principal caracterstica a busca pela ruptura com os
temas e modelos poticos consagrados pela esttica eurocntrica.
A presena da esttica da negritude na poesia de Tenreiro o
coloca, de partida, em um complexo jogo de relaes textuais, uma vez
que a potica da negritude teve uma gnese disseminada pela Amrica,
pela Europa e pela frica. Cite-se, a ttulo de ilustrao, as reflexes
desenvolvidas por Lopold Sedar Senghor (Senegal), por Emilio
Ballagas e por Nicols Guilln (Cuba), por Aim Cesaire (Martinica) e
por Lon Damas (Guiana Francesa), apenas para ficar em uns poucos
exemplos. Entre escritores e pensadores de origens to diversas,
possvel encontrar, como denominador comum, a reivindicao pela
legitimao da voz dos africanos
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Versos ps-coloniais: manifestaes poticas em So Tom e Prncipe
diaspricos que se propem a realizar suas prprias leituras e
interpretaes do mundo, utilizando-se para tanto de procedimentos
epistemolgicos no reconhecidos pelos esquemas de compreenso
socioculturais etnocntricos. A revalorizao do negro pode ser
mapeada em razo dos consequentes ideologemas projetados nos textos
ficcionais de Tenreiro. Dito de outra forma, o que importa aqui no
a enunciao de um discurso sobre o negro, mas de um discurso que
seja produzido pelo sujeito social negro. Nessa busca esttica,
ganha espao a busca de temas da frica ancestral, uma espcie de
terra prometida para os intelectuais afrodescendentes da dispora
negra.
Essa busca temtica no subsume, entretanto, toda a esttica da
negritude. Tambm constante uma espcie de arqueologia na qual so
denunciados os abusos, as atrocidades e as arbitrariedades sofridos
pelos negros em razo dos regimes escravocratas colonialistas:
O sol golpeia as costas do negroe rios de suor ficam
correndo.Ardor!O machim golpeia o paue rios de seiva
escorrendo.Ardor!Os olhos do brancocomo chicotesferem o mato que
est gritando [...]. (TENREIRO, 1982, p.86).
Pode-se notar a denncia dos trabalhos forados como forte
caracterstica a denunciar a potica de Tenreiro como uma potica de
denncia e resistncia. Esse elemento, quando analisado em conjunto
com a eleio do negro como personagem a ser liricamente construdo em
seu discurso potico, inscreve a lrica de Tenreiro em um conjunto
amplo de textos de resistncia anticolonialista que comea a ganhar
espao nas pginas literrias das dcadas de 1940 e 1950 em todo o
mundo luso-africano. H tambm, nos poemas de Tenreiro, a presena de
um sorriso de escrnio a funcionar como resistncia aos esteretipos
raciais:
Ah!Mas eu no me danei...e muito calminhoarrenpanhei o meu cabelo
para trsfiz saltar fumo do meu cigarrocantei do altoa minha
gargalhada livreque encheu o branco de calor!...
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Anselmo Peres Als
Mestio!Quando amo a brancasou branco...Quando amo a negrasou
negro.Pois [...]. (TENREIRO, 1982, p.61).
O jogo com os esteretipos raciais na hierarquia social tambm
retratado na enunciao de uma persona mulata assumida pelo poeta. Em
vez de subsumir sua identidade a um lugar proscrito, o discurso
potico valoriza o sujeito mulato, hbrido por excelncia, colocando-o
em um entrelugar cultural estratgico que permite, na vida
cotidiana, tirar proveito dessa condio mediante um facilitado
trnsito entre dois espaos sociais marcados pela diferena
tnico-racial. Tal como sugere Homi Bhabha (1998, p.198-207) em O
local da cultura, o entrelugar construdo pela enunciao potica de
Tenreiro dialoga concomitantemente com o mbito do pedaggico, que
traz ecos das tradies estabelecidas, e do performativo, instncia na
qual a linguagem proferida busca interferir no campo das produes
simblico-culturais, instaurando uma temporalidade ambivalente. O u
t r o nome importante da poesia so-tomense o de Alda do Esprito
Santo. Nasceu em 1926, e estudou em Portugal, tendo posteriormente
regressado a So Tom, onde trabalhou como professora primria.
Posteriormente, foi ministra da Cultura e da Informao, aps a
independncia de So Tom e Prncipe, chegando at mesmo a ocupar a
presidncia da Assembleia Nacional. Faleceu em 2010. Publicou dois
volumes de poesias: O jogral das ilhas (1976) e nosso o solo
sagrado da Terra (1978). Ela tambm autora do Hino Nacional de So
Tom e Prncipe, intitulado Independncia total, e musicado pelo
compositor brasileiro Heitor Villa-Lobos.
Uma das constantes na busca potica de Alda do Esprito Santo so
as imagens insulares e os elementos marinhos, a partir dos quais a
poeta pinta cenas do cotidiano das mulheres so-tomenses, como no
trecho a seguir:
Canoa frgil, beira da praia,
panos presos na cintura,uma vela a flutuar...Caleima, mar em
foracanoa flutuando por sobre as procelas das guas,
l vai o barquinho da fome.
Rostos duros de angolares
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125Itinerrios, Araraquara, n. 35, p.119-130, jul./dez. 2012
Versos ps-coloniais: manifestaes poticas em So Tom e Prncipe
na luta com o gandu
por sobre a procela das ondasremando, remandono mar dos tubares
pla fome de cada dia.
L longe, na praia, na orla dos coqueiros,
quissandas em fila, abrigando cubatas,izaquente cozido em panela
de barro.(ESPRITO SANTO, 1978, p.49-50).
A imagem de uma feminilidade telrica, remetendo ancestralidade
das origens africanas, tambm pode ser vislumbrada na obra de Alda
do Esprito Santo. Ao contrrio do imaginrio europeu, que v o
arqutipo da Me-frica de maneira abstrata e despersonalizada, por
vezes quase que simplesmente conceitual, essa feminilidade emerge
na voz da poeta a partir de imagens de mulheres concretas, como a
das mams na lida com a venda de peixe, buscando em um comrcio
precrio a luta para combater a fome prpria fome, ao mesmo tempo
que, ironicamente, colaboram para saciar a fome alheia:
Mam caminhando pra venda do peixe e tu, na canoa das guas
marinhas Ai peixe tardinha na minha baa mam minha serena na venda
do peixe pela luta da fome da gente pequena. (ESPRITO SANTO, 1978,
p.48-49).
O universo lrico construdo pela autora caracteriza-se tambm pela
tnica na defesa dos desvalidos de seu pas, dando especial ateno
pelas crianas e pelas mulheres. Ganham espao nesses versos as
mes-pretas, subjugadas pelos patres eternamente a colher o milho e
a lidar nas plantaes, sem se livrarem do rduo trabalho nem mesmo
durante a gestao, dividindo as parcas foras entre o peso do ventre
dilatado e o cabo das enxadas. Nesse contexto, o lirismo de Alda do
Esprito Santo projeta performativamente, por meio da enunciao da
crueza das realidades do seu tempo, um futuro de afeto e de
esperanas projetadas na tematizao da infncia:
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Criana minha Gerada de milhares De ventres Das razes do mundo Eu
queria escrever para ti.
[...]
Eu prosseguirei No meu sonho De tentar Construir para ti Uma
histria bela. (ESPRITO SANTO, 1978, p.42).
Maria Manuela Margarido, natural de Prncipe (1925-2007), outra
das vozes femininas a destacar-se na lrica de resistncia a
denunciar os abusos colonialistas no arquiplago africano. Publicou
apenas um volume de poesias, intitulado Alto como o silncio
(MARGARIDO, 1957), embora tenha publicados poemas esparsos em
antologias, das quais cabe destacar a Antologia de poesia da Casa
dos Estudantes do Imprio. Os vnculos estticos e ideolgicos de sua
potica alinham-se aos de outros autores, tais como Francisco Jos
Tenreiro, em busca da constituio de uma identidade coletiva de veio
anticolonialista e nacionalista. Em seus escritos, denuncia a
explorao colonial, advinda particularmente da explorao pela
metrpole portuguesa e pelo sistema de monoculturas cafeeiras e
cacaueiras praticado nas ilhas:
MEMRIA DA ILHA DO PRNCIPE
Me, tu pegavas charroconas guas das ribeirasa caminho da
praia.Teus cabelos eram lemba-lembasagora distantes e saudosas,mas
teu rosto escurodesce sobre mim.Teu rosto, liliceairrompendo entre
o cacau,perfumando com a sua sombrao instante em que te descubrono
fundo das bocas graves.
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Versos ps-coloniais: manifestaes poticas em So Tom e Prncipe
Tua mo cor-de-laranjaoscila no cu de zincoe fixa a saudadecom
uns grandes olhos taciturnos.
(No sonho do Pico as mangas percorrem a rbita lentadas oraes dos
ocs e todas as feiticeiras desertama caminho do mal, entre a doura
das palmas).
Na varanda de marapioos veios da madeira guardama marca dos teus
ps levese lentos e suaves e prximos.E ambas nos lanamosnas grandes
flores de banoque crescem na gua clidadas vozes
clarividentesenchendo a nossa fricacom sua mgica profecia.
(MARGARIDO, 1957, p.16).
O eu-lrico que se projeta nos versos de Manuela Margarido enceta
um olhar sobre mundo que se constitui por meio da enunciao de uma
fratura no tempo e no espao, conjugando o registro de uma viso
intimista da realidade exterior e a busca de elementos da natureza.
Tais elementos, antes de se transformarem em matria potica para a
construo de um projeto literrio de carter afirmativamente
nacionalista, so submetidos a um processo semitico que os utiliza
como material de constituio de uma persona individual. Essa busca
foi assumida pela prpria escritora, em depoimento a Michel Laban
(2002, p.119, grifo do autor):
Interrogo-me muitas vezes se sou uma escritora portuguesa ou
africana. Acho que sou africana, porque os problemas do meu pas e
de todo o continente africano me interessam enormemente, mas tambm
no sou indiferente ao que se passa em Portugal. Vivi l muitos anos,
passei grande parte da minha infncia e a minha juventude em colgios
portugueses e religiosos. De maneira que eu mesma me interrogo: o
que que eu sou?
Os motivos e temas de Manuela Margarido incluem o mundo do
trabalho nas roas de cacau e caf, bem como referncias a uma figura
feminina, de ndole materna, que pode ser lida metonimicamente como
o coletivo das mulheres trabalhadoras, ou metaforicamente,
assinalando a enunciao potica de uma me arquetpica e telrica,
referncia ancestral aos mitos da africanidade. Tais mitos
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Anselmo Peres Als
so de fundamental importncia no apenas na potica de Margarido,
mas, de maneira estendida, se encontram presentes nas primeiras
insurreies poticas de grande parte dos escritores fundadores das
literaturas nacionais africanas de lngua portuguesa. A mesma
recorrncia, sintomtica, pode ser encontrada, por exemplo, nos
poemas da moambicana Nomia de Sousa.2
Em sua busca pela criao de um espao potico, possvel vislumbrar
tambm a recorrncia ao tema da insularidade, presente j no prprio
ttulo do poema. Todavia, a insularidade surge com mais fora no
poema Socop, no qual se alinham as referncias insularidade
juntamente com referncias explcitas flora de Prncipe (verdes longos
da minha ilha), aos rduos trabalhos nas roas (copra, caf ou cacau
tanto faz). Ao final do poema, anuncia-se o desejo pela mudana
social, manifesto pela oposio s arbitrariedades do colonialismo (at
explodir / na nsia pela liberdade):
SOCOP
Os verdes longos da minha ilhaso agora a sombra do oc,nvoa da
vida, nos dorsos dobrados sob a carga(copra, caf ou cacau tanto
faz).Ouo os passos no ritmocalculado do socop,os ps-razes-da
terraenquanto a voz do coroinsiste na sua queixa(queixa ou protesto
tanto faz).Montona se arrastaat explodirna alta nsia de liberdade.
(ACEI, 1994, p.322).
A partir da leitura dessas trs vozes da lrica de So Tom e
Prncipe, podem-se delinear algumas observaes pertinentes. A
primeira delas diz respeito ao fato de que o dilogo das primeiras
manifestaes literrias do arquiplago esteve diretamente ligado ao
desejo de construo de uma ptria livre do colonialismo. Ainda que
relativamente isolados das outras colnias portuguesas em frica, os
interesses poticos de Tenreiro, Esprito Santo e Margarido estavam
sintonizados com as preocupaes de outros intelectuais africanos de
seu tempo. O dilogo, ainda que no favorecido pela geografia,
tornou-se possvel graas ao deslocamento 2 A obra completa de Nomia
de Sousa foi publicada postumamente pela Associao dos Escritores
Moambicanos, sob o ttulo Sangue negro, com organizao e fixao do
texto realizadas por Nelson Sate, Francisco Noa e Ftima Mendona, em
2001.
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129Itinerrios, Araraquara, n. 35, p.119-130, jul./dez. 2012
Versos ps-coloniais: manifestaes poticas em So Tom e Prncipe
desses escritores para Portugal, onde puderam travar contato com
outros intelectuais da dispora africana, de forma a incorporar em
sua poesia um lirismo marcado pela busca da liberdade, autonomia e
independncia de sua nao.
ALS, A. P. Post-colonial lyrics: poetic expressions in Sao Tome
and Principe. Itinerrios, Araraquara, n.35, p.119-130 , Jul./Dez.,
2012.
ABSTRACT: This paper aims to analyze some aspects of So Tom and
Prncipes poetry, particularly the works of Francisco Jos Tenreiro,
Alda do Esprito Santo and Maria Manuela Margarido, foundational
voices when it comes to the poetry of this country. It is made here
a reflection about the post-colonial memories and imaginary in the
field of poetic writing. It is tried to understand the ways in
which this poetry can collaborate for a decolonization of the
imaginary in the literatures of the Portuguese ex-colonies, giving
special attention to the case of So Tom and Prncipe. The dialogical
aspects between margins and center when it comes to the African
poetry written in Portuguese are also observed in their relations
with the post-colonial contingences.
KEYWORDS: So Tom and Prncipe. Literature. Foundational poetics.
Post-colonialism. Lusophony.
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Recebido em: 17/01/2012
Aceito em: 18/12/2012