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OLIVEIRA, K., CUNHA E SOUZA, HF., and SOLEDADE, J., orgs. Do
portugus arcaico ao portugus brasileiro: outras histrias [online].
Salvador: EDUFBA, 2009. 329 p. ISBN 978-85-232-0602-4. Available
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Trs hipteses e alguns caminhos para melhor compreender o
processo constitutivo do portugus brasileiro
Alex Batista Lins
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272
TRS HIPTESES E ALGUNS CAMINHOS PARA MELHOR COMPREENDER O
PROCESSO CONSTITUTIVO DO PORTUGUS
BRASILEIRO
Alex Batista LINS (PPGLL/UFBA/PROHPOR)
INTRODUO
Aps cinco sculos de contato entre lnguas de diferentes povos em
terras
brasileiras, das relaes firmadas entre essas lnguas e das
inmeras contribuies
que forneceram para a formao dos multifacetados aspectos do
portugus no
Brasil, uma apurada reflexo dos processos e fatos histricos e at
margem da
histria , que direta ou indiretamente colaboraram para a coetnea
diversidade
lingstica neste pas vem se ensaiando com ingente empenho por
parte de
abalizados estudiosos.
Pesquisadores e tericos, a exemplo de Mateus (2006), Mattos e
Silva (2004,
2006), Castro (2006), Lobo (1994, 1996, 2003, 2006), Machado
Filho (2007), Naro
(1981), Scherre (1988), Naro e Scherre (1993, 2003, 2007),
Baxter (1995), Lucchesi
(1999, 2003), Baxter e Lucchesi (1997, 2006), s para relacionar
alguns dos mais
recentes, tm, com esmero cientfico, debruado-se sobre a lngua
portuguesa sem
desprezar as contribuies das lnguas indgenas e africanas sobre o
portugus do
Brasil. Um elenco comprometido no apenas com o registro das
caractersticas que
distanciam o Portugus Brasileiro (PB) do Portugus Europeu (PE),
ou com
sinalizaes para estudos como se verifica em trabalhos das ltimas
dcadas
criteriosos de outros autores com relao ao portugus em terras
africanas, mas,
de modo particular, com a coleta e resenha dos fatos histricos e
lingsticos que
atuaram na formatao do PB, depreendendo e analisando as
caractersticas
prprias dessa lngua, relacionando-as s demais vertentes da lngua
portuguesa
no mundo.
Mattos e Silva (2006, p. 222-223) em artigo intitulado Uma
compreenso
histrica do portugus brasileiro: velhos problemas repensados,
aps abordar a diferena
entre a Lingstica Histrica no sentido lato e no sentido estrito,
e organizando,
luz desta ltima, a tessitura de suas argumentaes, parece tentar
responder, de
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273
certa forma, a indagao levantada por Teyssier (1997, p. 97) no
livro Histria da
Lngua Portuguesa, Como explicar as particularidades do portugus
do Brasil?
indagao caracterizada por Machado Filho (2007, p. 2) como um dos
problemas
cruciais entre o trabalho da Lingstica Histrica e [os]
resultados empricos que
essa cincia pretende alcanar no conhecimento da formao do [...]
mundo da
lusofonia.
Analisando as disposies da autora, percebe-se que um dos
possveis
caminhos para tentar explicar os aspectos do PB consiste, antes
de qualquer coisa,
em reconhecer que a histria brasileira muito recente e a
conscincia da
transplantao do portugus europeu para o que veio a ser Brasil
est presente por
muitos lados (MATTOS E SILVA, 2006, p. 222). Outro aspecto a ser
considerado
o de focalizar no somente o horizonte comparativo entre o PB e o
PE, mas
tambm as variantes do portugus brasileiro conviventes em nosso
territrio
nacional, variantes sobretudo de ordem scio-histrica e
lingstica.
Os fatores mobilidade demogrfica e escolarizao no Brasil
colonial e ps-
colonial tambm so considerados pela autora, sem perder de vista
uma rpida
compreenso sobre os aspectos condicionantes da mudana lingstica
em Lass
(1997) e Lightfoot (1999) abordagem destinada a melhor
fundamentar os
aspectos intralingsticos e externos lngua, mas que tambm
servem
elaborao de predies sobre a mudana das lnguas que fornecem
instrumentalizao terica consistente no levantamento de hipteses
capazes de
contemplar toda a diversidade de contingentes, ou quem sabe de
motivos que
confluram para a formao do PB.
Em sntese, a proposta de Mattos e Silva (2006, p. 233) de
desvelar as
particularidades do PB em sua heterogeneidade complexa dos usos
populares e
cultos por meio de uma perspectiva histrica, considerando os
fatores scio-
histricos, dentre os quais a dinmica da demografia histrica do
Brasil e o
precrio processo de escolarizao na histria da sociedade no espao
que veio a
ser definido como brasileiro, sem perder de vista as diferenas
entre o PB e o PE,
nos nveis lingsticos como bem lembra a autora, numa
taxonomia
estruturalista: fontica/fonologia, morfologia, sintaxe e lxico ,
fornece elementos
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para uma atitude crtico-reflexiva diante das disposies
pontuadas/propostas
sombra de diferentes motivaes interpretativas, que se tm
debatido, com vistas a
procurar promover uma explicao cientfica para o formato
lingstico que veio a
lngua portuguesa a assumir na Amrica meridional (MACHADO FILHO,
2007,
p. 2).
Todo esse cenrio, atrelado ainda necessidade de se discutir a
questo da
influncia das lnguas africanas no portugus europeu e ao fato de
que essa
influncia se d com intensidade no Brasil sobre uma matriz
indgena aqui
preexistente e mais localizada (CASTRO, 2006, p. 111), levam a
uma anlise das
hipteses interpretativas1 da constituio do PB de maneira mais
refinada.
Mattos e Silva (2006, p. 232-233) e Machado Filho (2007, p.
10-15) fazem uma
rpida revisita as hipteses interpretativas para a formao do
portugus popular
brasileiro: (a) a crioulizao prvia, (b) a transmisso lingstica
irregular e (c) a
deriva secular e a confluncia de motivos. Dessas trs, a ltima
parece abarcar um
maior conjunto de fatores na tentativa de interpretar a origem e
o processo de
formao do PB, embora apresente lacunas, as quais mais adiante
sero
pontuadas.
O presente artigo, portanto, possui por eixo maior a retomada do
debate
contemporneo sobre a constituio histrica do Portugus Brasileiro,
partindo-se
de uma reflexo crtica dos principais aspectos concernentes s trs
hipteses
interpretativas em questo, com vistas a um delineamento e
interpretao mais
apurados dessas, com destaque em Naro e Scherre (2007) para o
entendimento do
que denominam e se constitui como confluncia de motivos, de que
maneira
esta se coaduna deriva secular vez que a abordagem da
confluncia, nos
moldes em que apresentada, tem gerado inmeros questionamentos ,
proposta
em suas bases por Sapir ([1921] 1949) e reafirmada por esses
autores; e, ainda, a
discusso de alguns possveis caminhos que podem servir para
melhor
compreender o processo de conformao histrica do PB.
1 Prefere-se neste trabalho usar a expresso hipteses
interpretativas a hipteses explicativas por se entender que em
termos de estudo do passado ou de constituio de uma lngua no se
promovem explicaes, mas interpretaes.
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275
A contribuio para este tema, j to amplamente tratado, situa-se
em
abord-lo a partir da afirmao de que as trs hipteses
interpretativas existentes
no conseguem, de modo pleno e satisfatrio, dar conta da
interpretao dos
processos imbricados na formao do PB fato que se comprova pelas
lacunas que
apresentam, dvidas que suscitam e pelos acirrados e acalorados
debates
alimentados, em congressos nacionais e internacionais, entre
lingistas e
estudiosos da histria do portugus em territrio brasileiro.
Pontue-se que em funo dos fatores tempo e limite de espao, que
norteiam
a apresentao deste trabalho, as consideraes transcorrero com
maior
objetividade. Vale ressaltar que no se tem aqui a inteno de
desenvolver uma
nova hiptese interpretativa para a formao do PB, apenas a
tessitura de algumas
consideraes que, como todo trabalho cientfico, esto sujeitas a
crticas, revises,
complementaes e recusas (MATTOS E SILVA, 2006, p. 249).
1 UM OLHAR SOBRE AS HIPTESES
Como j exposto, trs hipteses ou trs posicionamentos tericos
tentam
desvelar/interpretar o passado da lngua portuguesa, notadamente
das origens e
formao do portugus brasileiro (MATTOS E SILVA, 2006, p. 232).
Uma tarefa
considerada por Machado Filho (2007, p.10) como, sem dvida, uma
das mais
pretensiosas disputas. De maneira geral, tem-se uma corrente a
favor da chamada
crioulizao prvia, com posterior descrioulizao quando tomado rumo
ao
portugus lusitano; uma segunda corrente que reconhece a formao
do PB como
fruto de um processo de transmisso lingstica irregular, em que o
contato do PE
com lnguas africanas no Brasil, permitiu o surgimento de uma
variedade da
lngua portuguesa; e a deriva secular e a confluncia de motivos,
que considera
serem as modificaes pelas quais o PE passou no Brasil j
previstas no sistema,
ou seja, a mudana reside na freqncia dos usos, pois a gramtica
da lngua j a
pressupunha.
Considere-se a seguir uma rpida explanao sobre cada uma dessas
correntes.
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276
1.1 DA CRIOULIZAO PRVIA
Tem como figura mais expoente Gregory Riordan Guy, que acredita
ser o
portugus popular brasileiro (PPB) marcado por tendncias
presentes nas lnguas
crioulizadas, dentre elas: na morfologia, reduo de vrios tipos,
perda de
pronomes tonos; na sintaxe, falta de concordncia; na fonologia,
reduo de
codas (GUY, 2005, p. 22). O autor aponta como um dos pontos
basilares de sua
hiptese a falta de concordncia no sintagma nominal e no sintagma
verbal.
Aborda, portanto, muitos dos fenmenos presentes no PPB como
conseqncia de
redues, sobretudo nos aspectos morfolgicos (eliminao da segunda
pessoa
verbal nas formas -s/-ste; substituio do pronome plural de
segunda pessoa
vs, por vocs; substituio de ns por a gente; desuso das
formas
mesoclticas; e substituio de formas flexionadas do verbo por
construes
perifrsticas) e fonolgicos (apagamento de consoantes, a exemplo
de /s/ e /r/ em
final de slaba; vocalizao do /l/ em slaba final; desnasalizao
das vogais nasais).
Guy apia-se, desse modo, em evidncias lingsticas, mas no pe de
lado
os fatos histricos que julga pertinentes para a defesa da
hiptese da crioulizao
prvia no Brasil. O enorme contingente de escravos vindos para
essa terra
corresponde a um desses fatos. Algo que decisivamente marcou a
histria social e
econmica nos perodos colonial e imperial no Pas. Esse estudioso
atenta para a
considerao de que
a distribuio dos vrios grupos lingsticos dos africanos no foi
uniforme por todo o Brasil [...] havia muitos iorub na Bahia e mais
kimbundu na rea do Rio de Janeiro. Evidentemente, isso possibilitou
a criao de pequenas comunidades-de-fala temporrias que mantiveram o
uso dessas lnguas africanas no Brasil por um certo prazo. (p.
31).
Guy tambm sinaliza outros aspectos relevantes crioulizao, os
fatores
demogrficos, geogrficos e sociais. Toma ainda duas indicaes para
argumentar
a favor de evidncias histricas para a possvel existncia de um
crioulo no Brasil
colonial. A primeira se d com a emigrao para o Brasil de
fazendeiros de cana-
de-acar da ilha de So Tom (HOLM, 1987 apud GUY, 2005, p. 32).
Boa parte
desses fazendeiros trouxe seus escravos africanos para os
trabalhos nas fazendas.
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277
Ento como sabemos que em So Tom falava-se (e ainda se fala) uma
lngua crioula de base lexical portuguesa, podemos concluir que
havia falantes desse crioulo residentes no Brasil no incio do sculo
XVII. (GUY, 2005, p. 32).
A segunda evidncia estaria na histria do Papiamento, a lngua
crioula
falada nas ilhas holandesas do Caribe: Aruba e Curaao (p. 33).
Essa lngua teria
sido levada pelos holandeses para os domnios antilhanos da
Holanda quando da
expulso desses povos do Nordeste Brasileiro, levando seus
escravos brasileiros,
no sculo XVII.
Holm (1992), por sua vez, relacionou alguns dos traos
fonolgicos, sintticos
e lexicais que ligam o crioulo de So Tom ao PB, enquanto Goodman
(1987 apud
GUY, 2005, p. 33) se encarregou das pesquisas no mbito da
investigao sobre o
Papiamento, considerado lngua derivada de um possvel crioulo
brasileiro.
Em 1993, no entanto, Tarallo retomando um artigo publicado em
1986,
intitulado Sobre a alegada origem crioula do portugus brasileiro
rebateu duramente
os argumentos de Guy (1981). Esse estudioso, respaldado nos
resultados dos
trabalhos que desenvolveu sobre a sintaxe falada do portugus de
So Paulo e
sobre os padres de redundncia em lnguas crioulas, sobretudo
a
redundncia pronominal em clusulas relativas atestadas por Tok
Pisin, afirma
que a hiptese crioula do PB no crucial, ou seja
a crioulizao pode muito bem ser colocada entre os processos de
contato lingstico que ocorreram no Brasil Colonial. [...] mais
importante ainda, a histria do PB no assim to clara e transparente,
como quer Guy. [...] concentrarei meus esforos na apresentao de
evidncias de que seria muito improvvel e nada natural que o PE e o
PB viessem a se encontrar de novo sintaticamente. (p. 39).
Apesar das crticas, Guy continua reiterando a hiptese da
crioulizao
prvia, a partir da coleta de dados em suas peridicas visitas ao
Brasil como bem
lembra Machado Filho (2007, p.11). As pesquisas desenvolvidas
por Guy (2005)
evidenciam a crioulizao como algo realmente acontecido no
Brasil.
A evidncia scio-histrica indica a entrada e a sada de falantes
de crioulos e as condies suficientes para a crioulizao, e a
evidncia interna do PPB indicam vrios traos mais de acordo com uma
histria de crioulizao do que com qualquer outra explicao. (p.
33).
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Mattos e Silva (2006, p. 232) considera a hiptese de Guy muito
generalizante
para fornecer uma compreenso delineada das origens e da formao
do PB. Essa
autora, ao contrrio de Tarallo, posiciona-se, entretanto, de
maneira moderada
diante das argumentaes de Gregory Guy no que tange crioulizao
prvia. Ela
no considera de forma nenhuma, fora da agenda de pesquisa, como
fez
Fernando Tarallo, as postulaes de Guy.
Naro e Scherre (2003) atentam para o fato da difcil delimitao do
conceito
de crioulizao que acaba muitas vezes se confundindo com o de
pidginizao. A partir de uma reflexo objetiva das condies sociais
e
comunicativas propcias formao de crioulos e de pidgins, esses
autores
mostram a impossibilidade de se falar em crioulizao no Brasil.
Esse
posicionamento fica mais ntido a partir da argumentao que esses
tericos
desenvolvem no livro Origens do Portugus Brasileiro, de
2007.
Embora as circunstncias de uso de um pidgin/crioulo sejam
tipicamente consideradas como envolvendo simplificao de estrutura
gramatical [...], difcil identificar a origem ou causa desse
fenmeno, ou mesmo atestar que gramtica sofreu simplificao, porque,
durante o estgio pidgin, a lngua de base fornece o vocabulrio, mas
no necessariamente a gramtica. (p. 52).
Nessa concepo, Naro e Scherre ainda trazem ao palco da questo o
fato de
que pode haver a estabilizao de um pidgin sem necessariamente se
dar a
ocorrncia de crioulizao, o que acarreta perda do contedo
lingstico do
prprio conceito do que vem sendo veiculado e interpretado como
crioulizao.
Outro questionamento o de se houve realmente uma lngua crioula
no
Brasil, respaldada no lxico portugus e na gramtica africana,
onde estariam as
provas documentais para tal fato? De certo, se tivesse existido,
tal crioulo seria,
conforme Naro e Scherre, indistinguvel da de outros eventuais
pidgins ou
crioulos de base no-europia (p. 47).
Esses pontos, dentre outros que se poderiam relacionar, so
suficientes para
comprovar a idia de que a hiptese da crioulizao prvia no
consegue realizar
uma anlise consistente de todos os fatos e processos
correspondentes
constituio histrica do PB, embora, reitere-se, no se possa
descartar seu valor
enquanto arcabouo terico.
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1.2 DA TRANSMISSO LINGSTICA IRREGULAR
Para facilitar o entendimento do prprio sentido da transmisso
lingstica
irregular TLI, antes de qualquer considerao, convm explicitar em
que consiste
a transmisso lingstica regular TLR. Por TLR entende-se a forma
normal,
natural de se adquirir a linguagem, por isso mesmo tem como
agente do processo
as crianas. entre essas que se d a aquisio a partir da fase de
socializao,
ou seja, as crianas adquirem a lngua de modo espontneo na
interao com o
grupo familiar e social do qual fazem parte.
Naro e Scherre (2003, p. 286) consideram que esse processo
natural pode ser
evidenciado na base de uma amostra de fala suscetvel de uma
anlise
ordenada. Partindo dessa compreenso, fica evidente que o
processo de TLI, por
oposio ao processo de TLR, deve ter por agente os adultos e se
manifesta entre
eles com base em fala no susceptvel de uma anlise ordenada,
talvez pela
caoticidade ou, dentre razes outras, por se manifestar em
quantidade
insuficiente (idem).
Pode-se, portanto, constatar que na TLR a aquisio da linguagem
se
processa de maneira inconsciente nas crianas enquanto que, na
TLI, a aquisio
da lngua pelos adultos uma segunda lngua se manifesta de modo
consciente.
Da a oposio processo inconsciente versus processo
consciente.
No entanto, a transmisso lingstica, quer regular quer irregular,
no to
simples de se explicar como pode aparentar primeira vista. Cada
uma apresenta
aspectos susceptveis a anlises e a ponderaes. Nesta seo,
entretanto, apenas a
TLI ser abordada. Para tanto, levar-se-o em conta as disposies
de Baxter
(1995), de Lucchesi (1999, 2003) e de Baxter e Lucchesi (1993,
1997, 2006).
Em artigo intitulado A questo da formao do portugus popular do
Brasil: notcia
de um estudo de caso, 1999, Lucchesi postula que o conceito de
TLI muito mais
amplo do que o de pidginizao/crioulizao,
pois engloba, tanto os processos de mudana provenientes de
contato entre lnguas atravs dos quais uma determinada lngua sofre
alteraes muito profundas na sua estrutura, do que resulta o
surgimento de uma outra entidade lingstica denominada pidgin ou
crioulo, quanto os processos nos quais uma lngua sofre contato com
outras lnguas, sem que essas
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alteraes cheguem a configurar a emergncia de uma nova entidade
lingstica qualitativamente distinta. (p. 73).
Lucchesi alega, nesse sentido, que s um conceito amplo de TLI
capaz de
abarcar e de interpretar determinados processos histricos em que
uma dada
lngua sofre alteraes significativas em decorrncia de seus padres
de uso ao ser
assimilada por contingentes de falantes de outras lnguas (idem),
sem que isso
gere lnguas pidgins e crioulas.
Isso se evidenciou com maior clareza no artigo O conceito de
transmisso
lingstica irregular e o processo de formao do portugus do
Brasil, que publicou em
2003, com vistas a delinear os parmetros scio-histricos e
lingsticos que
possam subsidiar uma compreenso sistemtica desses processos
histricos.
A explicao para esses processos pode ser descrita com
objetividade: um
significativo contingente de falantes adultos geralmente utentes
de lnguas
distintas e incompreensveis entre si forado a adquirir uma
segunda lngua
por presses comerciais ou mesmo em decorrncia de dominao
poltica. A
variedade da lngua alvo que se forma nessa situao apresenta uma
forte
reduo/simplificao em sua estrutura gramatical (p. 273), mantendo
apenas os
elementos essenciais ao estabelecimento das funes comunicativas
bsicas. Tais
redues podem ser justificadas por trs fatores elencados por
Lucchesi (2003): (a)
o difcil acesso dos falantes das outras lnguas aos modelos da
lngua-alvo; (b) os
falantes dessas outras lnguas, por serem em sua maioria adultos,
no mais
dispem de acesso aos dispositivos mentais da faculdade da
linguagem; e (c) a
ausncia de aes normativizadoras.
Se o contato se prolonga, a variedade segunda da lngua-alvo, por
ser mais
socialmente vivel, assume de maneira gradativa novas funes,
passando a
modelo de lngua materna a ser adquirida pelos descendentes dos
falantes das
outras lnguas. No momento em que a lngua de emergncia/contato no
atende
demanda comunicativa recorre-se a incrementos dos dispositivos
da gramtica
das diversas lnguas desses falantes ou da lngua-alvo. Tem-se,
portanto, uma
relao dialtica entre expanso funcional e expanso gramatical.
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281
Tudo depende do acesso ou no dos falantes lngua-alvo. Quanto
menor
ele for, maior a possibilidade da formao de uma nova entidade
lingstica, do
contrrio, maior a chance de se ter apenas uma variedade da
lngua-alvo.
No caso da constituio histrica da realidade lingstica
brasileira, Baxter e
Lucchesi (2006) acreditam que o contato entre as lnguas dos
numerosos
contingentes de falantes africanos e indgenas em contato com o
portugus pode
ter gerado diversas crioulizaes leves em diferentes perodos de
tempo, mas as
suas inovaes teriam sido absorvidas e diludas (p. 195). Para
esses tericos, no
houve no Brasil um crioulo de base portuguesa estvel e
amplamente difundido
(idem), mas uma crioulizao leve, cujos traos podem ser
identificados a partir da
anlise dos atuais dialetos rurais, preservados em virtude do
distanciamento das
comunidades rurais em relao aos grandes centros urbanos. No
entanto,
pontuam ainda os autores que as caractersticas desses dialetos
rurais se
originariam de um processo mais intenso de TLI que teria afetado
o antecedente
histrico desses dialetos.
Nessa perspectiva, maior teria sido o processo de reestruturao
gramatical
que caracteriza a TLI, o qual seria marcado duplamente por uma
simplificao
dos dispositivos morfossintticos e pela recomposio da estrutura
gramatical
erodida. Ter-se-ia, ento, conforme Lucchesi (2003, p. 275-276),
trs caractersticas
fundamentais do processo de TLI: (a) perda, ou variao no uso, de
morfologia
flexional e palavras gramaticais; (b) alterao dos valores dos
parmetros
sintticos em funo de valores no marcados; e (c) gramaticalizao
de itens
lexicais para preencher as lacunas na estrutura lingstica.
Em um de seus mais recentes artigos, publicado em 2006, sob o
ttulo
Processos de crioulizao na histria sociolingstica do Brasil,
Baxter e Lucchesi
afirmam categoricamente que processos de TLI mais leves
marcaram
profundamente a histria das variedades populares do portugus
brasileiro (p.
206). Os autores elencam sete traos resultantes desses processos
que, ainda hoje,
se conservam nos dialetos rurais e populares do pas.
(a) reduo/eliminao de morfologia flexional do verbo e do nome,
com conseqncias para
os processos sintticos a ela relacionados;
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(b) reduo/eliminao de morfemas gramaticais livres, tais como
artigos, pronomes clticos,
conectivos preposicionais etc.;
(c) negao dupla contnua (pr-verbal + final de orao) e simples
(final de orao);
(d) orao relativa com que multifuncional e com cpia
pronominal;
(e) a seguinte estrutura argumental de verbos com dois
complementos: verbo + complemento
indireto no preposicionado + complemento direto;
(f) a no inverso da ordem sujeito-verbo nas oraes
interrogativas;
(g) a formao reduzida da estrutura passiva em construes do tipo
sujeito + verbo
transitivo em funo de paciente + ao. (idem).
Lucchesi defende no apenas a heterogeneidade e a variabilidade
do PB,
como bem lembra Mattos e Silva (2006, p. 230), mas ainda a
pluralidade e a
polarizao, que designa de normas vernculas e normas cultas. O
pilar de
sustentao de grande parte da argumentao desse estudioso
encontra-se nos
estudos lingsticos que realizou sobre o dialeto falado em
Helvcia, comunidade
afro-brasileira localizada no extremo sul do Estado da Bahia. As
anlises desse
dialeto tm comprovado, segundo Baxter e Lucchesi (2003), a
existncia de
variantes cujas estruturas sintticas podem aproxim-las de
crioulos de base
portuguesa.
A partir dessas pesquisas e de todo o exposto at aqui, novos
dados foram
arrolados e novas interpretaes ganharam espao somando-se aos
diversos
estudos dedicados questo do contato entre lnguas na histria do
PB, o que tem
favorecido o desenvolvimento de uma compreenso mais alargada
da
configurao do cenrio lingstico brasileiro. No entanto, algumas
ponderaes
devem ser registradas quanto ao processo de TLI.
Em certos momentos, num plano conceitual generalizado, a TLI
parece se
confundir com a crioulizao, haja vista tambm se construir num
contnuo de
nveis diferenciados de socializao/ nativizao de uma lngua
segunda que foi
adquirida de forma massiva, mais ou menos imperfeita, em
contextos scio-
histricos especficos (LUCCHESI, 2003, p. 274).
Considere-se ainda que, tomando-se, por exemplo, a questo do uso
no
freqente da concordncia verbal e nominal por Baxter e Lucchesi
(1993, 1997)
como uma constante em comunidades rurais afro-brasileiras
isoladas, tm-se
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verificado que esse fenmeno no exclusivo desses contingentes,
podendo ser
encontrado em todas as reas rurais brasileiras,
independentemente da origem
tnica, quer seja pura ou miscigenada e tambm independentemente
de terem
recebido, ou no, populaes significativas de escravos (NARO;
SCHERRE, 2007,
p. 66).
Tal afirmao serve no s para questionar a possvel crioulizao no
Brasil,
quanto o prprio processo de TLI na histria da constituio
lingstica neste Pas.
Afinal, como explicar que fenmenos registrados em comunidades
afro-
descendentes tambm sejam registrados em comunidades
no-afro-descendentes?
Se houve mudanas, estas podem configurar uma nova gramtica? E
onde
residiria essa gramtica?
Talvez as respostas a tais indagaes sejam mais ou to difceis de
apresentar
quanto tm sido atualmente as tentativas de definir, de forma
conciliatria, luz
da cincia e da religio, o exato instante em que se pode atestar
o surgimento da
vida humana; e ainda o uso mais adequado das pesquisas em
gentica envolvendo
clulas-tronco e embries humanos.
Comprovar a existncia no Brasil de um processo de TLI Nativizao,
como
preferem Naro e Scherre (2003, p. 287) , no tarefa das mais
fceis, diante da
diversidade estrutural das lnguas que se fizeram presentes ao
longo do perodo
da colonizao brasileira.
De fato, no Brasil, parece que no houve a formao de um pequeno
nmero de grandes blocos tnico-lingsticos, com lnguas mutuamente
inteligveis dentro de cada bloco, o que teria favorecido a
sobrevivncia de interferncias estruturais, como no incio da fase de
pidgin no Hava. (NARO; SCHERRE, 2007, p. 143).
Diante dessa afirmativa, surgem alguns outros questionamentos:
se houve
realmente TLI no Brasil, quais teriam sido os efeitos
estruturais na lngua
transmitida? Ora, conforme Rodrigues (2006), as duas lnguas
gerais faladas na
poca da colonizao no Brasil a paulista e a amaznica
preenchiam
satisfatoriamente as necessidades comunicativas
dos portugueses com os tupinamb e os tupi (a lngua aprendida em
um ponto da costa podia servir em quase todos os outros ao longo
desta), mas tambm desfavoreceu a
-
284
implantao da lngua europia como meio geral de comunicao e no deu
ocasio ao surgimento de pidgins e crioulos. (p. 145).
As anlises dirigidas por Baxter e Lucchesi (2006) prendem-se a
elementos da
norma, como a eliminao de dispositivos gramaticais da lngua alvo
o
portugus standard (LUCCHESI, 2003, p. 279), variaes na
concordncia verbo-
nominal, a reduo do sujeito nulo, perdas na morfologia flexional
e relaes
(inter)sintagmticas e (inter)oracionais (BAXTER; LUCCHESI, 2006,
p. 199), mas
onde estariam, efetivamente, os elementos de lngua? Como o
processo de TLI
explicaria a diferena entre o PB e o PE? Se h diferenas entre
estes, enfatize-se,
h a existncia de uma gramtica particular a cada um, logo, como
conceituar,
caracterizar e apresentar uma gramtica do PB?
Sem pretender entrar no mrito da existncia ou no de um processo
de TLI
no Brasil, importa saber, diante dos questionamentos e reflexes
expostos at aqui,
que a hiptese em questo tambm no d conta de interpretar a
constituio
histrica do PB, embora, de certo, no possa ser posta revelia/
parte, por serem
inegveis os contributos de suas anlises e de sua fundamentao
terica, e o
quanto significam para o desvelamento do cortinado de fatores
lingsticos,
histricos e sociais que potencializaram a configurao do PB.
1.3 A DERIVA SECULAR E A CONFLUNCIA DE MOTIVOS
A hiptese da deriva secular, apregoada por Naro e Scherre (2003,
2007),
apresenta a idia de que o portugus brasileiro , na verdade, uma
espcie de
continuao do portugus arcaico, com pequenas alteraes, haja vista
no se ter
conseguido at hoje identificar nenhuma caracterstica do portugus
do Brasil
que no tenha um ancestral claro em Portugal (2007, p. 13).
Para esses autores, o portugus brasileiro resultaria apenas de
uma expanso
de estruturas e variaes presentes ao longo de todo o percurso
histrico da
lngua. Expanso acelerada pela freqncia de uso advinda de uma
confluncia
de motivos.
Naro e Scherre, na verdade, retomam a noo de deriva nos termos
de
Edward Sapir (1921), um dos mais notveis representantes dos
estudos
-
285
lingsticos nos Estados Unidos, na primeira metade do sculo XX.
Em seu livro
Language an introduction to the study of speech, 1921 traduzido
por Joaquim
Mattoso Cmara Jnior para o portugus em 1938 e publicado no
Brasil, pela
primeira vez, em 1954 e novamente no ano de 1969 , um pequeno
tratado, que
pretendia ser elementar e de divulgao (p. 187), Sapir argumenta
que a
linguagem no apenas uma coisa que cresa no espao [...], [mas]
move-se pelo
tempo em fora num curso que lhe prprio. Tem uma deriva (p.
121).
Esse estudioso, imerso numa concepo psicolgica,
essencialmente
mentalista relao linguagem-pensamento em sua maneira de
interpretar a
forma lingstica, mostra-se muito sensvel aos aspectos estticos
da linguagem
humana (p. 188) e sob essa orientao empreende esforos na
tentativa de
organizar uma classificao tipolgica das lnguas, dispondo-as em
bases
sincrnicas e descritivas (p. 190).
Sapir esboa que todas as lnguas geneticamente relacionadas
adviriam do
primitivo prottipo indo-europeu (p. 123). Elas seriam fruto de
um contnuo
processo de esgalhamento sofrido ao longo do tempo por esse
prottipo, o que
poderia ser comprovado valendo-se de evidncias documentais e do
mtodo de
investigao comparativo ou reconstrutivo. Mtodo que esse autor
acreditava
ser capaz de tirar as interferncias sobre tais lnguas e de
representar os laos que
as unem em linhas independentes de desenvolvimento, mostrando
que essas
lnguas partem de um remoto ponto em comum (p. 122), da serem
resultantes
de uma deriva secular.
Por isso mesmo reflete, numa base histrico-comparativa, sobre
a
possibilidade da existncia de uma lingstica geral, em que
princpios
permanentes se aplicam, no plano descritivo e no plano histrico,
s lnguas
aparentemente mais diversas (p. 192).
A deriva de uma lngua, segundo Sapir, no aleatria, tem um rumo e
se d
num longo percurso, pois
[...] consta da seleo inconsciente, feita pelos que a falam, das
variaes individuais que se acumulam numa dada direo especial. Pode
inferir-se essa direo, grosso modo, por intermdio do passado
histrico da lngua [em que] cada trao caracterstico da deriva
torna-se parte integrante da fala comum; mas durante muito
-
286
tempo pode suceder que exista como mera tendncia na fala de
alguns poucos [...] (p. 124).
Em sntese, Sapir observa que a lngua no um sistema fixo, sujeito
a
mudanas, ela no apresenta um declive como muitos pensavam, mas
as
mudanas dos sculos prximos esto em certo sentido prefiguradas em
algumas
tendncias obscuras do presente. Tais mudanas, uma vez
realizadas, provaro
ser apenas continuaes de outras mudanas que j se tinham
verificado (idem).
Naro e Scherre (2007) consideram essas postulaes como
essencialmente
aplicveis interpretao do acontecido com o PB. Esses estudiosos
no
reconhecem a influncia gramatical especfica de qualquer lngua
africana, ou de
qualquer outra provenincia no portuguesa [...] durante a fase de
aquisio da
lngua (p. 182). Transpondo para a compreenso lingstica um dos
pressupostos
elementares da fsico-qumica, Naro e Scherre asseveram que a
relao PE - PB
marcada por uma catlise, ou seja, por uma modificao (em geral de
aumento) de
velocidade de uma reao provocada pela presena e atuao de um
elemento que
no sofre alterao ao longo do processo leia-se tal elemento como
o portugus
lusitano.
Sob essa perspectiva, esses autores amplificam, de certo modo, a
idia de
deriva secular em relao ao PB. Eles afirmam que a catlise na
situao lingstica
brasileira deve-se induo de formas genticas, em outras palavras,
uma
confluncia de motivaes que agiram em momentos diferentes. (p.
182). As
foras genticas permitem provar, ou pelo menos supor, origem
comum para
lnguas aparentemente sem semelhanas entre si. Mas quais seriam
essas foras e
como se confluiriam motivacionalmente?
Os autores no deixam claro. Apenas refletem sobre a provenincia
de tais
foras. Elas teriam diversas origens algumas oriundas da Europa;
outras da
Amrica; outras, ainda da frica (p. 125). Juntas, teriam se
reforado,
constituindo o portugus popular brasileiro PPB.
Para comprovar essa tese, Naro e Scherre baseiam-se no papel do
PE no-
padro na gnese das mudanas que configurariam o PB (p. 88). Esses
estudiosos
buscam evidncias essencialmente em documentaes/registros do
portugus
-
287
arcaico, analisando as questes da concordncia verbal e nominal,
o
preenchimento lexical dos pronomes na funo de sujeito, a posio
relativa do
sujeito e a salincia fnica da oposio singular/plural. As anlises
que
desenvolveram conduzem concluso reafirmada com exaustividade ao
longo
dos sete captulos que compem o livro Origens do portugus
brasileiro, mais recente
trabalho de ambos de que o portugus moderno do Brasil consiste
no resultado
natural da deriva secular inerente na lngua trazida pelos
portugueses e que
aqui sofreu, primeiro a influncia da exuberncia do contato de
adultos, falantes
de lnguas das mais diversas origens, e depois a nativizao dessa
lngua pelas
comunidades formadas por esses falantes. (p. 69).
Como se percebe, os autores em questo no negam a importncia
da
influncia africana e indgena para nossa cultura, apenas querem
identificar as
razes lingsticas romnicas e lusitanas que se encontram hoje nas
falas dos
brasileiros que tiveram pouco acesso aos bancos escolares ou que
habitam as reas
rurais e as periferias das grandes cidades (p. 17).
Tambm no desconsideram que PB e PE, apesar das semelhanas
inquestionveis, trilharam, e ainda trilham (p. 116) caminhos
distintos. No
entanto, retomam o princpio uniformitarista, nas disposies de
Christy (1983, p.
ix, apud LABOV, 1994, p. 21), para sustentar a idia de que o
conhecimento de
processos que operaram no passado pode ser inferido pela
observao de
processos em andamento no presente. Nesse sentido, Naro e
Scherre (2003, 2007)
pautam-se em dados do PE falado modernamente com todas as suas
variaes em
Portugal, e em dados do PB, a fim de projetar estruturas que
certamente
ocorreriam [...] no portugus europeu falado antigo (2007, p.
115).
Diante do quadro at aqui esboado, tomando-se como contraponto a
leitura
de Mattos e Silva (2006, p. 232) embora essa autora no tea
comentrios sobre a
confluncia de motivaes nesse trabalho concorda-se aqui com a
constatao
da existncia de generalizaes nos dispositivos/idias que
sustentam a tentativa
de interpretao do processo histrico constitutivo do PB sob o vis
da hiptese da
deriva secular ou deriva natural, nos termos usados pela autora.
Para que a
-
288
hiptese em discusso pudesse ser sustentada, necessitar-se-ia que
anlises e
prerrogativas suscitadas por Naro e Scherre fossem
demonstradas
[...] na sintaxe do portugus arcaico para o moderno, mas no
apenas no que se refere concordncia, como tambm nas outras
caractersticas sintticas que distinguem o portugus brasileiro do
europeu, por exemplo, os vrios aspectos referentes ao sistema
pronominal e ordem sinttica (MATTOS E SILVA, 2006, p. 233).
Ressalte-se que, Naro e Scherre (1993, 2003, 2007), e bem antes
deles Silva
Neto (1963 [1951]) e Cmara Jr. (1975), procuram sustentar que o
contato entre
lnguas no Brasil se limitou a acelerar tendncias j prefiguradas
no sistema
lingstico do portugus (BAXTER; LUCCHESI, 2006, p. 171), no
entanto, se
houve deriva e se ela foi motivada por uma confluncia de motivos
impulsionados
pelo carter gentico da lngua, haveria a necessidade de se
especificar quais
aspectos genticos estiveram presentes ou foram preponderantes
nesse processo,
uma vez que confluncia de motivos abarca uma srie de
possibilidades de
fatores que influiriam em determinada direo, podendo alterar o
resultado do
produto lingstico.
Outra questo que a documentao escrita, notadamente do
portugus
europeu arcaico, de que se vale Naro e Scherre (2003, 2007) para
traar suas
anlises, reflete apenas as tendncias conforme o princpio da
deriva, as
tendncias foram readquiridas e potencializadas na lngua em
determinados
momentos histricos e no sinaliza para uma quantidade expressiva
de
ocorrncias ponto que tem provocado a discusso por parte de
muitos tericos.
Da o questionamento: a constatao do registro de uma nica
ocorrncia no
passado da lngua posta em comparao com ocorrncias no presente da
lngua
seria o suficiente para assegurar que tenha havido prefigurao de
mudanas?
Se se considera uma srie de motivaes e se no h o descarte da
influncia
africana e indgena na constituio do PB, no se estaria abrindo
espao para a
formao de uma nova gramtica do portugus em terras brasileiras?
Se assim o
fosse, isso no feriria o princpio da deriva secular, base da
hiptese de Naro e
Scherre? E mais: de que maneira deriva e confluncia de motivos
se coadunam na
formao do PB? No seria o caso de se evidenciar essa relao,
levando-se em
-
289
conta a prpria histria do Brasil, no totalmente pelo que tem
aparentado
contemplada por esses autores?
Mais uma ponderao se faz necessria, desta vez em relao ao
mencionado
princpio uniformitarista de Christy (1983), um dos sustentculos
da hiptese em
questo. Ora, se Christy fala em observar processos no presente
para
compreender processos do passado da lngua, por que Naro e
Scherre (2007)
restringem-se anlise lingstica da concordncia nominal e verbal e
do pronome
em funo de sujeito? Prendendo-se apenas a esses aspectos no
seria incoerente
fazer afirmaes generalizantes como a de que quase todos os
traos
caractersticos do portugus do Brasil, em suas variedades
populares faladas
hoje no territrio brasileiro tm sua origem comprovada na fala
popular ou no-
padro de Portugal (p. 118)?
2 AINDA SOBRE A CONFLUNCIA DE MOTIVOS
As respostas para os questionamentos acima expostos poderiam, se
no por
completo, pelo menos em parte ser esclarecidas a partir de um
entendimento
melhor do que se denomina sob o rtulo da expresso confluncia de
motivos.
A primeira vez que esses termos foram introduzidos como
argumento de
sustentao, portanto favorvel reafirmao da deriva secular no
tocante
configurao do PB, foi num artigo de Naro, publicado em 1981,
quando o autor
procurava discutir a questo da perda da concordncia
verbo-nominal e no
sintagma nominal. At ento, a justificativa para a atuao dessa
perda estaria
numa convergncia de motivos. Scherre (1988, p. 43), em artigo
publicado,
retoma a discusso elencando trs desses motivos, relacionados por
Naro (1981):
(1) desenvolvimento interno natural da lngua; (2) comportamento
pidginizante da
parte do europeu; e (3) aprendizagem imperfeita pelos falantes
de diversas
bagagens lingsticas.
De convergncia, em 1981, para confluncia, em 2007, no se
passaram
apenas vinte seis anos no plano temporal, mas vinte seis anos de
importantes
investigaes e avanos no mbito da Lingstica Histrica no Brasil,
com um
crescimento significativo de trabalhos na linha da mudana
lingstica e da
-
290
constituio do portugus em solo brasileiro. Confluir correr para
o mesmo
ponto, unir de forma homognea, conforme Ferreira (2004, p. 185)
parece abarcar
mais que convergir tender para o mesmo ponto. Por isso, Naro e
Scherre (2007,
p. 25) ampliam a interpretao sobre a formao do PB, luz da atrao
[de
foras/fatores] de diversas origens, algo que se resume na frase
confluncia de
motivos. O que realmente precisa ficar mais delineado no
trabalho desses
estudiosos o modo que esse confluir de motivaes lida com a
influncia
africana e indgena, e ainda com o multilinguismo, a mobilidade
populacional, a
sociodemografia histrica (BAXTER; LUCCHESI, 2006) e a presena e
ausncia
da escolarizao no Brasil, haja vista serem esses aspectos
significativamente
considerveis na conformao do PB, consoante s argumentaes de
Mattos e
Silva (2006).
3 ALGUNS POSSVEIS CAMINHOS
As trs hipteses interpretativas da constituio do PB precisam,
longe de
serem tomadas como verdades absolutas, incontestveis ou
contraditrias em seus
fundamentos e anlises, ser consideradas como possveis caminhos
de estudo
para a compreenso do percurso do processo histrico por vezes
envolto na
nvoa do tempo da formao e firmao do portugus em territrio
brasileiro.
Essas hipteses no fecham a possibilidade de novas reflexes nessa
rea, pelo
contrrio, se bem analisadas em suas disposies tericas,
percebe-se que chegam
a fornecer entradas para postulaes futuras ainda mais
abrangentes.
Postulaes que poderiam vir a considerar a prpria periodizao da
histria
lingstica no Brasil, sobretudo no que tange passagem do
multilingismo
generalizado para um unilingismo generalizado e de pas rural a
pas urbano,
conforme Lobo (2003), articulando fatores internos mudanas
estruturais,
lingsticas e fatores externos na tentativa de revelar, com maior
aferro, as
muitas fotografias da heterogeneidade dialetal do portugus
brasileiro
(RIBEIRO, 2002, p. 359) , tendo em vista sua realidade lingstica
no apenas
varivel e heterognea, mas tambm plural (LUCCHESI, 1994, p.
25).
-
291
Reassevere-se a necessidade de uma exposio planejada dos
acontecimentos
da histria do Brasil que influram [na] vitria da lngua
portuguesa [no territrio
nacional luz] do chamado processo civilizatrio, conforme dispe
Vitral (2001,
p. 303).
As deferncias de Mussa (1991) e de Mingas (2000) no plano da
interferncia/ influncia do papel das lnguas africanas na histria
do portugus,
notadamente do PB conforme o trabalho de Mussa , muito podem
contribuir no
tocante ao distanciamento PE PB, levando-se em conta que
aspectos do
portugus falado em terras da frica apresentam, em muito,
semelhanas com
nuances do portugus falado no Brasil. Sem dvida, mais um
elemento que pode
ajudar na interpretao configurativa do PB e na discusso da
hiptese de
emergncia de uma nova gramtica do portugus no Brasil, sobretudo
a partir do
final da segunda metade do sculo XIX estendendo-se at a
coetaneidade.
Quanto a essa questo da influncia africana e indgena no PB,
sustentada
por Guy (1981, 2005), por Baxter e Lucchesi (1993, 1997, 2006) e
reconhecida por
Naro e Scherre (2006), as disposies e o termo em si deveriam ser
superados, uma
vez que se tenta buscar compreender o processo de compleio do
PB, conforme
Mattos e Silva (2004).
Essa autora declara que o termo influncia envolve uma
perspectiva de
natureza superficial, tpica, embora significativa e curiosa, mas
de carter
aleatrio (p. 93). Melhor seria ento, tomando por aporte fatores
scio-histricos
brasileiros, falar em voz africana e dos afro-descendentes. A
pesquisadora ainda
afirma ser possvel que tal voz tenha adquirido o portugus, lngua
dos
colonizadores, como lngua segunda, na oralidade do cotidiano
diversificado e
multifacetado (idem) que imperava no Brasil Colonial. Durante
esse processo de
aquisio, sem a imposio do controle normativizador advindo da
escolarizao,
a voz africana e dos afro-descendentes [...] reestruturou o
portugus europeu
que, no Brasil, comea a chegar em 1500 e sucessivamente ao longo
do perodo
colonial (idem), mas que ganha impulso no sculo XIX com os
significativos
contingentes de imigrantes portugueses que aqui chegaram e se
fixaram.
-
292
Diante disso, seria consentneo considerar tambm que os avanos
nos
estudos do PB promovidos pela Lingstica Histrica, principalmente
na dcada
de 90, se devem a nomes de reconhecido prestgio, a exemplo de
Rosa Virgnia
Mattos e Silva, Fernando Tarallo, Carlos Alberto Faraco e Marco
Antonio de
Oliveira, dentre aqueles que tm como centro das suas atenes a
histria da
lngua portuguesa (LOBO, 1994, p. 14). Esses autores, nas anlises
e reflexes
cientficas que desenvolveram at o presente, apontam para alguns
possveis
caminhos de interpretao do fenmeno da mudana lingstica e da
configurao
do PB. Faraco (1991, p. 75) lana as trs vias necessrias ao
estudo histrico de
uma lngua. Para esse estudioso, o pesquisador deveria: (a)
voltar ao passado e
nele se concentrar; (b) voltar ao passado para iluminar o
presente; e (c) estudar o
presente para iluminar o passado.
Recorde-se que em Christy (1983) j se postulava que processos
operados no
passado de uma lngua poderiam fornecer elementos para melhor
apreenso de
processos em andamento no presente dessa lngua. Mas em Mattos e
Silva
(2006, p. 225) que o direcionamento para pesquisas nesse mbito
ganha amplitude.
Essa autora orienta que, para compreender o PB, convm ao
estudioso/pesquisador partir de: (a) fatos e dados do presente
para entrever o
passado e (b) da interpretao de fatores histricos do passado
para interpretar o
presente. E conclui, citando Meillet (1928), que a histria de
uma lngua se
esclarece pela histria social e poltica do povo que a usa.
CONSIDERAES FINAIS
Embora se tenha procurado defender neste trabalho que as trs
hipteses
interpretativas para a constituio histrica do PB apresentam, sob
uma
observao apurada, lacunas considerveis, a ponto de no
conseguirem dar conta
de todo o processo constitutivo do PB, reconhece-se que essas
mesmas hipteses
no podem ser descartadas, postas margem, pois elas renem
dados,
argumentos e anlises que podem servir como instrumentos
norteadores para a
realizao de novas pesquisas capazes de culminar, por sua vez, em
novas
-
293
suposies, a partir do desvelamento da scio-histria brasileira,
em seu percurso
desde o perodo colonial.
Acredita-se, pois, que a anlise de aspectos do PB no apenas no
campo da
fonologia e da concordncia verbal e nominal, mas em toda sintaxe
dessa lngua ,
considerando-se fatores lingsticos e de ordem scio-histrica e
demogrfica, bem
como fatores de naturezas outras, possibilitem a estruturao de
um quadro
constitutivo delineado da lngua portuguesa nas terras
brasileiras. Esses estudos,
no entanto, no podem deixar de atentar para o fato sinalizado
por Mateus (2006,
p. 77) de que a actividade lingstica de cada indivduo [...] um
fator de
identificao cultural, mas no uso, e pelo uso, que dela faz o
indivduo.
Ora, a voz de todos aqueles que estiveram em contato com o
portugus
durante a constituio da variedade brasileira tem como corolrio
a
interpenetrao das referncias culturais dos povos (idem, p. 76)
falantes das
diversas lnguas. Portanto, a configurao do PB requer tambm que
se considere
a diversidade cultural entre Portugal e Brasil.
Sob esse prisma, possvel alargar a noo de confluncia de motivos,
e
entender que a voz africana e afro-descendente sobre o portugus
tem muito a
contar na direo de novas proposies. O trabalho do pesquisador,
pelo visto,
deve ser o de perscrutao afinada com o requinte orquestral, de
maneira a sair do
mdulo de estudos cromticos para o de estudos diatnicos, ou seja,
sair de uma
escala semitonizada de espao e tempo entre fatos lingsticos
registrados em
perodos distintos da scio-histria brasileira, para montar uma
escala capaz de
reconstruir/esboar numa ordem natural, portanto numa seqncia
ordenada, os
fatores lingsticos e scio-histricos do portugus brasileiro.
Mutatis mutandis, h muito por fazer, opus est facto!
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