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DLCV João Pessoa V. 6 Nº 1 Jan/Dez 2008 190 p ISSN 1679-6101 D D L L C C V V editada por Jan Edson Rodrigues-Leite Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas
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LÍNGUA-CULTURA-SOCIEDADE EM CANGACEIROS DE JOSÉ LINS DO REGO

Jan 25, 2023

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Nº 1

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ISSN 1679-6101

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editada por Jan Edson Rodrigues-Leite

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© 2008 by DLCV Direitos reservados ao Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas

Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorização expressa dos autores e do editor

Capa, Editoração e preparação dos originais: Jan Edson Rodrigues-Leite Revisores: Jan Edson Rodrigues-Leite

Maria Ester Vieira de Sousa Amador Ribeiro Neto

Juvino Maia Thiago Barros Anna Mayra Teófilo Política Editorial: A Revista do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas (Língua, Lingüística & Literatura) tem como objetivo divulgar estudos de caráter teórico ou aplicado, nas áreas de Lingüística, Literaturas e Letras Clássicas, priorizando contribuições inéditas. Lingüística, Língua e Literatura congrega artigos de professores do DLCV, de outros Departamentos e de outras Instituições, além de textos produzidos por alunos de pós-graduação, garantindo, assim, efetiva diversidade de temas e a livre afiliação teórica dos autores, não obstante sem perder de vista a qualidade da discussão através da rigorosa seleção dos textos submetidos à publicação.

Os trabalhos poderão ser submetidos na forma de Artigo, Ensaio e Resenha e serão avaliados anonimamente por dois pareceiristas do Conselho Editorial ou consultores científicos da Revista. Em caso de pareceres discrepantes, um terceiro parecer será solicitado pelo Editor. Ao enviar o material para publicação, o autor está automaticamente concordando com as diretrizes editoriais da Revista do DLCV e, além disso, cedendo os direitos autorais relativos aos trabalhos publicados.

DLCV. Língua, Lingüística & Literatura: Revista do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB

Vol. 6, n.1 Janeiro a Dezembro/2008, 190 p. Anual

Impressão: 2009

ISSN 1679-6101

I. Lingüística II. Literatura

CDU: 801 869.(81) (05)

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DLCV é uma publicação do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal da Paraíba.

COMISSÃO EDITORIAL: Jan Edson Rodrigues-Leite (Presidente)

Maria Ester Vieira de Sousa (Lingüística) Amador Ribeiro Neto (Literatura) Juvino Alves Maia Jr. (Clássicas)

CONSELHO EDITORIAL: Amador Ribeiro Neto (UFPB)

Carla Lynn Reichmann (UFPB) Dermeval da Hora (UFPB)

Dulce do Carmo Franceschini (UFU) Egon de Oliveira Rangel (PUC-SP)

Fabrício Possebon (UFPB) Henrique Murachco (USP)

Kazue Saito Monteiro de Barros (UFPE) Lucienne Claudete Espíndola (UFPB)

Luiz Antonio Marcuschi (UFPE) Marcos Bagno (UnB)

Marcus Antonio Rezende Maia (UFRJ) Maria Auxiliadora Bezerra (UFCG)

Maria Bernadete Fernandes de Oliveira (UFRN) Maria Cristina Lobo Name (UFJF)

Maria das Graças Carvalho Ribeiro (UFPB) Maria Lúcia Castanheira (UFMG)

Mário Eduardo Toscano Martelotta (UFRJ) Maura Regina Dourado (UFPB) Milton Marques Júnior (UFPB)

Regina da Costa da Silveira (UniRitter-RS) Regina Ritter Lamprecht (PUC-RS) Rinaldo Nunes Fernandes (UFPB) Rita Maria Diniz Zozzoli (UFAL)

Socorro de Fátima Pacífico Barbosa (UFPB) Stella Maris Bortoni-Ricardo (UnB)

Valentin Facioli (USP) Zélia Monteiro Bora (UFPB)

REALIZAÇÃO:

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APRESENTAÇÃO

O sexto volume da Revista DLCV – Língua, Lingüística & Literatura que ora apresentamos traz contribuições inéditas em diversas áreas da Linguística produzidas por professores de várias Instituições de Ensino Superior no Brasil e de alunos de pós-graduação vinculados a essas instituições.

A publicação deste número temático em Linguística coincide com a organização, em João Pessoa, do VI Congresso Internacional da Associação Brasileira de Linguística e do XIX Instituto de Linguística nas dependências da Universidade Federal da Paraíba e sob a organização de professores do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas.

Nos quarenta anos da ABRALIN, comemorados em 2009, as áreas de investigação em Linguística tornaram-se mais diversas e numerosas do que se podia prever em 1969. Com isso, a produção acadêmica rotulada sob um dos diversos campos da Linguística proliferou de tal forma a exigir dos editores de periódicos e avaliadores um cuidado especial na apreciação dos resultados das pesquisas nessa ciência, sejam elas básica, aplicada ou experimental.

Com esse número, damos uma pequena amostra da diversidade de pesquisas em Linguística ao tempo em que nos indagamos como manter uma unidade ou um padrão de qualidade nos textos que a nós chegam para apreciação. Nossa Revista tenta manter essa qualidade, levando os artigos submetidos a avaliadores e membros do Conselho Editorial, cuja formação acadêmica e expertise os habilitam suficientemente a elevar o nível da produção por meio da criteriosa apreciação da diversidade teórica da ciência lingüística.

Esperamos que, assim como a ABRALIN, a Linguística venha a encontrar entre as diversas áreas do saber produzidos nas Universidades, o respaldo e o reconhecimento de suas pesquisas, pautadas pela seriedade e compromisso não apenas científicos, mas igualmente sociais, de modo a contribuir para o progresso do pensamento deste século e manter o prestígio que a acompanha desde que Ferdinand di Saussure lhe deu a atual configuração.

Neste volume, Maria Alice Tavares contribui para um dos campos de análise linguística – a funcionalista – através da discussão sobre o papel da marcação em casos de sobreposição funcional. Maria Leonor Maia dos Santos retoma uma controvertida discussão sobre as condições de verdade para condicionais austinianos, propondo uma explicação a partir do conceito de restritores de mundos possíveis no campo da análise semântica.

Aline Aver Vanin, por sua vez, propõe a aplicação da Teoria da

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Relevância, de Sperber & Wilson (1995), para explicar as representações mentais e informacionais processadas pelos indivíduos na análise do filme Doze Homens e uma Sentença (Twelve Angry Men). Outra aplicação analítica das teorias lingüísticas pode ser vista no artigo de Mônica de Lourdes Neves Santana sobre a construção das significações presentes em letras de músicas de temática regionalista, apontando para o papel dos modelos cognitivos na percepção e significação do entorno.

No paradigma lingüístico recentemente denominado sociocognitivista, três outros trabalhos propõem relevantes análises e/ou retomadas: Eliza Viegas Brilhante da Nóbrega se propõe a refletir sobre o desenvolvimento da linguagem oral, sobretudo de fenômenos fonológicos, à luz das concepções de Eleanor Rosch sobre linguística e psicologia cognitivas. Maria de Fátima Alves, por sua vez, retoma as teorias cognitivistas de Lev Vygotsky complementadas pelas recentes discussões sociocognitivas, para discutir a construção de conceitos em contextos instrucionais. Já o artigo encabeçado por Adriana Carla Carvalho, discute o processo de categorização feito por indivíduos bilíngues enfocando as influências sociocontextuais das duas línguas na formação dos modos de conceptualizar a realidade.

As teorias de base social e discursiva da Linguística são exploradas nos textos de Ercília Ana Cazarin, que discute as relações entre os processos de identificação e representação política no discurso governamental. Maria Anunciada Nery Rodrigues reflete sobre concepções de linguagem, interação e dialogismo a partir das teorias de Mikhail Bakhtin, adotadas pela Linguística discursivamente orientada. Finalmente, o artigo encabeçado por Mônica Maria Montenegro de Oliveira reflete sobre a relação língua-cultura-sociedade verificando o uso da expressividade referenciada na obra Cangaceiros, de José Lins do Rego.

Com tantas opções, instamos o leitor a apreciar a diversidade teórica aqui apresentada e a fazer as devidas incursões sobre os campos linguisticos com os quais identifica-se, ao tempo em que se beneficia dos insights trazidos pelos autores e autoras das áreas com as quais mantem menos intimidade. Boa leitura!

Jan Edson Rodrigues-Leite Editor

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SUMÁRIO

GRAMÁTICA E ESPECIALIZAÇÃO CONTEXTUAL: O PAPEL DA MARCAÇÃO EM CASOS DE SOBREPOSIÇÃO FUNCIONAL

Maria Alice Tavares _____________________________ 9-24

CONDIÇÕES DE VERDADE PARA CONDICIONAIS AUSTINIANOS

Maria Leonor Maia dos Santos _____________________ 25-38

O CONTEXTO NA TEORIA DA RELEVÂNCIA APLICADO À ANÁLISE DO FILME DOZE HOMENS E UMA SENTENÇA

Aline Aver Vanin _______________________________ 39-52

CIÊNCIA COGNITIVA NA CONCEPÇÃO ROSCHIANA E O DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM ORAL

Eliza Viegas Brilhante da Nóbrega __________________ 53-70

CONSTRUÇÃO DE CONCEITOS EM SALA DE AULA: SABER TRANSMITIDO VERSUS SABER CONSTRUÍDO

Maria de Fátima Alves ____________________________ 71-91

IDENTIFICAÇÃO E REPRESENTAÇÃO POLÍTICA: O INTRINCAMENTO DESSES DOIS PROCESSOS

Ercília Ana Cazarin _______________________________ 93-107

VOZES BAKHTINIANAS: LINGUAGEM E INTERAÇÃO

Maria Anunciada Nery Rodrigues ___________________ 109-121

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CATEGORIZAÇÃO EM FALANTES BILÍNGÜES: INFLUÊNCIAS SOCIOCONTEXTUAIS

Adriana Carla R. Carvalho Jan Edson Rodrigues _____________________________ 123-136

A CONSTRUÇÃO DOS SENTIDOS: UM OLHAR SOBRE O PROCESSO SÓCIO-COGNITIVO EM LETRAS DE MÚSICAS REGIONAIS

Mônica de Lourdes Neves Santana ___________________ 137-161

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Mônica Maria Montenegro de Oliveira Ana Cristina S. Aldrigue____________________________ 163-179

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GRAMÁTICA E ESPECIALIZAÇÃO CONTEXTUAL:

O PAPEL DA MARCAÇÃO EM CASOS DE SOBREPOSIÇÃO FUNCIONAL

Grammar and Contextual Specialization: the role of markedness in functional overlapping situations

Maria Alice Tavares*

Resumo: Como resultado de seus processos de gramaticalização, os conectores coordenativos e, aí

e então

possuem funções sobrepostas no português brasileiro e, portanto, estão sujeitos ao princípio da marcação (GIVÓN, 1995). À luz do suporte teórico da lingüística funcional, investigo como o emprego de e, aí e então na modalidade oral da língua é afetado por esse princípio. Para tanto, levo em conta indícios provenientes das seguintes fontes: tipos de discurso, relações semânticas estabelecidas por e, aí e então e traços semânticos verbais. Os resultados, obtidos através de análise quantitativa, revelam que a marcação contribui para especializações de uso: formas marcadas são mais freqüentes em contextos comunicativos de maior complexidade. Palavras-chave: princípio da marcação; conectores e, aí e então

Abstract:

As an outcome of grammaticalization processes, coordinating connectors e, aí

and então

have overlapped functions in Brazilian Portuguese, and accordingly become subject to the markedness principle (GIVÓN, 1995). From the theoretical support provided by functional linguistics, I investigate how the use of e, aí and então in spoken language is affected by that principle. To this end, I analyze evidences from the following sources: discourse types, semantic relationships established by e, aí and então, and verbal semantic features. The results, obtained through quantitative analysis, show that markedness contributes to specializations of use: marked forms are more frequent in the most complex communicative contexts. Key-words: markedness principle; connectors e, aí

and então

* Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

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1. Introdução

Fundamentada no suporte teórico do funcionalismo norte-americano, focalizo e, aí e então, os conectores coordenativos mais freqüentes no português brasileiro oral. Eles articulam segmentos do discurso em construções com o formato [O(oração)1 conector+O2] (nível de conexão inter-oracional) ou [O1... Conector+O2] (nível de conexão mais frouxo que o inter-oracional: há pausa entre as orações seqüenciadas, representada pelos três pontos), e facilitam a percepção, por parte do ouvinte, do tipo de relação coesiva pretendida pelo falante. Alguns exemplos:

(1) eu jogo bola ... o primeiro campeonato que eu fui foi aqui mesmo na rua ... quem tava jogando era eu e Loamir ... contra Klibson e Welton ... então

foi expulso Loamir aí

ficou só Klibson e Welton ... aí

eu joguei sozinho ... e

nós ganhamos de um a zero ... então

fomos pras semi-finais e

ganhamos de dois a zero ... e

foi pra final e

ganhamos nos pênaltis (Corpus D&G, p. 422)

E, aí e então tornaram-se conectores através de processos de gramaticalização (cf. seção 2). E é proveniente do conector latino et, por sua vez derivado do advérbio do latim arcaico et/eti ‘também’. Já aí, oriundo do advérbio latino ibi ‘nesse lugar’ ou ‘nesse momento’, e então, oriundo do advérbio latino intunc ‘nesse momento’, receberam, em português, papéis adverbiais de natureza dêitica e anafórica espacial e/ou temporal, dos quais são derivados seus usos como conectores. Atualmente, e, aí e então são freqüentemente utilizados como conectores coordenativos, e, nesse papel, atuam na indicação de continuidade e consonância entre segmentos do discurso seqüenciados segundo uma ordenação temporal ou discursiva. Trata-se, portanto, de um caso de sobreposição funcional:1 e, aí e então passaram, via gramaticalização, a desempenhar uma mesma função.

Formas em sobreposição funcional estão sujeitas ao princípio da marcação, pois tendem a manifestar diferentes graus de complexidade.

1 Com base em dados do latim e das várias fases da língua portuguesa, Tavares (2003) faz uma análise das etapas de gramaticalização de e, aí e então, além de discutir a questão de sua categorização como conectores coordenativos.

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Face a esse fato, tenho os seguintes objetivos: (i) averiguar o papel da marcação no fenômeno de sobreposição funcional que envolve os conectores e, aí e então; (ii) contribuir para a descrição e a análise do português falado na Região Nordeste.

Para tanto, investiguei uma amostra constituída por 32 produções orais informais feitas por oito indivíduos nativos de Natal (RN), quatro de 9 a 11 anos da 4ª série do ensino fundamental e quatro de 18 a 20 anos do 3° ano do ensino médio.2 Cada um deles produziu discursos dos tipos narrativa de experiência pessoal, relato de procedimento, descrição de local e relato de opinião.3 Nessa amostra, encontrei 731 ocorrências de e, aí e então no papel de conectores e as analisei consoante três fatores ligados à articulação de partes do discurso: tipos de discurso, relações semânticas expressas pelos conectores e traços semânticos verbais. Interpretei os resultados valendo-me do princípio da marcação.

Nas próximas seções, sintetizo pressupostos teóricos, relaciono o princípio de marcação aos conectores e, aí e então, apresento a análise dos resultados e discorro sobre o papel do princípio da marcação em situações de sobreposição funcional. Por fim, listo as referências.

2. Gramática, gramaticalização e marcação

Para o funcionalismo, a gramática deriva das atividades sociais cotidianas em que se engajam os seres humanos. Recursos retóricos envolvendo itens lexicais e/ou gramaticais, inicialmente criativos e expressivos, tornam-se habituais por serem freqüentemente utilizados em certo tipo de contexto interacional (HOPPER, 1987). Esse processo de rotinização gramatical é conhecido como gramaticalização. A gramática é, portanto, um repertório de estratégias rotinizadas de construção de discursos. Segundo Thompson e Couper-Kuhlen (2005), os padrões gramaticais habituais suprem a necessidade humana de seguir modos rotinizados para agir no mundo: certos tipos de ação desencadeiam certos tipos de gramática. Para as

2 Os textos em questão são parte integrante do Corpus Discurso & Gramática – a língua falada e escrita na cidade do Natal (CUNHA, 1998).

3 Para a coleta de dados nas narrativas de experiência pessoal, contei com o auxílio do bolsista de iniciação científica Rossini Santiago Silva (PIBIC/UFRN).

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autoras, explicar como as pessoas usam a língua exige que se considere a gramática como interacionalmente sensível e cognitivamente realística.

Forças universais de base cognitivo-comunicativa influenciam o processo de rotinização gramatical. Essas forças são entendidas, pelo funcionalismo, como princípios que regem a gramática. Entre eles, estão a iconicidade, a marcação, o dinamismo comunicativo e a coerência temática. Neste estudo, o foco recai sobre a marcação.

Givón (2001) enumera as principais categorias ou funções gramaticais (ou, nas palavras do autor, domínios funcionais) existentes nas línguas humanas. São as seguintes: a) papéis gramaticais (sujeito, objeto direto, etc); b) definitude e referência; c) anáfora, pronome e concordância; d) tempo, aspecto, modalidade e negação; e) de-transitividade; f) topicalização; g) foco e contraste; h) relativização; i) atos de fala; j) junção oracional e subordinação.

É comum que exista, na mesma etapa histórica de uma língua, mais do que um único recurso formal para codificar uma função particular. Esse é o caso da coordenação de segmentos do discurso em relação de continuidade e consonância, uma categoria que agrega os conectores e, aí e então, seus membros mais freqüentes na fala brasileira atual. Em termos da proposta de Givón, trata-se de um domínio funcional que integra o domínio mais amplo da junção oracional (em oposição à subordinação).

Formas que codificam uma mesma função gramatical estão sujeitas ao princípio da marcação, segundo o qual “categorias que são estruturalmente mais marcadas tendem também a ser substantivamente mais marcadas” (GIVÓN, op. cit., p. 28). A proposição desse princípio tem origem na Escola de Praga, como um desdobramento da noção saussureana de valor lingüístico. Aplicou-se, inicialmente, a casos de oposição binária do tipo [+/-]: um membro do par tem presente uma propriedade e o outro membro a tem ausente. A presença da propriedade implica a presença de uma marca formal que a codifique lingüisticamente. Um exemplo é o da relação singular-plural dos nomes em português: o substantivo casa, por exemplo, não é marcado para plural (é -plural), ao passo que o substantivo casas é marcado (é +plural), o que significa que é constituído por mais material lingüístico – a desinência –s, que indica pluralização. Posteriormente, a marcação passou a ser associada à complexidade e à previsibilidade: significados e funções complexos e menos previsíveis

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tendem a ser codificados através de formas compostas por mais ‘marca’, isto é, formas compostas por um maior número de material lingüístico – fonemas, morfemas, palavras.

Nessa linha, Givón (op. cit.) aponta a existência de uma relação icônica entre o processamento cognitivo da língua e sua representação material no discurso, no sentido de que processos de produção mais complexos são codificados lingüisticamente através de formas materiais mais marcadas. Segundo o autor, formas que pertencem a uma mesma categoria gramatical diferenciam-se quanto ao grau de marcação: as marcadas, isto é, mais extensas, constituídas por mais material lingüístico, tendem a ser utilizadas em contextos comunicativos complexos, que exigem processamento cognitivo complexo. Como contraparte, as formas não marcadas, isto é, menores em sua constituição material, tendem a ser utilizadas em contextos mais simples. Ou seja, as formas gramaticais podem vir a receber usos especializados, particularizados para certos contextos em razão de seu grau de marcação lingüística.

Givón (op. cit.) define critérios para a identificação de formas marcadas: (1) complexidade estrutural: a forma marcada costuma ser mais complexa (em termos de extensão e/ou número de morfemas) que a não marcada; (2) distribuição de freqüência: a forma marcada costuma ser menos freqüente que a não marcada, o que lhe rende maior saliência cognitiva; (3) complexidade cognitiva: a forma marcada costuma ser cognitivamente mais complexa, aumentando a necessidade de atenção, o esforço mental e o tempo de processamento.4 Esses critérios podem ser aplicados não apenas a casos de oposição binária, mas também a casos de categorias que agrupam mais de duas formas (como neste estudo), pois possibilitam a organização escalar das formas segundo os diferentes graus de marcação que apresentam.

4 Os critérios (1) e (2) referem-se a propriedades concretas, observáveis no discurso, e, por isso, mais facilmente mensuráveis. Embora maior complexidade estrutural (critério 1) e baixa freqüência (critério 2) possam ser consideradas indícios de que uma certa forma é mais complexa em termos de processamento cognitivo do que outra de mesma função, apenas testes de natureza cognitiva podem mensurar mais diretamente indícios referentes ao critério 3 (por exemplo, testes que avaliem velocidade de processamento de itens lingüísticos).

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3. Conectores e o princípio da marcação

Com o intuito de distinguir os conectores e, aí e então quanto à marcação, apliquei os critérios propostos por Givón (2001), do que resultou a organização da seguinte escala de marcação crescente: e

então. E é o menor dos três conectores, além de ser átono, em

oposição a aí e então, que são tônicos; aí é mediano no que diz respeito à extensão formal, e então é o maior dos conectores, possivelmente exigindo mais atenção e tempo de processamento que os demais. Além disso, e é o mais recorrente, sendo responsável por 393 dados (54%) do total de 731 dados encontrados na amostra. Aí possui freqüência de 221 (30%) e então é o menos freqüente, com 117 ocorrências (16%).

Se uma forma gramatical é mais marcada do que outra de mesma função, será preferencialmente utilizada em contextos de produção lingüística mais complexos, que exigem mais esforço em termos de processamento cognitivo. Para averiguar o comportamento de e, aí e então a esse respeito, diferenciei fatores ligados a seus contextos de uso quanto a graus de complexidade, e tomei tais elementos como possíveis indicadores de situações de comunicação mais e menos complexas.

Cada situação de comunicação é caracterizada por um número infinito de aspectos. Neste estudo, selecionei para análise apenas fatores ligados à utilização de e, aí e então na fala cotidiana que melhor se sujeitam a um controle sistemático, incluindo quantificação de dados, necessária para a obtenção de informações precisas. São eles: (i) tipos de discurso, (ii) relações semânticas sinalizadas por e, aí e então e (iii) traços semânticos dos verbos principais das orações introduzidas por esses conectores.5 Tais elementos podem ser relacionados a diferentes graus de complexidade, como veremos na próxima seção.

Na seção 4, pelo controle da distribuição dos conectores relativamente aos elementos listados acima, averiguo se e, o menos marcado, tende a ser utilizado em situações de comunicação menos complexas, e, em contraparte, se então, o mais marcado, tende a estar relacionado a situações mais complexas. Na seção 5, discuto a questão

5 Em minha pesquisa, também considerei elementos relativos à identidade social do falante, mas não apresento aqui resultados referentes a eles por questão de espaço.

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da especialização de formas gramaticais para contextos de uso particulares, fenômeno que é afetado pelas diferenças em termos de marcação existentes entre formas em sobreposição funcional.

4. E, aí e então: uma questão de marcação

Esta seção é subdivida em três partes, cada uma destinada a um fator fundamental das situações comunicativas em que se empregam os conectores e, aí e então: 1) tipos de discurso; 2) relações semânticas; 3) traços semânticos verbais.

4.1 Tipos de discurso

Levo em conta quatro tipos de discurso:

NARRATIVA DE EXPERIÊNCIA PESSOAL: Relato em que se conta um ou mais fatos que se passaram em certo tempo e lugar, envolvendo a si mesmo e a outros indivíduos.

(2) era o pastor da igreja que tava ali ... ele poderia ter chamado qualquer outro pastor ... aí

quando ele disse ... “eu vou chamar o pastor Martins porque ele é pastor dessa pessoa” ... aí

eu já fiquei tremendo nas bases ... aí ... é ... ele disse bem assim ... “todo mundo já sabe quem é?” aí

a galera ficou calada e não sei que ... aí

eu só olhei para ele e

só faltei chorar (Corpus D&G, p. 180).

RELATO DE PROCEDIMENTO: Descrição das etapas de realização de alguma tarefa ou processo, caracterizando-se pela exposição dos eventos em ordem cronológica e pela ênfase na ação.

(3) aí

passa pro dois ... aí o dois ... a velocidade do giro do dois ... do floculador dois vai ser menor do que do um ... (...) aí

vai pro terceiro floculador ... floculador três aí

a velocidade é menor ainda ... (Corpus D&G, p. 197).

DESCRIÇÃO DE LOCAL: Exposição detalhada de um local em suas peculiaridades e contornos.

(4) a varanda onde a gente faz a nossa sala íntima para ver televisão ... assistir filme ... essas coisas ... então

lá tem duas cadeiras grandes e duas redes armadas para a gente ver televisão ... e

tem uma mesinha com televisão ... (Corpus D&G, p. 89)

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RELATO DE OPINIÃO: Apresentam-se considerações sobre certo

tema, evidenciando opinião acerca do mesmo.

(5) constantemente tá sendo seqüestrado pessoas ... e

eles num querem saber não ...

apanham ... né? essas pessoas ... ficam em ... em lugares super ... super desconfortáveis ... apanhando ... e

até matam ... num quer nem saber ... então

seqüestro também ... era pra ser pena de morte ... (Corpus D&G, p. 246).

Para definir o grau de complexidade de cada tipo de discurso, comparei-os quanto a propriedades gerais: (i) tempo e aspecto verbais mais recorrentes; (ii) natureza do tipo de informação predominante. A narrativa caracteriza-se pela seqüenciação cronológica de eventos passados, temporalmente delimitados, correlacionando-se ao pretérito perfeito, seqüencial e ancorado no evento, e ao aspecto perfectivo, compacto e completo. Nas línguas em geral, esse tempo e aspecto, além de serem os mais freqüentes, costumam ser codificados por formas de menor marcação, indícios de que exigem menos esforço cognitivo em termos de processamento e percepção (GIVÓN, 2001).

Pode-se opor à narrativa o relato de opinião, caracterizado pela exposição de opiniões acerca de determinado fato ou idéia, correlacionando-se com o tempo presente, não seqüencial e ancorado na fala, e o aspecto imperfectivo, durativo e incompleto. São esses um dos tempos e o aspecto verbal que tendem, translingüisticamente, a ser codificados por formas mais marcadas (GIVÓN, op. cit.). Como o relato de opinião envolve a exposição de pontos de vista, o que é relativamente complexo em nível de processamento e percepção, bem como envolve o uso de tempo e de aspecto que geralmente recebem expressão lingüística mais marcada, considero-o o tipo de discurso mais complexo. Em contraste, na narrativa, predominam verbo e aspecto de expressão lingüística menos marcada e seqüenciação de eventos delimitados, completos, e, por isso, mais facilmente processáveis. A narrativa é, portanto, o tipo de discurso menos complexo.

Os demais tipos de discurso podem ser considerados intermediários quanto ao grau de complexidade que os caracteriza. No relato de procedimento, ocorre a seqüenciação das etapas de um processo, geralmente no presente. Esse tipo de discurso, embora se aproxime da narrativa pelo traço de seqüenciação temporal, está vinculado a um tempo verbal que tende a ser codificado via maior marcação lingüística. Além disso, o relato de procedimentos costuma

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apresentar eventos não delimitados, durativos, conseqüentemente, mais pesados para o processamento cognitivo. É, assim, mais complexo que a narrativa. A descrição também é mais complexa que a narrativa, por envolver a exposição de características de um elemento, comumente no pretérito imperfeito ou no presente, tempos verbais tipicamente de codificação lingüística mais marcada.

A hipótese é que e, o conector menos marcado, deve ser mais freqüente na narrativa, ao passo que então, o conector mais marcado, deve aparecer mais no relato de opinião. Os resultados confirmam essa hipótese, revelando que e é bastante propenso a ocorrer em narrativas de experiência pessoal (com 41% de seus dados) e então predomina em relatos de opinião (41%). Por sua vez, aí, de marcação intermediária, destaca-se em narrativas e em relatos de procedimentos (51% e 35% de seus dados, respectivamente). Observe-se a tabela:

E

ENTÃO

TRAÇOS VERBAIS

Freq.

%

Freq.

%

Freq.

%

Narrativa exp.

Pessoal

160

41

114

51

18

15

Rel. de procedimento

80

20

77

35

32

27

Descrição de local

79

20

13

06

19

16

Relato de opinião

74

19

17

08

48

41

TOTAL

393

100

221

100

117

100

Tabela 1: Distribuição de e, aí e então – tipos de discurso

4.2 Relações semânticas

Identifiquei as seguintes relações semânticas estabelecidas entre os segmentos interligados por e, aí e então:

SEQÜENCIAÇÃO TEXTUAL: Sinalização da ordem pela qual as unidades conectadas sucedem-se ao longo do tempo discursivo, salientando o encadeamento de uma porção textual anterior com uma posterior.

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(6) cidade interiorana ... né ... tem basicamente um centro da cidade ... né ... uma igreja ... é ... um comerciozinho pequeno ... né ... corresponde ao tamanho da cidade ... que é pequena ... e

tem algumas fazendas próximas ... entre elas a fazenda da ...

minha tia-avó Guiomar ... né ... que é um ambiente superagradável ... uma casa pequena ... né ... pequena e rústica ... (Corpus D&G, p. 212).

SEQÜENCIAÇÃO TEMPORAL: Apresentação de eventos no texto de acordo com a ordem em que ocorreram no tempo.

(7) chegou meu irmão ... aí

começou a brigar comigo ... aí

a gente foi pro parque de

novo... aí

brincamo ... brincamo ... brincamo ... (Corpus D&G, p. 394)

CAUSA-CONSEQÜÊNCIA: Introdução de informações que representam conseqüência em relação a uma causa mencionada previamente.6

(8) eu acho que as pessoas lá fora ... elas têm medo de ... de repente dizer que estão erradas ... né ... então

elas preferem não crer ... preferem não acreditar ... enganar os outros dizendo que não acreditam ... porque na verdade ... acho que num tem ... essa história de uma pessoa ... assim ... completamente ateu (Corpus D&G, p. 288).

A seqüenciação textual é a menos complexa entre as relações semânticas aqui consideradas: indica apenas a progressão de orações ao longo do tempo discursivo, assinalando a ordem seqüencial pela qual elas são apresentadas e desenvolvidas. Trata-se de uma estratégia puramente coesiva, que não dispara, no interlocutor, a necessidade de busca por matizes de significação outros além da indicação de que a oração que introduz relaciona-se ao mesmo tópico/assunto que a oração anterior. Representa, portanto, um processamento cognitivo mais rápido e econômico.

A seqüenciação temporal possui um traço de significado a mais, pois indica a cronologia dos eventos narrados, colocando em evidência não apenas a ordenação discursiva, mas também a ordenação temporal cronológica. Não exige, por conseguinte, um processamento cognitivo árduo, uma vez que está relacionada a experiências mais básicas dos seres humanos com a realidade

6 Nas gramáticas normativas, essas três relações costumam ser incluídas sob o rótulo de “coordenação aditiva” e ilustradas com o conector e. Vejam-se alguns exemplos: Deram o braço e desceram a rua. Tio Cosme acomodava as carnes, e a besta partia a trote (CUNHA, 1994, p. 534 e 554); O galho partiu e o menino caiu da árvore. Eu li a carta e entreguei-a a Pedro (SAID ALI, 1969, p. 105 e 133).

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circundante, com o mundo que se oferece aos sentidos. Por essa razão, a seqüenciação temporal pode ser tomada como pouco complexa, embora, por conta do traço temporal, seja mais complexa que a seqüenciação textual.

A relação de causa-conseqüência apresenta um grau de complexidade maior, já que estão em jogo informações que representam conseqüência em relação ao que foi dito anteriormente. O estabelecimento dessa relação requer uma elaboração mental complexa, deixando vir à tona um viés argumentativo, vinculado mais ao mundo do dizer que ao mundo concreto.

A hipótese é a seguinte: como a seqüenciação textual é menos complexa, deve ser codificada preferencialmente por e, menos marcado. Então, mais marcado, deve exibir especialmente causa-conseqüência. Os resultados, apresentados na tabela 2, confirmam essa hipótese: 70% das ocorrências de e são vinculadas à relação de seqüenciação textual e 60% das ocorrências de então são vinculadas à relação de causa-conseqüência. Aí, conector de grau de marcação intermediário, predomina na sinalização de uma relação de grau de complexidade intermediária, a seqüenciação temporal (42%).

E

ENTÃO

RELAÇÕES

Freq.

%

Freq.

%

Freq.

%

Seqüenciação textual

274

70

75

34

41

35

Seqüenciação

temporal

87

22

93

42

6

05

Causa-conseqüência

32

08

53

24

70

60

TOTAL

393

100

221

100

117

100

Tabela 2: Distribuição de e, aí e então – relações semânticas

4.3 Traços semânticos verbais

Schlesinger (1995) organiza os verbos de acordo com os traços semânticos que manifestam, considerando, em especial, o grau de atividade que indicam. Reorganizei essa categorização, composta por

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onze traços verbais, adicionando-lhe mais quatro, elocução, atenuação, existência e estado:

1. Momentâneo

-

refere-se à atividade repentina, de curta duração: saltar,

chutar, bater, derrubar, golpear 2. Atividade específica

-

evoca uma imagem específica: escrever, jogar,

beber, desenhar, nadar, andar, sorrir 3. Elocução -

precede a citação ou discurso direto: dizer, falar, responder

4. Atividade difusa

-

não evoca uma imagem específica: aposentar-se,

trabalhar, aprender, mendigar, estudar 5. Instância -

posição corporal estática: deitar, recostar, sentar

6. Estímulo mental

-

o sujeito da oração é o estímulo da experiência mental de outrem: impressionar, agradar, surpreender, assustar, espantar 7. Evento transitório intencional

-

indica se o sujeito permanece em certo lugar: permanecer, residir, situar, estar (em um lugar) 8. Evento transitório não intencional

-

refere-se a ações

não intencionais: morrer, cair, desmaiar, adormecer, acordar, quebrar (não intencional) 9. Processo

-

mudança não intencional sofrida por um corpo (mais ou menos animado): deteriorar, crescer, amadurecer, transformar, ferver 10. Experimentação mental

-

o sujeito da oração é o experienciador: adorar, odiar, desejar, pensar, lembrar, entender 11. Atenuação

-

distanciamento ou suavização da opinião: achar, pensar

12. Relacional

-

representa relações assinaladas pelos homens em seu processo de percepção da realidade: depender de, merecer, precisar; servir como, assemelhar-se, causar, igualar, determinar, faltar (algo) 13. Sensação corporal

-

sensação física: machucar-se, doer, ferir, sofrer

14. Existência

-

ter, haver, existir

15. Estado

-

ser, estar, parecer, ter (olhos azuis)

Quadro 1: Hierarquia dos traços semânticos verbais

Nessa hierarquia, as classes superiores referem-se a verbos cujo sujeito pode ser dito engajado em uma atividade, e as classes inferiores são as de verbos que indicam pouca atividade. Assim, quanto mais alta a posição do verbo na escala, maior a atividade envolvida e, como contraparte, quanto mais baixo está situado o verbo, menor o grau de atividade que pode ser atribuído a seu sujeito.

Uma vez que não obtive dados de e, aí e então introduzindo orações com verbos de estímulo mental e com verbos de sensação corporal, considerei apenas os treze tipos restantes. Para facilitar a análise, distribuí os verbos desses treze tipos em cinco categorias:

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a) Atividade 1: momentâneo, atividade específica e elocução, que se referem a ações físicas intencionais executadas com o corpo, envolvendo um ser físico que age no mundo. b) Atividade 2: atividade difusa, que envolve ação física intencional menos circunscrita e com menor grau de movimento; e instância, que indica mudança ou preservação intencional de posição física. c) Atividade 3: transitório intencional, transitório não-intencional e processo, que se organizam em uma escala que vai da perda de movimento e fixidez, mas com manutenção da intencionalidade, à perda da mobilidade e da intencionalidade, denotando ações não intencionais ou mesmo processos físicos. d) Atividade 4: Verbos de experimentação mental codificam as atividades mentais experimentadas, intencionalmente ou não, pelos seres humanos. Verbos de atenuação estão ligados à relação do falante com seu discurso, suavizando a própria opinião acerca de fatos. Verbos relacionais representam relações complexas assinaladas pelos homens em seu processo de percepção da realidade. e) Atividade 0: existência e estado. De acordo com Schlesinger (1995), esses verbos são os mais generalizados, pouco significando além de interligação entre sintagmas. Transmitem informação em conjunção com seus complementos, e quase nada quando isolados.

Qual a relação do conector com o verbo principal da oração que introduz? Os traços semânticos verbais servem como diagnóstico do grau de complexidade da informação codificada pela oração. Os verbos de Atividade 1 são pouco complexos, pois estão ligados às experiências básicas dos seres humanos com a realidade exterior. Os verbos de Atividade 4 são os mais complexos, por não codificarem relações voltadas ao mundo externo, e sim atividades mentais, mais difíceis de processar. Já os verbos de Atividade 0 são os menos complexos, visto que são altamente genéricos, indicando apenas haver relação entre os componentes da oração por eles interligados.

A hipótese é que e deve predominar em orações cujo verbo principal seja pouco complexo, e então em orações cujo verbo principal seja bastante complexo. Os resultados, na tabela 3, confirmam essa hipótese. E tende a introduzir orações nucleadas por verbos de Atividade 0 e 1, então destaca-se em orações de verbos de Atividade 4. Já aí, de média marcação, é mais freqüente em orações de verbos de média complexidade, que codificam Atividades 1 e 2.

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E

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TRAÇOS VERBAIS

Freq.

%

Freq.

%

Freq.

%

Atividade 0

148

38

27

12

10

08

Atividade 1

112

29

77

35

16

14

Atividade 2

48

12

54

24

16

14

Atividade 3

33

08

32

15

24

20

Atividade 4

52

13

31

14

51

44

TOTAL

393

100

221

100

117

100

Tabela 3: Distribuição de e, aí e então – traços verbais

5. Marcação e especialização contextual

A marcação é um dos fatores motivadores da especialização de formas gramaticais para contextos de uso particulares. Processos de produção lingüística mais complexos tendem a ser codificados através de formas (mais) marcadas. Nos casos de sobreposição funcional, caracterizados pela existência de duas ou mais formas codificadoras de uma mesma função gramatical, as formas de maior marcação costumam ser especializadas para contextos comunicativos mais complexos, e as de menor marcação para contextos menos complexos.

E, aí e então tornaram-se conectores coordenativos de função sobreposta através da gramaticalização. Quando uma forma passa a integrar uma categoria gramatical, tende a ser empregada em contextos compatíveis com seu grau de marcação, que é avaliado, pelos usuários da língua, em comparação com as demais formas passíveis de desempenhar a mesma função.

É o que se observa no caso dos conectores sob estudo. E, o menos marcado, predomina em contextos de menor complexidade, do que é indício sua grande freqüência em narrativas de experiência pessoal, na indicação da relação de seqüenciação textual e na introdução de orações com verbos de Atividade 0. Em contraste, então, o mais marcado, recebe destaque em contextos de maior complexidade, o que se reflete em sua maior taxa de ocorrência nos relatos de opinião, na sinalização da relação de causa-efeito e na introdução de orações com verbos de Atividade 4.

Por sua vez, aí, o conector mais recente entre os aqui enfocados,

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possui grau médio de marcação e, de acordo, é mais utilizado em contextos de média complexidade, como no relato de procedimento, na codificação da seqüenciação temporal e na introdução de orações com verbos de Atividade 1 e 2. A exceção é seu grande uso nas pouco complexas narrativas de experiência pessoal. A utilização de aí tanto em contextos de média quanto de baixa complexidade não foge, entretanto, ao padrão de distribuição esperado para um item dotado de grau de marcação intermediário, que lhe garante maior mobilidade.

Concluo, pois, afirmando que, no caso da situação de sobreposição funcional envolvendo e, aí e então, o princípio da marcação é fundamental para que se teçam explicações para as tendências de uso singulares de cada conector. E aponto que, no que diz respeito á gramática em geral, é grande a influência da marcação sobre a organização das relações entre funções, formas e contextos de uso. Tal influência é referida por vários estudos abordando diferentes categorias gramaticais, os quais têm constatado haver correlação entre o grau de marcação de formas e o uso que se dá a elas nas situações de comunicação do dia-a-dia: formas mais marcadas tendem a predominar em contextos de maior complexidade, e formas menos marcadas em contextos de menor complexidade (vejam-se, por exemplo, Andersen, 2001; Givón, 2001; Gryner, 2002; Mollica, 2003; Tavares, 2004; Görski, Freitag, 2006). Esses resultados ratificam o poder explanatório do princípio da marcação quanto ao padrão típico de rotinização das relações entre formas gramaticais e contextos de uso: uma forma tende a ser utilizada em contextos de maior ou menor complexidade de acordo com seu grau de marcação.

REFERÊNCIAS

ANDERSEN, H. (Ed.) (2001) Actualization: linguistic change in progress. Amsterdam: John Benjamins. CUNHA, C. F. da (1994) Gramática da língua portuguesa. 12ª ed. Rio de Janeiro: MEC-FAE. CUNHA, M. A. F. (Org.). (1998) Corpus Discurso & Gramática – a língua falada e escrita na cidade do Natal. Natal: EDUFRN. GIVÓN, T. (2001) Syntax. v. 1. Amsterdam: John Benjamins. GORSKI, E.; FREITAG, R. M. K. (2006) Marcação e comportamento sociolingüístico de marcadores discursivos interacionais na fala de Florianópolis. In: VANDRESEN, P. (Org.). Variação, mudança e contato

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lingüístico no português da região sul. Pelotas: EDUCAT. p. 28-50. GRYNER, H. (2002) Emergência do futuro perifrástico no português carioca: o princípio da marcação. Veredas, v. 6, n. 2, p. 149-160. HOPPER, P. (1987) Emergent grammar. Berkeley Linguistics Society, v. 13. p. 139-157. MOLLICA, M. C. (2003) Marcação e estabilidade na mudança lingüística. In: RONCARATI, C.; ABRAÇADO, J. (Orgs.). Português brasileiro: contato lingüístico, heterogeneidade e história. Rio de Janeiro: 7Letras. SAID ALI, M. (1969) Gramática secundária da língua portuguesa. 8ª ed. São Paulo: Melhoramentos. SCHLESINGER, I. (1995) Cognitive space and linguistic case. Cambridge: Cambridge University Press. TAVARES, M. A. (2003) A gramaticalização de e, aí, daí

e então. Florianópolis, UFSC. Tese (Doutorado em Lingüística). _____ (2004) Reflexos da fala do Rio Grande do Sul em 1940: uma análise sociofuncionalista em “As Vinhas da Ira”. In: CHRISTIANO, M. E. A. et al. (Orgs.). Funcionalismo e gramaticalização. João Pessoa: Idéia. p. 95-130. THOMPSON, S. A.; COUPER-KUHLEN, E. (2005) The clause as a locus of grammar and interaction. Discourse Studies, v. 7, n. 4-5. p. 481-506.

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CONDIÇÕES DE VERDADE PARA CONDICIONAIS

AUSTINIANOS*

Truth Conditions for Austin Conditionals

Maria Leonor Maia dos Santos**

Resumo:

Os condicionais

austinianos, como “Se você quer papel, tem na primeira gaveta”, têm sido apresentados na literatura como uma evidência da inadequação da semântica de condições de verdade para lidar com condicionais, especialmente aqueles nos quais os aspectos pragmáticos da interpretação são tão ricos. A inadequação origina-se, sustentamos aqui, do uso do condicional material para fazer a representação, e não da inexistência de intuições regulares acerca das condições de verdade dessas estruturas. Seguindo propostas de Lewis (1975) e Kratzer (1986), fazemos a representação dos condicionais como restritores de mundos possíveis, e propomos que, pelo menos para certos exemplos conhecidos, não existe conflito entre as intuições dos falantes e o que é previsto pela formalização. Palavras-chave: semântica de condicionais, semântica de condições de verdade, condicionais austinianos, restritor de mundos possíveis

Abstract:

The so-called Austin

conditionals, or biscuit conditionals, such as “If you want paper, there is some in the first drawer”, have been presented in the literature as an evidence of the inadequacy of truth-conditional semantics to deal with conditionals, especially those for which the pragmatic aspect of the interpretation is so rich. The inadequacy stems, I argue, from the use of the material conditional as a representation, but not from the lack of regular intuitions about the truth conditions of those structures. Following Lewis (1975) and Kratzer (1986) I represent if-clauses as restrictors of possible worlds, and propose that, for some famous examples at least, there is no conflict between speaker intuitions and what the formal analysis predicts. Key-words: conditionals, truth-conditional semantics, Austin conditionals, biscuit conditionals, conditionals as restrictors

* Este trabalho retoma parte dos capítulos 1 e 4 de minha tese de doutorado, escrita sob orientação do Prof. Dr. Heronides Moura, e defendida na Universidade Federal de Santa Catarina em 2006.

** Professora da Universidade Federal da Paraíba

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1. Introdução

Dentre os tipos de condicionais, os austinianos acionam procedimentos interpretativos mais pragmáticos do que semânticos, de tal maneira que a existência de condições de verdade para eles é controvertida. O status diferenciado desses condicionais foi observado como parte do debate acerca da utilização do condicional material para representar a semântica dos condicionais lingüísticos. Proponho-me aqui a reanalisar as condições de verdade de alguns exemplos de condicionais austinianos utilizando o restritor de mundos possíveis, na tentativa de mostrar que, abandonado o uso do condicional material, e mesmo aceitando que a maior parte da interpretação dos austinianos seja pragmática, as suas condições de verdade não conflitam com o que é previsto na formalização.

2. Condicionais austinianos

Pelo menos desde o início da década de 1960, os condicionais ditos austinianos1 têm recebido atenção de lingüistas e de filósofos da linguagem. Os austinianos são exemplos de condicionais que obedecem à forma canônica dessas estruturas (se + antecedente + conseqüente) mas que não são naturalmente interpretados segundo os padrões usuais de causa-e-conseqüência e de premissas-e-conclusão. Nos austinianos, o antecedente é usado para indicar uma situação em relação à qual a enunciação do conseqüente seria adequada, ou relevante. O exemplo 1 é a tradução de um exemplo clássico de Austin, o 2 foi criado para este trabalho e 3 foi dito por uma atendente de loja de roupas em João Pessoa, em dezembro de 2006:

Há biscoitos no armário, se você quiser.

Se você quer papel, tem na primeira gaveta.

1 “Austinianos” em homenagem a J. L. Austin, que deu especial atenção a esse tipo de estrutura (apud Ducrot, 1978, p. 178-201; Bennett, 2003, p. 125 e Siegel, 2006, p. 168). São também conhecidos em inglês como “biscuit conditionals” (“condicionais biscoito”), devido ao exemplo de Austin, “There are biscuits on the sideboard, if you want them” (“Há biscoitos no armário, se você quiser”).

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Se você precisar de ajuda, meu nome é Alice.

Em condicionais deste tipo, estudados, por exemplo, por Ducrot (1978, p. 178-201); também Dudman (1986); Sweetser (1991, p. 113-144; Dancygier (1998); Bennett (2003, p. 125, 126) e Siegel (2006), a verdade da estrutura parece ser determinada, unicamente, pela verdade do conseqüente. O exemplo 2 será verdadeiro se houver, realmente, papel na primeira gaveta, mesmo que o interlocutor não queira papel; e 3 será verdadeiro se o nome do falante for Alice, mesmo que o interlocutor não precise de ajuda. Isso fez com que os austinianos fossem utilizados como um argumento contra a formalização por meio do condicional material,2 muito discutida na perspectiva da semântica denotacional. Para vários autores – e essa foi a posição de Ducrot – as dificuldades com as condições de verdade dos austinianos levaram à rejeição total do empreendimento de formalização de condicionais.

O condicional material, que vamos representar pelo símbolo , é um conectivo verifuncional binário, ou seja, o valor de verdade da sentença completa é uma função dos valores de verdade das duas sentenças componentes. A semântica desse conectivo pode ser apresentada em forma de uma tabela:

antecedente

conseqüente sentença completa

verdadeiro verdadeiro verdadeira

verdadeiro falso falsa

falso verdadeiro verdadeira

falso falso verdadeira

Uma sentença que tenha

como conectivo principal (ou seja, “antecedente

conseqüente”) só é falsa quando o antecedente é verdadeiro e o conseqüente é falso. Todas as demais possibilidades de

2 O condicional material é um conectivo de um cálculo de predicados de primeira ordem (aqui, de primeira ordem, clássico, com igualdade). Para apresentação do cálculo, ver Mortari (2001).

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combinação de valores de verdade das partes componentes levam a estruturas verdadeiras. Dessa maneira, supor que os condicionais lingüísticos podem ser adequadamente representados pelo condicional material é supor que um condicional lingüístico só é falso na situação em que o antecedente é verdadeiro e o conseqüente falso. Em todas as outras situações possíveis, o condicional lingüístico seria verdadeiro. Não discutiremos aqui a inadequação do condicional material para representar a semântica dos condicionais lingüísticos em geral, e vamos nos concentrar nos exemplos de austinianos. Os austinianos não obedecem a esse padrão, pois a verdade ou falsidade do antecedente não importa para a verdade da estrutura completa: eles são verdadeiros quando o conseqüente o for. Ora, a verdade do conseqüente como garantia da verdade da estrutura completa está de acordo com a tabela do

(primeira e terceira linhas), e até esse ponto não há motivos para rejeitarmos a análise por meio do condicional material. Ocorre, entretanto, que não se dá, nesses exemplos, que a falsidade do antecedente seja também suficiente para garantir a verdade da estrutura, o que é o caso para

(terceira e quarta linhas). Se não houver papel na primeira gaveta, o exemplo 2 é falso, não importando se o interlocutor quer papel ou não. Igualmente, se o nome do falante não for Alice, 3 é falso, mesmo que o interlocutor não precise de ajuda. Ou seja, esses exemplos parecem desmentir a análise de ‘se’ como , visto que apenas o valor do conseqüente importa para a avaliação da verdade da estrutura como um todo.

Além do problema com o cálculo da verdade, a representação da semântica por meio de

prevê que deveríamos ter a equivalência entre o condicional e sua contraposição. Um exemplo que tivesse a forma “se antecedente, conseqüente” deveria ser sinônimo de “se não conseqüente, não antecedente”, como acontece, por exemplo, entre 4 e 5:

Se ele tem carteira de motorista, já completou 18 anos.

Se ele não completou 18 anos, não tem carteira de motorista.

A equivalência com a contraposição não ocorre nos austinianos, e não é possível intercambiar 2 e 3 por 6 e 7:

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Se não tem papel na primeira gaveta, você não quer papel.

Se meu nome não é Alice, você não vai precisar de ajuda.

Embora possamos imaginar contextos em que 6 e 7 seriam adequados, eles seriam adequados por outros motivos que não a equivalência – inexistente – com 2 e 3. Comentando um exemplo semelhante, “Se você quiser vir, tem o direito”, Ducrot observa:

Foi uma estranheza lógica que levou Austin a isolar tal emprego: o enunciado [Se você quiser vir, tem o direito] não pode ser submetido à lei lógica de contraposição (= “p

q equivale a não-q

não-p”). Pois obteríamos um absurdo: “Se você não tem o direito de vir, é porque não quer vir”. (DUCROT, 1978, p. 87)

A solução proposta por Ducrot para a análise do condicional, na obra citada, é não considerar o ‘se’ como um conectivo proposicional, e sim como um marcador de atos de fala, transferindo, portanto, a discussão para a pragmática, e abandonando não só o

como também a especificação de condições de verdade para condicionais lingüísticos. Outros empregos de ‘se’, diz Ducrot, “tidos freqüentemente como marginais, pois são difíceis de compreender se acaso se exprimisse efetivamente uma relação entre proposições” seriam também satisfatoriamente explicados por meio dessa análise pragmática (DUCROT, 1978, p. 186). Como exemplos de tais “empregos marginais”, ele dá os seguintes:

Se ele tem inteligência, não tem (em compensação) nenhuma bondade.

Se o Jardim da Luz é o pulmão de São Paulo, a Praça da República é o coração.

Se Pedro estiver em Campinas, certamente ali permanecerá.

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Em 8 e 9, a função do antecedente parece ser a de fazer uma

ligação entre aquilo que se vai dizer no conseqüente e uma informação que pode estar no contexto da conversação. Os exemplos 8 e 9 seriam provavelmente tidos como falsos caso os conseqüentes fossem falsos (caso não se considerasse verdadeiro que ele não tem bondade, ou que a Praça da República é o coração de São Paulo), não importando o valor de verdade do antecedente. O exemplo 8 seria usado num contexto em que “ele tem inteligência” faz parte da informação conhecida (ou, pelo menos, o falante deseja indicar que essa não é uma informação nova), e é a essa informação que se quer opor uma informação nova, a de que “ele não tem nenhuma bondade”. O exemplo 9, de modo semelhante, poderia ser usado num contexto em que a metáfora do Jardim da Luz como “o pulmão de São Paulo” é dada como conhecida, e a ela se ajunta outra, agora que “a Praça da República é o coração de São Paulo”. Em 10, de maneira um pouco diferente, temos um exemplo em que o uso do ‘se’ permite que seja cancelada uma das pressuposições do conseqüente3 (de que Pedro está em Campinas, que é pressuposto de “permanecerá em Campinas”), sem que haja inconsistência entre o antecedente e o conseqüente. Para Ducrot, discutir os valores de verdade das partes componentes não é um caminho adequado para descrever a interpretação das estruturas com ‘se’, já que a verdade do antecedente e do conseqüente é apenas uma entre as várias condições necessárias para a adequação da estrutura a uma situação. O ‘se’ não marca, para ele, uma função de valores de verdade, mas “a realização de dois atos de fala sucessivos” (DUCROT, 1978, p. 186). O antecedente pode ser usado para introduzir no discurso, por exemplo, os motivos pelos quais o falante julga ser adequado dizer o conseqüente, e por essa razão a falsidade do antecedente não invalida nem garante a verdade do condicional:

Todos esses empregos [...] parecem explicar-se bastante facilmente no caso de uma definição ilocucional de se. Basta dizer que o ato de suposição realizado quando o locutor diz se p

3 Sobre cancelamento de pressuposições em estruturas condicionais, ver, por exemplo, Levinson (1983, p. 196-198); Chierchia (2003, p. 544-549).

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destina-se a justificar, não a verdade da afirmação “q”, mas sua conformidade com certas leis ou intenções do discurso [...]. (DUCROT, 1978, p. 187-188)

Assim, em 2, “se você quer papel” indica o motivo pelo qual o falante julga ser relevante informar que “tem papel na primeira gaveta”, e não vai influir na verdade dessa afirmação. A existência de condicionais deste tipo, em que a relação entre antecedente e conseqüente parece explicar-se com muito mais simplicidade por meios pragmáticos – uma parte da estrutura serve para adequar a enunciação, e não a verdade de outra parte da estrutura – tem suscitado diferentes propostas de análise em que o condicional material é deixado de lado e predominam os recursos pragmáticos. O condicional material foi, entretanto, substituído na análise de condicionais lingüísticos de tipos diferentes – não só dos austinianos – e por autores que continuaram a tentar formalizar as condições de verdade dessas estruturas. Na seção a seguir, vamos descrever de modo breve e informal como se poderia representar a semântica dos condicionais por meio de um restritor de mundos possíveis.

3. O condicional como restritor de mundos possíveis

Lewis (1975) e Kratzer (1986) defenderam que um condicional lingüístico não deve ser representado por um conectivo binário, como o condicional material, porque não existe conectivo binário que tenha as condições de verdade adequadas. Esses autores – assim como Chierchia e McConnell-Ginet (1990, p. 205) e von Fintel e Heim (2005ª, p. 2) – consideram que os condicionais são estruturas modais que envolvem sempre algum tipo de quantificação, e o antecedente é um restritor dos mundos possíveis que devem ser considerados para a avaliação da verdade do conseqüente. Tentaremos aqui parafrasear informalmente tal proposta.

Dizemos que condicionais são estruturas modais porque fazem referência a situações diferentes do mundo real, tal como ele se apresenta aqui e agora. Usando condicionais, podemos falar de estados de coisas que não existem, de situações que não aconteceram

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mas que poderiam ter acontecido, ou daquelas que, supomos, ainda vão acontecer. Para explicitar a semântica dessas estruturas modais, não basta observarmos os valores de verdade do antecedente e do conseqüente no mundo real, precisamos usar outros recursos. Um primeiro recurso são conjuntos de situações possíveis (ou mundos possíveis). Dentre os conjuntos de situações possíveis, precisamos selecionar os conjuntos daquelas situações acessíveis4 a partir da situação que está sendo tomada como base. Além disso, é preciso que os conjuntos de situações acessíveis sejam ordenados quanto à semelhança5 em relação à situação de base. Segundo essa proposta de análise, o antecedente de um condicional delimita, no conjunto de situações possíveis que estão acessíveis para o falante, aquelas que vão ser levadas em conta para a avaliação da verdade da estrutura. São considerados, para efeito da avaliação da verdade de um condicional, não todas as situações acessíveis, mas apenas as acessíveis nas quais o antecedente é verdadeiro, e que são mais próximas do mundo real. Um exemplo pode facilitar a exposição:

Se eu comprar um celular novo, não vai dar pra pagar o aluguel.

Sabemos que, no mundo real, o falante não comprou um celular novo, já que a forma escolhida foi “se eu comprar”, e, portanto, não existe um valor de verdade para o antecedente no mundo real (o que dificultaria a tradução desse exemplo por meio do condicional material). Podemos supor que, por meio do condicional, o falante seleciona conjuntos de mundos possíveis e acessíveis em que ele compra um celular novo, e afirma que nesses, ou pelo menos em alguns desses – os mais parecidos com o mundo real – não vai dar pra pagar o aluguel. Esta última restrição é importante, e depende da mencionada ordenação dos mundos possíveis segundo a semelhança com o mundo de base (o mundo real, neste exemplo). Do contrário, seria muito fácil falsificar o condicional, bastando para isso acrescentar informações novas que não haviam sido consideradas pelo

4 Sobre a relação de acessibilidade, ver von Fintel e Heim (2005ª, p. 20) e Chierchia (2003, p. 464-473).

5 Lewis (1973, p. 13-19) e McCawley (1993, p. 530)

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falante. Por exemplo, a informação que o falante ganharia na loteria, ou que seria promovido e teria um aumento, ou que receberia uma herança inesperada, e, portanto, já não seria verdade que a compra do celular novo levaria à inadimplência no aluguel. Entretanto, é plausível pensar que usamos os condicionais para fazer afirmações sobre as situações possíveis que podemos vislumbrar a partir do mundo real, enquanto mantemos as informações constantes ao máximo. Isto é, um falante que enunciasse 11 não estaria querendo dizer que a compra do celular novo impediria o pagamento do aluguel em qualquer situação possível, mas apenas naquelas mais semelhantes à situação real, na qual não há notícia de prêmios, nem de aumentos de salário, nem de heranças. Por isso, representamos a semântica dos condicionais por meio de um aparato formal com uma certa complexidade: precisamos de conjuntos de situações possíveis e acessíveis, ordenados de acordo com a semelhança que têm com o mundo que está sendo tomado como base, sobre os quais atua a restrição especificada no antecedente. A partir dessa proposta, podemos então reexaminar alguns exemplos de condicionais austinianos já apresentados na seção anterior.

4. Os austinianos e o restritor

Vimos que Ducrot afirma que Austin teria enfatizado a falta de equivalência entre um condicional lingüístico e sua possível contraposição (Ducrot 1978, p. 187). A equivalência entre o condicional e a contraposição seria esperada, caso o condicional lingüístico fosse satisfatoriamente representado pelo condicional material, e tal fato foi usado para defender o abandono da pesquisa de condições de verdade de condicionais. Este aspecto da argumentação não ofereceria mais um problema: deixando-se de lado o condicional material e empregando-se o restritor de mundos possíveis para formalizar condicionais, as equivalências do conectivo binário já não são mais esperadas.

Por outro lado, os condicionais austinianos, e em particular os analisados por Ducrot na passagem citada, parecem requerer uma interpretação tipicamente pragmática. No exemplo 2, “Se você quer papel, tem na primeira gaveta”, o falante estaria usando o antecedente do condicional como uma justificativa para a afirmação do

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conseqüente. Para Ducrot, como para vários outros autores que adotam essa linha de descrição (ver o panorama traçado por SIEGEL, 2006), temos aí a afirmação de que existe papel na primeira gaveta, e a informação de que o locutor julga pertinente dizer isso ao ouvinte porque supõe que o ouvinte pode querer papel. Dizer que 2 é enunciado para, ao mesmo tempo, afirmar que tem papel na primeira gaveta e explicitar os motivos pelos quais o falante julga ser adequado dar essa informação é fazer a interpretação repousar em parte na atribuição de intenções ao falante, e nesse caso, tal interpretação tem características distintamente pragmáticas (conforme MOURA, 2000b). É importante observar que a análise por meio do restritor não esgota a interpretação de uma estrutura condicional, e não torna inútil a consideração de aspectos pragmáticos, de maneira que não descartamos a possibilidade de inferir intenções do falante a partir da enunciação do condicional. Mas podemos, mesmo assim, observar que os conflitos entre aquilo que parecem ser as condições de verdade do enunciado lingüístico e a verdade da formalização desaparecem, ao menos em alguns exemplos de condicionais austinianos, ao contrário do que ocorria com a formalização por meio do . Como vimos na seção 1, as condições de verdade do condicional lingüístico diferem das de , e isso foi um dos motivos pelos quais Ducrot rejeitou a análise com o condicional material. Intuitivamente, o exemplo 2 é verdadeiro se e só se o conseqüente o for (se for verdade que tem papel na primeira gaveta), o que não acontece com o condicional material (que também é verdadeiro sempre que o antecedente for falso, e, nesse exemplo, sempre que você não quiser papel). Portanto, além da insuficiência da análise (não capturar o fato de que o antecedente poderia ser uma justificativa para a enunciação do conseqüente), o condicional material prevê que o exemplo seria verdadeiro em situações em que a intuição lingüística não abonaria (quando tanto o antecedente quanto o conseqüente fossem falsos).

Se o antecedente é analisado como um restritor, entretanto, 2 nos diz que, em todos os mundos acessíveis em que você quer papel, incluindo o mundo real, tem papel na primeira gaveta. Claro que isso está sendo afirmado para os mundos acessíveis mais próximos ao mundo real, ou seja, não entram na avaliação os mundos em que não existe uma primeira gaveta, em que não existem o falante e o ouvinte, ou não se fabrica papel, etc. Além disso, se o mundo real está incluído no conjunto restrito pelo antecedente, pode-se interpretar que “tem

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papel na primeira gaveta” está sendo afirmado acerca do mundo real, já que o mundo mais próximo do mundo real é ele mesmo. Logo, o que se afirma em 2 é que “tem papel na primeira gaveta” é verdadeiro nos mundos restritos pelo antecedente (aqueles em que você quer papel) incluindo o mundo real, o que corresponde à intuição de que o conseqüente do condicional, em 2, está sendo afirmado. Se, ao contrário, não existir papel na primeira gaveta no mundo real, o condicional em 2 é falso, já que não seria verdade que, em todos os mundos em que você quer papel, incluindo o mundo real, tem papel na primeira gaveta. Por isso, dizemos que a análise do condicional por meio do restritor não apresenta, nesse caso, um conflito entre as condições de verdade da estrutura formalizada e a intuição lingüística.

Observações semelhantes podem ser feitas para outros exemplos:

The dog, if it was a dog, ran off. (DUDMAN, 1986, p. 171)

O aumento proposto, se é que você pode chamar isso de aumento, é de 0,1%.

Podemos dizer que a análise das condições de verdade desses exemplos, se feita com o restritor, não suplanta a necessidade de uma análise pragmática, mas não entra em conflito com ela. O que os exemplos afirmam é que, nos conjuntos de mundos acessíveis, incluindo o mundo real, em que o antecedente é verdadeiro, o conseqüente também é verdadeiro. Isso não nos diz nada acerca da possível relutância do falante em aplicar o nome “cachorro” ao sujeito de “ran off”, em 12, nem da possível ironia quanto ao “aumento” proposto, em 13. A formalização por meio do restritor nada revela sobre o fato de que o condicional pode ser visto como fazendo um comentário metalingüístico nos dois casos, uma ressalva sobre a adequação de um termo empregado no conseqüente. Entretanto, podemos dizer que não há conflito entre a verdade da estrutura, tal como é prevista pela formalização, e as demais informações, inclusive pragmáticas.

Uma análise dos exemplos 8 e 9 por meio do restritor também não apresenta conflito, em termos de condições de verdade, com a intuição lingüística. O conseqüente está sendo afirmado a respeito dos

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mundos acessíveis – incluindo neles o mundo real – em que o antecedente é verdadeiro. Em 8, afirma-se que ele não tem nenhuma bondade num conjunto de mundos nos quais “ele tem inteligência” é verdadeiro, e que são, além disso, os mais semelhantes ao mundo real. Em 9, afirma-se que a Praça da República é o coração de São Paulo num certo conjunto de situações: aquelas em que é verdade que o Jardim da Luz é o pulmão de São Paulo, e que são, além disso, tão semelhantes quanto possível ao mundo real. Por conseguinte, tanto em 8 quanto em 9, o conseqüente dos condicionais pode ser interpretado como uma afirmação a respeito do mundo real, já que o mundo mais semelhante ao mundo real é ele mesmo, bastando para isso que os falantes aceitem que o antecedente é verdadeiro no mundo real.

Isso não quer dizer que a representação do condicional por meio do restritor seja o que há de mais interessante a dizer na interpretação de tais exemplos: o efeito pragmático parece ser o aspecto mais saliente da interpretação. Mas não há conflito entre o efeito pragmático e o que se propõe que sejam as condições de verdade, como se dava quando da análise por meio do condicional material. Assim, não deve ser preciso abandonar a análise das condições de verdade dessas estruturas, pelo menos não pelos motivos discutidos por Ducrot.

O exemplo 10 é um pouco diferente. Alega-se que o condicional material não pode representar o fato de que há uma pressuposição do verbo ‘permanecer’ que não se mantém na estrutura condicional, o que seria mais um motivo para rejeitar uma abordagem em termos de condições de verdade. Mesmo assim, não parece haver conflito entre a interpretação desse exemplo e a formalização do condicional por meio do restritor. Uma vez que apenas os mundos acessíveis em que Pedro estiver em Campinas serão avaliados, não precisamos considerar uma situação em que Pedro não está em Campinas e ali permanece, o que seria verdadeiro se representado por meio do condicional material, e entraria em conflito com as pressuposições de ‘permanecer’.

Não podemos afirmar que uma análise das condições de verdade dos condicionais por meio de um restritor de mundos possíveis resulta adequada para todo e qualquer condicional austiniano, nem para todos os que foram excluídos da análise, por exemplo, por Bennett (2003, p. 5), ou por Dudman (1986), ou em discussões semelhantes na literatura. Faz-se necessário discutir os exemplos caso a caso. É possível, entretanto, dizer que, pelo menos para alguns exemplos,

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desaparecem os conflitos entre as condições de verdade da estrutura formalizada e nossa intuição acerca da verdade do condicional lingüístico. Este fato aponta então para a possibilidade de se continuar a discutir condições de verdade de condicionais, inclusive de condicionais austinanos, mesmo que o aspecto pragmático seja o que há de mais característico dessas estruturas.

REFERÊNCIAS

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Revista da Pós-graduação em Letras da UFPB. João Pessoa. PIRES DE OLIVEIRA, R. (2001) Semântica formal: uma breve introdução. São Paulo: Mercado de Letras. SIEGEL, (2006) Biscuit Conditionals: Quantification over Potential Literal Acts. Linguistics and Philosophy. 29:167–203 SWEETSER, E. (1991) From Etymology to Pragmatics. Cambridge: Cambridge University Press.

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O CONTEXTO NA TEORIA DA RELEVÂNCIA APLICADO À ANÁLISE DO FILME DOZE HOMENS E UMA SENTENÇA

Context in Relevance Theory Applied to Twelve Angry Men Film Analysis

Aline Aver Vanin*

Resumo: A Teoria da Relevância, de Sperber & Wilson (1995), é um modelo de comunicação e cognição humanas que pretende explicar como a informação é representada na mente de um indivíduo e processada de maneira inferencial no momento do ato comunicativo. Neste ensaio, aplicar-se-á apenas um dos diversos aspectos propostos pela teoria: a seleção do contexto. A formação e a escolha do contexto, um subconjunto das suposições do ouvinte a respeito do mundo, serão demonstradas através do filme Doze Homens e uma Sentença, a fim de que se possa exemplificar como os indivíduos processam as suposições acerca de uma informação e como selecionam um contexto dentre vários para a interpretação de enunciados durante um ato comunicativo. Palavras-chave: suposições, contexto, Teoria da Relevância, inferências.

Abstract: Relevance Theory, by Sperber & Wilson (1995), is a model of human communication and cognition which intend to explain how information is represented in an individual’s mind and how it is processed in an inferencial way in a communicative act. In this essay, only one aspect of the theory will be applied: the context selection. The formation and choice of the context – a subset of the hearer’s assumptions about the world – will be demonstrated through the movie Twelve Angry Men, in order to exemplify how the individuals process the assumptions about an information and how they select a context, among others, to interpret utterances during a communicative act. Key-words: assumptions, context, Relevance Theory, inferences.

* Aluna de Doutorado em Lingüística Aplicada da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

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1. Pressupostos gerais

O processamento de informações que ocorre no momento da compreensão de um enunciado constitui-se uma das bases do modelo ostensivo-inferencial de comunicação postulado por Sperber e Wilson (1995). A Teoria da Relevância, que explica o processo inferencial durante o ato comunicativo em situações cotidianas, tem como idéia básica uma das características da cognição humana: os indivíduos prestam atenção a informações ou fenômenos que lhes parecem relevantes.

Wilson e Sperber (2004), afirmam que a Teoria da Relevância tem como objetivo principal desenvolver uma das alegações centrais de Grice (1975), para o qual a expressão e o reconhecimento de intenções são características essenciais para a comunicação humana, tanto verbal como não-verbal.

Partindo do modelo inferencial de Grice (1975), Sperber & Wilson tratam as inferências tal como um cálculo da lógica formal, no qual de premissas chega-se a uma conclusão. A diferença, para os autores, é que no processamento mental essas inferências são não-triviais e não-demonstrativas. Nesse sentido, constrói-se o conteúdo das premissas à medida que a comunicação se desenvolve e no contexto de representações mentais em que a informação é processada.

Assim, na Teoria da Relevância, o contexto não pressupõe um conhecimento mútuo de suposições a priori para se obter sucesso na comunicação, mas é, na verdade, construído durante o ato comunicativo. É parte do processo de interpretação, com sua formação aberta a escolhas e constituindo uma variável. A relevância, ao contrário, é algo dado nesse processo, visto que os indivíduos procuram aquilo que é mais relevante na comunicação.

O modelo de Sperber e Wilson (1995) visa explicar e solucionar o problema central da pragmática: para um mesmo enunciado, várias interpretações são possíveis, compatíveis com a informação que é lingüisticamente codificada. Para os mesmos autores, o objetivo da pragmática inferencial é explicar como o ouvinte infere o significado do falante com base nas evidências disponíveis. A tarefa do ouvinte é, então, reconhecer a informação pretendida pelo falante.

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Por esse motivo, a noção de contexto é base para entender

como as pessoas se comunicam e como uma só interpretação é selecionada entre várias, posto esse ser um conjunto de suposições representadas mentalmente na interpretação de enunciados. Cada indivíduo, no momento do ato comunicativo, constrói suposições próprias e “cada informação nova determina novo contexto” (SILVEIRA, 2002, p. 368). Assim, o contexto pode incluir uma informação através das percepções do indivíduo em dado ambiente, das suposições armazenadas no momento da comunicação, e das suposições armazenadas na memória enciclopédica.

Sperber e Wilson tomam como ponto de partida o esforço cognitivo de processamento para acessar o contexto: quanto maior o esforço de processamento, menores vão ser os efeitos cognitivos; quanto maiores os efeitos cognitivos, maior a relevância. Trata-se de um esforço de memória, percepção e inferência na compreensão do que está sendo dito. De todas as interpretações possíveis, aquela escolhida pelo ouvinte é a que produz nele mais efeitos cognitivos e, conseqüentemente, é o que modifica sua representação de mundo. Busca-se o contexto mais acessível, ou seja, aquele que causa menos esforços para efeitos adequados, através de habilidades perceptuais e cognitivas. Portanto, se a interpretação é mais imediata é porque há uma acessibilidade maior do contexto. O que não for apropriado para o cálculo mental é filtrado pelo contexto, que fornece premissas para formar uma implicatura.

Ao final de um processo dedutivo, o indivíduo tem disponível um conjunto particular de contextos acessíveis. O mecanismo dedutivo, que é automático e inconsciente, toma como input um conjunto de suposições e deduz todas as conclusões que dele podem ser derivadas. Faz-se uma análise do conteúdo e do contexto das premissas num cálculo não-trivial através de hipóteses, que são geradas no decorrer da conversação.

Para uma maior compreensão sobre a interpretação de enunciados baseada na relação entre contexto e inferência na Teoria da Relevância, passar-se-á a uma análise geral de alguns aspectos do filme Doze homens e uma sentença1, com o intuito de ilustrar o modelo ostensivo-inferencial e o papel do contexto na aplicação da

1 Originalmente, Twelve angry men (1957), do diretor Sidney Lumet e roteiro de Reginald Rose.

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teoria. Dessa forma, poder-se-á demonstrar a relevância da comunicação através da realidade simulada de um filme.

2. Construção e seleção do contexto em Doze homens e uma sentença

Como uma simulação da realidade, o filme Doze homens e uma sentença reflete uma situação recorrente em um julgamento: a reunião de doze jurados que terão de separar os fatos da versão de um crime. As inferências não-demonstrativas espontâneas de cada personagem geram discussões ao terem de decidir se o réu, um adolescente de dezoito anos, acusado de matar o próprio pai, será condenado à pena de morte ou inocentado.

Tal como qualquer situação comunicativa da vida, o filme é altamente dependente de contexto, o qual contribui na formação de inferências e suposições a respeito do crime. Antes de os jurados serem trancados em uma sala para discutirem sobre o futuro do acusado, o juiz deixa bem claro que todos estão diante de uma grande responsabilidade: caso houver dúvida razoável, o réu deve ser declarado inocente; caso contrário, o acusado deve ser culpado pelo crime. A pena de morte seria compulsória neste caso. A partir disso, os jurados poderiam construir as seguintes suposições:

S1 - Precisa-se ter certeza para se condenar ou absolver um indivíduo.

S2 – Não se pode cometer injustiças. S3 – É necessário observar todas as provas. S4 – Deve-se analisar todos os indícios e as testemunhas. C – Um erro no veredicto poderia implicar a condenação de

um inocente ou na liberdade de um assassino.

No momento inicial, os doze jurados reúnem-se em uma sala para decidir se o garoto é culpado ou inocente. Antes de começar a discutir o caso, os jurados aguardam, tentando aproximar-se uns dos outros, com comentários sobre o clima, sobre a vista da janela, a respeito das construções do lado de fora e também acerca de um jogo de baseball qualquer. De acordo com Costa (2005), “a fala é puro ato comunicativo, e o reconhecimento recíproco, uma necessidade de

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convivência”. Assim, ao tentarem firmar uma conversa com tão pouca relevância, na verdade os personagens tentam estabelecer contato para tentarem se conhecer e compensar a situação de estresse a qual serão submetidos: decidir sobre a vida de um rapaz.

O contexto inicial é o que se segue: ao se fazer uma discussão preliminar sobre o caso, está claro para todos que, conforme a lei, deve haver doze votos a zero, ou seja, a decisão deve ser unânime. Ao começar a votação, todos os jurados, menos um, imediatamente votam pela condenação – e essa implicaria em cadeira elétrica. Ao observar as atitudes e comentários da maioria dos jurados, a audiência pode construir um raciocínio inferencial sobre os motivos dos jurados, a partir dos quais as premissas S5 a S7 levam à conclusão C:

S5 – Todos têm outras coisas mais importantes para fazer. S6 – Estão todos perdendo tempo naquela sala. S7 – A solução do caso parece óbvia. C – É melhor optar por condenar o acusado para que todos

possam se livrar daquela situação.

Para aquele que votou pela inocência, não se trata apenas de solucionar o caso, mas decidir sobre a vida de um jovem. Ele afirma que não podem decidir tudo em cinco minutos, já que todos podem estar errados. Um dos homens, que parece ser um dos mais indignados com o crime, diz “tem sempre um”. A partir disso, pode-se derivar uma nova suposição:

S8 – Em tomadas de decisões há sempre alguém que está contra os demais.

O jurado que votou pela inocência, que chamaremos aqui de Arquiteto, profissão revelada à audiência posteriormente, preocupou-se em fazer um exame mais apurado e discutir as versões apresentadas no julgamento, incluindo a do acusado. Com isso, pode apontar contradições nos argumentos apresentados. A partir dessa constatação, vê-se que o arquiteto processa um cálculo dedutivo que é exposto aos demais jurados com as seguintes premissas:

S9 – Trata-se da vida de uma pessoa. S10 – O rapaz esteve em contato com um lar em conflito. S11 – O rapaz foi maltratado durante toda a sua vida. S12 – O réu teve 18 anos de violência e infelicidade.

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E, a partir dessas suposições, seria possível perceber o

raciocínio inferencial do Arquiteto: S13 – O acusado é jovem demais para ser condenado à morte. S14 – É uma grande responsabilidade decidir sobre a vida de

uma pessoa, principalmente desse jovem, que já tem um histórico de maus tratos.

A partir disso, poderia ser gerada a seguinte conclusão: C – Seria possível dar uma chance ao acusado discutindo-se as

versões apresentadas.

Com isso, começa um debate a contragosto de muitos, cada qual explicando as suas motivações. Para alguns, no entanto, tanto faz se o acusado for declarado culpado ou inocente. O que importa é que tudo termine o mais rápido possível. Para a maioria, alguém tem que pagar pela morte do homem. A acusação tinha provado, através dos fatos, que o rapaz matara seu próprio pai. Assim, é relevante para eles, no momento, que haja justiça. Os demais jurados resistem aos argumentos com base nas circunstâncias. As provas vão sendo reelaboradas e discutidas, com uma preferência pelo raciocínio linear. Assim, o filme é conduzido apenas com a lógica dos argumentos, e a única ação é a própria fala dos jurados. Cabe a eles, dessa forma, fazer inferências a partir desses enunciados.

Ao perceber ser muito difícil argumentar contra as opiniões dos demais jurados, o Arquiteto não os enfrenta, mas os persuade com fatos, questionando cada prova apresentada, cada qual com uma contradição, tentando mostrar aos outros onze que as tais evidências poderiam não ser tão irrefutáveis quanto pareceram de início. Usa, para isso, o ato comunicativo, em que a interação causa modificação de conhecimentos e de crenças, em maior ou menor grau.

Smith e Wilson (1992) afirmam que os efeitos contextuais são alcançados quando uma informação nova interage com um contexto de suposições existentes em uma das três maneiras: fortalecendo, contradizendo (eliminando) ou combinando uma suposição existente para conceder uma implicação contextual: uma implicação é derivada da combinação da informação nova e do contexto.

Qualquer informação que faça parte do contexto mental do indivíduo pode ser usada como premissa no processo inferencial, que dá sustentação à conclusão. As suposições e conclusões levam à

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alteração de crenças com o fortalecimento ou enfraquecimento dos efeitos contextuais. Assim, ao questionar as provas apresentadas, o Arquiteto tenta persuadir os demais através de argumentos que contrariam o contexto inicial de suposições sobre os fatos. As informações sobre as provas estão armazenadas na mente de todos e, pelo estímulo da argumentação, vêm à tona: acionam-se as informações armazenadas para compreender algo novo. Para Silveira e Feltes (1997), suposições e esquemas de suposições armazenados na memória originam a maior ou a menor probabilidade de verdade nas suposições que se constrói a respeito de um fato. A plausibilidade das prováveis inferências espontâneas do Arquiteto e a compatibilidade dos processos inferenciais com os raciocínios na comunicação evidenciam a complementaridade de código e contexto para a interpretação de enunciados.

Para Silveira (2002), as suposições são alcançadas e a compreensão efetivada por meio de um processo de formação e confirmação de hipóteses com base em julgamentos comparativos. As discussões geram novas contradições para as provas e, aos poucos, os jurados vão se convencendo da inocência do réu. A cada novo argumento, esses jurados que mudam de opinião assim o fazem porque a intenção do falante não é decodificada, mas inferida não-demonstrativamente com livre acesso à informação contextual, através da formulação e confirmação de hipóteses e do fortalecimento de suposições.

Um dos jurados, que acredita que o réu é culpado, tenta argumentar, dizendo que os fatos não podem ser refutados, posto que ninguém provou o contrário. A partir daí, os jurados começam a construir hipóteses e argumentar, mostrando que há, sim, contradições nos fatos.

No contexto inicial dos fatos, um dos primeiros argumentos demonstrados é que um homem, que mora no apartamento abaixo da vítima, ouve uma briga do pai com o filho. O pai bate no filho, que sai, dizendo que vai matá-lo. Horas mais tarde, já de madrugada, o homem ouve discussão e sons de violência. Após, fica sabendo que o homem foi assassinato. Compatível com a sua percepção e construindo um raciocínio inferencial, a testemunha provavelmente teria, naquele momento, construído o seguinte cálculo:

S15 – Se pai e filho discutiam em voz alta, S16 – Se o filho saiu gritando que iria matar o pai,

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S17 – Se houve barulho de violência no outro apartamen-to, S18 – Se o pai foi encontrado morto mais tarde, C – Então foi o filho que matou seu pai.

Mais tarde, o Arquiteto, utilizando sua memória enciclopédica a respeito de construções, pede a planta do apartamento no qual a testemunha morava; possivelmente seria a mesma do local do crime. A partir dela, tenta reconstituir o tempo necessário para amparar ou negar a alegação do testemunho do vizinho. Esse, sendo manco de uma perna devido a um derrame e estando no seu quarto, sentado à cama no momento do crime (informações acrescentadas durante o argumento do Arquiteto), afirmava ter visto o réu, imediatamente após o som do corpo da vítima ter caído no chão, descer as escadas e cruzar com ele, na porta da sua casa. O tempo necessário para essa ação seria de 15 segundos. No entanto, ao reproduzir os passos do homem mancando, que andaria bem mais devagar, dentro o espaço entre o quarto e a porta, o Arquiteto demorou 41 segundos para atingir a mesma distância. A planta do apartamento é fonte de suposição factual, já que as suposições e esquemas de suposições armazenados na memória originaram a maior probabilidade de verdade nas suposições que ele construiu, e tenta mostrar e tornar relevante para os demais. A partir desse novo contexto, os demais poderiam inferir o seguinte:

S19 – Se o homem demoraria muito mais tempo para alcançar a porta,

C – Ou o homem está mentindo ou imaginou ter visto tudo.

Isso se confirma através da construção de um novo contexto por outro jurado, que, ao relembrar a aparência da testemunha, formula as seguintes hipóteses e, conseqüentemente, uma nova conclusão:

S20 – Se o terno do homem é velho e rasgado, S21 – Se o homem faz um esforço para que ninguém perceba

que ele manca, S22 – Se o homem provavelmente nunca teve o

reconhecimento que gostaria, C – Então o homem acusa para ser ouvido, forçando-se a ouvir

o momento de violência do assassinato.

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O Arquiteto pede a um dos jurados se o homem tinha visto ou

não o rapaz fugindo. O outro diz: “ele diz que viu”. Pode-se inferir, através desse último enunciado, que ao dizer “ele diz que...” o jurado se abstém, não querendo expressar sua própria opinião. Por causa das provas apresentadas e desse novo contexto formulado, ele parece não acreditar mais na culpa do rapaz.

Em seguida, um dos jurados afirma que se lembra de os jurados terem dado bastante atenção à compra de um canivete pelo rapaz, supostamente o mesmo usado no crime, e poderiam ter concluído que o filho realmente tinha a intenção de matar o pai. A loja que vendera a faca para o rapaz alegava que era muito difícil encontrar uma faca como aquela. Em seguida, um dos jurados apresenta um canivete similar ao do crime, provando o contrário. Nesse momento, pode-se fazer a seguinte inferência:

S23 – É possível que outra pessoa possa ter usado uma faca similar para cometer o assassinato.

Mais tarde, é lembrado o fato de que em brigas de faca, a facada seria dada por baixo, e não por cima, como ocorreu no crime. Além disso, o rapaz seria vários centímetros menor que seu pai. Aqui, os efeitos contextuais são enfraquecidos pela apresentação de um novo contexto, em que os jurados provam que seria pouco provável o réu ter matado seu pai.

Outro fato lembrado foi a questão dos possíveis motivos para o lapso de memória do réu, o qual, tendo alegado estar no cinema no momento do crime, não conseguia se lembrar do título do filme nem de nenhum dos seus atores. No momento da apresentação desse fato, a audiência poderia ter formulado o raciocínio:

S24 – Se o réu não consegue lembrar do filme nem dos atores, C – Ele provavelmente não foi ao cinema.

Apesar disso, o arquiteto tenta provar, questionando um dos jurados e fazendo com que ele acompanhe seu raciocínio, que uma pessoa não tem como acompanhar o filme após ter apanhado do pai, já que estava sobre estresse emocional. Perguntado sobre o que fizera nos dias anteriores, o jurado não conseguiu lembrar-se de alguns acontecimentos. Esse argumento pode tê-lo levado leva às seguintes representações mentais:

S25 – Se o homem não estava sob estresse emocional,

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S26 – Se este homem também não conseguia lembrar-se de

detalhes do que tinha feito, C – Então o réu não necessariamente poderia ter lembrado o

que tinha visto no cinema.

E dessa conclusão poderia ser gerada uma nova suposição: S27 – Se o réu estava sob estresse, C – Então as emoções podem ter interferido no grau de

atenção do rapaz.

A partir dessas suposições, pode-se observar como ocorre a recursividade do contexto: num cálculo inferencial, as premissas levam a uma conclusão, que pode gerar novas premissas que levam a uma outra nova conclusão e assim por diante. Isso ocorre porque os argumentos surgem num cálculo com argumentos lineares, em que de um argumento (conclusão) gera-se um novo, seguindo uma linha de discussão.

Sabe-se que a acusação também apresenta outra testemunha: uma mulher de aproximadamente 45 anos que morava em frente ao local do crime e jura ver que o menino matou o próprio pai. Ela afirma que estava deitada e, ao levantar-se casualmente, presencia o assassinato. Um dos jurados observa que, mesmo tendo as características marcas físicas, sobre o nariz, adquiridas pelo o uso de óculos, a mulher garante ter visto o assassinato, inclusive no mesmo momento em que um trem passava por entre a sua janela e a janela do crime, num momento em que ninguém utilizaria óculos, visto que ela estaria na cama. Esse conjunto novo de informações contextuais faz com que os ouvintes processem a informação através do provável conjunto de suposições:

S28 – A mulher diz que viu o crime. S29 – A mulher parece usar óculos, pois tem marcas no nariz. S30 – Se a mulher está sem óculos, tenta aparentar ser mais

jovem.

Essas premissas constituem outras que levam a uma nova conclusão:

S31 – Ninguém utiliza óculos ao deitar-se. S32 – No momento do crime, provavelmente a mulher estaria

sem óculos.

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S33 – Possivelmente a mulher viu uma imagem embaraçada. C – A mulher não pode provar que realmente viu o crime e seu

autor.

É lembrado, mais tarde, do homem que dizia ter ouvido toda discussão e também ruídos de violência no apartamento de cima. O Arquiteto, usando sua memória de curto prazo, lembra que o rapaz, o vizinho e a mulher de óculos moravam todos às margens dos trilhos de trem. A mulher disse que no momento do crime, um trem passava. Com essas evidências, a audiência pode criar um novo conjunto de suposições:

S34 – O homem diz ter ouvido ruídos de discussão e violência. S35 – A mulher diz que um trem passava durante o crime. S36 – Trens geralmente fazem muito barulho. C – Provavelmente o homem não teria ouvido bem o barulho

do apartamento de cima por causa do ruído do trem. Um dos homens, o que parece estar mais ansioso pela

condenação do rapaz, argumenta que, horas antes do crime, o homem tinha ouvido que o filho ameaçava o pai dizendo “Vou te matar”. O Arquiteto replica, afirmando que muitas vezes dizemos esse tipo de enunciado num momento de raiva. O homem, no entanto, não se convence. Mais tarde, ao ser provocado pelo Arquiteto, ele explode, dizendo “Vou te matar!”. Nesse momento, o outro responde: “Matar... não literalmente, não é?”. Aqui há uma contradição das suposições iniciais do jurado, que gera a seguinte suposição:

S37 – Se numa situação de discussão as pessoas usam a expressão “vou te matar” para agredir o outro verbalmente,

C - A expressão “vou te matar” é metafórica e, por isso, não pode ser considerada no seu sentido literal.

Devido à recursividade do contexto, essa conclusão gera novas suposições:

S38 – O homem grita para o outro “vou te matar” sem a intenção real de matá-lo,

S39 – O homem lembra que o garoto também gritou o mesmo enunciado para seu pai.

S40 – O rapaz pode não ter tido a intenção de matar o próprio pai.

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C – O réu pode não ter assassinado o próprio pai.

É possível observar que as regras dedutivas são parte do equipamento mental humano, já que garantem uma economia no armazenamento de suposições, dão um suporte com maior precisão e validade das conclusões e são ferramenta para expor inconsistências e imprecisões das suposições. Percebe-se que, no filme, através da argumentação, cada jurado vai elaborando suas próprias suposições a partir das informações já presentes em seus ambientes cognitivos, o que faz com que isso gere suposições a partir de conclusões já formadas.

A cada nova votação, ao mesmo tempo em que ia sendo ampliada a contagem dos votos para “inocente”, cada um dos próprios jurados conseguiam perceber de forma diferente o mesmo fato, o mesmo dado, a mesma prova, um depoimento, e a circunstância anteriormente analisados, na sala de audiência. Os homens licenciam as conclusões, já que o raciocínio apresentado para convencê-los está dentro dos novos contextos que acabam por criar e selecionar.

Poucos jurados demoraram a se convencer do contrário, e um dos homens, que gritava a todo o momento, teve grandes dificuldades para ver de uma forma diferente. No continuum do filme, os demais colegas de júri não entendem o porquê de tanta raiva. O homem também afirma que sabe tudo sobre esses jovens: “são uns selvagens”, diz. Isso leva às prováveis suposições:

S41 – O homem luta tanto para condenar o rapaz. S42 – Ele dá argumentos que vão contra as provas. S43 – O homem demonstra ter raiva. C – Deve haver algo por trás desse crime que abala o homem.

No momento em que fazem uma pausa, mostra a foto do filho na carteira e começa a contar uma história, que anteriormente parecia irrelevante. Essa informação fica armazena na memória de curto prazo da audiência, até que vem à tona quando são revelados os motivos pelos quais o homem lutava tanto pela condenação do rapaz: seu próprio filho, em algum momento do passado, teria agido com violência para com ele. Com a inserção desse novo contexto, é possível que se façam algumas suposições, partindo-se do que fora inferido anteriormente:

S44 – Se o homem estava com tanta raiva,

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S45 – Se o homem lutava tanto contra os demais, S46 – Se o homem joga a foto do filho sobre a mesa, S47 – Se ao final ele começa a chorar, convencido da inocência

do rapaz, C – Ele tinha um motivo pessoal: seu próprio filho fez algo

com ele, o que faz com que o homem transfira sua raiva para o réu.

Essa conclusão não está dita, mas é possível inferi-la a partir do contexto processado naquele momento. Para o homem, é relevante que, se seu próprio filho teve coragem de agir contra ele, então todos os outros jovens teriam a mesma atitude para com seus pais. A própria experiência e o preconceito obscurecem a verdade dos fatos.

Segundo Silveira (2002), a alteração de crenças pode ser explicada pelo uso de regras de eliminação, que constituem entradas lógicas ligadas a conceitos aos quais estão conectadas também entradas enciclopédicas e lexicais. A introdução de um contexto novo, que aqui é representado por algo que os jurados não tinham pensado, constitui novas suposições e, a partir delas, cada jurado foi tocado de uma maneira singular, o que acabou determinando não só a mudança naquilo que acreditavam ser provado, mas na mudança de atitude: os jurados começam a perceber, ao poucos, que transparece a falta de encadeamento entre os fatos, pois há falhas e lacunas nas provas. Chega-se à conclusão de que não é fácil alinhar as provas em ordem. A certeza da culpa desaparece quando dúvidas razoáveis levam ao veredicto pela absolvição.

Considerações finais

Através da análise geral da interação comunicativa em Doze homens e uma sentença fez-se um esforço para evidenciar que os mecanismos inferenciais da teoria da Relevância são os mesmos das inferências prováveis construídas pelos personagens. É possível provar que o raciocínio humano é capaz de selecionar uma interpretação dentre várias devido à formação e extensão do contexto: cada contexto, exceto o inicial, contém um ou mais contextos menores que estão contidos em um ou mais contextos maiores. Isso ocorre porque, à medida que as informações se tornam disponíveis, elas se tornam mais acessíveis. Apesar de tantas diferenças individuais, cada

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indivíduo escolherá a informação mais adequada para a interpretação do enunciado por causa da busca pela relevância. A informação pretendida pelo falante será acessada porque o contexto, construído no momento do ato comunicativo, restringe a informação adequada.

Assim, no filme analisado, foi possível perceber como conteúdo e contexto andam juntos no cálculo inferencial, fazendo com que um indivíduo, criando um contexto propício coerente com suas intenções, levasse os demais jurados a alterar seus efeitos contextuais. Isso se deu através do enfraquecimento de suas crenças iniciais, da culpa, para uma conclusão final, resultando na absolvição do rapaz de um crime que, segundo a argumentação do Arquiteto (que convence inclusive aos espectadores do filme), provavelmente não cometeu.

REFERÊNCIAS

GRICE, H.P. (1975). Logic and Conversation. In: COLE & MORGAN (eds). Syntax and Semantics. Vol. 3. Speech acts. New York: Academic Press. COSTA, Jorge Campos da (2005). A Teoria da Relevância e as irrelevâncias da vida cotidiana. In: Linguagem em (dis)curso. Vol. 51, número especial. SILVEIRA, Jane R. C. (2002). Teoria da Relevância: uma resposta à comunicação inferencial humana. In: IBAÑOS, A. M. T. e SILVEIRA, Jane R. C. Na interface semântica/pragmática – programa de pesquisa em lógica e linguagem natural. Porto Alegre: Edipucrs. SILVEIRA, Jane R. C.; FELTES, H. P. M. (1997). Pragmática e cognição: a textualidade pela relevância. Porto Alegre: EDIPUCRS. SMITH, N.; WILSON, D. (1992). Introduction. In: Lingua, n. 87, p. 1-10. SPERBER, D. & WILSON, D. (1995). Relevance: communication and cognition. 2. ed. Cambridge, Massaschusetts: Harvard University Press. WILSON, Deirdre; SPERBER, Dan (2004). Relevance Theory. In: WARD, Gregory; HORN, Laurence. (eds.) Handbook of Pragmatics. Oxford: Blackwell.

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CIÊNCIA COGNITIVA NA CONCEPÇÃO ROSCHIANA E O

DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM ORAL

Cognitive Science in Rosch’s Conception and the Development of Oral Language

Eliza Viegas Brilhante da Nóbrega*

Resumo: Neste trabalho buscamos refletir sobre a cognição na perspectiva roschiana, passando pelas concepções clássica, prototípica e chegando à concepção teórica. Para tanto, partimos do conceito de ciência cognitiva e procuramos também fazer uma ponte entre o pensamento roschiano e o desenvolvimento da linguagem oral, sob a ótica de teorias de aquisição e desenvolvimento da linguagem, incluindo, de modo especial, a fonologia. Palavras-chave: Aquisição, linguagem e cognição.

Abstract: In this article we focus on cognition in the roschian perspective, studying from the classic and prototype conceptions to the theoretical one. For this, we depart from the cognitive science concept and also make a bridge between the roschian thought and the development of oral language, in regard to language acquisition and development theories, including, in a special way, the phonological approach. Key words: Acquisition – Language – Cognitive Science

1. Ciência cognitiva

A ciência cognitiva interessa-se pelo estudo da mente, que, nos últimos anos, deixou de ser tratada exclusivamente pela filosofia (epistemologia e filosofia da mente) e passou a existir como um novo campo interdisciplinar, incluindo, portanto, investigações de outras ciências, como a da Lingüística (lingüística cognitiva), da Psicologia (Psicologia cognitiva), da (Neuro)biologia (neurociência e teoria da

* Aluna de Mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Lingüística- PROLING da Universidade Federal da Paraíba-UFPB

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evolução), da ciência da computação (inteligência artificial e modelo conexionista) e da Antropologia. Desta forma, para atingir seu objetivo de tentar compreender a estrutura e o funcionamento da mente humana, aborda desde a filosofia até a criação de modelos computacionais, incluindo também estudos na área da aquisição da linguagem. (TRASK, 2004; OLIVEIRA & OLIVEIRA, 1999).

Apesar de não podermos datar seu surgimento com precisão, Oliveira & Oliveira (op cit) afirmam que ela surgiu há cerca de 35 anos, nos Estados Unidos, decorrente, principalmente, da invenção dos modernos computadores, durante e logo após a Segunda Guerra Mundial, e devido ao enfraquecimento da estratégia behaviorista na Psicologia. No entanto, no Brasil, só há pouco mais de cinco anos é que ela começou a marcar sua presença em grupos de estudo.

Para Levinson (1995), as questões centrais nas ciências cognitivas são referentes, especialmente, à epistemologia (como e o que nós conhecemos) e a como nós processamos a informação, ou seja, a natureza das representações mentais do mundo exterior (o reconhecimento visual de objetos, o sentido de reações, ações futuras etc...). Para tanto, tem-se feito uso de estudos comparativos da cognição. Na sua concepção, uma das metas que a ciência cognitiva pretende atingir é, inicialmente, redimensionar os esforços teóricos, fazendo seguir um viés de cognição como um sistema que medeia a relação entre o organismo e o meio ambiente. Um segundo passo é reconhecer que dialogamos com interações sistemáticas entre dois sistemas que normalmente são estudados independentemente: os sistemas cognitivos e sociais. Teríamos, então, uma abordagem sócio-cognitivista, como deixa claro Salomão (1999).

2. Concepção roschiana

O estudo dos conceitos é uma das linhas de pesquisa da ciência cognitiva, cuja pesquisadora pioneira, nesta área, é a antropóloga e psicóloga Eleanor Rosch. Seus trabalhos, datados no início da década de 70, ficaram também conhecidos como “tradição roschiana”.

Douglas Medin (1989 apud Oliveira 1999), estratifica a tradição roschiana em três etapas. A primeira é a concepção clássica, que compreende desde Aristóteles até princípios da década de 1970. De 1970 até por volta de 1985 predomina a concepção prototípica ou probabilística e, por fim, de 1985 até os dias atuais, encontramos a

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concepção teórica.

3. A concepção clássica

A concepção clássica de conceitos é, como afirma Oliveira (1999), um pressuposto fundamental da lógica aristotélica e predominou durante quase toda a história da lógica e da filosofia. Nesta visão, os conceitos possuem uma natureza binária, do tipo “tudo-ou-nada”, no sentido de que eles são absolutamente precisos, não tendo meio termo. Ao admitir que a categoria seja composta de propriedades necessárias e suficientes, tal concepção trabalha com as semelhanças e desconsidera as diferenças porque, quando surgem, se enquadram em outras categorias. Esse posicionamento nos faz concordar com Lakoff (1987) quando diz que a perspectiva aristotélica é objetivista, por prever a realidade. Uma outra característica dos conceitos é que eles consistem em um conjunto de atributos, ou propriedades, individualmente necessárias e conjuntamente suficientes. Neste sentido, o estudo da linguagem se manifesta no domínio da semântica. Para a semântica formal, as coisas só possuem um único significado, ou seja, por ter uma visão objetiva das coisas, elas não podem significar algo em um contexto e ter um significado diferente em outro.

Essa concepção clássica instalou-se na psicologia por volta dos anos 1920, e influenciou tanto a tradição cognitivista (anterior à ciência cognitiva) como a behaviorista, com a pressuposição de que determinado tipo de experimento, com suas possíveis variações, estaria no centro das investigações sobre os conceitos. Desta forma, os conceitos seriam concebidos como conjuntos de propriedades ou atributos, frutos do experimento. Nesta perspectiva clássica, os psicólogos puderam estudar vários aspectos presentes durante o processo de descobrimento de conceitos, como as estratégias utilizadas pelos sujeitos e o número de tentativas necessárias para a descoberta de determinado conceito em função da idade e escolaridade desses sujeitos, da complexidade dos conceitos etc. De acordo com Oliveira (1999), experimentos foram utilizados não somente na tradição behaviorista, mas também pelo sócio-construtivista Vygotsky e pelos americanos: Bruner, Goodnow e Austin. A concepção clássica nos estudos dos conceitos também esteve presente nos estudos do cognitivista Piaget.

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4. A concepção prototípica

O princípio fundamental do primeiro estágio da tradição roschiana é o de que os conceitos, em geral, são verdadeiramente descritos pela concepção prototípica e não pela concepção clássica.

A concepção clássica foi veementemente questionada pela concepção pragmática de Wittgenstein, quando afirmou que não existe algo comum a todos os jogos, o que há são semelhanças e afinidades, que surgem e desaparecem ao compararmos diversos tipos de jogos. Se não existe uma característica comum a todos os jogos, então, é questionável afirmar o conceito de jogos como sendo um conjunto de propriedades necessárias e suficientes. Wittgenstein é considerado o precursor da revolução pragmática roschiana porque Rosch já tinha conhecimento das suas idéias e reconheceu sua dívida para com ele.

Orientanda de Roger Brown, através do estudo das cores, Rosch se voltou para o projeto de encontrar evidências empíricas favoráveis para a hipótese de Sapir-Whorf, também conhecida como “Princípio da Relatividade Lingüística” que diz, segundo Oliveira (1999), que a estrutura cognitiva de um ser humano depende fortemente de sua língua materna, ou seja, que a língua materna condiciona como uma pessoa enxerga e vive o mundo. No entanto, com os resultados desta pesquisa descobriu-se que as cores focais não variam de língua para língua, de cultura para cultura, porque refletem uma característica básica, estrutural do aparelho visual humano e, por isso, constituem um universal cognitivo.

Inspirada pelas idéias de Wittgenstein, Rosch generalizou para todos os conceitos algumas das características que tinha encontrado nos conceitos de cor, com a idéia de que um conceito aplica-se a uma entidade em um certo grau, havendo casos mais ou menos típicos, sendo que, para cada conceito, há um que representa o ápice da tipicidade, sendo denominado por Rosch de protótipo do conceito. Desta forma, ela foi de encontro à concepção clássica que, como já foi explanado, identifica conceitos com conjuntos de propriedades necessárias e suficientes e considera que um conceito ou bem se aplica, ou não se aplica a uma entidade.

Pelo fato de ela atribuir aos conceitos uma natureza contínua e gradual, existem muitas variações na natureza dos protótipos: para cada conceito existem representantes mais ou menos típicos. Assim, ou a entidade não será um exemplar do conceito, ou será um caso

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limítrofe, ou será um exemplar menos ou mais típico. Se, por um lado, entendemos que na sua concepção as propriedades que constituem os conceitos não são necessárias e suficientes, mas constituem um protótipo, por outro, ela não deixa claro a divisão entre os que são e os que não são exemplares de um conceito. Mas, por assim admitir, ela desconsidera a concepção da sociolingüística que trabalha com a idéia de que a língua está em constante mudança e não há o melhor representante daquela língua (categoria), em determinada região, por exemplo. É importante ressaltar que, com a antropologia cultural e a Sociolingüística, a partir da década de 60, houve uma mudança de visão de cultura universal para o relativismo cultural. Pela sociolingüística, as categorias e a cognição seriam motivadas socialmente, não arbitrárias e dependentes da cultura. Rosch também não concorda que haja arbitrariedade da cognição, mas, para ela, há arbitrariedade lingüística e é devido ao último posicionamento que ela se distancia da sociolingüística.

Dentre os resultados experimentais realizados por Rosch, os da tipicidade foram os que tiveram maior impacto. Por exemplo, na cultura urbana ocidental, dificilmente as pessoas discordam que a maçã seja uma fruta mais típica do que a jaca ou que a pomba seja uma ave mais típica dos que o avestruz. Rosch e seus colaboradores estabeleceram, por meio de experimentos, tabelas dos graus de tipicidade para inúmeros conceitos. Passaram a estudar correlações entre eles e vários aspectos dos processos cognitivos. Tiveram, por exemplo, os seguintes resultados:

-quanto mais típico um caso, mais rapidamente ele é categorizado e menor é o número de erros;

-os subconceitos mais típicos são mencionados mais cedo e/ou com maior freqüência;

-o processo de aprendizagem é mais eficiente quando ocorre exposição inicial apenas a casos típicos.

Se fizermos uma conexão dessas conclusões a que Rosch (1999) chegou com fatores socioculturais envolvidos com a aquisição fonológica do português brasileiro, podemos observar que a linguagem ocorre de forma organizada, embora não uniformizada. Por exemplo, Launay (1989), ao discutir sobre o desenvolvimento lingüístico, deixa claro que a criança adquire primeiramente vogais, consoantes, sílabas, palavras e, por fim, frases e que o adulto tem uma participação direta neste trajeto, a partir do momento em que fala com

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a criança e dá sentido às suas primeiras emissões orais, além de repeti-las. Para a mesma autora, é através da repetição da linguagem da criança e da significação dessa linguagem por parte do adulto, juntamente com a imitação do adulto por parte da criança que a linguagem infantil vai se organizando.

Sabendo da fundamental importância do léxico que a criança está exposta para a organização da linguagem oral, Cristófaro-Silva & Gomes (2005), ao estudarem sobre o onset complexo no português brasileiro, afirmam que tem mais cv do que ccv e tem mais crv do que clv.

Levando em consideração o próprio desenvolvimento dos órgãos envolvidos na fonação e articulação oral, assim como a freqüência de exposição lexical, juntamente com os casos mais típicos, podemos entender o porquê da aquisição de cv ocorrer antes da crv, assim como ser mais fácil a criança falar palavras com clv do que com crv. No nosso ponto de vista, isto se dá não só partindo da ordem de facilidade-complexidade para a aquisição da linguagem frente ao desenvolvimento dos órgãos fonoarticulatórios, mas, também, partindo daquilo que está mais próximo da realidade socilingüística das mesmas, ou seja, justamente o padrão cv. Frente ao exposto, é fácil compreendermos o porquê de determinada técnica1

facilitadora para a aquisição do “erre” nos encontros, utilizada em terapia fonoaudiológica, funcionar positivamente, pois parte daquilo que a criança tem mais contato/vivência, para determinado padrão mais complexo e menos usual. Assim, praxicamente e cognitivamente, esses casos (cv) são processados de forma mais rápida e as vogais não vão atuar como empecilho na aquisição de determinados fonemas pelo fato de constituírem, no português, o núcleo da sílaba.

Desta forma, entendemos que para agirmos como facilitadores da aprendizagem e estimuladores da linguagem é necessário

1 Esta técnica consiste no seguinte: a criança silabifica o encontro consonantal que ainda não consegue falar (ou não adquiriu), como por exemplo: “pa-ra” ao invés de “pra”. A terapeuta solicita que a criança pronuncie lentamente uma seqüência de emissão do “pa-ra” e, aos poucos, pede que aumente a velocidade dessa emissão, até que, a um dado momento, surte o efeito desejado, pois a criança consegue falar tão rápido que emite “pra” ao invés de “pa-ra”. A escolha de palavras e fonemas utilizados para se trabalhar essa silabificação deve partir da realidade/do contexto da criança, respeitando, também, seus interesses e desenvolvimento orgânico. Neste sentido, a interação e a sintonia com a realidade da criança faz toda a diferença na terapia.

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considerarmos os fatores socioculturais da criança, partindo de casos ou conceitos mais típicos para os menos típicos, ou seja, da realidade mais próxima em direção aos conceitos mais distantes (novos), por vezes, mais abstratos.

5. Conceitos básicos

A noção de conceito básico é uma importante contribuição de Eleanor Rosch, apesar de ela usar também o termo categoria básica, ora para significar a mesma coisa que conceito básico, ora com sentidos diferentes. No entanto, Oliveira (1999, p. 31), ao usar essas terminologias, refere-se às seguintes denominações: “conceito é aquilo que representa. No contexto psicológico, é uma entidade mental.” Já a categoria, “é aquilo que é representado. Por exemplo, a categoria cão é um conjunto de todos os cães como entidades do mundo externo e, portanto, não-mentais”.

Tanto na concepção clássica como na prototípica, os conceitos de cada domínio são estruturados em taxonomias, que podem ser científicas, como, por exemplo, a classificação biológica (espécie, gênero, família...) ou não-científicas, presentes nas linguagens naturais (no senso comum), como, por exemplo, o conceito de artefato (objeto construído pelo homem) que, a partir dele, existem hierarquias.

Na lógica aristotélica, há uma uniformidade dos níveis taxonômicos, pois cada nível de uma taxonomia só se distingue dos outros por uma posição hierárquica, mais alta ou mais baixa, mais geral ou mais específica. Afirmar que em cada taxonomia existe um nível básico (especial), que se distingue dos demais por uma série de particularidades cognitivas, foi a grande descoberta de Rosch. Os conceitos pertencentes ao nível básico são os conceitos básicos. Ela também introduziu as noções de níveis e conceitos superordenados e subordinados. Por exemplo, “carro” é um conceito básico, “veículo” é um conceito superordenado e “carro esporte” é um conceito subordinado. Assim, chegou-se a algumas conclusões no tocante aos conceitos básicos:

-são aprendidos primeiro pelas crianças antes dos conceitos subordinado e superordenado;

-as crianças gastam menos tempo para identificá-los do que os outros tipos de conceitos;

-correspondem ao nível mais alto para o qual uma única

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imagem mental é associada ao conceito como um todo.

Ao aprendermos as categorias por ordem, partindo de um nível básico, poderemos, então, pensar em relacionar este pensamento roschiano com a concepção de estágios piagetianos ou até mesmo com os desenvolvimentos real, proximal e potencial vygotskyanos, que serão discutidos mais adiante.

6. A concepção teórica

Como já foi elucidado, algo em comum que se encontra tanto na concepção clássica como na prototípica é a defesa de que os conceitos são vistos como conjuntos de propriedades. Tal postura diferencia-se da concepção teórica que, além de comungar com esta visão dos conceitos, considera que eles são constituídos de relações com outros conceitos, formando redes ou também chamadas teorias, sejam elas científicas ou do senso comum. Desta forma, o princípio básico da concepção teórica é o de que cada conceito deve ser visto como parte constitutiva da teoria em que se encontra inserido. No entanto, o desenvolvimento das teorias não se dá igualmente para todos os tipos de conceitos.

Na tradição roschiana, a concepção teórica começou a se implantar por volta de 1984 e constitui o último marco no desenvolvimento da sua tradição.

No entanto, segundo Oliveira (1999), ao ser introduzida na psicologia, esta concepção teórica originou alguns problemas, dentre os quais, a dificuldade de entender as teorias como entidades mentais, estabelecer como elas são representadas, como funcionam, como participam do processo cognitivo etc.

Conforme Rodrigues-Leite (2006), Rosch, Thompson e Varela (1991) mudaram a visão prototípica para uma visão realista, também chamada de “virada budista”, com a interdependência de fenômenos da experiência. A cognição, então, dependeria das capacidades individuais (corpo com capacidades sensório-motrizes) embutidas em um contexto biopsicocultural. Rosch parte da visão interna para externa e, por isso, não rompeu com o objetivismo. No entanto, para a teoria de cognição social existem processos cognitivos e sociais que interferem na cognição, em que o mais importante não são as restrições biológicas e sim as sociais.

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7. Teorias de aquisição e o social

Para Scarpa (2001), a corrente behaviorista ou ambientalista foi dominante até a década de 50 nas teorias da aprendizagem. Nesta concepção, a linguagem seria aprendida e decorrente do fator de exposição ao meio, com o acúmulo de comportamentos verbais e como conseqüência de mecanismos comportamentais condicionantes, tais como: reforço, estímulo e resposta. O psicólogo Skinner (2003) foi um dos mais influentes no behaviorismo e também um dos mais criticados. Ele partiu do pressuposto de que a mente seria inacessível para se estudar o conhecimento e que os comportamentos externos de aprendizagem seriam mensuráveis.

Já o construtivista Piaget (1975), ao se preocupar em estudar o desenvolvimento cognitivo das crianças, defendeu que ele acontecia através de estágios ou períodos que vão desde o período sensório-motor até o período das operações formais, coincidindo com o período crítico para a aquisição da linguagem, que se dá por volta da adolescência.

Piaget enfatizou o egocentrismo na criança e o considerou como ponto intermediário entre o pensamento autístico e o orientado. Partiu, portanto, com a seqüência ontogenética de: pensamento autístico, depois discurso egocêntrico e, só no final, discurso orientado ou socializado. Para Duarte (2001), este processo segue um percurso do individual para o social. A aquisição da linguagem, de acordo com Piaget, é vista como resultado da interação entre o organismo e o ambiente, através de assimilações, acomodações e reequilibrações, responsáveis pelo desenvolvimento da inteligência e não como resultado do desencadear de um módulo, como preconizava o modelo inatista. Assim, a visão de Piaget é não-modularista e, na sua concepção, primeiro acontece o desenvolvimento cognitivo da criança e posteriormente é que surge a linguagem e o aspecto social estaria no último plano, ou seja, a linguagem depende do desenvolvimento cognitivo.

Imbuído de uma visão inatista, Chomsky (1983, P.65) critica Piaget (1983) quando diz: “... não me parece nada provável que as propriedades lingüísticas reflitam construções da inteligência sensório-motora ou outra coisa desse gênero”. Críticas ao modelo piagetiano baseiam-se também na interpretação de que Piaget subestimou o papel do social nessa interação entre organismo e o

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meio, ou seja, como a criança e seu interlocutor exploram os fenômenos físicos e sociais.

Já Vygotsky (1979), também de orientação construtivista como Piaget, explica o desenvolvimento do pensamento e da linguagem como tendo origens sociais, externas, nas trocas comunicativas entre a criança e o adulto. Ele viu na linguagem da criança uma realidade sócio-histórico-cultural, partindo do externo para o interno, com a seqüência de: discurso social, que, posteriormente, subdivide-se em discurso egocêntrico (que também é social) e comunicativo (que além de ser social é interior). Desta forma, ele enfatizou a fala mais primitiva das crianças, que, na sua concepção, é social, diferenciando-se de Piaget, pelos motivos acima mencionados, e também de Levinson (1995), quando diz que a linguagem é um meio ou um canal crucial para fornecer representações que são inicialmente privadas (aspectos da cognição individual) e públicas (aspectos do conhecimento compartilhado).

Outro dado importante na teoria Vygotskyana são os conceitos de desenvolvimento real, potencial e proximal. Segundo Oliveira (1991), o primeiro, é a capacidade de realizar tarefas de forma independente; o segundo é a capacidade de desempenhar tarefas com a ajuda de adultos ou de companheiros mais capazes. Pelo fato de Vygotsky dar extrema importância à interação social no processo de construção das funções psicológicas superiores, esta zona de desenvolvimento potencial possui muito valor para ele. Por fim, o nível de desenvolvimento proximal é a distância entre o nível de desenvolvimento potencial e o nível de desenvolvimento real. É o caminho que o indivíduo vai percorrer para desenvolver funções que ainda estão em processo de amadurecimento e que se tornarão consolidadas no nível de desenvolvimento real. É o domínio psicológico em constante transformação. Serve, portanto, como liame entre os dois níveis.

Para ele, por volta de dois anos de idade, haveria um movimento de interiorização e de representação mental do que antes era social e externalizado (internalização da ação e do diálogo). O processo de internalização é uma reconstrução interna de uma operação externa e, diferentemente de Piaget, considera que, neste momento, há a atividade mediada pelo outro e um processo interpessoal ou interpsicológico é transformado num processo intrapessoal ou intrapsicológico. Segundo Vygotsky (1991), a

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internalização das atividades socialmente enraizadas e historicamente desenvolvidas é a principal característica da psicologia humana.

Propõe ainda que fala e pensamento devem ser estudados juntos e atribui à atividade simbólica uma função organizadora do pensamento. Para ele, a criança é um aprendiz ativo na interação, e não passivo, como é notório na corrente behaviorista. Assim, ele defendeu a influência direta do social na aquisição da linguagem, fazendo surgir a visão socioconstrutivista, que, segundo Scarpa (2001), serviu como alternativa ao cognitivismo piagetiano e como resposta aos questionamentos chomskyanos. Para ela, diante da metáfora do “problema de Platão”: “como pode o ser humano saber tanto diante de evidências tão fragmentadas?”; ou através do “problema de Orwell/Freud”: “como pode o ser humano saber tão pouco diante de evidências tão ricas e numerosas?”; ou, ainda, com o “o problema lógico da aquisição da linguagem”: “Como, logicamente, as crianças adquirem uma língua se não têm informação suficiente para a tarefa?”, Chomsky responde logicamente que as crianças possuem a gramática universal (GU), apoiando-se na idéia de que o conhecimento da língua é muito maior do que a pobreza de estímulo e do que a sua manifestação na criança.

Ao estudar a capacidade da linguagem humana, Chomsky (1983, p. 50) a considera uma faculdade comum a todos – universal - e seria geneticamente determinada sendo, portanto, inata ao indivíduo e não um conjunto de comportamentos verbais como defendiam os adeptos do behaviorismo. No seu ponto de vista (CHOMSKY, 1995, p. 29 - 30), a faculdade humana da linguagem parece ser uma verdadeira “propriedade da espécie”, variando muito pouco entre seres humanos... cuja habilidade de usar sinais lingüísticos, a fim de expressar os pensamentos, marca a “verdadeira distinção entre o homem e o animal ou a máquina...”. Por isso, ela entra de maneira decisiva em cada aspecto da vida, do pensamento e da interação. Ela “é a grande responsável pelo fato de apenas no mundo biológico os humanos terem uma história, uma evolução cultural e uma diversidade muito complexa e rica...”.

A teoria inatista defende que a linguagem é modular - “faculdade da linguagem”, composta de unidades semi-autônomas, cada uma responsável por certos aspectos particulares da nossa competência lingüística. Para Chomsky (1983, p. 50; 64-65), a gramática é a representação da “competência intrínseca” ou

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“propriedades do estado cognitivo inicial”, é como um “sistema que especifica propriedades fonéticas, fonológicas, sintáticas e semânticas de uma classe infinita de frases possíveis”. Sendo assim, existem princípios gerais universais das línguas que não precisam ser aprendidos porque já nascemos com eles, determinados pela capacidade inata da linguagem e isto explicaria a aquisição da competência lingüística em diversas línguas.

O argumento básico de Chomsky é que num tempo bastante curto (entre 18 e 24 meses), normalmente, a criança que é exposta à pobreza de estímulo, é capaz de dominar um conjunto complexo de regras ou princípios básicos (que é a gramática internalizada do falante). Para Scarpa (2001, p.207), a pobreza de estímulo de Chomsky é uma fala fragmentada ou incompleta, que faz brotar uma gramática específica da língua nativa da criança, “de maneira fácil e com um certo grau de instantaneidade”. Porém, até que ponto há essa instantaneidade, tendo em vista a criança necessita de um tempo para desenvolver-se organicamente para perceber, analisar, armazenar e produzir determinados fonemas, assim como para compreender o mundo a sua volta?

Segundo Scarpa (2001), a teoria chomskyana apresenta três módulos diferentes: língua, cognição e aquisição da linguagem, sendo indireta a relação entre língua e cognição, enquanto que a aquisição da linguagem é independente, até mesmo da interação social, só precisando dela para ativar o LAD. No entanto, se depende dela para ativar o LAD, esse módulo não seria tão independente assim. Portanto, nessa perspectiva, já nascemos com o módulo da linguagem pronto, ou seja, a língua interna (L.I.), e é a língua externa (L.E.), organizada por regras, quem irá ativar o LAD através da pobreza de estímulos, desencadeando a ativação da LI, aflorando a língua específica. Teremos, então: L.I. LAD L.E., onde o LAD age como mediador para que a expressão oral da linguagem aconteça. Sendo assim, é passível de crítica quando se afirma que, para Chomsky, a GU existe na mente humana, independente de fatores ambientais, culturais, psicológicos ou sócio-históricos. Depois, essa concepção da faculdade da linguagem como um órgão mental é também criticada porque, até hoje, não se descobriu a localização desse órgão, configurando, desta forma, uma hipótese modularista. Sabe-se, por exemplo, que determinadas regiões do cérebro são responsáveis pelo desempenho de determinadas funções e que, quando

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ativadas ou afetadas, desencadeiam determinados tipos de comportamentos ou seqüelas. Podemos citar como exemplos, as regiões ligadas à compreensão e à expressão da linguagem, também conhecidas como área de Wernich e área de Broca. Assim, além de existirem áreas cerebrais diferentes para funções específicas, a plasticidade cerebral também desafia a existência de um único módulo responsável pela linguagem.

Conforme Ilari (2005), mesmo a lingüística gerativa (que a partir dos anos 60 se contrapôs ao estruturalismo e o substituiu no papel de paradigma científico de vanguarda) estabeleceu como objeto de análise da Lingüística a competência, ou seja, as condições de possibilidade das mensagens lingüísticas, e não as próprias mensagens (o desempenho). Saussure observou na linguagem dois aspectos: a língua e a fala. Definiu a língua como um fenômeno social, um sistema de elementos abstratos e convencionais, que existe distribuído na mente de todos os falantes de um idioma. A fala, entretanto, constitui o uso do sistema por determinado individuo, sendo, concreta e individual. Para ele, o objeto da pesquisa lingüística é o sistema e os episódios de seu uso pertencem a uma disciplina secundária: “lingüística da fala” ou “estilística”. Para Salomão (1999), embora o estruturalismo tenha proporcionado grandes avanços nos estudos das organizações fônicas, morfológicas e sintáticas, com análise no significado e significante, sendo este último o seu foco, segmentando-o até obter os elementos mínimos, tais como: fones, fonemas, traços, morfemas, lexemas... tivemos, em decorrência a exclusão do sujeito. Mas, a partir da pragmática, a Lingüística passou a aceitar a contribuição de outras áreas, deixando de se considerar auto-suficiente. Para Salomão (1999, p. 64),

quando os estudos da linguagem afastam-se da tradição formalista e encaram o desafio de tratar o fenômeno da significação, tornam-se insustentáveis tanto a tese (estruturalista) da exclusão do sujeito, como a tese (gerativa) da exclusividade do sujeito cognitivo, enobrecida pela reflexão platônico-cartesiana.

Sendo assim, pensar na linguagem distanciando-se do

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estruturalismo e do gerativismo, significa trilhar por outro caminho, que não o formalismo. Significa, conforme Marcuschi (2005), incluir o indivíduo, a sociedade, a história e a inter-ação.

8. Cognição roschiana e fonologia

Se olharmos para a fonologia sob um prisma aristotélico (concepção clássica), podemos pensar que os fonemas são categorias que possuem propriedades necessárias e suficientes, constituídas de traços distintivos. Caso alguma propriedade da categoria se modifique, já se enquadrará em outra classificação fonêmica. Neste sentido, ou falamos correta ou incorretamente determinadas palavras, independente da idade ou contexto. Para Lamprecht (2004), a categorização dos sons que o bebê percebe em um sistema fonológico inicia-se cedo e, segundo Hayes (2001 apud Lamprecht 2004, p. 29), é em torno dos 8 meses de vida que os bebês começam a compreender palavras, momento em que há o nascimento e crescimento da “verdadeira fonologia”.

Por outro lado, poderemos compreender as mudanças fonêmicas, no período de desenvolvimento da linguagem oral, conforme Teixeira (1988), que considerou a existência de processos fonológicos de simplificação os quais vão sendo descartados pragmaticamente, conforme a criança cresce (cronologicamente) e a sua fala vai se assemelhando a do adulto. Apesar de não contemplar o aspecto da interação, supomos que essa teoria deixa um espaço para a interferência do social no momento em que cita: “por assemelhar-se à fala do adulto”. Teixeira (op cit) também não descarta a variação nos seus estudos. Por exemplo, registrou o rotacismo (com o nome de “fenômeno de super-generalização”) como um dos estágios normais de aquisição da vibrante. De acordo com Lamprecht (2004), verificamos facilmente as mudanças de estratégias que a criança faz, na medida em que evolui e amadurece cotidianamente, através do crescimento físico e do aumento das capacidades cognitivas e motoras.

Concordamos com Cook-Gumperz (1987, p.22, apud Bortoni, 1996) quando afirma que seu interesse está no contexto social de cognição onde a fala une o cognitivo e o social, e acrescenta: “A fala torna passíveis de reflexão os processos por meio dos quais os alunos relacionam o novo conhecimento ao velho. Mas esta possibilidade

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depende das relações sociais, do sistema comunicativo que a professora estabelece”. Desta forma, podemos entender que o social interfere diretamente na cognição, e o funcionamento cognitivo é fundamental e indispensável para o desenvolvimento fonológico da linguagem na criança, que por sua vez também interfere no social, não havendo, assim, um limite preciso, mas uma harmonia e um forte entrelaçamento entre os três: linguagem (fala) – respeitando o desenvolvimento motor, cognição e, principalmente, social.

Ao invés de rotular de forma objetiva se a criança possui ou não a fala padrão, Teixeira (1988) procurou explicar e compreender as etapas de desenvolvimento da linguagem oral através de processos, pois defende que a fala da criança não pode ser vista como errônea, em comparação com a fala do adulto, só pelo fato de apresentar substituições, omissões, distorções ou epênteses. No entanto, podemos pensar que sua postura teórica retrocedeu na medida em que determinou a idade em que cada processo deve ser descartado, retornando ao determinismo objetivista. Porém, quando ela construiu o “Perfil do Desenvolvimento Fonológico do Português (PDFP)”, considerou as diferenças individuais, dando certa margem de segurança até que esses processos tivessem sido totalmente descartados pelos seus sujeitos. Por exemplo, para ela a criança descarta o processo de confusão de líquidas após os três anos e seis meses, podendo se estender aos quatro anos. Um outro ponto positivo do PDFP é que ele possui grande importância para o diagnóstico diferencial (serve como parâmetro de normalidade) para os profissionais que trabalham com a linguagem infantil.

Diante do exposto, podemos nos perguntar se a concepção teórica de Teixeira se insere numa teoria cognitiva. Acreditamos que sim porque através dos processos podemos observar o trabalho cognitivo que as crianças realizam, respeitando seu desenvolvimento orgânico (maturidade dos órgãos fonoarticulatórios), lingüístico e cronológico. Para ela, os processos não devem ser vistos como inatos, e sim, como “dispositivos descritivos que representam as estratégias transitórias de formulação de hipóteses utilizadas pela criança, interpretações lingüísticas com as quais tentamos capturar o processamento que subjaz à fala da criança” (p. 54).

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Conclusão

Nas últimas décadas, várias pesquisas têm procurado dar ênfase aos aspectos cognitivos com o intuito de compreender o homem, incluindo preocupações com a aquisição do conhecimento.

A ciência cognitiva é bastante criticada por Oliveira & Oliveira (1999) pelo fato de desconsiderar os fatores afetivos, o contexto e, principalmente, os fatores histórico-culturais. Para eles, a cultura e a história, em vez de serem apenas um fator que pode ou não ser levado em conta dependendo das circunstâncias, é um elemento constitutivo – essencial - dos conceitos em todos os aspectos estudados na tradição roschiana. Tal tradição, no entanto, manifesta sua a-historicidade sob a forma de uma visão estática dos conceitos, que ignora muitos aspectos de seu desenvolvimento. Além disso, o ideal cognitivista da interdisciplinaridade é pouco presente (OLIVEIRA & OLIVEIRA, op cit).

O estudo crítico da tradição roschiana nos permitiu perceber que, ao tentarmos compreender o desenvolvimento da linguagem oral através de processos fonológicos de simplificação que as crianças vivenciam, estamos lidando diretamente com o trabalho cognitivo das mesmas porque podemos compreender como elas representam a fala cognitivamente. No entanto, não podemos excluir o social, base indispensável para a aquisição e desenvolvimento lingüístico.

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CONSTRUÇÃO DE CONCEITOS EM SALA DE AULA:

SABER TRANSMITIDO VERSUS SABER CONSTRUÍDO

BUILDING CONCEPTS IN THE CLASSROOM: TRANSMITTED KNOWLEDGE VERSUS CONSTRUCTED KNOWLEDGE

Maria de Fátima Alves*

RESUMO: Partindo do princípio de que os conceitos não são entidades estáveis, mas processos de construção conjunta de significação, e do fato de que o saber deve ser construído coletivamente, e não simplesmente transmitido aos alunos de forma direta, o presente estudo visa a fazer uma abordagem crítica do processo de construção de conceitos em sala de aula, focalizando a diferença entre o saber dado a priori e o saber construído coletivamente. Para tanto, foram analisados trechos de aulas de Língua Portuguesa e de Ciência em escolas de Ensino Fundamental da cidade de João Pessoa (PB), atentando para a questão da metodologia de ensino de conceitos. O trabalho se fundamenta, teoricamente, em estudos realizados por Vygotsky (2002), Rego (2001), Baquero (2001), Oliveira e Oliveira (1999), entre outros. Os resultados apontam para a necessidade de redimensionamento das práticas de ensino de conceitos, para que possam favorecer o desenvolvimento da conceptualização pelo aluno, mediante estratégias interativas de

ABSTRACT: Based on the principle that concepts are not stable entities but joint construction processes of signification and that knowledge must be collectively constructed rather than directly transmitted to the learners, the present study aims to develop a critical approach in the construction process of concepts in classroom focusing on the difference between given knowledge and collectively constructed knowledge. In order to achieve such goal, extracts of Science and Portuguese lessons conducted at fundamental schools from João Pessoa, PB were analyzed considering the methodology applied to the teaching of concepts. Theoretically, the work was based on studies carried out by Vygotsky (2002), Rego (2001), Baquero (2001), Oliveira e Oliveira (1999), among others. The results pointed out the need to enhance teaching practices of concepts that could help students develop conceptualization through interactive teaching-learning strategies. Key words: Concept construction; Transmitted knowledge; Constructed knowledge; Teaching-

* Professora da Universidade Federal de Campina Grande

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ensino-aprendizagem. Palavras-chaves: construção de conceitos, saber transmitido, saber construído, ensino-aprendizagem.

learning process.

1. Primeiras considerações

Este artigo tratará de alguns aspectos da construção e desenvolvimento de conceitos na mente do aprendiz no contexto escolar, assunto extremamente relevante nos postulados do pesquisador russo Lev Vygotsky que, juntamente com seus colaboradores, desenvolveu uma série de experiências sobre o tópico em questão. Além disso, faz parte do interesse do texto fazer uma abordagem crítica acerca do ensino direto de conceitos em detrimento da construção coletiva destes em contextos interacionais.

A relevância do estudo dos conceitos na obra de Vygotsky se dá exatamente pelo fato de integrar e sintetizar suas principais teses acerca do desenvolvimento humano: as relações entre pensamento e linguagem; o papel mediador da cultura na construção do modo de funcionamento psicológico do indivíduo; e o processo de internalização de conhecimentos e significados elaborados socialmente. Do ponto de vista do referido autor, os conceitos são entendidos como um sistema de relações e generalizações presentes nas palavras e determinado por um processo histórico-cultural. São construções culturais internalizadas pelos indivíduos.

Em função da limitação do presente estudo, não há como fazermos uma análise de todo o tratamento que Vygotsky dá à formação e ao desenvolvimento de conceitos na mente da criança, mas apresentaremos algumas reflexões acerca de idéias elaboradas por ele sobre esse assunto, com o intuito de estabelecermos uma ponte entre os conceitos construídos coletivamente e o papel do ensino-aprendizagem para o desenvolvimento cognitivo do aprendiz.

Compreender a natureza do processo de construção e desenvolvimento de conceitos tem interessado, ao longo dos anos, estudiosos de diversas áreas (Psicologia, Lingüística, Pedagogia, entre outras). Os conceitos de modo geral e, em especial, os científicos1,

1 Conhecimentos sistematizados adquiridos nas interações escolarizadas.

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encontram-se, conforme argumenta Baquero (2001), “na encruzilhada dos processos de desenvolvimento espontâneos e daqueles induzidos pela ação pedagógica”.

2. A formação de conceitos: algumas reflexões

De acordo com Vygotsky (2000), há dois métodos tradicionais de estudo dos conceitos: o primeiro chamado método de definição é utilizado para investigar os conceitos já formados na mente da criança através da definição de seus conteúdos, e o segundo, por sua vez, trata de procedimentos utilizados no estudo da abstração. Esses métodos investigam os processos psíquicos que levam à formação de conceitos. De acordo com o ponto de vista de Vygotsky, simplesmente, pede-se à criança que descubra algum traço comum a uma série de impressões discretas, abstraindo-o de todos os outros traços aos quais está perceptualmente ligado. Esses dois métodos são inadequados, na concepção do autor, porque separam a palavra do material da percepção e operam ou com uma ou com outro.

O primeiro método, no entender de Vygotsky, torna-se inadequado devido a dois inconvenientes: em primeiro lugar, porque lida com o produto acabado da formação de conceitos, negligenciando a dinâmica e o processo em si. Ao invés de trazer à tona o pensamento da criança, por instigação, esse método suscita uma mera reprodução do conhecimento verbal de definições já prontas, fornecidas a partir do exterior. Em segundo lugar, ao centrar-se na palavra, tal método deixa de levar em consideração a percepção e a elaboração mental do material sensorial que dá origem ao conceito. “O estudo isolado da palavra coloca o processo no plano puramente verbal, que não é característico do pensamento infantil” (VYGOTSKY, 2000, p. 66).

Quanto ao segundo método, Vygotsky também tece algumas críticas pelo fato de negligenciar o papel desempenhado pelo símbolo (a palavra) na formação dos conceitos; um quadro simplificado substitui a estrutura complexa do processo total por um processo parcial.

Um grande passo, segundo o referido autor, foi dado com a criação de um novo método que permite a combinação dos dois procedimentos apresentados. Esse método introduz, na situação experimental, palavras sem sentido que, em princípio, não significavam nada ao sujeito do experimento. Também introduz

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conceitos artificiais, ligando cada palavra sem sentido a uma determinada combinação de atributos dos objetos para os quais não existe nenhum conceito ou palavras já prontos. Nesta perspectiva, um conceito não é uma formação isolada, fossilizada e imutável, mas sim, uma parte ativa do processo intelectual, constantemente a serviço da comunicação, do entendimento e da solução de problemas. O novo método centra a sua investigação nas condições funcionais da formação de conceitos. Nesse contexto, Vygotsky destaca os experimentos dos autores Ach e de Rimat.

Os experimentos de Ach (apud VYGOTSKY, 2000, p. 67) revelam que:

a formação de conceitos é um processo criativo, e não um processo mecânico e passivo; que um conceito surge e se configura no curso de uma operação complexa voltada para a solução de alguns problemas; e que só a presença de condições externas favoráveis a uma ligação mecânica entre a palavra e o objeto não é suficiente para a criação de um conceito.

Para Rimat, citado por Vygotsky (2000, p. 67), a verdadeira formação de conceitos excede a capacidade dos pré-adolescentes e só tem início no final da puberdade. De forma mais específica, ele diz que só após o termino do décimo segundo ano manifesta-se um nítido aumento na capacidade do aluno formar conceitos objetivos, generalizados.

Em uma série de investigações sobre essa questão, Vygotsky e seus colaboradores chegaram a descobertas importantes que podem ser resumidas da seguinte forma: o desenvolvimento dos processos que resultam na formação de conceitos começa na fase mais precoce da infância, mas as suas funções intelectuais que formam a base psicológica do processo da formação de conceitos amadurece, configura-se, e se desenvolve somente na puberdade.

A formação de conceitos é, no entender de Vygotsky (2000, p. 72), o resultado de uma atividade complexa em que todas as funções intelectuais básicas tomam parte. No entanto, o processo não pode ser reduzido à associação, à atenção, à formação de imagens, à inferência ou às tendências deterministas. Todas são importantes, porém, insuficientes sem a palavra, meio que conduz as nossas operações

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mentais em direção à solução de um problema. A presença de um problema que exige a formação de conceitos é extremamente importante para o desenvolvimento do pensamento conceitual.

Para Vygotsky (2000, p. 73):

Se o meio ambiente não apresenta nenhuma dessas tarefas ao adolescente, não lhe faz novas exigências e não estimula seu intelecto, proporcionando-lhe uma série de novos objetos, o seu raciocínio não conseguirá atingir os estágios mais elevados, ou só os alcançará com grande atraso.

Essa afirmação do autor nos leva a refletir de fato sobre a formação de conceitos no espaço da sala de aula, onde, na maioria das vezes, os conceitos não são construídos de forma interativa, mas dados a priori pelo professor, como se os alunos fossem meros receptores passivos de conteúdos escolares.

É importante ainda destacar, nessa reflexão, que a trajetória até a formação de conceitos, na perspectiva vygotskyana, passa por três fases básicas, divididas em vários estágios. Na primeira fase, a criança pequena dá o seu primeiro passo para a formação de conceitos quando agrupa alguns objetos numa agregação desorganizada ou “amontoado”, para selecionar um problema que os adultos certamente resolveriam com a formação de um novo conceito. Nesse estágio, o significado das palavras denota, para a crianças, um aglomerado vago e sincrético de objetos isolados que se aglutinaram numa imagem em sua mente.

A segunda fase, por sua vez, abrange diversas variações de um tipo de pensamento chamado por Vygotsky de pensamento por complexos. Em um complexo, os objetos isolados associam-se na mente da criança não apenas devido às suas impressões subjetivas, mas também devido às relações que de fato existem entre esses objetos. Trata-se de uma nova aquisição, de uma passagem para um nível mais elevado.

E a terceira fase só se realiza depois que o pensamento por complexos tiver realizado todo o seu curso de desenvolvimento. Esse pensamento, segundo o autor, cria uma base para generalizações posteriores. Porém, o conceito desenvolvido pressupõe algo além da unificação. Para formá-lo, é preciso abstrair, isolar elementos e

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examinar os elementos abstratos separadamente da totalidade da experiência concreta de que fazem parte.

Cremos que todas essas fases devem fazer parte do conhecimento dos professores, a fim de que eles possam criar estratégias que possam estimular o intelecto da criança no sentido de que ela possa atingir estágios de desenvolvimento mental, cada vez mais elevados. De que forma? Mediante interações com o meio social em que ela vive, já que as formas psicológicas sociais emergem da vida social. Assim, o papel do outro, enquanto mediador do saber é extremamente importante no desenvolvimento do psiquismo da criança e, conseqüentemente, na formação de conceitos na escola ou fora dela. O que se sabe é que as crianças, mediante processos interativos, pouco a pouco vão atribuindo significado à realidade, à medida que vão se apropriando do funcionamento psicológico, do comportamento e da cultura.

Considerando essa realidade e o fato de que o aprendizado escolar induz o tipo de percepção generalizante, desempenhando, assim, um papel decisivo na conscientização da criança de seus próprios processos mentais, os conceitos científicos, com o seu sistema hierárquico de inter-relações, parecem constituir o meio no qual a consciência e o domínio se desenvolvem, sendo mais tarde transferidos a outros conceitos e a outras áreas do pensamento. A consciência reflexiva chega à criança através dos portais dos conhecimentos científicos.

Em linhas gerais, o processo de formação de conceitos, imprescindível ao desenvolvimento dos processos psicológicos superiores, é bastante complexo, uma vez que envolve operações intelectuais dirigidas pelo uso das palavras (tais como atenção deliberada, memória lógica, abstração, capacidade para comparar e diferenciar). Para aprender um conceito, como bem destaca Rego (2001, p. 78), além de informações recebidas do exterior, é necessária uma intensa atividade mental por parte da criança. Portanto, um conceito não é aprendido por meio de um treinamento mecânico, nem tampouco pode ser meramente transmitido pelo professor ao aluno.

A experiência prática mostra que o ensino direto de conceitos é impossível e infrutífero. Um professor que tenta fazer isso geralmente não obtém qualquer resultado, exceto o verbalismo vazio, uma

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repetição de palavras pela criança, semelhante à de um papagaio, que simula um conhecimento dos conceitos correspondentes, mas que na realidade oculta um vácuo. (VYGOTSKY, 2000, p. 104).

Concordamos plenamente com esse ponto de vista de Vygotsky porque acreditamos que a transmissão direta do conceito consiste em um ato passivo e mecânico de ensino-aprendizagem que pouco contribui para desenvolver as habilidades psicológicas superiores do aprendiz. Não há chance, nesse sentido, de ele acionar conhecimentos prévios, levantar, hipóteses, construir inferências sobre o novo objeto de estudo. De forma contrária, o aluno apenas houve o conceito, copia no caderno e, em poucos dias, possivelmente esquece aquela definição por falta de um trabalho coletivo que lhe possibilitasse intervir na construção do conceito, fazendo uso de seus conhecimentos prévios sobre o tópico em discussão e/ou sobre a construção do próprio conceito.

É importante salientar que no caso dos conceitos científicos que a criança adquire na escola a relação com um objeto é mediada, desde o início, por algum outro conceito. Assim, a própria noção de conceito científico implica certa posição em relação a outros conceitos, isto é, um lugar dentro de um sistema de conceitos. Para Vygotsky, os rudimentos de sistematização primeiro entram na mente da criança, por meio do seu contato com os conceitos científicos, e são depois transferidos para os conceitos cotidianos, mudando a sua estrutura psicológica de cima para baixo.

Essa discussão aponta para a relação entre o aprendizado escolar e o desenvolvimento mental da criança, focalizando inclusive a importância da zona de desenvolvimento proximal (ZDP), definida por Vygotsky como sendo:

A distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de adultos ou em colaboração com companheiros mais capazes. (VYGOTSKY, 2000, p. 112).

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Esse conceito de ZDP de Vygotsky é extremamente útil, no

sentido de percebermos a importância do papel do outro no processo de ensino-aprendizagem, tanto no ambiente familiar, quanto no contexto escolar. É mediante o incentivo, a participação do aluno e a negociação de suas idéias, que a linguagem e o saber vão sendo construídos, simultaneamente, em um contexto específico de comunicação. Concebendo o ajuste interativo como algo presente na origem da atividade interpretativa e de toda aprendizagem e acumulação cultural, Miranda (2001, p. 60) mostra que a linguagem sinaliza a forma como, com o propósito de intercomunicação pessoal, o ser humano categoriza e constrói o mundo, adotando múltiplas perspectivas. E a linguagem é também a mediadora do embate, do drama que emerge dessas diferentes formas de focalizar e significar o mundo. Assim, entendemos que o princípio de partilhamento das ações da linguagem torna-se indispensável ao desenvolvimento proximal e ao processo de construção e desenvolvimento de conceitos. Com efeito, o ensino não deve se restringir a uma mera transmissão de saber, nem o aprendiz deve assumir uma posição secundária e marcadamente passiva em função do modelo de ensino ao qual o professor adere.

3. Saber transmitido x saber construído

As discussões voltadas para um processo de ensino-aprendizagem que priorize a perspectiva interacional de linguagem, como um lugar em que se instaura a interação, sem dúvida, ressalta a importância de um saber construído, coletivamente, em detrimento de um saber que seja meramente transmitido, deixando de lado os interesses e as expectativas dos alunos em relação à aprendizagem. Com isso não queremos dizer que uma aula expositiva não propicie, em hipótese alguma, aprendizagem. É claro que vai depender do conhecimento prévio dos sujeitos (professor/aluno) na moldura comunicativa e do compartilhamento de sentido destes acerca do conteúdo/objeto de conhecimento. Mas a grande questão é que, na maioria das aulas expositivas, onde os conteúdos, conceitos e definições são dados, prontamente, ao aluno, o professor se torna o dono do tópico, apresenta-o e o desenvolve sem permitir a intervenção do sujeito-aprendiz. “Trata-se da preleção clássica em que o professor é o dono do tópico e está ali para ensinar. Presta-se como formato

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típico de aulas teóricas” (MARCUSCHI, 2004).

Assim, torna-se evidente a relevância da questão da interação sócio-cultural no processo de construção de conceitos. O sentido é vivo, construído e desenvolvido em função dos propósitos comunicativos do aprendiz.

Como bem diz Tomasello (2003), a inteligência humana tem origem cultural, e neste sentido, ao falar do papel da comunicação lingüística no desenvolvimento cognitivo, o autor destaca três dimensões do processo: (a) a ‘transmissão’ cultural do conhecimento às crianças por meio da comunicação lingüística; (b) as maneiras pelas quais a estrutura da comunicação lingüística influencia a construção de categorias cognitivas, relações, analogias e metáforas por parte das crianças; e (c) as maneiras pelas quais a interação lingüística com outros (discurso) induz as crianças a adotarem diferentes perspectivas conceituais sobre fenômenos.

O aprendizado mediante a transmissão do conhecimento e instrução, algo óbvio, é, na perspectiva de Tomasello (2003, p. 232), um processo limitado porque não há algo novo, mas aprendido dos outros. A aquisição de uma língua natural não serve apenas para expor crianças a informações culturalmente importantes. Serve para socializar, estruturar culturalmente a maneira como as crianças habitualmente percebem e conceitualizam diferentes aspectos do mundo. Ao tentarem compreender atos de comunicação lingüística, segundo o referido autor, as crianças entram em processos muito especiais de categorização e perspectivação conceitual.

Feitas essas reflexões em torno da diferença entre saber dado versus saber construído, focalizando a origem cultural do desenvolvimento cognitivo, apresentaremos alguns exemplos de conceitos/definições trabalhadas em sala de aula, que evidenciam a problemática do objeto de estudo do presente trabalho: a construção de conceitos em sala de aula, de forma direta ou coletiva. Observe os seguintes exemplos:

Após a leitura do texto Narizinho, de Monteiro Lobato, trabalhado em uma turma de 6ª série de uma escola pública, a professora faz algumas perguntas aos alunos, voltadas para a definição ou construção de sentido de palavras por eles desconhecidas.

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Exemplo 01 P: Tem algumas palavras no texto que vocês não compreenderam?

A: Tem

P: Qual?

A: repugnância, jazia, afeição, voraz, enlutara...

P: Como é que a gente sabe o significado das palavras?

As: [[OLHANDO no di-cio-ná-rio

P: Entã::ao façam... abram o dicionário para observarem os conceitos ... as palavras

difíceis.

A: O que é voraz...professora?

P: Olhe no dicionário...já olhou?

A: Olhei...mas não achei não.

Professora... no dicionário não tem JAZIA... e agora?

P: JAZIA – o lugar em que alguém é morto e enterrado.

O trecho acima mostra claramente a ênfase dada ao uso do dicionário em sala de aula, em detrimento de um processo coletivo de construção de conceitos a partir de processos interacionais que considerem, por exemplo, o conhecimento prévio do aluno, as estratégias de inferências lexicais, entre outros aspectos relevantes para que o aluno adquira condições funcionais para formação/construção de um conceito e/ ou atribuir sentido as palavras desconhecidas por ele no texto. Os significados das diversas palavras, destacadas no exemplo 01 e desconhecidas pelos alunos, nem foram encontrados por eles no dicionário, uma vez que sequer sabiam utilizar, devidamente, tal instrumento didático, no sentido de perceber a significação de uma mesma palavra em contextos diversos de comunicação. Como se percebe, as dúvidas dos alunos não foram levadas em consideração pela professora, a não ser a definição da palavra “jazia”, apresentada de forma direta e improdutiva, sem dar chance ao aluno de construir coletivamente, o sentido da palavra desconhecida. Na verdade, a professora não definiu JAZIA e sim JAZIGO, sem atentar para o fato de que necessariamente quem é enterrado no jazido também foi morto nele.

Os conceitos não são entidades estáveis possuídas pelos sujeitos, mas produto de um processo de construção conjunta de

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significações. Nas palavras de Oliveira (1999), em estreita relação com as proposições vygotskyanas está a postulação de conceitos como resultados, sempre em mudança, da interação humana com objetos de ação e de conhecimento, com signos e significados culturais, e de maior importância, com outros sujeitos em situações de construção coletiva de significados mediante processos de negociações interpessoais.

Veja o exemplo a seguir. Neste, o aluno mostra-se capaz de construir o conceito “decreto-lei”, que, infelizmente é rejeitado pelo professor, por não apresentar características semelhantes ao conceito presente no dicionário e/ou no glossário do livro didático “ Português através de textos” da autora Magda Soares.

Exemplo 02 /../

P: O que é decreto-lei?2

Al.1: Decreto-lei é o decreto que o chefe do poder executivo expede, com força de

lei por estar absorvendo, anormalmente, as funções próprias do legislativo

eventualmente supresso.

P: Muito bem, você fez pelo dicionário ou pelo glossário, não foi?

Al. 1: Foi.

Al. 2: Decreto-lei é as regras do jogo, professora!

P: Artur, você hoje está pior do que Rodrigo. Inventando conversas.

(Aula de Português – turma de 7ª série – Escola publica da cidade de João

Pessoa/PB)

Como podemos verificar no exemplo acima transcrito, a professora, ao desconsiderar o conceito de decreto-lei construído pelo aluno, impede, de certo modo, que ele participe da aula e do jogo constitutivo do saber. Em contrapartida, ela elogia a definição apresentada por outro aluno, copiada do glossário do livro didático, já mencionado. Assim, a aula deixa de ser um lugar potencial de criação

2 As perguntas feitas aos alunos, no exemplo 02, foram extraídas do texto “ A constituição de Caturama” de Chico Alencar, extraído do livro didático de Magda Soares – 7ª série – “Português através de textos” publicado pela editora moderna.

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de significações sociais que levaria à aprendizagem e à ampliação de conhecimentos, contrariando, dessa forma, a perspectiva de que os conceitos são produtos de processos de construção conjunta de significações.

Acreditamos que a estratégia utilizada pela professora faz parte da perspectiva clássica que considera o conceito como um conjunto de propriedades necessárias e suficientes, e não como produto de construções conjuntas de significados. Cremos, no entanto, que o conceito de decreto-lei construído pelo aluno deveria ter sido desenvolvido em sala de aula, e não excluído.

Nesse sentido, é interessante destacar o que afirma Fontana (apud REGO,2001, p. 08), ao salientar que “Frente a um conceito sistematizado, desconhecido, a criança busca significá-lo através de sua aproximação com outros já conhecidos, já elaborados e internalizados”. Ela busca enraizá-lo na experiência concreta. Do mesmo modo, um conceito espontâneo nebuloso, aproximado a um conceito sistematizado, coloca-se num quadro de generalização.

Esse ponto de vista da autora, a nosso ver, apresenta relação direta com o exemplo de decreto-lei, construído pelo aluno 02, no qual se percebe a construção mediante os esquemas de conhecimentos do aluno, os seus conhecimentos prévios que lhe ajudam a formar novos conceitos em contextos específicos de comunicação. Ou seja, o aprendiz busca enraizar o novo objeto de conhecimento a sua experiência concreta de vida. Mas à medida que a escola rejeita esse conhecimento do aluno, ela tira dele a chance de aprender e/ou de construir novos conceitos.

O saber não deve ser tomado como verdade absoluta, mas como hipótese de explicações que se configuram na interação entre professor e alunos. O ensino-aprendizagem não deve ser visto como uma questão de tudo ou nada, de certo ou errado, mas como um meio que favorece o desenvolvimento da competência cognitiva do aluno-aprendiz, isto é, da sua capacidade de processar conhecimentos mediados pelo jogo interlocutivo. É a posição crítica do aluno em relação ao novo objeto de conhecimento que possibilita sua aprendizagem e não a rejeição de seus conhecimentos ou saberes construídos por ele.

Em outras situações, os alunos sequer dispõem de tempo necessário para elaborar conceitos ou respostas para questões apresentadas pelo professor a partir da interpretação de um texto. Isto

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porque, através do método direto de ensino ou de um saber dado a priori, o professor, torna-se o dono do turno do início ao final da aula, dando, inclusive, as respostas prontas aos alunos para atividades solicitadas. Estas são atividades de mera decodificação3, como podemos verificar no exemplo 03 a seguir:

Exemplo 03 /.../

Prof.: Na letra c... o autor joga com duas palavras para dar impacto ao que afirma.

Identifique essas palavras. Quais são elas? LIXO E LUXO. Qual é o significado da

palavra PÃO no 3º parágrafo? Ele usa no sentido de ALIMENTO.

Prof.: No quarto parágrafo, o autor trata de crianças que não se sentem amadas.

Quais são as três causas de desamor citadas? A primeira... pais ausentes...a segunda

... crianças criadas em barracos e a terceira (xxx) conseqüências da violência.

((Falas do professor ao longo do exercício de interpretação do texto Como criar uma fera em casa, de Frei Beto, trabalhado em uma turma de 7ª série - E uma escola pública, na cidade de João Pessoa – PB))

Como mostra o exemplo acima, o professor, em uma aula de interpretação de textos, faz a pergunta aos alunos e, automaticamente, dá a resposta, sem, no entanto, propiciar meios para que eles possam refletir, inferir e responder às atividades propostas, inclusive compreendendo o que significaria LIXO e LUXO, atentando para o impacto que elas causam na afirmação do autor.

Neste caso, só o professor detém a palavra e o saber, e os alunos, por sua vez, apenas escutam e copiam o que ele dita. Esse tipo de estratégia, sem dúvida, é improdutivo e infrutífero porque em nada contribui para ampliar o desenvolvimento conceptual do aluno.

Do nosso ponto de vista, uma aula, expositiva ou não, deve ser caracterizada como um espaço social para construção do saber, e não

3 As atividades de decodificação não passam de um processo mecânico ou de atividades que se compõem de uma série de automatismos de identificação e pareamento das palavras do texto com as palavras idênticas numa pergunta ou comentário. Isto é, para responder a uma pergunta sobre alguma informação do texto, o leitor só precisa o passar do olho pelo texto a procura de trechos que repitam o material já decodificado da pergunta (Cf. Kleimann, 1995, p.20).

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como um monólogo, porque o tópico conteudístico sofrerá influência do processo de exposição do professor, assim como da participação dos alunos. É através dessa participação que se favorece o compartilhamento de sentido e, conseqüentemente, a construção de conceitos/definições rumo à aprendizagem significativa.

Na perspectiva vygotskyana, o ensino escolar, desempenha um papel importante na formação dos conceitos de um modo geral, e dos científicos, em particular. A escola, como afirma Rego (2001, p.79), fundamentada nos postulados de Vygotsky, propicia às crianças um conhecimento sistemático sobre aspectos que não estão associados ao seu campo de visão ou vivência. Possibilita que o indivíduo tenha acesso ao conhecimento científico construído e acumulado pela sociedade.

Os exemplos analisados negam esse acesso aos conhecimentos científicos pelos alunos, demonstrando que a escola não está assumindo o seu papel enquanto formadora de sujeitos pensantes, ativos e capazes de construir conhecimentos mediante práticas interacionais de linguagem.

A aprendizagem dos conceitos científicos na escola baseia-se num conjunto de significados da palavra, desenvolvidos previamente e originários das experiências cotidianas da criança. Esse conhecimento espontaneamente adquirido medeia a aprendizagem de novos conceitos/conteúdos.

Vygotsky via no desenvolvimento de conceitos científicos um conjunto de princípios gerais que invadem toda a instrução institucionalizada ou formal. O mais importante é que a criança seja colocada na posição de recordar e manipular conscientemente o objeto da instrução. Dessa forma, a atenção consciente e a volição são limitadas pelo ato de saber, em contraste com a qualidade espontânea dos conceitos cotidianos.

Por fim, queremos deixar claro que, em uma perspectiva interacional, a transmissão social do conhecimento é um produto da experiência comunicativa e da compreensão dos participantes, interativamente criadas, e a construção desse conhecimento por meio da linguagem se origina de um movimento interlocutivo, intersubjetivo. Os conceitos não são conceptualizados de forma desvinculada das atividades discursivas sobre o mundo, da natureza sócio-interacional da linguagem. O significado de um item lexical ou de um conceito é dinâmico e construído mediante a necessidade de

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uso da língua e do propósito do falante.

Para se construir um conceito, faz-se necessário que haja compartilhamento de sentido, troca, negociação dos interactantes da linguagem, de forma estreitamente ligada a sua visão de mundo em um dado contexto sócio-cultural. Ou seja, é na manifestação de um acordo entre eles, em uma dada situação comunicativa, que as significações ocorrem pragmaticamente. Não se trata apenas de dizer ao aprendiz o que significa uma palavra x ou y. Veja o seguinte exemplo que, diferentemente dos outros apresentados neste texto, ilustra a construção coletiva do saber.

Exemplo 04 /.../

P: Nós vamos falar sobre peixes.... o que é um peixe? Quem me dá uma definição

sobre peixes?

Al.: Peixe é um animal.

P: Que tipo de animal ?

Al.: Aquático. Muito bem... o que mais?

Al.: Tem escamas.

P: Respira pelos brônquios...não é isso?

As.: É.

P.: Tem peixe que não tem osso?

Al.: Tem

P: Qual?

Als.: Tubarão, cação.

P: Eles têm o quê?

Als.: Cartilagem.

(Diálogo extraído de uma aula de Ciências ministrada numa turma de 7ª série -

Escola pública da cidade de João Pessoa (PB).

A transcrição acima nos faz perceber que o conhecimento ou a construção do significado do conceito científico, no caso a palavra PEIXE , vai sendo passo a passo produzido, mediante a interação professor/aluno. O conceito é construído numa perspectiva sócio-interacionista, visto que ao invés de definir peixe como sendo um

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animal vertebrado aquático, coberto por escamas, a professora instiga os alunos a fazerem uso de seus esquemas de conhecimento prévio, de suas experiências culturais e familiares. Há uma negociação entre os participantes do discurso e uma relação entre os domínios cognitivos e os espaços mentais4, possibilitando o processamento do conhecimento. O nível potencial do aluno é levado em conta na própria dinâmica de seu desenvolvimento cognitivo. Os modelos cognitivos idealizados - conhecimentos socialmente produzidos e culturalmente disponíveis - são extremamente relevantes na cognição humana, uma vez que possibilitam o domínio, a lembrança e o uso de um vasto conjunto de conhecimentos adquiridos na vida diária.

Acreditando que os conhecimentos são socialmente construídos, entendemos que sempre que uma opinião é questionada ou posta em jogo parece haver uma reestruturação conceitual por parte do indivíduo que tenta formular uma resposta ou solucionar um impasse. Essa reestruturação conceitual parece mostrar várias fases de um mesmo conceito em constante rearranjo interno e externo, este proporcionando novas relações com outros conceitos. E foi isso que verificamos no exemplo 04, uma vez que os questionamentos feitos pela professora, tais como: que tipo de animal é o peixe?, ele respira pelos brônquios? Contribuíram, a nosso ver, para a construção das diversas facetas do conceito.

Para Lakoff e Johnson (2002), os conceitos que governam nosso pensamento não são meras questões de intelecto. Eles governam também as nossas atividades cotidianas, até nos detalhes mais triviais.

4 Segundo Fauconnier & Sweetser (1996, p. 8-9), “a linguagem nos permite falar não só sobre o que é, mas também sobre o que poderia ser, o que será, do que se espera, do que se acredita, de hipóteses, do que é visualmente esperado, do que aconteceu, do que deveria ter acontecido, dentre outros”. Sendo assim, dependendo dos propósitos que temos em mente, fazemos referência a diversos fatos. Para Fauconnier & Sweetser, a idéia central é a de que quando as pessoas se envolvem em um evento de fala, espaços mentais são construídos, estruturados, e ligados a partir da gramática, do contexto e da cultura, e são motivados pela sua intenção comunicativa. O efeito disto é a criação de uma rede de espaços através dos quais nos movemos à medida que o discurso ocorre. A linguagem aciona os meios para se construir o significado, assim como o contexto em que os participantes estão inseridos, a experiência anterior dos mesmos e as conexões feitas a partir das construções de espaços mentais. “É inerente à cognição humana contextualizar e acessar informações de maneira diferente em contextos diferentes” (p. 8). (Cf. RODRIGUES LEITE, 2005)

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Eles estruturam o que percebemos, a maneira como nos comportamos no mundo e o modo como nos relacionamos com outras pessoas.

Considerando a linha de abordagem dos autores citados, dentre eles Vygotsky (2000), Lakoff e Johnson (2002), Oliveira (1999), Rego (2001), entre outros, entendemos que os conceitos não são entidades isoladas, estáveis, possuídas por um sujeito, mas são frutos de atividades conjuntas de significações, ou seja, de um conjunto complexo de inter-relações entre os conceitos e os sujeitos.

4. A abordagem sócio-interacionista de Vygotsky e suas implicações para a educação

De acordo com Rego (2001), a obra de Vygotsky apresenta uma grande contribuição para a área da educação, na medida em que traz importantes reflexões sobre o processo de formação das características psicológicas tipicamente humanas e instiga a formulação de alternativas no plano pedagógico.

Ao desenvolver o conceito de zona de desenvolvimento proximal e outras teses, Vygotsky oferece elementos importantes para a compreensão de como se dá a integração entre ensino, aprendizagem e desenvolvimento. Veja algumas implicações de suas idéias: a valorização do papel da escola; a idéia de que o bom ensino é o que se adianta ao desenvolvimento; o papel do outro na construção do conhecimento.

4.1. A valorização do papel da escola

A leitura da obra de Vygotsky chama a atenção para o fato de que a escola tem um papel diferente e insubstituível na apropriação, pelo sujeito, da experiência culturalmente acumulada. Ela possibilita a realização plena do desenvolvimento dos indivíduos, promovendo a possibilidade de analisar os elementos da realidade. Na escola, conforme destaca Rego (2001), as atividades educativas, diferentes daquelas que ocorrem no cotidiano extra-escolar, são sistemáticas, têm uma intencionalidade deliberada em tornar acessível o conhecimento formalmente organizado. Nesse contexto, as crianças são desafiadas a entender as bases dos sistemas de confecções científicas e a tomar consciência de seus próprios processos mentais.

O ensino verbalista, baseado na transmissão oral de

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conhecimentos, por parte do professor, assim como as práticas espontaneístas , que abdicam de seu papel de desafiar e de intervir no processo de apropriação de conhecimentos por parte das crianças e dos adolescentes, são, em uma abordagem sócio-interacionista, além de infrutíferos, extremamente inadequados. Neste sentido, há necessidade de criação de melhores condições na escola, para que todos os alunos tenham acesso a informações e a experiências, podendo, efetivamente, aprender.

4.2. O bom ensino é o que se adianta ao desenvolvimento

A qualidade do trabalho pedagógico está associada à capacidade de promoção de avanços no desenvolvimento dos alunos. Os processos de desenvolvimento são impulsionados pelo aprendizado. Só amadurecerá se aprender. A escola desempenha bem o seu papel na medida em que, partindo daquilo que a criança já sabe, for capaz de ampliar e desafiar a construção de novos conhecimentos, ou seja, na linguagem vygotskyana, incidir na zona de desenvolvimento potencial dos educandos. A escola deve ser capaz de desenvolver nos alunos capacidades intelectuais que lhes permitam assimilar plenamente os conhecimentos acumulados. Desse modo, não deverá se restringir à transmissão de conteúdos, mas ensinar ao aluno a pensar, ensinar formas de acesso e de apropriação de conhecimentos, elaborados de modo que possa praticá-los, automaticamente, ao longo da vida, além de sua permanência na escola.

4.3. O papel do outro na construção de conhecimentos

Segundo a teoria histórico-cultural, o indivíduo se constitui enquanto tal não somente devido aos processos de maturação orgânica, mas principalmente através de suas maturações sociais, a partir das trocas estabelecidas com seus semelhantes. As funções psíquicas humanas estão vinculadas ao aprendizado, à apropriação do legado cultural de seu grupo. O longo caminho do desenvolvimento humano segue, portanto, a direção do social para o individual. Construir conhecimentos implica uma ação partilhada, já que é através dos outros que as relações entre sujeito e objeto de conhecimento são estabelecidas.

O paradigma esboçado sugere um redimensionamento do valor

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das interações sociais (entre os alunos e o professor) no contexto escolar. Essas passam a ser entendidas como condição necessária para a construção de conhecimentos por parte dos alunos, particularmente, aquelas que permitem o diálogo, a cooperação e troca de informações mútuas, o confronto de pontos de vistas diferentes e que implicam na divisão de tarefas, onde cada um tem uma responsabilidade. Cabe, portanto, ao professor não somente permitir que tais interações ocorram, como também promovê-las no cotidiano das salas de aula.

Uma prática escolar baseada nesses princípios deverá, necessariamente, considerar o sujeito ativo no seu processo de conhecimento, já que ele não é visto como aquele que recebe passivamente as informações do exterior.

Na perspectiva dos estudos vygotskyanos, o professor deixa de ser visto como agente exclusivo de informação e formação dos alunos, uma vez que as relações estabelecidas entre as crianças também têm um papel fundamental na promoção de avanços no desenvolvimento individual, sobretudo, no que se refere à formação de conceitos.

Em linhas gerais, os postulados de Vygotsky destacam a necessidade da criação de uma escola diferente da que conhecemos. Uma escola em que os alunos e professores tenham a chance de dialogar, duvidar, discutir, questionar e compartilhar conhecimentos. Onde há espaço para transformações, criatividade, diferenças, construção conjunta do saber. Uma escola em que o aluno não é considerado como um sujeito passivo, mero receptor de conteúdos cristalizados e transmitidos pelo professor e/ou livro didático, mas um sujeito ativo, capaz de construir conhecimentos em função de seus interesses, expectativas, inferências, hipóteses e conhecimentos prévios.

Considerações Finais

A pesquisa realizada, a nosso ver, aponta para algumas questões básicas: primeiro, um conceito não deve ser visto apenas como um conjunto de propriedades individualmente necessárias e conjuntamente suficientes, de modo que uma entidade seja, ou não, membro do conceito; segundo, a significação de um conceito não é algo que é dado a priori, como se nossa mente fosse um mero depósito de saber, mas é construída em função de um sistema de relações, ou melhor, de processos interativos, mediados pela

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linguagem em uma situação específica de comunicação. Ou seja, a organização conceitual não é uma teoria pronta e estável, mas é fruto de um processo de construção coletiva de significados, de relações interpessoais, da necessidade de construção significativa em um dado evento comunicativo. É mediante os processos interativos, na troca de experiências, na inter-relação entre conceitos, que novos conceitos são construídos e desenvolvidos na mente do indivíduo.

Em sala de aula, entretanto, essa noções parecem não ter sido ainda assimiladas por diversos professores, que trabalham a construção e o desenvolvimento de conceitos de forma equivocada, priorizando o uso direto de tais conceitos em detrimento de um trabalho coletivo capaz de favorecer o desenvolvimento conceptual do aluno.

Os exemplos analisados mostram que a escola não desempenha devidamente o seu papel no sentido de ampliar e desafiar a construção de novos conhecimentos por parte dos alunos. Muitas vezes, o seu trabalho restringe-se, meramente, à transmissão de conhecimentos, como se o aluno fosse, de fato, um papagaio e não um sujeito pensante e capaz de construir o seu saber. Em outras situações, ao invés de aproveitar os conceitos construídos pelo aprendiz, rejeita-os, causando-lhe desinteresse pela aprendizagem e até certos traumas no tocante à participação nos tópicos discursivos em sala de aula e a elaboração de novos conceitos.

Portanto, faz-se necessário que os professores conheçam um pouco mais as teorias voltadas para a questão da formação e desenvolvimento de conceitos, a fim de que possam redimensionar suas práticas de ensino-aprendizagem, apresentando meios favoráveis à intervenção dos alunos e, conseqüentemente, à produção e ampliação de conhecimentos destes na escola e em seu convívio social.

REFERÊNCIAS

BAQUERO, R. Vygotsky e a aprendizagem escolar. São Paulo: Artmed, 2001. LAKOFF, George e JOHNSON Mark. Metáforas da vida cotidiana. Coordenação da tradução Maria Sophia Zannoto. Campinas/SP: Mercado de Letras; São Paulo/ EDUC, 2002. MARCUSCHI, L. A . O diálogo no contexto da aula expositiva: continuidade, ruptura e integração. Recife - UFPE (mimeo), 2004 .

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MIRANDA, Neusa Salim (2001). O caráter partilhado da construção da significação. In: Veredas. Revista de Estudos Lingüísticos. Vol. 5., nº 1, Janeiro/Junho. Juiz de Fora: UFJF. OLIVEIRA, M. K. Três questões sobre desenvolvimento conceitual. In: OLIVEIRA, M. B. & ______. Investigações cognitivas: conceitos, linguagem e cultura. Porto Alegre, Artes Médicas, 1999. ______. Organização conceitual e escolarização. In: OLIVEIRA, M. B. & OLIVEIRA M. K. Investigações cognitivas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999. REGO, T. C (2001). Vygotsky: uma perspectiva histórico-cultural da educação. Rio de Janeiro: Petrópolis, 2001. RODRIGUES-LEITE, J.E. A construção pública do conhecimento: linguagem e interação na cognição social. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Lingüística: UFPE, 2004. TOMASELLO, Michael (2003). Origens culturais da aquisição do conhecimento humano. Tradução: Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes. VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

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IDENTIFICAÇÃO E REPRESENTAÇÃO POLÍTICA: O

INTRINCAMENTO DESSES DOIS PROCESSOS

Political Identification and Representation: the intricateness of both

processes

Ercília Ana Cazarin **

RESUMO:

O texto enfatiza a estreita relação entre os processos de identificação e representação política. O primeiro, concebido como construído pela alteridade, isto é, pela diferença, pela afirmação ou pela rejeição do outro; mas nesse processo também conta o lugar social em que o sujeito está inscrito numa estrutura de relações. Representação é tomada como efeito das relações de força, constitutivas do político. Na pesquisa trato da representação política do sujeito enunciador do discurso de Lula (2003-2006). Neste texto, busco também compreender como e que sentidos se pode produzir quando a representação do sujeito enunciador, através de “o Lula”, é (re)significada para “o Presidente Lula”, mas também para “o Presidente”, “o Governo”. Palavras-chave: identificação e representação política; discurso de Lula.

ABSTRACT:

The text emphasizes the narrow relation between the processes of identification and political representation. The first, conceived as constructed by the alterity, that is, by the difference, by the assertion or by the rejection of the other; however the social role in which the subject is inserted in a structure of relations also matters in this process. Representation is taken as an effect of the power relations, constitutive of the politician. In the research, I discuss the political representation of the subject that utters Lula’s discourse (2003-2006). In the present text, I furthermore intend to understand how and which senses can be produced when a representation of the uttering subject, by using “the Lula”, is re-signified to “the President Lula”, and also to “the President”, “the Government”. Key-words: identification and political representation; Lula’s discourse

Este texto resulta do projeto de pesquisa “O processo de representação política: uma análise do discurso de Lula (2003-2006)”, desenvolvido junto ao DELAC / UNIJUÍ, com bolsista do PIBIC CNPq e ARD da FAPERGS.

** Professora da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUI

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1. Introdução

O objetivo deste texto é compreender como funcionam e produzem sentidos os processos de identificação e de representação política, enfatizando a estreita relação que existe entre os mesmos. Faço isso, levando em conta pesquisas em que tenho me ocupado a analisar o discurso de Lula (DL) em diferentes espaços-tempo, ou seja: quando da elaboração de minha tese (2004), tratei da identificação e da representação política do sujeito enunciador do discurso em pauta no espaço-tempo 1978-1998. Na ocasião, constatei que uma das formas de representação do sujeito enunciador ocorria por meio de “o Lula”, a qual se dava em um funcionamento discursivo em que esse sujeito enunciava por meio do “eu” e/ou do “nós”, referenciando a si próprio como se fosse uma terceira pessoa determinada pelo artigo “o” (o Lula), como se pode observar nesta seqüência discursiva de referência (sdr)

eu vou dizer aquilo que estou sentindo, como disse a minha vida inteira aqui neste sindicato. Somente os covardes não têm a coragem de espelhar aqui no microfone, para a categoria, aquilo que realmente está dentro da cabeça deles. É sumamente importante, que cada um que vier aqui contar uma mentira, cada um que vier aqui e não falar a verdade, não estará mentindo para o Lula, não. Porque, como eu disse anteriormente, o Lula individualmente não vale nada; nós metalúrgicos, coletivamente, é que valemos pra tudo e por tudo... (grifos meus) (Fragmentos do pronunciamento proferido em assembléia do Sindicato de São Bernardo, 26/05/79. In Lula: entrevistas e discursos, p. 337).

Na referida pesquisa, já foi possível perceber o entrelaçamento que havia entre os processos de identificação e de representação política. As análises me levaram a compreender uma espécie de jogo entre o “eu” do sujeito enunciador e a projeção imaginária que esse sujeito fazia do lugar social em que estava inscrito. Frente a isso, passei a entender que me deparava com aquilo que Pêcheux (1990) refere como sendo uma série de formações imaginárias que podem ser

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apreendidas pelo discurso a partir da cena discursiva de interlocução. Nesta, os lugares sociais se explicitam, ainda que na sua opacidade. No processo de construção da identificação de um sujeito, é o imaginário discursivo que conta e, em análise do discurso (AD), o imaginário é da ordem do ideológico e revela-se pelo discurso, que é da ordem do simbólico, apreendido pela linguagem. Pêcheux (op.cit.) ressalta que lugar não significa “um feixe de traços objetivos”, e sim funciona, nos processos discursivos, como uma série de formações imaginárias que designam a imagem que A e B se atribuem cada um a si, ao outro, ao lugar do outro e ao seu próprio lugar; esses lugares, dos quais fala Pêcheux, também não têm a ver com a realidade física, mas com um objeto imaginário (p. 81-83).

Na pesquisa que ora desenvolvo1, analiso a representação política do sujeito enunciador do discurso de Lula (DL), privilegiando o espaço-tempo 2003-2006. Trato do intrincamento dos processos de identificação e de representação política, mediante a análise da (re)significação de uma das formas de representação então analisada – “o Lula”. Esse funcionamento do discurso, na pesquisa anterior, me levou a entender que “o Lula” produzia efeitos de sentido de um personagem político, desempenhando o papel de uma quarta pessoa discursiva2 (INDURSKY, 1997), embora com um funcionamento diverso daquele analisado por essa autora. O objetivo é compreender como e que sentidos se pode produzir quando a representação do

1 O projeto de pesquisa “O processo de representação do sujeito: uma análise do discurso de Lula (2003-2006)” conta com bolsa de ARD da FAPERGS, com uma bolsista do PIBIC/CNPq e com créditos do PIBIC/UNIJUI.

2 Quarta pessoa discursiva é uma noção cunhada por Indursky (1992) quando da análise das diferentes formas de representação do sujeito presidencial da III República Brasileira. Quando a terceira pessoa era usada no lugar do “eu”, através de um outro (o ele), simulando um apagamento do sujeito enunciador, a autora entendeu estar diante de uma quarta pessoa discursiva. Na análise por ela realizada, o uso da quarta pessoa discursiva produz a impessoalização do sujeito que abdica de dizer eu, cedendo espaço para o acontecimento discursivo; o que ocorre é que, através dessa forma de representação, esse sujeito apresenta-se como se fosse o outro; o efeito de sentido produzido pela quarta pessoa discursiva é o de simular o não preenchimento da forma-sujeito – o sujeito simula seu apagamento ao mesmo tempo em que sublinha o efeito de esvaziamento da forma-sujeito, produzindo, assim, a ilusão de que o acontecimento discursivo está desvinculado do sujeito que constrói o discurso.

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sujeito enunciador, por meio de “o Lula”, é (re)significada para “o Presidente Lula”, “o Governo”, “o Presidente da República”. Presto especial atenção sobre o que esse funcionamento discursivo tem a ver com o processo de identificação política do sujeito enunciador. Na análise que apresento, levo em conta distintas cenas discursivas de interlocução, a partir das quais o sujeito é levado a enunciar, e tenho presente o fato de que uma cena discursiva não pode ser tomada como algo concreto ou estável, pois nela conta a dimensão imaginária do discurso, que, como escreve Sercovich (1977, p. 38), “deriva de seu fatal processo social de produção e consumo: da intervenção do sujeito e de suas representações”.

Representação do sujeito está sendo tomada como efeito das relações de força, constitutivas do político; este se revela pelo discurso, no qual intervêm a história e a ideologia como constitutivas do dizer. A partir dos estudos de Woodward (2000, p.17), entendo que o processo de representação “inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeitos”, na cena discursiva de interlocução. Esta é concebida como o espaço tenso em que o sujeito enunciador participa com seus interlocutores de uma espécie de “ritual social da linguagem” (MAINGUENEAU, 1989, p. 30). Espaço esse que é capaz de permitir a compreensão do político através das relações que se estabelecem no e pelo funcionamento do discurso. Identificação é concebida como processo construído pela alteridade, isto é, pela diferença, pela afirmação ou pela rejeição do outro, mas, nesse processo, também conta o lugar social em que o sujeito está inscrito numa estrutura de relações. Nessa perspectiva, Warnier (2000), ao observar que a identidade não depende somente do nascimento ou das escolhas realizadas pelos sujeitos, afirma que, no campo político das relações de poder, os grupos podem fornecer identidade aos indivíduos.

A proposta de acompanhar os processos de identificação e de representação política do sujeito enunciador do DL, pelo viés da discursividade, tem como pressuposto a concepção de que os mesmos se materializam na/pela materialidade da língua. Esse entendimento me permite escrever que a representação política funciona como uma espécie de materialização da identificação do sujeito enunciador com a posição-sujeito em que ele está inscrito. Parafraseando Orlandi (1999, p. 40-49), enfatizo que são as projeções imaginárias que permitem

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passar das situações empíricas para as posições dos sujeitos no discurso, e que as imagens são constitutivas das diferentes posições-sujeito. Nesse sentido, importa lembrar que o modo como o sujeito ocupa seu lugar enquanto posição, não lhe é acessível, pois ele não tem acesso direto ao interdiscurso, concebido, em AD, como a memória do dizer.

Pêcheux & Fuchs, na revisão crítica da teoria da AD, ao conceberem uma teoria (não-subjetiva) da subjetividade de natureza psicanalítica, ressaltam que subjetividade se constrói a partir de um lugar que é social, isto é, marcado pela historicidade e pela ideologia e atravessado pelo inconsciente. O lugar social, como já sinalizado, é entendido como dimensão imaginária que o sujeito faz desse lugar, e essa dimensão tem a ver com o processo de interpelação do sujeito, que o leva a inscrever-se em uma ou em outra posição-sujeito e, por conseguinte, em uma ou outra FD. Nesse sentido, interessa compreender que “as formações imaginárias devem ser tomadas na sua relação com o político que se representa pela cena das forças políticas construídas pelo discurso” (CORTEN, 1999, p. 37-38).

Ainda em relação ao imaginário discursivo, Sercovich (1977, p. 44-45) registra que Freud definiu o “ilusório por sua relação com o desejo e não por sua conexão com a realidade. (...) uma das características mais genuínas da ilusão é a de ter seu ponto de partida em desejos humanos, dos quais deriva”. Sercovich (op. cit.) propõe substituir desejos por interesses sociais – isso, segundo ele, possibilita compreender como a ação do imaginário discursivo integra-se à investigação das ideologias. Deslocando o afirmado por esse autor (op. cit.) para o campo teórico da AD, entendo que o imaginário discursivo pode ser compreendido como realização-encenação de interesses ligados a lugares em uma formação social e que, tanto o imaginário como o político, revelam-se pelo discurso, por meio do qual podem ser apreendidas as relações de força em jogo na cena discursiva de interlocução.

A partir do até aqui escrito, trato de analisar o processo de representação política do sujeito enunciador do DL não como algo que, ao ser formado, se cristalize; entendo que esse processo acompanha o de identificação do sujeito que sempre está em movimento, materializando-se quando da representação desse sujeito. Tendo presente o escrito por Orlandi (1993, p. 92), enfatizo que assim como o sentido sempre pode ser outro, pode deslocar-se para outros

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sentidos, o sujeito enunciador, em seu processo de representação, atravessado por múltiplos discursos, também se dispersa (se movimenta) no espaço possível dos desvãos que constituem os limites contraditórios de diferentes posições-sujeito e/ou de formações discursivas.

Na leitura do arquivo (2003-2006), (re)encontro uma forma de representação na qual o sujeito enunciador do DL, enunciando em primeira pessoa do singular e/ou do plural, referencia um “outro” (um “ele”) atualizado por “o Lula”, mas agora também por “o Presidente Lula”, “o Presidente da República”, entre outras. Observe-se o funcionamento discursivo da seguinte seqüência discursiva de referência (sdr).

...Primeiro, eu não sou o Lula, sou o Presidente da República. Que é uma instituição. Segundo, esse cidadão nunca esteve comigo, nunca viu o meu cotidiano. Não poderia passar para fora que o Brasil é governado por um alcoólatra. Eu duvido que qualquer companheiro tenha me visto bêbado alguma vez. Faço esse desafio à imprensa nacional (grifos meus) (Fragmentos de entrevista à ISTOÉ em 19/05/2004).

Funcionamentos discursivos desta natureza me levaram e a ainda me instigam a pensar sobre o que levaria esse sujeito enunciador a se representar como se fosse um “outro”. Por que razão ele parece se dividir em dois, um que fala e o outro sobre o qual fala, assumindo o lugar de sujeito enunciador e de referente ao mesmo tempo?

As pesquisas têm me levado à compreensão de que, nessa nova função enunciativa, essa maneira de o sujeito se representar apresenta-o como um sujeito fortemente fragmentado, disperso. Daí meu interesse em compreender como “o Lula” se (re)significa.

Tendo em vista que a cena discursiva funciona como o espaço público a partir do qual o sujeito enuncia, representando-se, na interlocução, de uma ou de outra maneira, entendo que, no caso do DL, é nesse espaço que se estabelecem as relações de força, constitutivas do político. São elas que me possibilitam compreender como o sujeito enunciador se relaciona com os distintos lugares sociais que o afetam e como, a partir do interdiscurso, aciona um ou outro referente para preencher o espaço de atualização da terceira pessoa.

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Registro que, em AD, a preocupação não é com o referente ou

com a designação em si, pois para falar em referente é preciso levar em conta a emergência de um enunciado em suas reais condições de produção. O que interessa é a referência ligada ao funcionamento do discurso. Foucault (1972, p. 62-64) escreve que quando se trabalha a referência, “não são os enunciados que permanecem constantes, nem o domínio que formam, nem tampouco seu ponto de emergência ou modo de caracterização”. O que interessa é “o relacionamento das superfícies em que podem aparecer, em que podem se delimitar – é aí que podem ser analisados e especificados”. Entendo que esse posicionamento de Foucault está muito próximo do trabalho que teóricos da AD desenvolvem em relação a essa questão.

Nesta mesma perspectiva, situa-se o que escreve Sercovich (1977, p. 35-36), assinalando que “a apreensão empirista do referente consiste no prejuízo idealista da teoria da referência”. Para ele, “o problema da referência exige a articulação entre uma teoria da subjetividade, uma teoria semântica e as epistemologias regionais dos distintos campos científicos”. Pode-se, então, apreender que a questão não é como um discurso descreve a realidade, e sim como esta é construída, como produz seus próprios referentes internos, determinando um regime representacional específico. Importa, portanto, levar em conta o interdiscurso, ou seja, a exterioridade do discurso, como constitutiva do dizer e do sentido, tendo presente que o referente de linguagem é construído pela própria linguagem.

Quando se trata de pensar a referência como uma das formas de representação política, o que interessa, salienta Indursky (1997, p. 24-25), são as representações imaginárias feitas pelo homem no uso que este faz do léxico em sua prática discursiva, procurando compreender não só as “transformações de sentido”, mas também os efeitos decorrentes dessas transformações. Os enunciados, ao serem ditos, mobilizam um conjunto complexo de outros sentidos, por isso, a referência não pode ser concebida da mesma forma que o faz a lógica; é preciso pensá-la discursivamente. Assim, o que importa é examinar a construção discursiva do referente.

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No recorte discursivo3 que se segue, meu interesse volta-se para

o funcionamento discursivo da 3ª pessoa, no qual o sujeito enunciador do DL, ao enunciar através do “eu”, toma como referente discursivo uma terceira pessoa (“o Lula”, “o Presidente Lula”, “o Presidente da República”) que, embora não ocupe o lugar do “eu”, pode por ele ser parafraseada. É isso que procuro demonstrar a partir da análise do recorte discursivo a seguir apresentado.

2. De “o Lula” a “o Presidente Lula”, mas também a “o Presidente da República”...

Neste recorte, analiso quando o sujeito enunciador do DL, ao enunciar em primeira pessoa do singular, referencia a si próprio, usando a terceira pessoa4, deiticamente atualizada por “o Lula” ou por “o Presidente Lula”, ou ainda, por “o Presidente da República”. Reitero que a preocupação não é com a participação ou não da terceira pessoa como sendo participante da cena enunciativa. O que procuro compreender é como a mesma funciona e produz sentidos no discurso em pauta, pois acredito que, ainda que seu sujeito enunciador se represente como se fosse um “outro”, o referente discursivo, no

3 Segundo Orlandi (1984), o recorte é uma unidade discursiva, entendida como “fragmentos correlacionados de linguagem - e – situação”; é fruto de um trabalho de construção teórica e deve ser representativo do funcionamento do discurso que está em questão. 4 Em relação aos estudos sobre a terceira pessoa, interessa-me o que escreve Jespersen (1975, p. 259), em especial, quando ele trata da distinção entre pessoa conceitual e pessoa gramatical. Registra ele que, na maioria dos casos, existe coincidência entre a pessoa conceitual e a pessoa gramatical, por exemplo, o pronome “eu” e as formas verbais correspondentes são usados quando o falante refere-se realmente a si mesmo e, assim, também com as demais pessoas. Não obstante, escreve ele, os desvios não são raros; servilismo, diferença ou simples educação podem fazer com que o falante evite a menção direta de sua própria personalidade, e assim uma terceira pessoa pode substituir o “eu” como “seu” em (seu humilde servidor) ou (disponha Vossa Senhoria deste seu humilde servidor), etc. Alguns escritores evitam o mais possível dizer “eu”, usando construções passivas. E, mais: quando esses recursos não podem ser utilizados, são representados por “o autor” ou “o crítico”. Embora o funcionamento discursivo, em análise neste texto, não funcione da maneira apontada por Jespersen, o que importa é o fato de que esse autor, diferentemente de Benveniste (1991), admite a possibilidade de tratar o “ele” como uma pessoa do discurso.

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funcionamento do DL, caracteriza-se como uma pessoa, tomada a partir dos estudos de Indursky (1997), como sendo um dos funcionamentos possíveis da quarta pessoa discursiva. Observem-se as seqüências discursivas que destaco a seguir:

(...) O fantástico é eu voltar para o Brasil e meus companheiros do Fórum Social Mundial perceberem que estou voltando inteiro, ninguém comeu nenhum pedaço de mim. E, também, é importante eu sair daqui, e mesmo aqueles participantes do Fórum de Davos que não estão aqui, também terem a confiança de que o Lula não comeu nenhum pedaço deles. E, aí, está colocada a possibilidade de um encontro entre os dois povos. Muito obrigado (grifos meus) (Fragmentos finais da entrevista concedida por Lula no Fórum Econômico de Davos, 26/01/2003).

... Faz outros 20 anos que eu ouço falar que é preciso fazer as reformas da Previdência Social, e deram poucos passos para fazê-la. Eu não aceito, meu querido Governador Jatene, que digam que é o Lula que vai fazer as reformas, não é o Lula. Porque a primeira decisão que eu tomei foi chamar a Brasília, para uma reunião, os 27 Governadores de Estados, e eu agradeço, de público, o comparecimento e a disposição deles de ajudar para que a reforma não seja apenas do Presidente da República. A reforma tem que ser do interesse da sociedade brasileira e é assim que os Deputados precisam senti-la quando ela chegar ao Congresso Nacional. Eu não quero que os Deputados e os Senadores digam: “Bom, essa proposta é do PT, vamos derrotá-la. Essa proposta é do Presidente Lula, vamos derrotá-la.” (...)... O Brasil não é do Lula, o Lula é que é do Brasil... (grifos meus). (Fragmentos do pronunciamento do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na cerimônia de inauguração da terceira linha da cadeia de produção da Alunorte, da Vale do Rio Doce, em Barcarena – PA, 04/04/2003).

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(...) não cabe ao Presidente da República tomar nenhuma decisão de crítica a uma decisão do Supremo Tribunal Federal. Ora, se o Supremo Tribunal Federal abrir uma investigação, é uma investigação. Eu só posso tomar uma atitude quando houver uma conclusão. O que quero para mim, eu faço para os outros (grifos meus). (Fragmentos da Primeira Entrevista Coletiva de Lula como Presidente da República, 29/04/2005).

O funcionamento discursivo recém apresentado atesta que esse sujeito mescla seu discurso, representando-se, ora na ilusão de sua subjetividade, ora como se fosse um “outro”. O que também se pode observar é que, nas sdr(s) do recorte, independentemente das condições de produção do discurso, ocorre o mesmo funcionamento discursivo já constatado em pesquisa anterior, no qual o sujeito enunciador do DL, ao enunciar representando-se por “eu”, atualiza uma quarta pessoa discursiva, referenciando a si próprio. Ao mesmo tempo, se atentarmos para o que escreve Russell (1974, p. 167), esse sujeito enunciador “descreve” o referente discursivo, no sentido de que os nomes, quando determinados pelo “o” ou “a”, fazem parte das descrições definidas5. Escreve o autor: “... os nomes estão sendo usados como descrição: isto é, o indivíduo, em vez de ser nomeado, está sendo descrito como a pessoa que tem aquele nome”. No caso em análise, o sujeito joga com uma dupla representação: de um lado, diz “eu”; de outro, ausenta-se, refugiando-se em sua subjetividade.

Barthes (1982) também contribui para o entendimento desse tipo de funcionamento discursivo. Afirma que “falar de si dizendo “ele” pode querer dizer: falo de mim como se estivesse um pouco morto, preso numa leve bruma de ênfase paranóica”. Parafraseando esse autor, pode-se escrever que falar de si significa atuar como uma espécie de ator brechtiano que deve distanciar sua personagem: “mostrá-lo, não encarná-lo, dar à sua dicção uma espécie de piparote,

5 Segundo Russell (1974. p.160-68), uma “descrição” pode ser de dois gêneros – definida e indefinida (ou ambígua). Uma descrição indefinida é uma frase da forma “um assim-assim” e uma descrição definida é uma frase da forma “o assim-assim”.(...) No caso das expressões definidas a fórmula correspondente da proposição a saber, “X é o assim-assim”. (...) A única coisa que distingue “o assim-assim” de “um assim-assim” é a implicação de unicidade.

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cujo efeito é descolar o pronome de seu nome, a imagem de seu suporte, o imaginário de seu espelho, estabelecendo uma espécie de afinidade possível da paranóia e do distanciamento, por intermédio da narrativa - o “ele” é épico” (op.cit, p 211-213).

Observo que, no DL, o funcionamento discursivo da terceira pessoa, em análise, ocorre de forma distinta: o nome próprio, determinado quer pelo artigo definido “o” (o Lula), quer por “o Presidente” (o Presidente Lula / o Presidente da República) não ocupa o lugar de sujeito na estrutura do enunciado, portanto, não ocupa o lugar da primeira pessoa, mas pode ser parafraseado por “eu”. Ou seja, o sujeito enunciador, representando-se por “eu”, fala de “o Lula”, de “o Presidente Lula”, de “o Presidente da República” etc., sintagmas esses que se tornam tópicos (referentes) de seu próprio discurso. Por isso, embora esse funcionamento discursivo não se dê exatamente como escreve Barthes, seus escritos interessam, pois quero crer que, no funcionamento do DL, “o Lula” / “o Presidente Lula” etc. correspondem a uma espécie de “personagem” político, isto é, figuras enunciativas construídas através do imaginário do sujeito enunciador, mas também de seus interlocutores.

Conforme já sinalizado, talvez se possa pensar que o sujeito enunciador do DL se constitua como uma espécie de ator que se desdobra, ao longo do processo discursivo em análise, em diferentes “personagens” para poder enunciar - “o Lula”, “o Presidente Lula”, “o Presidente da República”. Quero pensar que esse sujeito, afetado pela ideologia e pelo inconsciente, se movimenta entre duas posições-de-sujeito: continua, de certa forma, identificado com “o Lula”, ou seja, com aquele Lula, líder e porta-voz sindical; líder e porta-voz do PT; candidato da Frente Brasil Popular e, por isso, recupera, na memória do dizer, “o Lula” e enuncia como tal (como aquele Lula de então); mas, ao mesmo tempo, já afetado por esse outro lugar social, representativo dos saberes da Presidência, enuncia como “o Presidente Lula” / “o Presidente da República” etc. É a materialização dessas distintas formas de representação que me levam à compreensão de que os processos de identificação e de representação política são indissociáveis. Na minha compreensão, a forma de representação política em análise apresenta o sujeito enunciador dividido (cindido) entre “o Lula” e “o Presidente Lula”/“o Presidente da República”.

Como estou enfatizando que tratar da representação política implica relacioná-la ao processo de identificação do sujeito, me

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pergunto: seria possível pensar que, quando da atualização dessas seqüências discursivas – representativas do discurso –, o processo de identificação do sujeito enunciador do DL, com a posição-sujeito a partir da qual foi levado a enunciar, ainda não estivesse “consolidado”, a ponto de o mesmo se movimentar entre essas diferentes maneiras de se representar? Ou seria da natureza desse sujeito dispersar-se, no processo discursivo, entre diferentes funções enunciativas? Ou, então, esse sujeito, atravessado por múltiplos discursos (ORLANDI, 1993, p. 92), mover-se-ia entre os desvãos que constituem os limites contraditórios dessas diferentes “posições”?

Considerações finais

A análise realizada de permitiu compreender que um dos efeitos de sentido que acredito ser possível produzir é o de que o sujeito enunciador mobiliza distintas funções enunciativas, que lhe permitem olhar para si mesmo como se fosse outro, fragmentando-se no discurso, mas sem produzir a simulação de ausência do sujeito. O jogo entre a imagem que o sujeito enunciador do DL tem de si e a imagem que ele imagina que seus interlocutores têm/fazem dele possibilita compreender, pelo menos até este momento da análise, que a construção imaginária do sujeito enunciador materializada pelas diferentes formas de representação não permite que se fale em “apagamento” ou “neutralização” desse sujeito, nem em “esvaziamento da subjetividade”.

No caso em análise, “O Lula”, “o Presidente Lula”, “o Presidente da República” remetem a algo que está sendo indicado, descrito, apontado, funcionando aí como uma espécie de “personagem”. Enquanto o “eu” representa a ilusão de subjetividade do sujeito enunciador, “o Lula”, “o Presidente Lula” etc. permitem a esse sujeito dispersar-se no discurso em “o um” e “o não-um”, entre o sujeito enunciador e o “outro” - a alteridade. Daí, ser possível compreender que à medida que se alteram as condições de produção, esse sujeito se movimenta, isto é, o “personagem” se (re)significa, se (re)configura, construindo “o espaço possível de sua singularidade” (ORLANDI, op. cit.) no e pelo processo discursivo, à medida que vai se identificando com os diferentes lugares a partir dos quais enuncia. É isso que me leva a entender que o processo de (re)significação de “o Lula” para “o Presidente Lula”, mas também para “o Presidente da República” etc.

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está fortemente relacionado com o processo de identificação do sujeito que vai se construindo pelo discurso ao longo desse mesmo discurso.

Nesse sentido, recorro a Guimarães (2002) para salientar que “o referente de linguagem é construído pela própria linguagem” e, no caso dos nomes próprios de pessoa, “funcionam como uma combinatória de nomes, pois o lugar de nomear é regulado socialmente”. Diante do que escreve esse autor, quero crer que “Lula”, inicialmente apelido construído coletivamente no âmbito do grupo familiar, vai, no percurso da prática sindical e, mais tarde, de práticas político-partidárias, ser designado e firmar-se por “o Lula”; em um primeiro momento, usado apenas como uma designação como em “o Portinari”, “o Manuel Bandeira”, embora não se trate de alguém ligado ao glamour das artes ou das letras. “O Lula” trata-se de um líder sindical que se destaca. É no ambiente da prática sindical que seus companheiros, a imprensa e, até mesmo, seus adversários passam a designá-lo por “o Lula” (CAZARIN, 2005) e, agora, em outra função enunciativa, já se identificando com os saberes da Presidência da República, carrega para esse lugar “o Lula” de então e passa a enunciar como “o Presidente Lula”, referindo-se tanto a “o Lula” como a “o Presidente Lula”, como se os mesmos fossem “personagens” inventados pelo “outro”, mas que ele os assimila. Alteradas as condições de produção do DL, na medida em que seu sujeito enunciador muda de posição-sujeito, “o Lula” se (re)significa por “o Presidente Lula”, “o Presidente da República”, entre outros, ou seja, vai se configurando no e pelo processo discursivo.

REFERÊNCIAS

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FONTES

Programa “Café com o Presidente”, 06/02/2006. Disponível em: <http:// www.radiobras.gov.br>

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Primeira entrevista coletiva de Lula como Presidente da República, 29/04/2005. Disponível em: <http:// www.radiobras.gov.br> IstoÉ, 19/05/2004 Pronunciamento do Presidente Lula na cerimônia de inauguração da terceira linha da cadeia de produção da Alunorte, Vale do Rio Doce, Barbacena, Pará, 04/04/2003. Disponível em: <http:// www.radiobras.gov.br Entrevista no Fórum Econômico de Davos, 26/01/2003. Disponível em: <http:// www.radiobras.gov.br> GUIZZO, João et al. LULA - Entrevistas e discursos (1981). 2. ed. São Paulo: O Repórter de Guarulhos.

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VOZES BAKHTINIANAS: LINGUAGEM E INTERAÇÃO

Bakhtinian Voices: Language and Interaction

Maria Anunciada Nery Rodrigues*

Resumo:

Atualmente vários estudos

têm revelado que o ensino de língua realizado de forma interativa é fundamental para que o aluno desenvolva sua competência comunicativa, interagindo com o contexto social e histórico. Neste artigo apresentamos uma breve reflexão a respeito de concepções relacionadas à linguagem, à interação verbal, ao dialogismo e seus reflexos para o ensino de língua materna, tendo como pressuposto teórico o pensamento de Bakhtin. Constatamos que depois das concepções de Bakhtin sobre interação e dialogismo, o ensino de língua materna precisa ser pensado como prática social de interlocução, de troca, de construção, na qual a relação professor e alunos tornam-se mútua. Palavras-chave: linguagem, interação verbal, dialogismo.

Abstract: Currently some studies have disclosed that the teaching of language in an interactive way is fundamental for the student to develop your communicative competence, interacting with the social and historical context. In this article we present one brief reflection about conceptions related to the language, to the verbal interaction, the dialogism and its consequences for the language teaching maternal considering the theoretical presuppositions of Bakhtin.We evidence that after the conceptions of Bakhtin about interaction and dialogism, the teaching of maternal language needs to be thought as practical social of interlocution, exchange, of construction, in which the relation professor and students become mutual. Key-words: language, verbal interaction, dialogism.

1. Introdução

Os seres humanos possuem suas organizações, seus costumes e sua língua, sendo por meio da linguagem que cada indivíduo estabelece relações no contexto social ao qual está integrado. Portanto,

* Aluna do Doutorado em Lingüística da Universidade Federal da Paraíba –UFPB

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a língua é, simultaneamente, produto e condição de vida social.

Atualmente pesquisas na área da Lingüística e da Lingüística Aplicada têm revelado que o ensino de língua realizado de forma interativa é fundamental para que o aluno desenvolva sua competência comunicativa, interagindo com o contexto social e histórico. Dentre os estudos realizados, poderíamos citar o de Lemos (1977), Pécora (1981), Marcuschi (1983), Geraldi (1984), Costa Val (1991), Coll e Solé (1996), Matêncio (2002), Antunes (2003), e diversos outros trabalhos de extrema importância. Todas essas pesquisas estão relacionadas com a concepção dialógica da linguagem, principalmente nos termos definidos por Bakhtin.

Pensando nisso, pretendemos, neste artigo, fazer uma breve reflexão sobre o pensamento de Mikhail Bakhtin. Não há neste texto, a pretensão de fazermos uma ampla revisão teórica, mas discutirmos alguns conceitos. Interessam-nos suas concepções relacionadas à linguagem, principalmente à interação verbal, ao dialogismo e seus reflexos para o ensino de língua materna.

2. Interação verbal

A linguagem constitui a centralidade da obra de Bakhtin. Em Marxismo e filosofia da linguagem (2004 [1929]) está sua teoria da linguagem e do dialogismo. Nessa obra, ele faz uma crítica a duas linhas teóricas do pensamento filosófico e lingüístico – o objetivismo abstrato, representado principalmente pelo pensamento saussuriano e o subjetivismo idealista em que a enunciação apresenta-se como um ato puramente individual, como uma consciência individual.

Nesses dois modelos, a língua é tratada como sistema abstrato, ideal e fechado em si mesmo, sem manter qualquer relação com os aspectos sociais e culturais.

Bakhtin, defensor da natureza social e evolutiva da língua, sustenta que a realidade dinâmica e concreta da língua não permite que os falantes interajam por meio dela como se fosse um sistema abstrato de normas. Ao contrário, a língua está em constante evolução em decorrência das interações verbais dos interlocutores. Se considerada como um sistema de normas, ela nos distancia de sua realidade evolutiva e viva e de suas funções sociais (BAKHTIN, 2004, p. 108). Sua preocupação é com a língua enquanto elemento de comunicação e de interação e não como sistema.

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Outra discordância de Bakhtin em relação às duas abordagens

diz respeito à natureza da enunciação. Para Bakhtin, tanto o objetivismo abstrato quanto o subjetivismo idealista apóiam-se “sobre a enunciação monológica como ponto de partida de sua reflexão sobre a língua” (ibid, p. 110). A diferença entre as duas correntes está numa abordagem de “compreensão passiva”, realizada pelo objetivismo abstrato; e numa abordagem de enunciação somente do ponto de vista de quem fala, realizada pela segunda corrente.

Contrário a essas duas concepções, Bakhtin apresenta o modelo enunciativo-discursivo de linguagem baseado na interação verbal e no enunciado. Ele propõe, então, que se pense a interação verbal como a realidade da linguagem. Segundo ele, a linguagem deve ser estudada como o lugar da interação humana, em que os sujeitos situados historicamente efetuam todo tipo de discurso. Pois,

A verdadeira substância da língua não é constituída pelo sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua. (BAKHTIN, 2004, p. 123).

Em toda obra de Bakhtin, o caráter interativo da linguagem é enfatizado e, atualmente, tem sido incorporado às reflexões sobre a linguagem e sua aprendizagem. O caráter interativo da linguagem é a base de todas as suas formulações, e não há possibilidade de compreender a linguagem senão a partir de sua natureza sócio-histórica porque todos os campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem.

De acordo com Bakhtin, a enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados, pois a palavra dirige-se sempre a um interlocutor. Segundo ele,

[...] toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de

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alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto de interação do locutor e do ouvinte. (BAKHTIN, 2004, p. 113).

Para o autor, o indivíduo está envolvido pelo meio social, no interior do qual se encontra em constante interação. É o meio social o centro organizador de toda enunciação, de toda expressão. Assim, de maneira bastante concisa, Bakhtin assevera que a interação é o meio de constituição do indivíduo como um sujeito social pleno, o que inclui o “sujeito discursivo”. O processo interacional se dá em uma relação dialógica, por meio da qual os sujeitos envolvidos se constituem como tal, para si e para o outro, diante de si e diante do outro.

Nesse enfoque, apenas a enunciação, como produto das interações sociais, constitui a unidade de estudo da língua, tanto nas interações face a face como naquelas que ocorrem em contextos sociais mais amplos.

Então, ver a linguagem como processo de interação significa entender que é pelo contato interpessoal que as pessoas se comunicam, têm acesso à informação, expressam e defendem pontos de vista, partilham ou constroem visões de mundo, produzem cultura.

Conceber a linguagem como uma atividade constitutiva significa concebê-la sempre em constituição, em modificação, pela ação que sujeitos historicamente situados exercem sobre ela. É na interlocução que se amplia a aquisição de novos recursos expressivos e a compreensão do mundo. Deve ser considerada, portanto, como algo dinâmico, em processo de construção, por um sujeito que, por meio das interações realizadas no ambiente em que vive, constrói sua linguagem e é, ao mesmo tempo, construído por ela.

Bakhtin destaca que a interação verbal realiza-se por intermédio de enunciados que são tão variados, heterogêneos e complexos quanto as próprias atividades do homem. Em cada esfera de atividades, o homem elabora tipos relativamente estáveis de enunciados que são chamados de gêneros. Em sua concepção, a linguagem é adquirida por meio de enunciados, ou seja, do discurso organizado em gêneros específicos, que se adaptam às mais diversas situações de comunicação.

Em resumo, para falar e escrever, utilizamos formas estáveis de

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enunciados, isto é, gêneros do discurso, os quais estão presentes na vida cotidiana, nas experiências e na consciência dos falantes. Se não existissem os gêneros, a comunicação seria impossível, porque não haveria entendimento recíproco entre os interlocutores (BAKHTIN, 2000).

É importante, ainda, salientar uma outra contribuição de Bakhtin, a de que a linguagem é essencialmente dialógica e polifônica. Esse caráter da linguagem revela-se quando ele afirma que toda palavra sempre é necessariamente ideológica por ser social, é habitada por outras vozes; toda palavra se dirige a um outro com quem dialoga. Assim, os discursos estão em permanente diálogo com outros discursos e vozes. Para Bakhtin, ignorar a natureza dialógica da linguagem é o mesmo que apagar a relação que existe entre a linguagem e a vida. Ele considera o dialogismo o princípio constitutivo da linguagem e a condição do sentido do discurso.

3. Dialogismo

Bakhtin opõe-se ao caráter monológico e neutro da língua por acreditar que esta reflete as relações dialógicas dos enunciados. Toda enunciação é dialógica e faz parte do processo de comunicação contínua, e a dialogia não se restringe apenas às réplicas de um diálogo real; é mais ampla, heterogênea e complexa, porque são relações de sentido.

Bakhtin (2004, p. 123), ao tratar desse tema, declara:

O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão uma das formas, é verdade que das mais importantes, da interação verbal. Mas pode-se compreender a palavra diálogo num sentido amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal de qualquer tipo que seja.

Conseqüentemente, o diálogo é visto não só entre os interlocutores, mas também entre os enunciados, os quais são plenos de vozes que se cruzam, se contrapõem, concordam e discordam entre si, em processo contínuo de comunicação.

O enunciado é um elo da corrente da comunicação verbal, de

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cunho social e, portanto, de conteúdo ideológico. Sua estrutura é determinada pelo contexto social, “o centro organizador de toda enunciação, de toda expressão, não é interior, mas exterior: está situado no meio social que envolve o indivíduo” (BAKHTIN, 2004, p.121).

Do ponto de vista discursivo, não há enunciado desprovido da dimensão dialógica: todo enunciado se relaciona com enunciados anteriormente produzidos. Todo discurso é fundamentalmente dialógico. Por isso, os sentidos são produzidos nas relações dialógicas, na mesma medida em que sujeitos se constituem como sujeitos do e no mesmo discurso.

O enunciado é sempre uma resposta a um enunciado anterior. O locutor mantém relação não só com o objeto da enunciação, como também com os enunciados dos outros. Qualquer enunciado está sempre em busca de uma resposta, de uma atitude responsiva do outro. “Ter um destinatário, dirigir-se a alguém, é uma particularidade constitutiva do enunciado, sem a qual não há, e não poderia haver, enunciado” (BAKHTIN, 2000, p. 325). A pessoa de quem o locutor espera uma resposta – o destinatário – é um participante ativo na cadeia discursiva; o enunciado é construído em função da sua resposta. O locutor dá forma ao seu enunciado a partir do ponto de vista do outro, isto é, a palavra é um território compartilhado, quer pelo expedidor, quer pelo destinatário. Sendo assim, toda enunciação só pode ser compreendida nas relações com outras enunciações.

Desse modo, diz BAKHTIN (2000, p. 290),

[...] a compreensão de uma fala viva, de um enunciado vivo é sempre acompanhada de uma atitude responsiva ativa (conquanto o grau dessa atividade seja muito variável); toda compreensão é prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz: [...] o ouvinte que recebe e compreende a significação de um discurso adota simultaneamente, para com esse discurso, uma atitude responsiva ativa: ele concorda ou discorda (total ou parcialmente), completa, adapta, apronta-se para executar. (grifos nossos).

A noção de recepção/compreensão ativa proposta por Bakhtin ilustra o movimento dialógico da enunciação, a qual constitui o

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território comum do locutor e do interlocutor. Nesta noção podemos resumir o esforço dos interlocutores em colocar a linguagem em relação frente a um e a outro. O locutor enuncia em função da existência (real ou virtual) de um interlocutor, requerendo deste último uma atitude responsiva, com antecipação do que o outro vai dizer, isto é, experimentando ou projetando o lugar de seu ouvinte. De outro lado, quando recebemos uma enunciação significativa, esta nos propõe uma réplica: concordância, apreciação, ação, etc. E, mais precisamente, compreendemos a enunciação somente porque a colocamos no movimento dialógico dos enunciados, em confronto tanto com os nossos próprios dizeres quanto com os dizeres alheios.

De acordo com a teoria bakhtiniana, o dialogismo reafirma a natureza sociocultural do enunciado. O indivíduo, ao mesmo tempo que negocia com seu interlocutor, recebe influências deste, as quais interferirão na estrutura e na organização do enunciado.

O dialogismo destaca a natureza contextual da interação e o aspecto sociocultural dos contextos, nos quais as interações se realizam. Considera toda enunciação como sendo um ato responsivo, uma resposta suscitada pelo contexto, ao contrário do monologismo, que enfatiza as iniciativas discursivas individuais do falante desvinculadas do seu interlocutor.

O dialogismo defendido por Bakhtin tem como alicerce a concepção sociointeracional da linguagem. Assim, as práticas discursivas e não as estruturas lingüísticas constituem o cerne do princípio dialógico. Nele, práticas discursivas e estruturas lingüísticas se determinam e se influenciam mutuamente.

Pode-se observar duas questões básicas que perpassam o dialogismo: a existência de uma interação permanente entre os participantes do diálogo, e a interdependência entre discurso e contexto de forma que um determina e seleciona o outro e vice-versa.

Brait (1996) sintetiza de maneira bem clara e elucidativa a dupla função do dialogismo bakhtiniano:

[...] o dialogismo diz respeito ao permanente diálogo, nem sempre simétrico e harmonioso, existente entre os diferentes discursos que configuram uma comunidade, uma cultura, uma sociedade. É nesse sentido que podemos interpretar o dialogismo como o elemento que

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instaura a constitutiva natureza interdiscursiva da linguagem. Por um outro lado, o dialogismo diz respeito às relações que se estabelecem entre o eu e o outro nos processos discursivos instaurados historicamente pelos sujeitos, que por sua vez instauram-se e são instaurados por esses discursos (BRAIT, 1996, p. 78).

Uma das maiores contribuições de Bakhtin para os estudos da comunicação diz respeito à reversibilidade e à constituição dos sujeitos no diálogo. A comunicação deixa de ser um processo unilateral (de emissor para receptor). Para Bakhtin, “não importam apenas os efeitos da comunicação sobre o destinatário, mas também os efeitos que a reação do destinatário produz sobre o destinador” (BARROS, 1996, p. 31).

Nessa perspectiva, as noções de emissor e receptor ganham uma nova roupagem. Ao invés de se constituírem apenas como agentes de emissão e recepção de mensagens, os interlocutores passam a ser vistos como seres sociais constituídos pelas interações sociais das quais participam.

O dialogismo bakhtiniano reconhece “a necessidade de dar conta da presença do outro a quem uma pessoa está falando” (CLARK & HOLQUIST,1998, p. 235). A compreensão do sentido e da significação do enunciado perpassa pela questão do dialogismo.

Bakhtin contribuiu extraordinariamente para os estudos sobre o texto e o discurso. Para ele, qualquer texto é duplamente dialógico: apresenta uma relação dialógica entre os interlocutores e uma outra relação dialógica com outros textos. O discurso também é fruto de uma relação dialógica, visto que ele se constrói por meio do diálogo entre sujeitos falantes (dialogismo) e através do diálogo com outros discursos (intertextualidade).

Segundo Bakhtin, a língua, em sua totalidade concreta, viva em seu uso real, tem a propriedade de ser dialógica. Essas relações dialógicas não se circunscrevem ao quadro estreito do diálogo face a face. Ao contrário, existe uma dialogização interna da palavra, que é perpassada sempre pela palavra do outro, é sempre e inevitavelmente também a palavra do outro. Isso quer dizer que o enunciador, para constituir um discurso, leva em conta o discurso de outrem, que está presente no seu.

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Nesse sentido, Fiorin acrescenta: “o caráter fundamentalmente

dialógico de todo enunciado do discurso impossibilita dissociar do funcionamento discursivo a relação do discurso com seu outro” (FIORIN, 1996, p. 132).

4. As contribuições da vertente bakhtiniana para o ensino de língua materna

Os estudos de Bakhtin relacionados à natureza dialógica, polifônica e sociointeracional da linguagem trazem implicações para a educação e favorecem reflexões acerca do aprendizado de língua materna, construção do conhecimento, papel do professor e do aluno.

Na concepção bakhtiniana, o que importa não é a relação do signo com outros signos dentro do sistema da língua, e sim a relação do signo com o sujeito falante, com o contexto e com os outros enunciados. Para Bakhtin a palavra assume uma significação fixa apenas dentro do sistema lingüístico, distante do outro e do contexto em que se realiza a interação. Destaca o aspecto não arbitrário, assistemático da linguagem, visto que a significação é social.

O pensamento bakhtiniano decorre do pressuposto de que nos constituímos à medida que nos relacionamos com o outro. A questão central de todo o seu trabalho reside no fato de que a linguagem é fruto da interação entre sujeitos falantes. O próprio aprendizado da língua materna é dependente do outro. Aprendemos a falar pela boca do outro e é em decorrência da minha interação com o outro que o meu mundo simbólico vai sendo construído (CASTRO, 1996, p. 104).

Considerar essa forma de compreender o ensinar e o aprender a língua na escola é fundamental para pensar sobre a concepção que considera a linguagem como forma de interação. Essas considerações interferem no ensino da língua, tendo em vista que a prática pedagógica, nessa perspectiva, volta-se para o ensino produtivo de língua, tendo como objetivo o desenvolvimento de novas habilidades lingüísticas para que o aluno possa fazer uso da língua de maneira mais concreta.

É nesse sentido que a adoção do princípio interacional projeta uma série de atitudes congruentes, tais como: escutar o aluno; permitir que ele apresente seu ponto de vista e o defenda; ouvir a história de sua vida; não obrigá-lo a falar ou escrever a respeito de um tema que ele não domina; não impor modelos rígidos para realização de tarefas;

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aceitar interpretações ou leituras adequadas, mesmo que não previstas nos manuais; permitir que ele se leia e se corrija quando necessário, e quantas vezes necessário; realizar tarefas coletivas; equilibrar as tarefas escritas com outras tantas de caráter oral; apresentar problemas para que a resposta seja buscada como desafio; permitir que o aluno compare, contraste, generalize, particularize, descubra semelhanças e diferenças através de sua própria atividade mental; permitir que ele crie, enfim – e criar é ser também um pouco professor. O professor que só ensina em breve se sentirá tão estacionado como alguém que simplesmente deu férias ao pensamento.

A interação, então, torna-se fundamental para a transmissão de informações, visto que o interlocutor (o professor ou o aluno), no momento que tem sua participação ativa em sala consegue articular suas idéias numa constante troca de papéis no processo de comunicação. Assim, o compromisso com as palavras torna-se mais evidente através da formação de um ponto de vista revelado pelo posicionamento crítico assumido em situações dialógicas. É muito importante ouvir o “outro”, para que se possa definir sua imagem frente ao locutor (GERALDI, 1993). Interpretar a situação de ensino como um contexto participativo cria possibilidade para o aluno sentir-se seguro e enredar-se gradativamente como sujeito autônomo para traçar seus objetivos e planejar suas ações. Seus resultados em relação à capacidade e aos seus esforços devem ser valorizados, a fim de incentivar a auto-estima para que continue a desempenhar esse papel importante diante da aprendizagem.

No processo de ensino, torna-se indispensável pôr o aluno diante de situações interativas de linguagens, de modo que possa envolver-se em um esforço de compreensão e de atuação, desafiando a argumentar e questionar sobre a atividade apresentada, oferecendo indicadores a respeito. Sobre isso, os PCN (BRASIL,1998, p.24) revelam que

Uma rica interação dialogal na sala de aula, dos alunos entre si e entre o professor e os aluno, é uma excelente estratégia de construção do conhecimento, pois permite a troca de informações, o confronto de opiniões, a negociação dos sentidos, a avaliação dos processos pedagógicos em que estão envolvidos.

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A sala de aula deixa de ser um espaço de transmissão/recepção

de um conhecimento arbitrário e passa a ser um “evento social no qual, através de procedimentos interacionais, professor e alunos tentam construir significado e conhecimento” (MOITA LOPES, 1995, p. 349). A sala de aula é um lugar de encontro de diferentes vozes, as quais mantêm relações de controle, negociação, compreensão, concordância, discordância, discussão. Neste espaço, a aprendizagem é uma atividade social de co-construção, resultante das trocas dialógicas, uma vez que, na perspectiva bakhtiniana, o significado não é inerente à linguagem, mas elaborado socialmente.

No que tange ao ensino de língua materna, Bakhtin assegura que ela é adquirida durante nossas interações verbais, por meio de enunciados.

Freitas (1996) soube expressar de maneira exemplar o processo educativo sob o olhar de Bakhtin:

Educar não é homogeinizar, produzir em massa, mas produzir singularidades. Deixar vir à tona a diversidade de modos de ser, de fazer, de construir: permitir a réplica, a contra-palavra. Educar é levar o aluno a ser autor, a dizer a própria palavra, a interagir com a língua, a penetrar numa escrita viva e real. O professor precisa também ser autor: penetrar na corrente da língua, recuperar sua palavra, sua autonomia, sem fazer dela uma tribuna para o poder, mas um meio de exercer uma autoridade que se conquista no conhecimento partilhado. Nesse sentido o professor pode ser visto como um orquestrador de diferentes vozes (FREITAS, 1996, p. 173).

Nessa perspectiva, os papéis tradicionais de professor e aluno – em que o primeiro detém todo o saber e o segundo deve apenas assimilar este saber e devolvê-lo ao professor por meio das avaliações periódicas – são substituídos pelo papel de interlocutores que juntos constroem e (re)significam o objeto de estudo. O aluno não é mais visto como aquele ser passivo que ocupa uma posição secundária no processo ensino-aprendizagem, e sim um sujeito ativo, que na interação com o professor e com os demais colegas, (re)constrói conhecimento.

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Considerações Finais

A partir das reflexões feitas neste trabalho, constatamos que não há mais como insistir em uma prática de ensino que desconsidere:

a) a língua em uso, pautando-se por uma prática que reduz a língua a um sistema de normas, uma vez que, segundo Bakhtin, a língua é um fenômeno social, histórico e ideológico, cujos signos são variáveis e flexíveis e resignificados a cada interação verbal;

b) o desenvolvimento da competência discursiva dos aprendizes, visto que o ser humano é um sujeito histórico e social em constante diálogo com o mundo e com o outro;

c) o trabalho com diferentes gêneros discursivos; d) a noção de linguagem como veículo de interação e de

constituição do sujeito. O ensino de língua materna precisa ser pensado como prática

social de interlocução, de troca, de construção, na qual os papéis de professor e alunos tornam-se intercambiáveis. Além disto, urge que as aulas de língua portuguesa reflitam o caráter social, subjetivo e flexível dos signos lingüísticos, ou seja, a realidade concreta da língua.

Depois das concepções de Bakhtin sobre interação e dialogismo, não se pode mais conceber a língua como um produto pronto e fechado em si mesmo. A língua, como uma entidade viva e em constante evolução, precisa ser analisada e ensinada como tal.

REFERÊNCIAS

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CATEGORIZAÇÃO EM FALANTES BILÍNGÜES:

INFLUÊNCIAS SOCIOCONTEXTUAIS

Categorization in Bilingual Speakers: Socio-contextual Influences

Adriana Carla R. Carvalho*

Jan Edson Rodrigues**

Resumo: O objetivo deste trabalho é investigar a influência do bilingüismo nas atividades de categorização e compreensão das crianças acerca de conteúdos veiculados em ambientes de escolarização formal. Partimos do pressuposto de que nossas categorias são condicionadas pela herança cultural que possuímos e pelos esquemas cognitivos que internalizamos. Outra questão com que nos ocupamos é a correlação entre as categorias construídas pela criança e a adequação do código lingüístico para sua expressão. Palavras-chave: Categorização- bilingüismo – contexto

Abstract: This paper aims at discussing the influence of bilingualism in categorization and comprehension activities of children in formal literacy contexts. We base our work in the assumption that our categories are intimately dependent on our cultural background as well as on the cognitive schemas we internalized. Another issue we analyzed is the relation between the categories the child built and the choice of the linguistic code to express. Keywords: Categorization-bilingualism-context

1. Introdução

Existe uma estreita ligação entre as questões relacionadas ao bilingüismo e o componente cultural. Acreditamos, também, que a categorização constitui uma atividade de inserção e apropriação cultural, possibilitada pela nossa capacidade de interação na sociedade e não apenas pela capacidade mental individual. A atividade interacional cria expectativas na nossa relação com o meio, que se concretizam através da categorização que fazemos dos objetos.

Estas categorias, por sua vez, se tornam latentes na expressão lingüística que as codifica e as explicita socioculturalmente. As

* Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba ** Professor da Universidade Federal da Paraíba

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dimensões co-textuais e contextuais são, assim, constitutivas e centrais não apenas aos fatos lingüísticos, mas igualmente às atividades categoriais.

Partindo desse pressuposto de que o bilingüismo é fortemente dependente das relações contextuais e de que as propriedades das categorias não são universais, pretendemos com esse trabalho, verificar como o processo de categorização é sensível às contingências culturais dos indivíduos levando-se em consideração o fato de estarmos trabalhando com um sujeito falante de duas línguas (língua portuguesa e língua inglesa). Trabalharemos com a hipótese de que indivíduos bilíngües fazem uso dos aportes culturais vinculados às línguas que falam e que por fazerem parte de domínios culturais diferentes, fazem uso desses dois domínios na construção de esquemas categoriais.

2. Algumas questões sobre a aquisição bilíngüe

Apesar do foco do presente trabalho não ser o processo de aquisição de linguagem per si, antes de iniciarmos nossa discussão acerca da relação entre categorização e bilingüismo abordaremos alguns aspectos relacionados à aquisição bilíngüe de linguagem como um processo mais amplo. Apesar do grande número de falantes de mais de uma língua encontrados em todo o mundo, as pesquisas com bilingüismo além de escassas, são bastante controversas. Um primeiro aspecto a ser considerado diz respeito à definição do que seria, de fato, um falante bilíngüe. Para alguns autores, o domínio dos dois códigos lingüísticos já seria suficiente para caracterizar um indivíduo bilíngüe. Para outros, questões como a cultura das duas línguas precisa ser considerada quando o assunto em questão é o bilingüismo.

Para Bloomfield (1979), bilingüismo é o controle de duas ou mais línguas de maneira semelhante ao nativo. Na visão de Weinreich (1968), bilingüismo é a prática de usar duas línguas alternadamente. Mackey (1972) tem semelhante opinião e define bilingüismo como o uso alternado de duas ou mais línguas pelo mesmo indivíduo. As três definições acima colocadas suscitam discussões e críticas. Segundo Mello (1999), infelizmente não podemos descrever o que significa falar uma língua perfeitamente, porque é impossível precisar o que isto envolve. Ainda de acordo com a autora, ninguém conhece uma língua em todos os seus aspectos, mesmo que esta língua seja a nativa,

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assim como é difícil comparar graus de conhecimento entre as duas ou mais línguas de que um indivíduo dispõe.

Para De Houver (1995), um grande passo no campo da aquisição bilíngüe da linguagem foi a percepção da enorme complexidade envolvida no estudo de crianças bilíngües e a necessidade de levar em consideração esta complexidade no desenvolvimento de metodologias adequadas.

Romaine (1989, p. 6-8) enfatiza a importância de três aspectos da situação de aprendizagem bilíngüe: 1. a(s) língua(s) que os pais falam com o(s) filho(s); 2. a(s) língua(s) materna(s) de seus pais e 3. até que ponto a(s) língua(s) dos pais reflete(m) a(s) língua(s) dominante(s) da comunidade em geral. Somente o primeiro aspecto tem maior relevância, na medida em que os outros dois não são percebidos por crianças pequenas.

Constatamos que questões como contexto onde a criança está inserida e cultura de cada um dos seus pais são pouco observados quando da definição ou considerações sobre como ocorre o processo de aquisição bilíngüe.

Todas as teorias que abordam a aquisição da linguagem em geral levam em conta fatores cognitivos ou sociais para explicar o processo pelo qual passa o falante da língua materna. Tais teorias, no entanto, não dão atenção suficiente aos processos de aquisição bilíngüe, seja porque se trata de um tema mais próximo da lingüística aplicada, ou seja, porque o bilingüismo pode ser tratado do mesmo modo que a aquisição da língua materna. Na próxima seção do nosso trabalho abordaremos aspectos relacionados aos estudos sobre a cognição, um outro marco teórico do presente artigo.

3. Trajetória dos estudos sobre cognição.

O interesse pelo que acontece na mente do ser humano sempre acompanhou o homem. Atualmente muitas ciências como a Lingüística, a Psicologia, as ciências da computação, a antropologia, a sociologia e as neurociências, têm a mente humana como objeto de estudo, embora sob diferentes pontos de vista, com métodos e posicionamentos teóricos diversos.

Apesar dessa preocupação com a mente do homem não ser nova, a sistematização dos estudos sobre cognição somente teve início há aproximadamente dois milênios e meio, a partir das investigações

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dos filósofos gregos sobre a natureza do conhecimento humano sobre o mundo e sobre si mesmo.

No caso específico da Lingüística, somente a partir da metade do século XX, questões relacionadas à cognição humana começaram a ser tratadas. Embora a partir do surgimento da Lingüística Moderna a língua tivesse passado a ser foco de investigação, Saussure, que inaugurou essa nova Lingüística, não dedicou seu trabalho ao estudo da cognição humana. Esse interesse pelo estudo da cognição só teve início a partir da última fase do estruturalismo na Lingüística com os trabalhos de Noam Chomsky.

É importante esclarecer que apesar dessa busca pelo estudo da cognição inaugurada por Chomsky ele não tinha como foco de seus trabalhos o estudo da cognição per si. Seu interesse era essencialmente mentalista: a busca pelo que ocorria na mente humana.

Os avanços teóricos iniciados pela teoria de Chomsky abriram caminho, não só para o desligamento do conhecimento de uma atitude empirista marcada pelo mecanicismo, rompendo com um tipo de ciência dos estímulos e respostas, como também deram subsídios para se pensar em termos de uma gramática gerativista, não normativa como aquela do modelo tradicional. Além disso, a semântica que até então fora desprezada pela teoria lingüística ( o próprio Chomsky não tratou dela com o devido valor) pôde se tornar, de certa forma, e até pelo rompimento com a teoria-padrão formulada por Chomsky, autônoma e seguir o caminho do gerativismo inverso ao idealizado por ele. Dessa forma, podemos afirmar que são inúmeras as contribuições de Chomsky não só para a Lingüística, mas para as atividades científicas de modo geral.

3.1. Semântica Cognitiva: terreno fértil para os estudos sobre cognição.

Se a lingüística como um todo não dá conta dos estudos cognitivos, a semântica cognitiva, por outro lado, tem pesquisas bastante relevantes na área da cognição, com autores como George Lakoff, Ronald Langacker, Gilles Fauconnier, Eve Sweetser, Mark Turner. George Lakoff e Ronald Langacker investigam a relação cognição e gramática. Lakoff dá particular ênfase às construções categoriais. Um nome importante no cenário da Lingüística Cognitiva é o do Francês, radicado nos Estados Unidos, Gilles Fauconnier, que

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ao lado de Mark Turner, Lakoff, Eve Sweetser, entre outros, iniciou um estudo da gramática cognitiva e desenvolveu uma teoria bastante promissora na lingüística contemporânea: A teoria dos Espaços Mentais. Temas recorrentes na investigação cognitiva são também a construção de conceitos e categorias, objeto de investigação desse estudo, além do trabalho com metáforas e metonímias (cf. RODRIGUES, 2003)

3.2 Processos de Categorização

“Categorizar coisas é inerente aos seres humanos desde os primeiros momentos de vida, porque o cérebro dá forma às estruturas que espelham o ambiente externo em uma forma categorial. Nota-se que toda esta classificação vem de nossa interação com nosso ambiente. Se nós não interagirmos com o ambiente, nós não teremos o que classificar; o ambiente influencia muito no modo como nós categorizamos a informação. Assim, dependendo do ambiente em que estamos, as categorias podem mudar para refletir o ponto de vista de uma informação, em determinado contexto.” (LIMA, 2007)

Os processos de categorização estão intimamente ligados à nossa bagagem cultural. Além desse componente cultural, verificamos que a categorização é possibilitada pela nossa capacidade de interação na sociedade, não sendo, portanto, um processo exclusivamente individual da nossa mente.

Por ser algo tão antigo como o próprio ser humano, a categorização foi alvo de estudos diversos e diversas interpretações. Aristóteles foi o primeiro representante de uma teoria de categorização no ocidente. De acordo com sua teoria, as categorias são definidas como entidades constituídas de propriedades essenciais e suficientes partilhadas por todos os membros de uma mesma classe. Os seres e os objetos, então, pertencem a uma mesma categoria caso tenham em comum as mesmas propriedades necessárias e suficientes.

Todos os estudos sobre os processos de categorização surgidos a partir do século XX questionaram a validade da teoria de Aristóteles sobre como categorizamos o mundo, tais como a concepção

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pragmática para a categorização. Tal concepção trata das categorias em relação ao seu uso em contextos nos quais fazem sentido para os falantes. Diz respeito ao uso e não às estruturas.

“Considere, por exemplo, as atividades a que chamamos de jogos (...) O que é comum a elas? Não diga ‘deve haver algo em comum, senão não seriam chamadas de jogos’, – mas veja se há algo comum a todas elas – pois se você observá-las, não verá algo comum a todas, apenas similaridades, relações, e toda uma série delas. Repito: não pense, veja! – Por exemplo, veja os jogos de tabuleiro, com seus múltiplos parentescos. Agora observe os jogos de carta; aqui você encontra muitas correspondências com o primeiro grupo, mas muitos traços comuns se perdem e outros surgem. Quando você passa para os jogos de bola, muito do que é comum é mantido, mas outro tanto se perde. São todos jogos ‘divertidos’? Compare xadrez com jogo da velha. Ou há sempre perdedores e ganhadores, ou competição entre os jogadores? Pense em paciência. Nos jogos de bola há perdedor e vencedor, mas quando uma criança atira a bola contra a parede e a apanha na volta, este traço desaparece. Observe aqueles em que há habilidade e aqueles em que há sorte e veja a diferença entre habilidade no xadrez e habilidade em tênis. Pense agora em outros jogos de crianças; aqui há um elemento de diversão, mas quantos outros traços característicos desapareceram! E nós podemos percorrer os muitos, muitos outros grupos de jogos da mesma forma; vemos como as semelhanças surgem e desaparecem” (WITTGENSTEIN, 1961, § 66).

No trecho acima Wittgenstein questiona a validade das propriedades necessárias e suficientes. Percebemos com o exemplo dos diversos tipos de jogos que o postulado de Aristóteles no qual os seres e os objetos, então, pertencem a uma mesma categoria caso tenham em comum as mesmas propriedades necessárias e suficientes perde sua validade.

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Outros autores ainda questionaram a validade da teoria

aristotélica. Labov (1973, p. 342) aplicou à teoria da categorização o mesmo postulado utilizado para a ciência lingüística: se a lingüística pode ser definida por um objeto, o mesmo seria possível com os estudos das categorias.

O presente artigo, ao trabalhar com questões que envolvem interação, componente cultural e questões de bilingüismo, também não pode ser inserido nos moldes teóricos de Aristóteles.

Nosso principal suporte teórico no que se refere ao estudo da categorização é o conjunto de propostas de Lorenza Mondada. A referida autora trabalha exatamente com os fins sociais práticos da categorização, ou seja, vê o estudo das categorias como parte do fenômeno social.

As categorias tratadas por Mondada não são apenas observáveis discursivamente, mas também estruturadas pelos processos lingüísticos que fazem elas objetos-de-discurso e (não objetos de referência), ou seja, objetos que são construídos para o discurso e não preexistentes a ele. O corpus lingüístico permite observar como o discurso se constrói progressivamente, não postulando objetos e configurações pré-elaboradas, mas lhes constituindo. Tal enfoque considera as categorias como sendo tratadas linguisticamente em seu interior, decompostas e recompostas, associadas e contrastadas e constantemente ajustadas ao contexto e à dinâmica comunicacional.

Os dados analisados na próxima seção desse trabalho corroboram pressupostos defendidos por Mondada. Nos eventos de aula descritos observamos não apenas que o processo de categorização em questão está ligado ao contexto, como também evidenciamos que essas categorias são percebidas através de um discurso que se constrói na situação de interação.

4. Categorização bilíngüe

4.1. Contextualização dos dados

Os dados a seguir referem-se a aulas one-to-one de inglês (particulares) e envolvem como sujeitos a professora (P) de inglês como segunda Língua (ESL) e uma criança bilíngüe não clássica de 6 anos. O termo “bilíngüe não clássica” refere-se ao fato de que apesar

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de ser filha de pais monolíngües, morando em uma comunidade falante de uma única língua, a criança passou por um processo de aquisição bilíngüe

É importante destacar que as questões relacionadas ao processo de aquisição de linguagem pelo qual nosso sujeito passou não é alvo de investigação desse artigo. Nosso foco é tão somente verificar as relações existentes entre o bilingüismo e os processos de categorização. Assumimos, portanto, o posicionamento que embora não tenha passado por processo clássico de aquisição bilíngüe de linguagem, a criança em questão é de fato um sujeito bilíngüe de língua portuguesa e língua inglesa.

4.2. Análise dos dados

Nesta seção verificaremos como as atividades de categorização e compreensão feitas por crianças em ambientes de escolarização formal sofrem influência do processo de aquisição bilíngüe.

Transcrição 1:

((Aluno e professora estão fazendo uma atividade de colagem e enquanto a professora corta algumas figuras e a criança brinca com outras já cortadas)) 1. A: Teacher can you do a favour for me?

(Professora, você pode me fazer um favor?)

2. P: Yes? Cut?

(Sim? Cortar?)

3. A: Sim.

4. P: I asked you, remember?

(Eu te perguntei, lembra?)

5. A:This truck, the robot, the train all go… and the train go in another way.

(Esse caminhão, o robô, o trem todos vão... e o trem vai por outro caminho) 6. The robot is fast and get the train again and the train go around and the the (O robô é rápido e alcança o trem de novo e o trem dá a volta e o o...)

7. train go around and…bye robot…

(trem dá a volta e… tchau robô...)

((quando a professora retira a figura do robô))

8. and here comes the bus.

(e agora vem o ônibus)

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O uso da língua inglesa para funções de comunicação,

negociação, pedidos e demais funções comunicativas se dá do mesmo modo que em Português, atestando a natureza bilíngüe do falante. Como bilíngüe, o falante dispõe de dois sistemas lingüístico-culturais que possibilitam a categorização da realidade de modo integrado – hipótese 1 – ou de modo relativo a uma das línguas – hipótese 2.

No exemplo, o conjunto de termos usados em seqüência (linha 6 “this truck, the robot, the train all go”) que se referem à atividade didática proposta por P, é usado pelo aluno individualmente para construir uma categoria de jogo em que os itens vão se deslocando no espaço à medida que o aluno vai entrando em contato físico com as figuras que a professora lhe dá. A compreensão da atividade como um jogo se dá não apenas em função do contexto sócio-cultural (a aula de inglês) em que os participantes se inserem, mas também da própria natureza do material didático utilizado (figuras recortadas de objetos cotidianos) prontamente reconhecido e organizado por A como um jogo em que tais objetos se inserem na história iniciada pelo próprio aluno.

Esta estratégia – expressa em inglês – não se reflete na maneira como uma língua específica organiza os conteúdos de uma atividade de fala semelhante a um jogo, o que sugere ser o contexto e suas características, e não a língua utilizada, os responsáveis pela categorização e compreensão de itens lexicais difusos como parte de uma categoria de jogo. O contexto aqui se configura não apenas como a delimitação espácio-temporal do ambiente de aula, mas como o conjunto de regras e práticas sociais levadas a efeito de modo localizado. Assim, parece que esse contexto que modela as estratégias lingüístico-discursivas dos participantes também contribui para o modo como os falantes categorizam as ações que nele ocorrem.

Outro aspecto que nos chama à atenção neste exemplo é a categorização e compreensão de movimento, como um conceito abstrato, e modo como esta categoria é expressa linguisticamente pelo falante bilíngüe.

Apesar de a categorias movimento ser apreendida em ambas as línguas de forma idêntica (“This truck, the robot, the train all go… and the train go in another way” assemelha-se às estruturas lingüísticas do Português, traduzidas como “Esse caminhão, o robô, o trem todos vão... e o trem vai por outro caminho”), a expressão de deslocamento de um ponto a outro sofre influências culturais da língua em que é

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expressa.

O movimento de um ponto distante do falante a um ponto próximo de si leva em conta não apenas o modo como essa categoria é expressa em língua inglesa, mas também a própria forma como essa cultura categoriza movimento de um ponto a outro, considerando o falante como referente.

Essa particularidade é observada na linha 8 (“and here comes the bus”) e não parte apenas da organização sintática da frase, mas da noção de referência: o falante se coloca como destino final do objeto em movimento. Em um enunciado hipotético, em que o movimento ocorresse em sentido inverso, o falante poderia colocar-se como ponto de partida do deslocamento, utilizando uma expressão do tipo “There you go”. Note que o locativo utilizado é parte importante na expressão e indica, no primeiro caso, proximidade do falante e, no segundo caso, proximidade do ouvinte.

A relevância cultural destas estruturas lingüísticas na categorização de movimento são mais evidenciadas quando comparamos com o sistema do português. Para a compreensão do primeiro tipo de movimento – de um ponto qualquer em direção ao falante – usamos expressões do tipo “Lá vem”, cujo locativo é exatamente o oposto de “here” em “here it comes”. Em relação ao movimento partindo do falante em direção a um ponto qualquer, utilizamos a expressão “Aqui vai”, que mais uma vez encontra-se em relação de oposição a “there” em “There it goes”.

Deste modo podemos perceber que no tocante a movimento contínuo, sem indicação da direção do deslocamento, o exemplo mostra que falante bilíngüe utiliza estruturas genéricas, aplicáveis tanto ao inglês quanto ao português, por meio dos verbos correlatos go e ir. No que se refere, entretanto, à categorização de deslocamento, o bilíngüe utiliza estruturas que refletem o modo particular da cultura expressa pela língua utilizada, no caso inglês, de organizar o conceito linguisticamente, comprovando parcialmente a hipótese 2 – de que o sistema lingüístico-cultural da língua usada seleciona o modo de categorizar o deslocamento. Trata-se de uma comprovação parcial da hipótese porque os dados não revelam como o falante categoriza o mesmo tipo de deslocamento em língua portuguesa, daí termos usado exemplos comparativos das duas línguas.

Assim, em termos esquemáticos, a categorização de deslocamento, feita pelo falante bilíngüe em nossos dados, se estrutura

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da seguinte forma (linhas sólidas referem-se ao português; linhas tracejadas, ao inglês):

Figura 1: Categorização de Deslocamento em Português e Inglês

Transcrição 2:

1.A: tiia... hoje nós só vamos ter vinte minutos de aula

2.P: no, Peter, our class has fifty minutes

(Não, Pedro nossa aula tem cinqüenta minutos)

3.A: twenty, viu? mama said twenty

(Vinte viu? Minha mãe disse vinte)

4.P: OK. now let’s have a listening exercise

(OK. Agora vamos fazer um exercício de “listening”)

5.A: ó tia, twenty minutes dá pra que?

Objeto

Obje-to

Falan-te

Falan-te

Lá vem o ônibus

Here comes the bus

Aqui vai a bola

There

goes the ball

Ponto de Partida

Ponto de Destino

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(ó tia vinte minutos dá pra que?)

6.P: many things

(pra muita coisa)

7.A: and fifty?

(e cinqüenta?)

8.P: much more… can we start now?

(pra muito mais... podemos começar agora?)

Nesse segundo evento de aula mais uma vez constatamos que o uso da língua inglesa para as funções comunicativas se dá de maneira semelhante à língua portuguesa. No caso específico desse exemplo, observamos a presença do code switching (alternância de código). A criança alterna o uso dos dois códigos lingüísticos de maneira semelhante aos falantes bilíngües clássicos.

No que diz respeito ao processo de categorização observado nesse evento de aula, podemos evidenciar que a criança categoriza tempo como atividade prática (a quantidade de atividades que ele pode realizar naquele intervalo. (vinte minutes dá pra que? E cinqüenta ?). Percebemos na análise desse trecho que a criança categorizou tempo de acordo com suas necessidades para aquele momento: o desejo de ter uma aula mais curta. Foi a partir desse desejo que toda a noção de temporalidade foi construída.

“Os dispositivos de categorização são contextualmente pertinentes, dependem da atividade em curso e de suas finalidades práticas” (cf. RODRIGUES, 2005). O evento de aula acima ainda nos remete à teoria dos objetos de discurso de Mondada.

Mondada insiste no caráter dinâmico e localmente construído dos objetos de discurso na interação social, na análise menos de seus conteúdos semânticos do que dos processos através dos quais os participantes os elaboram discursivamente. Os objetos-de-discurso são antes de tudo definidos pelos interactantes – antes mesmo do que pelo analista da conversação (RODRIGUES, 2005, p. 61).

É importante ressaltar que diferentemente do primeiro evento analisado, no segundo não constatamos diferença no processo de

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categorização em relação às duas línguas.

Considerações Parciais

Apesar dos poucos dados aqui apresentados, as análises prévias demonstram o bilingüismo como um fator fortemente influenciador da atividade categorial do falante. Não apenas pelo fato de poder dispor de dois códigos para expressar suas visões e versões da realidade, mas pelas fortes restrições sócio-culturais que permitem ao bilíngüe adequar-se contextualmente, e não apenas linguisticamente, e operar com sistemas mesclados de interpretação da realidade social. De certo modo, isso confirma nossa primeira hipótese de que ambas as línguas se coordenam na construção da compreensão do falante sobre os fatos observados. Por outro lado, ao utilizar uma das línguas, o bilíngüe conta com particularidades categoriais próprias da cultura que aquela língua expressa, e isto torna a segunda hipótese – a de que sistema cultural da língua usada seleciona o modo de categorizar e compreender os objetos e as ações – igualmente plausível. Resta-nos saber, ainda, como essa seleção acontece e, por isso, nossa busca é por dados que nos expliquem as características das escolhas bilíngües como formas de perceber o mundo. Consideramos este um passo inicial – e superficial – na consideração dos aportes sócio-cognitivos aplicados ao estudo do bilingüismo e esperamos que possa servir, ao menos, de alimento para futuras discussões e argumentos sobre este campo tão vasto e ainda não totalmente explorado que é a cognição do bilíngüe.

REFERÊNCIAS:

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A CONSTRUÇÃO DOS SENTIDOS: UM OLHAR SOBRE O

PROCESSO SÓCIO-COGNITIVO EM LETRAS DE MÚSICAS REGIONAIS

Insights of sociocognitive processes in regional lyrics meaning construction

Mônica de Lourdes Neves Santana*

Resumo: O presente trabalho busca investigar e estudar a construção dos sentidos num fragmento de música partindo da concepção de cognição como atividade de produção. Nosso enquadre teórico utiliza a Hipótese Sócio-cognitiva da Linguagem e a Teoria da Integração Conceptual por privilegiar a cognição, o social e a linguagem. Consideramos como objetivo dar um novo enfoque à maneira de conceber e trabalhar a linguagem em uma letra de música. A análise apontou para o fato de que os modelos cognitivos apresentam uma função importante não só na cognição humana, mas na construção dos sentidos. Os resultados comprovaram a nossa idéia de cognição e linguagem musical como socialmente constituídas. Palavras-chave: Linguagem; Sócio-cognitivismo; Construção do conhecimento.

Abstract: This piece of research investigates and studies the meaning construction in a piece of song starting from the conception of cognition as activity of production. Our underlying theoretical framework makes use of the Socio-cognitive Hypothesis on Language and the Theory of Conceptual Blending as they take into consideration the cognition, the social and the language. We consider as our aim to give a new approach to the way of conceiving and working language in a lyrics. The analysis raised the fact that the cognitive models introduce a very important function not only in the human cognition, but in the meaning constructions. The results proved our idea of cognition and musical language as socially constituted. Keywords: Language; Socio-cognitivism;knowledge construction.

* Professora da Universidade Estadual da Paraíba

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1. Introdução

Segundo Koch (2003) a pesquisa em Lingüística textual doravante (LT) passou por uma mudança de rota por volta da década de 80 especialmente a partir de Van Dijk e Kintsch (1983) causada pela tomada de consciência de que a ação é acompanhada pelo processo de cognição. Tal mudança ocorreu devido à ênfase dada nas questões voltadas ao processamento do texto, às formas de representação do conhecimento na memória, às estratégias sócio-cognitivas envolvidas, bem como a sua compreensão, entre outros aspectos. Sendo assim, as pesquisas na área de processamento textual passaram a se debruçar nas operações cognitivas, e o texto, por sua vez, passou a ser visto como o resultado da construção de processos mentais. Nesta perspectiva, a LT vem sendo a estrutura teórica mais utilizada no estudo da língua em sala de aula e se apropria de forma elucidativa da concepção de língua no processo sociocognitivo.

O presente estudo pretende investigar a construção do sentido construindo os modelos/enquadres cognitivos (visto nesta reflexão como um conjunto de capacidades do indivíduo, proveniente do cérebro/mente e que permitem a aquisição, armazenamento, transformação e transmissão de informações entre seus participantes), através dos quais é possível ao aluno compreender o mundo e seu contexto. Segundo Van Dijk & Kintsch (1983), durante o processo de informação e de compreensão, selecionamos protótipos que colaboram na interpretação textual.

As informações textuais se apresentam em diversos níveis: parte explícita e outra implícita. Muitas dessas unidades que não estão explícitas também apresentam seu devido valor revelador e por isso devem ser inferidas. Partindo das informações vinculadas pelo texto, o leitor utiliza as inferências como estratégias cognitivas, levando sempre em consideração o contexto para assim construir novas representações mentais, estabelecendo um vínculo entre informações explícitas e implícitas. Como bem diz Beaugrande & Dressler (1981) as inferências ocorrem sempre que mobilizamos nosso conhecimento para construir o sentido do texto.

Neste processo de inferências postulamos que os interlocutores da comunicação possuem saberes acumulados, conhecimentos representados na memória enciclopédica que são utilizados e ativados a fim de preencher as lacunas da nova situação enunciativa. Uma vez

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que tais conhecimentos sejam ativados, teremos a concretização dos objetivos, ou seja, a compreensão dos textos.

Para atingir este objetivo, o artigo está organizado da seguinte forma: fundamentação teórica, abordando os seguintes tópicos: os diferentes conceitos de leitura, os gêneros textuais e cognição, situando a Hipótese Sócio-Cognitiva da Linguagem, uma breve análise de um fragmento da música “A Triste Partida”, considerações finais e referências.

2. Diferentes concepções de leitura

Ouvimos falar freqüentemente na importância da leitura em nossas vidas. Mas antes disso é preciso saber o que significa ler, para que e como ler.

Kato (1985) entende a leitura como um processo de decodificação para o qual estudiosos da cognição e da Inteligência Artificial apresentam duas posições teóricas opostas: a hipótese top-down ou descendente, sinônimo de dependência do leitor como única fonte de sentido e a hipótese bottom-up ou ascendente, dependente do texto. Nesta segunda, o texto e os dados são o ponto de partida para a compreensão. Na verdade, Kato se coloca a favor de uma terceira posição denominada de interacionista, onde a leitura se processa na interação autor- texto-leitor.

Uma das visões que ela critica retrata o texto como uma única fonte do sentido, numa visão estruturalista e mecanicista da linguagem, onde o sentido depende diretamente da forma. Opõe-se radicalmente a essa concepção a visão de Goodman (1970), orientado pela psicologia cognitivista (cf. SMITH, 1978) de que o bom leitor seria aquele capaz de acionar os esquemas (denominação dada por RUMELHART, 1978), ou seja, pacotes de conhecimento acompanhados de instruções de uso.

Para Miller (1978), a interpretação semântica dos itens lexicais estaria atrelada à representação formal. Caberia ao leitor a tarefa de decodificar os itens lingüísticos e descobrir os desconhecidos. Portanto, o leitor seria o receptáculo de um saber inserido no texto.

Há ainda teorias /correntes voltadas para a possibilidade de recuperar o sentido do texto através das marcas que o sujeito enunciador imprimiu em sua escrita: “o texto-produto é visto como um conjunto de pegadas a serem utilizadas para recapitular as

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estratégias do autor e, através delas, chegar aos seus objetivos”. (KATO, 1985, p. 57)

Já nas escolas observamos que se privilegiam as posturas teóricas onde o texto constitui o lugar instituído do saber (objeto uno, completo, com fim em si mesmo) e funciona pedagogicamente como objeto cujas verdades definitivas serão decifradas pelo aluno.

Ainda em suas críticas, Kato alega que em aulas de língua materna o texto é muitas vezes utilizado como pretexto para que se estude gramática, vocabulário, retratado pelo livro didático como de grande importância. Perde-se então a função de provocar sentido no leitor - aluno.

Segundo Grigoletto em seu artigo intitulado A Concepção de texto e de leitura do aluno de 1º e 2º graus e o desenvolvimento da consciência crítica (1994), a formação escolar dos professores e alunos é refletida nas concepções do que eles têm sobre o texto e a leitura. Mas a situação da leitura é determinada pelas relações interativas entre as três partes envolvidas: professor, aluno e texto.

Em nossas conversas informais com professores da rede pública, reparamos que em geral dificilmente se observa na prática de sala de aula a concepção de leitura como processo interativo, e com algumas exceções são permitidas outras leituras que não a do professor, para não dizer livro didático, respeitado como portador da verdade e representante fiel do saber. O professor conduz o aluno para a sua leitura que acredita ser a única correta.

Koch & Elias (2002) expõem que a leitura é uma atividade de captação das idéias do autor, levando em consideração as experiências e conhecimentos do leitor, ou seja, a idéia de captação revela a metáfora do canal, pela qual as idéias são transmitidas e não construídas. Acreditamos que o aluno deva lançar mão de sua capacidade de refletir, de tornar consciente sua conduta lingüística e não lingüística.

“O leitor é, necessariamente, levado a mobilizar uma série de estratégias tanto de ordem lingüística como de ordem cognitivo-discursiva, com o fim de levantar hipóteses, validar ou não as hipóteses formuladas, preencher as lacunas que o texto apresenta, enfim, participar, de forma ativa, da

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construção do sentido. Nesse processo, o autor e leitor devem ser vistos como ‘estrategistas’ na interação pela linguagem” (KOCK & ELIAS, 2002, p.7).

Em muitas situações, as estratégias de ensino utilizadas não são dialogadas, contextualizadas, e interativas, impedindo o processo de construção do saber mediado pelas operações cognitivas que, por sua vez, procuram identificar como o sentido é formulado e ocasionado. Segundo Mondada (2003), a cognição está localizada na ação em curso efetuada entre os participantes e seus objetos. Podemos dizer que este processamento estratégico depende das características textuais e das características dos usuários da língua.

No dizer de Kleiman (2004) a concepção hoje predominante nos estudos de leitura é:

“... a de leitura como prática social, que na lingüística aplicada, é subsidiada teoricamente pelos estudos do letramento... os usos da leitura estão ligados à situação; são determinados pelas histórias dos participantes, pelas características da instituição em que esse encontram, pelo grau de formalidade ou informalidade da situação, pelo objetivo da atividade de leitura, diferindo segundo o grupo social. Tudo isso realça a diferença e multiplicidade dos discursos que envolvem e constituem os sujeitos e que determinam esses diferentes modos de ler.”(KLEIMAN, op. cit., p. 14)

Nesse sentido, observamos que o leitor seria um sujeito que está inserido na realidade social, engajado na ação, consciente e dono do seu texto. O que percebemos é que a concepção de leitura da instituição escolar e de leitura dos pesquisadores da área parece ser bem distante. Temos professores que falam em objetivos e estratégias de leitura, conteúdos gramaticais, processos mentais, inferências, mas o “saber” sobre a leitura continua esquecido. “Ou seja, a atividade de leitura passa a ter como objetivo não necessariamente a fixação de conteúdos gramaticais, mas, sobretudo, a fixação de uma técnica de leitura, incansavelmente repetida.” (SOUSA, 2002, p. 138)

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Em comum acordo com as considerações dos PCNs (1998, pp.

69-70) a leitura é: “... o processo no qual realiza um trabalho ativo de compreensão e interpretação do texto, a partir de seus objetivos, de seu conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, de tudo o que sabe sobre a linguagem etc.”

Para Michel de Certeau (1994/1980) os leitores podem ser comparados a “caçadores furtivos’, por percorrerem propriedades de outrem. A linearidade do texto contrapõe à pluralidade de direções, pois todo leitor apresenta idéias, deturpando muitas vezes o sentido pretendido pelo autor com associações das mais diversas.

Marcuschi (2002) afirmar que a apropriação do sentido nunca é definitiva e completa, ratificando a pluralidade de direções e sentidos oferecidos pelo texto. Interpretar o enunciado é fruto de um trabalho onde se estuda a linguagem vista como o conjunto de práticas sociais, criativas, abertas e cognitivas. A mesma surge porque temos cognição e somos cognitivos e porque temos a capacidade de desenvolvê-la. O ponto de vista do autor ajuda a entender a construção do conhecimento como produto de ação conjunta de significações.

A leitura apesar de parecer uma atividade tão natural e fácil, apresenta seus mistérios, oferece um percurso a ser seguido e descoberto. O caminho vai do código para a cognição onde processamos, armazenamos, transformamos e transmitimos as informações recebidas e decodificadas. A informação é constituída mediante processos interativos, dialógicos e o sentido, por sua vez, não está na palavra em si, mas nas relações entre autor-leitor e texto.

Por ser o discurso um conjunto de enunciados possíveis onde os sujeitos determinam as condições, a linguagem é observada como uma série de jogos convencionais (WITTGENSTEIN), e o texto não pode ser o receptáculo fiel do sentido, ele é determinado pelo contexto sócio-historico (ideológico) que determina as atitudes, a linguagem e a configuração de sentido.

Estão envolvidos na leitura os diferentes momentos da vida de um sujeito como diz Foucault (1971) e sob este ponto de vista acreditamos que o ato de ler envolve a apropriação de sentidos que nunca é definitiva e inevitavelmente nova.

Acreditamos que as significações são produzidas também mediante processos inferenciais que constituem as estratégias cognitivas onde o leitor, a partir da informação veiculada, constrói novas leituras. Essas inferências muitas vezes unem mais

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conhecimentos do que a soma dos elementos lingüísticos. “A rigor, podemos dizer que a significação surge quando relacionamos conhecimentos encapsulados em palavras situadas em contextos de uso” (MARCUSCHI, s/d p. 5). Daí o grande valor do papel da cultura local na produção da significação.

Fica em nós a certeza de que os conceitos aqui apresentados, por mais explicativos que sejam, são o resultado de longas reflexões e disputas de diferentes sujeitos.

3. Gêneros textuais e cognição

Observamos em nossa experiência em sala de aula que o uso dos gêneros vem aos poucos ganhando espaço nas aulas de língua portuguesa e estrangeira, adequando-se às práticas, à realidade do ensino escolar colaborando com inovações e resultando em melhores resultados no processo ensino-aprendizagem. O que importa no ensino de língua portuguesa é que ele possibilite a interação social e desenvolva a compreensão cognitiva do aluno, levando-o a construir percepções, ampliando seu raciocínio crítico. Para isso, acreditamos que se deve exceder as fronteiras da metalinguagem técnica, utilizando as atividades cognitivas dos alunos.

No seu artigo que trata da questão dos gêneros, Marcuschi (2002, p. 24), salienta a natureza maleável, dinâmica e plástica dos gêneros. Esta noção causa problemas para os estudiosos da Gramática Tradicional.

Sabemos que a leitura abrange um mundo amplo e rico de material a nosso dispor, em especial os gêneros textuais que estão vinculados à própria leitura, à vida cultural, social e operam como formas discursivas de enquadre poderoso (MARCUSCHI, 2008 p. 228, 229). São entidades sócio-discursivas e contribuem para ordenar e categorizar nossas idéias (entenda-se por categorização o processo pelo qual os seres humanos organizam as experiências), nossas formas de escrita e atividades comunicativas do dia-a-dia. São quase inúmeros, têm diversas formas, e apresentam funções cognitivas, comunicativas e institucionais.

“Sendo os gêneros fenômenos sócio-históricos e culturalmente sensíveis, não há como fazer uma lista fechada de todos os gêneros. Existem estudos

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feitos por lingüistas alemães que chegaram a nomear mais de 4.000 gêneros, o que à primeira vista parece um exagero.” (MARCUSCHI, 2007, p. 29)

É importante mencionar que a noção de gênero não é mais vinculada à literatura. Como bem explica Swales (1990), o gênero é facilmente usado para referir-se a uma categoria de discurso de qualquer tipo, com ou sem aspirações literárias.

A verdade é que a tecnologia tem favorecido seu surgimento de forma inovadora, quais sejam: teleconferências, videoconferências, telemensagens, reportagens ao vivo, aulas chat, e-mails e outros. As telecomunicações, por exemplo, vêm evoluindo e exigindo de nós a necessidade de manuseio dos gêneros. Enfim, eles apresentam a capacidade de uma maleabilidade, uma adaptação a diversas formas.

“Caracterizam-se como eventos textuais altamente maleáveis, dinâmicos e plásticos. Surgem emparelhados a necessidades e atividades sócio-culturais, bem como na relação com inovações tecnológicas, o que é facilmente perceptível ao se considerar a quantidade de gêneros textuais hoje existentes em relação a sociedades anteriores à comunicação escrita.” (MARCUSCHI, 2007, p. 20)

Entre esses diversos gêneros disponíveis temos a música, nosso ponto de partida e de chegada, com suas letras geralmente atraentes, grande apelo popular, ricas de mensagens, com inferências para assuntos diversos, e na sua grande maioria sedutoras aos jovens estudantes. Seu grau de aceitação entre os adolescentes é satisfatório o que de certa forma justifica seu uso nos exercícios de leitura. Essa mesma linguagem vista como agradável aos alunos caracteriza-se também pela possibilidade de exploração do sentido em seu aspecto cognitivo, sobre o qual nos debruçaremos neste trabalho.

Acreditamos que a música seja o lugar de interação de sujeitos sociais, constituído por meio de ações lingüísticas e sociocognitivas, contribuindo na construção das opções significativas dentro da organização conceptual que a língua oferece.

O aluno precisa conceptualizar a música, sua linguagem como construção de sentidos de acordo com o contexto, com sua significação

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seus enquadres. Ele deve ser “estrategista” na cognição da linguagem, utilizando táticas que o motivem a participar da aula e tomar consciência da importância da ampliação de seus conhecimentos mediados pela cognição. “A aprendizagem de um novo conteúdo é produto de uma atividade mental construtivista realizada pelo aluno...”. (ALVES, 2005, p. 159) Para o cognitivismo, interessa o modo pelo qual os conhecimentos que um indivíduo possui estão estruturados em sua mente e como serão acionados dentro do ambiente. Grande parte dos processos cognitivos atua na nossa sociedade e não apenas nos indivíduos. Portanto, a cognição é um fenômeno situado.

Em nossa pesquisa a relação entre linguagem e cognição é estreita, de mútua constitutividade e o contexto da música (a ser abordada) é o espaço onde se constroem e reconstroem indefinidamente as significações.

Em atividades de leitura colocamos em ação as estratégias de cognição onde o processamento textual mobiliza conhecimentos armazenados em nossas mentes. Diante disso, o professor não pode ignorar o potencial do aluno, deve utilizá-lo em beneficio do ensino de vocabulário e dos métodos de ensino adequados a uma aula de música. Uma vez tal ação seja bem executada, significará para os alunos no sucesso da leitura e aquisição do léxico.

Neste trabalho associamos a idéia de gêneros a um caráter sócio-comunicativo, situado em contexto social de uso, e regulado pelas normas das comunidades com suas respectivas culturas e representadas pela linguagem. Acreditamos que a linguagem permeia toda a vida social, exercendo papel central no processo de construção do significado, levando em conta a dialogicidade dos interlocutores e as condições de produção de fala. Isto significa assumir a linguagem como operadora de conceptualização (cf. ALVES, 2005). Ao utilizarmos a linguagem ingressamos no processo de produção de estratégias que dependem das capacidades inerentes ao ser humano: pensamento, raciocínio, imaginação. Enfim, tratamos a língua como uma atividade sócio-cognitiva, produzida socialmente, e através dela, nos apropriamos do mundo.

Para um maior aprofundamento em torno das abordagens acima, apresentaremos, com base em Salomão (1997), outras reflexões neste sentido.

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4. A Hipótese Sócio-Cognitiva da Linguagem

Compreender a leitura de um texto e seu sentido do ponto de vista sócio-cognitivo é importante, pois é através dele que processamos de forma dinâmica e criativa o conhecimento em nossas mentes. Existem várias tentativas de resposta bem como teorias a respeito de como elaboramos os conhecimentos.

O programa da Hipótese Sócio-Cognitiva da Linguagem liderado por Margarida Salomão (1997) da Universidade Federal de Juiz de Fora (com outros pesquisadores simpatizantes como Marcuschi e Ingedore Koch) propõe uma investigação que idealiza a cognição e linguagem como socialmente constituídas. Parte-se da hipótese de que o sinal lingüístico guia o processo de significação no contexto. A preocupação da Hipótese Sócio-Cognitiva é explicar os processos de conceptualização, partindo de uma tripartição: linguagem, cognição e interação humana. O programa de Salomão entende a cognição como social e culturalmente constituída a partir de um sujeito que é cognitivo em situações comunicativas reais. Assim, o sujeito é interativo, construindo seu conhecimento, conseqüentemente, construindo sentidos.

A linguagem é vista como o dispositivo para a construção do conhecimento, a cognição apresenta uma natureza natural enquanto que a interação permite que façamos os ajustes necessários para poder interpretar.

Salomão (1999) formula três premissas teóricas básicas, quais sejam: o princípio da escassez da forma lingüística (conhecido também como o princípio da escassez do significante), o princípio do dinamismo contextual (também denominada de semiologização do contexto) e o drama das representações.

Em resumo, a Hipótese Sócio-Cognitiva leva em conta aspectos lingüísticos, elementos corporais, gestuais e papéis sociais.

O princípio da escassez da forma lingüística

No nosso entender, este princípio leva a uma nova visão da relação linguagem /mundo de onde os significados não são provenientes de uma capacidade conceptual inata. Os significados são vistos como complexas operações de conexão. Ou seja, esse princípio indica que, apesar de haver a necessidade da estrutura lingüística, ela

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por si só, não é suficiente para o sucesso no processo de significação. Como afirma Fauconnier (1994, p.x):

“(...) a linguagem não realiza por si a construção cognitiva – ela oferece pistas mínimas, mas suficientes para localizar os conhecimentos e princípios apropriados a operar em cada situação (...) de tal modo que a representação resultante excede em muito a informação implícita (...)”

Neste sentido, concordamos por um lado, com Fauconnier (1994, p.x) ao acrescentar a idéia de que: “a linguagem não porta o sentido, apenas o guia”. As sentenças não são em si portadoras das proposições. Em sua proposta, Fauconnier parte do pressuposto de que ao construirmos uma interpretação mobilizamos conhecimento prévio deixado pela lacuna textual. Podemos, então, transportar-nos através de suas palavras para dentro do estudo do fragmento de música a ser analisado por nós, de onde seremos levados, conduzidos ao sentido real de sua letra através da linguagem situada naquele contexto sócio histórico e cultural.

O autor ainda afirma que, quando a mente, a língua e a cultura são objetos de estudo, o leitor deixa de ser espectador e passa a ser ator. Desta forma, acreditamos que o fragmento de música possa nos envolver dando pistas e relatando a respeito dos personagens e seus sentidos. Acreditamos que a forma lingüística seja uma pista, que os recursos cognitivos de que necessitamos serão selecionados no cumprimento das interpretações, e sendo assim, focalizaremos e constataremos o caráter social da cognição.

Pensamos com a proposta de Fauconnier, porém ele deixa uma lacuna por não esclarecer como o sujeito organiza as operações mentais, tratando o sujeito com um ser apenas cognitivo. Acreditamos que as integrações existem porque fazemos parte de um mundo social e cultural.

Resumindo, nesta premissa, o significado não é dependente do significante e nem produto dele, pois o processo de conceptualização está relacionado com as escolhas de elementos conceptuais relevantes e com representações.

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Principio do dinamismo contextual

Entendemos que Salomão (1999) dá o devido valor à dimensão contextual para o processo de significação, ou seja, traz o contexto para o centro da significação. Para compreender o processo de construção conceptual deve- se adotar uma compreensão fenomenológica do contexto que por sua vez, é entendido como modo-de-ação, constituído socialmente.

A concepção de linguagem como base sócio-cognitiva fundamenta-se na tese de Clark (1996) de que os atos de comunicação são conjuntos e só existem na interação. Diríamos que os falantes se distribuem para fazerem uma ação unida. Para exemplificar essa idéia, Clark faz uma comparação com duas pessoas pedalando um barquinho ou dançando valsa.

Clark (1996) distingue aspectos a respeito da linguagem vista como ação conjunta. A linguagem é...

usada para propósitos sociais.

ação conjunta.

ciência tanto cognitiva quanto social.

conversação face a face.

O sujeito precisa de sua contraparte, pois as atividades não podem ser feitas como atos isolados. Neste caso, a linguagem da nossa música incorporaria processos individuais e sociais e deveria ser analisada em parceria.

Discordamos de Clark ao dizer que a linguagem é usada apenas para propósitos sociais, e que o seu lócus básico é a conversação face a face. Acreditamos que a linguagem é um recurso argumentativo rico, plástico, que intervém nas situações mais variadas, seja ela face a face ou não.

O drama das representações

Nesta terceira premissa, o princípio básico diz que “interpretar é representar no sentido dramático de representação.” (SALOMÃO, 1999, p. 71)

Fazer sentido é uma operação social, pois o sujeito nunca constrói o sentido em si, mas é destinado à alguém, mesmo que este

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alguém seja ele mesmo.Compreendemos que construir sentido é assumir uma perspectiva sobre uma cena.

A Hipótese Sócio-Cognitiva faz um empréstimo à sociolingüística de Goffman ao perceber que uma interação é dramática, pois ao participar da cena assumem-se papéis. Para Salomão seria uma operação social, na qual o sujeito constrói e interpreta o sentido para outro sujeito com o qual divide a cena.

Goffman citado em Salomão (1999) destaca dois pontos relevantes: 1) a questão de que toda interação comunicativa insere-se em uma moldura e assume uma função comunicativa particular; 2) é impossível atuar a cena social, investir sentido, seja com base em “conhecimento consensualmente compartilhável ou pela motivação singular de realizar objetivos localmente relevantes”. (ibid,)

Nesta perspectiva, os textos (ou discursos) são definidos como:

“(...) fontes óbvias para construção das representações mentais na memória dos indivíduos, assim como de conhecimentos que circulam socialmente, participando ativamente das categorizações sociais, da criação, circulação e manutenção de estereótipos e das diversas visões de mundo encontráveis numa sociedade”. (MUSSALIM e BENTES, 2004)

Desta forma, o programa sócio-cognitivo defende que a experiência é social é semantizante, ou seja, para nos engajarmos em uma cena interativa é preciso atribuir sentido. Salomão (op.cit. p. 72) explica que “Não há como dissociar interpretação-do-mundo, representação - de si e escolha da linguagem”. Parece-nos que Salomão retoma uma visão neo-kantiana ao dizer que as cores não são inerentes aos objetos e nem aos sujeitos, ao contrário, as cores são vistas de acordo com a refração da luz sobre uma superfície sentida através do nosso aparato biológico.

Em outras palavras, entendemos que “o discurso sucinta um jogo de complexas construções cognitivas”, as quais incluem um “conjunto de conhecimentos estruturados” (MIRANDA, 2000).

De acordo com esta posição, dentro do nosso fragmento de música a ser analisado o sujeito não seria responsável por completo pela produção conhecimento, o fragmento seria assim considerado a

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partir de uma visão cognitiva e social para explicar as relações entre cognição, linguagem e social.

5. Analisando um fragmento da letra da música “A Triste Partida”

“Teorizar a respeito da música é algo que fazemos todas as vezes que tentamos compreender nossa experiência musical, e envolve as mesmas capacidades cognitivas que usamos para compreender o mundo. O papel dos conceitos e as estruturas conceptuais típicas da teoria da música não é portanto algo remoto da nossa apreciação musical, ao contrário básica à ela.” (Editora da Universidade de Oxford)1

Buscaremos, a partir de agora, apresentar uma nova maneira de se conceber os sentidos e trabalhar a linguagem em uma música popular brasileira regional dentro de sala de aula. Ao invés de ser vista simplesmente como o tradicional instrumento de comunicação a partir de agora e apoiados na citação acima, a linguagem musical passará a fazer uso de nossas capacidades cognitivas.

Abordar o sentido da leitura a partir de estratégias cognitivas de significação, compreendendo o mundo, revelando o gênero textual (letra de música) como gatilho para inferências é buscar novos conceitos de aprendizagem.

Por sua vez, a palavra não é apenas portadora de significado, através dela refletimos e analisamos o que chega aos nossos sentidos de forma conceptual e codificamos seu sentido real.

“É através da palavra que analisamos e sintetizamos a informação externa que chega aos nossos sentidos; que ordenamos o mundo, do ponto de vista perceptual e que codificamos nossas impressões em sistemas. Daí a aquisição do léxico

1 ”Theorizing about music is something we do every time we try to make sense of our musical experience, and involves the same cognitive capacities we use to make sense of the world as a whole. The play of concepts and conceptual structures typical of music theory is thus not something remote from our appreciation of music, but is instead basic to it.” (Oxford University Press)

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ser fundamental ao desenvolvimento cognitivo. (RODRIGUES-LEITE 1998, p. 102)

Quanto a esse aspecto, acreditamos que a aquisição do léxico é fundamental no desenvolvimento cognitivo. Entendemos, com o autor, que os laços entre palavra, cognição, sentido são fundamentais, para pensar os conteúdos visados e disponíveis, isto sem falar que em uma música existem outros léxicos implícitos que serão detectáveis numa mobilização do sentido sociocognitivo. “A variedade das possibilidades de transmissão de experiências entre professor – aluno para aumento do léxico é tão grande quanto o vocabulário de Língua Portuguesa”. (KLEIMAN, 1989, p. 205-206)

A música em si pertence ao universo da leitura e da escrita, desembocando sobre uma busca mais intencional de contextos e significações que remetem à realidade (afetividade, memórias, proximidade contextual) vivida pelos sujeitos de uma determinada sociedade.

Se levarmos em conta o contexto vivenciado pelos alunos dentro e fora da escola e se tentarmos resgatar o conhecimento do mundo desses indivíduos ali representados, poderemos, assim, conduzir a uma nova reflexão: os fatos que ocorrem ou ocorrerão dentro da história de sua comunidade ou da sociedade em que vivem. Entretanto, a relação de construção de conhecimento nem sempre se dá de forma efetiva. A sala de aula torna-se um local de monólogo onde o aluno sequer tem o direito a se expressar.

“Na maioria das vezes, o ensino do léxico pelo professor apresenta a mesma proposta dos livros didáticos. Naturalmente ele é o responsável pelo aprendizado de seus alunos, mas não se verifica muita descontinuidade entre o tipo de ensino apresentado pelo livro e aquele adotado pelo professor.” (RODRIGUES-LEITE, 1998, p. 104)

O mesmo problema ocorre nas aulas onde haja interpretação de músicas. A proposta está focada pura e simplesmente no léxico, como ensinam alguns livros. Para nós, a comunicação é um determinante no processo de aprendizagem, ou seja, o professor deve lidar com as frases contextualizadas na música. Como bem diz Kleiman (1989 p. 193), devemos lidar com a atomização do texto nos livros didáticos e

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combatê-la.

É comum encontrarmos uma análise superficial nos livros didáticos e seus exercícios inadequados, sem enfoques na compreensão textual ou na coesão do léxico, com um atomicismo que isola os conhecimentos sem perspectivas positivas, tais aspectos para nós, são de vital importância. O problema ocorre porque, muitas vezes, os professores centralizam a aula em si mesmos e não no melhor meio de aprendizagem. De forma geral, eles justificam suas ações na péssima qualidade dos materiais e métodos aplicados, na falta de capacitação docente entre outros.

Assim como Kleiman, (op.cit.), cremos que, lendo, aprende-se mais do que escutando, pois assim o aluno terá domínio sobre seu processo cognitivo. Importante que se saiba o significado das palavras - chave e que leva o aluno a usar as pistas contextuais que irão suprir a falta do conhecimento, não se esquecendo do conhecimento extra- lingüístico, proveniente da própria experiência do aluno, fonte de significados.

A esta altura do trabalho observaremos um recorte da música “A Triste Partida” escrita nos anos 40 por Patativa do Assaré e cantada por Luiz Gonzaga no início da década de 60. Neste sentido apoiados em Salomão abordamos de modo elucidativo o processo cognitivo da significação na letra da música.

Devido à extensão da letra da música onde cada estrofe apresenta uma pluralidade de sujeitos e sentidos, achamos por bem nos debruçarmos nas primeiras linhas da estrofe que corresponde da linha um à linha doze.

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Setembro passou

outubro e novembro Já estamos em dezembro. Meu Deus, que é de nós? Assim fala o pobre Do seco Nordeste, Com medo da peste, Da fome feroz.

A treze do mês Ele fez experiência, Perdeu sua crença Nas pedras de sal. Mas noutra experiência Com gosto se agarra, Pensando na barra Do alegre Natal.

Rompeu-se o Natal, Porém barra não veio, O sol bem vermelho, Nasceu muito além.

Na copa da mata, Buzina a cigarra, Ninguém vê a barra, Pois a barra não tem.

Sem chuva na terra Descamba janeiro, Depois fevereiro E o mesmo verão. Entonce o roceiro Pensando consigo, Diz: “Isso é castigo! Não chove mais não!”

Apela pra março, Que é o mês preferido Do santo querido. Senhor São José. Mas nada de chuva! Ta tudo sem jeito, Lhe foge do peito O resto da fé.

Agora pensando

Seguir outra tria, Chamando a família Começa a dizer: “Eu vendo meu burro, Meu jegue e o cavalo, Nós vamos a São Paulo Viver ou morrer.”

Nós vamos a São Paulo, Que a coisa está feia; Por terras alheias Nós vamos vagar. Se o nosso destino Não for tão mesquinho, Pro mesmo cantinho Nós torna a voltar.

E vende seu burro, Jumento e o cavalo, Até mesmo o galo Venderam também, Pois logo aparece Feliz fazendeiro, Pois pouco dinheiro Lhe compra o que tem.

Em cima do carro Se junta a família; Chegou o triste dia, Já vai viajar. A seca terrível, Que tudo devora, Lhe bota pra fora Da terra natal.

O carro já corre No topo da serra. Olhando pra terra, Seu berço, seu lar, Aquele nortista, Partido de pena, De longe acena: Adeus, Ceará!

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No dia seguinte,

Já tudo enfadado, E o carro embalado, Veloz a correr, Tão triste, coitado, Falando saudoso, O filho choroso Exclama a dizer:

“De pena e saudade, Papai sei que morro! Meu pobre cachorro, Quem dá de comer?” Já outro pergunta: “Mãezinha, e meu gato? Com fome, sem trato, Mimi vai morrer!”

E a linda pequena, Tremendo de medo: “Mãezinha, meus brinquedos! Meu pé de fulo! Meu pé de roseira, Coitado, ele seca! E a minha boneca Também lá ficou.”

E assim vão deixando, Com choro e gemido, Do berço querido O céu lindo azul. O pai pesaroso, Nos filhos pensando, E o carro rodando Na estrada do Sul.

Chegaram em São Paulo Sem cobre quebrado. O pobre acanhado, Procura um patrão Só vê cara estranha, Da mais feia gente, Tudo é diferente Do caro torrão.

Trabalha dois anos,

Três ano e mais ano, E sempre nos planos De um dia ainda vim. Mas nunca ele pode, Só vive devendo. E assim vai sofrendo Tormento sem fim.

Se alguma notícia Das bandas do Norte Tem ele por sorte O gosto de ouvir, Lhe bate no peito Saudade lhe molho, E as águas nos olhos Começa a cair.

Do mundo afastado, Sofrendo desprezo,

Ali vive preso, Devendo ao patrão. O tempo ralando, Vai dia e vem dia, E aquela família

Não volta mais não!

Distante da terra Tão seca, mas boa, Exposto à garoa, A alma e o pau

Faz pena o nortista, Tão forte, tão bravo Viver como escravo

Nas terras do Norte e no Sul.

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Revelar os misteriosas, as entrelinhas de um gênero textual

(letra de música), como essa em nosso trabalho, com suas palavras, e gramática pode funcionar como gatilho para a imaginação onde ativaremos nossas operações imaginativas, cognitivas realizadas no caminho através de uma integração conceptual. Assim colaboram Fauconnier e Turner (2002, p. 146) ao dizerem que

[...] as palavras e os padrões nos quais estas se encaixam são gatilhos para a imaginação. Elas são indutores que usamos para tentar que consigamos ativar algo do que conhecemos e trabalhamos nisto criativamente para chegar a um significado [...]

Segue abaixo um fragmento da letra da música a ser analisada.

1. Setembro passou 2. Outubro e Novembro 3. Já estamos em Dezembro. 4. Meu Deus, que é de nós? 5. Assim fala o pobre 6. Do seco nordeste, 7. Com medo da peste, 8. Da fome feroz 9. A treze do mês 10. Ele fez experiência, 11. Perdeu sua crença 12. Nas pedras de sal.

O recorte musical acima pode nos ajudar a compreender, em primeiro lugar, como situação comunicativa, no contexto sócio-político-cultural, que se trata de uma pessoa relatando o passar dos últimos quatro meses do ano de forma angustiada, de quem não está feliz e que tem preocupações com tal rapidez dos meses (linha 1 a 3), atingindo a população de uma região de clima seco (linha 6).

A princípio há troca de enunciadores. Na linha 4 quem fala é o locutor (ou narrador) do texto, o pronome se encontra na 1ª pessoa do plural, ou seja,o sujeito se inclui na situação. Nas linhas 5 e 10, quem fala é um personagem da história. Podemos dizer que tanto o narrador

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como o personagem se entrecruzam na história e sustentam as mesmas emoções.

O título “A Triste Partida”, a partir de um conhecimento prévio o leitor, já ativa um frame (conhecimento de senso comum) de onde irá situar o contexto tematizado. Sabemos que, em geral, toda partida é sofrida e é carregada de nostalgia e de um sentimento de não mais retornar àquele local. Essa inferência é feita através desses esquemas (conhecimentos ordenados de modo que podemos criar hipóteses a respeito do futuro).

A Teoria da Integração Conceptual do qual nos apropriaremos de forma breve, procura explicar os fenômenos da linguagem a partir de nossas capacidades cognitivas. Nesta linha temos Gilles Fauconnier (1994), afirmando que a linguagem não produz sentido autonomamente, mas é a mediadora da construção do significado que nada mais é que o resultado de uma operação cognitiva criativa. Para compreendermos a integração conceptual, precisamos entender o significado de domínio. Estes são vistos como conjuntos de conhecimentos repartidos em duas classes: estável e local.

Os domínios estáveis são representados pelos nossos conhecimentos prévios (os esquemas ou frames). Segundo Salomão, esses domínios são ordens cognitivas e os Modelos Cognitivos Idealizados (MCIs) seriam um exemplo. Os mesmos apresentam uma função importante na cognição humana, pois organizam o nosso conhecimento. Lakoff (1987) explica que a terça - feira definida em relação ao MCI inclui um calendário, onde cada parte da semana é denominada de dia e a terceira divisão seria a terça. Não esquecendo que povos de outras culturas têm uma organização diferencial quanto ao calendário.

Acreditamos que seja importante mencionar os MCIs, pois eles nos fazem compreender o mundo e para construirmos significados do recorte de musica será necessário acioná-los.

Reforçando a importância dos MCIs, Miranda (2000) define-os como: “Conhecimentos socialmente produzidos e culturalmente disponíveis” (2000, p.83), cuja função na cognição humana é a lembrança e o uso de conhecimentos prévios adquiridos na vida cotidiana e de onde provém os papéis, suscitados pela informação lexical.

Nosso MCI evidenciado no fragmento da música diz respeito à busca do narrador e do personagem por uma resposta de como obter

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uma vida melhor. O objeto de interesse é a escapatória da fome, por isso, a escolha do substantivo fome.

O trecho “Meus Deus que é de nós?” Sintetiza a angústia, o sofrimento do passar do tempo. Importante observarmos que os meses são categorizados pelo sertanejo de forma diferente da nossa realidade. A espera pela estação das chuvas é uma representação marcante e torna os meses espaços cruciais para a sua sobrevivência.

A escolha do pronome nós, 1ª pessoa do plural para designar o objeto virtual onde o intérprete da canção é Luiz Gonzaga e se inclui por ser representante local desta realidade (trajes típicos de um sertanejo) Estes detalhes funcionam como pistas contextuais relevada pelo enquadramento lingüístico.

Segundo Goffman, toda interação comunicativa é dramática, a partir do momento em que nos inserimos numa moldura (ou “frame”) e exercemos um papel comunicativo. “Na medida em que o sujeito cognitivo é também persona dramatis, a interpretação passa a ser prática interativa, tão social quanto a própria linguagem.” (SALOMÃO, op.cit. p. 72)

Outro ponto a destacar é que, para atuar em uma cena, é preciso fazer sentido. Cada música apresenta um sentido a ser investigado e descoberto. Conforme observam teóricos da Hipótese Sócio-Cognitiva da Linguagem, o sentido é o fruto de uma atividade que presume cooperação, consentimento.

Acreditamos que na interpretação dos sentidos a intencionalidade é de grande importância, bem como a maneira como essas intenções são transmitidas pelo autor da música

Inferimos através das informações trazidas no texto de que a intenção do narrador é de mobilizar Deus para defendê-los (seu povo também) da fome feroz. Constatamos na linha 8.

Outro elemento que consideramos importante para entender o texto é estabelecido pelas inferências sobre os significados das ações. Através dela inferimos que não parece possível ao sertanejo, neste momento, apresentar uma definição única que seja para o que acontece no seu clima. E vendo que está quase impossível sobreviver, indaga a Deus o que fazer.

De acordo com Koch & Travaglia (1990), os textos em geral exigem de nós que utilizemos as inferências para compreendermos integralmente seu sentido. Os autores comparam o texto a ponta de um iceberg, mas a parte submersa cabe a nós alcançar os implícitos.

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As ações relatadas pelo nosso fragmento fazem-nos inferir que

a personagem está clamando à Deus uma resposta. “Meus Deus, que é de nós?” Parece que não há mais saída se não partir, talvez por isso o título da música seja “A Triste Partida”. O sertanejo não quer partir, mas se vê obrigado.

Podemos concluir, pelo nosso conhecimento, que os meses citados são os mais quentes, difíceis, secos e improdutivos para a região árida. Inferimos também que a fome é intensa pela presença do adjetivo feroz (linha 8).

Então, o que falar “da peste, da fome feroz?” A palavra peste nos remete a uma doença contagiosa que se alastra velozmente em epidemias. Portanto acreditamos que a fome irá se lastrar rápido: Este é o motivo do medo do eu lírico.

Finalmente estabeleceremos outras inferências agora como a presença do treze como o número do azar (linha 9). Dizem que o número traz má sorte: o treze azarado (mitologia dos Vikings). Diz a mitologia que dentro de um ano a pessoa morrerá. Crença reforçada por estar relacionada à carta da morte no Tarô.

Resumindo, através desta breve abordagem do fragmento de “A Triste Partida”, percebemos o quanto nós leitores usamos mão de nossos conhecimentos, de nossas práticas cotidianas de linguagem sobre este texto e outros textos para atribuir significado às formas textuais a que nos deparamos. Todos nós apresentamos uma competência textual desenvolvida, cabe a nós exercitá-la.

Considerações Finais

Este trabalho apresenta uma análise da construção do sentido construindo, contemplando enquadres sócio-cognitivos da letra da música “A triste Partida” através do qual é possível ao aluno compreender o mundo e seu contexto por meio do conhecimento de mundo e da linguagem. Utilizamos algumas teorias que propiciaram uma análise de um fragmento da letra de música de Patativa do Assaré sócio-cognitivamente contextualizada. Fizemos também, uma breve revisão dos conceitos de leitura que foram elaborados pelos especialistas.

Com base na proposição de que através do processo sócio-cognitivo da significação é possível compreender o mundo, buscamos

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dar um novo enfoque ao processamento textual de letras de músicas regionais. Ao tratarmos a linguagem como capacidade de conhecimento do sujeito, determinamos nossa posição sócio-cognitivista. Vimos que a linguagem permite a produção de infinitas representações por onde os sujeitos se identificam e se dão a conhecer, ajustam-se, acionam conhecimentos e criam outros novos.

Dentro da moldura teórica que nos reportamos, acreditamos que o professor deve ter uma maior consciência do seu papel no desenvolvimento da competência cognitiva do aluno, criando um espaço propício para aprendizagem e ampliação dos conhecimentos lingüísticos. Ensinar os nuances da língua (seja ela qual for) através de letra da música não significa transmitir teoria gramatical através de conceitos pré-concebidos, sem levar em consideração os processos sócio-cognitivos da linguagem. O que importa não são as palavras dicionarizadas com seus significados prontos, mas o sentido assumido no contexto.

Podemos afirmar, também, que os estudos sobre o sentido do texto vêm se aproximando dos estudos cognitivos, onde linguagem, cognição, inferenciação, cultura, memória estão relacionados. O conhecimento que era aceito como um simples processo de informações é agora representado dentro de uma realidade sócio-cognitiva. Os sentidos que eram vistos numa concepção clássica e estável agora são flexíveis, dinâmicos e entendidos como processo de construção conjunta de significações cognitivas.

A análise realizada aponta para a necessidade de aulas de leitura voltadas para o desenvolvimento da capacidade cognitiva do aluno, para que seja possível a possibilidade de os alunos crescerem enquanto sujeitos ativos e cognitivos, capazes de construírem os seus posicionamentos. Assim como Alves (2005, p. 249), acreditamos que “A questão central não consiste em “despejar” conhecimentos para os alunos, mas levá-los a construir em função de processos cognitivos e interativos.” Enfim, consideramos importante que as estratégias de ensino façam uma conexão entre os aspectos lingüísticos e sócio-cognitivos, unindo o conhecimento prévio ao novo.

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REFERÊNCIAS

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LÍNGUA-CULTURA-SOCIEDADE EM CANGACEIROS DE

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Language-Culture-Society in José Lins do Rego “Cangaceiros”

Mônica Maria Montenegro de Oliveira**

Ana Cristina S. Aldrigue***

Resumo: Esse artigo apresenta o uso da expressividade referenciada na obra Cangaceiros, de José Lins do Rego, o seu romance sertanejo único, que retrata o Nordeste do cangaço, buscando informações, a partir de estudos teórico-práticos, sobre os valores e cultura regionais, considerando a relação tripartite língua-cultura-sociedade, marcada pelo contexto estabelecido à obra. Palavras-chave:expressividade; Cangaceiros; José Lins do Rego; língua-cultura-sociedade; cangaço.

Abstract: This article presents the use of expressiveness referred in Cangaceiros by José Lins do Rego, his unique novel, which deals with the hard Northeast reality, searching information, from theoretic-practical studies, about the rescue of regional values and culture, considering the tripartite relationship language-culture-society, pointed out by the context to the novel itself. Key-words: expressiveness; ‘Cangaceiros’; José Lins do Rego; language-culture-society; ‘cangaço’.

1. Introdução

Este artigo veicula um estudo de cunho lingüístico em Cangaceiros, de José Lins do Rego, (1953), o seu romance sertanejo único, que retrata o Nordeste do cangaço, dando luz e vida ao Capitão Aparício Vieira, o cangaceiro Lampião, como refere Manuel Diegues Júnior na sua análise crítica sociológica apud Villaça (1999, xiv).

Segundo Ariano Suassuna (1967), José Lins do Rego se filiou a uma tradição mais antiga da Literatura erudita do Brasil, a do sertanismo, que antecedeu a dos romances da Zona da Mata. Suassuna

* Este texto é uma homenagem à Professora Maria das Neves Alcântara de Pontes (in memoriam), sob cuja orientação este trabalho tomou forma.

** Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba *** Professora da Universidade Federal da Paraíba

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qualifica Cangaceiros como a obra-prima, a grande gesta épica de Aparício Vieira, o cangaceiro e defende tal afirmação:

...Comumente, quando se fala na obra de José Lins do Rego, é numa referência ao “Ciclo da Cana-de-Açúcar”, ou, principalmente, a Fogo Morto, considerado como sua obra-prima. É que os críticos de José Lins do Rego têm sido, até hoje mais ligado à Zona da Mata do que ao Sertão.

Desse modo, pensamos que, enquanto mestre da língua, José Lins do Rego conhecedor dessa realidade lingüística, utilizou-se da expressividade e da forma popular para caracterizar o perfil de um personagem - “Os cangaceiros”.

Apresentaremos a partir de estudo teórico-prático o resgate de valores e cultura regionais, levando em consideração a relação trialógica (língua-cultura-sociedade), marcada pelo contexto à obra, além de definições de expressividade sob os pontos de vista lingüístico e histórico-social; em outras palavras, a expressividade em que se espelha a sabedoria popular, o ambiente geo-espacial e os costumes, visto que a linguagem universal não é mais importante que o sotaque local, e, conforme bem o destaca Aragão (1989, p. 19) “Para se entender uma língua é necessário se conhecer o povo que a fala: seus costumes, crenças, tradições, suas histórias de vida enfim”.

Há de se reconhecer que em Cangaceiros, José Lins do Rego utiliza a língua da mesma forma que nos habituamos a ouvir e, também, a usar, respeitando as características da região e de época. Este é um processo que exige do autor um vasto conhecimento lingüístico para poder obter o seu intento. Dessa maneira, a forma como o escritor absorve a palavra e o bom uso dela vai determinando-lhe o estilo e diferenciando-o dos demais.

Conforme a opinião de críticos, ensaístas, enfim, dos estudiosos da língua, José Lins do Rego é um, entre os escritores, dos que mais se destaca na arte de retratar as falas populares, considerando a maneira singular de enfrentar a palavra resultando, desse processo, expressões vigorosas com sabor e energia pouco detectadas em outros autores.

Milliet (1980) vai além ao acrescentar ainda que:

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...Do ponto de vista da técnica ficcionista ergue-se o escritor, neste livro, a um nível fortemente realista, entremeando as descrições com as reflexões de seus heróis e com monólogos interiores, utilizando com felicidade o presente histórico, aproveitando sem exagero o vocabulário, as metáforas e os ditados regionais e obtendo efeitos surpreendentes das repetições...

No que tange à escolha da obra que subsidiará este trabalho deveu-se, sobretudo, a três motivos: o primeiro é que a maior parte dos estudiosos da obra de José Lins do Rego parece ter deixado um pouco à parte, as pesquisas sobre o Sertão, seja dos santos quanto dos cangaceiros. Segundo, em Cangaceiros se faz presente o conjunto representativo de personagens de uma região e de uma época, um sertão “... dos que matam e rezam com a mesma crueza e a mesma humanidade” Milliet (1980). Terceiro, a expressividade em Cangaceiros que pode se apresentar de inúmeras maneiras/fontes, uma vez que uma língua, por meio do vocabulário (léxico), reflete as experiências do povo que a fala.

Após afirmações e questionamentos de que tomamos conhecimento no decorrer das leituras realizadas, convencemo-nos de que ambos, autor e obra escolhida condensam as características ideais para a realização da nossa proposta, ou seja, o estudo do uso da expressividade em Cangaceiros, de José Lins do Rego. Para atender aos nossos objetivos delimitaremos o espaço de incursão nos registros da fala com exemplificações de alguns usos da expressividade de personagens e narrador presentes na obra, ressaltando/evidenciando a inter-relação língua-cultura-sociedade.

2. Marco Teórico

O léxico da língua portuguesa resulta de uma mistura de povos e culturas, fazendo com que este fato contribua, significantemente, para expansão e enriquecimento desse léxico. Segundo Trask (2004, p. 155):

O léxico é o vocabulário de uma língua, porém em lingüística, geralmente, não se fala do vocabulário de uma determinada língua, mas do seu léxico, o

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inventário total de palavras disponíveis aos falantes.

Nesse sentido, o vocabulário de uma língua se apresentaria dividido em ativo e passivo, nos quais se encontram, respectivamente, as palavras que o falante de uma língua faz uso e aquelas que o falante compreende sem, contanto usá-las. O léxico assim disposto não se ateria a lista de palavras, mas concebido como um conjunto de recursos lexicais, perpassaria os morfemas da língua e os processos disponíveis para construir palavras, por meio desses recursos.

O estudo proposto será norteado pelas Teorias Lingüísticas, dentre elas, a dos Campos Léxicos, visando aos aspectos lingüísticos e extra-lingüísticos com apresentação de um levantamento das expressões, provérbios, adágios populares e fraseologia das palavras inseridas na linguagem utilizada por José Lins do Rego no universo de Cangaceiros.

Na definição de Campos, apresentada pelo filósofo alemão Jost Trier, os conceitos abrangem todo o âmbito real e cria, assim, realidades vivas encampando as palavras isoladas e a totalidade do vocabulário, considerando a relevância do contexto para o significado.

Essa teoria pode ter tido origem na doutrina de Wilhelm von Humboldt em que um dialeto ou língua deveria ser considerada como um todo orgânico e diferentemente de outras línguas, devendo, ainda, exprimir a singularidade do povo que a falasse. Dessa forma, a língua é o instrumento que indica, particularmente, a tentativa de realização da fala de uma nação, conforme pensamento de Aragão (1989, p. 19) mencionado anteriormente.

Confrontando os estudos sobre a Teoria dos Campos encontramos que suas raízes filosóficas se misturam com os princípios de Cassiré, isto é, a influência da língua sobre o pensamento, assim como aos de Saussure particularmente, quando considera a língua como um todo orgânico cujos elementos delimitam-se entre si, para resultar em significação e valor, de acordo com a situação em que se inserem.

Nos estudos sobre Campos, podem-se encontrar várias denominações tais como: campos semânticos, campos lexicais, campos associativos entre outros. Adotaremos, porém, a de Campo léxico-semântico, espelhando-nos na pesquisadora Pontes (1999), por

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contemplar não apenas a noção de Campo Lexical, mas também a de Campo Semântico.

Assim sendo, procuraremos analisar a expressividade em Cangaceiros, de José Lins do Rego, traduzindo os aspectos do ambiente físico, social e cultural, os quais se refletem no léxico regional, considerando o contexto em que estão inseridas.

A língua pressupõe a cultura em todos os níveis (fonológico, morfológico, sintático e lexical e até mesmo no uso da linguagem verbal), mas é o vocabulário que traz consigo a maior carga cultural, razão pela qual usaremos o esquema de Galisson (1987, p. 36) apud Carvalho (2002, p.104) para explicar o significado acrescido da carga cultural:

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A realidade extralingüística indicada no esquema compreende

o mundo exterior do ser humano, acrescido ao seu mundo interior, ou seja, uma realidade construída a partir do recorte que os signos operam na realidade; entretanto a carga cultural pertence à comunidade.

Tendo como um dos objetivos evidenciar a inter-relação língua-cultura-sociedade, far-se-á uso da Hipótese Sapir/Whorf, a qual se liga fortemente às pesquisas etnológicas da antropologia norte-americana e ao Determinismo e Relativismo Lingüístico em que se destacaram Humboldt e Herder, respectivamente.

Os fundamentos dessa Hipótese encontram suporte num trabalho realizado por Boas e colaboradores apud (Lyons (1987, p. 275), que se constitui de grande importância para Etnologia, bem como para a cultura, ressaltando-lhe o papel que exerce na linguagem. É importante, contudo, lembrar que o trabalho realizado por Sapir e Whorf respalda-se, sobretudo, em pesquisas concretas por eles efetuadas, junto às línguas ameríndias.

Para Maria Teresa Biderman apud Carvalho (2002, p. 41), “o universo semântico se estrutura em torno de dois pólos opostos – o indivíduo e a sociedade – e da tensão entre ambos se origina o léxico.”

Em outras palavras, nessa teoria, a conceituação da cultura revela-se de maneira transparente nos mecanismos semânticos e gramaticais das línguas.

Segundo Poetzscher (1994), na Hipótese Sapir/Whorf podem-se definir com precisão dois postulados: o primeiro refere-se a influência da linguagem no modo pelo qual percebemos o mundo que nos cerca, a existência de um produto social e de um sistema lingüístico definido, possibilita-nos pensar e falar, uma vez que nele fomos educados desde crianças. O segundo postulado, por sua vez, refere-se à percepção que os homens têm do mundo, em que tal percepção é influenciada pelas diferenças entre os sistemas lingüísticos que se apresentam como um reflexo dos diferentes meios do quais se originam.

Observando as diferentes posições defendidas pelos lingüistas, percebe-se que tais divergências proporcionam uma visão integradora que serve de alicerce a investigações da relação língua-cultura, contribuindo não só para os estudos sociolingüísticos, mas também para a semântica lexical entre outros.

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3. A história e cultura do cangaço

Não é fácil estabelecer uma única definição da palavra cultura, tendo em vista a sua abrangência de atuação e finalidades diversas. Tal assertiva, porém, não se restringe apenas à cultura, mas também a língua Rajagopalan (1998, p. 22) e o tempo Bornheim (1991, p. 103).

O vocábulo ‘cultura’ é originado do latim ‘cultura’ significando conjunto de padrões de comportamento, crenças, conhecimentos, costumes, etc., que distinguem um grupo social Houaiss (2001, p. 888). Similar definição é apresentada por Ferreira (1986, p. 508) como um complexo de padrões de comportamento, das crenças, das instituições e d’outros valores espirituais e materiais transmitidos coletivamente e característicos de uma sociedade.

Convém ainda citar Câmara Jr. (1988, p. 87) que descreve ‘cultura’ como conjunto das criações do homem que constituem um universo humano /.../ e concebe a ‘língua’ como produto da cultura. Inegável reconhecer que por meio da língua a comunicação social entre os membros da sociedade é possível e real.

O termo técnico ‘cultura’ em antropologia foi introduzido por E. B. Tylor [na sua obra Researches into the early history and development of civilization] em 1865 apud Murray (1865, p. 4) e ampliado sistematicamente enquanto conceito geral, em 1871, pelo mesmo autor ao declarar:

Cultura... tomada em seu sentido etnográfico amplo é o todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade.

A julgar pela análise realizada por Kroeber & Kluckhohn (1952) de 160 definições em inglês formuladas por antropólogos, sociólogos, psicólogos, psiquiatras e outros, a qual resultou na categorização de ‘cultura’ em 06 grupos, a saber: a) enumerativamente descritivo; b) histórico; c) normativo; d) psicológico; e) estrutural; e f) genético, pode-se concluir que o termo ‘cultura’ difere apenas quanto aos pontos que cada área prefere enfatizar e ao modo como acha necessário tornar o termo explícito.

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A definição clássica de E. B. Tylor encontra eco em Boas apud

Seligman (1930, v.2, p. 79) quando faz menção a uma definição enumerativamente descritiva:

A cultura abrange todas as manifestações de hábitos sociais de uma comunidade, as reações do indivíduo quando afetado pelos hábitos do grupo no qual vive e os produtos de atividades humanas quando determinadas por esses hábitos.

Graças a essa percepção, formatada e alimentada pelas diversas correntes do pensamento teórico mundial, podemos qualificar, de forma compartimentada, frações de estudos e pesquisas setorizadas regionalmente, como é o caso da região Nordeste do Brasil, cujo objeto deste trabalho busca identificar, dentro de uma realidade específica o cangaço e a sua linguagem. Sob essa perspectiva, ratificamos o pensamento de Albuquerque Jr (2006, p. 28) que procura entender alguns caminhos por meio dos quais se produziu, no âmbito da cultura brasileira, o Nordeste, acerca do qual destaca:

O regionalismo é muito mais do que uma ideologia de classe dominante de uma dada região. Ele se apóia em práticas regionalistas, na produção de uma sensibilidade regionalista, numa cultura, que são levadas a efeito e incorporadas por várias camadas da população e surge como elemento dos discursos destes vários segmentos.

O Nordeste nasce, portanto, a partir do encontro do poder e linguagem; o geográfico, o lingüístico e o histórico se encontram quando se analisam essas variáveis que, ao longo de um dado processo histórico, construíram uma geografia, uma distribuição espacial dos sentidos, rompendo com as camadas discursivas e de práticas sociais – linguagem (discurso) e espaço objetivo (histórico), conforme enfatiza Albuquerque Jr (2006, p. 35). Temístocles Linhares apud Villaça (1999, xv) exalta:

Nada de panoramas tranqüilos. É o chão ardente das caatingas a se contrair em palpitações

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sanguinárias e sexuais de dois bandos: os cangaceiros, e os que o governo mandava para combate-los, havendo de permeio toda uma população aflita e sobressaltada. Vive-se o drama do cangaço, na sua esteira de crimes, vinganças, estupros, infortúnios, a que a natureza bravia, mas obsessionante e bela, vem emprestar nota de indiferença, para acentuar a discordância entre a geografia e a história.

Todo e qualquer processo cultural arremete a idéia do

contraponto produzido pela dinâmica dialética da história. As contradições estabelecidas pelos movimentos de tensão provocam dinamicamente um resultado e, como conseqüência, um novo momento histórico, cultural e social.

O cangaço tem como referência um desses momentos: a do contraponto e tensão entre o poder e uma dada fração social que, tensionada, responde com um nível de violência, como os de que faz uso o poder instituído para manter o status quo e a intocabilidade do poder.

O termo cangaço é antigo, usado desde 1834, para designar os indivíduos que se apresentavam usando conforme descreve Gustavo Barros apud Queiroz (1997, p. 15) “chapéu-de-coiro, clavinotes, cartucheiras de pele de onça-pintada, longas facas enterçadas batendo na coxa”. Cangaço e cangaceiro termos utilizados nas caatingas áridas que formam o chamado ‘Polígono das Secas’. Ambos vocábulos empregados, segundo documentos examinados e relatos existentes verificados por Queiroz (1997, p. 15) em dois casos distintos, traduzem-se em:

Em seu primeiro e mais antigo sentido, referia-se a grupos de homens armados que eram sustentados por chefes de grandes parentelas ou por chefes políticos; ‘pertenciam’ a quem lhe pagava, em cujas terras habitavam e tinham então domicílio fixo, não sendo nem independentes, nem errantes. Mais tarde, o mesmo termo passou a designar grupos de homens armados liderados por um chefe, que se mantinham errantes, isto é, sem domicílio fixo, vivendo de assaltos e saques, e não se ligando permanentemente a nenhum chefe

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político ou chefe de grande parentela. Estes bandos independentes viviam em luta constante contra a polícia, até a prisão ou a morte.

Antônio Silvino, Corisco e Lampião foram os representantes dessa última modalidade, na qual Lampião, o ‘rei do cangaço’, foi o mais importante pela organização de seu bando, pelas grandes extensões territoriais percorridas dentro do ‘Polígono das Secas’ e pela longa permanência.

Entre os anos de 1922 até 1938, Lampião era mencionado no noticiário, quer regional, quer nacional, sendo a sua morte, em 28 de julho de 1938, no município de Poço Redondo, Sergipe, na Fazenda Angico, por um grupamento da polícia militar alagoana chefiada pelo tenente João Bezerra, juntamente com dez de seus cangaceiros, entre eles a sua companheira, Maria Gomes de Oliveira, cujo apelido era Maria Bonita (a primeira mulher a participar de um grupo de cangaceiros), o marco do desaparecimento dos bandos independentes.

No entanto, a infância de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, até os seus dezenove anos, foi igual a de qualquer outro menino/jovem de seu tempo e da sua região. Nasceu na comarca de Vila Bela, no estado de Pernambuco, a 7 de julho de 1897 /1898 [há controvérsias sobre o ano de nascimento], filho de José Ferreira dos Santos e Maria Lopes Ferreira, era o terceiro dos novos filhos. Passou sua infância na casa de seus avós maternos Manoel e Jaçosa Lopez. Ajudava o pai nos afazeres da pequena propriedade: Fazenda Passagem das Pedras, Vila Bela, atual Serra Talhada, tomando conta do gado, carneiros e cabras, além de fabricar e cuidar dos artigos de couro.

José Ferreira dos Santos, pai de Virgulino, morto pelos soldados, sob a direção do chefe de polícia, Amarilo Batista de Água Branca e do sargento José Lucena, da Polícia do Estado, levou Virgulino e seus irmãos, Antônio (filho mais velho) e Levino (o segundo) à categoria de bandidos profissionais. Dessa maneira, marcava, com o sangue do pai, o início oficial de sua entrada definitiva no cangaço, conforme ilustra Chandler (1980, p. 51):

... resolvendo viver do crime e lutar contra a polícia para vingar a morte do pai, eles abandonavam qualquer esperança de jamais poder

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voltar a uma vida normal. Para melhor ou para pior, tinham escolhido a vida de bandidos. Se, até aí tinham sido ‘cangaceiros mansos’ – isto é, tinham levado uma vida normal, porém empregando a violência de vez em quando, em defesa da família e da honra – logo seria diferente. Dentro em breve, chegariam a um tal ponto que seria impossível voltar a uma vida normal, e teriam que viver somente do cangaço.

O cangaço pode ser definido como um fenômeno social, caracterizado por atitudes violentas pelos cangaceiros, os quais andavam em bandos armados, espalhando o medo pelo sertão nordestino. Monteiro (2004, p. 51) define:

O cangaço é filho da capangagem e neto do latifúndio. Juntos formam uma família de bastardos sociais, responsáveis pelo desencadeamento de muitos dos problemas de ordem política, econômica e social no Sertão do Nordeste Brasileiro.

Os cangaceiros, por sua vez, possuíam uma vida nômade, não seguiam as leis estabelecidas pelo governo, eram perseguidos constantemente pela polícia, usavam roupas e chapéus de couro para se protegerem da vegetação das caatingas, além do vasto conhecimento que possuíam sobre os tipos de solo, clima, vegetação, fontes de água e ervas. Em outras palavras, tinham suas próprias regras de conduta e suas próprias leis, eram temidos pelas pessoas e espalhavam o medo por onde passavam. Tornar-se cangaceiro representava seguir certos valores e padrões comportamentais que o Sertão impunha. Mello (2004, p. 89) enumera três dessas formas básicas para seguir a vida nômade e livre de cangaceiro: “o cangaço-meio de vida; o cangaço de vingança e o cangaço-refúgio”.

No cangaço-meio de vida concentrou-se o maior número de voluntários, era uma profissão escolhida, geradora de razoável lucro, teve em Lampião e Antônio Silvino seus principais representantes. No cangaço de vingança, o vingador da família ou o bandido se limitava a vingar-se do opositor para, em seguida, retornar ao lar ou tomar outro destino, teve em Jesuíno Brillhante e Sinhô Pereira os seus principais

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representantes. No cangaço-refúgio, um asilo nômade das caatingas, um esconderijo de malfeitores, vingadores fugitivos ou de pessoas desprotegidas, sem condições de sobrevivência após a descoberta de seus malfeitos, teve o cangaceiro Ângelo Roque seu exemplo máximo.

Mas, afinal quem foram realmente os cangaceiros? Figura romântica do valentão, prosseguindo com o cabra, o capanga, o pistoleiro, o jagunço, bandido e, finalmente, o cangaceiro. Todos os aspectos contraditórios ou negativos remetem e justificam na perspectiva do mito: o cangaceiro era cruel, feroz, perverso porque a sociedade em que vivia era injusta, seja por fatores estruturais e/ou conjunturais, além do mercado de trabalho, no qual cangaço e polícia constituíam as alternativas possíveis de emprego para a população sertaneja, em seus vários níveis sócio-econômicos.

4. A expressividade de José Lins do Rego em Cangaceiros

Os romances de José Lins do rego são classificados em três ciclos: ciclo da cana de açúcar, ciclo do cangaço, misticismo e seca e obras independentes. Cangaceiros é o 12º romance, o último romance, de José Lins do Rego, publicado em 1953. Pedra Bonita e Cangaceiros formam uma unidade. Revelam a vida sertaneja em sua crueza bárbara, o Nordeste do cangaço e do misticismo, Rego comenta apud Villaça (1999, xiv):

Sim, sempre existe o Nordeste em minha vida, como o chão em que piso, e este chão me é tão necessário e tão presente como se fosse a única realidade que me alimenta. Costumam dizer que sou um telúrico; sim, serei sempre um telúrico, porque sempre em mim agirão as forças secretas da terra, a terra, como o homem, tem a sua alma, as suas condições espirituais. O Nordeste é, no Brasil, uma espécie de velha Rússia, onde a alma do povo e a alma das coisas se congregam e se juntam numa concepção mística bem acima das contingências comuns.

Cangaceiros romance mural de sangue, dor e drama social da vida sertaneja, no qual apresenta uma dupla perspectiva: o crime dos cangaceiros e o crime dos caçadores de cangaceiros. Um grande livro

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do povo, no qual crime e honra se entrelaçam, conforme cita Costa apud Villaça (1999, xiv-xv).

A fim de ilustrar tal expressividade, transcrevemos algumas expressões/termos e citações presentes em Cangaceiros:

Sertanejo de vergonha na cara; terra de Cambembe; desgraçado nenhum daquelas bandas; criando sustância; força danada; bicho bom; cambra-de-sangue; deu o menor desgosto; rapaz de juízo (Cangaceiros, 9).

O bicho cai ciscando; jararaca dele não morde mais boi manso; está vivinho da silva; vivia me impeticando; o diabo do nego; morria devagar como um passarinho; pelos urubus deram com o corpo dele; tinha mandado fazer o serviço (Cangaceiros, 10).

É um cachorro, um camumbembe, sem vergonha na cara, capaz de sofrer a maior afronta calado e quieto como qualquer pé-rapado; não arreda o pé; oco do mundo; não bater com a língua (Cangaceiros, 11).

Eu te esconjuro; carrego esta sina; este cabra tem desgraçado o sertão e botado a perder os filhos da gente; mães desnaturada; estamos de rota batida; tremia como vara verde; papel de mata-cachorro (Cangaceiros, 14-15).

Morto como se fosse um cachorro, sem uma vela, sem uma luz, para iluminar os seus passos no outro mundo; malda da minha falação; estar bulindo nos mandos do Alto; fugindo de um bicho do mato (Cangaceiros, 16-17).

Dar uma lição nesta cambada; não ficou nem uma donzela; natureza de bicho; anda gabando; ficou lesa; cair na cacunda; sina de castigo; eu cismo que Deus Nosso Senhor mode que anda por aqueles esquisitos; música fanhosa das rezas, quadro bronco de via sacra; era o destino que se arrastava como um verme de Deus (Cangaceiros, p. 20-21).

Se acamaradou logo com cara trancada; foi um dar de cortar coração; estragaram as moças; meninas ofendidas; moça desonrada; arreganhar os dentes; neste cocuruto de serra; tem nojo da nossa gente; tinha secado o seu coração, e padecia no seu silencia, como uma pedra, num canto, indiferente ao sol; o mundo minguava de tamanho; ele estava acoitado numa fazenda (Cangaceiros, 22-23).

A força teve mais de cinco mortos; o resto é conversa; eu estou aqui, de cara calçada; vai arribando; Deus não vai castigar os

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inocentes; varado de bala; caça acossada pelos cachorros (Cangaceiros, 24-25).

Cantar tirando da viola mágoas do coração; fraco como uma moça de alma partida; às portas da morte; naquele retiro de mundo; fechou o corpo (Cangaceiros, 26-27).

Aparício pegou nas bichas e foi falando; tu não tem calibre de cangaceiro; natureza de caninada; uma carinha de moça; disse então para o ‘coisinha’ ficar; pegamos o bicho desprevenido e ele a família comeu relho até dizer basta; um cabra que se fizera de besta; trancelim de ouro; ela lá que dê fim a isto (Cangaceiros, 30-31).

O mundo gemia com os bichos da noite; a cara do Santo bulindo com a minha alma; a boca da noite se abria; dois caboclos que acodem pelo nome; não ouvia o falaço do capitão (Cangaceiros 34-35).

Cair com os quartos; amigação sem vergonha; servir de mulher-dama; e ficava com o diabo no corpo quando via outro cabra se engraçando; não me davam ouvido; alma estorricada; virar as cabeças das moças; brabeza dos cangaceiros (Cangaceiros 38-39)

Caminho da perdição; o triste fardo; comeram-lhe a virgindade; moça violada; donzelas desonradas; mulher emprenhada pelo cão; botar a trouxa no quarto; chamou-o para rondar por perto e desembuchou tudo; não tenho mais precisão de saber de coisa nenhuma; sou uma velha boa só mesmo para esticar a canela; se acoitar; uma ordem de arribar; sair assim às doidas; servir de isca (Cangaceiros, 42-43)

Bulir nos mandados de Deus; foi até um rebuliço em casa; lavar os peitos; caçando a gente como bicho para esfolar; possuída de uma fúria de animal desembestado, caiu no chão, tesa e dura como uma pedra; caiu num paradeiro de doença (Cangaceiros, 44-45)

Sinhá JOSEFINA

Meu filho Aparício, Deus te mandou pra que o nosso povo saiba mesmo que a maldição não parou. O teu rifle não pode mais que o rosário do Santo. A tua força faz tremer o sertão. É a força dos malditos da nossa raça, da raça do teu pai que a terra vai comer. Tu, Aparício, não pára mais nunca. E me deixa, meu filho me deixa com os últimos anos desta vida. Eu quero viver

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até o fim, eu quero carregar esta cruz nas costas, Aparício. Vai pro Santo e pega com ele um taco da força que ele tem. A tua força, Aparício, é a do sangue que corre nas tuas veias, é a força do teu avô, o home que era mais duro que o pau-ferro. Vai beijar a mão do Santo, Aparício. Que ele passe a mão no teu rifle, que ele toque no teu punhal, para ver se assim Deus possa entrar no teu corpo ruim. (Cangaceiros, 7)

Da leitura das citações e expressões elencadas se extraem as seguintes considerações: um conjunto organizado de indivíduos com um determinado modo de vida, a cultura é esse modo de vida. Ao considerarmos a sociedade um agregado de relações sociais, então cultura é o conteúdo dessas relações. Portanto, a sociedade enfatiza o componente humano, o agregado de pessoas e as relações entre elas.

Logo, diante do expressivo testemunho configurado em Cangaceiros que descreve, por meio da língua-cultura-sociedade, o espírito e a vida do sertanejo/cangaceiro e da região Nordeste, citamos Jorge Amado apud Villaça (1999, xix) sobre José Lins do Rego e suas obras:

Quando ele escrevia, era o povo que escrevia, era bem a voz do povo, tão brasileiro como ninguém, falando de nossas coisas com um acento quase de negra velha contadeira de histórias. Ele sabia tudo sobre a vida do Nordeste, sobre os homens do Nordeste, sobre suas paixões, suas dores, sua confiança.

Considerações Finais

A beleza de uma obra e sua importância no contexto de uma época remete à descrição de uma cultura; isto posto podemos afirmar que a língua atua como uma espécie de elo entre o indivíduo e a sociedade da qual ele faz parte. Cangaceiros de José Lins do Rego é esse laço íntimo que liga o léxico (vocabulário) à cultura - retrato fiel de uma região, cujo povo através da língua mantém viva a sua cultura, valores, crenças, costumes, folclore e, conseqüentemente, confirma a relação tripartite língua-cultura-sociedade como indissociável.

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Colaboraram neste número:

Maria Alice Tavares Doutora em Linguística Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte [email protected]

Maria Leonor Maia dos Santos Doutora em Linguística Professora da Universidade Federal da Paraíba [email protected]

Aline Aver Vanin Doutoranda em Linguística Aplicada Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul [email protected]

Eliza Viegas Brilhante da Nóbrega Mestre em Linguística Universidade Federal da Paraiba [email protected]

Maria de Fátima Alves Doutora em Linguística Professora da Universidade Federal de Campina Grande [email protected]

Ercília Ana Cazarin Doutora em Estudos da Linguagem Professora da Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul [email protected]

Maria Anunciada Nery Rodrigues Doutoranda em Linguística Universidade Federal da Paraíba [email protected]

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Adriana Carla Rolim de Carvalho Doutoranda em Linguística Professora do Instituto Federal de Ensino, Ciência e Tecnologia da Paraíba [email protected]

Jan Edson Rodrigues Doutor em Linguística Professor da Universidade Federal da Paraíba [email protected]

Mônica de Lourdes Neves Santana Doutoranda em Linguística Professora da Universidade Estadual da Paraíba [email protected]

Mônica Maria Montenegro de Oliveira Doutoranda em Linguística Professora do Instituto Federal de Ensino, Ciência e Tecnologia da Paraíba [email protected]

Ana Cristina S. Aldrigue Doutora em Linguística Professora da Universidade Federal da Paraíba [email protected]

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NORMAS PARA A SUBMISSÃO DE TRABALHOS

Os trabalhos enviados serão submetidos ao Conselho Editorial desde que estejam estritamente de acordo com as normas elencadas a seguir:

Os trabalhos deverão ser enviados em três vias, duas delas sem qualquer identificação dos autores;

Em folha à parte, devem vir o título do trabalho em português e inglês, nome completo do autor, seguido da filiação acadêmica por extenso, endereço completo, incluindo telefone e e-mail.

Os trabalhos devem ser acompanhados de resumo em português e em inglês (até 150 palavras). Seguindo o resumo, em linha separada, devem constar de 3 a 5 palavras-chave; após o Abstract, devem constar de 3 a 5 Key-words

A página deve ser configurada em tamanho personalizado, medindo 16cm de largura e 23cm de comprimento; as margens superiores, inferiores, esquerda e direita devem ser de 2cm.

Deverá ser enviada uma versão do texto em disquete, digitado em programa Word for Windows recente, fonte Times, tamanho 12, espaçamento simples, com dois espaços entre uma seção e outra do texto e entre as citações com mais de três linhas, sem qualquer formatação além de parágrafos com adentramento de 1cm.

As ilustrações (tabelas, gráficos, fotos, etc.) devem ser apresentadas, separadamente, com as respectivas legendas numeradas, indicando, no texto, sua localização;

As notas devem ser digitadas no rodapé, numeradas em arábico. A nota para o título deve ser indicada com uso do asterisco. Não devem ser utilizadas notas para referências bibliográficas, apenas eventuais explicações. Para referências, devem ser feitas no corpo do trabalho (ex.: Jakobson (1952, p. 3). Caso o sobrenome do autor esteja entre parênteses, utilizar caixa alta (ex.: (JAKOBSON, 1952, p. 3));

Para as referências bibliográficas e outras, digitar a palavra REFERÊNCIAS. Os autores devem estar em ordem alfabética, sem numeração das entradas e sem espaço entre eles. Os títulos de livros e revistas devem vir em negrito. Na segunda entrada do mesmo autor, utilizar um traço de 06 toques. A data identificadora da obra deve estar entre parênteses após o nome do autor. Mais de

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uma obra no mesmo ano para o mesmo autor, identificar com letras minúsculas após a data.

As citações com até três linhas devem estar entre aspas e no corpo do trabalho. Com mais de três linhas devem ter adentramento à esquerda de 04 cm, e corpo 11, sem adentramento à direita;

O artigo não pode exceder quinze páginas, incluindo referências bibliográficas e anexos.

Os originais submetidos não serão devolvidos

Os textos poderão ser enviados a qualquer época do ano.

Revista Língua Lingüística e Literatura

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SUBMISSION GUIDELINES

All submitted papers must be in strict accordance to the following rules:

Manuscripts should be submitted in three hardcopies, two of which must contain no identification of the authors;

The articles must be accompanied by a separate information sheet, presenting the paper title in English and Portuguese, full names and work/study affiliation of the authors, and full address, including day-time telephone numbers and e-mails;

All papers written in Portuguese must include a 150-word Abstract, followed by up to 5 key-words. If written in any other language than Portuguese, they must include Abstract and Key-words in Portuguese.

Pages should be customized to fit 160mm X 230 mm. All margins must be 2 cm;

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Footnotes must come at the bottom of each page numbered in Arabic. Notes for title must use asterisks. No references to bibliography are to be made in footnotes, but included within main text (e.g.: Jakobson (1952, p. 3). If author’s name comes between brackets, use capitals, e.g. (JAKOBSON, 1952, p. 3));

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Quotations shorter than three lines should come between inverted commas within main text. If longer than three lines, they must be

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