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Limitar o limite: modos de subsistncia
Alexandre Nodari
lugar: here. beira da selva. ao largo do civilized. juntar as
coisas: fazer o presente: viver: construir o
futuro. (Hlio Oiticica)
Montagem da proposio subterraneam TROPICALIA Hlio Oiticica
(1969?)
Alto: babylonests, Nova Iorque | Meio: colidouescapo, Augusto de
Campos |
Embaixo: Famlia no semi-rido nordestino (foto de Carlos
Vergara)
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Subterrnia 2 Hlio Oiticica (1969)
Consumir o consumo
Em 1968, os ltimos revolucionrios da modernidade (ou os
primeiros da primavera por
vir) entoaram mundo afora uma palavra de ordem: proibido
proibir. A frmula no
se confundia com a mera transgresso, na medida em que afirmava
em um meta-nvel a
proibio. Desse modo, o que se contestava era a lgica normativa
em sua prpria raiz,
pois, no fundo, obedecer e aplicar a lei uma mesma coisa: a
transgresso est contida
no prprio limite, o ultrapassamento da lei a confirma e a
refora. O exemplo mais claro
dessa estrutura normativa talvez seja o talio, uma norma de
equivalncia: a pena tal
qual o crime. A lei cria uma identidade entre dois atos
distintos por meio de uma
economia: um e outro olho (crime e castigo) tornam-se olho por
olho: reciprocidade
negativa. O famoso adgio no olho por olho por olho..., mas olho
por olho, dente por
dente no uma srie de acontecimentos, mas de equivalncias. Dito
de outro modo, a
lgica proibitiva e sua economia da transgresso produzem uma
reduo daquilo que se
pode ou no fazer a um dever positivo ou negativo e por isso
Tarde comparou a lei a
uma barragem dos possveis, das diferenas. Metfora instrutiva: os
possveis so
limitados pela lei, saindo do outro lado da barragem como
obedecimento ou
transgresso, assim como, numa hidreltrica, a potncia convertida
em energia,
metrificada em kW. Desse modo, o que estava em jogo no proibido
proibir era o
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acesso a outra economia e ecologia dos possveis, como um bordo
conexo deixava
claro: Sejamos realistas, demandemos o impossvel.
Foi provavelmente inspirado nessa palavra de ordem que Hlio
Oiticica
formulou uma srie de proposies semelhantes, como experimentar o
experimental e
consumir o consumo. Essa ltima frmula, talvez mais atual do que
nunca, aparece
em Brasil Diarria, texto dos anos 1970. Ali, o artista o
contrape a duas estratgias
de consumo, dois lados de uma moeda: a negao do consumo, que
gera priso de
ventre; e o consumo desenfreado, que causa diluio, diarreia.
Ambas seriam
modalidades do que Oiticica chamava de super-: a represso e o
excesso, ou, em
termos psicanalticos, o super-eu paterno que castra e o super-eu
materno que manda
gozar; o limite e o ilimitado. Por sua vez, consumir o consumo
seria uma operao do
sub-sub que no visa nem conservar nem superar o
subdesenvolvimento: enquanto
forma ativa de sub-desenvolver, no era uma soluo de meio termo,
mas a dissoluo
dos termos: uma transformao radical no campo dos
conceitos-valores vigentes, no
comportamento-contexto, que deglute e dissolve a convi-conivncia
lgica comum a
ambas as posturas. Consumir o consumo, portanto, no consumir
mais; consumir a
lgica do consumo: se o consumo sempre uma transformao, uma
digesto, ento o
consumo do consumo uma digesto desse processo, a sua dissoluo e
transformao
em algo outro.
Na arte de Oiticica, isso implicava estar livre das amarras do
consumismo, ou
seja, da demanda de produo de obras. Tratava-se, portanto, da
passagem da obra e
criao (mercadoria e produo) aos acontecimentos, ambientes,
incluindo os ninhos.
A arte deixaria, assim, de ser a produo infinita de objetos, pra
passar a ser a
formulao de uma possibilidade de vida. Todavia, Oiticica no
estava falando apenas
de arte, ou melhor, estava falando s de arte, isto , de tcnica:
se a guerra move as
inovaes tcnicas ocidentais, poderamos dizer que a arte,
vanguarda militar em outro
sentido, tambm um manancial de inventos tecnolgicos. Desse modo,
a arte
ambiental dos anos 1960 adiantava a indistino entre natureza e
cultura, ao se focar
no prazer interessado do corpo, nos efeitos e no fazer que Kant
atribua natureza em
oposio ao prazer desinteressado do julgamento, as obras e ao
agir que caracterizariam
a arte. Por isso, Oiticica afirma no se referir cultura em
sentido estrito, mas a uma
coisa mais global, que envolve um contexto maior de ao
(incluindo os lados tico-
poltico-social), e, ao final do texto, postula que No existe
arte experimental, mas o
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experimental. O que seria tal experimental? No que consistiria a
tcnica de consumir o
consumo para alm do que costumeiramente atribumos esfera da
arte?
A escassez do excesso: gasto e indigesto
Oiticica parece se guiar pela mxima de Oswald de Andrade,
segundo a qual Nada
existe fora da Devorao. O ser a Devorao pura e eterna, ou seja,
de que nada se
cria, nada se perde, tudo se devora: como suas metforas deixam
claro, a economia
geral analisada por ele de acordo com seu modo de digesto. O que
interessa no a
produo e sim o consumo: toda produo j consumo, digesto e
transformao, ou
seja, produz tambm restos, dejetos, que permitem entende-la,
pois, como afirma
Canetti, No excremento, que o que resta de tudo, deixa-se
reconhecer tudo quanto
matamos. Poderamos assim arriscar dizer que a verdadeira face da
sociedade
globalizada est no seu lixo, no que ela gasta.
Como se sabe, o capitalismo se funda sobre uma limitao do acesso
aos
recursos, por meio do cercamento de terras, da reduo propriedade
dos inmeros
direitos reais (das coisas), e da criao da forma jurdica vazia
do sujeito de direito. Mas
o fundamento ontolgico do consumo capitalista foi a converso das
coisas do mundo
em recursos, a metafsica da utilidade, enunciada, entre outros,
por Hegel: Como
tudo til ao homem, assim tambm o homem til a tudo sendo medida
de todas as
coisas, o homem o animal que mede todas as coisas. Nas palavras
de Oswald, tratava-
se da reduo do mundo no-mtrico ao mundo mtrico. O sentido das
coisas
reduziu-se drasticamente a um projeto de instrumentalizao
humana, e elas puderam,
assim, se tornar equivalentes por meio de uma unidade que as
media.
Talvez nada demonstre melhor a reduo unidimensional e unilateral
de sentido
que as embalagens das mercadorias, os limites que marcam seus
contornos e que tentam
preservar o pouco de sentido que restou nelas (a utilidade), ou
ento buscar suplement-
lo com uma camada nova (por meio da propaganda), demarcando a
fronteira entre
sujeito e objeto. O consumo capitalista comea, portanto, j nessa
transformao de
coisas em mercadorias, no esvaziamento de sentido que marca o
modo de produo
globalizante. O consumo propriamente dito apenas consuma esse
processo, ao converter
as mercadorias em lixo (waste), a saber, justamente aquilo que
teve seu sentido gasto,
esvaziado completamente, incluindo a utilidade. No Hollowcene
[EVC], das palavras
s coisas, tudo se gasta, incluindo aqueles homens considerados
sem-sentido
trancafiados entre os muros de prises e manicmios. Segundo um
boato corrente nos
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anos 1990, alm da Muralha da China, a outra construo humana
visvel do espao
era o Aterro Sanitrio de Fresh Kills, em Nova Iorque:
sintomaticamente, um limite e
uma wasteland. Esse boato trazia consigo uma profunda verdade:
depositado no mar,
deslocado para as periferias, o lixo a grande obra da
modernidade, e sua maior
produo, a Ilha de Lixo do Pacfico. Ou seja, o mundo foi
contaminado pela indigesto
consumista:
Srie Midway: Message from the Gyre Chris Jordan (2009-)
Entranhas repletas de lixo de albatrozes mortos no atol homnimo
localizado no oceano Pacfico, a 2000
km do continente: seus pais os alimentaram com dejetos que
flutuavam no mar, tomando-os por comida
E, nesse processo, ignorou-se a reciprocidade da transformao
envolvida em toda
digesto, a sua via de mo dupla: a transformao daquilo que se
consome sempre
acompanhada pela transformao daquele que consome: o projeto
humano se tornou a
sombra de seu lixo e no apenas o contrrio:
Dirty White Trash (with Gulls) Tim Noble e Sue Webster
(1998)
Equivalente a 6 meses de lixo dos artistas; duas gaivotas
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A quantidade de lixo acumulada no mundo amplifica o alcance de
uma mxima
benjaminiana: no s que teremos que nos virar com pouco, teremos
tambm que nos
virar com os restos. Teremos que consumir o consumo.
Metrificao e desmetrificao
Em um curso sobre Spinoza, Deleuze props uma distino entre dois
tipos de limite:
Limite-contorno (limite externo, extenso)
1) por um lado, o limite contorno, externo, enquanto forma que
limita e informa os
corpos, sendo independente deles, marcando uma extenso, e cujo
movimento do
contentor ao contedo, da circunferncia ao centro limite mtrico,
da lei;
Limite-dinmico (limite imanente, intenso)
2) por outro, o limite-dinmico, interno e imanente, que, na
verdade, a tenso dos
corpos, a sua tendncia ou inclinao, e, portanto, intensivo e no
chega a uma
circunferncia extensa determinada, sendo um movimento de
contrao-dilatao a
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partir de um centro; limite no-mtrico que se expressa no por um
contorno, mas por
uma maneira de ser, por um modo (de vida), um hbito: no um lugar
determinado, mas
uma maneira de habitar o mundo, uma posio relacional.
Todavia, os dois tipos de limites no so de ordem puramente
objetiva nem
subjetiva, mas se referem a duas experincias do limite e o mesmo
se passa com a
distino entre mundo mtrico e no-mtrico, que Oswald tomava do
fsico Thomas
Eddington. Semelhante diferena entre espaos lisos e estriados,
ela no diz respeito a
pores distintas do mundo, o material e o espiritual, mas sim a
modos diferentes da
relao eu com ambiente que caracteriza toda experincia. Portanto,
as coisas no so
em si mtricas ou no-mtricas; tampouco nossa percepo (mesmo
cultural) que v
limites internos ou externos: trata-se de uma relao entre a
perspectiva e as coisas, ou
seja, do sentido. O que h so linhas de fora, processos de
metrificao e
desmetrificao que se sobrepem, se revertem, se antecipam e se
conjuram uns aos
outros. Por isso, numa cultura interessa o seu consumo, o
sentido de sua transformao.
Se estamos corretos, podemos arriscar dizer que o processo
digestivo de metrificao do
mundo se d pela transformao do limite imanente em um
limite-contorno, dos corpos
em formas (olho por olho; embalagem), ou seja, constitui um
processo de delimitar o
limite, colocar por extenso, ex-tenso, uma tenso interna (a
utilidade, p.ex.). Trata-se
de uma experincia do perito, em que mede-se o espao a fim de
ocupa-lo. Por outro
lado, teramos a operao inversa: a transformao do mtrico em
no-mtrico, uma
operao de limitar o limite, incorpor-lo, fazendo da forma,
corpo, convertendo o
limite-contorno em limite intenso, o que pode se dar pela
introduo de um limite
extenso sobre outro um meta-limite , perfurando-o e dando acesso
intensidade:
Ocupao de Belo Monte: Xingu +23 14 e 15 de junho de 2012 (Foto:
Atossa Soltani) Limitar o limite: libertar o fluxo dos
possveis.
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Ocupao de Belo Monte: Xingu +23 14 e 15 de junho de 2012 (Foto:
Mitchell Anderson)
. O limite inserido no limite de outra ordem que o limite
barrageiro: agua, no terra.
Devolver terra terra (Oiticica) tambm remover o aterramento dos
rios.
Ocupao de Belo Monte: Xingu +23 14 e 15 de junho de 2012 (Foto:
Atossa Soltani) Contra a metrificao da potncia pela energia:
produzir um efeito contra a obra.
Mesclise Andr Vallias (2013) Barrar a barragem: um corte oblquo
contra a ubiquidade do humano
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Limitar o limite: manifestantes fazem o Caveiro recuar (Foto:
Fernando Rabelo, 2013)
Talvez no seja um acaso que Plato invoque a medida como arma
contra as variaes
do ponto de vista exploradas pelos poetas: a poesia talvez seja
a figura da transformao
no no-mtrico. Pois o que a poesia seno o dar corpo a um limite
externo, internaliz-
lo como via de acesso a uma experincia de intensidade? A cesura
do verso, o branco da
pgina, os pixels do monitor: a poesia, em todos os seus modos,
uma experimentao
de medidas que atinge o no-mtrico por meio da introverso de uma
mtrica e sua
converso em um modo, em uma inclinao: limitando a extensividade
que se d a
intensificao potica. Assim, por exemplo, o encavalgamento do
verso barra a cesura
(representado justamente por uma barra). E da a relevncia da
isomorfia na poesia a
reciprocidade entre limite e contedo, a sua imanncia. Mas a
poesia no designa s
aquela forma que atende por esse nome, sendo esta apenas o ndice
de todo fazer
(poeisis) que transforma a limitao em intensidade. No por acaso,
comum, na
linguagem popular, que uma formulao ou prtica concisa e intensa
seja chamada de
potica, de uma frase de efeito a uma jogada de Garrincha. Desse
modo, poderamos
diferenciar chamar as tcnicas que transformam o mtrico em
no-mtrico, seguindo
uma sugesto de Viveiros de Castro, de poesia do mundo, a prtica
experimental da
vida situacionista, em suma, uma experincia do perigo, ocupao
desmetrificadora.
O exemplo oswaldiano de consumo que transforma o mtrico em
no-mtrico
era a antropofagia ritual tupi, relao sujeito-sujeito, em que a
devorao do corpo
extenso do inimigo estava associado adoo de um novo nome pelo
devorador. Aqui,
o consumo no esvazia de sentido: pelo contrrio, o sentido provm
dele, do consumo.
Alm disso, Oswald costumava associar o mtrico com a autoridade
exterior, as
interdies climatricas. Agora, talvez fique mais claro que essa
absoro do
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ambiente no era a superao de tais interdies, o ultrapassamento
de limites
materiais, mas sua transformao em inclinao intensiva. Da o
sentido profundo de
um trecho do Manifesto Antropfago: Da equao eu parte do Cosmos
ao axioma
Cosmos parte do eu. Subsistncia. Conhecimento. Antropofagia.
Tratava-se de
transformar um regime no qual o eu uma poro delimitada do mundo,
uma extenso,
em outro no qual o mundo o efeito da com-posio de sujeitos e
suas intensidades,
uma circunferncia (inexistente) que resulta das (in)tenses
combinadas de cada eu. Isso
que Oswald chamava de subsistncia antropofgica era, portanto, um
contato com a
exterioridade: O cosmos parte do eu, mas S me interessa o que no
meu. Dito de
outro modo, o mundo aquilo que est entre os seres, o inter-esse,
a resultante de suas
transformaes recprocas, o efeito de suas devoraes. E poderamos
arriscar dizer que
o nome adquirido por aqueles que absorvem Gaia, fazendo dela uma
experincia no-
mtrica, seja gaiatos, e que a gaia cincia de Gaia, o
conhecimento da subsistncia, se
chame gaiatologia.
Modos de subsistncia
Se a expresso mxima da economia da metrificao o capitalismo, a
sua contraparte
no o socialismo, mas as economias de subsistncia das sociedades
contra o Estado.
Pierre Clastres mostrou como a ausncia de Estado nas chamadas
sociedades
primitivas, que era considerado uma falta, constitui na verdade
uma recusa deliberada:
um no ao no. Para Clastres, o princpio da autoridade exterior,
do limite e da
hierarquia, negado por meio de sua incorporao: a sociedade
primitiva
internaliza o Estado na figura do chefe para melhor exorciz-lo,
limitando o limite: o
chefe no manda e, atravs dele, as sociedades contra o Estado
ativamente constroem
uma poltica anrquica, desmetrificada. Como se sabe, essa operao
demanda impedir
a formao de uma esfera econmica autnoma, ou seja, demanda a
manuteno de uma
economia de susbsistncia, entendida no enquanto defeito, mas
como recusa de um
excesso de produo, de trabalho. Em um artigo clssico, Sahlins
mostrou como os
caadores-coletores, exemplo tpico de economias de subsistncia
nos manuais de
economia, no tm um modo de produo no qual se trabalha o mximo
para conseguir
o mnimo; sua economia de abundncia, cio e prodigalidade: o mnimo
de trabalho
para o mximo de cio. As economias de subsistncia no so
determinadas
exteriormente pelo ambiente, nem o superam, pois ele no
constitui um limite externo: a
limitao da produo, assim, , na verdade, a limitao da metrificao
econmica,
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dando lugar a uma experincia no-mtrica com as coisas do mundo:
uma das maiores
dificuldades daqueles que pesquisam economias de subsistncia
determinar
quantitivamente sua renda, sua produo e a diferena entre estas e
suas necessidades.
Excesso e necessidade, trabalho e cio, utilidade e inutilidade,
produo e consumo:
quando limitado o limite que separa os dois lados, eles ganham
outro sentido.
Mas se a subsistncia designa uma experincia com o mundo, ela no
se reduz
poltica e economia: enquanto forma de conhecimento, ela se deixa
ver tambm no
que Lvi-Strauss definiu como pensamento selvagem, em oposio ao
pensamento
domesticado, a bricolagem em oposio engenharia. Enquanto esta se
caracteriza por
uma capacidade ilimitada guiada por um projeto, aquela, fazendo
uso de meios-
limites, trabalha por uma com-posio de materiais heterclitos. Em
relao s
limitaes que resumem um estado da civilizao, afirma Lvi-Strauss,
o engenheiro
sempre procura abrir uma passagem e situar-se alm, ao passo que
o bricoleur
permanece aqum. De novo, aqui, estamos diante de duas
experincias do limite. Por
um lado, o engenheiro quer ultrapass-los por meio de um projeto,
informando a
matria-prima, metrificando-a. Por outro, o limite da bricolagem
imanente a sua
matria-prima, s prprias coisas. Pois ao operar com resduos de
construes e
destruies anteriores, ou seja, coisas aparentemente gastas,
testemunhos fsseis da
histria de um indivduo ou de uma sociedade, o bricoleur no lida
com formas vazias,
pelo contrrio: as possibilidades de composio dos elementos esto
limitadas pela
histria particular de cada pea e por aquilo que nela subsiste, a
saber, o conjunto de
relaes ao mesmo tempo concretas e virtuais, e tal limitao
justamente a condio
da imprevisibilidade da composio. Ao intensificar aquilo que
subsiste nas coisas, a
bricoleur um reciclador radical, que no se limita a simplesmente
devolver a utilidade
s coisas, mas compor o seu sentido: como aqueles personagens de
fices apocalpticas
que mobilizam os restos de um mundo devastado no apenas para
novos fins, novos
usos, mas tambm para uma nova relao com as coisas, inclusive
para uma nova
esttica para um devir-mundo por mais trash que seja.
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Mad Max George Miller (1979) Mobilizao dos restos contra o resto
de Estado (Estado Total)
A catadora de lixo Estamira resumiu essa subsistncia potente do
sentido ao afirmar
Tudo que a gente pensa existe, , frmula que talvez seja a melhor
traduo para a
ontologia de Meinong. Como se sabe, ao atacar frontalmente o que
chamava de
preconceito a favor do atual, Meinong optou por no tomar o real,
o extenso, como
par-metro. Antes de toda existncia, indiferente ela, tudo
subsistiria objetivamente
(com a mesma dignidade do atual): as qualidades, as relaes, os
modos, mas tambm
os objetos impossveis como o crculo quadrado, figura similar aos
metamorfos dos
mitos. Toda essa fauna e flora ontolgica ficou conhecida como a
selva de Meinong,
modo de subsistncia do quase-ser, do ser-como, do ser-fora, da
pseudoexistncia: a
realidade virtual, poderamos dizer e a internet tambm comporta
uma dimenso
potica: nela, pra usar uma frmula de Marcos Matos, a riqueza
material existente
infinitamente inferior riqueza semitica subsistente: descemos
verdade das primeiras
sociedades de afluncia.
Subsistncia dos modos
Tentemos sintetizar. Todos os modos de subsistncia que
descrevemos sub-
desenvolvem, sub-tendem, tendem para um baixo que, porm, muito
mais rico que o
alto, muito mais intenso, ao contrrio da imagem de pobreza,
isolamento, e secura
costumeiramente associada ao termo. A subsistncia designa, aqui,
uma dimenso
material e ontolgica baixa, que no pode ser quantificada: no se
confunde com a mera
existncia enquanto distinta de uma existncia autntica. No
constitui, portanto, o
domnio da necessidade, mas de todas as categorias modais, em
especial a virtualidade:
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tudo que existe tambm subsiste assim como tudo que no existe. A
subsistncia o
sub-solo da existncia, seu adubo, a existncia em devir. Se h uma
imagem para a
subsistncia, a da putrescncia da matria orgnica (Bataille, Baixo
materialismo)
em toda sua riqueza vital, na qual, como plantas, tudo que
existe e no existe planta suas
razes: humus lama, no lixo: no a Wasteland esterilizada pela
monocultura
padronizadora, mas uma fora putrefascente, como disse Felipe
Vicari de Carli. Desse
modo, o que a catstrofe ambiental em curso ameaa destruir no s a
existncia na
Terra, mas a prpria subsistncia, em suas dimenses material e
imaterial: consumando-
se o fim do mundo, no apenas os mortos no estaro seguros, mas at
mesmo aqueles
que nem existiram.
Da a importncia de cultivar a subsistncia, pois no sendo um
estado, ela
constitui uma dimenso que se acessa ativamente pelo fazer, por
uma subverso
intensa, um efeito de revirar que faz algo sub-vir de dentro pro
mundo. O fazer
potico da subsistncia um adubamento da existncia, um cultivo de
possveis, uma
cultura das virtualidades e suas diferentes consistncias, que no
tem como parmetro o
real, nem se guia pelo privilgio do atual e da obra, e tampouco
concede primazia
produo e realizao, mas sim aos efeitos e aos afetos um tornar
palpvel o
possvel: uma permacultura semitica, na definio de Marcos Matos.
E enquanto
movimento para baixo, os modos de subsistncia se colocam contra
o super-, o alto, seja
do excesso seja da represso: um fazer contra a forma-Estado, o
Estado e a forma. O
desafio que a catstrofe ambiental nos coloca, portanto, no s
escolher entre obedecer
resignadamente os limites materiais do planeta, mantendo nossa
forma de existncia, ou
ento ultrapass-los esperando uma superao dialtica. Antes, ela
possibilita ou obriga
uma soluo ao mesmo tempo mais simples e mais drstica: lidar com
os limites de
outro modo; fazer deles uma inclinao subvert-los, vert-los para
baixo, in-tend-
los, tend-los para dentro: incorporar e transform-los em um modo
intenso de vida,
descobrindo toda a riqueza do baixo; fazer uma experincia do
limite de mxima
intensidade: uma experincia-limite do limite. Subsistir,
portanto, inserir o sub- na
existncia, ou seja, descer para o mundo, devolver terra terra
para descer terra,
para re-infiltrar diversidade no subsolo, para faz-la emergir,
para inventar outros
modos de vida, para comear de novo [Flvia Cera]. E os artistas,
sismgrafos
sensibilssimos dos desvios fsicos da massa, so, segundo Lygia
Clark, justamente
aqueles que inoculam a sociedade com o vrus de um novo modo de
existir: enquanto
experimentao de modos, a arte tambm uma moda, a reinveno de
hbitos, de
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modos no-mtricos de habitar o mundo, de costumes, i.e., como nos
vestimos, nos
enfeitamos, como damos sentido ao mundo. No por acaso, Oiticica
dizia querer
estender o sentido de apropriao s coisas do mundo (...) nas
ruas, terrenos
baldios, campos, o mundo ambiente. Apropriar antropofagicamente
o ambiente
ocupa-lo de sentido: e, por isso, uma ferramenta poltica
fundamental a ocupao
desmetrificadora: consumir o consumo no apenas apropriar para um
uso, mas
apropriar para cultivar o sentido e os possveis. A guerra de
Gaia tambm uma guerra
esttica e imaginria.
Oiticica dizia que subsisto era um grito-afirmao hoje, mais do
que
nunca, um grito de guerra subversivo. Grito baixo, abafado pelo
lixo semitico
antropodesenvolvimentista. Todavia, como dizia Clarice
Lispector, um primeiro grito
desencadeia todos os outros, o primeiro grito ao nascer
desencadeia uma vida, se eu
gritasse acordaria milhares de seres gritantes que iniciariam
pelos telhados um coro de
gritos e horror. Se eu gritasse desencadearia a existncia a
existncia de qu? A
existncia do mundo. Mundo que ainda subsiste mas no por muito
tempo. Sejamos
simplistas: demandemos o mais intenso.