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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E ECONÔMICAS
FACULDADE DE DIREITO
LIBERALISMO E REPUBLICANISMO
Rawls, Pettit e as aplicações práticas de suas teorias.
CAYO NAMETALA DE SOUZA
Rio de Janeiro
2017/2
CAYO NAMETALA DE SOUZA
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LIBERALISMO E REPUBLICANISMO – Rawls, Pettit e as aplicações
práticas de suas
teorias.
Monografia de final de curso, elaborada no âmbito
da graduação em Direito da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, como pré-requisito para obtenção do
grau de bacharel em Direito, sob a orientação do
Professor Dr. Fábio Perin Shecaira.
Rio de Janeiro
2017/2
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CAYO NAMETALA DE SOUZA
LIBERALISMO E REPUBLICANISMO – Rawls, Pettit e as aplicações
práticas de suas
teorias.
Monografia de final de curso, elaborada no âmbito
da graduação em Direito da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, como pré-requisito para obtenção do
grau de bacharel em Direito, sob a orientação do
Professor Dr. Fábio Perin Shecaira.
Data da Aprovação: / / 2017.
_________________________________
Orientador
_________________________________
Membro da banca
Rio de Janeiro
2017/2
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO
.................................................................................................................
7
2 JUSTIÇA E LIBERDADE NO LIBERALISMO DE JOHN RAWLS
...................... 13
2.1 IDEIAS FUNDAMENTAIS DA JUSTIÇA COMO EQUIDADE
............................ 13
2.2 O CONTRATUALISMO RAWLSIANO E A POSIÇÃO ORIGINAL
..................... 17
2.3 DOIS PRINCÍPIOS DE JUSTIÇA
.............................................................................
19
2.4 LIBERALISMO POLÍTICO: UMA CONCEPÇÃO POLÍTICA DE JUSTIÇA
....... 26
2.5 CONCEPÇÃO DE LIBERDADE A PARTIR DO LIBERALISMO POLÍTICO
...... 31
2.6 CRÍTICAS AO IDEALISMO DA TEORIA DE RAWLS
......................................... 33
3 JUSTIÇA E LIBERDADE NO REPUBLICANISMO DE PHILLIP PETTIT
........ 36
3.1 REPUBLICANISMO: COMO DEFINI-LO
..............................................................
36
3.2 A LIBERDADE COMO AUSÊNCIA DE DOMINAÇÃO
........................................ 38
3.3 COMO ALCANÇAR O ESTADO DE NÃO-DOMINAÇÃO?
................................. 41
3.4 O ESTADO ATUAL E AS DIFICULDADES EM ATINGIR O IDEAL
REPUBLICANO
..................................................................................................................
44
3.5 CRÍTICAS À OPOSIÇÃO DE PETTIT AO LIBERALISMO
.................................. 47
4 A TEORIA NA PRÁTICA: O GOVERNO REPUBLICANO DE ZAPATERO. .....
51
4.1 CONTEXTO POLÍTICO DA ASCENÇÃO DE ZAPATERO
.................................. 51
4.2 COMO SERIA UM GOVERNO REAL SOB A ÉGIDE DOS PRINCÍPIOS
REPUBLICANOS?
..............................................................................................................
52
4.3 ANÁLISE DE PETTIT EM RELAÇÃO ÀS POLÍTICAS DE ZAPATERO E
O
REPUBLICANISMO CÍVICO
.............................................................................................
54
4.4 PROTEGENDO OS CIDADÃOS CONTRA O PODER PÚBLICO
......................... 61
5 CONCLUSÃO
.................................................................................................................
65
6 REFERÊNCIAS
..............................................................................................................
73
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5
RESUMO
Neste trabalho, procuramos explorar mais profundamente um
subconceito frequentemente
associado à noção de justiça: a liberdade. Montamos um
comparativo importante entre a
teoria de Rawls, por se tratar da teoria tradicional mais
debatida acerca do tema justiça, e a
tese do republicanismo cívico de Pettit, que se propõe uma
oposição à teoria tradicional. Ao
analisar os fundamentos básicos das duas teses com foco no tema
da liberdade, observamos
em quais aspectos se diferem e no que se assemelhamem em torno
deste tema. Em específico,
notamos que o conceito de liberdade carrega uma fundamentação
epistemologicamente
distinta, diferindo a liberdade como não-interferência da
liberdade como não-dominação.
Aprofundamos o estudo com a análise da possibilidade de
aplicação prática das filosofias
ideais, estudando inclusive uma situação real de aplicação do
republicanismo cívico no
governo de Zapatero na Espanha, que baseou seu plano de governo
na teoria idealizada por
Pettit, avaliando o quanto esta iniciativa colaborou para a
democratização do país.
Palavras-chave: filosofia política; liberalismo; republicanismo
cívico; liberdade como não-
interferência; liberdade como não-dominação; aplicação prática;
John Rawls; Phillip Pettit;
José Luís Rodriguez Zapatero.
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6
ABSTRACT
In this work, we seek to explore more deeply a sub-concept often
associated with the notion
of justice: freedom. We make an important comparison between
Rawls's theory, since it is the
most debated traditional theory on the subject of justice, and
the thesis of Pettit's civic
republicanism, which proposes an opposition to the traditional
theory. In analyzing the basic
foundations of the two theses, focusing on the subject of
freedom, we observe in which
aspects they differ and what they resemble around this theme.
Specifically, we note that the
concept of freedom carries an epistemologically distinct
foundation, differing freedom as non-
interference from freedom as non-domination. We further study
the possibility of practical
application of the ideal philosophies, observing a real-life
application of civic republicanism
in the government of Zapatero - Spain, which based its plan of
government on the theory
devised by Pettit. We evalluate how this initiative collaborated
for the democratization of the
country.
Keywords: political philosophy; liberalism; civic republicanism;
freedom as non-
interference; freedom as non-domination; case-study; John Rawls;
Phillip Pettit; José Luís
Rodriguez Zapatero.
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7
1 INTRODUÇÃO
Não é necessário se remeter a uma fonte confiável da literatura
acadêmica para poder
dizer, sem medo de errar, que a palavra justiça é amplamente
citada em escritos jurídicos de
todos os gêneros e em qualquer região do mundo (seja qual for o
termo equivalente em outras
línguas). Tampouco é incomum vê-la sendo remetida como objetivo
primo do direito tanto
como ciência teórica quanto na prática jurídica dos
tribunais.
Mas o que é justiça? Sendo uma palavra de tamanha relevância
para o estudo e a prática
de nossa área de conhecimento, é de se esperar logicamente uma
larga amplitude de diferentes
conceituações proclamadas ao longo da história da ciência
jurídica. Por esse motivo, seria um
erro tentar definir de forma única e simples o termo justiça sem
contemplar a miríade de
subconceitos que se derivam deste importante vocábulo.
Neste trabalho, procuramos explorar mais profundamente um
subconceito
frequentemente associado à noção de justiça: a liberdade. Também
muito citada em escritas
da ciência jurídica, esta palavra pode parecer intuitivamente
menos vaga do que a anterior,
por tratar de uma delimitação mais específica de ideias
referentes à justiça. Não obstante,
ainda é possível encontrar uma vasta gama de diferentes visões
conceituais acerca deste
termo.
Muitas teorias acerca do que é a justiça, ou o que é “ser justo”
foram formuladas ao
longo de nossa história, e é improvável encontrar um ponto de
vista que não mencione a
liberdade como um dos princípios de justiça. De fato, liberdade,
igualdade, e democracia
talvez sejam os aspectos mais abrangidos por qualquer teoria
política que tenha a intenção de
apresentar princípios que harmonizem a nossa vida em
sociedade.
Um dos mais relevantes filósofos políticos do séc. XX é o
norte-americano John Rawls,
que em 1971 lançou o seu repercutido livro Uma Teoria da
Justiça. Muito será debatido sobre
a obra de Rawls neste trabalho, tendo em vista a relevância de
seus ensinamentos para a teoria
tradicional. Neste momento, entretanto, é importante fazer um
breve resumo da visão deste
autor em relação à liberdade.
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8
Rawls, concordando com seu antecessor em filosofia política John
Stuart Mill, defendia
que há tipos de interferências interpessoais que são
inadmissíveis e devem ser excluídas das
ações permitidas em uma sociedade livre.1 Seguir este princípio
resultaria no
desenvolvimento progressivo dos seres humanos, e uma boa
concepção público-política de
sociedade democrática (governo) deve aderir incondicionalmente
ao auto-policiamento
restritivo de interferências arbitrárias.2
O “princípio da liberdade” aduzido por John Stuart Mill já traz
uma ideia inicial da
concepção de liberdade como não-interferência. É a ideia de que
uma pessoa é livre se não
sofre interferência arbitrária e compulsória do Estado ou de
outros particulares. Essa
concepção futuramente vem a compor uma das principais bases da
teoria da justiça
tradicional.
Rawls, em suas palestras, considera a sua teoria muito próxima
aos ideais defendidos
por Mill3. De fato, o Liberalismo Político defendido por Rawls
sustenta que, devido ao “fato
do pluralismo”, doutrinas morais abrangentes que possuem
diferentes concepções de certo e
errado devem ser respeitadas umas pelas outras, de tal forma que
“as instituições básicas e
políticas públicas devem ser justificáveis para todos os
cidadãos”.4
Deste modo, as diretrizes públicas devem ser pautadas em
justificativas que todos
aceitem, independente da doutrina moral seguida por cada um. É
esta a ideia de razões
públicas defendida por Rawls, e que está intimamente interligada
à ideia de liberdade como
não-interferência, ou seja, as concepções defendidas por um
grupo social que segue uma
doutrina moral específica não pode interferir nas concepções de
um outro grupo da mesma
sociedade que siga doutrina distinta.
A liberdade em Rawls pode ser vista não somente neste aspecto de
liberdade entre
coletivos, como também, e talvez principalmente, como uma
premissa individual
fundamental. Não é a toa que em sua primeira formulação em Uma
Teoria da Justiça, o
1 RAWLS, John. Lectures on the History of Political Philosophy.
Cambridge, Mass.: The Belknap Press of Harvard University Press,
2007. p.291 (tradução livre) 2 ibid. p.294 3 Ibid. p.267 4 RAWLS,
John. Justiça como Equidade: Uma Reformulação. São Paulo. Martins
Fontes, 2003. p.126
-
9
primeiro de seus (dois) princípios de justiça prevê justamente
que: “cada pessoa tem o mesmo
direito irrevogável a um esquema plenamente adequado de
liberdades básicas iguais que seja
compatível com o mesmo esquema de liberdades para todos”.5
Portanto, o princípio da liberdade de Rawls, assim como o de
Mill, tem em sua essência
um teor de generalização, onde somente é possível um indivíduo
praticar atos livremente se
todos os demais indivíduos também puderem praticar estes mesmos
atos. Ou seja, desde que a
liberdade de um não interfira na liberdade do outro. Mais uma
vez voltando à ideia de
liberdade como não-interferência.
A teoria de Rawls ganhou tanta notoriedade entre a comunidade
acadêmica que é difícil
encontrar algum autor de filosofia política contemporânea que
não se posicione quanto à sua
doutrina. De fato, é possível considerar que Rawls se tornou um
dos autores que servem de
base da teoria tradicional sobre justiça, sendo, por
conseguinte, também um dos principais
alvos da teoria crítica acerca do mesmo tema.
No entanto, teorias com o viés idealizador muitas vezes são
criticadas pelo seu ponto de
vista utópico, pois não projetam uma saída real do mundo que
vivemos, e apenas apresentam
o objetivo final, muitas vezes irrealizável ou inalcançável. Não
temos um ponto de vista capaz
de apontar e analisar os obstáculos reais a serem superados para
que as melhores
potencialidades possíveis e plausíveis possam se realizar. Essa
é uma das principais críticas à
teoria de Rawls: por criar um cenário extremamente utópico para
servir de base para suas
propostas, tornou-se difícil vislumbrar como sua tese poderia
ser posta em prática para de fato
exercer a justiça no mundo real.
Mas será que esta crítica é devida unicamente à Rawls?
Convenhamos que na literatura
científica concernente à filosofia política contemporânea,
muitas teses são criadas sobre o que
é justo, mas pouco se produz sobre como aplicar a justiça na
sociedade real. O mundo
continua com sérios problemas de desigualdade, pobreza,
injustiça, e apesar de muito se
estudar sobre como o mundo deveria ser, não se faz um correto
diagnóstico da situação, e nem
se traça um plano concreto para efetivamente transformá-lo.
5 Ibid. p.60
-
10
No entanto, há raros casos em que, mesmo não havendo uma
adequada estruturação em
um diagnóstico apropriado da realidade, assistimos ao fenômeno
da aplicação prática de teses
políticas ideais. É o caso da filosofia de Philip Pettit,
teórico político irlandês que defende a
tese do republicanismo cívico pautada no ideal de cooperação
cívica e, principalmente, de
liberdade política ou “liberdade como não-dominação”. O
republicanismo de Pettit foi
abertamente apoiado por José Luis Rogríguez Zapatero, líder
Espanhol nos anos 2000, que
endossou a teoria e a aplicou em suas políticas públicas.
Sobre o republicanismo, trata-se de uma corrente filosófica
difusa, de diferentes
subcorrentes com distintas abrangências, mas que em seus pontos
comuns aparece muitas
vezes como um dos principais contrapontos ao liberalismo
político defendido por Rawls. O
liberalismo, por um lado, prezaria pela liberdade individual
acima de todos os demais valores,
colocando o indivíduo como alvo central dos direitos. O
republicanismo, por sua vez,
enxergaria o indivíduo como detentor de deveres cívicos, cujos
direitos individuais só fazem
sentido ao ser membro de um coletivo.
O republicanismo defendido por Pettit, apesar de seguir o
fundamento cívico, é baseado
também no fundamento da liberdade. Pettit enfatiza, porém, que
sua visão de liberdade possui
uma diferença epistêmica básica em relação à liberdade como
não-interferência defendida
pelos liberais, como Mill e Rawls. Segundo Pettit, liberdade
como não-interferência tem como
princípio a minimização da interferência do Estado na esfera
pessoal dos indivíduos, de tal
forma que o Estado deverá majoritariamente se abster, e atuar
somente no sentido de garantir
as liberdades básicas dos cidadãos. Já pela liberdade como
não-dominação, a liberdade só é
plena se a atuação do Estado for sempre legitimada por uma
escolha dos indivíduos que o
compõe.6
Pettit ilustra esse contraste com a seguinte comparação.
Primeiramente, é possível sofrer
interferência, mas não necessariamente dominação, como por
exemplo a interferência de lei
coercitiva. Este tipo de interferência não reduz a liberdade dos
cidadãos caso eles mesmos
tenham sido os responsáveis pela criação da lei e sobre ela
possuam controle, pois estariam ao
fim sendo apenas submetidos às suas próprias vontades. Por outro
lado, é possível ser
6 MARTÍ, José Luis, and Philip Pettit. A political philosophy in
public life: civic republicanism in Zapatero's
Spain. Princeton University Press, 2012. p. 35 (tradução
livre)
-
11
dominado – estar sujeito ao poder e vontade de outrem – mesmo
sem sofrer qualquer
interferência. Isto ocorre quando, por acaso, a vontade dos
dominadores condiz com a vontade
dos dominados.7 Isto mostra que pode haver uma liberdade apenas
aparente e não real, na
ideia de liberdade como não-interferência.
O republicanismo cívico de Pettit foi publicamente endossado
pelo político espanhol
José Luis Rodríguez Zapatero, que exerceu a liderança da Espanha
entre 2004 e 2011.
Zapatero assume abertamente o seu apoio à filosofia política de
Pettit, propondo que sua
população internalizasse os ideais de cidadania, participação
política e responsabilidade para
que através de uma mudança lenta e temperada, baseada em
democracia participativa e
liberdade, pudesse renovar a democracia social de seu país.8
Neste diapasão, observamos um comportamento incomum da ciência
política
contemporânea sendo aplicada diretamente na realidade concreta,
o que motiva a produção
deste trabalho acadêmico. O objetivo aqui é analisar o principal
debate acerca da liberdade
como princípio fundamental de justiça, vista pelo Liberalismo de
Rawls e pelo
Republicanismo de Pettit, e avaliar o histórico concreto obtido
na tentativa de aplicação do
republicanismo cívico no governo de Zapatero na Espanha.
No primeiro capítulo, abordaremos a teoria de Rawls, por se
tratar da teoria tradicional
mais debatida acerca do tema justiça. Apresentaremos os
fundamentos básicos de seu
liberalismo com foco no aspecto da liberdade. Ostentaremos
também como a sua tese carece
de um diagnóstico prático de tal forma a permitir uma aplicação
real de seus conceitos.
No segundo capítulo, exibiremos um contraponto ao liberalismo,
que seria a tese do
republicanismo cívico de Pettit. Novamente, apresentaremos os
seus fundamentos básicos
com foco no aspecto da liberdade, mostrando como as duas teorias
se diferem em torno deste
tema. Tentaremos também avaliar a aplicabilidade de sua tese em
casos reais, e sua
abrangência ao se tratar deste tipo de fenômeno.
7 Ibid. p.2 8 Ibid. p.7
-
12
No terceiro e último capítulo, faremos um breve diagnóstico do
governo de Zapatero na
Espanha, que se promoveu baseado na filosofia política de
Pettit. Faremos uma análise de
como a teoria política ideal foi aplicada no mundo real e quais
os principais resultados
obtidos, além das lições que poderíamos tirar desta experiência.
Com isso, espera-se atingir o
objetivo desta monografia.
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13
2 JUSTIÇA E LIBERDADE NO LIBERALISMO DE JOHN RAWLS
John Rawls (1921-2002) foi um filósofo político norte-americano
cuja obra se tornou
altamente influente nos estudos contemporâneos sobre justiça,
liberdade, democracia, e
ciências políticas como um todo. Abordaremos aqui os conceitos
fundamentais de sua teoria
da justiça como equidade e como formou a tese do liberalismo
político. Aproveitaremos
também para avaliar como é vista a liberdade para Rawls e fazer
uma análise crítica sobre o
seu trabalho.
Em seus primeiros escritos, Rawls utiliza a ideia de posição
original para criar as bases
de sua teoria da justiça. Nesta ideia, membros de uma sociedade
se colocam em uma situação
idealizada por Rawls onde ninguém sabe das suas características
na vida real, e a partir desta
posição tomam as decisões sobre como deverá ser a vida em
sociedade. Ou seja, ninguém
sabe qual é a sua classe, etnia, sexo, e todas as demais
características pessoais de cada um,
mas mantém todos os conhecimentos básicos de ciências sociais e
vida em sociedade.
A partir desta configuração, Rawls acredita que os membros
imbuídos desta perspectiva
chegariam às regras mais justas para a vida em cooperação
coletiva. Rawls estabelece a priori
duas regras, baseadas prioritariamente na liberdade e em segundo
plano em uma igualdade de
oportunidades e desigualdade de bens condicionada ao maior
benefício dos menos
avantajados. Estes princípios, portanto, norteariam as
instituições sociais básicas para
promover justiça social.
Este modelo de contratualismo não seria uma doutrina filosófica
abrangente, na qual
seres humanos devam acreditar e seguir como parâmetro para suas
próprias vidas, e sim uma
forma de estruturar uma sociedade sujeita ao fato do pluralismo,
onde as diversas doutrinas
abrangentes devem encontrar uma forma de conviver de forma
harmoniosa e justa para todos.
Para a sua teoria, Rawls deu o nome de Justiça como Equidade
(Justice as Fairness).
2.1 IDEIAS FUNDAMENTAIS DA JUSTIÇA COMO EQUIDADE
Para organizar e dar estrutura ao conjunto da teoria da Justiça
como Equidade, Rawls,
traz algumas ideias básicas fundamentais. A ideia mais
fundamental nesta concepção de
-
14
justiça, ao seu ver, é a ideia de sociedade como um sistema
equitativo de cooperação social
que se perpetua de uma geração para outra.9 Para que isso
ocorra, cidadãos livres e iguais
devem cooperar para atingir uma sociedade bem ordenada, regulada
por uma concepção
pública de justiça.
A ideia organizadora central da cooperação social tem pelo menos
três aspectos
essenciais: 1) guia-se por regras e procedimentos publicamente
reconhecidos, que aqueles que
cooperam aceitam como apropriados para reger sua conduta (e não
por ordens emanadas por
uma autoridade central absoluta); 2) prolifera-se em termos
equitativos de cooperação, ou
seja, cada um aceita fazer a sua parte, acreditando que os
demais também farão as deles, de tal
forma a todos se beneficiarem da cooperação conforme um critério
público e consensual
especificado; 3) há um bem racional (vantagem própria) de cada
participante, pois os que
cooperam procuram promover o seu próprio bem, através da
obtenção do bem comum.10
Assim, se atingiria uma sociedade bem-ordenada, que possui uma
concepção pública de
justiça a qual todos conhecem e internalizam. Ou seja, cada
membro desta sociedade aceita, e
sabe que todos os demais também aceitam, os mesmos princípios de
justiça. As principais
instituições políticas e sociais da sociedade também respeitam
estes mesmos princípios. Com
isso, os cidadãos teriam um senso de justiça enraizado, que lhes
permitiriam entender e
praticar a justiça em todos os momentos da vida em
sociedade.
Segundo Rawls:
Numa sociedade bem-ordenada, portanto, a concepção pública de
justiça fornece um
ponto de vista aceito por todos, a partir do qual os cidadãos
podem arbitrar suas
exigências de justiça política, seja em relação às instituições
políticas ou aos demais
cidadãos.11
Outra ideia fundamental é a ideia de estrutura básica de uma
sociedade (bem-
ordenada):
A estrutura básica da sociedade é a maneira como as principais
instituições políticas
e sociais da sociedade interagem formando um sistema de
cooperação social, e a
9 RAWLS, John. Justiça como Equidade: Uma Reformulação. São
Paulo. Martins Fontes, 2003. p.7 10 Ibid. p.8-9. 11 Ibid. p.12
-
15
maneira como distribuem direitos e deveres básicos e determinam
a divisão das
vantagens provenientes da cooperação social no transcurso do
tempo. (...) A
estrutura básica é o contexto social de fundo dentro do qual as
atividades de
associações e indivíduos ocorrem. Uma estrutura básica justa
garante o que
denominamos de justiça de fundo (background justice).12
Portanto, as leis, os poderes executivo, legislativo e
judiciário, o modelo democrático, a
família, a educação, a saúde pública, tudo isso faz parte da
estrutura básica de uma sociedade.
Este conceito basicamente busca unir em um único termo todas as
instituições políticas e
sociais que compõem um sistema coletivo de cooperação:
O objeto primário da justiça é a estrutura básica da sociedade,
ou, mais exatamente,
o modo como as instituições sociais mais importantes distribuem
os direitos e
deveres fundamentais, e determinam a divisão das vantagens
provenientes da
cooperação social. Por instituições mais importantes, entendo a
constituição política
e as principais disposições econômicas e sociais.13
Não faz parte da estrutura básica, entretanto, os aspectos
internos do funcionamento de
associações civis e religiosas, e nem as relações entre Estados
ou governos. A Estrutura básica
é justamente o ponto intermediário, o funcionamento doméstico de
um sistema social, que não
invade o funcionamento específico das pontas.
Um quarto importante conceito fundamental é o de pessoas como
cidadãos livres e
iguais. Já vimos que a teoria da justiça como equidade é uma
concepção política de justiça,
esboçada para uma estrutura básica da sociedade e não com o
intuito de ser uma doutrina
moral abrangente. Neste sentido, a ideia aqui de cidadão /
pessoa não é uma concepção
metafísica, religiosa, espiritual ou psicológica, e sim
normativa e política, do cidadão como
uma partícula de um sistema equitativo de cooperação.
Dentro da teoria idealizada de Rawls, os cidadãos são
considerados iguais pois possuem
as faculdades morais necessárias para se envolverem na
cooperação social desde o nascimento
até a morte, participando da sociedade em patamar de igualdade
com os demais membros:
12 Ibid. p.13-14 13 GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça
depois de Rawls: um breve manual de filosofia política. São
Paulo. Martins Fontes, 2008. p.19
-
16
“Na medida em que vemos a sociedade como um sistema equitativo
de cooperação, a base da
igualdade consiste em termos, no grau mínimo necessário, as
capacidades morais que nos
permitem participar plenamente da vida cooperativa da
sociedade.”14
Por outro lado, os cidadãos são livres pois possuem a faculdade
moral de formar, rever e
modificar suas próprias concepções de bem, não havendo uma
doutrina obrigatória que
determina a ética / moral de todos. As diferentes concepções de
bem individuais precisam
apenas ser compatíveis com a concepção pública de justiça. Em
consequência, os cidadãos
também são livres na medida em que podem fazer reivindicações às
suas instituições para
promoverem suas próprias concepções de bem.
Portanto, vimos aqui quatro ideias fundamentais da sociedade
ideal na visão de Rawls:
1) sociedade como um sistema equitativo de cooperação; 2) o que
é uma sociedade bem-
ordenada; 3) o que é a estrutura básica de uma sociedade
(bem-ordenada); 4) como agem as
pessoas entendidas como cidadãos livres e iguais.
Rawls não esconde o caráter ideal de seus conceitos. Pelo
contrário, justifica seu
idealismo em cada conceito novo apresentado. Apresentamos abaixo
uma de suas
justificativas, especificamente sobre a ideia de cidadãos livres
iguais, mas que é abrangente o
suficiente para ser propagada às demais idealizações
apresentadas:
Ao empregarmos a concepção de cidadãos como pessoas livres e
iguais
desconsideramos vários aspectos do mundo social e de certa forma
fazemos uma
idealização. Isso revela uma das funções das concepções
abstratas: nós as utilizamos
para obter uma visão clara e ordenada de uma questão considerada
fundamental,
enfocando os elementos que supomos ser mais significativos e
relevantes para
determinar sua resposta mais adequada. Na ausência de qualquer
explicação em
contrário, não tentaremos responder a nenhuma outra questão
senão à questão
fundamental formulada acima.”15
A partir destes conceitos preliminares, podemos mergulhar nos
conceitos mais
estruturantes da teoria da justiça como equidade de Rawls.
14 RAWLS, John. Justiça como Equidade: Uma Reformulação. São
Paulo. Martins Fontes, 2003. p.27-28 15 Ibid. p.11
-
17
2.2 O CONTRATUALISMO RAWLSIANO E A POSIÇÃO ORIGINAL
Um dos conceitos mais marcantes da teoria de Rawls é a sua ideia
de posição original.
Conforme já explicado anteriormente, Rawls é um contratualista.
Isto significa que sua teoria
parte da hipótese de um contrato social firmado entre os
próprios cidadãos, que concordam
com os termos nos quais vão basear a vida em sociedade, para que
todos possam conviver em
harmonia e cooperação coletiva. Este contrato poderia ser visto,
em um paralelo com termos
reais, como as constituições de cada Estado.
Rawls justifica o porquê de adotar uma tese contratualista:
Em linhas gerais, poderíamos dizer que a especial importância do
contratualismo
deve-se ao fato de nos ajudar a responder, de modo interessante,
a duas perguntas
básicas de qualquer teoria moral: a) O que a moral exige de nós?
E b) Por que
devemos obedecer a certas regras? À primeira pergunta, o
contratualismo responde:
a moral exige que cumpramos aquelas obrigações que nos
comprometemos a
cumprir. E, ante a segunda pergunta, o contratualismo afirma que
a razão pela qual
devemos obedecer a certas regras é porque nos comprometemos a
isso. Não é por
acaso, nesse sentido, que o contratualismo, como proposta
teórica, tenha surgido e se
tornado popular depois de uma época em que perguntas como as
mencionadas só
encontravam respostas por meio da religião. Desde o início do
Iluminismo, o
contratualismo apresentou-se como a forma mais atraente de
“preencher o vazio”
deixado pelas explicações religiosas sobre as questões morais,
sobre o problema da
autoridade. A autoridade é vista agora como uma criação dos
próprios indivíduos,
que não pode ser justificada recorrendo-se a abstrações ou
entidades não-humanas.16
Há uma diferença essencial, no entanto, do contratualismo de
Rawls em relação aos
demais, pois ele defende um tipo particular de contrato - um
contrato hipotético. Rawls
refere-se a um acordo que firmaríamos sob certas condições
ideais, e no qual é respeitado
nosso caráter de seres livres e iguais. Neste acordo hipotético,
a moralidade se derivaria
diretamente de princípios naturais, inerentes ao ser humano.
Diferente, então, dos contratos
reais (como o declarado por Hobbes), que estariam sempre
enviesados pelos interesses e
poderes de negociação individuais.
16 GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls:
um breve manual de filosofia política. São
Paulo. Martins Fontes, 2008. p.14
-
18
Neste sentido, o elemento hipotético proposto é a condição
particular em que se
encontram os supostos representantes do povo que elaborariam
este contrato. É o que se
denomina a posição original. Os entes que elaboram o contrato
estão cercados por um véu da
ignorância que não os permitem conhecer suas características
pessoais. Assim, ninguém sabe
se é rico ou pobre, branco ou negro, homem ou mulher, e as
regras estabelecidas neste
contrato seriam elaboradas sem um viés de proveito próprio a
cada classe.
Roberto Gargarella, em seu livro “As teorias da justiça depois
de Rawls: um breve
manual de filosofia política.” explica muito bem e de forma
sucinta a ideia de posição
original:
A situação hipotética que Rawls supõe tende a refletir sua
intuição de que a escolha
de princípios morais não pode estar subordinada às nossas
situações particulares.
Para impedir a influência indevida das circunstâncias próprias
de cada um, Rawls
imagina uma discussão realizada por indivíduos racionais e
interessados em si
mesmos, que se propõem eleger - por unanimidade, e depois de
deliberar entre eles -
os princípios sociais que deverão organizar a sociedade. Os
sujeitos que Rawls
imagina surgem afetados por uma circunstância particular. Ocorre
que estão sob um
“véu de ignorância”, que os impede de conhecer qual é a sua
classe ou seu status
social, a sorte ou desventura que tiveram na distribuição de
capacidades naturais, sua
inteligência, sua força, sua raça, a geração à qual pertencem,
etc. Tampouco
conhecem suas concepções do bem ou suas propensões psicológicas
específicas. Por
outro lado, esse véu não os impede de reconhecer certas
proposições gerais, tais
como as descobertas básicas que as ciências sociais fizeram em
matéria de
economia, psicologia social, etc. Em suma, o que os citados
agentes desconhecem é
qualquer informação que lhes permitam orientar a decisão em
questão a seu próprio
favor. Como diz Kymlicka, o véu de ignorância “não é uma
expressão de uma teoria
da identidade pessoal. É um teste intuitivo de equidade”. Desse
modo, então, as
partes na “posição original” direcionam-se para alcançar um
acordo capaz de
considerar imparcialmente os pontos de vista de todos os
participantes. Se não
fizerem isso, uma vez posto em funcionamento o sistema
institucional em questão,
podem chegar a deparar com o fato de caber a eles ocupar as
posições mais
desvantajosas (por exemplo, talvez a um deles caiba sofrer uma
incapacidade, ou
gozar dos talentos menos valorizados).17
17 Ibid. p. 21-22
-
19
Desenvolver sua concepção em termos de um contrato hipotético
deste tipo traz a Rawls
um recurso vantajoso para defender seu conceito de igualdade. O
contrato elaborado desta
forma reflete a ideia de que a vida e o destino de cada um tem a
mesma importância:
O contrato em questão, em suma, serve para moldarmos a ideia de
que nenhuma
pessoa está, de modo inerente, subordinada às demais. (...) A
igualdade que interessa
a Rawls não tem a ver com nosso igual status moral, que nos
força, em todo o caso,
a desenvolver uma preocupação com a imparcialidade - pelo fato
de se considerarem
imparcialmente as preferências e interesses de cada um. 18
Desta forma, a posição original seria um modelo adequado para
garantir condições
equitativas de acordo entre cidadãos livres e iguais, e
restringiria as razões individuais que
não fossem voltadas a um bem comum. Imbuídos do véu da
ignorância, os representantes do
povo presentes na formulação do contrato endossariam princípios
que levassem em
consideração o bem de todos, imunes a perspectivas particulares
que pudessem interferir no
acordo equitativo da vida em sociedade.
Nesta particular condição hipotética, Rawls acredita que os
seres empossados pela
posição original chegariam a dois princípios de justiça que
regulariam a estrutura básica da
sociedade.
2.3 DOIS PRINCÍPIOS DE JUSTIÇA
Rawls formula a seguinte pergunta:
Considerando-se a sociedade como um sistema equitativo de
cooperação entre
cidadãos livres e iguais, que princípios de justiça são mais
apropriados para
determinar direitos e liberdade básicos, e para regular as
desigualdades sociais e
econômicas das perspectivas de vida dos cidadãos?19
O intuito, portanto, seria formular os valores fundamentais que
regulariam a vida
coletiva de forma justa e harmoniosa, e que não fossem
princípios impostos por uma
18 Ibid. p.18 19 RAWLS, John. Justiça como Equidade: Uma
Reformulação. São Paulo. Martins Fontes, 2003. p. 58
-
20
autoridade e sim propostos pelos próprios cidadãos pertencentes
à estrutura básica de uma
sociedade democrática, através do contrato social. Há uma
intenção em Rawls de conceber
estes princípios como algo proveniente da própria natureza do
ser humano, como se estes
valores surgissem da própria convicção interna do homem como ser
político e racional.
Apesar de não defender abertamente o direito natural,
interpretamos esta pretensão de Rawls
como uma defesa implícita à tese de que existiriam direitos
inerentes à natureza do homem.
Esta associação entre Rawls e o direito natural, entretanto, não
é trivial, e exigiria uma defesa
mais bem elaborada, o que extrapola o ponto central deste
trabalho, podendo ser explorado
em um momento futuro.
Portanto, os dois princípios básicos de justiça, segundo Rawls,
seriam assim
formulados20:
1- Cada pessoa deve ter um direito igual e irrevogável ao
esquema mais abrangente de
liberdades básicas iguais que for compatível com um esquema
semelhante de liberdades para
as demais.
2- As desigualdade sociais e econômicas devem estar vinculadas a
cargos e posições
acessíveis a todos em condição de igualdade equitativa de
oportunidades; e, em segundo
lugar, têm de beneficiar ao máximo os membros menos favorecidos
da sociedade (princípio
da diferença).
Os dois princípios de justiça enunciados estão organizados,
segundo Rawls, em uma
ordem de prioridade lexicográfica, ou seja, o primeiro princípio
tem precedência sobre o
segundo, e, dentro do segundo princípio, a igualdade equitativa
de oportunidades tem
precedência sobre o princípio da diferença. Essa prioridade
significa que ao aplicar um
princípio, partimos do pressuposto de que os princípios
anteriores já foram plenamente
satisfeitos.
De acordo com essa regra de prioridade, a liberdade não pode ser
limitada (em
sociedades que alcançaram um nível mínimo de desenvolvimento
econômico) a
20 Ibid. p.60
-
21
favor da obtenção de maiores vantagens sociais e econômicas, mas
apenas no caso
de entrar em conflito com outras liberdades básicas.21
O primeiro princípio trata de uma formulação de raciocínio
lógico e quase matemático.
Quais seriam as liberdades básicas que todos poderiam usufruir
ao mesmo tempo? De outra
forma, poderíamos interpretar esta formulação observando que o
limite do conjunto de
liberdades básicas se perfaz quando o gozo da liberdade por um
indivíduo impossibilite que
outro possa usufruir do mesmo benefício.
Um exemplo simples para esclarecer este conceito é se
analisarmos uma suposta
liberdade para matar. Suponhamos que exista uma sociedade em que
todos os indivíduos
estão livres para matar uns aos outros. Ora, nesta sociedade,
não seria possível que um
indivíduo usufruísse desta liberdade sem necessariamente excluir
o mesmo benefício de outro
indivíduo: aquele que está sendo morto (Figura 1).
Figura 1 - Princípio da liberdade: conjuntos de liberdades
básicas não-interferentes.
Portanto, é possível definir o conjunto de liberdades básicas a
partir do limite do que
não é liberdade básica, de tal forma a apenas englobar
liberdades que possam ser extrapoladas
a todos os indivíduos de uma estrutura básica
indistintamente.
O primeiro princípio revela também uma abordagem kantiana da
tese de Rawls,
podendo ser interpretado como o provimento de um conjunto de
liberdades cujas
21 GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls:
um breve manual de filosofia política. 2008.
p.26
-
22
abrangências não permitam que um indivíduo sirva como mero meio
para o fim de outro
indivíduo. Ou seja, as liberdades básicas seriam aquelas que
autorizassem que cada indivíduo
pudesse buscar o seu próprio projeto de vida sem que sofra
interferência e, em retribuição,
sem que interfira no projeto de vida dos demais.
Um forma de exemplificar esta noção seria aplicando-a ao
conceito de escravidão. O
indivíduo sujeito às vontades de outrem não está gozando da
liberdade de poder decidir suas
próprias finalidades e sofre a interferência de terceiros,
servindo, sem seu real consentimento,
de meio para fins que não são os seus próprios. A ideia de
escravidão não seria, portanto,
compatível com o primeiro princípio de justiça de Rawls.
Rawls parte de uma formulação analítica para chegar a uma lista
de direitos e liberdades
básicas:
Avaliamos quais liberdades fornecem as condições políticas e
sociais essenciais para
o adequado desenvolvimento e pleno exercício das duas faculdades
morais das
pessoas livres e iguais. Segue-se disso que: primeiro, as
liberdades políticas iguais e
a liberdade de pensamento permitem que os cidadãos desenvolvam e
exerçam suas
faculdades para julgar a justiça da estrutura básica da
sociedade e suas políticas
sociais; e, segundo, a liberdade de consciência e a liberdade de
associação permitem
que os cidadãos desenvolvam e exerçam suas faculdades morais
para formar, rever e
racionalmente procurar realizar (individualmente ou, com mais
frequência, em
associação com outros) suas concepções de bem.22
Partimos então para analisar o segundo princípio, o qual pode,
por sua vez ser
novamente dividido em duas propostas fundamentais que não
defendem necessariamente uma
única ideia. A primeira proposta seria a da igualdade de
oportunidades para acesso aos cargos
e posições. É uma ideia de que todo cidadão, no início da vida,
dependa apenas de sua própria
força de vontade para lograr êxito em suas perspectivas
pessoais. Desta forma, Rawls defende
que devemos neutralizar o “azar” que pode incorrer aos
indivíduos no início (e ao longo) da
vida, como, por exemplo, debilitações em termos de saúde ou de
classe social.
22 RAWLS, John. Justiça como Equidade: Uma Reformulação. São
Paulo. Martins Fontes, 2003. p.60
-
23
Para tal, Rawls afirma que há 3 tipos de desigualdades que uma
sociedade bem-
ordenada poderia preocupar-se particularmente em evitar:23 1)
sua classe social de origem: a
classe em que nasceram e se desenvolveram antes de atingir a
maturidade; 2) seus talentos
naturais (em contraposição a seus talentos adquiridos); e as
oportunidades que têm de
desenvolver esses talentos em função de sua classe social de
origem; 3) sua boa ou má sorte
ao longo da vida (como são afetados pela doença ou por
acidentes; e, digamos, por períodos
de desemprego involuntário e declínio econômico regional).
Assim, o poder público da estrutura básica criaria
regulamentações para gerar um
reequilíbrio na condição de igualdade equitativa de
oportunidades entre todos os indivíduos,
atuando principalmente nestes três tipos de fenômenos que
ocorrem naturalmente em
sociedades bem-ordenadas. As diferenças do primeiro tipo
poderiam ser neutralizadas, por
exemplo, com a implementação de uma educação pública universal
de qualidade e outras
instituições sociais meritocráticas. A diferenças do tipo 2 e 3
são mais difíceis de serem
neutralizadas, mas poderiam ao menos ser amenizadas por
políticas públicas como, por
exemplo, acompanhamento médico gratuito aos deficientes físicos
ou acidentados, seguro-
desemprego para os afetados por crise econômica, etc.
A segunda parte do segundo princípio traz, em nosso ver, o maior
diferencial da teoria
de Rawls. Mais conhecido como princípio da diferença, esta ideia
propõe que deva existir
desigualdades sociais e econômicas na sociedade, desde que
beneficie a todos. “As maiores
vantagens dos mais beneficiados pela loteria natural só são
justificadas se elas fazem parte de
um esquema que melhora as expectativas dos membros menos
favorecidos da sociedade.”24
Para ilustrar esta ideia, podemos fazer uma representação
gráfica da distribuição de
riqueza de uma determinada população. Imagine que todos os
membros da sociedade estão
dispostos lado a lado, ordenados em ordem crescente de riqueza,
ou seja, do mais pobre ao
mais rico. Cada um dos membros então expõe a quantidade de
riqueza que possui,
representado por uma coluna. Na Figura 2 (a), observamos um
exemplo desta representação
para uma população pequena de pessoas. Na medida em que
aumentamos o tamanho desta
população, as colunas lado a lado vão tomando o formato de uma
curva (Figura 2 (b)), de tal
23 Ibid. p.60 24 GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça
depois de Rawls: um breve manual de filosofia política. São
Paulo. Martins Fontes, 2008. p.25
-
24
forma que, para uma população de tamanho genérico (ou seja, para
qualquer tamanho), é
possível levarmos em consideração apenas a curva formada pela
envoltória da grande
quantidade de colunas (implícitas) , a qual chamaremos de curva
de distribuição de riqueza
(Figura 2 (c)).
Figura 2 - Construção da curva de distribuição de riqueza
Ao utilizarmos o termo riqueza, estamos usando como exemplo a
ideia de poder
aquisitivo para tornar o entendimento mais simples (ser rico é
ter mais dinheiro, ser pobre é
ter menos dinheiro). Porém, Rawls, ao definir quem são os menos
ou mais favorecidos em
uma determinada estrutura social, leva em consideração um
conceito mais amplo, de bens
primários, que podem assumir várias formas, a depender de fatos
gerais sobre as necessidades
e aptidões humanas. Estes bens primários são agrupados em cinco
tipos, dentre os quais a
renda e a riqueza ocupam apenas uma categoria. Para fins desta
exposição, utilizaremos o
termo riqueza para facilitar o entendimento, tendo em mente, no
entanto, que as
desigualdades às quais Rawls se refere englobam uma valoração
mais ampla de bens.25
Uma representação gráfica do princípio da diferença pode,
portanto, ser vista na Figura
3. Rawls defende que a desigualdade entre indivíduos de um
sistema social cooperativo pode
ser maior desde que o menos favorecido esteja em uma posição
melhor do que estaria na
situação de menor desigualdade. No caso, podemos imaginar duas
sociedades A e B.
25 Para maior detalhamento acerca dos bens primários de Rawls,
ver: RAWLS, John. Justiça como Equidade:
Uma Reformulação. São Paulo. Martins Fontes, 2003. p.81-86
(§17)
-
25
Figura 3 - Representação gráfica do princípio da diferença de
Rawls
Em A, há menor desigualdade entre o indivíduo menos favorecido e
o mais favorecido,
em comparação com estes mesmos indivíduos da sociedade B. No
entanto, o cidadão menos
favorecido da sociedade B encontra-se em situação absoluta
melhor do que o seu
correspondente da sociedade A. Para Rawls, a sociedade B seria
então uma sociedade mais
justa, na medida que, apesar da maior desigualdade, houve um
maior favorecimento global
aos indivíduos menos favorecidos.
O princípio da diferença, portanto, defende que “as violações de
uma ideia estrita de
igualdade só são aceitáveis no caso de servirem para incrementar
as parcelas de recursos em
mãos dos menos favorecidos, e nunca de as diminuir.”26
Como já dito anteriormente, Rawls frisa que seus princípios
possuem uma ordem
lexicográfica necessária, em que os princípios menos importantes
só podem ser utilizados
para justificar políticas públicas após satisfeitos os
princípios mais importantes. É importante
também observar que os princípios de justiça são aplicados em
diferentes estágios da
organização da sociedade, desde a formação da constituição,
passando pela promulgação das
leis infraconstitucionais, até a aplicação da justiça no caso
concreto.27
Rawls defende que seus princípios de justiça se aplicam a uma
concepção pública de
justiça, e não a uma doutrina moral abrangente. Mas o que ele
pretende dizer com isso? Para
26 GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls:
um breve manual de filosofia política. 2008.
p.26 27 Para uma explicação mais completa a respeito, ver:
RAWLS, John. Justiça como Equidade: Uma
Reformulação. São Paulo. Martins Fontes, 2003. p.67-69
(§13.6).
-
26
um melhor encadeamento das ideias, vamos analisar em ordem os
importantes conceitos de
pluralismo razoável, razões públicas e consenso sobreposto, que
resultarão na teoria do
Liberalismo Político de John Rawls.
2.4 LIBERALISMO POLÍTICO: UMA CONCEPÇÃO POLÍTICA DE JUSTIÇA
A noção de Liberalismo Político surge, inicialmente, do fato do
pluralismo. Conforme
já exposto, Rawls não pretende a partir do seu modelo de
política criar uma doutrina filosófica
abrangente, a qual todos os indivíduos de uma sociedade devam
seguir. Pelo contrário, Rawls
afirma que as sociedades modernas estão necessariamente sujeitas
ao fato do pluralismo, em
que há diversas distintas doutrinas morais que cada cidadão pode
optar por acreditar e seguir
como parâmetro ideológico da sua própria vida.
Desta forma, não há sentido em tentar encontrar uma forma de
forçar todos os cidadãos
a uma mesma crença e conduta filosófica / espiritual, e sim
formular um modelo que
possibilite estruturar uma sociedade sujeita a este fato do
pluralismo, modelo no qual as
diversas doutrinas abrangentes devam encontrar um equilíbrio
cooperativo para conviver de
forma harmoniosa e justa para todos.
Para isso, trazemos primeiramente a ideia de que o pluralismo é
razoável, isto é, a
pluralidade de doutrinas abrangentes seguidas pelos membros da
sociedade são, embora
incompatíveis entre si em termos de ideais de vida individuais,
compatíveis entre si em
termos de convívio social harmônico. Desta forma, doutrinas
morais não razoáveis devem ser
excluídas da deliberação política, se por não razoáveis queremos
dizer que elas promovem
condutas não compatíveis com a cooperação social (por exemplo,
uma religião que defenda a
morte de seres humanos de outras religiões).
Rawls faz uma distinção entre racional e razoável que facilita o
entendimento deste
segundo termo:
Pessoas razoáveis são aquelas dispostas a propor, ou a
reconhecer quando outros os
propõem, os princípios necessários para especificar o que pode
ser considerado por
todos como termos equitativos de cooperação. Pessoas razoáveis
também entendem
que devem honrar esses princípios, mesmo às custas de seus
próprios interesses, se
-
27
as circunstâncias o exigirem, desde que os outros também os
honrem. É insensato
não estar disposto a propor tais princípios, ou não honrar
termos equitativos de
cooperação que, espera-se, os outros possam razoavelmente
aceitar; é pior que
insensato quando a pessoa apenas parece ou finge propô-los ou
honrá-los, mas está
disposta a violá-los em benefício próprio assim que a ocasião o
permitir. No entanto,
embora não seja razoável, fazer isso não é, em geral,
irracional. Pode acontecer que
alguns detenham poder político maior ou se encontrem em
circunstâncias mais
afortunadas; e, embora essas condições sejam irrelevantes para
distinguir essas
pessoas no que se refere à condição de igualdade, pode ser
racional para elas tirarem
vantagem de sua situação.28
Portanto, as doutrinas razoáveis seriam aquelas em que seus
seguidores propõem
princípios sociais e políticas públicas que busquem maior
benefício a todos os participantes
da cooperação social, e que estão dispostos a sacrificar
determinadas vantagens pessoais em
prol do bem comum (inclusive de membros de outras doutrinas). Já
doutrinas não razoáveis
são aquelas em que seus membros, mesmo que agindo de forma
racional, não compreendem
que atos de sacrifício próprio possam beneficiar a todos, e não
admitem honrar os princípios
propostos para tal benefício coletivo.
A partir do fato do pluralismo razoável, Rawls defende que para
definirmos os
princípios de justiça que todos aceitem, devemos argumentar
através de razões públicas para
atingir o consenso sobreposto razoável.
Embora em uma sociedade bem-ordenada todos os cidadãos afirmem a
mesma
concepção política de justiça, não supomos que o façam sempre
pelas mesmas
razões.29 Cidadãos têm opiniões religiosas, filosóficas e morais
conflitantes e,
portanto, afirmam a concepção política a partir de doutrinas
abrangentes e opostas,
ou seja, pelo menos em parte, por razões diversas. Mas isso não
impede que a
concepção política seja um ponto de vista comum a partir do qual
podem resolver
questões que digam respeito aos elementos constitucionais
essenciais.30
Portanto, ainda que os cidadãos de uma determinada estrutura
básica sigam ideologias
diferentes, há determinados aspectos da vida social com os quais
todos podem concordar,
ainda que por motivos diferentes. Ainda que um religioso defenda
que “matar uns aos outros”
28 RAWLS, John. Justiça como Equidade: Uma Reformulação. São
Paulo. Martins Fontes, 2003. p.9 29 Frase extraída de Anarchy,
State, and Utopia de NOZICK, p.225 30 RAWLS, John. Justiça como
Equidade: Uma Reformulação. São Paulo. Martins Fontes, 2003.
p.45
-
28
deva ser proibido por afrontar um dos dez mandamentos, um
agnóstico pode concordar que
“matar uns aos outros” deva ser proibido por simples questão de
ordem social e justiça.
Independente da argumentação, o dispositivo normativo alcançado
seria fruto de uma
concordância entre diferentes doutrinas morais abrangentes.
Daí a noção de consenso sobreposto, dentro do qual uma sociedade
plural atingiria os
princípios de uma concepção política de justiça através da
interseção dos valores aceitos por
todas as doutrinas morais razoáveis de uma sociedade
democrática. Uma representação
gráfica de tal consenso pode ser vista na Figura 4. Imagine que
cada círculo englobe todos os
princípios morais de cada doutrina abrangente razoável.
Figura 4 - Consenso sobreposto
Na interseção destes círculos, teríamos a sobreposição dos
princípios aceitos por todos,
que formaria o referido consenso. “A noção de consenso
sobreposto é introduzida para tornar
a noção de sociedade bem-ordenada mais realista e ajustá-la às
condições históricas e sociais
de sociedades democráticas, que incluem o fato do pluralismo
razoável.”31 O fato de que
existe uma diversidade de doutrinas abrangentes e razoáveis não
é uma mera condição
histórica que logo passará, e sim um aspecto permanente de uma
sociedade democrática.32
Porém, não basta que haja uma mera interseção de valores para
que o consenso
sobreposto seja considerado razoável. Para que concepção
política de justiça faça sentido em
31 Ibid. p.44 32 Ibid. p.57
-
29
uma justificação ampla de seus princípios, estes devem ser
defendidos através de razões
públicas, ou seja, razões que não apontem apenas um ponto
particular/pessoal das questões
envolvidas, e sim que se baseiem em valores que qualquer cidadão
possa endossar. “Uma
concepção política de justiça espera poder formular esses
princípios e valores comuns que
tornam a razão pública.”33
Uma característica essencial de uma sociedade bem-ordenada é que
sua concepção
pública de justiça política estabelece uma base comum a partir
da qual os cidadãos
justificam, uns para os outros, seus juízos políticos: cada um
coopera, política e
socialmente, com os restantes em termos aceitos por todos como
justos. É esse o
significado da justificação pública.34
Portanto, não se pode esperar que um consenso sobreposto seja
razoável se não há
razões unificadas pelas quais todos os cidadãos possam recorrer
para justificar suas condutas,
ideias, e proposições do que é certo ou errado. Para garantir
que um sistema equitativo de
cooperação evolua para o status de sociedade bem-ordenada,
existir uma base pública de
justificação é essencial.
Mas qual seria essa base pública de justificação? Quais seriam
os argumentos que
poderiam ser aceitos por todos? Rawls explica:
Confrontados com o fato do pluralismo razoável, e admitindo-se
que, em se tratando
dos elementos constitucionais essenciais, as instituições
básicas e políticas públicas
devem ser justificáveis para todos os cidadãos (...) concedemos
às partes as crenças
gerais e formas de raciocínio encontradas no senso comum, e os
métodos e
conclusões da ciência, quando não são controversos. (...)
Dizemos, pois, que as
partes dispõem desse tipo de conhecimento geral e empregam esse
tipo de
argumentação. Isso impede que doutrinas religiosas e filosóficas
abrangentes sejam
definidas como razões públicas. O mesmo vale para teorias
econômicas muito
elaboradas sobre equilíbrio geral e coisas do gênero, caso haja
divergências em torno
delas. Se estamos falando de razão pública, o conhecimento e os
modos de
argumentação - as verdades incontroversas que agora são de
conhecimento comum e
que estão disponíveis para todos os cidadãos - que fundamentam a
escolha que as
partes fazem de princípios de justiça têm de ser acessíveis à
razão comum dos
33 Ibid. p.58 34 Ibid. p.38
-
30
cidadãos. Caso contrário, a concepção política não proporciona
uma base de
legitimidade política.35
Com o desenvolvimento de uma base pública de justificação,
podemos finalmente
atingir o consenso sobreposto razoável, no qual os princípios de
justiça presentes na
interseção entre doutrinas morais não só são concordados por
todos, como também podem ser
justificados para todos através de motivos não particulares, e
sim públicos. Podemos imaginar
que, no caso de uma nova doutrina que acaba de ser criada e
popularizada em uma
determinada sociedade democrática, esta doutrina só será
considerada razoável se seus
princípios ideológicos individuais forem compatíveis com os
princípios públicos regidos pela
base pública de justificação.
Um dos objetivos da justificação pública é certamente o de
preservar as condições
de uma cooperação social efetiva e democrática entre cidadãos
livres e iguais. Tal
justificação depende de um acordo de juízos, pelo menos no
tocante aos elementos
constitucionais essenciais; e portanto, quando esse acordo está
ameaçado, uma das
tarefas da filosofia política é tentar elaborar uma concepção de
justiça que reduza os
desacordos, pelo menos em torno das questões mais
controversas.36
(...)
Um consenso sobreposto, portanto, não é um mero consenso quanto
à aceitação de
certas autoridades, ou quanto à aprovação de certos arranjos
institucionais, baseado
na convergência contingente ou histórica de interesses privados
ou de grupos.37
Cada visão de mundo reconhece os conceitos, princípios e
virtudes da concepção
política de justiça como o conteúdo comum em que suas visões
variadas coincidem. Mesmo
que partam de premissas religiosas, filosóficas ou morais
diferentes, afirmam esta concepção
externando as razões que podem até não ser as reais, mas que
possibilitam ser apoiadas por
todos.
São essas as ideias que formam a base do Liberalismo Político de
Rawls, teoria que
ganhou grande notoriedade entre acadêmicos da literatura
científico-política. Através da
compreensão dos seus princípios básicos, podemos agora formular
uma concepção do que se
35 Ibid. p.126-127 36 Ibid. p.39-40 37 Ibid. p.278
-
31
entende por liberdade sob o ponto de vista do liberalismo
rawlsiano, da liberdade como não-
interferência.
2.5 CONCEPÇÃO DE LIBERDADE A PARTIR DO LIBERALISMO POLÍTICO
Como já mencionado, o fato do pluralismo razoável é condição
intrínseca de sistemas
sociais cooperativos cuja complexidade extrapola àquela de uma
comunidade local que segue
a uma única doutrina moral abrangente. Nestas situações, para se
atingir um consenso
sobreposto razoável, é fundamental que se respeite as diferenças
ideológicas das diferentes
doutrinas e que todos tenham oportunidade de perseguir seus
próprios projetos de vida como
cidadãos livres e iguais.
Neste diapasão, é possível enquadrar a visão de Rawls, também
defendida por outros
idealizadores do pensamento liberal, como a de liberdade como
não-interferência. Este
conceito é bem definido por Isaiah Berlim em sua obra “Dois
conceitos de liberdade” (1959):
A liberdade política neste sentido é simplesmente a área na qual
um homem pode
agir sem ser obstruído por outros. (...) A coerção implica a
interferência deliberada
de outros seres humanos na minha área de atuação. Só não temos
liberdade política
quando outros indivíduos nos impedem de alcançar uma meta.38
Berlim sustenta que a liberdade, vista desta forma, tem uma
“meta negativa de evitar
interferência”39, ao contrário de uma liberdade positiva (que
seria, no caso, o seu outro
conceito de liberdade, que justifica o título de sua obra) que
consistiria no exercício da
autodeterminação, não sendo caracterizado por uma ausência de
interferência e sim por uma
presença de ação.40 Emanado por estas duas liberdades, um ser
humano seria considerado
plenamente livre ao poder escolher racionalmente suas ações e,
em seguida, não sofrer
interferência ao perfazê-las.
38 BERLIN, Isaiah. Dois conceitos de liberdade [1959]. In:
HARDY, H.; HAUSHEER, R. (orgs.). Isaiah Berlin
– Estudos sobre a humanidade. São Paulo: Companhia das Letras,
2002. p.229 39 Ibid. p.234 40 Ibid. p.236
-
32
Estes dois tipos de liberdade foram assim qualificados a partir
de uma análise que
Berlim fez do texto “Liberdade dos antigos e liberdade dos
modernos”, de Benjamin
Constant, publicado em 1819.41 Que traz justamente a ideia de
que os “antigos” enxergavam a
liberdade como o ideal de participação direta em uma democracia
auto governada (positiva),
enquanto os “modernos” a enxergavam como a ausência de
interferência (negativa).
A partir da dicotomia criada por Constant, Berlin aduz que, ao
considerarmos a priori a
ideia de liberdade positiva, um aumento da soberania do povo não
necessariamente levaria a
um aumento da liberdade e diminuição da opressão. “A democracia
pode desarmar uma dada
oligarquia, um dado indivíduo ou conjunto de indivíduos
privilegiados, mas ainda pode
esmagar indivíduos tão impiedosamente quanto qualquer governante
anterior.”42 Ou seja, a
participação da liberdade positiva direcionaria, eventualmente,
à autoridade e opressão
exercida pelos representantes do povo, o que levaria os modernos
a defender a ideia de
liberdade negativa: um direito ao respeito à vida privada, a
dimensão individual; que a
concepção positiva não previa. Este desenvolvimento realizado
por Berlin reproduz bem o
conceito de liberdade defendido pelos liberais modernos, como
Rawls e Nozick43.
Seguindo esta linha, é importante destacar a visão de Rawls em
relação a seu antecessor
em filosofia política: John Stuart Mill. Segundo Rawls, Mill
defendia o “princípio da
liberdade” como guia para as políticas públicas. Em sua
formulação, declara que há 3 tipos de
interferências interpessoais que são inadmissíveis e devem ser
descartadas, são elas: (i) por
motivos paternalísticos; (ii) por motivos perfeccionistas; e
(iii) por motivos de desgosto ou
preferência, quando o desgosto ou preferência não são
sustentados por noções racionais de
certo ou errado.44
Mill ainda afirma que este princípio deve ser aplicado de forma
“absoluta”, o que na
interpretação de Rawls significa ser aplicado sem exceção, tendo
em vista que o princípio da
liberdade induz o desenvolvimento progressivo dos seres humanos,
e uma boa concepção
41 Ibid. p.267 42 Ibid. p.265 43 Nozick sustenta, ainda, que a
teoria de Rawls é insuficientemente liberal, sendo mais igualitária
do que se
pretende ao utilizar o rótulo do Liberalismo. Sobre o embate
entre Nozick e Rawls, ver: GARGARELLA,
Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual
de filosofia política. São Paulo. Martins
Fontes, 2008. p. 33-62 (Cap. 2) 44 RAWLS, John. Lectures on the
History of Political Philosophy. Cambridge, Mass.: The Belknap
Press of
Harvard University Press, 2007. p.291 (tradução livre)
-
33
público-política de sociedade democrática (entenda-se: governo)
deve aderir
incondicionalmente ao auto-policiamento restritivo das ações
citadas.45
Portanto, o “princípio da liberdade” aduzido por John Stuart
Mill condiz com a
concepção de liberdade como não-interferência, pois uma pessoa
só é livre se não sofre
interferência arbitrária (e por arbitrária podemos, por exemplo,
considerar um dos 3 motivos
dados por Mill) e compulsória do Estado ou de outros
particulares. Rawls, em suas palestras,
considera a sua teoria muito próxima aos ideais defendidos por
Mill46.
O liberalismo político defendido por Rawls parece, ao nosso ver,
defender a ideia de
liberdade como não-interferência, na medida que as concepções
proferidas por um grupo
social que segue uma doutrina moral específica não pode
interferir nas concepções de um
outro grupo da mesma sociedade que siga doutrina distinta. Além
disso, a liberdade em Rawls
pode ser vista não somente neste aspecto de liberdade entre
coletivos, como também, e talvez
principalmente, como uma premissa individual fundamental: “cada
pessoa tem o mesmo
direito irrevogável a um esquema plenamente adequado de
liberdades básicas iguais que seja
compatível com o mesmo esquema de liberdades para todos”.47
O princípio da liberdade de Rawls, assim como o de Mill, tem em
sua essência um teor
de generalização, onde somente é possível um indivíduo praticar
atos livremente se todos os
demais indivíduos também puderem praticar estes mesmos atos. Ou
seja, desde que a
liberdade de um não interfira na liberdade do outro. Mais uma
vez voltando à ideia de
liberdade como não-interferência.
2.6 CRÍTICAS AO IDEALISMO DA TEORIA DE RAWLS
A teoria da Justiça como Equidade de Rawls é abertamente
declarada como uma
idealização, devido a diversos fatores como o contrato
hipotético, a premissa de pessoas livres
e iguais e o isolamento da estrutura básica em relação às
instituições locais e globais, apenas
para citar alguns.
45 Ibid. p.294 46 Ibid. p.267 47 Ibid. p.60
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34
A teoria crítica sempre surge para se contrapor à teoria
tradicional. Marcos Nobre,
filósofo e cientista político brasileiro contemporâneo, traz
boas palavras para defender a teoria
crítica, dizendo que:
Não se trata de um ponto de vista utópico, no sentido de
irrealizável ou inalcançável,
mas de enxergar no mundo real as suas potencialidades melhores.
(...) Um ponto de
vista capaz de apontar e analisar os obstáculos a serem
superados para que as
potencialidades melhores presentes no existente possam se
realizar.48
Essa é uma das principais críticas à teoria de Rawls: por criar
um cenário extremamente
utópico para servir de base para suas propostas, tornou-se
difícil vislumbrar como sua tese
poderia ser posta em prática para de fato exercer a justiça no
mundo real.
De fato, a teoria tradicional carrega em si o estigma de separar
a “teoria” da “prática”.
Os contratualistas, como Hobbes, Locke, Rousseau e o próprio
Rawls, criam teses que
antecipam um estado ideal, uma utopia, através de premissas que
jamais existiram ou existirão
no mundo real (como por exemplo, a ideia de posição original de
Rawls). Não há respaldo
histórico e social em seus pontos de partida, apresentando
sempre uma lógica do “dever ser”
sem um adequado diagnóstico prévio do “ser”.
Por diagnóstico, referimo-nos ao retrato social no dado momento
histórico em que a
teoria poderia se tornar a prática. Porém, devido a esta falta
de adequação das premissas ideais
com o objeto pré-existente, torna-se difícil aplicar as teses
tradicionais dentro da noção
concreta da realidade. Sendo a teoria tradicional muitas vezes
criticada pelo seu teor
puramente acadêmico ou abstrato.
Em defesa de Rawls, a sua teoria da Justiça como Equidade, em
diversos momentos,
realiza diagnósticos das sociedades reais para embasar os seus
argumentos.
Um exemplo disso está quando, ao apresentar a ideia de consenso
sobreposto, elenca
cinco fatos gerais da sociologia política e psicologia humana,
sendo o primeiro deles o do
48 NOBRE, Marcos. A Teoria Crítica. Rio de Janeiro, Ed. Jorge
Zahar, 2004. p.10
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35
pluralismo razoável. Ele também sustenta que: 2) “a adesão
coletiva continuada a apenas uma
doutrina abrangente só se mantém pelo uso opressivo do poder de
estado”; 3) “um regime
democrático duradouro e seguro, não dividido por amargas
disputas doutrinárias e classes
sociais hostis, tem de ser apoiado livre e voluntariamente por
pelo menos uma substancial
maioria de seus cidadãos politicamente ativos”; 4) “a cultura
política de uma sociedade
democrática que tenha funcionado razoavelmente bem durante um
período considerável de
tempo costuma conter, pelo menos de modo implícito, certas
ideias fundamentais a partir das
quais é possível elaborar uma concepção política de justiça
apropriada para um regime
constitucional” e; 5) “as condições em que são feitos muitos de
nossos mais importantes
juízos políticos, envolvendo valores políticos básicos, torna
extremamente improvável que
pessoas conscienciosas e plenamente razoáveis possam exercer
suas faculdades da razão de
modo que todos cheguem à mesma conclusão, mesmo depois de uma
discussão livre e
aberta.”49
Ainda que seja possível observar estas pequenas anotações de
como o mundo real
funciona, não há uma ligação explícita e bem desenhada entre a
teoria e a prática. Em
realidade, esta crítica à abstração não é devida unicamente à
Rawls, e sim à literatura
acadêmica em geral. Convenhamos que na literatura científica
concernente à filosofia política
contemporânea, muitas teses são criadas sobre o que é justo, mas
pouco se produz sobre como
aplicar a justiça na sociedade real. O mundo continua com sérios
problemas de desigualdade,
pobreza, injustiça, e apesar de muito se estudar sobre como o
mundo deveria ser, pouco se
fala em como efetivamente transformá-lo.
Esta é uma das motivações com as quais este trabalho está sendo
desenvolvido: analisar
como teorias abstratas sobre justiça e liberdade poderiam ser
levadas à prática no mundo real.
No próximo capítulo, vamos estudar a teoria do republicanismo
cívico de Philip Pettit, que,
além de servir como um importante contraponto à tese proposta
por Rawls, servirá como
ponte para o último capítulo: o da análise de como a teoria
política ideal foi aplicada no
mundo real e as lições que poderíamos tirar desta
experiência.
49 RAWLS, John. Justiça como Equidade: Uma Reformulação. São
Paulo. Martins Fontes, 2003. p.47
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36
3 JUSTIÇA E LIBERDADE NO REPUBLICANISMO DE PHILLIP PETTIT
A teoria liberal-igualitária de John Rawls sofreu diversas
críticas dentro das discussões
que foram surgindo após a publicação e popularização de seus
primeiros trabalhos. Alguns
defendiam que sua teoria não era suficientemente liberal, outros
que não era suficientemente
igualitária, entre tantas outras divergências50. Dentre as
principais correntes de oposição,
poderíamos citar o comunitarismo e o republicanismo, que
contestam a visão do indivíduo
como sujeito essencial de direitos, defendendo que o indivíduo
só se torna um titular de
direitos após cumprir sua função essencial como detentor de
deveres dentro do coletivo.
As linhas filosóficas republicanas e/ou comunitárias defendem a
ideia de que a
liberdade de cada indivíduo está atrelada também à função
cívica. Indivíduo e coletivo
operam em conjunto para proporcionar a liberdade para todos.
Diversas ramificações podem
derivar desta ideia central, como o republicanismo cívico de
Philip Pettit sobre o qual
aplicamos o foco deste capítulo.
O republicanismo cívico de Pettit parte de um elemento
fundamental que é o conceito
de liberdade como não-dominação. A partir desta ideia, a qual
sustenta ser divergente da visão
de liberdade como não-interferência, o autor desenvolve todos os
demais aspectos estruturais
na construção de sua teoria política. Buscamos aqui entender um
pouco mais destes princípios
estruturantes e suas principais distinções e semelhanças ao
liberalismo.
Inicialmente, porém, é importante entendermos as variadas
interpretações que podem
derivar da corrente republicana de pensamento, sendo importante
contextualizar a teoria de
Pettit dentro da miríade de ideologias que, devido a uma
semelhança na nomenclatura, podem
gerar confusão hermenêutica acerca do tema.
3.1 REPUBLICANISMO: COMO DEFINI-LO
O termo republicanismo é, em nosso tempo, empregado com
diferentes sentidos.
Alguns autores se referem ao pensamento clássico, associado à
república romana de Cicero,
50 Para uma robusta revisão das teorias que surgiram como
resposta à Rawls, ver: GARGARELLA, Roberto. As
teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia
política. São Paulo. Martins Fontes, 2008.
-
37
mas há também diversas correntes contemporâneas associadas ao
termo, como o
republicanismo liberal ou o partido republicano norte-americano.
As referências ao
republicanismo em suas diferentes versões geram uma confusão
acerca do vocábulo por
muitas vezes trazerem características tão distintas entre si que
beiram o antagonismo.
No entanto, Gargarella (2008) apresenta o republicanismo a
partir de certas marcas
aparentemente comuns entre as distintas visões, não negando a
presença das fortes diferenças
que possam existir entre elas. Nesta busca por um “mínimo
denominador comum” do
republicanismo, o autor ressalta duas principais
características.
Quanto à primeira delas, o autor cita o próprio Pettit:
Em busca desse núcleo comum, Philip Pettit destaca a concepção
‘antitirânica’ -
contrária a toda dominação - do republicanismo. A reivindicação
da liberdade - a
ausência de domínio; a vida em um ‘estado livre’ - unificaria,
de forma resumida, as
distintas visões republicanas. Esse estado livre é o que vai
possibilitar a grandeza e o
crescimento da comunidade e, sobretudo, o que vai possibilitar
que os cidadãos
possam buscar livremente seus próprios objetivos.51
A segunda característica comum às distintas visões de
republicanismo seria a defesa de
certos valores cívicos, ou virtudes, indispensáveis para a
conquista da liberdade e do convívio
harmonioso em sociedade.
A lista de virtudes defendidas pelo republicanismo é muito
extensa. (...) valores
como a coragem (para defender a própria comunidade contra
ataques externos) e a
prudência (para participar do governo da comunidade), (...) a
igualdade, a
simplicidade, a honestidade, a benevolência, a moderação, o
patriotismo, a
integridade, a sobriedade, a abnegação, a laboriosidade, o amor
à justiça, a
generosidade, a nobreza, a solidariedade e, em geral, o
compromisso com o destino
dos demais.52
51 GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls:
um breve manual de filosofia política. São
Paulo. Martins Fontes, 2008. p.186 52 Ibid., p.187
-
38
As diferentes teses, então, apontariam para um discurso
contrário à dominação,
defendendo que os cidadãos devem exigir de si mesmos a
manifestação de suas virtudes para
que consigam constituir um autogoverno justo e livre.
Pettit, ao apresentar a sua tese do republicanismo cívico,
ressalta que o seu
republicanismo deve ser visto em contraste com outras três
versões conhecidas deste
pensamento, não devendo ser confundido com as mesmas. São elas:
1) a mera oposição à
monarquia; 2) o homônimo partido político norte-americano; 3) as
formas comunitárias de
pensamento republicano cujos ideais centrais são a soberania
popular e a participação
universal. “Nestas versões, a liberdade individual faz parte da
formação do espírito coletivo e
soberano da comunidade”.53
O republicanismo cívico de Pettit estaria, portanto, mais
próximo ao pensamento
histórico e tradicional do republicanismo romano, que teve
continuidade no renascimento
europeu, na Inglaterra do séc XVII e na independência
norte-americana. O autor defende que
nesta tradição, “a liberdade não é entregue à comunidade como um
benefício positivo da
participação no autogoverno, e sim de maneira mais negativa,
referente à não imposição
interpessoal.”54
A liberdade seria, portanto, peça chave na construção da ideia
do republicanismo cívico.
Porém, não como um aspecto de um direito potestativo entregue
pelo governo para promover
participação popular, e sim no sentido de servir como uma
proteção à não imposição contínua
da vontade de uma pessoa sobre a outra, ou, em outras palavras,
à não dominação. É a partir
desta ideia de liberdade que Pettit apóia os alicerces
fundamentais de sua teoria.
3.2 A LIBERDADE COMO AUSÊNCIA DE DOMINAÇÃO
A dominação ocorre quando o bem-estar de um indivíduo depende
das decisões de
outrem. Nesta situação, um indivíduo detém poder sobre o outro,
podendo realizar
interferências arbitrárias. Variados exemplos de relações
cotidianas de dominação podem ser
53 MARTÍ, José Luis, and Philip Pettit. A political philosophy
in public life: civic republicanism in Zapatero's
Spain. Princeton University Press, 2012. p. 31 (tradução livre)
54 Ibid. p.32
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39
citados, como: o filho de pais emocionalmente instáveis; a
esposa de um marido
ocasionalmente violento; o aluno de um professor que cria regras
injustas de avaliação; um
empregado cuja segurança profissional depende de manter o seu
chefe de bom humor; o dono
de um pequeno negócio cujo sucesso depende da boa vontade do
banqueiro que irá lhe
fornecer o empréstimo; ou até um jovem infrator cuja punição
depende do desejo da mídia de
fomentar uma cultura vingativa.55
Pettit julga ser tão importante o conceito de dominação para a
sua teoria republicana,
que se preocupa em criar uma definição para o termo, e o faz da
seguinte forma: “um
indivíduo tem poder de dominação sobre o outro quando (1) tem a
capacidade de interferir,
(2) de forma arbitrária, (3) nas decisões que o outro poderia
tomar de sua própria posição.”56
Nota-se que a dominação não necessariamente resulta em
interferência, e mesmo quando há
interferência, esta não necessariamente traz um mal a quem a
sofre, mas é, sim, arbitrária,
podendo ser positiva ou negativa a depender dos desejos do
indivíduo dominador. Portanto, a
dominação atua não na necessária interferência, mas sim na
susceptibilidade à interferência,
ou na ameaça constante de exercício de poder arbitrário.
É importante notar também que uma relação de dominação entre
indivíduos pode ter sua
origem em um consenso (ex: casamento, relação de trabalho, etc).
O fato de ser iniciada por
um ato consensual, no entanto, não é suficiente para que a
relação decorrente deste ato seja,
em si, livre de dominação: “Independente de uma determinada
relação ser consensual em sua
origem, o fato de uma parte ter posteriormente a efetiva
capacidade de interferir
arbitrariamente nas escolhas da outra significa que há sim uma
relação de dominação”.57
Como então atingirmos a ausência de dominação? Em um primeiro
momento, podemos
pensar na alternativa do escape, da reclusão, da vida fora do
ambiente de socialização. Um
sujeito que vive sem manter relações sociais com nenhum outro
ser humano, naturalmente
também não será dominado, e portanto, estaria livre. Não é,
entretanto, sobre esta alternativa
que o ideal republicano se concentra:
55 Ibid. p.33 56 PETTIT, Philip. Republicanism: A Theory of
Freedom and Government. Oxford University Press, 2010. p. 52
(tradução livre) 57 Ibid., p.62
-
40
A não dominação, como valorizada pela tradição republicana,
significa a ausência de
dominação na presença de outras pessoas, e não a ausência de
dominação obtida
através do isolamento. (...) Na forma romana de expressar a
ideia: liberdade é civil
(libertas is civitas), se distinguindo da liberdade natural
obtida pela ausência de
socialização. (...) É um ideal social cuja realização pressupõe
a presença de uma
quantidade numerosa de agentes que interagem mutuamente.58
Parece natural que todos sejam contra a dominação, tal como ela
acaba de ser
conceituada. No entanto, não é tão natural considerar que a
ausência de dominação seja
equivalente à presença de liberdade, tal como defendido pela
tradição republicana, e sim que
seja apenas um dos requisitos para se atingí-la. Pettit defende
que “quase todos irão concordar
que a liberdade pode ser razoavelmente descrita como a condição
na qual eu posso evitar o
controle alheio”59, e critica a liberdade vista como a simples
ausência de interferência da
seguinte forma:
A visão de que liberdade é equivalente à ausência de
interferência deriva da
presunção de que o controle alheio se faz presente apenas quando
há efetiva
interferência, como quando o dominador recorre efetivamente à
força coercitiva ou à
manipulação do dominado. Porém, esta presunção é falsa. Eu posso
estar sujeito ao
controle alheio sem uma efetiva interferência à minha pessoa, e
se eu pensar que esta
ausência de interferência significa a presença de liberdade,
estarei me iludindo.60
Pettit enfatiza que a presença de interferência não se traduz
necessariamente em
ausência de liberdade. A interferência não arbitrária é,
inclusive, uma ferramenta que auxilia
na manutenção da liberdade e da não-dominação. Se um agente
público interfere nas escolhas
de um cidadão, contra os interesses pessoais desse cidadão, mas
o faz seguindo regras pré-
determinadas pelo interesse coletivo, estando sujeito a
fiscalização de seus atos para que os
mesmos não sejam executados de forma discricionária e sendo,
inclusive, sujeito a sanções
caso aja desta forma, esta atuação estará de fato protegendo a
liberdade da coletividade contra
os interesses individuais de uma minoria. É uma interferência
que não se perfaz através da
dominação e sim da representação do corpo coletivo pelos agentes
públicos.
58 Ibid. p. 66 59 MARTÍ, José Luis, and Philip Pettit. A
political philosophy in public life: civic republicanism in
Zapatero's
Spain. Princeton University Press, 2012. p. 35 (tradução livre)
60 Ibid., p.35-36