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1043 Paulo Gorjão* Análise Social, vol. XXXVIII (169), 2004, 1043-1067 O legado e as lições da Administração Transitória das Nações Unidas em Timor Leste** INTRODUÇÃO Durante a guerra fria, as tradicionais operações de manutenção da paz das Nações Unidas (ONU) enfrentaram casos de conflito internacional que obri- garam a organização a monitorar acordos de cessar fogo e zonas-tampão. À primeira geração de operações de manutenção da paz seguiram-se novas missões com novos objectivos, em resposta à alteração da ordem global. Com o fim da guerra fria, a ONU envolveu-se numa segunda geração de operações de manutenção da paz, tentando resolver conflitos que eram agora mais nacionais do que internacionais e requeriam «administradores civis e polícias, bem como soldados, para supervisionarem a implementação dos planos de paz negociados pelas partes em conflito que concordaram em solucionar as suas disputas nas urnas eleitorais» 1 . Em todos esses casos, as * Docente na Universidade Lusíada, doutorando na Universidade Católica de Lovaina e bolseiro da Fundação para a Ciência e a Tecnologia [[email protected]]. Em 2002, o autor foi visiting fellow do Centro Australiano de Estudos de Defesa da Universidade de New South Wales e da Academia Australiana das Forças de Defesa. ** O autor agradece a Jarat Chopra, James Cotton, Simon Chesterman, Kumiko Mizuno, Anthony Smith e Astri Suhrke pelos úteis comentários a uma anterior versão deste artigo. Os factos e opiniões aqui expressos são da sua inteira responsabilidade. Este artigo foi publi- cado originalmente com o título «The legacy and lessons of the United Nations Transitional Administration in East Timor», em Agosto de 2002, na revista Contemporary Southeast Asia, editada pelo Instituto de Estudos do Sudeste Asiático (ISEAS), de Singapura. A versão aqui publicada foi revista e aprofundada. 1 Boris Kondoch, «The United Nations administration in East Timor», in Journal of Conflict and Security Law, 6, n.º 2, Dezembro de 2001, p. 246.
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    Paulo Gorjo* Anlise Social, vol. XXXVIII (169), 2004, 1043-1067

    O legado e as lies da AdministraoTransitria das Naes Unidas em Timor Leste**

    INTRODUO

    Durante a guerra fria, as tradicionais operaes de manuteno da paz dasNaes Unidas (ONU) enfrentaram casos de conflito internacional que obri-garam a organizao a monitorar acordos de cessar fogo e zonas-tampo. primeira gerao de operaes de manuteno da paz seguiram-se novasmisses com novos objectivos, em resposta alterao da ordem global.Com o fim da guerra fria, a ONU envolveu-se numa segunda gerao deoperaes de manuteno da paz, tentando resolver conflitos que eram agoramais nacionais do que internacionais e requeriam administradores civis epolcias, bem como soldados, para supervisionarem a implementao dosplanos de paz negociados pelas partes em conflito que concordaram emsolucionar as suas disputas nas urnas eleitorais1. Em todos esses casos, as

    * Docente na Universidade Lusada, doutorando na Universidade Catlica de Lovaina ebolseiro da Fundao para a Cincia e a Tecnologia [[email protected]]. Em 2002, oautor foi visiting fellow do Centro Australiano de Estudos de Defesa da Universidade de NewSouth Wales e da Academia Australiana das Foras de Defesa.

    ** O autor agradece a Jarat Chopra, James Cotton, Simon Chesterman, Kumiko Mizuno,Anthony Smith e Astri Suhrke pelos teis comentrios a uma anterior verso deste artigo.Os factos e opinies aqui expressos so da sua inteira responsabilidade. Este artigo foi publi-cado originalmente com o ttulo The legacy and lessons of the United Nations TransitionalAdministration in East Timor, em Agosto de 2002, na revista Contemporary Southeast Asia,editada pelo Instituto de Estudos do Sudeste Asitico (ISEAS), de Singapura. A verso aquipublicada foi revista e aprofundada.

    1 Boris Kondoch, The United Nations administration in East Timor, in Journal ofConflict and Security Law, 6, n. 2, Dezembro de 2001, p. 246.

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    partes envolvidas tinham anteriormente aceite a presena da ONU, pelo queas foras da paz s utilizaram a fora para autodefesa. Entretanto, umaterceira gerao de operaes de manuteno da paz, que no necessitam doconsentimento das partes envolvidas, emergiu ao abrigo do captulo VII daCarta das Naes Unidas. Este desenvolvimento coincidiu com o apareci-mento de coligaes de voluntrios mandatados pelo Conselho de Seguranapara procederem a aces especficas de aplicao da lei, como foi o casoda Fora Internacional em Timor Leste (INTERFET).

    Foi contra este pano de fundo que a misso da ONU seria levada a efeitoem Timor Leste, uma misso entendida por alguns como a precursora deuma quarta gerao de operaes de construo de Estados2 e por outroscomo uma situao clssica de descolonizao3. A Administrao Transitriadas Naes Unidas em Timor Leste (UNTAET) foi estabelecida pela Reso-luo n. 1272 do Conselho de Segurana das Naes Unidas a 25 de Ou-tubro de 1999, dotada de responsabilidade global pela administrao do ter-ritrio e de poderes para exercer toda a autoridade legislativa e executiva,incluindo a administrao da justia, durante o perodo de transio da ad-ministrao indonsia para a independncia formal. Ao mesmo tempo, aUNTAET tinha muitas outras tarefas a cumprir, como garantir a seguranado territrio, manter a lei e a ordem, estabelecer uma administrao efectiva,ajudar ao desenvolvimento de servios civis e sociais, garantir a coordenaoe distribuio de ajuda humanitria e assistncia de reabilitao e desenvol-vimento, apoiar a aquisio de capacidades para o autogoverno e ajudar aoestabelecimento de condies para um desenvolvimento sustentvel.

    O leque de responsabilidades e o alcance do mandato da UNTAET notinham quaisquer precedentes nas anteriores operaes de manuteno dapaz (a UNMIK Administrao Interina das Naes Unidas no Kosovo a nica, se bem que parcial, excepo). Pela primeira vez, as NaesUnidas tinham controlo soberano sobre um territrio, o qual visavam pre-parar para a independncia4. Por outras palavras, era um caso de com-binao entre o governo da ONU e o objectivo estratgico do estabeleci-mento de um Estado independente5. Como tal, a UNTAET constituiu umamisso de construo de Estados, entendida por muitos como um test case.

    2 Id., ibid.3 o caso de Simon Chesterman, director do programa sobre administraes transitrias

    da International Peace Academy (comunicao pessoal por e-mail em Abril de 2002).4 Michael Bothe e Thilo Marauhn, The United Nations in Kosovo and East Timor

    problems of a trusteeship administration, in International Peacekeeping (Kluwer), 6, n.os 4--6, Julho-Dezembro de 2000, pp. 152-56.

    5 Joel C. Beauvais, Benevolent despotism: a critique of UN state-building in East Timor,in New York University Journal of International Law and Politics, 33, n. 4, 2001, p. 1101.

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    A Administrao Transitria das Naes Unidas em Timor Leste

    De facto, havia a convico geral de que a UNTAET teria de criar um Estadofuncional em Timor Leste6. Entre Outubro de 1999 e Maio de 2002, o terri-trio foi o laboratrio de uma experincia de governao, com a UNTAETcomo soberana de facto. Com tanta coisa em jogo, e agora que o mandatoda UNTAET expirou, tempo de avaliar a sua performance. Algumas questesrevestem-se de particular relevncia. Quais os resultados da experincia? Osobjectivos estabelecidos pela Resoluo n. 1272 do Conselho de Segurana daONU tero sido cumpridos? Retiraram-se algumas lies desta experincia?Que tipo de legado deixou ao novo Estado soberano de Timor Leste?

    O ESTABELECIMENTO DA UNTAET

    Em 1999, ao fim de vinte e quatro anos de ocupao, a Indonsia auto-rizou, finalmente, uma consulta popular Jacarta recusou-se a reconheceraquilo que realmente era: um referendo em Timor Leste7. A Misso dasNaes Unidas em Timor Leste (UNAMET) foi responsvel pela organiza-o e conduo da consulta popular com base num sufrgio universal, se-creto e directo8. Em conformidade com o Acordo Tripartido de 5 de Maiode 1999 entre as Naes Unidas, a Indonsia e Portugal, pretendia-se apurarse o povo de Timor Leste aceitava um estatuto de autonomia especial dentroda Indonsia, ou se o rejeitava, o que conduziria separao do territrio.O resultado da consulta popular de 30 de Agosto de 1999 deu uma claravitria aos apoiantes da independncia, com 78,5% dos timorenses votandocontra a proposta de autonomia especial. Este resultado desencadeou, emretaliao, uma vaga de violncia e destruio liderada por milciastimorenses pr-autonomia, inteiramente apoiadas pelas foras militaresindonsias9. Daqui resultou uma enorme destruio de infra-estruturas, umrol de mortos na ordem das 1500 pessoas e cerca de 250 000 refugiados,a maioria dos quais foram forados a fugir para Timor Ocidental. Aps umaforte presso internacional, a Indonsia cedeu ao inevitvel. A 15 de Setem-bro de 1999, o Conselho de Segurana autorizou uma fora multinacional,

    6 James Traub, Inventing East Timor, in Foreign Affairs, 79, n. 4, Julho-Agosto de2000, pp. 74-89.

    7 Para as razes pelas quais a oportunidade surgiu apenas em 1998-1999, v. Paulo Gorjo,Regime change and foreign policy: Portugal, Indonesia, and the self-determination of EastTimor, in Democratization, 9, n. 4 Inverno de 2002, pp. 142-158.

    8 Para um relato pessoal, v. Ian Martin, Self-Determination in East Timor: The UnitedNations, the Ballot, and International Intervention, Boulder/Londres, Lynne Rienner Publishers,2001.

    9 Para uma anlise da origem histrica das milcias e as condies polticas da suaexistncia, v. Geoffrey Robinson, Peoples war: militias in East Timor and Indonsia, inSouth East Asia Research, 9, n. 3, Novembro de 2001, pp. 271-318.

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    a INTERFET, a tomar todas as medidas necessrias para restaurar a paz ea segurana em Timor Leste, proteger e auxiliar a UNAMET a realizar assuas tarefas e, dentro das suas capacidades, facilitar as operaes de ajudahumanitria. Em grande medida devido ao substancial empenho militar aus-traliano, a INTERFET foi um sucesso militar.

    Foi neste contexto destruio macia de infra-estruturas, mais de250 000 refugiados, elevado nmero de mortos e um vazio de poder po-ltico que a UNTAET iniciou as suas operaes por todo o territrio deTimor Leste, comeando a estabelecer as bases da sua estrutura administra-tiva. Infelizmente, contudo, a operao comeou mal. De facto, a missosofreu sempre de uma contradio inerente entre a sua estrutura [] e o seumandato10. Por outras palavras, a UNTAET sofria de uma subjacente ten-so entre o seu mandato de curto prazo para governar Timor Leste e oobjectivo estratgico de longo prazo de preparar os timorenses para o autogo-verno democrtico11. Jarat Chopra, ex-presidente do gabinete de adminis-trao distrital da UNTAET, recorda que a fase de planeamento em NovaIorque no envolveu qualquer contacto genuno com, ou a participao de,representantes de Timor Leste. A 19 de Outubro de 1999, Gusmo envious Naes Unidas uma proposta de administrao transitria, definindo opapel dos timorenses sob a forma de um Conselho Transitrio. Em retros-pectiva, o modelo do CNRT para o envolvimento timorense era relativamentemodesto, mas as Naes Unidas ignoraram-no completamente. Embora aestrutura organizacional da UNTAET tenha sido mostrada ao CNRT, oquadro de pessoal no o foi, j que, embaraosamente, no inclua quaisquertimorenses.12

    A UNTAET foi moldada de acordo com os procedimentos operacionaisstandardizados das operaes de manuteno da paz, tendo sido planeadapelo Departamento de Operaes de Manuteno da Paz (DPKO) [dasNaes Unidas], que tinha muito pouca experincia governativa13. Desde oincio, a UNTAET foi guiada pela necessidade de manter um controlocentralizado, minimizar os riscos de fracasso de curto prazo e maximizar osganhos visveis de curto prazo14, enquanto, ao mesmo tempo, havia pres-ses para completar a operao o mais rapidamente possvel e impedir dessemodo o esgotamento das finanas das Naes Unidas15.

    10 Astri Suhrke, Peacekeepers as nation-builders: dilemmas of the UN in East Timor,in International Peacekeeping (Frank Cass), 8, n. 4, Inverno de 2001, p. 1.

    11 Beauvais, op. cit., pp. 1105-1106.12 Jarat Chopra, The UNs kingdom of East Timor, in Survival, 42, n. 3, Outono de

    2000, p. 32.13 Suhrke, op. cit., p. 1.14 Beauvais, op. cit., p. 1106.15 Suhrke, op. cit., p. 2.

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    A tendncia da ONU para seguir um princpio de imparcialidade no quediz respeito s relaes com os partidos locais tambm criou dificuldadesna relao poltica com o Conselho Nacional da Resistncia Timorense(CNRT) uma coligao que inclua, entre outros, dois antigos inimigosdo perodo da guerra civil: a Unio Democrtica Timorense (UDT) e a FrenteRevolucionria de Timor Leste Independente (FRETILIN). De facto, oprincpio da imparcialidade derivava de uma perspectiva institucional hmuito estabelecida na ONU que permitia apenas dois tipos de autoridadesrepresentativas: governos soberanos e faces. No sentido em que no erauma entidade soberana, o CNRT foi relegado para a categoria conceptual defaco e tratado em conformidade com esse estatuto (sendo os integracio-nistas pr-Indonsia uma outra faco). O facto de que o CNRT era umacriatura distinta e requeria uma abordagem diferente no foi reconhecido16.

    Esta tendncia para procurar a imparcialidade foi igualmente influenciadapelas preocupaes de segurana do DPKO, j que desejava evitar qualquertipo de conflito com a Indonsia e, assim, considerava que tanto o CNRTcomo as Foras Armadas de Libertao Nacional de Timor Leste (FALINTIL)deveriam manter um low profile nas estruturas de governao transitrias.No caso das FALINTIL, a ideia original da UNTAET era dissolv-las, j queno se previa a criao em Timor Leste de um Estado soberano com forasarmadas, excepo dos agentes de segurana ligados polcia17. Foi tam-bm esta a perspectiva do CNRT at aos acontecimentos de Setembro de1999 e s posteriores incurses das milcias no territrio de Timor Leste,que conduziriam a uma reavaliao da questo.

    Independentemente desses acontecimentos, a UNTAET manteve a mesmaperspectiva e no permitiu que as FALINTIL participassem ao lado da suaprpria componente militar nas rondas de segurana pelo territrio (ainda que,na fase inicial da interveno, a INTERFET tivesse de facto beneficiado dasinformaes, conhecimento e conselhos gerais das FALINTIL). No obstanteo papel anterior e a legitimidade histrica das FALINTIL, as foras foramcolocadas sob acantonamento e convenientemente relegadas para uma posioperifrica at que a situao ameaou sair de controlo. Alm disso, a decisoestava tambm de acordo com os procedimentos operacionais normais doDPKO com vista a manter um certo nvel de neutralidade relativamente spartes envolvidas18. No fim de contas, o avano de indivduos e facesparticulares atravs dos mecanismos de participao constitua uma violaoda neutralidade, supostamente com repercusses futuras19.

    16 Id., ibid., p. 8.17 ONU, Report of the Secretary-General on the United Nations Transitional

    Administration in East Timor, S/2000/738, 26 de Julho de 2000, p. 8, pargrafo 58.18 Suhrke, op. cit., p. 8.19 Beauvais, op. cit., p. 1123.

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    Na ausncia de outros exemplos anteriores, a operao de manuteno dapaz mais similar que poderia funcionar como modelo a seguir era a UNMIK,de cujo quadro organizacional a UNTAET retirou considervel inspirao. Defacto, a UNTAET foi uma adaptao da UNMIK s condies de TimorLeste20. Alm disso, Srgio Vieira de Mello, o representante especial doSecretrio-Geral e administrador transitrio das Naes Unidas em TimorLeste, tinha sido interinamente o representante especial do Secretrio-Geralpara o Kosovo em Junho e Julho de 1999, local do qual trouxe consigo umaequipa de trabalho21 sem qualquer conhecimento especfico sobre o territ-rio. O facto no surpreendeu ningum, j que seguia simplesmente a prticanormal das Naes Unidas, pela qual a equipa de administrao civil []internacionalmente recrutada com escassa considerao em termos de conhe-cimento local especializado22.

    Todos os aspectos anteriormente referidos pesaram muito sobre o de-sempenho inicial da UNTAET. Contudo, o seu mandato e conceitos noselaram forosamente o destino da misso23. Se bem que nesta fase aUNTAET fosse principalmente uma operao de manuteno da paz, istopoderia ter sido superado mais cedo se a misso tivesse conseguido reagirrapidamente aos acontecimentos no territrio. No fim de contas, com achegada da INTERFET, a maior parte das milcias abandonaram TimorLeste, o que significava que as exigncias de segurana foram rapidamentesuplantadas pelas exigncias de desenvolvimento poltico e econmico empreparao para a independncia24.

    A UNTAET D INCIO TIMORIZAO DA MISSO

    A abordagem inicial da UNTAET participao dos timorenses foiestabelecer um Conselho Consultivo Nacional no eleito (NCC) a 2 deDezembro de 1999, constitudo por representantes da UNTAET e de TimorLeste. O NCC, composto por 15 membros, visava aconselhar o adminis-trador transitrio sobre todos os assuntos relacionados com o exercciodas funes executivas e legislativas do administrador transitrio, cons-tituindo ao mesmo tempo o mecanismo primrio por meio do qual osrepresentantes do povo de Timor Leste [devero] participar activamente

    20 Suhrke, op. cit., p. 7.21 Simon Chesterman, Report: East Timor in Transition: from Conflict Prevention to

    State-Building, Nova Iorque, International Peace Academy, 2001.22 Suhrke, op. cit., p. 2.23 Chesterman, op. cit., seco III.24 Id., ibid.

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    A Administrao Transitria das Naes Unidas em Timor Leste

    nos processos de deciso25. O CNRT recebeu sete lugares, ao passo que osrepresentantes de grupos polticos exteriores ao CNRT por outras palavras,os pr-integracionistas receberam trs lugares, correspondendo aproximada-mente aos 21,5% de votos obtidos na consulta popular de 199926. Um altofuncionrio da UNTAET explicou que o nmero de membros foi deliberada-mente circunscrito de modo a facilitar tomadas de deciso rpidas durante a fasede emergncia na qual [o NCC] foi estabelecido27. Esta afirmao revela apercepo da UNTAET de que a eficincia era apenas possvel mediante umcontrolo centralizado. Contudo, no inteiramente claro de que modo ummecanismo consultivo mais alargado, sem poderes substantivos, como era ocaso, poderia ter limitado a capacidade da UNTAET de tomar decises rpidas.

    Evidentemente, o NCC no era o que o CNRT tinha em mente. Algunsmeses antes, em meados de Setembro de 1999, pouco depois de ser libertadoda priso na Indonsia, o lder da resistncia de Timor Leste, Jos AlexandreXanana Gusmo, falou pela primeira vez sobre os seus planos para a admi-nistrao transitria. Xanana Gusmo esperava que os timorenses trabalhassemsob a superviso das Naes Unidas e, ao fim de um curto perodo de tempo,pudessem comear a pensar num verdadeiro governo28. O CNRT defendia oprincpio de uma participao plena e activa dos timorenses no processo detransio, de modo que esse mesmo processo e os preparativos para a inde-pendncia fossem positivos e efectivos. Com isto em mente, o CNRT criou oConselho Transitrio para trabalhar em conjunto com as Naes Unidas, alme-jando tornar-se a espinha dorsal de uma estrutura poltica dual para implemen-tar as decises durante o perodo de transio29. Contudo, as Naes Unidasignoraram as suas aspiraes. O facto explicado no s pela sua tendnciacentralizadora, como tambm pela indeciso de reconhecer o CNRT. Na pers-pectiva da ONU, a rejeio da proposta de autonomia no referendo de Agostode 1999 no constitua um voto automtico no CNRT. Assim, um reconhe-cimento precoce representaria um favoritismo poltico30. Alm disso, oCNRT era uma coligao de diferentes partidos polticos sem uma base ideo-lgica comum. O que, por sua vez, significava que a liderana do CNRT era

    25 ONU, UNTAET Regulation 2/1999, UNTAET/REG/1999/2, 2 de Dezembro de 1999.26 Alm disso, o NCC inclua o administrador transitrio, trs outros membros da

    UNTAET e um representante da Igreja catlica romana de Timor Leste.27 Beauvais, op. cit., p. 1120, entrevistando Hansjoerg Strohmeyer, antigo consultor legal

    interino da UNTAET entre Outubro de 1999 e Fevereiro de 2000 e antigo consultor legaldelegado at Junho de 2000.

    28 John Gittings, Gusmo flees to Darwin after threat, in Guardian, 20 de Setembrode 1999; v. tambm Resistance leaders call for role in interim UN body in East Timor,in Agence France-Presse, 17 de Outubro de 1999.

    29 Suhrke, op. cit., p. 9.30 Id., ibid., p. 11.

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    instvel, enquanto, ao mesmo tempo, a sociedade civil no se encontrava aindasuficientemente organizada31.

    Em Novembro e Dezembro de 1999, a UNTAET era essencialmenteuma misso humanitria de emergncia com quase 80% do seu esforo []dedicado a coordenar a distribuio de emergncia de bens alimentares ecuidados de sade bsicos e a fornecer abrigo de emergncia a centenas demilhares de pessoas internamente deslocadas e a refugiados que regressavamao territrio32. Compreensivelmente, nesses primeiros meses, menos de20% dos esforos da UNTAET foram canalizados para a preparao doterritrio para a independncia. Contudo, logo que as tradicionais funes demanuteno da paz deixaram de ser a principal prioridade e, simultaneamen-te, a liderana do CNRT e a sociedade civil comearam a estabilizar-se, aausncia de participao poltica dos timorenses tornou-se cada vez maisuma causa de descontentamento. Inevitavelmente, este sentimento seria ain-da mais exacerbado pelas dificuldades econmicas sentidas nessa altura pelapopulao.

    No discurso que proferiu no primeiro congresso do CNRT em Agosto de2000, Vieira de Mello reconheceu que se tornara claro a partir de Abril queo NCC no era satisfatrio como mecanismo de participao. Nas suas pa-lavras, o NCC no era suficientemente representativo da sociedade deTimor Leste nem suficientemente transparente nas suas deliberaes33. Defacto, as insuficincias do NCC eram apenas a ponta do icebergue. Umpouco antes, em Maro de 2000, Jarat Chopra demitira-se das suas funesde um modo bastante visvel, argumentando que a misso carecia de umaseparao judiciosa de poderes e [] de uma genuna responsabilidade paracom a populao local, qual serve34. Sob presso, em Abril de 2000,Vieira de Mello assinou uma instruo para o estabelecimento de conselhosdistritais (DACs). Os DACs eram corpos consultivos criados com o prop-sito de representarem os interesses da populao timorense e aconselharemo administrador distrital de cada um dos 13 distritos. Uma vez mais, semelhana do NCC, os DACs integravam timorenses, bem como represen-tantes da UNTAET. Enquanto isso, a presso dos timorenses continuava aaumentar. Em Maio, durante uma reunio com o Secretrio-Geral da ONU,Kofi Annan, o vice-presidente do CNRT e co-laureado do Nobel da Paz de

    31 Beauvais, op. cit., p. 1120, entrevistando Strohmeyer.32 Cedric de Coning, The UN Transitional Administration in East Timor (UNTAET):

    lessons learned from the first 100 days, in International Peacekeeping (Kluwer), 6, n.os 2--3, Maro-Junho de 2000, p. 85.

    33 Near verbatim transcript of the address of SRSG Srgio Vieira de Mello, at the 1stCNRT Congress, in UNTAET Daily Briefing, 21 de Agosto de 2000.

    34 Chopra, op. cit., p. 27.

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    A Administrao Transitria das Naes Unidas em Timor Leste

    1996, Jos Ramos Horta, exigiu a remoo de todos os administradoresdistritais e a sua substituio por lderes locais, bem como o estabelecimentode uma data para a partida da ONU35.

    Finalmente, em Julho de 2000, a UNTAET tomou duas importantes deci-ses polticas com vista participao directa dos timorenses, conhecida comoa timorizao. A primeira deciso dizia respeito ao NCC. Por essa altura erabvia a necessidade de uma nova instituio poltica com um nmero alargadode membros que pudesse ser mais representativa e facilitar uma participaomais ampla dos timorenses na tomada de decises polticas. Respondendo aesta exigncia, a UNTAET substituiu o NCC por um novo Conselho Nacional,composto por representantes de organizaes relevantes da sociedade civil deTimor Leste [] como um frum para todos os assuntos legislativos relacio-nados com o exerccio da autoridade legislativa do administrador transitrio36.O Conselho Nacional integrava 33 elementos (mais tarde passariam a ser 36),que representavam uma ampla variedade de interesses: sete representantes doCNRT e trs de partidos polticos exteriores ao mesmo, bem como um repre-sentante de cada um dos 13 distritos do territrio e outro de organizaes deestudantes/juventude, organizaes no governamentais, organizaes de mu-lheres, associaes profissionais, organizaes econmicas, a comunidadeagrcola, organizaes sindicais, a Igreja catlica romana, as denominaes daIgreja protestante e a comunidade muulmana. Ao contrrio do NCC, o Con-selho Nacional no inclua membros no timorenses. semelhana do NCC,era um corpo no eleito. Assim, do ponto de vista dos timorenses, emborafosse um rgo mais representativo e pudesse facilitar a sua participao noprocesso de transio, o Conselho Nacional continuava a ser uma soluoinsatisfatria.

    Do ponto de vista dos timorenses, o segundo passo foi mais importantedo que o da criao do Conselho Nacional. Contrariando marcadamente aabordagem inicial, a UNTAET decidiu reorganizar-se de modo a aumentara participao directa dos timorenses. O pilar de governao e administra-o pblica da UNTAET deu lugar Administrao Transitria de TimorLeste (ETTA), administrada pelos membros do novo governo transitrio.O novo e primeiro governo integrava oito (mais tarde seriam nove)ministrios: quatro deles foram confiados a timorenses e os outros quatroa altos funcionrios da UNTAET. Enquanto ministros, estes indivduoseram responsveis pela formulao de polticas e pela recomendao deregulamentos e directivas a serem consideradas pelo Conselho Nacional, aopasso que Vieira de Mello, enquanto presidente do governo, retinha plenaresponsabilidade, de acordo com a Resoluo n. 1272 do Conselho de Segu-

    35 Id., ibid., p. 33.36 ONU, UNTAET Regulation 24/2000, UNTAET/REG/2000/24, 14 de Julho de 2000.

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    rana. Na opinio de Ramos Horta, esta reestruturao respondia plenamentes expectativas e preocupaes dos timorenses. E isto porque, segundoafirmou, os timorenses tornavam-se, finalmente, parceiros da UNTAET,com plenos poderes, conjuntamente responsveis pela governao do pas epela preparao da transio para a independncia37.

    Contudo, a satisfao dos timorenses foi de pouca dura. Xanana Gusmoem breve criticava a UNTAET pela lentido da timorizao do processo.Os funcionrios estrangeiros continuavam a dominar, embora houvesse pas-tas ministeriais, bem como funes administrativas, sob a responsabilidadepoltica de elementos timorenses. Em Dezembro de 2000, os membrostimorenses do governo transitrio ameaaram demitir-se caso a UNTAETno lhes concedesse um maior grau de autoridade. Mais do que qualqueroutro, este episdio demonstrou a insatisfao dos timorenses perante umprocesso de timorizao que era principalmente uma questo de cosmtica.No fim de contas, o poder poltico continuava concentrado nas mos daUNTAET. O ressentimento dos timorenses era ainda agravado pelo elevadonvel do desemprego e pelo padro de vida comparativamente elevado dosfuncionrios estrangeiros da UNTAET. A populao de Timor Leste tantoa elite como as massas entendia cada vez mais como ilegtima e abaixodas suas expectativas a operao de construo de Estados da UNTAET.A UNTAET no conseguira dar elite acesso ao poder, alm de se revelarincapaz de melhorar as condies de vida da populao geral. Sob a pressointerna e as rivalidades interpartidrias, a elite de Timor Leste defendia queas eleies democrticas deviam ter lugar em 2001.

    A ESTRATGIA DE SADA E ENTREGA DE PODER DA UNTAET

    A posio assumida por Aniceto Guterres Lopes, membro do ConselhoNacional, director da bem conhecida ONG humanitria timorense YayasanHAK e mais tarde presidente da Comisso para o Acolhimento, Verdade eReconciliao (CAVR), foi um bom exemplo do estado de esprito geral. EmDezembro de 2000, Guterres Lopes estava convicto de que a fase de tran-sio da ONU durava h demasiado tempo, no era eficiente nem popular edevia ser rapidamente concluda38. Ao fim de mais de um ano desde oincio das operaes da UNTAET, o sentimento geral da populao era deque pouca reconstruo tinha ocorrido e no tinham sido criadas quaisquernovas empresas. A taxa de desemprego atingia os 80% e os nicos empre-

    37 Ramos Horta welcomes approval of transition cabinet, in Lusa, 12 de Julho de 2000.38 Mark Dodd, Newest nation gets ready for tricky birth, in Sydney Morning Herald,

    13 de Dezembro de 2000.

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    A Administrao Transitria das Naes Unidas em Timor Leste

    gos disponveis eram na UNTAET, a troco de um salrio dirio de 5 dlaresamericanos para os habitantes locais. Gradualmente, a elite timorense chegoua um crescente consenso de que era necessrio instituir a independncia todepressa quanto poltica e tecnicamente possvel. O sentimento geral era o deque a UNTAET no conseguira proporcionar uma governao aceitvel e quea populao acabaria por responsabiliz-los por isso. Assim, a 22 de Fevereirode 2001, o Conselho Nacional aprovou um conjunto de recomendaes sobrea transio poltica avanado pela Comisso Permanente para os AssuntosPolticos do Conselho. As recomendaes exigiam a eleio de uma Assem-bleia Constituinte de 88 membros em 30 de Agosto de 2001, cujo principalobjectivo era a redaco de uma nova constituio. Alm disso, com a inde-pendncia, a Assembleia Constituinte tornar-se-ia o novo parlamento39.

    Num certo sentido, a UNTAET tinha perdido o controlo da situao,ainda que existisse desde o incio uma clara noo e expectativa no Conselhode Segurana e Secretariado da ONU de que a misso duraria apenas doisou trs anos. No obstante, at ao momento a UNTAET tinha conseguidocontrolar, e deflectir, as exigncias dos timorenses de uma maior participa-o no processo de transio. A partir de ento, a principal preocupao daUNTAET seria a sua estratgia de sada e, consequentemente, a operao deconstruo de Estados foi sendo cada vez mais limitada aos procedimentosde transio para a democracia e a liberdade.

    A 16 de Maro de 2001 foi promulgado o regulamento para a eleio deuma Assembleia Constituinte de 88 membros. Uma vez que muitos membrosdo Conselho Nacional se candidataram Assembleia Constituinte, a UNTAETdecidiu que o Conselho devia ser dissolvido antes do incio do perodo decampanha oficial um acontecimento que teve lugar a 14 de Julho de 2001.Como recomendado, as eleies celebraram-se a 30 de Agosto, e a ComissoEleitoral Independente autorizou a participao de 16 partidos polticos. Deacordo com os nmeros oficiais, 91,3% dos eleitores exerceram o seu direitode voto. Com 57,3% dos votos, a FRETILIN foi a vencedora.

    A 20 de Setembro de 2001, ao fim de diversos dias de tenso poltica40,e contra os desejos de Xanana Gusmo e de Vieira de Mello, a UNTAETnomeou um governo inteiramente controlado pela FRETILIN. Um outroaspecto igualmente importante foi que a maioria da FRETILIN na AssembleiaConstituinte em coligao com a Associao Social DemocrticaTimorense (ASDT) deu-lhe o direito de redigir a constituio sem ter detomar em considerao os interesses de outros partidos polticos. Por outras

    39 Recommendation for political transition approved, in UN Daily Press Briefing, 22de Fevereiro de 2001.

    40 Paulo Gorjo, Dj un risque de crise politique, in Libre Belgique, 30 de Agosto de2001.

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    palavras, foi a Assembleia Constituinte, sob o controlo da FRETILIN, quedecidiu a diviso do poder poltico entre as diferentes instituies. Uma vezque a FRETILIN controlava a Assembleia Constituinte e era plausvelesperar que no pudesse controlar tambm a Presidncia , o partido de-cidiu esboar uma constituio semelhante de Portugal, onde o poderexecutivo exercido pelo primeiro-ministro, e no pelo presidente da Rep-blica. A 22 de Maro de 2002, depois de diversos adiamentos, a AssembleiaConstituinte aprovou a primeira Constituio do territrio. O facto de 72 dos88 membros da Assembleia Constituinte terem votado a favor da Constitui-o proposta com apenas 14 votos contra, uma absteno e um ausen-te sugere um quadro ilusrio de ampla legitimidade.

    Do ponto de vista da transio para a democracia, restava apenas umaquesto, uma vez que em Outubro de 2001 o Conselho de Segurana daONU tinha j sancionado a proposta da Assembleia Constituinte de que aindependncia deveria ter lugar a 20 de Maio de 2002. Este ltimo passoocorreu a 14 de Abril de 2002 com a eleio presidencial. Depois de diversosmeses a afirmar publicamente que no tinha intenes de se candidatar apresidente de Timor Leste, Xanana Gusmo acabou por decidir faz-lo. Estadeciso foi considerada inevitvel por alguns e inesperada por outros. Dequalquer modo, os resultados eleitorais no surpreenderam ningum. Deacordo com os nmeros oficiais, 86,3% do eleitorado participou nas eleiese, recolhendo 82,6% dos votos, Xanana Gusmo foi o esperado vencedor.Ironicamente, como se explicar mais abaixo, a eleio de Gusmo, em vez deconstituir uma garantia de estabilidade poltica, ser, provavelmente, uma fonteadicional de conflito poltico. A gravidade do conflito poltico entre Gusmoe o primeiro-ministro da FRETILIN, Mar Alkatiri, est ainda por apurar. Sebem que os poderes do presidente sejam principalmente simblicos, de acordocom o artigo 86 da Constituio, Xanana Gusmo pode dissolver o parlamentoe demitir o governo sob certas circunstncias especficas.

    De facto, parecem existir significativas diferenas polticas entre as visesdo futuro de Xanana Gusmo e Mar Alkatiri. Como salienta o editorial de umjornal, Xanana Gusmo quer criar um governo de unidade nacional quepartilhe o poder com os pequenos partidos, enquanto processo que visa aju-dar a facilitar a reconciliao e a construo de uma verdadeira identidadenacional41. Por outro lado, Alkatiri e os seus apoiantes acreditam que achave para o futuro um governo firme, quase de partido nico. Querem umfirme controlo sobre o parlamento e o governo e um mnimo de debate, quetemem poder paralisar o governo.42 Como se explicar mais abaixo, este

    41 Mr. Gusmaos next fight, in Japan Times, 23 de Abril de 2001.42 Dan Murphy, East Timor president faces first challenge: parliament, in Christian

    Science Monitor, 19 de Abril de 2002.

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    A Administrao Transitria das Naes Unidas em Timor Leste

    impasse resultou parcialmente da sano da UNTAET de um percurso queconduziria ao controlo da Assembleia Constituinte por parte da FRETILIN,bem como a uma constituio inteiramente de acordo com os desejos destepartido.

    O LEGADO DA UNTAET

    A ONU no poderia ter encontrado melhor terreno para um test case.Contudo, no possvel afirmar que os resultados da experincia tenhamsido inteiramente satisfatrios. No obstante a enorme dimenso dos desafiose as limitaes de oramento, o processo de transio deveria ter apresentadomelhores resultados. Assim, a declarao de independncia de Timor Lestede 20 de Maio de 2002 no significou que a UNTAET tenha realizadointeiramente os objectivos inicialmente estabelecidos pela Resoluo n. 1272do Conselho de Segurana.

    Ainda que a UNTAET tenha proporcionado segurana e mantido a lei ea ordem, estabelecido uma administrao, ajudado ao desenvolvimento dosservios civis e sociais, garantido a coordenao e distribuio de ajudahumanitria, de reabilitao e desenvolvimento, apoiado a formao de capa-cidade para o autogoverno e ajudado ao estabelecimento de condies parao desenvolvimento sustentado, muito mais poderia ter sido feito, mais cedoe melhor, especialmente no que diz respeito ao desenvolvimento de servioscivis e sociais, ao apoio da formao de capacidade para o autogoverno e criao de condies para o desenvolvimento sustentvel.

    Nos primeiros meses, e apesar das significativas dificuldades logsticas, aUNTAET garantiu com xito a coordenao e prestao de ajuda humanitria.Esta era uma das componentes clssicas das misses de manuteno da paz.A outra era garantir a segurana do territrio e, de facto, Timor Lesteapresentava um ambiente muito mais estvel aquando da sada da UNTAET,ainda que os louros devam ser partilhados com a INTERFET. Contudo, nomomento em que a UNTAET foi estabelecida, a segurana externa e a inte-gridade territorial continuavam a ser uma grande causa de preocupao devidoaos ataques desestabilizadores perpetrados por membros das antigas milciaspr-autonomia ao longo da fronteira. No obstante a segurana estvel alcan-ada no territrio, continua a pensar-se que as milcias mais radicais possamcontinuar a constituir no futuro uma ameaa ao novo Estado soberano43. Defacto, as contnuas necessidades de Timor Leste em termos de administraopblica, lei e ordem e segurana externa levaram a ONU a criar uma Missode Apoio em Timor Leste (UNMISET) ps-independncia.

    43 ONU, Report of the Secretary-General on the United Nations Transitional Adminis-tration in East Timor, S/2002/80, 17 de Janeiro de 2002, p. 4, pargrafo 29.

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    O prprio Vieira de Mello reconheceu que a UNTAET no foi capaz deconcluir as tarefas [] estabelecidas pelo Conselho de Segurana daONU44. Por outras palavras, muito mais deveria ter sido feito. E estecarcter incompleto da misso foi uma consequncia directa no s datendncia centralizadora da UNTAET, mas tambm da sua falta de legitimi-dade poltica para avanar com decises essenciais.

    Se bem que a UNTAET tenha de facto imposto o primado da lei, noproporcionou a percepo de fazer justia relativamente s violaes dosdireitos humanos cometidas durante 1999. A justia sempre uma questoproeminente na agenda poltica das transies para a democracia, especial-mente se as violaes dos direitos humanos esto ainda frescas na memria,como o caso em Timor Leste. A UNTAET abandonou o territrio compoucos juzes, defensores pblicos e promotores de justia experientes eformados, bem como com limitados servios de apoio aos tribunais.

    No que diz respeito justia, a insuficincia das realizaes da UNTAETresultou tambm da obstruo indonsia, particularmente no que diz respeitoaos crimes graves cometidos no territrio. As foras militares indonsias eos lderes timorenses das milcias responsveis pela vaga de violncia deSetembro de 1999 abandonaram o territrio antes da chegada da INTERFETe da UNTAET. Em consequncia, estavam para l do alcance das actividadesjudiciais da UNTAET. Assim, o cumprimento da justia relativamente aosacontecimentos em Timor Leste estava dependente da Indonsia, que desdeento tem avanado para esse objectivo muito lentamente45.

    A justia tambm no foi feita em relao aos pequenos crimes. Confron-tada com uma enorme quantidade de crimes menores, a UNTAET no teveoutra alternativa se no considerar uma amnistia dentro do contexto daCAVR. Alm disso, a reconciliao intratimorense outra importante questono resolvida que a UNTAET deixou como legado futura agenda polticado territrio. Usando a Comisso para a Verdade e Reconciliao na fricado Sul como modelo, Timor Leste estabeleceu uma CAVR, que s agora esta dar os primeiros passos46. A ideia de estabelecimento de uma CAVRrevelar-se-, no final, um fracasso. Timor Leste no possui a necessriamassa crtica, uma sociedade civil desenvolvida e meios de comunicaofortes e independentes todos eles fundamentais para o sucesso de qual-quer comisso para a verdade e reconciliao. Alm disso, depois da inequ-

    44 Srgio Vieira de Mello, Here is a big day for East Timor, in International HeraldTribune, 29 de Agosto de 2001.

    45 V. Kumiko Mizuno, Indonesian politics and the issue of justice in East Timor, in HadiSoesastro, Anthony L. Smith e Han Mui Ling (eds.), Governance in Indonesia: ChallengesFacing the Megawati Presidency, ISEAS, Singapura, pp. 114-164.

    46 Paulo Gorjo, The East Timorese Commission for Recepcion, Truth and Reconciliation:chronicle of a foretold failure?, in Civil Wars, 4, n. 2, Vero de 2001, pp. 142-162.

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    voca vitria dos apoiantes da independncia na consulta popular de 1999, oequilbrio de poder que emergiu no territrio deixou pouco espao para ocompromisso no que diz respeito aos responsveis pelos crimes graves.Acresce que alguns dos elementos da elite de Timor Leste j expressaramdvidas sobre a sua verdadeira utilidade.

    Timor Leste ter tambm de concluir o processo do regresso dos refugiadosde Timor Ocidental. Em dois anos e meio, a UNTAET mostrou-se incapaz deo completar e h ainda muitos refugiados no outro lado da fronteira. As auto-ridades polticas de Timor Leste tero de continuar a encorajar, monitorar eproteger o regresso desses grupos e, simultaneamente, a empreender os esforosnecessrios para convencerem a populao a deixar de hostilizar os suspeitos deenvolvimento nos antigos grupos polticos e milcias pr-autonomia.

    Por outro lado, a UNTAET no tratou do futuro das FALINTIL at essaquesto se tornar incontornvel. De facto, a UNTAET no sabia o que fazercom as FALINTIL47. S em Maro de 2000, num momento em que aindisciplina dentro das FALINTIL constitua j um potencial risco de seguran-a, a UNTAET decidiu, por fim, estabelecer um grupo de estudo para resolvera questo. Foi necessrio esperar at Junho de 2000 para que a UNTAETordenasse um estudo para avaliar as necessidades dos timorenses em termos desegurana e defesa48, e s em Setembro de 2000 decidiu estabelecer a Forade Defesa de Timor Leste (FDTL). Em Novembro de 2000, a Austrlia ePortugal assumiram a responsabilidade da instruo e armamento iniciais daFDTL. Entretanto, contudo, a UNTAET tinha perdido um ano.

    A 31 de Janeiro de 2001, a UNTAET emitiu um regulamento autorizandoo estabelecimento da FDTL. O facto particularmente significativo, j que aONU jamais se envolvera anteriormente no desenvolvimento de uma fora dedefesa de uma nao49. Contudo, a Austrlia e Portugal assumiram apenas aresponsabilidade de instruir e equipar um batalho de infantaria at indepen-dncia do territrio. Em consequncia da incapacidade da UNTAET para tratarmais cedo desta questo, sem bem que tenha sido planeado fazer da FDTLuma fora de infantaria ligeira de 1500 efectivos, continuava ainda a sernecessrio recrutar e instruir cerca de dois teros do pessoal.

    A UNTAET foi tambm responsvel pela manuteno da lei e da ordem.Como se j referiu, a UNTAET no previra que o Estado soberano de Timor

    47 La creation de ladministration et des institutions du Timor Oriental: le role desNations Unies, artigo indito apresentado em 16 de Maio de 2002 na conferncia The UNin East Timor: lessons learned, organizada pelo Pearson Peacekeeping Center, Montreal,Canad, por Jean-Christian Cady, ex-delegado especial do Secretrio-Geral das Naes Unidasem Timor Leste e ex-administrador transitrio delegado.

    48 Este estudo foi coordenado por Nicola Dahrendorf (v. Independent Study on SecurityForce Options for East Timor, Londres, Kings College, 2000).

    49 James Fox, Recent security developments in East Timor, in AUS-CSCAP Newsletter,n. 12, Novembro de 2001, p. 7.

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    Leste dispusesse de foras armadas. Na concepo inicial haveria apenaspessoal de segurana associado polcia, uma fora semelhante gendarmerie francesa. Assim, estabeleceram-se planos de recrutamentopara uma fora de 3000 agentes de polcia e no incio de 2000 fundou-seum Colgio da Polcia para proporcionar aos recrutas (inicialmente, 50 ele-mentos de cada vez) uma rpida instruo de trs meses50. Os primeirosagentes do Servio de Polcia de Timor Leste (SPTL) completaram a instru-o em Junho de 2000 e em Setembro de 2001 existiam j mais que 1000agentes locais. Contudo, os nmeros projectados no tinham sido alcanadospela altura da independncia e, tendo em conta a existncia da FDTL, atquestionvel que tal nmero continue a fazer sentido.

    Alm disso, o territrio regista uma taxa de criminalidade baixa, circuns-tncia que poder ter contribudo para a limitada ateno que se dedicou aodesenvolvimento e reforo do SPTL. De facto, a UNTAET deixou o SPTLcom um srio problema de falta de recursos. Tendo em conta que a taxa decriminalidade reduzida, mas a populao prisional tem de qualquer modocontinuado a aumentar, o novo Estado soberano ter de disponibilizar ime-diatamente fundos considerveis para o SPTL, de modo que alcance ummelhor nvel operacional.

    A transio pacfica para a democracia de Timor Leste foi entendidacomo um grande feito. De facto, foi um notvel sucesso. Sob a supervisoda UNTAET, os timorenses elegeram serenamente uma Assembleia Consti-tuinte em 2001, redigiram uma Constituio e elegeram um presidente emAbril de 2002. Contudo, o potencial para conflitos polticos (talvez violen-tos) permanece sob a superfcie. As srias divergncias pessoais e polticasentre o primeiro-ministro Mar Alkatiri e o presidente Xanana Gusmo soum segredo bastante pblico. O facto de a Constituio ter sido redigidaapenas pela FRETILIN significa que, mais cedo ou mais tarde, a legitimida-de do documento ser posta em causa. Teria sido possvel encontrar ummelhor processo para a produo da Constituio atravs de uma comis-so constitucional no eleita, com ampla representao e integrando elemen-tos no partidrios, que traasse uma constituio com ampla legitimidade eposteriormente ratificada por meio de um referendo. Alternativamente, etendo em conta as limitaes de tempo no perodo anterior independncia,poderia ter-se aprovado uma constituio interina. Isto, por seu turno, teriaevitado a mal acolhida transformao, sem a existncia de novas eleies, daAssembleia Constituinte no primeiro parlamento de Timor Leste51.

    O apoio popular ao acto democrtico da eleio dos seus prprios repre-sentantes teve lugar entre enormes expectativas de melhoria das condies

    50 Id., ibid., p. 8.51 Devo esta informao a uma fonte confidencial (comunicao pessoal por e-mail em

    Abril de 2002).

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    A Administrao Transitria das Naes Unidas em Timor Leste

    de vida. A UNTAET revelou-se incapaz de as concretizar. Em primeirolugar, e inevitavelmente, o complexo processo de negociao com a Austrliarespeitante aos campos do petrleo e gs no partilhado mar de Timor levouo seu tempo. Alm disso, negociaes adicionais com as companhias depetrleo e gs levaram a que, no curto prazo, o territrio continue a noretirar rendimento destes recursos naturais. Simultaneamente, o investimentoeconmico no territrio continua a ser gravemente bloqueado devido inca-pacidade de resolver a ausncia de registos de terrenos e propriedades,destrudos durante os motins de Setembro de 1999. Quanto a este problema,a responsabilidade deve ser partilhada pela UNTAET e pelos timorenses. Jem Abril de 2000, se no mesmo antes, Vieira de Mello estava plenamenteciente de que a aquisio de terrenos era um pesadelo, j que ningum sabiaquem possua o qu e a situao criava dificuldades adicionais atraco deinvestimento estrangeiro52. Implcita estava a ideia de que, quanto mais cedohouvesse certezas sobre os terrenos e as propriedades, mais cedo se alcan-aria a estabilidade econmica e a oportunidade de criao de empregos. Naausncia de leis de propriedade claras, os investidores mostram-se relutantesem investir dinheiro em projectos de longo prazo. Vieira de Mello estavaconsciente do problema e referiu-o diversas vezes. Quem investir emTimor Leste se somos incapazes de fornecer garantias de que o terreno onde[os investidores] estabelecero as suas sedes e negcios lhes pertence, oupode ser-lhes arrendado por um perodo de tempo aceitvel?, declarouVieira de Mello em Julho de 200053.

    Perante ttulos de propriedade portugueses e indonsios contraditrios54,a Unidade do Territrio e da Propriedade da UNTAET procurou resolver rapi-damente o problema. Inevitavelmente, os seus esforos entraram em choquecom os interesses locais, nomeadamente da famlia Carrascalo. Em Dezem-bro de 2000, as ameaas de resignao por parte dos quatro membrostimorenses do governo transitrio foram igualmente motivadas pelo facto dea UNTAET considerar apenas as escrituras de propriedade posteriores ocupao indonsia, e no as da era colonial portuguesa. Uma vez que afamlia Carrascalo acumulara considerveis bens de raiz sob a administraoportuguesa, uma tal deciso constitua uma ameaa potencial aos seus interes-ses. Na altura, alguns jornalistas timorenses declararam que as ameaas de

    52 UNTAET wants to restore land ownership records in East Timor, in Bernama, 26de Abril de 2000.

    53 Daniel Cooney, Messy land disputes hampering East Timors development,Associated Press, 16 de Julho de 2000.

    54 V. Daniel Fitzpatrick, Re-establishing land titles and administration in East Timor,in Pacific Economic Bulletin, 15, n. 2, Novembro de 2000, pp. 152-160, Land issues ina newly independent East Timor, in Hal Hill e Joo Mariano Saldanha (eds.), East Timor:Development Challenges for the Worlds Newest Nation, ISEAS, Singapura, 2001, pp. 177--192, e Land Claims in East Timor, Canberra, Asian Pacific Press (a publicar).

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    resignao foram orquestradas por [] Joo Carrascalo, o qual [tinha]afirmado recentemente Rdio UNTAET que abandonaria [o governo tran-sitrio] se a direco da importante Unidade do Territrio e da Propriedade[] no fosse transferida para o seu ministrio55. Alguns dias depois, ogoverno transitrio aprovou a resoluo que entregava a Unidade do Terri-trio e da Propriedade da UNTAET a Joo Carrascalo e, mais tarde, deci-diu-se que a soluo para o problema s seria procurada depois da indepen-dncia do territrio.

    Em suma, no que diz respeito aos registos de terrenos e propriedades, aUNTAET no mostrou vontade poltica de resolver o problema, enquanto, simul-taneamente, os prprios lderes timorenses tambm contriburam de modo sig-nificativo para o adiamento de uma soluo. Em consequncia, o governo donovo Estado soberano de Timor Leste ter de resolver o problema o maisdepressa possvel, de modo a criar condies atractivas para os investidoresestrangeiros. De outro modo, se o regime democrtico no conseguir promovera prosperidade econmica nos anos mais prximos, provvel que a legitimidadeda democracia sofra uma rpida eroso. O desenvolvimento econmico contri-bui para a estabilidade poltica, assim como depende da mesma.

    De modo a conseguir alcanar a prosperidade econmica, Timor Lesteter de continuar a procurar o seu lugar no Sudeste asitico e no mundo.Multilateralmente, Timor Leste tenta agora obter o estatuto de observadorformal na Associao das Naes do Sudeste Asitico (ASEAN), noobstante a declarada oposio da Birmnia. Bilateralmente, no futuro prxi-mo, a Austrlia, a Indonsia e Portugal sero as trs mais importantes rela-es do novo Estado, enquanto os Estados Unidos e o Japo adquirirotambm uma grande importncia56. Compreensivelmente, a relao com aIndonsia , e continuar a ser, uma causa de muita irritao. As indecisesquanto participao da presidente da Indonsia, Megawati Sukarnoputri, nacelebrao da independncia do territrio foram bastante reveladoras.

    AS LIES DA UNTAET

    Embora tendo em conta que a situao de Timor Leste [era] to es-pecial que as lies a retirar dela podem ser de facto bastante limitadas, ,ainda assim, possvel chegar a algumas concluses preliminares57. plau-

    55 Kate Marshall, Timor struggles to build freedom, in Australian Financial Review,14 de Dezembro de 2000.

    56 V. os captulos sobre a Austrlia (James Cotton), a Indonsia (Kumiko Mizuno), o Japo(David Walton), Portugal (Paulo Gorjo) e os Estados Unidos (Joe Nevins) in Paulo Gorjo(ed.), Double Transition in East Timor: Consolidation of Sovereignty and Democracy, ISEAS,Singapura (a publicar).

    57 A model of nation-building?, in Economist Global Agenda, 18 de Abril de 2002.http://www.economist.com/agenda/displayStory.cfm?story_id=1090589.

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    A Administrao Transitria das Naes Unidas em Timor Leste

    svel defender que a UNTAET enfrentou dois tipos principais de dificuldadesque interagiram durante o seu perodo de governao. Um desses problemasera a ineficincia. Como explicmos e mostrmos anteriormente, devido aosseus mtodos de planeamento, procedimentos e pressupostos inadequados,a misso comeou com o p errado. Posteriormente, depois de realizadasalgumas correces, a eficincia da UNTAET aumentou. Por outro lado, aUNTAET poderia ter sido mais eficiente se tivesse contado com uma equipaadequadamente capacitada e munida dos recursos necessrios. A conclusobvia que, no futuro, as Naes Unidas tero de repensar os seus mtodosde planeamento, procedimentos e pressupostos e de proporcionar s suasmisses o pessoal e recursos necessrios.

    O outro problema foi a dificuldade no estabelecimento de um nvel acei-tvel de responsabilidade. Como fez notar Richard Caplan:

    Os administradores transitrios [TAs] e as suas equipas servem osinteresses destes corpos [neste caso, a ONU] e a esses que prestamcontas e perante os quais respondem. Se bem que os partidos locaistambm possam ter de prestar contas a corpos internacionais [] taiscorpos no so directamente responsveis perante a populao local58.

    A UNTAET tentou resolver esta questo adoptando um modelo de co--governao, mas no final encontrou apenas um soluo interina de curtoprazo. O facto, por sua vez, est relacionado com a questo da legitimidade.A legitimidade legal das misses de construo de Estados das NaesUnidas advm das resolues do Conselho de Segurana da ONU que assustentam. Obviamente, a legitimidade legal totalmente diferente da legiti-midade poltica, a qual, em circunstncias normais, alcanada por meio deeleies democrticas.

    Por conseguinte, e uma vez que as misses de construo de Estados daONU no se submetem ao teste das eleies democrticas de modo a obte-rem legitimidade poltica, a experincia da UNTAET sugere que, emboraseja possvel superar inteiramente o primeiro problema, o segundo s podeser atenuado. Como se mostrar mais frente, esta lio apresenta implica-es significativas para a questo de ser ou no adequado que as NaesUnidas se envolvam de todo em tais operaes.

    A maioria dos estudos anteriores sobre o governo da UNTAET no focoua questo da legitimidade. Alguns centraram-se nos aspectos mais negativos,de modo a sugerirem melhoramentos relativamente eficincia em situaesfuturas similares. Esta abordagem negligencia o papel central da responsa-

    58 Richard Caplan, A new trusteeship? The international administration of war-tornterritories, in Adelphi Paper, 341, Fevereiro de 2002, p. 58.

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    bilidade e legitimidade no sucesso ou fracasso global das operaes de cons-truo de Estados da ONU. Contudo, a responsabilidade e a legitimidadelimitam a eficincia. Assim, no longo prazo, se as faltas de responsabilidadee legitimidade poltica no forem resolvidas, nenhuma delas conduzir eficincia. plausvel argumentar que a percepo contrria uma iluso.

    No obstante, isto no significa que, no futuro, as misses de construode Estados da ONU no devam tentar melhorar a sua eficincia. De facto,se outras misses similares tiverem lugar nos prximos anos, muitas daslies sugeridas noutros artigos so razoveis e parecem ser necessrias,embora paream por vezes contraditrias e irreconciliveis. Aquilo que opresente artigo, e esta seco em particular, desejam enfatizar que nenhumdos melhoramentos prticos sugeridos at ao momento para diminuir a ine-ficincia dos mtodos de planeamento, procedimentos e pressupostos resol-ver o dfice de responsabilidade e a falta de legitimidade poltica.

    Astri Suhrke, por exemplo, sugere que as futuras misses de construode Estados devero ser divididas em duas estruturas: uma de ajuda humani-tria e manuteno da paz e outra de governao. A tendncia actual, porm,vai na direco oposta, rumo a misses integradas59. O modo de inter-relaodas duas estruturas outra das questes que a autora levanta sem apresentarqualquer resposta60. Ainda assim, e at certo ponto, provvel que a divisodas misses contribusse para um aumento de eficincia das mesmas, emboraa questo das misses divididas ou integradas seja irrelevante, tendo emconta o seu dfice de responsabilidade e ausncia de legitimidade poltica.

    Joel Beauvais faz notar que a utilizao do modelo do conselho consultivo apropriada apenas numa fase de emergncia de muito curto prazo, imedia-tamente a seguir interveno ps-conflito, e que uma transio precocepara uma forma de participao mais ampla e profunda, como o modelo deco-governao da UNTAET, fortemente recomendada61. No final, arelevncia desta alterao tambm apontada de modo algo contraditrio peloautor quando afirma que, reconhecidamente, o modelo de co-governao noresolve inteiramente os problemas fundamentais dos corpos consultivos noeleitos, ainda que o considere o melhor equilbrio possvel62.

    Um outro investigador, Boris Kondoch, conclui que a populao localdever ser consultada desde o incio [] Dever ser atribudo menos poderao administrador transitrio e instalado um sistema mais sofisticado de ve-rificaes e equilbrios63. Contudo, embora enfatize o problema do dfice

    59 Suhrke, op. cit., p. 18.60 Id., ibid.61 Beauvais, op. cit., pp. 1133-1134.62 Id., ibid., p. 1136.63 Kondoch, op. cit., p. 265.

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    A Administrao Transitria das Naes Unidas em Timor Leste

    de responsabilidade, Kondoch no mostra de que modo um diferente sistemade verificaes e equilbrios poder resolver a falta de legitimidade poltica.

    Relativamente eficincia, Jarat Chopra chega seguinte concluso:Talvez as misses de coligao levadas a cabo por pases individuais pos-sam revelar-se mais eficientes em termos de governao temporria. Con-tudo, o autor no deixa de admitir que tais misses podem ser criticadasenquanto veculos para naes individuais que procuram hegemonia regio-nal64. No que diz respeito ao dfice de responsabilidade, Chopra acreditaque poderia ter sido resolvido se a UNTAET tivesse feito um esforo con-certado no sentido de preparar os timorenses por meio de exemplos, bemcomo de prescries, para um governo representativo slido65. Evidente-mente, isto poderia ter apaziguado os timorenses por algum tempo. Contudo,no longo prazo, no resolveria a falta de legitimidade poltica.

    Simon Chesterman no ignora o facto de que a UNTAET dificilmentepode afirmar possuir legitimidade democrtica [] Nem ele [Vieira de Mello]nem a sua equipa so directamente responsveis perante a populao deTimor [Leste].66 Mesmo assim, o autor mostra-se mais preocupado coma eficincia do que com a legitimidade no seu trabalho. Desse modo, man-tendo em mente a eficincia, Chesterman sugere na concluso que as ope-raes de construo de Estados das Naes Unidas devero ter uma metapoltica clara, tempo de planificao e um mandato flexvel67.

    As administraes transitrias internacionais esto inscritas num parado-xo. Por um lado, tm uma enorme influncia no que concerne s decisespolticas a serem tomadas durante a transio para a democracia e/ou aindependncia. De facto, podem exercer uma forte influncia no que dizrespeito ao quadro constitucional e ao sistema poltico futuros, ao tratamentodas anteriores violaes dos direitos humanos, natureza da economia, aopapel da burocracia, configurao das foras armadas e ao futuro lugar ealianas internacionais do Estado dentro do sistema internacional68. Por outrolado, contudo, a falta de um mandato democrtico at celebrao deeleies livres e instituio de um governo mandatado pelo povo limitasignificativamente o seu poder poltico. De facto, a sua falta de legitimida-de encontra-se inerente no rtulo provisrio ou interino, que indica umaconscincia de que a sua autoridade transitria69.

    64 Chopra, op. cit., p. 35.65 Id., ibid., p. 36.66 Chesterman, op. cit., seco III.67 Id., ibid.68 Yossi Shain e Juan J. Linz, Between States: Interim Governments and Democratic

    Transitions, Cambridge, Cambridge University Press, 1995, p. 4.69 Id., ibid.

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    Esta ausncia de legitimidade poltica sentida tambm por governosinterinos nacionais ainda mais grave no caso das administraes tran-sitrias internacionais, e por duas razes. Em primeiro lugar, porque incluemnormalmente um nmero significativo de estrangeiros em posies polticaselevadas. Como tal, estes elementos tendem a ser vistos com desconfianapela elite e populao locais e como no representativos dos interesses na-cionais. Em segundo lugar, e mais importante, as administraes transit-rias internacionais, contrariamente aos governos interinos nacionais, notero a oportunidade de serem mais tarde legitimadas por meio de eleiesdemocrticas. A sua natureza no democrtica do princpio ao fim e noh maneira de superar esta limitao.

    Ainda que a sua composio estrangeira possa ser atenuada, nomeadamentemediante a atribuio de posies polticas de relevo a tantos cidados locaisquanto o possvel, as administraes transitrias internacionais no tm qual-quer modo de superarem a sua inerente natureza no democrtica. As admi-nistraes internacionais esto inscritas numa situao em que impossvelvencerem. Seja o que for que fizerem para serem aceites, nunca ser obastante do ponto de vista da elite e populao locais. Este facto sublinha odilema que as operaes similares de construo de Estados sempre enfrentaro.

    E este facto, por sua vez, levanta a questo de saber se ou no apro-priado para a ONU envolver-se em tais operaes. Como foi apontado norelatrio Brahimi, as administraes transitrias civis enfrentam desafios eresponsabilidades nicos, que suscitam a questo de saber se as NaesUnidas devem ou no envolver-se de todo neste tipo de assuntos70. JaratChopra levanta esta mesma questo ao admitir que a ONU poder ser ina-dequada para administrar territrios em transio71. Por outras palavras,duvida de que a ONU seja suficientemente flexvel para exercer uma gover-nao civil. O argumento aqui desenvolvido parece sugerir que a ONU nodeve envolver-se de todo nestas situaes, se se tomar em considerao olegado e as lies da UNTAET, os dilemas conceptuais que lhe estosubjacentes, bem como a ambivalncia relativamente administrao civilentre os Estados membros das Naes Unidas e dentro do Secretariado72.

    Assim, e admitindo que as misses de construo de Estados da ONUpossam ser inevitveis em casos excepcionais, a ONU deveria adoptar umaabordagem minimalista, com limites claros, no que diz respeito durao ealcance das mesmas. Relativamente durao, as misses de construo deEstados da ONU devero ser to breves quanto o possvel, e dever estabele-

    70 ONU, Report of the panel on United Nations peace operations, A/55/305 e S/2000/809, 21 de Agosto de 2000, p. 13, pargrafo 78.

    71 Chopra, op. cit., p. 35.72 ONU, Report of the panel on United Nations peace operations, p. 13, pargrafo 78.

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    A Administrao Transitria das Naes Unidas em Timor Leste

    cer-se desde o primeiro dia um calendrio com prazos temporais precisospara cada etapa especfica, bem como uma data de concluso definida.

    No que concerne ao alcance da aco, o principal objectivo dever ser ode garantir uma transio bem sucedida para a democracia e/ou a independn-cia. Quaisquer outros objectivos, como a construo, reabilitao, recuperaoou reconstruo de instituies, devero ser deixados a outros actores inter-nacionais, bem como elite e populao locais. Teria sido melhor que amaior parte do trabalho da UNTAET tivesse sido entregue a organizaes eONGs verdadeiramente motivadas para a realizao das tarefas em questo.Como j foi dito diversas vezes, o pessoal da ONU existe principalmente porrazes polticas, e no devido ao seu grau de motivao ou de capacidadetcnica especfica.

    CONSIDERAES FINAIS

    Um investigador acadmico fez notar que:

    As complexas funes de governao de larga escala assumidas pelaONU no Kosovo e em Timor Leste levantam importantes questes pol-ticas sobre a capacidade da ONU de desempenhar tais funes em terri-trios gravemente afectados por conflitos. Na ponderao de tais ques-tes h que estabelecer sobretudo se a ONU foi ou no bem sucedida natarefa de conduzir as sociedades ps-conflito estabilidade poltica, recuperao econmica e reconciliao73.

    Estas palavras so certamente verdadeiras, ainda que a questo no sejatalvez a mais relevante para a deciso de continuarem a ocorrer no futurooperaes semelhantes. De facto, esta nfase nas avaliaes da performanceda ONU negligencia os interesses em jogo relativos ambivalncia sobre aadministrao civil, especialmente entre os membros permanentes do Conse-lho de Segurana. De facto, os Estados Unidos foram o pas que mais apoioua UNTAET no seu esforo de concretizao das metas estabelecidas. Devidoaos enormes custos financeiros que as misses de construo de Estadosimplicam, os Estados Unidos, em particular (na sua qualidade de mais im-portante contribuinte para o oramento regular das Naes Unidas), no semostraro favorveis a operaes futuras semelhantes, por muito imperati-vos que sejam os argumentos em seu favor.

    73 Sarah Pritchard, United Nations involvement in post-conflict reconstruction efforts:new and continuing challenges in the case of East Timor, in University of New South WalesLaw Journal, 24, n. 1, 2001, p. 185.

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    Paulo Gorjo

    A primeira sugesto de que tal ocorrer surgiu com o Acordo Intra--Afego de Bona de 5 de Dezembro de 2001, quando a tarefa de reabilitar,recuperar e reconstruir o territrio foi colocada sob a autoridade da Autori-dade Interina Afeg, e no sob a responsabilidade de uma administraotransitria das Naes Unidas. De facto, a Resoluo n. 1383 do Conselhode Segurana das Naes Unidas limitou-se a sancionar as concluses deBona. E, a ser necessria qualquer outra prova, bastar apontar que o Con-selho de Segurana da ONU ignorou os comentrios de Vieira de Mello e dopresidente do Banco Mundial, James Wolfensohn, de que Timor Leste po-deria constituir um modelo para uma nova administrao interina no Afega-nisto74. De facto, a situao deste territrio no corresponde exactamente de Timor Leste, tal como conceptualmente entendida anteriormente. Con-tudo, na comparao entre o Afeganisto e Timor Leste ou o Kosovo foicertamente tomado em considerao o facto de o primeiro ser um territriomuito maior em termos geogrficos e populacionais. A misso da ONU nopequenssimo territrio de Timor Leste teve custos econmicos muito eleva-dos, chegando a atingir cerca de 500 milhes de dlares americanos por dia.Assim, no difcil prever que uma misso similar no Afeganisto implicas-se custos econmicos muito mais elevados.

    muito provvel que, no futuro, os Estados Unidos favoream a perspec-tiva de que a formao e construo institucional pertence burocraticamenteao mundo do desenvolvimento, como fizeram inicialmente em relao aTimor Leste75. Ainda que pelas razes erradas, os Estados Unidos favorecem,provavelmente, a melhor opo. Uma vez mais, o Afeganisto parece con-firmar esta tendncia. Nos anos que se avizinham, o territrio ficar sob aresponsabilidade burocrtica do mundo do desenvolvimento. De acordo comuma avaliao preliminar preparada conjuntamente pelo Programa de Desen-volvimento das Naes Unidas, pelo Banco Mundial e pelo Banco de Desen-volvimento Asitico, estimou-se que o processo de reabilitao, recuperaoe reconstruo venha a custar cerca de 15 mil milhes de dlares ao longoda prxima dcada.

    Last but not least, a probabilidade de que misses de construo deEstados como a UNTAET venham a ser necessrias com mais frequncia nofuturo assenta no pressuposto no confirmado de que muitos outros Estadossoberanos, os chamados Estados falhados, iro desintegrar-se durante osprximos anos do ps-guerra fria76. Porm, medida que o tempo passa e

    74 UN says East Timor can serve as Afghanistan model, Reuters, 11 de Dezembro de 2002.75 Suhrke, op. cit., p.10.76 Matthias Ruffert, The administration of Kosovo and East Timor by the international

    community, in International and Comparative Law Quarterly, 50, n. 3, Agosto de 2001,p. 631.

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    A Administrao Transitria das Naes Unidas em Timor Leste

    o sistema ps-guerra fria comea a estabilizar-se, tambm possvel argu-mentar que o mais provvel que ocorra a situao oposta. De facto, ascondies nicas por detrs da UNTAET e da INTERFET deram azo a umaexperincia excepcional e contra a corrente77. Devido s razes anterior-mente apontadas, muito provvel que a UNTAET, mais do que um modelopara futuras operaes de construo de Estados da ONU, venha a constituirum case study relativo a uma anomalia histrica nos manuais sobre as an-teriores operaes de manuteno da paz.

    interessante notar que Timor Leste depois de ter sido um teste delaboratrio para as misses de construo de Estados da ONU se con-verteu, uma vez mais, num test case, desta feita devido vontade polticado Japo de desempenhar um papel crescente tanto na segurana regionalasitica como no palco poltico internacional78.

    77 James Cotton, Against the grain: the East Timor intervention, in Survival, 43, n. 1,Primavera de 2001, pp. 127-142.

    78 V. Paulo Gorjo, Japans foreign policy and East Timor, 1975-2002, in Asian Survey,42, n. 5, Setembro-Outubro de 2002, pp. 754-771, ou a verso revista e aprofundada, O Japoe Timor Leste, in Nao e Defesa, n. 103, Outono-Inverno de 2002, pp. 157-180.