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Paulo Gorjo* Anlise Social, vol. XXXVIII (169), 2004,
1043-1067
O legado e as lies da AdministraoTransitria das Naes Unidas em
Timor Leste**
INTRODUO
Durante a guerra fria, as tradicionais operaes de manuteno da
paz dasNaes Unidas (ONU) enfrentaram casos de conflito
internacional que obri-garam a organizao a monitorar acordos de
cessar fogo e zonas-tampo. primeira gerao de operaes de manuteno da
paz seguiram-se novasmisses com novos objectivos, em resposta
alterao da ordem global.Com o fim da guerra fria, a ONU envolveu-se
numa segunda gerao deoperaes de manuteno da paz, tentando resolver
conflitos que eram agoramais nacionais do que internacionais e
requeriam administradores civis epolcias, bem como soldados, para
supervisionarem a implementao dosplanos de paz negociados pelas
partes em conflito que concordaram emsolucionar as suas disputas
nas urnas eleitorais1. Em todos esses casos, as
* Docente na Universidade Lusada, doutorando na Universidade
Catlica de Lovaina ebolseiro da Fundao para a Cincia e a Tecnologia
[[email protected]]. Em 2002, oautor foi visiting fellow do
Centro Australiano de Estudos de Defesa da Universidade de NewSouth
Wales e da Academia Australiana das Foras de Defesa.
** O autor agradece a Jarat Chopra, James Cotton, Simon
Chesterman, Kumiko Mizuno,Anthony Smith e Astri Suhrke pelos teis
comentrios a uma anterior verso deste artigo.Os factos e opinies
aqui expressos so da sua inteira responsabilidade. Este artigo foi
publi-cado originalmente com o ttulo The legacy and lessons of the
United Nations TransitionalAdministration in East Timor, em Agosto
de 2002, na revista Contemporary Southeast Asia,editada pelo
Instituto de Estudos do Sudeste Asitico (ISEAS), de Singapura. A
verso aquipublicada foi revista e aprofundada.
1 Boris Kondoch, The United Nations administration in East
Timor, in Journal ofConflict and Security Law, 6, n. 2, Dezembro de
2001, p. 246.
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Paulo Gorjo
partes envolvidas tinham anteriormente aceite a presena da ONU,
pelo queas foras da paz s utilizaram a fora para autodefesa.
Entretanto, umaterceira gerao de operaes de manuteno da paz, que no
necessitam doconsentimento das partes envolvidas, emergiu ao abrigo
do captulo VII daCarta das Naes Unidas. Este desenvolvimento
coincidiu com o apareci-mento de coligaes de voluntrios mandatados
pelo Conselho de Seguranapara procederem a aces especficas de
aplicao da lei, como foi o casoda Fora Internacional em Timor Leste
(INTERFET).
Foi contra este pano de fundo que a misso da ONU seria levada a
efeitoem Timor Leste, uma misso entendida por alguns como a
precursora deuma quarta gerao de operaes de construo de Estados2 e
por outroscomo uma situao clssica de descolonizao3. A Administrao
Transitriadas Naes Unidas em Timor Leste (UNTAET) foi estabelecida
pela Reso-luo n. 1272 do Conselho de Segurana das Naes Unidas a 25
de Ou-tubro de 1999, dotada de responsabilidade global pela
administrao do ter-ritrio e de poderes para exercer toda a
autoridade legislativa e executiva,incluindo a administrao da
justia, durante o perodo de transio da ad-ministrao indonsia para a
independncia formal. Ao mesmo tempo, aUNTAET tinha muitas outras
tarefas a cumprir, como garantir a seguranado territrio, manter a
lei e a ordem, estabelecer uma administrao efectiva,ajudar ao
desenvolvimento de servios civis e sociais, garantir a coordenaoe
distribuio de ajuda humanitria e assistncia de reabilitao e
desenvol-vimento, apoiar a aquisio de capacidades para o
autogoverno e ajudar aoestabelecimento de condies para um
desenvolvimento sustentvel.
O leque de responsabilidades e o alcance do mandato da UNTAET
notinham quaisquer precedentes nas anteriores operaes de manuteno
dapaz (a UNMIK Administrao Interina das Naes Unidas no Kosovo a
nica, se bem que parcial, excepo). Pela primeira vez, as NaesUnidas
tinham controlo soberano sobre um territrio, o qual visavam
pre-parar para a independncia4. Por outras palavras, era um caso de
com-binao entre o governo da ONU e o objectivo estratgico do
estabeleci-mento de um Estado independente5. Como tal, a UNTAET
constituiu umamisso de construo de Estados, entendida por muitos
como um test case.
2 Id., ibid.3 o caso de Simon Chesterman, director do programa
sobre administraes transitrias
da International Peace Academy (comunicao pessoal por e-mail em
Abril de 2002).4 Michael Bothe e Thilo Marauhn, The United Nations
in Kosovo and East Timor
problems of a trusteeship administration, in International
Peacekeeping (Kluwer), 6, n.os 4--6, Julho-Dezembro de 2000, pp.
152-56.
5 Joel C. Beauvais, Benevolent despotism: a critique of UN
state-building in East Timor,in New York University Journal of
International Law and Politics, 33, n. 4, 2001, p. 1101.
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A Administrao Transitria das Naes Unidas em Timor Leste
De facto, havia a convico geral de que a UNTAET teria de criar
um Estadofuncional em Timor Leste6. Entre Outubro de 1999 e Maio de
2002, o terri-trio foi o laboratrio de uma experincia de governao,
com a UNTAETcomo soberana de facto. Com tanta coisa em jogo, e
agora que o mandatoda UNTAET expirou, tempo de avaliar a sua
performance. Algumas questesrevestem-se de particular relevncia.
Quais os resultados da experincia? Osobjectivos estabelecidos pela
Resoluo n. 1272 do Conselho de Segurana daONU tero sido cumpridos?
Retiraram-se algumas lies desta experincia?Que tipo de legado
deixou ao novo Estado soberano de Timor Leste?
O ESTABELECIMENTO DA UNTAET
Em 1999, ao fim de vinte e quatro anos de ocupao, a Indonsia
auto-rizou, finalmente, uma consulta popular Jacarta recusou-se a
reconheceraquilo que realmente era: um referendo em Timor Leste7. A
Misso dasNaes Unidas em Timor Leste (UNAMET) foi responsvel pela
organiza-o e conduo da consulta popular com base num sufrgio
universal, se-creto e directo8. Em conformidade com o Acordo
Tripartido de 5 de Maiode 1999 entre as Naes Unidas, a Indonsia e
Portugal, pretendia-se apurarse o povo de Timor Leste aceitava um
estatuto de autonomia especial dentroda Indonsia, ou se o
rejeitava, o que conduziria separao do territrio.O resultado da
consulta popular de 30 de Agosto de 1999 deu uma claravitria aos
apoiantes da independncia, com 78,5% dos timorenses votandocontra a
proposta de autonomia especial. Este resultado desencadeou,
emretaliao, uma vaga de violncia e destruio liderada por
milciastimorenses pr-autonomia, inteiramente apoiadas pelas foras
militaresindonsias9. Daqui resultou uma enorme destruio de
infra-estruturas, umrol de mortos na ordem das 1500 pessoas e cerca
de 250 000 refugiados,a maioria dos quais foram forados a fugir
para Timor Ocidental. Aps umaforte presso internacional, a Indonsia
cedeu ao inevitvel. A 15 de Setem-bro de 1999, o Conselho de
Segurana autorizou uma fora multinacional,
6 James Traub, Inventing East Timor, in Foreign Affairs, 79, n.
4, Julho-Agosto de2000, pp. 74-89.
7 Para as razes pelas quais a oportunidade surgiu apenas em
1998-1999, v. Paulo Gorjo,Regime change and foreign policy:
Portugal, Indonesia, and the self-determination of EastTimor, in
Democratization, 9, n. 4 Inverno de 2002, pp. 142-158.
8 Para um relato pessoal, v. Ian Martin, Self-Determination in
East Timor: The UnitedNations, the Ballot, and International
Intervention, Boulder/Londres, Lynne Rienner Publishers,2001.
9 Para uma anlise da origem histrica das milcias e as condies
polticas da suaexistncia, v. Geoffrey Robinson, Peoples war:
militias in East Timor and Indonsia, inSouth East Asia Research, 9,
n. 3, Novembro de 2001, pp. 271-318.
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Paulo Gorjo
a INTERFET, a tomar todas as medidas necessrias para restaurar a
paz ea segurana em Timor Leste, proteger e auxiliar a UNAMET a
realizar assuas tarefas e, dentro das suas capacidades, facilitar
as operaes de ajudahumanitria. Em grande medida devido ao
substancial empenho militar aus-traliano, a INTERFET foi um sucesso
militar.
Foi neste contexto destruio macia de infra-estruturas, mais
de250 000 refugiados, elevado nmero de mortos e um vazio de poder
po-ltico que a UNTAET iniciou as suas operaes por todo o territrio
deTimor Leste, comeando a estabelecer as bases da sua estrutura
administra-tiva. Infelizmente, contudo, a operao comeou mal. De
facto, a missosofreu sempre de uma contradio inerente entre a sua
estrutura [] e o seumandato10. Por outras palavras, a UNTAET sofria
de uma subjacente ten-so entre o seu mandato de curto prazo para
governar Timor Leste e oobjectivo estratgico de longo prazo de
preparar os timorenses para o autogo-verno democrtico11. Jarat
Chopra, ex-presidente do gabinete de adminis-trao distrital da
UNTAET, recorda que a fase de planeamento em NovaIorque no envolveu
qualquer contacto genuno com, ou a participao de,representantes de
Timor Leste. A 19 de Outubro de 1999, Gusmo envious Naes Unidas uma
proposta de administrao transitria, definindo opapel dos timorenses
sob a forma de um Conselho Transitrio. Em retros-pectiva, o modelo
do CNRT para o envolvimento timorense era relativamentemodesto, mas
as Naes Unidas ignoraram-no completamente. Embora aestrutura
organizacional da UNTAET tenha sido mostrada ao CNRT, oquadro de
pessoal no o foi, j que, embaraosamente, no inclua
quaisquertimorenses.12
A UNTAET foi moldada de acordo com os procedimentos
operacionaisstandardizados das operaes de manuteno da paz, tendo
sido planeadapelo Departamento de Operaes de Manuteno da Paz (DPKO)
[dasNaes Unidas], que tinha muito pouca experincia governativa13.
Desde oincio, a UNTAET foi guiada pela necessidade de manter um
controlocentralizado, minimizar os riscos de fracasso de curto
prazo e maximizar osganhos visveis de curto prazo14, enquanto, ao
mesmo tempo, havia pres-ses para completar a operao o mais
rapidamente possvel e impedir dessemodo o esgotamento das finanas
das Naes Unidas15.
10 Astri Suhrke, Peacekeepers as nation-builders: dilemmas of
the UN in East Timor,in International Peacekeeping (Frank Cass), 8,
n. 4, Inverno de 2001, p. 1.
11 Beauvais, op. cit., pp. 1105-1106.12 Jarat Chopra, The UNs
kingdom of East Timor, in Survival, 42, n. 3, Outono de
2000, p. 32.13 Suhrke, op. cit., p. 1.14 Beauvais, op. cit., p.
1106.15 Suhrke, op. cit., p. 2.
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A Administrao Transitria das Naes Unidas em Timor Leste
A tendncia da ONU para seguir um princpio de imparcialidade no
quediz respeito s relaes com os partidos locais tambm criou
dificuldadesna relao poltica com o Conselho Nacional da Resistncia
Timorense(CNRT) uma coligao que inclua, entre outros, dois antigos
inimigosdo perodo da guerra civil: a Unio Democrtica Timorense
(UDT) e a FrenteRevolucionria de Timor Leste Independente
(FRETILIN). De facto, oprincpio da imparcialidade derivava de uma
perspectiva institucional hmuito estabelecida na ONU que permitia
apenas dois tipos de autoridadesrepresentativas: governos soberanos
e faces. No sentido em que no erauma entidade soberana, o CNRT foi
relegado para a categoria conceptual defaco e tratado em
conformidade com esse estatuto (sendo os integracio-nistas
pr-Indonsia uma outra faco). O facto de que o CNRT era umacriatura
distinta e requeria uma abordagem diferente no foi
reconhecido16.
Esta tendncia para procurar a imparcialidade foi igualmente
influenciadapelas preocupaes de segurana do DPKO, j que desejava
evitar qualquertipo de conflito com a Indonsia e, assim,
considerava que tanto o CNRTcomo as Foras Armadas de Libertao
Nacional de Timor Leste (FALINTIL)deveriam manter um low profile
nas estruturas de governao transitrias.No caso das FALINTIL, a
ideia original da UNTAET era dissolv-las, j queno se previa a criao
em Timor Leste de um Estado soberano com forasarmadas, excepo dos
agentes de segurana ligados polcia17. Foi tam-bm esta a perspectiva
do CNRT at aos acontecimentos de Setembro de1999 e s posteriores
incurses das milcias no territrio de Timor Leste,que conduziriam a
uma reavaliao da questo.
Independentemente desses acontecimentos, a UNTAET manteve a
mesmaperspectiva e no permitiu que as FALINTIL participassem ao
lado da suaprpria componente militar nas rondas de segurana pelo
territrio (ainda que,na fase inicial da interveno, a INTERFET
tivesse de facto beneficiado dasinformaes, conhecimento e conselhos
gerais das FALINTIL). No obstanteo papel anterior e a legitimidade
histrica das FALINTIL, as foras foramcolocadas sob acantonamento e
convenientemente relegadas para uma posioperifrica at que a situao
ameaou sair de controlo. Alm disso, a decisoestava tambm de acordo
com os procedimentos operacionais normais doDPKO com vista a manter
um certo nvel de neutralidade relativamente spartes envolvidas18.
No fim de contas, o avano de indivduos e facesparticulares atravs
dos mecanismos de participao constitua uma violaoda neutralidade,
supostamente com repercusses futuras19.
16 Id., ibid., p. 8.17 ONU, Report of the Secretary-General on
the United Nations Transitional
Administration in East Timor, S/2000/738, 26 de Julho de 2000,
p. 8, pargrafo 58.18 Suhrke, op. cit., p. 8.19 Beauvais, op. cit.,
p. 1123.
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Paulo Gorjo
Na ausncia de outros exemplos anteriores, a operao de manuteno
dapaz mais similar que poderia funcionar como modelo a seguir era a
UNMIK,de cujo quadro organizacional a UNTAET retirou considervel
inspirao. Defacto, a UNTAET foi uma adaptao da UNMIK s condies de
TimorLeste20. Alm disso, Srgio Vieira de Mello, o representante
especial doSecretrio-Geral e administrador transitrio das Naes
Unidas em TimorLeste, tinha sido interinamente o representante
especial do Secretrio-Geralpara o Kosovo em Junho e Julho de 1999,
local do qual trouxe consigo umaequipa de trabalho21 sem qualquer
conhecimento especfico sobre o territ-rio. O facto no surpreendeu
ningum, j que seguia simplesmente a prticanormal das Naes Unidas,
pela qual a equipa de administrao civil []internacionalmente
recrutada com escassa considerao em termos de conhe-cimento local
especializado22.
Todos os aspectos anteriormente referidos pesaram muito sobre o
de-sempenho inicial da UNTAET. Contudo, o seu mandato e conceitos
noselaram forosamente o destino da misso23. Se bem que nesta fase
aUNTAET fosse principalmente uma operao de manuteno da paz,
istopoderia ter sido superado mais cedo se a misso tivesse
conseguido reagirrapidamente aos acontecimentos no territrio. No
fim de contas, com achegada da INTERFET, a maior parte das milcias
abandonaram TimorLeste, o que significava que as exigncias de
segurana foram rapidamentesuplantadas pelas exigncias de
desenvolvimento poltico e econmico empreparao para a
independncia24.
A UNTAET D INCIO TIMORIZAO DA MISSO
A abordagem inicial da UNTAET participao dos timorenses
foiestabelecer um Conselho Consultivo Nacional no eleito (NCC) a 2
deDezembro de 1999, constitudo por representantes da UNTAET e de
TimorLeste. O NCC, composto por 15 membros, visava aconselhar o
adminis-trador transitrio sobre todos os assuntos relacionados com
o exercciodas funes executivas e legislativas do administrador
transitrio, cons-tituindo ao mesmo tempo o mecanismo primrio por
meio do qual osrepresentantes do povo de Timor Leste [devero]
participar activamente
20 Suhrke, op. cit., p. 7.21 Simon Chesterman, Report: East
Timor in Transition: from Conflict Prevention to
State-Building, Nova Iorque, International Peace Academy,
2001.22 Suhrke, op. cit., p. 2.23 Chesterman, op. cit., seco III.24
Id., ibid.
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A Administrao Transitria das Naes Unidas em Timor Leste
nos processos de deciso25. O CNRT recebeu sete lugares, ao passo
que osrepresentantes de grupos polticos exteriores ao CNRT por
outras palavras,os pr-integracionistas receberam trs lugares,
correspondendo aproximada-mente aos 21,5% de votos obtidos na
consulta popular de 199926. Um altofuncionrio da UNTAET explicou
que o nmero de membros foi deliberada-mente circunscrito de modo a
facilitar tomadas de deciso rpidas durante a fasede emergncia na
qual [o NCC] foi estabelecido27. Esta afirmao revela apercepo da
UNTAET de que a eficincia era apenas possvel mediante umcontrolo
centralizado. Contudo, no inteiramente claro de que modo
ummecanismo consultivo mais alargado, sem poderes substantivos,
como era ocaso, poderia ter limitado a capacidade da UNTAET de
tomar decises rpidas.
Evidentemente, o NCC no era o que o CNRT tinha em mente.
Algunsmeses antes, em meados de Setembro de 1999, pouco depois de
ser libertadoda priso na Indonsia, o lder da resistncia de Timor
Leste, Jos AlexandreXanana Gusmo, falou pela primeira vez sobre os
seus planos para a admi-nistrao transitria. Xanana Gusmo esperava
que os timorenses trabalhassemsob a superviso das Naes Unidas e, ao
fim de um curto perodo de tempo,pudessem comear a pensar num
verdadeiro governo28. O CNRT defendia oprincpio de uma participao
plena e activa dos timorenses no processo detransio, de modo que
esse mesmo processo e os preparativos para a inde-pendncia fossem
positivos e efectivos. Com isto em mente, o CNRT criou oConselho
Transitrio para trabalhar em conjunto com as Naes Unidas,
alme-jando tornar-se a espinha dorsal de uma estrutura poltica dual
para implemen-tar as decises durante o perodo de transio29.
Contudo, as Naes Unidasignoraram as suas aspiraes. O facto
explicado no s pela sua tendnciacentralizadora, como tambm pela
indeciso de reconhecer o CNRT. Na pers-pectiva da ONU, a rejeio da
proposta de autonomia no referendo de Agostode 1999 no constitua um
voto automtico no CNRT. Assim, um reconhe-cimento precoce
representaria um favoritismo poltico30. Alm disso, oCNRT era uma
coligao de diferentes partidos polticos sem uma base ideo-lgica
comum. O que, por sua vez, significava que a liderana do CNRT
era
25 ONU, UNTAET Regulation 2/1999, UNTAET/REG/1999/2, 2 de
Dezembro de 1999.26 Alm disso, o NCC inclua o administrador
transitrio, trs outros membros da
UNTAET e um representante da Igreja catlica romana de Timor
Leste.27 Beauvais, op. cit., p. 1120, entrevistando Hansjoerg
Strohmeyer, antigo consultor legal
interino da UNTAET entre Outubro de 1999 e Fevereiro de 2000 e
antigo consultor legaldelegado at Junho de 2000.
28 John Gittings, Gusmo flees to Darwin after threat, in
Guardian, 20 de Setembrode 1999; v. tambm Resistance leaders call
for role in interim UN body in East Timor,in Agence France-Presse,
17 de Outubro de 1999.
29 Suhrke, op. cit., p. 9.30 Id., ibid., p. 11.
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1050
Paulo Gorjo
instvel, enquanto, ao mesmo tempo, a sociedade civil no se
encontrava aindasuficientemente organizada31.
Em Novembro e Dezembro de 1999, a UNTAET era essencialmenteuma
misso humanitria de emergncia com quase 80% do seu esforo
[]dedicado a coordenar a distribuio de emergncia de bens
alimentares ecuidados de sade bsicos e a fornecer abrigo de
emergncia a centenas demilhares de pessoas internamente deslocadas
e a refugiados que regressavamao territrio32. Compreensivelmente,
nesses primeiros meses, menos de20% dos esforos da UNTAET foram
canalizados para a preparao doterritrio para a independncia.
Contudo, logo que as tradicionais funes demanuteno da paz deixaram
de ser a principal prioridade e, simultaneamen-te, a liderana do
CNRT e a sociedade civil comearam a estabilizar-se, aausncia de
participao poltica dos timorenses tornou-se cada vez maisuma causa
de descontentamento. Inevitavelmente, este sentimento seria ain-da
mais exacerbado pelas dificuldades econmicas sentidas nessa altura
pelapopulao.
No discurso que proferiu no primeiro congresso do CNRT em Agosto
de2000, Vieira de Mello reconheceu que se tornara claro a partir de
Abril queo NCC no era satisfatrio como mecanismo de participao. Nas
suas pa-lavras, o NCC no era suficientemente representativo da
sociedade deTimor Leste nem suficientemente transparente nas suas
deliberaes33. Defacto, as insuficincias do NCC eram apenas a ponta
do icebergue. Umpouco antes, em Maro de 2000, Jarat Chopra
demitira-se das suas funesde um modo bastante visvel, argumentando
que a misso carecia de umaseparao judiciosa de poderes e [] de uma
genuna responsabilidade paracom a populao local, qual serve34. Sob
presso, em Abril de 2000,Vieira de Mello assinou uma instruo para o
estabelecimento de conselhosdistritais (DACs). Os DACs eram corpos
consultivos criados com o prop-sito de representarem os interesses
da populao timorense e aconselharemo administrador distrital de
cada um dos 13 distritos. Uma vez mais, semelhana do NCC, os DACs
integravam timorenses, bem como represen-tantes da UNTAET. Enquanto
isso, a presso dos timorenses continuava aaumentar. Em Maio,
durante uma reunio com o Secretrio-Geral da ONU,Kofi Annan, o
vice-presidente do CNRT e co-laureado do Nobel da Paz de
31 Beauvais, op. cit., p. 1120, entrevistando Strohmeyer.32
Cedric de Coning, The UN Transitional Administration in East Timor
(UNTAET):
lessons learned from the first 100 days, in International
Peacekeeping (Kluwer), 6, n.os 2--3, Maro-Junho de 2000, p. 85.
33 Near verbatim transcript of the address of SRSG Srgio Vieira
de Mello, at the 1stCNRT Congress, in UNTAET Daily Briefing, 21 de
Agosto de 2000.
34 Chopra, op. cit., p. 27.
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A Administrao Transitria das Naes Unidas em Timor Leste
1996, Jos Ramos Horta, exigiu a remoo de todos os
administradoresdistritais e a sua substituio por lderes locais, bem
como o estabelecimentode uma data para a partida da ONU35.
Finalmente, em Julho de 2000, a UNTAET tomou duas importantes
deci-ses polticas com vista participao directa dos timorenses,
conhecida comoa timorizao. A primeira deciso dizia respeito ao NCC.
Por essa altura erabvia a necessidade de uma nova instituio poltica
com um nmero alargadode membros que pudesse ser mais representativa
e facilitar uma participaomais ampla dos timorenses na tomada de
decises polticas. Respondendo aesta exigncia, a UNTAET substituiu o
NCC por um novo Conselho Nacional,composto por representantes de
organizaes relevantes da sociedade civil deTimor Leste [] como um
frum para todos os assuntos legislativos relacio-nados com o
exerccio da autoridade legislativa do administrador transitrio36.O
Conselho Nacional integrava 33 elementos (mais tarde passariam a
ser 36),que representavam uma ampla variedade de interesses: sete
representantes doCNRT e trs de partidos polticos exteriores ao
mesmo, bem como um repre-sentante de cada um dos 13 distritos do
territrio e outro de organizaes deestudantes/juventude, organizaes
no governamentais, organizaes de mu-lheres, associaes
profissionais, organizaes econmicas, a comunidadeagrcola,
organizaes sindicais, a Igreja catlica romana, as denominaes
daIgreja protestante e a comunidade muulmana. Ao contrrio do NCC, o
Con-selho Nacional no inclua membros no timorenses. semelhana do
NCC,era um corpo no eleito. Assim, do ponto de vista dos
timorenses, emborafosse um rgo mais representativo e pudesse
facilitar a sua participao noprocesso de transio, o Conselho
Nacional continuava a ser uma soluoinsatisfatria.
Do ponto de vista dos timorenses, o segundo passo foi mais
importantedo que o da criao do Conselho Nacional. Contrariando
marcadamente aabordagem inicial, a UNTAET decidiu reorganizar-se de
modo a aumentara participao directa dos timorenses. O pilar de
governao e administra-o pblica da UNTAET deu lugar Administrao
Transitria de TimorLeste (ETTA), administrada pelos membros do novo
governo transitrio.O novo e primeiro governo integrava oito (mais
tarde seriam nove)ministrios: quatro deles foram confiados a
timorenses e os outros quatroa altos funcionrios da UNTAET.
Enquanto ministros, estes indivduoseram responsveis pela formulao
de polticas e pela recomendao deregulamentos e directivas a serem
consideradas pelo Conselho Nacional, aopasso que Vieira de Mello,
enquanto presidente do governo, retinha plenaresponsabilidade, de
acordo com a Resoluo n. 1272 do Conselho de Segu-
35 Id., ibid., p. 33.36 ONU, UNTAET Regulation 24/2000,
UNTAET/REG/2000/24, 14 de Julho de 2000.
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1052
Paulo Gorjo
rana. Na opinio de Ramos Horta, esta reestruturao respondia
plenamentes expectativas e preocupaes dos timorenses. E isto
porque, segundoafirmou, os timorenses tornavam-se, finalmente,
parceiros da UNTAET,com plenos poderes, conjuntamente responsveis
pela governao do pas epela preparao da transio para a
independncia37.
Contudo, a satisfao dos timorenses foi de pouca dura. Xanana
Gusmoem breve criticava a UNTAET pela lentido da timorizao do
processo.Os funcionrios estrangeiros continuavam a dominar, embora
houvesse pas-tas ministeriais, bem como funes administrativas, sob
a responsabilidadepoltica de elementos timorenses. Em Dezembro de
2000, os membrostimorenses do governo transitrio ameaaram
demitir-se caso a UNTAETno lhes concedesse um maior grau de
autoridade. Mais do que qualqueroutro, este episdio demonstrou a
insatisfao dos timorenses perante umprocesso de timorizao que era
principalmente uma questo de cosmtica.No fim de contas, o poder
poltico continuava concentrado nas mos daUNTAET. O ressentimento
dos timorenses era ainda agravado pelo elevadonvel do desemprego e
pelo padro de vida comparativamente elevado dosfuncionrios
estrangeiros da UNTAET. A populao de Timor Leste tantoa elite como
as massas entendia cada vez mais como ilegtima e abaixodas suas
expectativas a operao de construo de Estados da UNTAET.A UNTAET no
conseguira dar elite acesso ao poder, alm de se revelarincapaz de
melhorar as condies de vida da populao geral. Sob a pressointerna e
as rivalidades interpartidrias, a elite de Timor Leste defendia
queas eleies democrticas deviam ter lugar em 2001.
A ESTRATGIA DE SADA E ENTREGA DE PODER DA UNTAET
A posio assumida por Aniceto Guterres Lopes, membro do
ConselhoNacional, director da bem conhecida ONG humanitria
timorense YayasanHAK e mais tarde presidente da Comisso para o
Acolhimento, Verdade eReconciliao (CAVR), foi um bom exemplo do
estado de esprito geral. EmDezembro de 2000, Guterres Lopes estava
convicto de que a fase de tran-sio da ONU durava h demasiado tempo,
no era eficiente nem popular edevia ser rapidamente concluda38. Ao
fim de mais de um ano desde oincio das operaes da UNTAET, o
sentimento geral da populao era deque pouca reconstruo tinha
ocorrido e no tinham sido criadas quaisquernovas empresas. A taxa
de desemprego atingia os 80% e os nicos empre-
37 Ramos Horta welcomes approval of transition cabinet, in Lusa,
12 de Julho de 2000.38 Mark Dodd, Newest nation gets ready for
tricky birth, in Sydney Morning Herald,
13 de Dezembro de 2000.
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1053
A Administrao Transitria das Naes Unidas em Timor Leste
gos disponveis eram na UNTAET, a troco de um salrio dirio de 5
dlaresamericanos para os habitantes locais. Gradualmente, a elite
timorense chegoua um crescente consenso de que era necessrio
instituir a independncia todepressa quanto poltica e tecnicamente
possvel. O sentimento geral era o deque a UNTAET no conseguira
proporcionar uma governao aceitvel e quea populao acabaria por
responsabiliz-los por isso. Assim, a 22 de Fevereirode 2001, o
Conselho Nacional aprovou um conjunto de recomendaes sobrea transio
poltica avanado pela Comisso Permanente para os AssuntosPolticos do
Conselho. As recomendaes exigiam a eleio de uma Assem-bleia
Constituinte de 88 membros em 30 de Agosto de 2001, cujo
principalobjectivo era a redaco de uma nova constituio. Alm disso,
com a inde-pendncia, a Assembleia Constituinte tornar-se-ia o novo
parlamento39.
Num certo sentido, a UNTAET tinha perdido o controlo da
situao,ainda que existisse desde o incio uma clara noo e
expectativa no Conselhode Segurana e Secretariado da ONU de que a
misso duraria apenas doisou trs anos. No obstante, at ao momento a
UNTAET tinha conseguidocontrolar, e deflectir, as exigncias dos
timorenses de uma maior participa-o no processo de transio. A
partir de ento, a principal preocupao daUNTAET seria a sua
estratgia de sada e, consequentemente, a operao deconstruo de
Estados foi sendo cada vez mais limitada aos procedimentosde
transio para a democracia e a liberdade.
A 16 de Maro de 2001 foi promulgado o regulamento para a eleio
deuma Assembleia Constituinte de 88 membros. Uma vez que muitos
membrosdo Conselho Nacional se candidataram Assembleia
Constituinte, a UNTAETdecidiu que o Conselho devia ser dissolvido
antes do incio do perodo decampanha oficial um acontecimento que
teve lugar a 14 de Julho de 2001.Como recomendado, as eleies
celebraram-se a 30 de Agosto, e a ComissoEleitoral Independente
autorizou a participao de 16 partidos polticos. Deacordo com os
nmeros oficiais, 91,3% dos eleitores exerceram o seu direitode
voto. Com 57,3% dos votos, a FRETILIN foi a vencedora.
A 20 de Setembro de 2001, ao fim de diversos dias de tenso
poltica40,e contra os desejos de Xanana Gusmo e de Vieira de Mello,
a UNTAETnomeou um governo inteiramente controlado pela FRETILIN. Um
outroaspecto igualmente importante foi que a maioria da FRETILIN na
AssembleiaConstituinte em coligao com a Associao Social
DemocrticaTimorense (ASDT) deu-lhe o direito de redigir a
constituio sem ter detomar em considerao os interesses de outros
partidos polticos. Por outras
39 Recommendation for political transition approved, in UN Daily
Press Briefing, 22de Fevereiro de 2001.
40 Paulo Gorjo, Dj un risque de crise politique, in Libre
Belgique, 30 de Agosto de2001.
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1054
Paulo Gorjo
palavras, foi a Assembleia Constituinte, sob o controlo da
FRETILIN, quedecidiu a diviso do poder poltico entre as diferentes
instituies. Uma vezque a FRETILIN controlava a Assembleia
Constituinte e era plausvelesperar que no pudesse controlar tambm a
Presidncia , o partido de-cidiu esboar uma constituio semelhante de
Portugal, onde o poderexecutivo exercido pelo primeiro-ministro, e
no pelo presidente da Rep-blica. A 22 de Maro de 2002, depois de
diversos adiamentos, a AssembleiaConstituinte aprovou a primeira
Constituio do territrio. O facto de 72 dos88 membros da Assembleia
Constituinte terem votado a favor da Constitui-o proposta com
apenas 14 votos contra, uma absteno e um ausen-te sugere um quadro
ilusrio de ampla legitimidade.
Do ponto de vista da transio para a democracia, restava apenas
umaquesto, uma vez que em Outubro de 2001 o Conselho de Segurana
daONU tinha j sancionado a proposta da Assembleia Constituinte de
que aindependncia deveria ter lugar a 20 de Maio de 2002. Este
ltimo passoocorreu a 14 de Abril de 2002 com a eleio presidencial.
Depois de diversosmeses a afirmar publicamente que no tinha intenes
de se candidatar apresidente de Timor Leste, Xanana Gusmo acabou
por decidir faz-lo. Estadeciso foi considerada inevitvel por alguns
e inesperada por outros. Dequalquer modo, os resultados eleitorais
no surpreenderam ningum. Deacordo com os nmeros oficiais, 86,3% do
eleitorado participou nas eleiese, recolhendo 82,6% dos votos,
Xanana Gusmo foi o esperado vencedor.Ironicamente, como se explicar
mais abaixo, a eleio de Gusmo, em vez deconstituir uma garantia de
estabilidade poltica, ser, provavelmente, uma fonteadicional de
conflito poltico. A gravidade do conflito poltico entre Gusmoe o
primeiro-ministro da FRETILIN, Mar Alkatiri, est ainda por apurar.
Sebem que os poderes do presidente sejam principalmente simblicos,
de acordocom o artigo 86 da Constituio, Xanana Gusmo pode dissolver
o parlamentoe demitir o governo sob certas circunstncias
especficas.
De facto, parecem existir significativas diferenas polticas
entre as visesdo futuro de Xanana Gusmo e Mar Alkatiri. Como
salienta o editorial de umjornal, Xanana Gusmo quer criar um
governo de unidade nacional quepartilhe o poder com os pequenos
partidos, enquanto processo que visa aju-dar a facilitar a
reconciliao e a construo de uma verdadeira identidadenacional41.
Por outro lado, Alkatiri e os seus apoiantes acreditam que achave
para o futuro um governo firme, quase de partido nico. Querem
umfirme controlo sobre o parlamento e o governo e um mnimo de
debate, quetemem poder paralisar o governo.42 Como se explicar mais
abaixo, este
41 Mr. Gusmaos next fight, in Japan Times, 23 de Abril de
2001.42 Dan Murphy, East Timor president faces first challenge:
parliament, in Christian
Science Monitor, 19 de Abril de 2002.
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1055
A Administrao Transitria das Naes Unidas em Timor Leste
impasse resultou parcialmente da sano da UNTAET de um percurso
queconduziria ao controlo da Assembleia Constituinte por parte da
FRETILIN,bem como a uma constituio inteiramente de acordo com os
desejos destepartido.
O LEGADO DA UNTAET
A ONU no poderia ter encontrado melhor terreno para um test
case.Contudo, no possvel afirmar que os resultados da experincia
tenhamsido inteiramente satisfatrios. No obstante a enorme dimenso
dos desafiose as limitaes de oramento, o processo de transio
deveria ter apresentadomelhores resultados. Assim, a declarao de
independncia de Timor Lestede 20 de Maio de 2002 no significou que
a UNTAET tenha realizadointeiramente os objectivos inicialmente
estabelecidos pela Resoluo n. 1272do Conselho de Segurana.
Ainda que a UNTAET tenha proporcionado segurana e mantido a lei
ea ordem, estabelecido uma administrao, ajudado ao desenvolvimento
dosservios civis e sociais, garantido a coordenao e distribuio de
ajudahumanitria, de reabilitao e desenvolvimento, apoiado a formao
de capa-cidade para o autogoverno e ajudado ao estabelecimento de
condies parao desenvolvimento sustentado, muito mais poderia ter
sido feito, mais cedoe melhor, especialmente no que diz respeito ao
desenvolvimento de servioscivis e sociais, ao apoio da formao de
capacidade para o autogoverno e criao de condies para o
desenvolvimento sustentvel.
Nos primeiros meses, e apesar das significativas dificuldades
logsticas, aUNTAET garantiu com xito a coordenao e prestao de ajuda
humanitria.Esta era uma das componentes clssicas das misses de
manuteno da paz.A outra era garantir a segurana do territrio e, de
facto, Timor Lesteapresentava um ambiente muito mais estvel aquando
da sada da UNTAET,ainda que os louros devam ser partilhados com a
INTERFET. Contudo, nomomento em que a UNTAET foi estabelecida, a
segurana externa e a inte-gridade territorial continuavam a ser uma
grande causa de preocupao devidoaos ataques desestabilizadores
perpetrados por membros das antigas milciaspr-autonomia ao longo da
fronteira. No obstante a segurana estvel alcan-ada no territrio,
continua a pensar-se que as milcias mais radicais possamcontinuar a
constituir no futuro uma ameaa ao novo Estado soberano43. Defacto,
as contnuas necessidades de Timor Leste em termos de
administraopblica, lei e ordem e segurana externa levaram a ONU a
criar uma Missode Apoio em Timor Leste (UNMISET)
ps-independncia.
43 ONU, Report of the Secretary-General on the United Nations
Transitional Adminis-tration in East Timor, S/2002/80, 17 de
Janeiro de 2002, p. 4, pargrafo 29.
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1056
Paulo Gorjo
O prprio Vieira de Mello reconheceu que a UNTAET no foi capaz
deconcluir as tarefas [] estabelecidas pelo Conselho de Segurana
daONU44. Por outras palavras, muito mais deveria ter sido feito. E
estecarcter incompleto da misso foi uma consequncia directa no s
datendncia centralizadora da UNTAET, mas tambm da sua falta de
legitimi-dade poltica para avanar com decises essenciais.
Se bem que a UNTAET tenha de facto imposto o primado da lei,
noproporcionou a percepo de fazer justia relativamente s violaes
dosdireitos humanos cometidas durante 1999. A justia sempre uma
questoproeminente na agenda poltica das transies para a democracia,
especial-mente se as violaes dos direitos humanos esto ainda
frescas na memria,como o caso em Timor Leste. A UNTAET abandonou o
territrio compoucos juzes, defensores pblicos e promotores de
justia experientes eformados, bem como com limitados servios de
apoio aos tribunais.
No que diz respeito justia, a insuficincia das realizaes da
UNTAETresultou tambm da obstruo indonsia, particularmente no que
diz respeitoaos crimes graves cometidos no territrio. As foras
militares indonsias eos lderes timorenses das milcias responsveis
pela vaga de violncia deSetembro de 1999 abandonaram o territrio
antes da chegada da INTERFETe da UNTAET. Em consequncia, estavam
para l do alcance das actividadesjudiciais da UNTAET. Assim, o
cumprimento da justia relativamente aosacontecimentos em Timor
Leste estava dependente da Indonsia, que desdeento tem avanado para
esse objectivo muito lentamente45.
A justia tambm no foi feita em relao aos pequenos crimes.
Confron-tada com uma enorme quantidade de crimes menores, a UNTAET
no teveoutra alternativa se no considerar uma amnistia dentro do
contexto daCAVR. Alm disso, a reconciliao intratimorense outra
importante questono resolvida que a UNTAET deixou como legado
futura agenda polticado territrio. Usando a Comisso para a Verdade
e Reconciliao na fricado Sul como modelo, Timor Leste estabeleceu
uma CAVR, que s agora esta dar os primeiros passos46. A ideia de
estabelecimento de uma CAVRrevelar-se-, no final, um fracasso.
Timor Leste no possui a necessriamassa crtica, uma sociedade civil
desenvolvida e meios de comunicaofortes e independentes todos eles
fundamentais para o sucesso de qual-quer comisso para a verdade e
reconciliao. Alm disso, depois da inequ-
44 Srgio Vieira de Mello, Here is a big day for East Timor, in
International HeraldTribune, 29 de Agosto de 2001.
45 V. Kumiko Mizuno, Indonesian politics and the issue of
justice in East Timor, in HadiSoesastro, Anthony L. Smith e Han Mui
Ling (eds.), Governance in Indonesia: ChallengesFacing the Megawati
Presidency, ISEAS, Singapura, pp. 114-164.
46 Paulo Gorjo, The East Timorese Commission for Recepcion,
Truth and Reconciliation:chronicle of a foretold failure?, in Civil
Wars, 4, n. 2, Vero de 2001, pp. 142-162.
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1057
A Administrao Transitria das Naes Unidas em Timor Leste
voca vitria dos apoiantes da independncia na consulta popular de
1999, oequilbrio de poder que emergiu no territrio deixou pouco
espao para ocompromisso no que diz respeito aos responsveis pelos
crimes graves.Acresce que alguns dos elementos da elite de Timor
Leste j expressaramdvidas sobre a sua verdadeira utilidade.
Timor Leste ter tambm de concluir o processo do regresso dos
refugiadosde Timor Ocidental. Em dois anos e meio, a UNTAET
mostrou-se incapaz deo completar e h ainda muitos refugiados no
outro lado da fronteira. As auto-ridades polticas de Timor Leste
tero de continuar a encorajar, monitorar eproteger o regresso
desses grupos e, simultaneamente, a empreender os esforosnecessrios
para convencerem a populao a deixar de hostilizar os suspeitos
deenvolvimento nos antigos grupos polticos e milcias
pr-autonomia.
Por outro lado, a UNTAET no tratou do futuro das FALINTIL at
essaquesto se tornar incontornvel. De facto, a UNTAET no sabia o
que fazercom as FALINTIL47. S em Maro de 2000, num momento em que
aindisciplina dentro das FALINTIL constitua j um potencial risco de
seguran-a, a UNTAET decidiu, por fim, estabelecer um grupo de
estudo para resolvera questo. Foi necessrio esperar at Junho de
2000 para que a UNTAETordenasse um estudo para avaliar as
necessidades dos timorenses em termos desegurana e defesa48, e s em
Setembro de 2000 decidiu estabelecer a Forade Defesa de Timor Leste
(FDTL). Em Novembro de 2000, a Austrlia ePortugal assumiram a
responsabilidade da instruo e armamento iniciais daFDTL.
Entretanto, contudo, a UNTAET tinha perdido um ano.
A 31 de Janeiro de 2001, a UNTAET emitiu um regulamento
autorizandoo estabelecimento da FDTL. O facto particularmente
significativo, j que aONU jamais se envolvera anteriormente no
desenvolvimento de uma fora dedefesa de uma nao49. Contudo, a
Austrlia e Portugal assumiram apenas aresponsabilidade de instruir
e equipar um batalho de infantaria at indepen-dncia do territrio.
Em consequncia da incapacidade da UNTAET para tratarmais cedo desta
questo, sem bem que tenha sido planeado fazer da FDTLuma fora de
infantaria ligeira de 1500 efectivos, continuava ainda a
sernecessrio recrutar e instruir cerca de dois teros do
pessoal.
A UNTAET foi tambm responsvel pela manuteno da lei e da
ordem.Como se j referiu, a UNTAET no previra que o Estado soberano
de Timor
47 La creation de ladministration et des institutions du Timor
Oriental: le role desNations Unies, artigo indito apresentado em 16
de Maio de 2002 na conferncia The UNin East Timor: lessons learned,
organizada pelo Pearson Peacekeeping Center, Montreal,Canad, por
Jean-Christian Cady, ex-delegado especial do Secretrio-Geral das
Naes Unidasem Timor Leste e ex-administrador transitrio
delegado.
48 Este estudo foi coordenado por Nicola Dahrendorf (v.
Independent Study on SecurityForce Options for East Timor, Londres,
Kings College, 2000).
49 James Fox, Recent security developments in East Timor, in
AUS-CSCAP Newsletter,n. 12, Novembro de 2001, p. 7.
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1058
Paulo Gorjo
Leste dispusesse de foras armadas. Na concepo inicial haveria
apenaspessoal de segurana associado polcia, uma fora semelhante
gendarmerie francesa. Assim, estabeleceram-se planos de
recrutamentopara uma fora de 3000 agentes de polcia e no incio de
2000 fundou-seum Colgio da Polcia para proporcionar aos recrutas
(inicialmente, 50 ele-mentos de cada vez) uma rpida instruo de trs
meses50. Os primeirosagentes do Servio de Polcia de Timor Leste
(SPTL) completaram a instru-o em Junho de 2000 e em Setembro de
2001 existiam j mais que 1000agentes locais. Contudo, os nmeros
projectados no tinham sido alcanadospela altura da independncia e,
tendo em conta a existncia da FDTL, atquestionvel que tal nmero
continue a fazer sentido.
Alm disso, o territrio regista uma taxa de criminalidade baixa,
circuns-tncia que poder ter contribudo para a limitada ateno que se
dedicou aodesenvolvimento e reforo do SPTL. De facto, a UNTAET
deixou o SPTLcom um srio problema de falta de recursos. Tendo em
conta que a taxa decriminalidade reduzida, mas a populao prisional
tem de qualquer modocontinuado a aumentar, o novo Estado soberano
ter de disponibilizar ime-diatamente fundos considerveis para o
SPTL, de modo que alcance ummelhor nvel operacional.
A transio pacfica para a democracia de Timor Leste foi
entendidacomo um grande feito. De facto, foi um notvel sucesso. Sob
a supervisoda UNTAET, os timorenses elegeram serenamente uma
Assembleia Consti-tuinte em 2001, redigiram uma Constituio e
elegeram um presidente emAbril de 2002. Contudo, o potencial para
conflitos polticos (talvez violen-tos) permanece sob a superfcie.
As srias divergncias pessoais e polticasentre o primeiro-ministro
Mar Alkatiri e o presidente Xanana Gusmo soum segredo bastante
pblico. O facto de a Constituio ter sido redigidaapenas pela
FRETILIN significa que, mais cedo ou mais tarde, a legitimida-de do
documento ser posta em causa. Teria sido possvel encontrar ummelhor
processo para a produo da Constituio atravs de uma comis-so
constitucional no eleita, com ampla representao e integrando
elemen-tos no partidrios, que traasse uma constituio com ampla
legitimidade eposteriormente ratificada por meio de um referendo.
Alternativamente, etendo em conta as limitaes de tempo no perodo
anterior independncia,poderia ter-se aprovado uma constituio
interina. Isto, por seu turno, teriaevitado a mal acolhida
transformao, sem a existncia de novas eleies, daAssembleia
Constituinte no primeiro parlamento de Timor Leste51.
O apoio popular ao acto democrtico da eleio dos seus prprios
repre-sentantes teve lugar entre enormes expectativas de melhoria
das condies
50 Id., ibid., p. 8.51 Devo esta informao a uma fonte
confidencial (comunicao pessoal por e-mail em
Abril de 2002).
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1059
A Administrao Transitria das Naes Unidas em Timor Leste
de vida. A UNTAET revelou-se incapaz de as concretizar. Em
primeirolugar, e inevitavelmente, o complexo processo de negociao
com a Austrliarespeitante aos campos do petrleo e gs no partilhado
mar de Timor levouo seu tempo. Alm disso, negociaes adicionais com
as companhias depetrleo e gs levaram a que, no curto prazo, o
territrio continue a noretirar rendimento destes recursos naturais.
Simultaneamente, o investimentoeconmico no territrio continua a ser
gravemente bloqueado devido inca-pacidade de resolver a ausncia de
registos de terrenos e propriedades,destrudos durante os motins de
Setembro de 1999. Quanto a este problema,a responsabilidade deve
ser partilhada pela UNTAET e pelos timorenses. Jem Abril de 2000,
se no mesmo antes, Vieira de Mello estava plenamenteciente de que a
aquisio de terrenos era um pesadelo, j que ningum sabiaquem possua
o qu e a situao criava dificuldades adicionais atraco
deinvestimento estrangeiro52. Implcita estava a ideia de que,
quanto mais cedohouvesse certezas sobre os terrenos e as
propriedades, mais cedo se alcan-aria a estabilidade econmica e a
oportunidade de criao de empregos. Naausncia de leis de propriedade
claras, os investidores mostram-se relutantesem investir dinheiro
em projectos de longo prazo. Vieira de Mello estavaconsciente do
problema e referiu-o diversas vezes. Quem investir emTimor Leste se
somos incapazes de fornecer garantias de que o terreno onde[os
investidores] estabelecero as suas sedes e negcios lhes pertence,
oupode ser-lhes arrendado por um perodo de tempo aceitvel?,
declarouVieira de Mello em Julho de 200053.
Perante ttulos de propriedade portugueses e indonsios
contraditrios54,a Unidade do Territrio e da Propriedade da UNTAET
procurou resolver rapi-damente o problema. Inevitavelmente, os seus
esforos entraram em choquecom os interesses locais, nomeadamente da
famlia Carrascalo. Em Dezem-bro de 2000, as ameaas de resignao por
parte dos quatro membrostimorenses do governo transitrio foram
igualmente motivadas pelo facto dea UNTAET considerar apenas as
escrituras de propriedade posteriores ocupao indonsia, e no as da
era colonial portuguesa. Uma vez que afamlia Carrascalo acumulara
considerveis bens de raiz sob a administraoportuguesa, uma tal
deciso constitua uma ameaa potencial aos seus interes-ses. Na
altura, alguns jornalistas timorenses declararam que as ameaas
de
52 UNTAET wants to restore land ownership records in East Timor,
in Bernama, 26de Abril de 2000.
53 Daniel Cooney, Messy land disputes hampering East Timors
development,Associated Press, 16 de Julho de 2000.
54 V. Daniel Fitzpatrick, Re-establishing land titles and
administration in East Timor,in Pacific Economic Bulletin, 15, n.
2, Novembro de 2000, pp. 152-160, Land issues ina newly independent
East Timor, in Hal Hill e Joo Mariano Saldanha (eds.), East
Timor:Development Challenges for the Worlds Newest Nation, ISEAS,
Singapura, 2001, pp. 177--192, e Land Claims in East Timor,
Canberra, Asian Pacific Press (a publicar).
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1060
Paulo Gorjo
resignao foram orquestradas por [] Joo Carrascalo, o qual
[tinha]afirmado recentemente Rdio UNTAET que abandonaria [o governo
tran-sitrio] se a direco da importante Unidade do Territrio e da
Propriedade[] no fosse transferida para o seu ministrio55. Alguns
dias depois, ogoverno transitrio aprovou a resoluo que entregava a
Unidade do Terri-trio e da Propriedade da UNTAET a Joo Carrascalo
e, mais tarde, deci-diu-se que a soluo para o problema s seria
procurada depois da indepen-dncia do territrio.
Em suma, no que diz respeito aos registos de terrenos e
propriedades, aUNTAET no mostrou vontade poltica de resolver o
problema, enquanto, simul-taneamente, os prprios lderes timorenses
tambm contriburam de modo sig-nificativo para o adiamento de uma
soluo. Em consequncia, o governo donovo Estado soberano de Timor
Leste ter de resolver o problema o maisdepressa possvel, de modo a
criar condies atractivas para os investidoresestrangeiros. De outro
modo, se o regime democrtico no conseguir promovera prosperidade
econmica nos anos mais prximos, provvel que a legitimidadeda
democracia sofra uma rpida eroso. O desenvolvimento econmico
contri-bui para a estabilidade poltica, assim como depende da
mesma.
De modo a conseguir alcanar a prosperidade econmica, Timor
Lesteter de continuar a procurar o seu lugar no Sudeste asitico e
no mundo.Multilateralmente, Timor Leste tenta agora obter o
estatuto de observadorformal na Associao das Naes do Sudeste
Asitico (ASEAN), noobstante a declarada oposio da Birmnia.
Bilateralmente, no futuro prxi-mo, a Austrlia, a Indonsia e
Portugal sero as trs mais importantes rela-es do novo Estado,
enquanto os Estados Unidos e o Japo adquirirotambm uma grande
importncia56. Compreensivelmente, a relao com aIndonsia , e
continuar a ser, uma causa de muita irritao. As indecisesquanto
participao da presidente da Indonsia, Megawati Sukarnoputri,
nacelebrao da independncia do territrio foram bastante
reveladoras.
AS LIES DA UNTAET
Embora tendo em conta que a situao de Timor Leste [era] to
es-pecial que as lies a retirar dela podem ser de facto bastante
limitadas, ,ainda assim, possvel chegar a algumas concluses
preliminares57. plau-
55 Kate Marshall, Timor struggles to build freedom, in
Australian Financial Review,14 de Dezembro de 2000.
56 V. os captulos sobre a Austrlia (James Cotton), a Indonsia
(Kumiko Mizuno), o Japo(David Walton), Portugal (Paulo Gorjo) e os
Estados Unidos (Joe Nevins) in Paulo Gorjo(ed.), Double Transition
in East Timor: Consolidation of Sovereignty and Democracy,
ISEAS,Singapura (a publicar).
57 A model of nation-building?, in Economist Global Agenda, 18
de Abril de
2002.http://www.economist.com/agenda/displayStory.cfm?story_id=1090589.
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1061
A Administrao Transitria das Naes Unidas em Timor Leste
svel defender que a UNTAET enfrentou dois tipos principais de
dificuldadesque interagiram durante o seu perodo de governao. Um
desses problemasera a ineficincia. Como explicmos e mostrmos
anteriormente, devido aosseus mtodos de planeamento, procedimentos
e pressupostos inadequados,a misso comeou com o p errado.
Posteriormente, depois de realizadasalgumas correces, a eficincia
da UNTAET aumentou. Por outro lado, aUNTAET poderia ter sido mais
eficiente se tivesse contado com uma equipaadequadamente capacitada
e munida dos recursos necessrios. A conclusobvia que, no futuro, as
Naes Unidas tero de repensar os seus mtodosde planeamento,
procedimentos e pressupostos e de proporcionar s suasmisses o
pessoal e recursos necessrios.
O outro problema foi a dificuldade no estabelecimento de um nvel
acei-tvel de responsabilidade. Como fez notar Richard Caplan:
Os administradores transitrios [TAs] e as suas equipas servem
osinteresses destes corpos [neste caso, a ONU] e a esses que
prestamcontas e perante os quais respondem. Se bem que os partidos
locaistambm possam ter de prestar contas a corpos internacionais []
taiscorpos no so directamente responsveis perante a populao
local58.
A UNTAET tentou resolver esta questo adoptando um modelo de
co--governao, mas no final encontrou apenas um soluo interina de
curtoprazo. O facto, por sua vez, est relacionado com a questo da
legitimidade.A legitimidade legal das misses de construo de Estados
das NaesUnidas advm das resolues do Conselho de Segurana da ONU que
assustentam. Obviamente, a legitimidade legal totalmente diferente
da legiti-midade poltica, a qual, em circunstncias normais,
alcanada por meio deeleies democrticas.
Por conseguinte, e uma vez que as misses de construo de Estados
daONU no se submetem ao teste das eleies democrticas de modo a
obte-rem legitimidade poltica, a experincia da UNTAET sugere que,
emboraseja possvel superar inteiramente o primeiro problema, o
segundo s podeser atenuado. Como se mostrar mais frente, esta lio
apresenta implica-es significativas para a questo de ser ou no
adequado que as NaesUnidas se envolvam de todo em tais operaes.
A maioria dos estudos anteriores sobre o governo da UNTAET no
focoua questo da legitimidade. Alguns centraram-se nos aspectos
mais negativos,de modo a sugerirem melhoramentos relativamente
eficincia em situaesfuturas similares. Esta abordagem negligencia o
papel central da responsa-
58 Richard Caplan, A new trusteeship? The international
administration of war-tornterritories, in Adelphi Paper, 341,
Fevereiro de 2002, p. 58.
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1062
Paulo Gorjo
bilidade e legitimidade no sucesso ou fracasso global das
operaes de cons-truo de Estados da ONU. Contudo, a responsabilidade
e a legitimidadelimitam a eficincia. Assim, no longo prazo, se as
faltas de responsabilidadee legitimidade poltica no forem
resolvidas, nenhuma delas conduzir eficincia. plausvel argumentar
que a percepo contrria uma iluso.
No obstante, isto no significa que, no futuro, as misses de
construode Estados da ONU no devam tentar melhorar a sua eficincia.
De facto,se outras misses similares tiverem lugar nos prximos anos,
muitas daslies sugeridas noutros artigos so razoveis e parecem ser
necessrias,embora paream por vezes contraditrias e irreconciliveis.
Aquilo que opresente artigo, e esta seco em particular, desejam
enfatizar que nenhumdos melhoramentos prticos sugeridos at ao
momento para diminuir a ine-ficincia dos mtodos de planeamento,
procedimentos e pressupostos resol-ver o dfice de responsabilidade
e a falta de legitimidade poltica.
Astri Suhrke, por exemplo, sugere que as futuras misses de
construode Estados devero ser divididas em duas estruturas: uma de
ajuda humani-tria e manuteno da paz e outra de governao. A tendncia
actual, porm,vai na direco oposta, rumo a misses integradas59. O
modo de inter-relaodas duas estruturas outra das questes que a
autora levanta sem apresentarqualquer resposta60. Ainda assim, e at
certo ponto, provvel que a divisodas misses contribusse para um
aumento de eficincia das mesmas, emboraa questo das misses
divididas ou integradas seja irrelevante, tendo emconta o seu dfice
de responsabilidade e ausncia de legitimidade poltica.
Joel Beauvais faz notar que a utilizao do modelo do conselho
consultivo apropriada apenas numa fase de emergncia de muito curto
prazo, imedia-tamente a seguir interveno ps-conflito, e que uma
transio precocepara uma forma de participao mais ampla e profunda,
como o modelo deco-governao da UNTAET, fortemente recomendada61. No
final, arelevncia desta alterao tambm apontada de modo algo
contraditrio peloautor quando afirma que, reconhecidamente, o
modelo de co-governao noresolve inteiramente os problemas
fundamentais dos corpos consultivos noeleitos, ainda que o
considere o melhor equilbrio possvel62.
Um outro investigador, Boris Kondoch, conclui que a populao
localdever ser consultada desde o incio [] Dever ser atribudo menos
poderao administrador transitrio e instalado um sistema mais
sofisticado de ve-rificaes e equilbrios63. Contudo, embora enfatize
o problema do dfice
59 Suhrke, op. cit., p. 18.60 Id., ibid.61 Beauvais, op. cit.,
pp. 1133-1134.62 Id., ibid., p. 1136.63 Kondoch, op. cit., p.
265.
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A Administrao Transitria das Naes Unidas em Timor Leste
de responsabilidade, Kondoch no mostra de que modo um diferente
sistemade verificaes e equilbrios poder resolver a falta de
legitimidade poltica.
Relativamente eficincia, Jarat Chopra chega seguinte
concluso:Talvez as misses de coligao levadas a cabo por pases
individuais pos-sam revelar-se mais eficientes em termos de
governao temporria. Con-tudo, o autor no deixa de admitir que tais
misses podem ser criticadasenquanto veculos para naes individuais
que procuram hegemonia regio-nal64. No que diz respeito ao dfice de
responsabilidade, Chopra acreditaque poderia ter sido resolvido se
a UNTAET tivesse feito um esforo con-certado no sentido de preparar
os timorenses por meio de exemplos, bemcomo de prescries, para um
governo representativo slido65. Evidente-mente, isto poderia ter
apaziguado os timorenses por algum tempo. Contudo,no longo prazo,
no resolveria a falta de legitimidade poltica.
Simon Chesterman no ignora o facto de que a UNTAET
dificilmentepode afirmar possuir legitimidade democrtica [] Nem ele
[Vieira de Mello]nem a sua equipa so directamente responsveis
perante a populao deTimor [Leste].66 Mesmo assim, o autor mostra-se
mais preocupado coma eficincia do que com a legitimidade no seu
trabalho. Desse modo, man-tendo em mente a eficincia, Chesterman
sugere na concluso que as ope-raes de construo de Estados das Naes
Unidas devero ter uma metapoltica clara, tempo de planificao e um
mandato flexvel67.
As administraes transitrias internacionais esto inscritas num
parado-xo. Por um lado, tm uma enorme influncia no que concerne s
decisespolticas a serem tomadas durante a transio para a democracia
e/ou aindependncia. De facto, podem exercer uma forte influncia no
que dizrespeito ao quadro constitucional e ao sistema poltico
futuros, ao tratamentodas anteriores violaes dos direitos humanos,
natureza da economia, aopapel da burocracia, configurao das foras
armadas e ao futuro lugar ealianas internacionais do Estado dentro
do sistema internacional68. Por outrolado, contudo, a falta de um
mandato democrtico at celebrao deeleies livres e instituio de um
governo mandatado pelo povo limitasignificativamente o seu poder
poltico. De facto, a sua falta de legitimida-de encontra-se
inerente no rtulo provisrio ou interino, que indica umaconscincia
de que a sua autoridade transitria69.
64 Chopra, op. cit., p. 35.65 Id., ibid., p. 36.66 Chesterman,
op. cit., seco III.67 Id., ibid.68 Yossi Shain e Juan J. Linz,
Between States: Interim Governments and Democratic
Transitions, Cambridge, Cambridge University Press, 1995, p.
4.69 Id., ibid.
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Paulo Gorjo
Esta ausncia de legitimidade poltica sentida tambm por
governosinterinos nacionais ainda mais grave no caso das
administraes tran-sitrias internacionais, e por duas razes. Em
primeiro lugar, porque incluemnormalmente um nmero significativo de
estrangeiros em posies polticaselevadas. Como tal, estes elementos
tendem a ser vistos com desconfianapela elite e populao locais e
como no representativos dos interesses na-cionais. Em segundo
lugar, e mais importante, as administraes transit-rias
internacionais, contrariamente aos governos interinos nacionais,
notero a oportunidade de serem mais tarde legitimadas por meio de
eleiesdemocrticas. A sua natureza no democrtica do princpio ao fim
e noh maneira de superar esta limitao.
Ainda que a sua composio estrangeira possa ser atenuada,
nomeadamentemediante a atribuio de posies polticas de relevo a
tantos cidados locaisquanto o possvel, as administraes transitrias
internacionais no tm qual-quer modo de superarem a sua inerente
natureza no democrtica. As admi-nistraes internacionais esto
inscritas numa situao em que impossvelvencerem. Seja o que for que
fizerem para serem aceites, nunca ser obastante do ponto de vista
da elite e populao locais. Este facto sublinha odilema que as
operaes similares de construo de Estados sempre enfrentaro.
E este facto, por sua vez, levanta a questo de saber se ou no
apro-priado para a ONU envolver-se em tais operaes. Como foi
apontado norelatrio Brahimi, as administraes transitrias civis
enfrentam desafios eresponsabilidades nicos, que suscitam a questo
de saber se as NaesUnidas devem ou no envolver-se de todo neste
tipo de assuntos70. JaratChopra levanta esta mesma questo ao
admitir que a ONU poder ser ina-dequada para administrar territrios
em transio71. Por outras palavras,duvida de que a ONU seja
suficientemente flexvel para exercer uma gover-nao civil. O
argumento aqui desenvolvido parece sugerir que a ONU nodeve
envolver-se de todo nestas situaes, se se tomar em considerao
olegado e as lies da UNTAET, os dilemas conceptuais que lhe
estosubjacentes, bem como a ambivalncia relativamente administrao
civilentre os Estados membros das Naes Unidas e dentro do
Secretariado72.
Assim, e admitindo que as misses de construo de Estados da
ONUpossam ser inevitveis em casos excepcionais, a ONU deveria
adoptar umaabordagem minimalista, com limites claros, no que diz
respeito durao ealcance das mesmas. Relativamente durao, as misses
de construo deEstados da ONU devero ser to breves quanto o possvel,
e dever estabele-
70 ONU, Report of the panel on United Nations peace operations,
A/55/305 e S/2000/809, 21 de Agosto de 2000, p. 13, pargrafo
78.
71 Chopra, op. cit., p. 35.72 ONU, Report of the panel on United
Nations peace operations, p. 13, pargrafo 78.
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A Administrao Transitria das Naes Unidas em Timor Leste
cer-se desde o primeiro dia um calendrio com prazos temporais
precisospara cada etapa especfica, bem como uma data de concluso
definida.
No que concerne ao alcance da aco, o principal objectivo dever
ser ode garantir uma transio bem sucedida para a democracia e/ou a
independn-cia. Quaisquer outros objectivos, como a construo,
reabilitao, recuperaoou reconstruo de instituies, devero ser
deixados a outros actores inter-nacionais, bem como elite e populao
locais. Teria sido melhor que amaior parte do trabalho da UNTAET
tivesse sido entregue a organizaes eONGs verdadeiramente motivadas
para a realizao das tarefas em questo.Como j foi dito diversas
vezes, o pessoal da ONU existe principalmente porrazes polticas, e
no devido ao seu grau de motivao ou de capacidadetcnica
especfica.
CONSIDERAES FINAIS
Um investigador acadmico fez notar que:
As complexas funes de governao de larga escala assumidas pelaONU
no Kosovo e em Timor Leste levantam importantes questes pol-ticas
sobre a capacidade da ONU de desempenhar tais funes em terri-trios
gravemente afectados por conflitos. Na ponderao de tais ques-tes h
que estabelecer sobretudo se a ONU foi ou no bem sucedida natarefa
de conduzir as sociedades ps-conflito estabilidade poltica,
recuperao econmica e reconciliao73.
Estas palavras so certamente verdadeiras, ainda que a questo no
sejatalvez a mais relevante para a deciso de continuarem a ocorrer
no futurooperaes semelhantes. De facto, esta nfase nas avaliaes da
performanceda ONU negligencia os interesses em jogo relativos
ambivalncia sobre aadministrao civil, especialmente entre os
membros permanentes do Conse-lho de Segurana. De facto, os Estados
Unidos foram o pas que mais apoioua UNTAET no seu esforo de
concretizao das metas estabelecidas. Devidoaos enormes custos
financeiros que as misses de construo de Estadosimplicam, os
Estados Unidos, em particular (na sua qualidade de mais im-portante
contribuinte para o oramento regular das Naes Unidas), no
semostraro favorveis a operaes futuras semelhantes, por muito
imperati-vos que sejam os argumentos em seu favor.
73 Sarah Pritchard, United Nations involvement in post-conflict
reconstruction efforts:new and continuing challenges in the case of
East Timor, in University of New South WalesLaw Journal, 24, n. 1,
2001, p. 185.
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Paulo Gorjo
A primeira sugesto de que tal ocorrer surgiu com o Acordo
Intra--Afego de Bona de 5 de Dezembro de 2001, quando a tarefa de
reabilitar,recuperar e reconstruir o territrio foi colocada sob a
autoridade da Autori-dade Interina Afeg, e no sob a
responsabilidade de uma administraotransitria das Naes Unidas. De
facto, a Resoluo n. 1383 do Conselhode Segurana das Naes Unidas
limitou-se a sancionar as concluses deBona. E, a ser necessria
qualquer outra prova, bastar apontar que o Con-selho de Segurana da
ONU ignorou os comentrios de Vieira de Mello e dopresidente do
Banco Mundial, James Wolfensohn, de que Timor Leste po-deria
constituir um modelo para uma nova administrao interina no
Afega-nisto74. De facto, a situao deste territrio no corresponde
exactamente de Timor Leste, tal como conceptualmente entendida
anteriormente. Con-tudo, na comparao entre o Afeganisto e Timor
Leste ou o Kosovo foicertamente tomado em considerao o facto de o
primeiro ser um territriomuito maior em termos geogrficos e
populacionais. A misso da ONU nopequenssimo territrio de Timor
Leste teve custos econmicos muito eleva-dos, chegando a atingir
cerca de 500 milhes de dlares americanos por dia.Assim, no difcil
prever que uma misso similar no Afeganisto implicas-se custos
econmicos muito mais elevados.
muito provvel que, no futuro, os Estados Unidos favoream a
perspec-tiva de que a formao e construo institucional pertence
burocraticamenteao mundo do desenvolvimento, como fizeram
inicialmente em relao aTimor Leste75. Ainda que pelas razes
erradas, os Estados Unidos favorecem,provavelmente, a melhor opo.
Uma vez mais, o Afeganisto parece con-firmar esta tendncia. Nos
anos que se avizinham, o territrio ficar sob aresponsabilidade
burocrtica do mundo do desenvolvimento. De acordo comuma avaliao
preliminar preparada conjuntamente pelo Programa de
Desen-volvimento das Naes Unidas, pelo Banco Mundial e pelo Banco
de Desen-volvimento Asitico, estimou-se que o processo de
reabilitao, recuperaoe reconstruo venha a custar cerca de 15 mil
milhes de dlares ao longoda prxima dcada.
Last but not least, a probabilidade de que misses de construo
deEstados como a UNTAET venham a ser necessrias com mais frequncia
nofuturo assenta no pressuposto no confirmado de que muitos outros
Estadossoberanos, os chamados Estados falhados, iro desintegrar-se
durante osprximos anos do ps-guerra fria76. Porm, medida que o
tempo passa e
74 UN says East Timor can serve as Afghanistan model, Reuters,
11 de Dezembro de 2002.75 Suhrke, op. cit., p.10.76 Matthias
Ruffert, The administration of Kosovo and East Timor by the
international
community, in International and Comparative Law Quarterly, 50,
n. 3, Agosto de 2001,p. 631.
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A Administrao Transitria das Naes Unidas em Timor Leste
o sistema ps-guerra fria comea a estabilizar-se, tambm possvel
argu-mentar que o mais provvel que ocorra a situao oposta. De
facto, ascondies nicas por detrs da UNTAET e da INTERFET deram azo
a umaexperincia excepcional e contra a corrente77. Devido s razes
anterior-mente apontadas, muito provvel que a UNTAET, mais do que
um modelopara futuras operaes de construo de Estados da ONU, venha
a constituirum case study relativo a uma anomalia histrica nos
manuais sobre as an-teriores operaes de manuteno da paz.
interessante notar que Timor Leste depois de ter sido um teste
delaboratrio para as misses de construo de Estados da ONU se
con-verteu, uma vez mais, num test case, desta feita devido vontade
polticado Japo de desempenhar um papel crescente tanto na segurana
regionalasitica como no palco poltico internacional78.
77 James Cotton, Against the grain: the East Timor intervention,
in Survival, 43, n. 1,Primavera de 2001, pp. 127-142.
78 V. Paulo Gorjo, Japans foreign policy and East Timor,
1975-2002, in Asian Survey,42, n. 5, Setembro-Outubro de 2002, pp.
754-771, ou a verso revista e aprofundada, O Japoe Timor Leste, in
Nao e Defesa, n. 103, Outono-Inverno de 2002, pp. 157-180.