1
Universidade de Braslia UnB
Instituto de Cincias Sociais ICS
Departamento de Sociologia
Leandro Leal Moraes
Do preto-e-branco papel aquarela impura do tempo:
ressignificaes da arquitetura modernista na histria de
Braslia.
Braslia (DF), novembro de 2013
Universidade de Braslia
2
Leandro Leal Moraes
Do preto-e-branco
papel aquarela impura do
tempo: ressignificaes da
arquitetura modernista na
histria de Braslia.
Monografia apresentada Banca
Examinadora do Departamento de Sociologia da
Universidade de Braslia como exigncia final
para a obteno do ttulo de Bacharel em
Cincias Sociais com habilitao em Sociologia.
Orientador: Prof. Dr.
Michelangelo Giotto Santoro
Trigueiro
Braslia (DF), julho de 2013
3
Do preto-e-branco papel aquarela impura do tempo:
ressignificaes da arquitetura modernista na histria de
Braslia.
Leandro Leal Moraes
BANCA EXAMINADORA
..............................................................................
Prof. Dr. Michelangelo Giotto Santoro Trigueiro Orientador
...............................................................................
Prof. Dr. Brasilmar Ferreira Nunes
4
Resumo: Este trabalho discute a histria de uma forma especfica
de ocupao do
espao da cidade de Braslia definida como arquitetura modernista.
Argumentamos que o
espao fsico de uma cidade social e, portanto, passvel de
ressignificaes simblicas ao
longo do tempo. Para operacionalizar tal acepo, pautamo-nos no
conceito de prtica
cunhado por Louis Althusser. Tratamos, assim, de buscar as
alteraes de significados sociais
da arquitetura modernista na histria de Braslia. Primeiramente,
identificamos os
antecedentes que possibilitam o surgimento da forma de ocupao do
espao. Nesta busca
das origens, selecionamos os discursos de uma arquitetura
modernista de um governo
desenvolvimentista. Traamos algumas possveis aproximaes e
distanciamentos dos dois
discursos selecionados, bem como identificamos suas filiaes
tericas. Posteriormente,
confrontamos o desenvolvimento factual da cidade com as
premissas da cidade planejada
atravs de dados socioeconmicos e do relatrio Braslia Revisitada.
Argumentamos, por fim,
que a interpretao da histria da cidade de Braslia no pode
resumir-se aos itens contidos no
plano original da cidade, uma vez que esta est em constante
processo de ressignificao.
Palavras-chave: Sociologia Urbana. Histria. Prtica.
5
Agradecimentos:
Primeiramente, agradeo a Universidade de Braslia na qual, com
todos os seus
problemas, tive a honra de conviver com as pessoas mais
apaixonadas e brilhantes que j
conheci. Ao meu orientador, Michelangelo pelos seus conselhos
sbios, mas, principalmente,
pela sua humanidade e compreenso. Ao meu pai, com quem pouco
convivi, mas que tem sua
parcela de quem eu sou. Afinal, talvez aquilo que mais fale de
nossa alma seja aquilo que se
furta, inclusive de ns mesmos. Obrigado pelo amor. Ao meu irmo
Cssio, antigo parceiro de
brinquedos, por suas observaes inteligentes e risadas bobas. E
especialmente minha me,
Suzana, companheira por tantas cidades, das quais a primeira em
que morei foi justamente seu
corpo.
6
Sumrio:
1. Introduo
Parte I
2. A realidade global e nosso objeto
2.1 A cidade como categoria sociolgica
Parte II
3. A cidade de Braslia
3.1 Sociognese da forma urbana
Parte III
4. A cidade vivida
4.1 Dados socioeconmicos e formas urbanas
4.2 A prtica arquitetnica de Lcio Costa 27 anos depois:
Braslia
Revisitada.
5. Consideraes Finais.
7
1. Introduo
Plano piloto
Sim, Braslia.
admirei o tempo
que j cobre de anos
tuas impecveis matemticas.
Paulo Leminski
Os espaos que ocupam as sociedades so mais que a simples relao
do homem com
um ambiente inerte, so criaes expressas em elementos fsicos (que
ensejam novas
criaes). Estes portadores do elemento criativo humano contm
significados, histrias e
prticas plsticos. A mobilidade criativa do esprito humano,
erigida sobre sua histria, torna
espinhosa a tarefa de capturar significados do presente, sempre
fugidios e to diversos num
mesmo tempo quanto os homens que lhes criam e comportam. Um
produto humano
aparentemente estanque como o cimento de uma cidade possui uma
plasticidade assombrosa:
bairros outrora nobres se convertem em perigo e pobreza, casas
viram escolas, pontes podem
ser casas. Uma vez realizado o produto da imaginao humana, este
se sujeita s mais
variadas e imprevisveis apropriaes e novas criaes. Com o espao
das cidades no poderia
ser diferente: alm do movimento cotidiano visvel de gentes;
carros; bicicletas; motos e
luzes, os significados dos espaos da cidade tambm se revolvem
incansavelmente dentro de
seu cimento aparentemente insensvel.
O objeto que pretendemos discutir sociologicamente a histria dos
significados
atribudos a uma forma especfica de ocupao do espao urbano na
histria da cidade de
Braslia. Buscaremos expor as transformaes por que a passa o
contnuo fsico da arquitetura
modernista na histria da cidade. A empreitada de carter histrico
dialogar com a teoria
marxista representada, principalmente, por Louis Althusser, que
confere, em nosso
8
entendimento, grande fluidez ao elemento ideal humano atravs da
ideia de prtica. A forma
referida o Plano Piloto da cidade de Braslia, identificado como
locus privilegiado da
objetivao de uma arquitetura modernista1. A inspirao do
trabalho, embora um tanto
desnaturada em relao sua filiao inicial, advm da pesquisa
empreendida por Cidade e
Souza2. Segundo a pesquisa, a narrativa brasiliense oficial tem
como parmetro o plano
piloto, porm a narrativa espontnea da cidade seria conflitante
com aquela produzida
oficialmente. Esta localidade no Distrito Federal tem uma forma
de organizao espacial
particular derivada de um arranjo social especfico. Desta forma,
o olhar histrico do texto
medita sobre as permanncias das intencionalidades do projeto
original em uma cidade v
suas prticas, seus ndices discursivos e fsicos, ressignificadas
ao longo do tempo. As
permanncias e rupturas dos signos do projeto original sero
mensuradas pela classificao da
arquitetura modernista enquanto prtica no sentido especfico que
lhe confere Althusser.3
de conhecimento geral, pelo menos na cidade, tambm que o tipo de
organizao
espacial descrito, revelia dos projetos concebidos para a
cidade, hoje no unvoco em
Braslia. A regio do Distrito Federal (que comporta Braslia)
cresceu em populao, e valeu-
se de estratgias de ocupao no contidas nos termos formais de
construo da cidade de
breve existncia. O desenvolvimento factual da cidade de Braslia,
em um pouco mais de
cinquenta anos, enseja novas apropriaes simblicas da forma
modernista de ocupar espao.
Questes levantadas a respeito do espao fsico cidade de Braslia,
usualmente, talvez
por seu curto perodo de existncia, retornam aos planos originais
da cidade e confrontam-no
com uma realidade que extrapola o ento previsto4. Uma abordagem
corrente na literatura
sobre a cidade de Braslia medita sobre os distanciamentos da
cidade pensada e da cidade5
vivida. Tal abordagem muitas vezes liga a realidade vivida na
cidade aos sentidos atribudos
ao projeto original de cidade, estes, por conferirem forma
urbana a liderana de um processo
de ruptura histrica6, haveriam ignorado a realidade nacional
que, por sua parte, tratou de
1 NUNES, Brasilmar F.: Braslia: a fantasia corporificada
Braslia, Paralelo 15, 2004 .
2 CIDADE, Lcia Cony Faria & SOUZA, Srgio de Oliveira.
Geopoltica, modernismo e imagem de cidade:
potencialidades e limites do patrimnio turstico no Distrito
Federal. Rio Claro: Geografia, 27(3): 71-86,
Dezembro de 2002. Revista da AGETEO Associao de Geografia
Teortica.
3 ALTHUSSER, Louis de: A favor de Marx. Rio de Janeiro, Zahar
Editores, 1979.
4 DE MAGALHES, Themis Quezado. Braslia: mitos e vivncias.
Dissertao de mestrado em antropologia
apresentada ao Departamento de Cincias Sociais da Universidade
de Braslia. Braslia, 1985.
5 BERNARDES, G. D. Goinia, cidade planejada / cidade vivida:
discurso e
cultura da modernidade. Tese (doutorado em Sociologia). Braslia:
Departamento de Sociologia da UnB.
9
burlar as formas de ocupao prescritas oficialmente. Afirma-se
usualmente tambm que a
cidade solapa as intenes histrico-sociais que entrev o projeto,
e a existncia significativa
da arquitetura modernista no Plano Piloto teria unicamente uma
funo museolgica. John
Holston7 j indicara em sua etnografia da cidade a existncia da
concepo de que a forma
modernista tributa sua presena na cidade s protees legais
destinadas a estrutura urbana8, e
que, deixada desprotegida, revelia ditames da propriedade
privada, perderia sua
peculiaridade espacial. Precocemente, observamos uma mudana de
vetor temporal nos
sentidos atribudos forma urbana da capital federal. A cidade
nascida sob o signo de
catalisador das mudanas eterniza uma forma urbana contra as
ameaas de lgicas espaciais
que prometera subverter. A cidade, outrora bastio da mudana,
cristaliza formalmente seu
modo de ocupao urbana. Cumpre analisar, entretanto, as
diferentes semnticas que se
plasmam a este contnuo arquitetnico na histria da cidade. O fato
de o nosso objeto
constituir-se em uma unidade arquitetnica no implica que
entenderemos o espao da cidade
como uma singularidade, muito pelo contrrio. Implicamos que a
existncia das mais variadas
estratgias de ocupar o espao da cidade de Braslia reconfiguram
as definies simblicas
atribudas arquitetura modernista. Buscaremos evidenciar esta
constatao, principalmente,
pela anlise documental do relatrio denominado Braslia
Revisitada, produzido em 1987 por
Lcio Costa.
A ressignificao da forma de ocupao singular da cidade se
evidenciar mais
claramente na breve recapitulao histrica que empreenderemos. Sem
desconsiderar o poder
da lgica econmica exerce sobre a significao dos objetos
contemporneos, buscaremos
analisar a possvel eficincia que ideologias endmicas histria da
forma modernista de
ocupar a cidade tm na apreciao simblica de uma morfologia
particular na cidade. Dentre
as fontes discursivas que consideramos particulares ao nosso
objeto, selecionaremos (em
nosso primeiro corte temporal) os significados que um governo
desenvolvimentista, por um
6[...] o esprito de Braslia: sua invocao para romper com o
passado. HOLSTON, John. A Cidade
Modernista: uma crtica de Braslia e sua Utopia. Companhia das
Letras. So Paulo. 1993. 7 Idem
8 Em 7 de Dezembro de 1987, a cidade de Braslia tombada pela
UNESCO e passa a ser considerada
Patrimnio Cultural da Humanidade. A deciso, tomada por consenso,
justificou-se no somente pelas
caractersticas arquitetnicas, mas tambm pelo fato da cidade ser
a nica construda no sculo XX com funo
de capital. J na lei que define a organizao administrativa do
Distrito Federal (Artigo 38 da Lei n 3.751/60),
observamos a preocupao com a preservao da forma urbana peculiar
cidade. A cidade tambm tombada
como patrimnio histrico federal em 1990 e pelo Governo do
Distrito Federal em 1991. O Iphan define as
diretrizes de preservao do conjunto urbano de Braslia atravs do
decreto n 10.829 de 14 de outubro e da
portaria n 314/92 .
10
lado, e uma arquitetura modernista, de outro, atribuem forma de
ocupao urbana.
Buscaremos, mais detidamente, a compreenso da eficcia de valores
originalmente
associados forma urbana, na formulao de smbolos atribudos
arquitetura modernista ao
longo do tempo. A tarefa de acomodao de realidades
simultaneamente locais e globais,
passadas e presentes, aparecem, portanto, como o grande desafio
terico do texto. Para tal
exerccio dialogaremos com Louis Althusser, cuja leitura do
conceito de prtica
(ALTHUSSER, 1979) reordena as relaes de prevalncia entre a
infraestrutura das relaes
materiais e a superestrutura ideal. A primeira parte do
trabalho, uma sociognese do modelo
urbano modernista, demonstrar antecipadamente a possibilidade de
um mesmo objeto social
agregar significados distintos em um mesmo tempo, no sentido de
que a sociedade se
reproduz constantemente e a partir de regimes (simblicos) de
eficincia diferenciados a partir
da matria-prima que encontra (que , em larga medida,
histrica).
.
Parte I
2. A realidade global e nosso objeto
Sim, meu corao muito pequeno.
S agora vejo que nele no cabem os homens.
Os homens esto c fora, esto na rua.
A rua enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas tambm a rua no cabe todos os homens.
A rua menor que o mundo.
O mundo grande.9
Carlos Drummond de Andrade
O trabalho de seleo de uma bibliografia acerca das cidades
tarefa espinhosa e um
grande ensinamento de como dizer no. A primeira dificuldade a
mais bvia: consiste na
angustiante impossibilidade humana de absorver todos os escritos
existentes sobre um tema, o
que evidencia, desde j, a parcialidade subjacente a este
trabalho. A segunda questo diz
respeito mais especificamente aos significados que a sociologia
urbana imputa ao mundo
9 Estrofe retirada do poema Mundo Grande de Carlos Drummond de
Andrade.
11
contemporneo, que acabam por refletir sobre prpria tarefa de
seleo literria para o estudo.
Em relao segunda questo levantada, apontamos que, para Saskia
Sassen10
, a
sociedade contempornea vive em mundo conectado por um mercado
global no qual as
cidades assumem papeis proeminentes. Neste mundo, a centralidade
do poder dos estados
nacionais deveria ser realocada analiticamente, uma vez que as
grandes empresas
multinacionais e os grandes bancos do mundo hoje no respeitariam
fidelidades territoriais,
sendo regidos por acomodaes econmicas transnacionais. Em
contrapartida, a
mundializao da mercadoria, segundo a autora, demanda
centralizaes de poder (distintas
daquelas dos estado-nacionais); a exigncia seria preenchida por
cidades estratgicas, que
funcionariam como pontos nodais do processo produtivo mundial e
so denominadas cidades-
globais.
A ampliao do modelo capitalista de produo e troca mundializado
alteraria os
significados de tempo e espao. O espao urbano, passvel de
efeitos causados pela economia
global, seria ressignificado para atender funo mundial assumida
por uma cidade. Sassen
demonstra, por exemplo, a reavaliao simblica de bairros (gerida
pelo estabelecimento de
um papel especfico para uma cidade nas redes de trocas
internacionais) outrora considerados
inferiores na lgica de uma cidade valendo-se da ideia de
gentrificao. Ademais, a prpria
Sassen identifica que a evoluo na velocidade e quantidade de
informaes trocadas
globalmente, pede redefinies de relaes de trabalho e da prpria
ontologia do espao
humano.
Identificar a ampliao de um mercado global na contemporaneidade
certamente nos
seduz adoo de aparatos tericos macroscpicos, que apreciam a
realidade contempornea
em uma unidade global, com destaque lgica econmica capitalista.
Resta saber, entretanto,
se a mundializao da lgica da mercadoria tem fora explicativa o
suficiente para dar conta
das diversidades que se mostram no mesmo espao da mercadoria por
excelncia: as cidades.
Algumas abordagens conseguem articular a ideia de um mercado com
o global e a existncia
de diversidades intra e interurbanas, enquanto outras consideram
que a prpria lgica
capitalista enseja diferenciaes no mundo do trabalho, e este,
entendido como o cerne da
vida humana, reverbera suas distines sobre outros espaos
sociais, como a forma fsica da
cidade e suas respectivas imagens.
10
SASSEN, Saskia: A cidade global: recuperando o lugar e as
prticas scias. In Sociologia da globalizao (Sassen, S.). Porto
Alegre, ARTMED, 2010.
12
O olhar arquitetnico de Norma Lacerda11
indica que nas mesmas metrpoles sujeitas
a compreenses pautadas na lgica de mercado, podem ser
vislumbrados efeitos
fragmentao. A autora dirige seu olhar s morfologias das
diferentes formas de ocupao do
espao em uma mesma metrpole. Pautada na acepo, cara aos
cientistas sociais, de que o
espao urbano um dado social a priori, alega que a metrpole
contempornea um lugar
fragmentado (partes discernveis de um todo por diversos padres
de uso) e heterogneo, do
qual os habitantes da cidade s tm acesso a partes selecionadas;
as sanes descritas
guardariam estreita relao com ditames polticos e econmicos.
Poder-se-ia argumentar,
talvez, enfileirando-se a um marxismo ortodoxo, que a
diversidade descrita funda-se
exclusivamente na diviso do trabalho e nas ideologias alienantes
produzidas da. Destarte,
buscaremos fundamentar o argumento que, a despeito do poder das
relaes econmicas nas
atribuies de smbolos ao espao, este (anteriormente) social. A
compreenso do espao
urbano enquanto um objeto social indica que as narrativas que se
ligam a este so sempre, em
certa medida, historicamente arbitrrias. Neste toante, apontamos
que uma possvel
centralidade da lgica produtiva nas definies dos smbolos de uma
cidade no deve ser
naturalizada em termos apenas econmicos. Tentaremos, por uma
breve reviso histrica,
identificar como que a cidade conta, e sempre contou, com
regimes de realidade de ordens
particulares.
Apoiados nessa perspectiva, afirmamos que a considerao da
importncia da lgica
econmica na definio de smbolos urbanos no implica que essa possa
ser apreciada como
uma ontologia humana regente da pesquisa, tampouco consideramos
que solapa totalmente
outras lgicas simultaneamente prticas e discursivas. Porm, um
mercado-mundo (ou
mundo-mercado) complexo e integrado, como ressaltado na ideia de
cidades globais, nos
convida considerao da importncia das trocas de mercadorias nas
definies dos smbolos
citadinos. Mesmo que a sugesto acerca da no naturalizao histrica
da lgica de trocas de
mercadorias retire-lhe o papel de verdade humana ltima, parece
um tanto quanto
irresponsvel negar-lhe a eficincia na definio dos processos
sociais dentro da cidade. A
centralidade explicativa das relaes de produo na compreenso da
realidade social nos
remete ao dilogo com o materialismo histrico, corrente que nos
ajudar a problematizar o
nosso objeto (seja em sua justa adaptao ou distanciamentos
frente realidade estudada).
11 LACERDA, N. Fragmentao e integrao: movimentos de (re)
estruturao espacial das metrpoles
brasileiras. In: RIBEIRO, A. C.T, LIMONAD, E. , GUSMO, P. P.
Desafios do planejamento: produo da
metrpole e questes ambientais, Rio de Janeiro, Letra Capital,
2012 p. 21-42.
13
Para sermos justos, cumpre indicar que o materialismo histrico
marxista12
no
reconhece a forma de relaes advindas da produo capitalista como
ontologia humana
inegocivel. Esta equivaleria, na verdade, a um desenvolvimento
histrico (necessrio,
verdade) da ontologia marxista, a saber: a ideia de que o homem,
ao produzir sua vida
material em relao ao meio, o faz socialmente e altera os
ulteriores meios de reproduo da
vida e reafirma a histria humana. Portanto, a ontologia
marxista, que diferencia a
humanidade por seu papel produtor, autoriza a plasticidade das
formas de organizao da
produo no tempo. A crtica da economia poltica de Marx pauta-se
na negao da
naturalizao operada por economistas (como Adam Smith13
) de comportamentos sociais
pautados em uma formao scio-histrica particular. Segundo aquele
autor, a compreenso
da realidade social deveria pautar-se em critrios mais
profundos, a saber: o grau de
desenvolvimento das foras produtivas e o estado das relaes de
produo: eis a, desde j,
os conceitos fundamentais de Marx (ALTHUSSER, 1979). Mas, se a
ontologia descrita
assume formas objetivas variadas (mesmo que estas sejam passveis
de previso cientfica),
ela mesma talvez imponha uma rigidez compreensiva s realidades
estudadas. Adotada
irrestritamente, a teoria marxista demanda que os discursos que
no se dirijam cientificamente
s condies objetivas de produo devam ser considerados falaciosos
ou alienantes, uma vez
que as formas ideais seriam determinadas anteriormente pelas
relaes objetivas de produo.
Marx salienta, no estudo Para uma Crtica da Economia Poltica, a
antecedncia que as
foras objetivas de produo material (infraestrutura) detm sobre
as formas de conscincia
(superestrutura), nos seguintes termos:
O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me
de fio condutor aos
meus estudos pode ser formulado em poucas palavras: na produo
social da prpria vida,
os homens contraem relaes determinadas, necessrias e
independentes de sua vontade,
relaes de produo estas que correspondem a uma etapa determinada
de desenvolvimento
de suas foras produtivas materiais. A totalidade destas relaes
de produo forma a
estrutura econmica da sociedade, a base real sobre a qual se
levanta uma superestrutura
jurdica e poltica, e qual correspondem formas sociais
determinadas de conscincia. O
modo de produo da vida material condiciona o processo em geral
da vida social, poltico
e espiritual. No a conscincia dos homens que determina o seu
ser, mas, ao contrrio, o
seu ser social que determina sua conscincia. Em certa etapa do
seu desenvolvimento, as foras produtivas materiais da sociedade
entram em contradio com as relaes de
produo existentes. (MARX, 1983)
12 ENGELS, Friedrich & MARX, Karl A Ideologia Alem. So
Paulo, Editorial Grijalbo, 1977.
13 H na economia clssica o conceito de que o homem um ser
racional que possui a habilidade de operar
julgamentos em suas aes. Segundo tal concepo, o homem seria
provido naturalmente de uma natural
habilidade de agir em vista da maximizao de seus lucros (SMITH,
1988).
14
Como um dos objetivos que circunda o trabalho mapear alguns dos
significados
endmicos forma urbana do Plano Piloto, a teoria marxista da
ideologia talvez parea,
primeira vista, incongruente ao objeto que se pretende analisar.
Neste percurso, dialogaremos
com Louis de Althusser, filsofo marxista, que nos permitir
conferir superestrutura ideal
regimes de eficincia prprios. Exploraremos a interpretao
althusseriana da ontologia da
produo marxista mais frente. Agora, descreveremos em linhas
gerais o caminho que nosso
texto ir percorrer.
A primeira parte do trabalho ser uma breve sociognese14
da forma urbana
projetada para Braslia na qual sublinharemos duas fontes
discursivas: a arquitetura
modernista e um governo desenvolvimentista. Entenderemos a forma
urbana adotada para a
cidade de Braslia como uma proposta de transformao estrutural da
sociedade, que
(malgrado as descontinuidades da realidade objetiva da cidade em
relao ao projeto) acaba
por alterar formas mentais e comportamentos humanos e,
reflexivamente, por estas alterada.
Buscaremos nas fontes discursivas selecionadas os arranjos
sociais que permitem a
emergncia da forma urbana estudada e lhe conferem significados
especficos. A escolha desta
ferramenta metodolgica talvez soe conflitante com uma discusso
cujo personagem principal
a teoria materialista marxista. No obstante, em primeiro lugar,
a apropriao da acepo
eliasina pode nos permitir discernir com mais acuro os
antecedentes sociais que do
emergncia a um modelo urbano que, em sua fase gentica, se liga
ideia de ruptura15
. O uso
do conceito de referido tambm concorda com um posicionamento
terico-metodolgico
especfico; este crente que a compreenso das realidades sociais
no se exaure em explicaes
globalizadas ou de alcance transhistrico, mas demanda a exposio
de foras histricas
particulares (sejam estas estruturais ou psquicas). Ao mesmo
tempo, descartar
definitivamente a existncia de arranjos sociais de alcance
global seria uma imprudncia
tremenda. Entretanto, a compreenso da realidade se complexifica
e aprofunda com a
considerao simultnea das esferas global e localizada. Afinal,
mesmo a acepo de que o
mundo pode ser compreendido a partir de universais tericos
necessita testar a validade de
14 ELIAS, Norbert O Processo Civilizador. Uma Histria dos
Costumes. Vol.I. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar ed., 1994.
15 John Holston, em sua obra A Cidade Modernista: uma crtica de
Braslia e sua utopia, aponta a
desfamilizarizao causada pela forma urbana de Braslia. Em
especial, no que se refere extino do conceito
de rua na cidade. Tambm se destaca o papel histrico atribudo
cidade nos projetos de superao do
subdesenvolvimento.
15
suas teorias em casos particulares.
A parte inicial, como afirmado anteriormente, buscar argumentar
que duas fontes
discursivas distintas podem frequentar simultaneamente uma mesma
unidade fsica a despeito
de se afirmarem como regimes diferenciados e unvocos de
realidade. A diviso seguinte de
nossa histria, localizada entre os anos de 1987 e 1990, discute
os destinos dos significados
da prtica arquitetnica modernista em face ao desenvolvimento da
cidade. Essa seo
abordar o papel que a lgica monetria teve na ocupao espacial da
cidade e seus efeitos
nas narrativas atribudas a uma forma de organizar o espao.
Pensamos, porm, que a
investigao demanda primeiramente um passeio, mesmo que pouco
aprofundado, por alguns
dos cones da sociologia urbana.
2.1 A cidade como categoria sociolgica
No h assunto to velho que no possa ser dito algo de novo sobre
ele.
Dostoievski
comumente aceito na teoria sociolgica que as cidades, tal como
so concebidas
atualmente, so fenmeno recentes. Ruben George Oliven afirma que
as cidades j existiam
h milhares de anos, entretanto sua importncia aumentou em dois
perodos histricos mais
recentes 16
. O primeiro dos perodos referidos pelo autor equivale ao fim da
idade mdia,
reestruturao do sistema feudal e consequente emergncia do
capitalismo comercial. O
segundo episdio, definido como Revoluo Industrial, inicia-se no
sculo XVIII e reputa-se
a este perodo a consolidao do modo de produo capitalista.
Observa-se desde j que a
categoria cidade, perscrutada sob um prisma sociolgico, no pode
reduzir-se a um simples
aglomerado de pessoas em determinado espao. O alerta contra os
perigos da reduo
morfolgica ou fsica na definio da cidade no deve, entretanto,
levar-nos na direo
oposta: a de um reducionismo sociolgico. Aceitar que a forma de
organizar o espao explica-
se tambm (mas no somente) por determinantes simblicas no
equivale dizer que a
dimenso fsica do espao resulte em simples acessrio. Como
observaremos mais frente,
desde h muito os cientistas sociais discutem sobre as influncias
das morfologias espaciais
sobre as mentalidades humanas.
16 OLIVEN, Ruben George Urbanizao e Mudana Social no Brasil.
Petrpolis, Editora Vozes, 1988.
16
A cidade como varivel dependente
Em nossa incurso panormica pela sociologia urbana reunimos neste
mesmo tpico,
de maneira temerria qui, dois dos maiores expoentes da
sociologia dos fins do sculo XIX
e comeo do sculo passado: Max Weber e Karl Marx. A distncia de
aportes tericos dos
dois autores explicita-se claramente quando ambos tratam de um
mesmo tema: a emergncia
do capitalismo. Para exemplificar, a sociologia de Weber com A
tica Protestante e o Esprito
do Capitalismo diametralmente oposta aos jovens escritos de Marx
em A Ideologia Alem.
Entretanto, se os caminhos tericos percorridos para a explicao
do fenmeno capitalista so
diferenciados, o peso explicativo que os atores atribuem
categoria cidade em suas
sociologias parece permitir aproximaes, mesmo que estas
meramente tangenciais. Sem mais
delongas, exploraremos de forma clere o papel da categoria
cidade na obra dos dois autores.
Em consonncia com o que anteriormente afirmamos, Max Weber
assinala que as
cidades no se resumem a aglomerados urbanos, mas so estas
dependentes de certas
circunstncias sociais para se caracterizaram enquanto tal.
Assevera que estas surgem
somente no ocidente e em condies histricas especficas. Para que
isto ocorresse era
preciso que houvesse estabelecimentos de carter
industrial-mercantil bastante pronunciado
(OLIVEN, 1988). Weber, portanto, d primazia ao mercado como
lgica que rege a vida
urbana. A centralidade do mercado na definio das cidades
weberianas explicitada quando
o autor vale-se de seu conceito de tipos ideais. A taxonomia
traada em seu ensaio Dominao
no legtima: A Tipologia das Cidades17
leva grandemente em conta a funo econmica das
cidades modernas em sua classificao.
A despeito da centralidade adjudicada ao mercado em sua
tipificao de cidade, o
autor afirma que este no garante de modo onipotente a
classificao de um espao enquanto
cidade; uma vez que toda cidade um local de mercado, mas nem
todo mercado uma
17 WEBER, Max. Dominao no legtima: A tipologia das Cidades in:
Economia e Sociedade. Vol. 2. Braslia,
UNB, 2000.
17
cidade. Entrementes, para o celebrado escritor, a cidade seria
uma pr-condio do
capitalismo, na medida em que necessria para a existncia do
mesmo. Porm, Weber
afirma que a existncia de estado-nacionais europeus e a economia
internacional vetam a
apreciao das cidades como categorias sociolgicas
autossuficientes, pois as lgicas
econmicas e polticas sobredeterminariam as experincias sociais
citadinas. Para o autor, a
cidade o bero do capitalismo, porm este, enquanto lgica que
governa a ao, a supera em
seu desenvolvimento histrico. Interpretamos, assim, que Weber no
admite a existncia de
uma sociologia urbana por excelncia, uma vez que as bases lgicas
das experincias vividas
nas cidades no poderiam ser atribudas imediatamente aos
permetros urbanos.
Karl Marx, por sua vez, indica que uma economia urbana requer um
processo prvio
de diviso do trabalho 18
. Segundo esse autor, um dos fundamentos na diviso do
trabalho
baseada em trocas de mercadorias pauta-se inicialmente na
distino entre cidade e campo.
Afirma-se que a cidade o espao onde os vnculos de trabalho se
diferenciam daqueles
vividos no feudalismo, estes baseados em estamentos nos quais as
posies superiores
hierarquicamente definiam-se pela posse da terra. Com o fim do
feudalismo, os homens
outrora servos so convertidos em homens livres sem meios de
produo e vendem sua fora
de trabalho aos capitalistas. Estes ocupantes hierarquicamente
superiores tm suas posies
determinadas por sua riqueza monetria (e deteno dos meios de
produo), em oposio aos
ttulos de nobreza e posse de terra que geriam a lgica hierrquica
feudal. A cidade, neste
sentido, um mercado que contm a populao exigida pelo aparelho
produtivo e o exrcito
de reserva que a burguesia requer [...]. A centralidade da ideia
de mercado capitalista parece
admitir, assim, duas dimenses na teoria marxista (estas duas
regidas pelo sistema de
acumulao capitalista). A cidade seria um espao de mercados na
medida em que produz e
circula bens e dinheiro, mas tambm seria um mercado de trabalho,
onde a classe despossuda
vende sua fora de trabalho. importante realar mais uma vez, que
o autor acredita que a
unidade social analtica mais profunda o conjunto das relaes de
produo, que
determinariam anteriormente a esfera da conscincia humana.
A reunio de duas correntes tericas to divergentes justifica-se
pelo fato de os dois
atores caracterizarem a cidade como o espao do mercado por
excelncia. Em outras palavras,
a cidade no poderia ser compreendida a partir de sua realidade
singular. Essa, se estudada em
18 MARX, Karl. O Capital: Crtica da Economia Poltica Vl.I. 23
Ed. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira,
2006.
18
sua evoluo ou surgimento, demandaria sua classificao como
componente de um todo mais
abrangente, logo a sua compreenso deveria especificar as foras
histricas que lhe do
existncia (como as econmicas). Em outras palavras, entendemos
que para ambos os autores
a cidade, enquanto categoria sociolgica isolada, possui poder
explicativo limitado e no pode
ser considerada como fundamento ltimo da anlise de
comportamentos sociais no contexto
urbano. Neste toante, nos filiaremos aos autores, mesmo que
nosso objeto de anlise se
restrinja a uma forma urbana dentre muitas na cidade, e uma
cidade entre muitas no mundo.
Entretanto, as categorias macrossociolgicas nos auxiliaro na
reconstruo da histria da
ereo da cidade de Braslia com tons diversos de uma mitologia
heroica19
, em especial, a
apropriao dos escritos de Althusser nos far revisitar a
ontologia marxista da produo.
Georg Simmel e a Escola de Chicago: A cidade como categoria
independente
Um olhar que se volte aos cones da sociologia urbana, por mais
superficial, no
poderia negligenciar aquela que por muitos considerada a
matriarca da corrente de estudos
da sociologia urbana: a Escola de Chicago. Georg Simmel
identificado como uma das
grandes fontes de inspirao para a consolidao da referida escola,
em especial atravs do
artigo intitulado A metrpole e a vida mental20
. Neste artigo, Georg Simmel indica o sculo
XVIII como marcante na tenso entre a emancipao individual humana
e uma crescente
dependncia destes mesmos indivduos (tecnicamente mais
especializados) das percias
especializadas de outros indivduos. O palco em que o autor traa
sua anlise so as
metrpoles e busca nestas compreender a acomodao entre as
personalidades e foras
externas. O artigo diferencia ento os efeitos mentais criados no
indivduo pela vida
metropolitana, estes distintos daqueles gerados em uma vivncia
rural ou de cidade pequena.
Simmel indica que a vida nas metrpoles intensifica enormemente
os estmulos imagsticos
aos quais os homens metropolitanos so submetidos e, contra o
efeito de desenraizamento
frente sucesso frenticas de imagens, cria a tendncia ao
intelectualismo.
Exalta-se no artigo a importncia e intensidade que as trocas
econmicas monetrias
19 Magalhes aponta que a discusso sobre a realidade urbana do
Distrito Federal, em especial no que tange seus
problemas sociais, revisita constantemente os projetos
urbansticos originais da cidade e seus heris fundadores
(DE MAGALHES, 1985).
20 SIMMEL, Georg. A metrpole e a vida menta in VELHO, O. (org) O
fenmeno urbano, Rio de Janeiro,
Zahar Editora, 1979.
19
assumem nas metrpoles se comparadas com o meio rural ou nas
cidades diminutas. As
formas de trocas tpicas nas metrpoles solapariam as
peculiaridades dos objetos e
personalidades em favor de um parmetro racional monetrio unvoco,
que se ope
considerao das individualidades em que se pautam as trocas em
ambientes rurais ou em
cidade pequenas. O intelectualismo citadino e a forma monetria
de troca estariam, segundo
Simmel, to intimamente relacionados que tornariam espinhosa a
tarefa de definir uma
sucesso temporal entre esta e aquele.
Simmel, entretanto, no condena moralmente a forma mental das
metrpoles; afirma
que a agregao de uma multido de personalidades e interesses
diferenciados em um mesmo
espao, exige a formalizao, exatido e impessoalidade dos termos
que regem as relaes na
cidade. Indica que a forma mental tpica da cidade, calculista e
exata, ope-se (mesmo que
esta forma mental no seja impossvel em um homem metropolitano) a
esquemas mentais que
privilegiem as personalidades soberanas, cujas justificativas da
ao pautam-se em
disposies individuais genunas e, portanto, irracionais (nos
termos de uma conveno
racional, como o tempo e o valor monetrio).
O autor afirma, ento, que se certo que a metrpole criou uma
estrutura mental
altamente impessoal, esta mesma forma mental e de se relacionar
tem como contraponto a
emergncia de uma subjetividade altamente pessoal. Neste ponto,
Simmel tipifica a atitude
dos indivduos metropolitanos como blas. A explicao de tal
atitude desinteressada repousa,
em parte, sobre o fato de a atitude monetria impessoal
parametrizar todas as coisas e pessoas
em um mesmo termo. A atitude tambm seria uma resposta fisiolgica
dos nervos frente
mudana e variedade de informao aos quais os indivduos so
submetidos nas metrpoles.
Simmel assevera que a infinidade de informao objetivada nas
cidades possibilitaria a
extenso da vida mental individual ao seu pice. Em contrapartida,
intensificados os mesmos
condicionantes, continua o autor, os nervos recusam a considerao
de todos os estmulos aos
quais so submetidos e resultam em uma aparente placidez e
imperceptibilidade frente s mais
plsticas informaes as quais so submetidos os indivduos
metropolitanos. O que aparece
no estilo metropolitano de vida diretamente como dissociao na
realidade apenas uma de
suas formas elementares de socializao (SIMMEL, 1979).
Simmel indica, porm, que a mesma atitude de reserva dos
indivduos metropolitanos
confere-lhes a possibilidade de liberdade individual em
quantidade e qualidade sem
precedentes. Afirma-se que grupos diminutos tanto na quantidade
de indivduos quanto na
extenso espacial exaltam a identidade grupal e, desta forma,
tornam exgua a possibilidade
20
de diferenciao individual. Apoiado em dados histricos, afirma
que poderamos identificar
como lei geral a associao entre o crescimento dos grupos em
quantidade e extenso
territorial com o aumento da possibilidade de diferenciao
individual. Entretanto, no
somente no aumento na quantidade de indivduos e da extenso
territorial que jaz o aumento
da liberdade individual das metrpoles. Simmel aponta que a
explicao deve considerar a
influncia que a metrpole assume na formao das mentalidades que
vai muito alm de seus
limites fsicos, h de se consider-la como sede do cosmopolitismo.
A caracterstica mais
significativa da metrpole essa extenso funcional para alm de
suas fronteiras fsicas
(SIMMEL, 1979).
Por fim, Simmel afirma que a metrpole cria formas inditas de
independncia
individual e de elaborao da prpria individualidade. O sculo
XVIII, identificado como
ponto marcante no surgimento das metrpoles, encontrou os
indivduos presos aos mais
diversos constrangimentos de vnculos polticos, religiosos,
corporativos, etc. Os indivduos
ento clamam por sua liberdade de tais grilhes de modo que,
livres, em todos os indivduos
se manifeste uma substncia comum e j posta, que a histria
suprimiu com a formao de
vnculos dos mais diversos. O autor afirma, desse modo, que,
liberados dos vnculos
histricos, os homens passam a exigir sua diferenciao e direito
de genuinidade individual.
Nas metrpoles, afirma Simmel, encontramos a arena para a disputa
sobre a acomodao do
papel do indivduo na sociedade; nesta formao humana se acirram
as tenses entre histria
geral da sociedade e histria individual. O que mais
interessa-nos no artigo do autor a
percepo de que a organizao da cidade, no somente em suas relaes
de trocas
econmicas, mas em sua prpria morfologia tem privilgio na
explicao de comportamentos
sociais. A prevalncia do espao urbano como unidade de anlise
central no artigo de Simmel
reverberar claramente nos escritos da Escola de Chicago.
Robert Ezra Park, um dos representantes mais destacados da
escola referida, foi aluno
de Georg Simmel na Universidade de Heidelberg. Park estuda
principalmente as patologias
vividas nas cidades norte-americanas provenientes da grande
imigrao europeia no sculo
XIX. A sociologia de tal autor busca descrever instituies e
pessoas da cidade atravs de
suas relaes de foras. O que interessa para esta breve
recapitulao da sociologia urbana o
fato de autor considerar a cidade como uma categoria com
necessria fora explicativa para
definir comportamentos sociais. Park considera que a cidade
possa ser entendida como um
todo orgnico composto de partes diferenciadas21
. A cidade, em outras palavras, aparece
21
como unidade de anlise bsica que funda percepes acerca de
processos sociais. A
abordagem do autor comumente associada ideia de ecologia
humana22
. Esta acepo
implica que o meio ambiente no qual vive o homem,
inseparavelmente fsico e social, tem
influncias sobre as suas formaes mentais e mesmo sobre a sade
fisiolgica. Esta definio
da ecologia humana autorizaria Robert Ezra Park a adotar a
dimenso espacial como unidade
analtica privilegia na definio de comportamentos humanos; o
autor considera o espao
urbano como seu laboratrio de anlises.
Outro autor eminente da Escola de Chicago e influenciado por
Georg Simmel Louis
Wirth. O autor tambm coaduna com ideia de que as malhas urbanas,
tanto por sua
morfologia espacial quanto ao tipo de relaes a praticadas, tem a
potncia influenciar
formas mentais especficas. Wirth afirma que os elementos
fundamentais de definio de uma
cidade so: o tamanho, densidade, permanncia e heterogeneidade.
Este afirma que quanto
mais densamente habitada, mais heterognea for a comunidade,
tanto mais acentuadas sero
as caractersticas do urbanismo23
. Em sinergia ideia de cidade enquanto varivel
sociolgica independente (uma unidade de anlise autossuficiente),
o autor acredita que as
cidades, per se, propiciaria uma forma de cultura, psicologia e
relaes peculiares a seus
habitantes. Louis Wirth tambm se afina com Georg Simmel na
afirmao de que, na
observao das relaes travadas nas cidades, observa-se um duplo
efeito: de um lado,
integrador (pelas relaes parametrizadas pelas lgicas monetria e
temporal travadas na
cidade, que, ademais, considerada como uma unidade orgnica); de
outro, desintegrador (o
mesmo efeito que permitiria a formalizao das relaes entre os
grandes nmeros de
habitantes da cidade solaparia subjetividades idiossincrticas
nessas mesmas relaes).
Implicando sorrateiramente uma viso nostlgica da vida campesina,
o autor vale-se do
conceito durkheiniano de anomia24
e atribui morfologia urbana e as formas de relaes que
da decorrem as responsabilidade pelas mazelas sociais que
ocorrem em sua sociedade.
A contribuio dos autores citados nesta seo encerra-se na
abertura da possibilidade
de estudos dos efeitos sociais causados por espaos fsicos. A
cidade de Braslia certamente
21 Park, Robert Ezra: A cidade: sugestes para a investigao do
comportamento humano no meio urbano in
Velho, Otvio (org.) O fenmeno urbano, Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Edit. 1979.
22 Fonte : Acessado em: 14/11/2013.
23 WIRTH, Louis. O urbanismo como modo de vida. In: VELHO, Otvio
(org.) O Fenmeno Urbano, Rio de
Janeiro, Jorge Zahar Editora, 1979 .
24 O termo indica que algo na sociedade no funciona de forma
harmnica e se relaciona com os termos da
solidariedade social. DURKHEIM, mile. O Suicdio. Queluz de
Baixo, Editorial Presena, 2001.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ecologia_humana
22
enseja pesquisas nesta direo, uma vez que a arquitetura
modernista de uma regio da cidade
possui caractersticas morfolgicas bastante peculiares. John
Holston, em sua clebre pesquisa
antropolgica voltada cidade, demonstra como o modelo urbano da
cidade influi sobre as
subjetividades locais. Inclusive, faz o resgate histrico do
termo brasilite (HOLSTON, 1993),
que indica a influncia da morfologia do espao urbano sobre a
subjetividade humana.
Creditamos proficuidade a estudos deste gnero, que revelam,
entre outros aspectos, a riqueza
simblica endmica que se articula a cada morfologia espacial
particular.
Cientes das lacunas que se interpem ao trabalho aqui realizado,
pela desconsiderao
das influncias do espao urbano sobre as mentalidades, no iremos,
entretanto, focar-nos
neste aspecto particular da investigao. Nosso aporte emprico se
pautar em narrativas
(parciais) produzidas na cidade de Braslia, dentre as quais se
destacam o plano traado por
Lcio Costa na ocasio do concurso para escolha dos moldes urbanos
da cidade e seu relatrio
Braslia Revisitada, produzido em 1987, e que medita sobre os
rumos da organizao urbana
de Braslia anos depois de sua inaugurao. A escolha do perfil do
material emprico
certamente coloca questes referentes validade de um discurso
parcial em uma realidade que
comporta contedos discursivos. Porm, revelia da parcialidade j
exposta, acreditamos que
o material cumpre bem o papel a que se prope: identificar a
plasticidade de usos que se faz
do modelo urbano ao longo da histria da cidade. Ademais, a
anlise documental no tomar
as narrativas analisadas como representaes totalmente fidedignas
da realidade estudada,
mas como ndices de realidade parciais que revelam, em suas
entrelinhas, aspectos da
realidade global.
23
Parte II
3. A cidade de Braslia
Essa beleza assustadora, esta cidade, traada no ar.
Clarice Lispector
A capital federal do Brasil localiza-se no Planalto Central
brasileiro e, segundo
dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica),
a cidade, a quarta mais
populosa do Brasil, tinha populao de 2.570.160 habitantes em
201025
. O produto
interno bruto per capita da cidade no mesmo ano era o mais alto
do Brasil, no valor de
R$ 5848926
, segundo a CODEPLAN (Companhia de Planejamento do Distrito
Federal).
Pautando-se em tal indicador, a cidade coloca-se em situao
vantajosa se comparada
com as demais cidades brasileiras e mesmo latino-americanas.
Ainda de acordo como
dados da companhia, a maior parte da riqueza na cidade produzida
por sua funo
original: a administrao pblica.
Os dados econmicos encorajadores escondem, a bem da verdade,
gritantes
desigualdades socioeconmicas e de suprimento de servios urbanos
que assolam o
Distrito Federal. Autores como Amartya Sem27
j alertam sobre as perversidades que se
furtam por trs de indicadores socioeconmicos pouco precisos e
humanos. A cidade
de Braslia, depois de pouco mais de 50 anos de existncia,
potencializaria a
estratificao espacial pautada na renda com uma lgica paradoxal,
na qual o rgido
controle da ocupao das terras pelo Estado dialoga constantemente
com formas
descontroladas de apropriao do espao (NUNES, 2003). Estudos
sobre as estratgias
ocupao do espao da rea do Distrito Federal comumente associam
renda com
estratgias de apropriao espacial. Nunes e Costa28
apontam que a RA (Regio
25
IBGE. Disponvel me :
Acessado em 03/11/2013
26
CODEPLAN. Distrito Federal em Sntese: Informaes Sociecmicas e
Geogrficas 2012. Braslia, 2013
27 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. So Paulo:
Companhia das Letras, 2002.
http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=530010&search=distrito-federal|brasilia
24
Administrativa) de Braslia, na qual se objetivam os planos
urbanos oficiais da cidade,
seria marcada por uma homogeneizao socioeconmica e controle
estatal na ocupao
do espao, enquanto as demais RAs apresentam as caractersticas de
uma ocupao
descontrolada do espao e heterogeneidade socioeconmica. Os
autores observam que a
regio do Distrito Federal, concebida enquanto unidade, carece de
homogeneidade tanto
socioeconmica quanto no que se refere s estratgias de ocupao
espacial.
A sociologia urbana brasiliense aponta, portanto, que a forma de
ocupao da
RA de Braslia, que engloba o bairro do Plano Piloto, no unvoca
dentro da cidade.
Frederico Diniz29
, na tentativa de identificar a narrativa comum dentro da
cidade,
cogita, porm, que os smbolos produzidos acerca da forma urbana
referida constituem-
se em marco cognitivo da cidade. Salienta ainda que o espao
urbano da metrpole
(grifo meu) atravessado pela prevalncia de uma narrativa formada
predominantemente
em torno de rotinas e protocolos condensados na regio planejada.
(Diniz, 2013). Uma
narrativa unitria das cidades, textualmente pelo menos,
solaparia as diversas formas de
represent-la em favor de uma parcialidade soberana. Esta
apropriao da definio
unitria de cidade por uma forma particular implica questes
acerca das tenses entre
uma realidade mltipla regida por um discurso hegemnico.
Uma das abordagens usuais para a tenso entre diferenciao
objetiva e unidade
simblica assenta-se no conceito de ideologia. Segundo a acepo de
Karl Marx, as
ideias resultam da organizao das foras produtivas. O trabalho
socialmente produzido
na infraestrutura seria apropriado por classes especficas da
sociedade que produziria
uma ideologia, uma percepo de realidade que esconderia da classe
desprivilegiada os
reais termos de sua dominao material (alienao) 30
. A centralidade das imagens do
Plano Piloto na constituio da narrativa hegemnica da cidade
poderia ser entendida,
assim, como determinada em primeira instncia pelas relaes
desiguais das classes na
28 COSTA, Arthur. NUNES, Brasilmar F. Distrito Federal e
Braslia: dinmica urbana, violncia e
heterogeneidade social in Caderno Metrpoles n17, 2007.
29 DINIZ, Frederico V. T. A Braslia, as Braslias: localizando a
narrativa "comum" nos usos da cidade.
Tese defendida no Departamento de Sociologia da Universidade de
Braslia para a obteno do ttulo de
mestre. Braslia, 2013
30 ENGELS, Friedrich & MARX, Karl A Ideologia Alem. So
Paulo, Editorial Grijalbo, 1977
25
distribuio do trabalho social. Entretanto, a considerao da
centralidade das relaes
de produo nas definies de imagens da cidade, no haveria, segundo
nossa
concepo, de negar a existncia objetiva de tais imagens.
A leitura de Louis Althusser da ideologia marxista considera que
o termo,
analiticamente, no pode ser considerado como simples acessrio
dotado de pouca
realidade (Althusser, 1979). Segundo esse autor, a teoria
marxista postula que as
formaes superestruturais, mesmo que determinadas em ltima
instncia pela
infraestrutura da sociedade, tm contedos formais e eficincias
prprias. Althusser
pontua ainda que a acepo de ideologia no se liga necessariamente
a formas de
embustes ideais que encobrem as relaes de dominao entre classes;
a superestrutura
ideal cumpre o papel de dar coeso realidade social.
A sociognese empreendida na seguinte seo deste captulo
considerar a
narrativa modernista e a poltico-desenvolvimentista como formaes
ideais que,
provenientes de estruturas sociais especficas, apresentam ndices
simblicos tambm
diferenciados. Segundo Louis Althusser, as formaes ideais
originam-se das relaes
de produo que so, com efeito, um dos termos da contradio, mas ao
mesmo tempo
sua condio de existncia; superestruturas, instncias que dela
derivam, mas que tem
consistncia e eficcia prpria (Althusser, 1979). Desta maneira,
temos, de um lado, a
determinao em ltima instncia pelo modo de produo; do outro, a
autonomia
relativas das superestruturas e sua eficcia especfica. Com isso,
buscaremos demonstrar
a polissemia admitida em um mesmo objeto social.
Porm, se buscamos exaltar a dimenso simbolicamente centrfuga de
nosso
objeto social (de uma forma fsica considerada unitria surgem
diversos significados), a
histria da gnese da forma urbano-arquitetnica na qual narrativas
poltico-
desenvolvimentistas e o modernismo arquitetnico se conjugam para
a construo de
um mesmo objeto leva-nos a meditar sobre a dimenso centrpeta de
nosso objeto, que
agrega as duas narrativas diversas em um mesmo contnuo
arquitetnico. A questo da
decorrente diz respeito comunicao entre ordens narrativas
diferenciadas na
construo de um mesmo objeto. Para tal tarefa, nos valeremos do
conceito de prtica,
tambm elaborado por Althusser quando este se debrua sobre a
teoria marxista.
Segundo esta acepo, as prticas seriam todo processo de
transformao de uma
matria-prima determinada, transformao esta efetuada por um dado
trabalho humano
26
que utiliza os meios (de produo) determinados (ALTHUSSER, 1979).
Trigueiro,
em sua leitura do conceito althusseriano de prtica, afirma
que:
Numa formao social concreta, pode-se distinguir, teoricamente,
um conjunto de
prticas, em que a a prtica social funcionaria como sua unidade.
[...] Assim no
h prtica em geral, mas prticas determinadas e singulares: a
prtica econmica, a prtica poltica, a prtica ideolgica, a prtica
terica (cientfica e filosfica). Cada
prtica um sistema relativamente autnomo[..] (TRIGUEIRO,
1985).
As prticas, dotadas de uma relativa autonomia, so engajadas em
articulaes
que transformam sucessivamente as matrias-primas que encontram
constituindo uma
unidade complexa (TRIGUEIRO, 1985) de realidade. Nesta unidade
complexa, as
prticas diferenciadas estabeleceriam relaes hierrquicas entre si
na conformao de
uma realidade social. A realidade no existe essencialmente, mas
definida pelo estado
das relaes entre as distintas prticas.
As prticas localizadas se diferenciam no somente pela
matria-prima sobre a
qual operam a sua transformao atravs do trabalho, mas tambm a
partir de sistemas
de eficincia diferenciados para e execuo da produo. Realizada a
transformao, o
produto desta se converte em matria-prima disponvel para
ulteriores transformaes.
Esta retroalimentao da matria-prima sobre a qual incidem as
prticas coaduna com a
ideia marxista de que as fundaes da histria encontram-se na
produo social atravs
da categoria trabalho. Tambm importante ressaltar que, para o
autor, as prticas no
se apresentam puras no mundo emprico, mas esto sempre
inter-relacionadas com
outras prticas que, reflexivamente, so condicionantes e
condicionadas.
O trabalho entender, de maneira fugaz, que a narrativa
modernista
arquitetnica uma prtica na medida em que opera transformaes no
espao fsico
atravs de um sistema de transformao unvoco. Tambm se compe esta
prtica (no
sendo uma prtica cujo sistema de transformao se destine
unicamente ao molde fsico,
o que evidencia o aspecto impuro das prticas) de um sistema de
transformao que
atribui aos espaos fsicos caracteres que so peculiares ao seu
sistema de
funcionamento. Em outras palavras, a prtica da arquitetura
modernista transforma o
espao fsico a partir de um sistema particular, e tal lgica de
transformao fsica
tambm se converte em produto da prtica na medida em que dota o
elemento fsico
produzido de caracteres particulares. A prtica arquitetnica
modernista, por exemplo,
constri um prdio, mas dentro de sua prtica especfica tambm h
transformao
27
terica de espaos fsicos, quando esta, por exemplo, atribui
organizao das cidades
europeias do sculo XX valores arquitetnicos negativos.
Empreenderemos, agora, uma sociognese do modelo urbano estudado.
Nossa
seleo, dentro de um leque imenso de possibilidade, elencar duas
fontes discursivas
como prticas: A poltica desenvolvimentista e o modernismo
arquitetnico. Na
primeira destas, observaremos uma ntima ligao com a uma forma
especfica de
prtica econmica. Mas o que interessa sobremaneira no captulo que
se segue a
associao de determinada prtica poltica com uma tambm particular
prtica
arquitetnica na conformao de uma realidade urbana.
3.1 A sociognese da forma urbana
Fonte: Arquivo Pblico do Distrito Federal
Chama a ateno o fato de a jovem cidade ter sua construo em uma
regio
anteriormente pouco habitada, sob a tutela de um controle formal
da ocupao espao
representada pelo Estado (HOLSTON, 1993). To ambicioso projeto
demandou
vultosos capitais financeiros e uma fora poltica centralizada
(mesmo que bvio, parece
importante salientar que a funo primordial da capital da nao
abrigar o
funcionalismo pblico federal). A forma urbana arquitetnica
pretendida para a cidade
e, em certa medida realizada, chama a ateno por sua
peculiaridade. Segundo John
Holston em seu livro A cidade Modernista Braslia faz o viajante
confrontar-se com a
28
separao entre a Braslia modernista e o Brasil de todos os dias
[...] (HOLSTON,
1993). A cidade, em cujos antecedentes histricos se conjugam uma
poltica
desenvolvimentista e uma arquitetura modernista, inaugurada pelo
presidente
Juscelino Kubistchek em 21 de Abril de 1960. A capital, na qual
o desenho urbano
traado por Lcio Costa (ganhador do concurso para definir as
diretrizes formais de
cidade), carrega em sua origem a funo de capitanear um novo
momento da histria
brasileira e liderar o pas rumo ao desenvolvimento econmico. A
cidade teria
simultaneamente o papel de agente catalizador da superao do
subdesenvolvimento do
pas e de integrao nacional, constituindo-se como meta-sntese do
plano de metas do
governo Juscelino Kubistchek, como demonstraremos mais frente.
Braslia nasceria,
portanto, como agente civilizador da sociedade brasileira.
A inaugurao de uma nova era da realidade brasileira demandava
uma ruptura
com o passado subdesenvolvido da sociedade brasileira. Uma das
objetivaes deste
ideal representada pela forma urbana traada para a futura
capital. A organizao
urbana da cidade de Braslia rompe com os tradicionais critrios
de organizao espacial
brasileiro e cria uma cidade desfamilizarizada (HOLSTON, 1993).
certo, entretanto,
que os significados dados pelos arquitetos que concebem a cidade
organizao urbana,
cuja figura icnica Lcio Costa, distinta daquelas conferidas pelo
governo de
Juscelino Kubistchek, o que evidenciaria a incomensurabilidade
relativa das prticas.
Apresenta-se, portanto, a necessidade de descrever as diferenas
simblicas atribudas
ao modelo urbano por uma poltica desenvolvimentista, de um lado;
do outro, uma
arquitetura modernista.
O futuro poltico desenvolvimentista
A.1 A influncia cepalina
Segundo Nunes (2003), os estudos dos antecedentes que permitem a
emergncia
da cidade de Braslia remetem a um contexto no qual a sociedade
nacional vive um
processo de urbanizao ligada emergncia da indstria nacional. A
industrializao
brasileira s ocorreria tardiamente, se comparada aos pases da
Europa ocidental e
Amrica do Norte. A indstria nacional data do incio do sculo XX e
s viria a se
consolidar apenas na dcada de 30, concentrada principalmente no
sudeste brasileiro e
29
identificada como um das causas do grande fluxo migratrio
inter-regional estabelecido
ento. O surgimento de uma indstria nacional traz a reboque a
formao de uma classe
social industrial com significativa potncia econmica. Tais
industriais pressionariam o
Estado a acomodar seus interesses particulares. Louis Althusser,
afirmaria talvez, que os
ideais polticos refletidos a partir da dcada de cinquenta no
Brasil podem ser
entendidos como a apropriao dos aparelhos ideolgicos do Estado
por uma classe
particular na sociedade31
. A tese do autor talvez seja comprovada pelo fato de que,
como observaremos mais frente, a agenda de um desenvolvimento
capitalista tem
grande centralidade no discurso desenvolvimentista na gnese da
cidade Braslia.
Tambm apoiados no autor, poderamos observar, empiricamente, como
as prticas
econmicas e poltica se relacionam intimamente na transformao
discursiva das
premissas necessrias modernizao de uma nao.
Precisam os industriais e homens de negcio da grande nao do
continente de se
convencer de que as relaes com o Brasil j no devem ser colocadas
no plano do
export-import, mas que somos pas que tem de produzir
matrias-primas e
transform-las, enriquec-las aqui mesmo, embora devamos exportar
tambm essas
matrias-primas pois que necessitamos, por nossa vez, de importar
tambm o que
no existe ou no foi ainda encontrado em nossa terra. O que
desejo repetir com clareza que os nossos amigos e antigos aliados
nos devem considerar como pas
em acelerada viagem para a industrializao32
No cenrio que se desenha, o Estado apareceria como gestor de uma
transio
tardia a um capitalismo industrial. Tal percepo revelada na
histria poltica brasileira
no , porm, autctone, mas influenciada pelas recomendaes de um
rgo da
Organizao das Naes Unidas denominado CEPAL (Comisso Econmica
para a
Amrica Latina e Caribe). Este rgo, fundado em 1948, se prope ao
pensamento da
realidade latino-americana a fim de coloc-la nos trilhos do
desenvolvimento
econmico experimentado por alguns pases europeus e EUA. O rgo
atribui o
subdesenvolvimento econmico (no caso, as mazelas sociais seriam
consequncias
diretas do estado da economia) percebido na Amrica Latina diviso
internacional do
trabalho. De acordo com os relatrios do CEPAL33
, o papel dos pases latino-
31 ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideolgicos do Estado. Rio de
Janeiro, Edies Graal, 1983. Segundo
este autor, a classe dominante faz valer sua dominao atravs da
ideologia. Esta ideologia, que
fundamenta a dominao de uma classe alienando a classe dominada,
seria operada atravs do aparelho
ideolgico do Estado, um corpo de instituies que fundamenta a
dominao, como a instituio escolar.
32 Discurso proferido na Associao Comercial de Santos em 28 de
Janeiro de 1957.
30
americanos na diviso do trabalho seria a produo de matria prima
para os pases
desenvolvidos que, por sua vez, forneceriam aos primeiros pases
produtos
manufaturados com significativo acrscimo de valor. Nesta relao
de trocas
internacionais, os pases subdesenvolvidos sempre estariam
defasados economicamente;
eis a justificativa cepalina para a realidade pouco moderna
experimentada pelos pases
de terceiro mundo. O rgo indica ento que a superao do atraso
econmico passa
pela industrializao de tais pases. Neste processo, sob uma clara
influncia
keynesiana34
, os estados-nacionais cumpririam o papel de gestores do
desenvolvimento
industrial. A anlise da realidade e os termos de sua superao
produzidos pelo CEPAL,
como procuraremos argumentar mais adiante, marcam profundamente
os signos que o
governo desenvolvimentista atribui forma urbana da cidade
inicialmente.
As recomendaes cepalinas poderiam ser entendidas como prticas
tericas
que, dado o estado econmico objetivo da economia global
(percebido em relaes
desiguais), transformaria conceitualmente as realidades
latino-americanos sob o signo
do atraso e, simultaneamente, dotaria o mundo de uma existncia
linear. No
argumentamos com isso que a percepo conceitual da linearidade
histrica decorra
diretamente CEPAL. Poderemos observar mais frente que a
arquitetura modernista, a
despeito das diferenas das matrias-primas e dos sistemas de
transformao, tambm
se vale de conceitos racionalistas que, enquanto tais, teriam
aplicao global, mas
desconsiderariam a validade de prticas endmicas a contextos
sociais especficos na
transformao social. Este fato suscita, primeiramente, a
compreenso de que o estado
das relaes entre as prticas pode ser refletido em semelhanas nas
estruturas de
transformao. Em segundo lugar, a negao da potncia transformadora
advinda de
contextos sociais particulares evidencia a hierarquia que se
estabelece entre sistemas de
transformao.
Cumpre agora salientar que, atualmente, as teorias da
modernizao, na qual se
encaixam as prescries do rgo sobre o qual debatemos, so
consideradas pelas
cincias sociais dotadas de pouca pertinncia cognitiva por sua
reduzida elasticidade ao
33ARAJO, Daniel T. da C. Structural change for equality: an
integrated approach to development. In:
Conjuntura Internacional vl. 9 n 5. Belo Horizonte, 2012
34
O keynesianismo defino como Modalidade de interveno do Estado na
vida econmica, com a qual no se atinge totalmente a autonomia da
empresa privada, e que prega a adoo, no todo ou em parte, das
polticas sugeridas na principal obra de Keynes [...]. SANDRONI,
Paulo (org.). Novssimo dicionrio de
Economia. So Paulo, Editora Best Seller, 1990.
31
lidar com realidades scio-histricas particulares, o que poderia
implicar em uma
reacomodao dos sistemas de transformao tericas no sentido de
mudana do perfil
da matria-prima sobre a qual incide. Ruben Oliven indica que uma
teoria da
modernizao postula um modelo linear de mudana social e evoluo
(OLIVEN,
1988). A ideia de uma evoluo linear das sociedades rumo
modernidade alcanada
por alguns iguala as sociedades em uma mesma categoria dotada e
nveis distintos e,
assim, retira-lhes suas peculiaridades culturais e histricas.
Hoje, as teses da
modernizao so consideradas por demais rgidas para tratar de
realidades histricas
particulares, mas no h de se negar que elementos desta lgica
compem alguns dos
smbolos genticos da cidade, como veremos adiante.
A.2. A Braslia de Juscelino: sntese do desenvolvimentismo
Juscelino Kubistchek e Oscar Niemeyer. Fonte: Jean Mazon. Cepar
Consultoria
Braslia aparece como proposta individual de um candidato eleito
a partir de
um programa de governo caracterizado por proposta de modernizao
da estrutura
econmica (NUNES, 2003). A mudana da capital para Braslia vem
carregada de um
otimismo em relao ao futuro da nao por parte de seus heris
criadores, como
Juscelino Kubistchek, e acaba por reverberar sobre o imaginrio
nacional. O Jornal do
Brasil publica com tons entusiastas em 21 de abril de 1960:
32
A mudana do Governo para Braslia representa hoje mais do que a
simples
mudana da capital: a realizao de uma ideia sobre a qual se
assentou a maior
parte das esperanas de uma nova configurao econmica, social e
poltica do
Brasil. E Braslia, gerada pela vontade e a fora da ideia, o
smbolo dessa
esperana. Por ela, tudo se deu e nada h de ser negado. Dela vem
a indagao que,
no fundo cada qual parece estar fazendo mudamente a todos: o que
ser Braslia no
amanh brasileiro?35
Na campanha eleitoral de 1955, Juscelino Kubistchek estabelece
um plano de
metas36
para o desenvolvimento nacional distribudo em seis agrupados de
categorias:
indstria; energia; transporte; alimentao; educao e a construo de
Braslia. A
ltima categoria se constituiria em meta sntese das demais
categorias, tanto em sua
funo carismtica quanto como elemento objetivo de integrao
nacional de uma
sociedade em crescente industrializao. O ento presidente, em seu
discurso na
solenidade de inaugurao da cidade de Braslia proclama:
No programa de metas do meu Governo, a construo da nova Capital
representou
o estabelecimento de um ncleo, em torno do qual se vo processar
inmeras
realizaes outras, que ningum negar fecundas em consequncias
benficas para a
unidade e a prosperidade do Pas 37.
O governo de Juscelino Kubistchek d incio sua gesto em um
momento em
que o pas vive um tempo de espantoso crescimento econmico devido
ao crescimento
industrial (com especial nfase aos setores energticos e de
transportes) e expanso do
consumo de bens manufaturados38
. Neste clima de otimismo financeiro e alta
interveno do Estado na economia industrial, o audacioso plano de
metas de Juscelino
afirma que pretende que o pas viva nos cinco anos de sua gesto
um desenvolvimento
compatvel a cinquenta anos. Braslia aparece ento como ponto
estratgico nos planos
de desenvolvimento nacional, no somente como imagem carismtica,
mas tambm
35
Disponvel em: <
http://www.jblog.com.br/hojenahistoria.php?itemid=20725>
Acessado em 07/11/2013 36 DE BENEVIDES, M.V.. O governo Kubistchek.
Desenvolvimento econmico e estabilidade poltica.
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979.
37 Disponvel em:<
http://www.franklinmartins.com.br/estacao_historia_artigo.php?titulo=discurso-de-
jk-na-inauguracao-de-brasilia-1960> Acessado em 20/11/2013
.
38 FURTADO, Celso. Formao econmica do Brasi 32edio. So Paulo,
Companhia Editora Nacional,
2005.
http://www.jblog.com.br/hojenahistoria.php?itemid=20725http://www.franklinmartins.com.br/estacao_historia_artigo.php?titulo=discurso-de-jk-na-inauguracao-de-brasilia-1960http://www.franklinmartins.com.br/estacao_historia_artigo.php?titulo=discurso-de-jk-na-inauguracao-de-brasilia-1960
33
como centro integrador nacional. A vocao para acelerar a histria
da nao atribuda
pela corrente desenvolvimentista observa-se em diversas
declaraes de Juscelino,
como, por exemplo:
Deste Planalto Central, desta solido que em breve se transformar
em
crebro das mais altas decises nacionais, lano os olhos mais uma
vez sobre
o amanh o do meu pas e antevejo esta alvorada, com f
inquebrantvel e
uma confiana sem limites no seu grande destino."39
Nos discursos de Kubistchek, podemos notar que a cidade de
Braslia
considerada como um agente histrico que haveria de romper com
o
subdesenvolvimento nacional e dirigir a nao rumo modernidade.
muito
importante ressaltar, entretanto, que o peso histrico dado
fundao da cidade de
Braslia no implicava, pelo menos para a poltica
desenvolvimentista, em ruptura do
modelo capitalista de produo. A fundao da cidade que, que nasce
sobre o signo de
um espao descolado das tradicionais relaes sociais brasileiras
que do os germes ao
subdesenvolvimento nacional, cumpriria a funo de acelerar a
histria nacional rumo a
estgios desenvolvidos do capitalismo, bem ao estilo cepalino.
Pensamos que essa
constatao no implica necessariamente, porm, que as eficincias
especficas das
prticas econmico-industriais e polticas sejam completamente
simtricas.
Entendemos, contudo, que a prtica econmica, pertencente a uma
posio hierrquica
destacada na unidade das prticas, influencia a prtica poltica na
produo da imagem
da construo da capital. A justificativa da seleo de Braslia como
meta-sntese de
seu governo indica a ntima relao da prtica poltica com os
ditames da economia
capitalista:
"Escolhi Braslia como ponto alto do meu governo porque estou
convencido de
que a nova capital representou um marco. Depois de sua construo
ningum
poderia duvidar de nossas indstrias ou da capacidade do trabalho
brasileiro. Braslia deixou atrs de si uma nova era de autoconfiana
e otimismo."40
39Disponvel em: . Acessado em 14/11/20013.
40 Disponvel em: . Acessado em 14/11/20013
http://www.memorialjk.com.br/http://www.memorialjk.com.br/
34
A cidade de Braslia tambm cumpriria o papel de agente
civilizador do Planalto
Central, como prenunciadora de um desenvolvimento invertido, no
qual a capital cria a
civilizao sobre a qual exerce uma radiosa soberania (HOLSTON,
1993). Desta
constatao de inverso histrica, poder-se-ia argumentar talvez
que: se a imagem da
cidade enquanto agente histrico considera os termos de
subdesenvolvimento (tpicos
da histria nacional) que deseja superar, estas mesmas
conjunturas histricas haveriam
de ser negadas na forma urbana da capital que anuncia novos
tempos. Braslia seria uma
maneira de reordenar a histria nacional, de construir um novo
Brasil a partir da
integrao do interior. O ato simblico da fundao da cidade, ao
prenunciar uma nova
era, entrev que o funcionamento urbano estirpe as mazelas
sociais tpicas da sociedade
brasileira a fim de dirigi-la a uma nova era. Paradoxalmente, a
fundao de uma nova
histria brasileira seria operada por meio de uma negao objetiva
(pela cidade) das
prprias condies scio-histricas sobre as quais pretende incidir.
Deste fato bastante
curioso, podemos implicar que o discurso fundante da cidade de
Braslia busca dirigir a
nao a um futuro glorioso a partir de uma negao do presente. Da
negao histrica,
podemos intuir que o governo desenvolvimentista transforma os
produtos tericos
cepalinos, que nesta relao convertem-se em matria prima, e os
converte em uma
poltica estatal, da qual um dos produtos a construo da cidade de
Braslia.
Buscou-se demonstrar nas passagens anteriores a vocao da cidade
para a
acelerao histrica do pas rumo ao desenvolvimento econmico.
Acreditamos que tal
vocao sofre influncias da teoria socioeconmica produzidas nos
encontros do
CEPAL. Ora, j afirmamos que o rgo indica que a modernidade pode
ser alcanada
por uma sequncia pr-determinada e universal. Caso segussemos as
ordenaes
lgicas que regem tais premissas, fica evidente que as condies
objetivas apreendidas
por categorias globais so anteriores causalmente de condies
scio-histricas
endmicas. Neste sentido, a criao da cidade de Braslia haveria de
ser um dos passos
objetivos rumo ao desenvolvimento capitalista e, devido ao peso
causal superior das
condies objetivas universais sobre as realidades histricas
particulares, haveria de se
converter em um centro de irradiao que extirparia as relaes
sociais informadas pelo
subdesenvolvimento nacional.
Tambm buscamos evidenciar que o projeto desenvolvimentista
encontrava-se
intimamente ligado s condies objetivas de produo experimentadas
pela economia
nacional, que via surgir em sua realidade uma crescente indstria
e os seus respectivos
35
interesses classistas. Este fato indica, utilizando termos
cunhados por Althusser, a
relao da prtica poltica e econmica na conformao (ou transformao)
simblica
de um objeto. Entretanto, resumir os ndices discursivos desta
associao de maneira
imediata prtica econmica industrial retira o ndice de realidade
de seus alguns
elementos singulares. A descrio dos antecedentes cepalinos do
projeto poltico parece
nos fornecer elementos discursivos convenientes para a descrio
da atribuio da
vocao desenvolvimentista da cidade, mas certamente no do conta
dos smbolos
nacionalistas que informam uma ruptura com o passado. Poderamos
afirmar talvez que
o papel de agente de ruptura histrica atribudo cidade por J.
Kubistchek constitui-se
apenas em um ardil carismtico prprio dos polticos e no uma
percepo sincera de
realidade. Porm, pensamos que a apreenso de que podemos
tipificar uma lgica
argumentativa prpria da prtica poltica j lhe garante uma
vitalidade, em certa medida,
irredutvel. Os ndices (a matria que produz e sobre a qual opera)
da prtica poltica
parecem no retirar sua eficincia imediatamente das percepes
econmicas cepalinas,
uma vez que esta, como se buscou demonstrar anteriormente,
pauta-se em uma lgica
histrica linear. Sugerimos que a prtica poltica, ao conjugar-se
com a prtica
econmica nacional, formata um discurso com ares
particulares.
A eficincia prpria da prtica poltica deve ser buscada em uma
narrativa de
ideais que no se ligam imediatamente a condies objetivas de
produo; vale-se de
smbolos discursivos diversos: como a de povo, nao e futuro, como
se observa na
transcrio de uma declarao de Kubistchek: Braslia a manifestao
inequvoca de
f na capacidade realizadora dos brasileiros, triunfo de esprito
pioneiro, prova de
confiana na grandeza deste pas, ruptura completa com a rotina e
o compromisso."41
Por fim, tomaremos o ndice discursivo da ruptura histrica com o
passado (e
no desenvolvimento linear) habitante do discurso poltico de
Kubistchek como aspecto
prprio eficincia da prtica poltica no momento estudado. A
ferramenta de
pensamento fornecida por Althusser (prtica) permite-nos conferir
uma vitalidade
relativamente autnoma narrativa poltica. Ademais, o ndice
discursivo que retiramos
da poltica (a saber: entender a cidade como uma objetivao de uma
ruptura histrica)
nos auxiliar a conjug-lo com outra narrativa que assume
centralidade nos significados
dados cidade: a arquitetura modernista. Argumentaremos que o
modernismo
41 Disponvel em: . Acessado em 17/11/20013
http://www.memorialjk.com.br/
36
arquitetnico e a poltica desenvolvimentista se associam pela
tangncia que seus
discursos estabelecem quando indicam o espao urbano como agente
histrico.
Entrementes, argumentaremos que estes dois discursos, mesmo que
conjugados,
conferem potncias de modificaes histricas distintas cidade de
Braslia.
B.1 A arquitetura modernista do CIAM
Le Corbusier: A cidade contempornea para 3 milhes de habitantes.
42
As premissas arquitetnicas da cidade de Braslia, por mais
que
mitologicamente considerada em sua originalidade, conta, assim
como todos os objetos
sociais, de antecedentes scio-histricos particulares. A
arquitetura modernista
projetada para a cidade, capitaneada por Lcio Costa, tributria
dos CIAM (Congrs
Internationaux dArchiteture Moderne). De 1928 at meados da dcada
de 1960, os
CIAM constituram o mais importante frum internacional de debates
arquitetnicos
[...](HOLSTON, 1993). Segundo Nunes, os congressos referidos se
do em um
momento em que o campo arquitetnico passa por um momento de
ampliao de seus
objetos, deixa de ser uma prtica destinada apenas a objetos
estticos e dirige seu olhar
para a organizao urbana da cidade (NUNES, 2003). A arquitetura
dos CIAM
pretende-se uma soluo universal para os problemas de habitao
enfrentados no
mundo, em especial queles referentes aos problemas de habitao
enfrentados pelas
cidades industrializadas. Segundo as premissas formuladas nos
congressos, dos quais a
Carta de Atenas43
a ilustrao mais caracterstica, grande parte das mazelas
vividas
nas cidades proveniente da soluo capitalista da sociedade
privada. De acordo com
42
Disponvel em: Acessado em: 21/11/2013
43 Carta de Atenas - Assembleia do CIAM - Congresso
Internacional de Arquitetura Moderna
1933. Disponvel em <
http://www.pdturismo.ufsj.edu.br/legislacao/cartas/atenas.html>
http://othaudoblog.blogspot.com.br/2012/07/uma-cidade-contemporanea-para-3-milhoes.htmlhttp://othaudoblog.blogspot.com.br/2012/07/uma-cidade-contemporanea-para-3-milhoes.html
37
estes arquitetos, capitaneados por Le Corbusier, a estrutura
urbana das cidades deveria
deixar de ser governada por uma lgica que distingue o pblico do
privado e submeter-
se a um planejamento global em prol do interesse geral.
Afirma-se que o planejamento
urbano no deve ser gerido pelas determinaes da propriedade
privada, mas pertencer
municipalidade; qualquer semelhana com o projeto de Braslia no
mera
coincidncia. Neste ponto, j podemos perceber que, mesmo que seus
membros
afirmem o contrrio, a arquitetura dos CIAM j carrega em suas
entrelinhas a crtica e
os termos de superao de um estado social especfico. A
arquitetura modernista, longe
de ser a panaceia surgida no ter da racionalidade, pauta suas
premissas em condies
objetivas e largamente condicionada por uma prtica poltica
especfica, que atribui ao
mundo contemporneo caracteres conflituosos. Entretanto, o
discurso oficial dos CIAM
advoga que sua preocupao puramente arquitetnica. Como evidencia
este discurso
de Le Corbusier:
Devemos manter-nos ao corrente, pessoalmente, das formas urbanas
que assume a
atual evoluo. Mas, peo-vos, no nos ocupemos aqui de poltica ou
de sociologia.
Esses dois fenmenos so demasiada e infinitamente complexos;
existe tambm o
aspecto econmico, e ns no estamos qualificados para discutir no
Congresso esses
rduos problemas. Repito, devemos permanecer arquitetos e
urbanista, e, nesse
terreno profissional, fazer conhecer a quem de direito as
possibilidades e
necessidades de ordem arquitetnica e urbanstica44.
A despeito das declaraes de Le Corbusier acerca da
atemporalidade que deve
ser e considerada na prtica arquitetnica, a percepo de mazelas
sociais na sociedade
que se inscreve nos (e pelos) CIAM e a prescrio dos termos de
sua superao j
indicam o engajamento histrico que compe a arquitetura
modernista. Talvez
pudssemos identificar que a recomendao de da desconsiderao dos
rduos
problemas revele a crena na autossuficincia da racionalidade
arquitetnica
modernista.
Interessante notar tambm que os CIAM so altamente marcados pela
ideia
de determinismo ambiental. Segundo tal corrente, a arquitetura
no seria mero acessrio
da vida social, mas sim um poderoso instrumento de transformao
social. Alteradas as
condies de vida na cidade, tambm se modificariam as formas de
relaes sociais. A
relao entre arquitetura e sociedade seria concebida de maneira
instrumental, de modo
que os contextos sociais especficos so desconsiderados na
atividade de transformao
44 In: BENEVOLO, Leonardo . Histria da arquitetura moderna. So
Paulo, Editora Perspectiva, 1994
38
da sociedade em prol de um determinismo ambiental. A ttulo de
ilustrao do
argumento, informamos que A Carta de Atenas enumera as
determinantes que incidem
sobre as dimenses psicolgica e coletiva do homem da seguinte
maneira:
primeiramente, se encontram as determinantes topogrficas do
ambiente; a seguir so
consideradas as condies econmicas; em ltimo lugar de importncia
aparecem as
condies polticas.
importante ainda destacar o aspecto racional que rege as
premissas
morfolgicas que os CIAM traam para suas cidades modernas. O
racionalismo
aplicado pela corrente arquitetnica pauta-se profundamente na
ideia de funcionalidade.
A acepo de funcionalidade indica que a cidade deve ser entendida
como uma unidade
que pode ser repartida em partes com funes especficas. Segundo a
Carta de Atenas, a
cidade deveria ser dividida em zonas distintas que
corresponderiam s necessidades dos
habitantes da cidade, que so definidos em: habitao, trabalho e
repouso. Cada zona
funcional da cidade deveria ser regida por uma legislao de
ocupao espacial
especfica. A respeito da morfologia das edificaes que comporiam
a cidade moderna
Le Corbusier estabelece cinco premissas arquitetnicas mestras: a
planta livre; a
fachada livre; pilotis; terrao-jardim e janelas sem-fitas. A
influncia de Le Corbusier
nas edificaes presentes na cidade Braslia se expe quando, mesmo
ignorantes em
arquitetura, observamos enorme semelhana dos edifcios projetados
pelo arquiteto com
aqueles que existem na cidade de Braslia (ver Anexo I figuras 2
e 3). Voltando-nos
agora mais detidamente ao aspecto da organizao lgica que
produzem os cones
materiais da corrente arquitetnica, devemos refletir, mesmo que
de maneira
brevssima, sobre a dimenso racional que perfaz a arquitetura
modernista.
A prtica arquitetnica dos CIAM possui um sistema de
transformaes
bastante especfico. Como j observara Nunes valendo-se do
conceito da de P. Bourideu
de campo, a arquitetura urbanista no incio do sculo XX no
possuiria mais unicamente
a funo de produo de objetos estticos, mas debruaria sobre os
problemas do
contexto e transformaes sociais. A ampliao do leque de
matrias-primas sobre as
quais a arquitetura modernista exercer seus sistemas de
transformao poderia indicar
uma nova conjugao com outras prticas sociais. Deste episdio
contextualmente
posicionado resulta interessante efeito. A arquitetura
modernista, ao pretender a
compreenso sobre as reais condies que determinam a vida humana,
conjuga-se a um
sistema de transformao terico racionalista. O efeito de tal
associao conjuntural de
39
prticas que a arquitetura modernista abdique da considerao da
potncia
transformadora de realidades sociais particulares em favor de um
racionalismo universal
em seu sistema particular de transformaes. Com isto no queremos
argumentar que a
adoo ao racionalismo seria uma opo deliberada, tampouco que esta
seja livremente
condicionada por outras prticas. Acreditamos apreenderamos
melhor o objeto se
entendssemos o racionalismo (vale lembrar que as reunies do CIAM
se iniciam em
1928; so, portanto, contemporneas do dito Crculo de Viena45
) como uma condio
ambiental, ou matria-prima, s