INTRODUO
Lavratura do auto de priso em flagrante em crimes militares por
Autoridade Policial civil.INTRODUO
No da rotina do jurista laborar diariamente em temas relativos
ao Direito Militar, nomeadamente por se tratar de matria de
restrita aplicabilidade e cujo interesse, em regra, desponta apenas
em pouqussimos estudiosos e leitores.
No se pode, todavia, olvidar-se de que o direito um s, apenas
foi fracionado em diversos ramos para facilitar sua compreenso e
aplicabilidade. Assim que, nenhum ramo do direito caminha sozinho,
independente e austero, isento ingerncia dos demais campos.
Desta forma, o Direito Constitucional, por exemplo, atua em
todos os demais campos da cincia jurdica, exigindo que toda e
qualquer interpretao dos dispositivos infraconstitucionais se
ajustem aos mandamentos da Magna Carta.
Noutros casos, os dispositivos inerentes a um determinado ramo
do direito aplicam-se subsidiariamente a outros. o que ocorre com
as normas do sistema recursal do processo civil em relao ao
Estatuto da Criana e do Adolescente, a legislao processual penal
comum aos processos dos Juizados Criminais, bem como o Direito
Processual Penal Militar, ao qual se aplicam subsidiariamente as
disposies do Cdigo Processual Penal.
O Direito, como dito, um s, representado por um recipiente
hermeticamente fechado, onde existem solues para todo e qualquer
questionamento judicial, inexistindo lacunas, na medida em que seus
diversos ramos se entrelaam na busca de solues jurdicas para os
conflitos de interesse havidos, socorrendo-se, ainda, das diversas
formas de integrao (analogia, princpios gerais do direito,
costumes, jurisprudncia, etc).
O presente estudo tem por escopo apreciar um tema que, embora
afeto ao Direito Militar, tem no seu operador um desconhecedor, em
regra, desta legislao especial, razo por que poder este, ao
deparar-se com a situao concreta, no saber quais as providncias a
adotar.
por esta razo que nenhum estudioso do direito deve dispensar o
conhecimento de temas afetos a ramos da cincia distintos daquele
que opera diariamente, cabendo-lhe conhecer, ainda que
superficialmente, todos os seus campos, aprofundando-se naqueles
que lhe aprouver.
Acerca do tema objeto do presente estudo, observa-se ser comum o
desconhecimento da matria por parte das autoridades policiais civis
que, por vezes, recusam a lavratura do auto de priso em flagrante
por se tratar de delito de natureza militar, argindo que a
competncia, neste caso, to-somente da autoridade militar.
H casos que, inversamente, a autoridade policial lavra o auto de
priso, todavia o crime militar foi cometido em local sujeito
administrao militar, circunstncia esta que obsta a atuao do
Delegado de Polcia.
Muitas vezes ainda, a autoridade policial admite a possibilidade
de praticar o ato, todavia no sabe como identificar se est diante
de uma hiptese de crime militar ou comum.
Aps apreciar as exposies adiante delineadas, talvez muitas
dvidas porventura ainda existentes sejam dirimidas, facilitando,
assim, a compreenso do tema por ns considerando sobejamente
relevante.
CRIME MILITAR - APURAO X AUTUAO EM FLAGRANTE
Em se tratando de delitos de natureza militar, tem-se, de logo,
como incompetentes para apur-los, as instituies policiais civis,
notadamente pelo disposto na Carta Poltica vigente que, de forma
taxativa, excepciona tais crimes, ao disciplinar a competncia da
polcia civil, conforme adiante disposto:
"Artigo 144, 4 - As polcias civis, dirigidas por Delegados de
Polcia de carreira, incumbem, ressalvada a competncia da Unio, as
funes de polcia judiciria e a apurao de infraes penais, exceto as
militares".(grifamos)
De incio, manifesta-se imprescindvel dissociar apurao de infrao
penal, de lavratura de auto de priso em flagrante.
cedio que a priso em flagrante pode ser feita por qualquer
pessoa do povo, sendo, porm, dever dos agentes policiais, sejam
civis ou militares, faz-la.
Efetuada a priso, segue-se, como consectrio lgico e inafastvel,
ressalvadas as hipteses de crimes de menor potencial ofensivo, a
lavratura do auto de priso em flagrante delito, sob a presidncia
exclusiva do Delegado de Polcia de Carreira, no caso de crimes
comuns, ou da autoridade militar, nos delitos especiais.
Note-se, por oportuno, que na hiptese de delitos militares,
sempre que houver flagrante da infrao, dar-se- a lavratura do auto
de priso, uma vez que, como de todos sabido, a Lei 9.099/95 no se
aplica aos delitos sujeitos legislao castrense, no sendo possvel a
dispensa do flagrante admitida pelo antedito diploma.
Lavrado o competente auto de priso em flagrante delito, surge a
o segundo momento, qual seja, a apurao da infrao penal, conduzida
atravs do sumrio de investigao preliminar, preparatrio da ao penal,
que o Inqurito Policial, cuja natureza adequar-se- ao tipo penal
especfico, sendo ele Militar ou Comum, consoante a espcie
delituosa.
O auto de priso em exame, malgrado seja um ato de polcia
judiciria, no e nem nunca foi apurao de infrao penal. Ao
materializar em documentos a priso em flagrante, a autoridade tem
como objetivo maior identificar o autor da infrao e determinar de
que forma a mesma ocorreu, colhendo as evidncias no calor dos
acontecimentos, evitando que as provas se percam com o passar do
tempo.
A priso em flagrante inclui-se entre as prises cautelares de
natureza processual e que a rigor um mero ato administrativo levado
a cabo pela Polcia Judiciria, incumbida que de zelar pela ordem
pblica. A apurao do crime, todavia, circunstncia distinta que,
muita vez, sequer incumbncia da autoridade que presidiu o ato.
Foi com sapincia, pois, que o legislador constituinte excluiu da
competncia das autoridades policiais civis, entenda-se Delegados de
Polcia, to-somente a apurao dos delitos militares, circunstncia
esta que nos faz concluir que a lavratura do auto de priso ,
portanto, de competncia comum, conforme dispuser a legislao
ordinria.
A LEGISLAO MILITAR SOBRE O TEMA
No bastassem as argumentaes antes esposadas que, ao que se nos
parece, j dilaceram qualquer entendimento contrrio, a norma
infraconstitucional que disciplina o processo penal militar, em seu
Artigo 250, admite expressamente a possibilidade do auto de priso
em flagrante, em caso de infrao penal de natureza militar, ser
lavrado pela autoridade policial civil, a saber, in verbis:
Art 250 - "quando a priso em flagrante for efetuada em lugar no
sujeito administrao militar, o auto poder ser lavrado por
autoridade civil, ou pela autoridade militar do lugar mais prximo
daquele em que ocorrer a priso."
Infere-se da exegese literal do dispositivo supra, que o
Delegado de Polcia pode presidir o ato prisional, observada a
ressalva de que s permitido tal procedimento na hiptese de fato
ocorrido em local no sujeito a Administrao Militar.
Note-se, ainda, que a lavratura do flagrante nos delitos
militares, quando presidida por autoridade militar, atribuio
exclusiva de oficiais (tenentes, capites, majores,
tenentes-coronis, coronis e oficiais generais) das Foras Armadas e
Milcias Estaduais, conforme seja o crime de competncia federal ou
estadual respectivamente, observadas as normas relativas hierarquia
que exige ser o presidente do ato, superior ou mais antigo que o
flagranteado..
vedada s praas(soldados, cabos, sargentos, subtenentes e
aspirantes) presidncia de Auto de Priso em flagrante e do Inqurito
Policial.
A existncia de oficias militares, em todas as cidades
brasileiras, todavia, mormente aquelas mais longnquas e de difcil
acesso, no uma realidade por ns vivenciada, razo por que se
justifica, ainda mais, a possibilidade de o flagrante, nos casos
sob comento, serem lavrados pela autoridade policial civil.
Ademais, a lavratura do flagrante est sujeita a prazo fatal de
24h, findo qual deve o autor da infrao receber a nota de culpa, sob
pena de nulidade do ato. No pode, pois, o fato ficar merc do
comparecimento de uma autoridade militar para materializao do ato,
sob pena de ensejar srios prejuzos ao andamento processual e
efetivao da mais ldima justia.
A COMPETNCIA DA JUSTIA MILITAR
A competncia da Justia Militar vem traada na Carta Poltica, em
seu art. 124, caput, que estabelece o seguinte:
"Compete Justia Militar processar e julgar os crimes militares
definidos em lei"(grifo nosso)
Ao delimitar a competncia, in casu, a Constituio autorizou o
legislador ordinrio especificar em quais circunstncias ter-se- um
delito de natureza militar.
O Decreto-Lei 1.001, de 21 de outubro de 1969 foi recepcionado
na condio de Lei ordinria, estando no referido diploma descritas as
hipteses fticas onde, inclusive no-militares, cometem crimes
militares.
o que se depreende da leitura dos artigos 9 e 10 do Cdigo Penal
Militar, que definem os crimes militares em tempo de paz e em tempo
de guerra, respectivamente.
Os dispositivos referidos, todavia, delimitam de forma genrica
quais fatos subsumem a legislao castrense, restando ao operador do
direito, porm, verificar ainda se a hiptese analisada encontra tipo
penal no Cdigo de Iras Especial.
Assim que, o crime s ser militar: primeiro se estiver
disciplinado no Cdigo Penal Militar, na sua parte especial; segundo
se subsumir-se a uma das hiptese previstas no art 9, II e III do
mesmo Diploma.
Surgindo, pois, um fato delituoso cuja autoria seja atribuda a
um militar ou mesmo a um civil, deve a autoridade policial,
presente a situao de flagrncia, consultar o Cdigo Penal Militar
para verificar se existe aquele tipo penal no seu texto. Em caso
positivo, dirigir-se- ao art 9, II e III, para apreciar se as
circunstncias fticas do delito encontram repouso em uma de suas
alneas.
Como exemplo podemos citar o crime de aborto. Malgrado previsto
no Cdigo Penal Comum, o crime de aborto no encontra definio, ainda
que diversa, na legislao penal especial. Logo, o militar, mesmo que
em lugar sujeito Administrao Militar, se praticar um aborto,
cometer um crime comum e no militar, conquanto o art. 9,II, b,
considere militar o crime praticado em tais circunstncias.
COMPETNCIA DA JUSTIA MILITAR ESTADUAL
A Justia Militar Estadual, por fora da Constituio Federal, s
pode processar e julgar militares, sejam policiais ou bombeiros.
Neste caso, no se estende a competncia aos civis, ainda que os
delitos por eles cometidos estejam inseridos na parte especial do
Cdigo Penal Militar e se enquadrem nas hipteses disciplinadas nas
alneas do art 9, II e III do mesmo Diploma.
o que se depreende da leitura do art 125, 4 da Norma Magna, a
seguir transcrito:
"Compete Justia Militar Estadual processar e julgar os policiais
militares e bombeiros militares nos crimes militares, definidos em
lei,..."
No que diz respeito, no entanto, Competncia da Justia Militar
Federal, a Lex Mater no fez qualquer espcie de restrio, pois assim
preceituou:
"Compete Justia Militar processar e julgar os crimes militares
definidos em lei"
luz dos dispositivos acima transcritos conclui-se que em se
tratando de Competncia Federal, possvel o civil cometer crime
militar, o mesmo no acontecendo quando se fala em crimes na esfera
da Justia Militar Estadual, uma vez que o prprio Constituinte
afastou da competncia desta ltima os delitos praticados por
no-militares.
Em resumo, um mesmo delito, cometido em concurso entre militar e
no-militar, poder ter natureza diversa, ou seja, o ato praticado
por militar ser um crime militar e o mesmo ato delituoso praticado
por no-militar ser um crime de natureza comum. Exemplo: militar e
civil praticam leso corporal contra um outro militar estadual que
se encontra em servio.
de suma relevncia o esclarecimento em epgrafe, porquanto, neste
caso, mesmo que o crime seja cometido em local sujeito Administrao
Militar, a autoridade Policia Civil, ao menos em relao ao
no-militar, dever presidir o flagrante e conduzir o inqurito, pois
o crime de natureza comum e no militar.
Neste caso teremos dois processos, um da competncia da Justia
Comum e outro da Justia Castrense, devendo, destarte, a cada justia
ser encaminhada a cpia do flagrante e o respectivo inqurito.
CONCLUSO,
Em carter derradeiro parece-nos oportuno apresentar, em pontos
distintos, as concluses decorrentes do presente estudo:
1.O Delegado de Polcia, investido nas suas prerrogativas legais
e de autoridade policial, alm de outras diligncias, juntamente com
os membros da organizao policial, pode e deve autuar em priso
flagrante delito, qualquer pessoa, civil ou militar, que tenham
cometido crime militar, desde que presa fora da administrao
castrense;
2.No caso de crimes militares cuja pena mxima, abstratamente
cominada, no exceda a dois anos (crimes de menor potencial
ofensivo), ainda assim deve ser lavrado o flagrante delito, uma vez
que a Lei 9.099/95, mesmo com as modificaes resultantes do advento
da lei 10.259/2001, no se aplica aos delitos militares. Em resumo,
no se lavra Termo Circunstanciado de crime militar, somente
flagrante;
3.No caso de delito cometido por militar, na hiptese de aplicar
o art 250 do CPPM, a autoridade policial civil deve, antes de
qualquer coisa, consultar a parte especial o Cdigo Penal Militar, a
fim de certificar-se se a hiptese ftica apresentada subsume-se a
algum dos tipos penais nela elencados. Em seguida, dever apreciar o
art 9, II e III, do mesmo Diploma, para verificar se est diante de
um delito de natureza militar;
4. Concludo o flagrante, seja o crime comum ou militar, se
praticado por membro das corporaes armadas, deve ser o infrator
encaminhado imediatamente a sua respectiva fora, devendo permanecer
na Delegacia somente o tempo suficiente para a lavratura do auto de
priso;
5. Nos crimes da Competncia da Justia Militar Estadual, somente
se aplica a legislao Penal e Processual Penal Militar aos
militares, sejam bombeiros ou policiais, pois nesta esfera de
competncia o no-militar s pratica crime de natureza comum, ainda
que em concurso com militar;
6. Nos crimes da Competncia da Justia Militar Federal, a
legislao especial se aplica a militares e no-militares que cometam
delitos desta natureza.
NOTA
Cdigo Penal Militar
"Artigo 9 - Consideram-se crimes militares me tempo de paz:
I os crimes de que trata este Cdigo quando definidos de modo
diverso na lei penal comum, ou nela no previstos, qualquer que seja
o agente, salvo disposio especial;
II os crimes previstos neste Cdigo. embora tambm o sejam com
igual definio na lei penal comum, quando praticados:
a)por militar em situao de atividade ou assemelhado, contra
militar na mesma situao ou assemelhado;
b)por militar em situao de atividade ou assemelhado, em lugar
sujeito a administrao militar, contra militar da reserva ou
reformado, ou assemelhado, ou civil;
c)por militar em servio ou atuando em razo da funo, em comisso
de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar
sujeito administrao militar, contra militar da reserva, ou
reformado, ou civil;
d)por militar durante o perodo de manobras ou exerccio, contra
militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;
e)por militar em situao de atividade, ou assemelhado, contra o
patrimnio sob a administrao, ou a ordem administrativa militar;
f)revogada
III os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado,
ou por civil, contra as instituies militares, considerando como
tais no s os compreendidos no inciso I, com os do inciso II, nos
seguintes casos:
a)contra o patrimnio sob a administrao militar, ou contra a
ordem administrativa militar;
b)em lugar sujeito administrao militar contra militar em situao
de atividade ou assemelhado, ou contra funcionrio de Ministrio
Militar ou da Justia Militar, no exerccio de funo inerente ao seu
cargo;
c)contra militar em formatura, ou durante o perodo de prontido,
vigilncia, observao, explorao, exerccio, acampamento, acantonamento
ou manobras;
d)ainda que forma do lugar sujeito administrao militar, contra
militar em funo de natureza militar, ou no desempenho de servio de
vigilncia, garantia e preservao da ordem pblica, administrativa ou
judiciria, quando legalmente requisitado para aquele fim, ou em
obedincia a determinao legal superior.
Pargrafo nico Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos
contra a vida e cometidos contra civil, sero da competncia da
justia comum."
Alguns conceitos importantes:
1.Militar em situao de atividade aquele que est no servio ativo,
ou seja, ainda no foi para a reserva ou foi reformado. Comparando
com o servidor comum, aquele no aposentado ou afastado
definitivamente;
2.Assemelhado figura no mais existente na estrutura militar;
3.Militar da reserva aquele que no se encontra mais no servio
ativo, embora seja ainda remunerado por fora de aposentadoria,
estando sujeito a retornar ao servio ativo, mediante convocao;
4.Militar reformado aquele que deixou o servio ativo e no mais
pode ser convocado, e que matem remunerao custeada pelos cofres
pblicos. Em regra so os aposentados por invalidez, ou os da reserva
passado determinado lapso temporal fixado em lei;
5.Militar em servio aquele da ativa que est prestando algum
servio de natureza militar;
6.Militar atuando em razo da funo aquele militar que de folga,
atua prestando um servio em razo da profisso abraada.Exemplo mais
comum do policial militar que prende algum em flagrante mesmo fora
do servio, ou do bombeiro que salva uma vida na mesma
circunstncia;
BIBLIOGRAFIA e LEGISLAO CONSULTADAS
1 - Curso de Direito Penal Militar - ROMEIRO, Jorge Alberto -
Editora Saraiva - Edio 1994;
2 Constituio Federal de 1988;
3 Cdigo de Processo Penal Militar;
4 Cdigo Penal Militar
Crimes dolosos, praticados por militares dos Estados, contra a
vida de civis: crime militar julgado pela Justia Comum Elaborado em
04.2005.
Ccero Robson Coimbra Nevesprimeiro-tenente da Polcia Militar do
Estado de So Paulo (servindo na Corregedoria), bacharel em Direito
pelas Faculdades Metropolitanas Unidas, especialista em Direito
Penal pela Escola Superior do Ministrio Pblico de So Paulo,
mestrando em Direito Penal pela PUC/SP, professor de Direito Penal
Militar da Academia de Polcia Militar do Barro Branco e de Direito
Penal Militar Aplicado no Curso de Especializao de Oficiais em
Polcia Judiciria Militar na Corregedoria da Polcia Militar do
Estado de So Paulo
1. Introduo
Desconsiderando ilaes acerca das razes que levaram o Poder
Constituinte derivado a alterar a competncia da Justia Militar
Estadual, com o advento da Emenda Constitucional n 45, de 08 de
dezembro de 2004, surgiu no universo jurdico uma nova roupagem para
os crimes dolosos, praticados por militares dos Estados, contra a
vida de civis que encontrem tipicidade no Cdigo Penal Militar.
Transcendendo uma viso puramente crtica e inconformista, devemos
absorver a nova realidade buscando delinear suas conseqncias
prticas para os operadores do Direito Penal Militar, substantivo e
adjetivo.
As linhas que se seguiro, abertas a crticas construtivas que
possam enaltecer o debate, tero o escopo apenas de evidenciar uma
viso possvel acerca da nova ordem, sem a inteno de sacramentar
idias, estabelecer dogmas intransponveis ou mesmo de impor uma
anlise puramente corporativista, que coloque acima do Direito
interesses comezinhos repudiveis.
2. A situao vigente antes da Emenda Constitucional
O pargrafo nico do artigo 9 do Cdigo Penal Militar, acrescido
pela lei 9.299, de 07 de agosto de 1.996, in verbis, dispe que os
crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e
cometidos contra civil, sero da competncia da Justia Comum.
Para boa parte da Doutrina, para no dizer sua totalidade, ao
assim dispor, a lei 9.299/96 apresentou inconstitucionalidade
patente, porquanto sua edio apenas suprimiu a competncia da Justia
Militar, expressa no art. 124 (Justia Militar Federal) e no 4 do
art. 125 (Justias Militares Estaduais), da Constituio Federal.
Com efeito, no que concerne ao deslocamento de competncia para a
Justia Comum para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida,
perpetrados contra civis, a lei 9.299/96 apresentou flagrante
inconstitucionalidade. O raciocnio para essa concluso bastante
simples, bastando uma simples reflexo acerca do princpio da
supremacia da constituio e da idia de uma constituio rgida. Nesse
sentido, Alexandre de Moraes, de forma precisa e clara, argumenta
que "a existncia de escalonamento normativo pressuposto necessrio
para a supremacia constitucional, pois, ocupando a constituio a
hierarquia do sistema normativo nela que o legislador encontrar a
forma de elaborao legislativa e o seu contedo. Alm disso" prossegue
o insigne autor ", nas constituies rgidas se verifica a
superioridade da norma magna em relao quelas produzidas pelo Poder
Legislativo, no exerccio da funo legiferante ordinria" [01]. dizer,
em outros termos, que nenhuma norma infraconstitucional, pelos
postulados supra, pode afrontar a Lei Maior ou, do contrrio, dever
ser rechaada por inconstitucionalidade.
No caso da lei 9.299/96, o que se viu foi a materializao dessa
inconstitucionalidade, vez que referida lei, lei ordinria, alterou
competncia de julgamento de crimes militares dolosos contra a vida
de civis que, constitucionalmente, era conferida s Justias
Militares, relativizando e conspurcando o princpio do juiz
natural.
A propsito do princpio do juiz natural, dispem respectivamente
os incisos XXXVII e LIII do art. 5 da Constituio Cidad, que no
haver juzo ou tribunal de exceo e que ningum ser processado nem
sentenciado seno pela autoridade competente. O princpio em relevo
deve ser interpretado de forma plena, vedando-se "no s a criao de
tribunais ou juzos de exceo, mas tambm de respeito absoluto s
regras objetivas de determinao de competncia, para que no seja
afetada a independncia e imparcialidade do rgo julgador." [02]
De se notar nesse cenrio que o texto do pargrafo nico do art. 9,
nitidamente norma de Direito Penal Militar adjetivo, em um compndio
que pretende ser de Direito Penal Militar substantivo, no exclui o
crime doloso contra a vida praticado contra civil da esfera dos
crimes militares.
Ora, se o crime era militar e tal crime, por previso expressa da
Lei Maior, era de competncia da Justia Militar, o deslocamento do
julgamento para a Justia Comum, materializada por lei ordinria,
resultava na submisso do jurisdicionado a autoridade no competente.
Interpretaes diversas desta, com a devida vnia, lastraram-se em
quaisquer outros critrios, menos um critrio tcnico-jurdico.
Malgrado a construo supra, ao menos no mbito estadual e isso com
o respaldo do Excelso Pretrio e do Superior Tribunal de Justia,
firmou-se posio jurisprudencial no sentido da constitucionalidade
da lei, sendo a previso em relevo aplicada em sua plenitude.
Vejamos alguns julgados, extrados do primoroso estudo elaborado por
Jorge Cesar de Assis [03]:
Supremo Tribunal Federal:
Crimes dolosos contra a vida. Inqurito. Julgada medida cautelar
em ao direta de inconstitucionalidade ajuizada pela Associao dos
Delegados de Polcia do Brasil - ADEPOL contra a Lei 9.299/96 que,
ao dar nova redao ao art. 82 do Cdigo de Processo Penal Militar
determina que "nos crimes dolosos contra a vida, praticados contra
civil, a Justia Militar encaminhar os autos do inqurito policial
militar Justia Comum." Afastando a tese da autora de que a apurao
dos referidos crimes deveria ser feita em inqurito policial civil e
no em inqurito policial militar, o Tribunal, por maioria, indeferiu
a liminar por ausncia de relevncia na argio de ofensa ao inciso IV,
do 1 e ao 4 do art. 144, da CF, que atribuem s polcias federal e
civil o exerccio das funes de polcia judiciria e a apurao de
infraes penais, exceto as militares. Considerou-se que o
dispositivo impugnado no impede a instaurao paralela de inqurito
pela polcia civil. Vencidos os Ministros Celso de Mello, relator,
Maurcio Corra, Ilmar Galvo e Seplveda Pertence. Ao Direta de
Inconstitucionalidade 1.494-DF Rel. p/ o acrdo Min. Marco Aurlio,
DJU, 20.04.97).
Superior Tribunal de Justia
Ementa. Processo penal. Conflito de competncia. Justia Militar
Estadual e Justia Estadual Comum. Ao penal em curso. Lei 9.299/96.
Aplicao imediata. Os crimes previstos no art. 9, do Cdigo penal
militar, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, so
da competncia da Justia Comum. (Lei 9.299/96). E, por fora do
princpio da aplicao imediata da lei processual (CPP, art. 2),
afasta-se a competncia da Justia Militar para julgar a ao penal em
curso.
Conflito conhecido para declarar competente o MM. Juiz de
Direito da Vara do Jri. Unnime. (STJ 3 Seo Conflito de competncia
17.665-SP Rel. Min. Jos Arnaldo, j. 27.11.96, DJU, 17.02.97)
Tribunal de Justia do Paran:
Ementa. Conflito de competncia. Crimes de homicdio qualificado e
facilitao de fuga de presos...o crime de homicdio qualificado,
praticado por policial militar contra civil, em 26.06.93, cujo
processo tramita perante a Justia Castrense, passa competncia da
Justia Comum, sem que haja ofensa ao princpio do Juiz
natural...(Ac. 3.036 Confl. Comp. 54.932-8, de Palmas grupo de
Cmaras Criminais, Rel. Des. Trotta Telles, j. 18.06.97).
Ementa. Conflito de Competncia. Homicdio doloso na forma
tentada, cometido por policial militar do Estado, contra civil.
Competncia da Justia Comum. Aplicao da Lei 9.299/96. Incoerncia de
ofensa a dispositivos constitucionais. Os crimes previstos no art.
9 do CPM, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil,
com o advento da Lei 9.299/96, passaram competncia da Justia Comum.
No inconstitucional o art. 1, 1, da Lei 9.299/96. (Confl. Comp.
67.824-6, de Realeza. Grupo de Cmaras Criminais. Rel Des. Trotta
Telles, j. 16.09.98).
Em adio, tome-se julgado oriundo de Minas Gerais, no seguinte
sentido:
Ementa: - Convencido o Juiz Auditor da existncia de dolo no ato
praticado por policial militar de que resultou a morte de um civil,
correta a deciso que julgou a Justia Militar incompetente nos
termos da Lei. 9.299/96. (Rec. Sentido Estrito n 226. Processo n
16.348/2 AJME. Rel. Juiz Cel PM Laurentino de Andrade Filocre.
Recorrente: Ministrio Pblico. Recorrido: O Juzo da 2 AJME).
Como se verificou, por via concentrada, o Supremo Tribunal, em
face de Ao Direta de Inconstitucionalidade proposta pela Associao
dos Delegados de Polcia do Brasil [04], entendeu que a disposio em
discusso era constitucional. Por outro lado, h decises, por via
difusa, que muito acertadamente afastam a constitucionalidade da
lei 9.299/96, dentre as quais pode-se destacar posio do Superior
Tribunal Militar, na seguinte conformidade:
Ementa. Recurso Criminal. Competncia da Justia Militar da
Unio.Inconstitucionalidade, declarada incidenter tantum, da Lei n
9.299 de 1996, no que se refere ao pargrafo nico do art. 9 do CPM e
ao caput do art. 82 e seu pargrafo 2 do CPPM. Desde a sano da Lei n
9.299 de 1996, com o Projeto de Lei encaminhado ao Congresso
Nacional para modific-la, verifica-se que seu texto resultou
equivocado. Enquanto no ocorre a alterao do texto legal pela via
legislativa, o remdio a declarao de sua inconstitucionalidade
Incidenter tantum, conforme dispe o Art. 97 da CF. Antecedentes da
Corte (RCr n 6348-5/PE). Provido o recurso do RMPM e declarada a
competncia da Justia Militar da Unio para atuar no feito. Deciso
unnime.(Acrdo n 1997.01.006449-0 UF: RJ Deciso: 17/03/1998. Rel.
Min. Aldo da Silva Fagundes).
Dessarte, o entendimento jurisprudencial dominante era o de que
os crimes em apreo deveriam ser julgados pela Justia Comum. Essa
realidade levou muitos concluso de que, se a lei no era
inconstitucional (at mesmo na viso da Corte Maior), somente uma
soluo poderia ser dada ao problema: concluir, a frceps, que os
crimes dolosos contra a vida praticados por militares, contra
civis, deixaram de ser crimes militares com o advento da lei
9.299/96. Por essa razo, muito bem observa Clio Lobo, acertaria o
legislador ordinrio se, simplesmente, utilizasse a seguinte redao:
"os crimes dolosos contra a vida, praticados contra civis, no so
crimes militares" [05]. O texto idealizado por Clio Lobo, de redao
simples e direta, solucionaria, sem a necessidade de nenhuma
construo metajurdica, a questo, porquanto o Poder Constituinte
originrio atribuiu ao legislador ordinrio a definio do ilcito penal
militar ("crimes militares definidos em lei", consignam os art. 124
e 125, 4 da Constituio Federal).
A prxis demonstrou que a interpretao por desnaturao do delito
doloso contra a vida de civil para o catlogo dos crimes comuns era
a mais adequada e vivel, vez que as condenaes de militares dos
Estados aps o surgimento do pargrafo nico do art. 9 se deram com
lastro no art. 121 do Cdigo Penal e no no art. 205 do Cdigo Penal
Militar.
3. Crimes dolosos contra a vida de civis: crime militar julgado
pela Justia Comum
3.1. Crime militar doloso contra a vida de civil, perpetrado por
militares das Foras Armadas
A situao esboada permanece inerte no que concerne ao crime
militar doloso contra a vida de civil, perpetrado por militares das
Foras Armadas, j que a Emenda Constitucional n 45/04 no alterou o
art. 124 da Constituio Federal.
Como se demonstrou, dois caminhos poderiam ser seguidos em face
da realidade apresentada: desnaturar o crime do rol dos crimes
militares ou considerar a lei 9.299/96, particularmente no que
concerne ao pargrafo nico do art. 9, inconstitucional, isso pelo
controle difuso de constitucionalidade.
Felizmente, no mbito da Justia Militar Federal prevaleceu a
racionalidade tcnico-jurdica, afastando o Superior Tribunal Militar
a aplicao do dispositivo reconhecendo sua inconstitucionalidade
incidenter tantum, posio que deve ser mantida, salvo se a reforma
do Poder Judicirio, que ainda continua em curso, alterar o cenrio
constitucional.
3.2. A nova realidade das Justias Militares Estaduais
Em que pesem as justas crticas tecidas nova redao do art. 125 da
Carta Me, e nesse propsito muito feliz foi Jorge Csar de Assis
[06], em um ponto o constituinte derivado parece ter mrito
inconteste: caiu por terra a discusso acerca da
inconstitucionalidade do pargrafo nico do art. 9 do Cdigo Castrense
no mbito das Justias Militares Estaduais.
O novo texto claro ao consagrar a competncia do Tribunal do Jri
para processar e julgar os crimes militares dolosos contra a vida
de civil, perpetrados por militares dos Estados.
Vejamos o que consigna a nova redao do 4 do art. 125 da Carta
Magna:
Compete Justia Militar Estadual processar e julgar os militares
dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as aes
judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a
competncia do jri quando a vtima for civil, cabendo ao tribunal
competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais
e da graduao das praas (grifei).
Nitidamente, o Tribunal do Jri, em uma situao excepcional
trazida pela prpria Constituio, passar a julgar crimes militares
dolosos contra a vida de civis, ou seja, ao contrrio do que se
praticou at o advento da Emenda Constitucional em apreo, os
processos devero ter curso por incorrncia do jurisdicionado nos
art. 205 ou 207 do Cdigo Penal Militar, ainda que o Tribunal do Jri
seja expresso da Justia Comum.
3.3. A posio hierrquica da Emenda Constitucional
"O poder constituinte pode ser conceituado como o poder de
elaborar (e neste caso ser originrio), ou atualizar uma Constituio,
atravs da supresso, modificao ou acrscimo de normas constitucionais
(sendo nesta ltima situao derivado do originrio)" [07].
Como se vislumbra da proposio acima, o Poder Constituinte pode
ser originrio (direto, de primeiro grau, inicial, inaugural) ou
derivado (indireto, de segundo grau, institudo, derivado ou
secundrio). Este interessa ao tema proposto, porquanto dele
origina-se a emenda constitucional.
O Poder Constituinte derivado altera a constituio em vigncia,
obedecendo as regras materiais e formais nela previstas ou
estrutura, calcado na capacidade de auto-organizao, a Constituio
dos Estados-membros. Trata-se de um poder subordinado e
condicionado, e com procedimento previsto na Constituio em
vigor.
A alterao do texto constitucional por emenda no livre,
limitando-se pelo que estabeleceu o prprio Poder Constituinte
originrio. Essa caracterstica, ressalte-se, o que confere nossa
Constituio, quanto alterabilidade, as classificaes de rgida e
parcialmente altervel. Dessarte, o constituinte derivado deve
observar limites para alterar a Lei Maior, sendo eles de natureza
formal (quorum de aprovao e rito diferenciado para a alterao da
constituio art. 60, I, II e III, e 2o, da Constituio Federal),
circunstancial (art. 60, 1o, da CF - A Constituio no poder ser
emendada na vigncia de interveno federal, de estado de defesa ou de
estado de stio), material (contedo material da Constituio que no
pode ser alterado; so as clusulas ptreas previstas no art. 60, 4o
forma federativa de Estado; voto direto, secreto, peridico e
universal; separao dos poderes; direitos e garantias individuais),
e implcitos (veda-se a alterao das normas limitadoras de alterao
constitucional).
Primordial ressaltar que a "emenda Constituio Federal, enquanto
proposta, considerada um ato infraconstitucional sem qualquer
normatividade, s ingressando no ordenamento jurdico aps sua
aprovao, passando ento a ser preceito constitucional, de mesma
hierarquia de normas constitucionais originrias" [08].
3.4. Competncia de julgamento dos crimes militares e dos crimes
militares dolosos contra a vida de civis
A nova redao trazida pelo 4 do art. 125 mantm a competncia da
Justia Militar dos Estados para processar e julgar os crimes
militares, a exceo de uma espcie, qual seja, o crime militar doloso
contra a vida de civil, que passou a ser de competncia do Tribunal
do Jri, agora, por uma exceo lmpida, o juzo natural para tal
delito.
Por estranho que possa parecer, essa a nova realidade a ser
reconhecida.
A estranheza, no entanto, comea a se dissipar quando da incurso
pelo carter especial do Direito Penal Militar e quando da anlise do
Direito comparado.
A especialidade do Direito Penal Castrense, em viso tradicional,
evidencia-se pelo rgo especial que o aplica: as Justias Militares.
Nessa linha, desponta Mirabete afirmando que a distino entre
Direito Penal comum e Direito Penal especial "s pode ser assinalada
tendo em vista o rgo encarregado de aplicar o Direito objetivo
comum ou especial". [09]
A especialidade (ius singulari), que no se confunde com
excepcionalidade (privilegium), por esse critrio, adviria das
normas constitucionais (artigos 124 e 125, 4 da Constituio
Federal), que definem a competncia da Justia Militar.
Recentemente, porm, a clssica abordagem vem sofrendo duras
crticas, no sem um fundo de razo, deve-se assinalar.
Clio Lobo, aproveitando os postulados, dentre outros, de Romeu
de Campos Barros, entende que "classificar o direito penal especial
em funo do rgo judicirio encarregado de aplicar o direito objetivo,
demonstra evidente confuso entre Direito Penal especial e Direito
Processual Penal especial". Assevera ainda, aps notvel argumentao,
que "o Direito Penal Militar especial em razo do bem jurdico
tutelado, isto , as instituies militares, no aspecto particular da
disciplina, da hierarquia, do servio e do dever militar, acrescido
da condio de militar dos sujeitos do delito" [10], concluindo
adiante, com base na premissa acima, que apenas os crimes
propriamente militares merecem o ttulo de Direito Penal especial,
sendo os crimes impropriamente militares, cometidos por militares
ou por civil, delitos comuns que o legislador ordinrio, entendeu
por determinar a competncia de julgamento s Justias Militares.
Assim, nas lies do caro mestre, os crimes de homicdio (art. 205
do CPM), leso corporal (art. 209 do CPM) etc, no fariam parte do
Direito Penal especial, mas do Direito Penal comum, ainda que a
competncia de julgamento seja da Justia Castrense.
Sem embargo, a premissa exposta pelo professor, qual seja, a de
que a especialidade do Direito Penal Militar decorre do carter sui
generis do bem jurdico por ele tutelado perfeita e irretocvel.
Entretanto, data maxima venia, parece equivocado o entendimento de
que somente os crimes impropriamente militares possuem essa
especialidade, justamente em razo da abordagem acerca do bem
jurdico-penal militar.
Vrios bens, na acepo genrica de bem jurdico-penal, interessam ao
Direito Penal Militar, destacando-se, obviamente, a hierarquia e a
disciplina, hoje elevadas a valores tutelados pela Carta Maior.
Dessa forma, alm da disciplina e da hierarquia, outros bens da vida
foram eleitos, a exemplo da integridade fsica preservada, do
patrimnio etc.
Por outro lado, possvel afirmar que, qualquer que seja o bem
jurdico evidentemente tutelado pela norma, sempre haver, de forma
direta ou indireta, a tutela da regularidade das instituies
militares, o que permite afirmar que, ao menos ela, a regularidade,
sempre estar na objetividade jurdica dos tipos penais militares,
levando concluso de que em alguns casos ter-se-a um bem jurdico
composto como objeto da proteo do diploma penal castrense. dizer,
e.g., o tipo penal do art. 205, sob a rubrica "homicdio" tem como
objetividade jurdica, em primeiro plano, a vida humana, porm no se
afasta de uma tutela mediata da manuteno da regularidade das
instituies militares.
Para afastar, sempre com a merecida reverncia, a viso do mestre
Clio Lobo, h casos mais gritantes de crimes impropriamente
militares, em que a especialidade, pela tutela da regularidade da
instituio, inequvoca, como o caso do delito de violncia contra
sentinela (art. 158 do CPM). Ainda que possa ser perpetrado por
qualquer pessoa, portanto um crime impropriamente militar, o que
excluiria, na viso do autor, o delito do "catlogo" do Direito Penal
especial, o tipo penal visa a integridade da instituio, em forma de
preservao da autoridade e da integridade fsica da sentinela,
aspecto externo da regularidade.
Em concluso, acerca da especialidade, prefervel, partindo da
mesma premissa, entender que o Direito Penal Militar especial em
razo do objeto de sua tutela jurdica, qual seja, sempre a
regularidade das instituies militares, seja de forma direta,
imediata, seja de forma indireta ou mediata. Abarcar-se-a,
portanto, como crimes integrantes deste Direito Penal especial,
todos aqueles capitulados no Cdigo Penal Militar, ainda que
impropriamente militares.
A existncia de um Direito Penal especial, conclui-se, no clama
necessariamente pela instalao de uma Justia Militar competente para
julgar todos os crimes militares perpetrados. Obviamente que, se
ela estiver instalada no mbito constitucional, sua competncia, por
todos os argumentos j aduzidos, h que ser respeitada.
A inslita situao em que nos encontramos (crimes militares
julgados pela Justia Militar e, em alguns casos, pela Justia
Comum), alis, no privilgio de nosso Pas. No Direito comparado isso
percebido como aponta o prprio Clio Lobo, ao citar como exemplo a
Frana que "extinguiu a Justia Militar em seu territrio, mas
autorizou sua manuteno junto s tropas estacionadas ou operando fora
do territrio francs". [11] Dessa ciso, resultou a seguinte
realidade: "a) esto sujeitos jurisdio comum os crimes militares
cometidos no territrio francs e aqueles cometidos por militares
estacionados ou em operao em pas estrangeiro, onde no foi instalado
rgo da Justia Militar; b) esto sujeitos jurisdio especial, jurisdio
militar, os crimes militares e os comuns de qualquer natureza,
cometidos por militares integrantes de tropas estacionadas ou em
operao em pas estrangeiro ou por civis que nelas prestam servio,
desde que junto a essas tropas funcione rgo da Justia Militar
(conf. arts. 1, aln. 1, 3, 5, 59, 60, do Cd. de Just. Militar
francs)". [12]
3.5. A Constituio como um subsistema
A Constituio Federal, como j sabido, compe-se de um conjunto de
proposies que, por uma anlise pontual, levaria a uma
irracionalidade de difcil composio. Disso decorre que deve ela ser
interpretada de forma sistmica, como, alis, o deve ser o prprio
Direito.
Iniciemos o raciocnio, pois, pela noo elementar de sistema. Como
muito bem ilumina Paulo de Barros Carvalho o sistema, em seu
significado de base, "aparece como o objeto formado de pores que se
vinculam debaixo de um princpio unitrio ou como a composio de
partes orientadas por um vetor comum. Onde houver um conjunto de
elementos relacionados entre si e aglutinados perante uma referncia
determinada, teremos a noo fundamental de sistema." [13] Os
sistemas, completa o caro mestre, podem ser reais ("formados por
objetos extralingsticos, tanto do mundo fsico ou natural como do
social, da maneira mesma que eles aparecem intuio sensvel do ser
cognoscente, exibindo sua relao de causalidade. So grupamentos de
entidades que se vinculam mediante laos constantes, e tudo
subordinado a um princpio comum unificador" [14]. Ex.: sistema
solar, sistema sanguneo etc.), ou proposicionais (compostos por
"proposies, pressupondo, portanto, linguagem" [15])
Os sistemas proposicionais, por sua vez, podem ser cindidos em
nomolgicos (meramente formais, onde as partes componentes so
"entidades ideais, como na Lgica, na Matemtica etc." [16]) e
nomoempricos (compostos por "proposies com referncias empricas"
[17]). Os sistemas proposicionais nomoempricos, por fim, podem ser
descritivos ("como no caso de sistemas de enunciados cientficos"
[18]) ou prescritivos ("como acontece com os sistemas que se
dirigem conduta social, para alter-la" [19]).
Assim, "as normas jurdicas formam um sistema, na medida em que
se relacionam de vrias maneiras, segundo um princpio unificador.
Trata-se do direito posto que aparece no mundo integrado numa
camada de linguagem prescritiva" [20].
Na acomodao interna desse sistema, a lgica de funcionamento
converge toda a estrutura para a norma fundamental que, por sua
vez, a base de derivao de todas as demais normas.
Alerte-se que o direito posto no se confunde com a Cincia do
Direito que, muito embora se configure em um sistema nomoemprico no
prescritivo, mas "teortico ou declaratrio, vertido em linguagem que
se prope ser eminentemente cientfica" [21]. A Cincia do Direito tem
seu foco temtico repousado sobre o fenmeno lingstico do direito
posto, conjunto de enunciados prescritivos [22].
Pois bem, a ordem jurdica ptria, na linha de raciocnio do mesmo
autor, constitui-se em um sistema de normas que podem ser de
comportamento (voltadas para as condutas das pessoas, enumerando o
contedo dentico do sistema, do dever ser) ou de estrutura (aquelas
que dispem sobre rgos, procedimentos e estatuem o modo de criao e
extino das regras).
Este sistema jurdico composto por "subsistemas que se
entrecruzam em mltiplas direes, mas que se afunilam na busca de seu
fundamento ltimo de validade semntica que a Constituio do Brasil. E
esta, por sua vez, constitui tambm um subsistema, o mais
importante, que paira, sobranceiro, sobre todos os demais, em
virtude de sua privilegiada posio hierrquica, ocupando o tpico
superior do ordenamento e hospedando as diretrizes substanciais que
regem a totalidade do sistema jurdico nacional" [23].
Como se verifica, os subsistemas do ordenamento jurdico devem
ser desenvolvidos e interpretados como fenmeno de linguagem, de
forma integrada no sentido de conformar a relao jurdica com o mote
imposto pela Constituio Federal.
Em sentido paralelo, tambm se deve ter em mente que ela, a
Constituio Federal, por seu conjunto de normas de comportamento e
de estrutura, estas em predominncia, constitui-se em um subsistema
que possui lgica prpria, ou pelo menos uma lgica no condicionada
por outro subsistema. No interior desse subsistema, figuram
proposies diversas que, por vezes se colidem, exigindo uma
interpretao entrelaada dentro do prprio subsistema. Essa coliso
poder ocorrer mesmo por normas constitucionais decorrentes de
Emendas, j que integram, a partir do transcorrer de seu iter de
concepo, o prprio texto constitucional, com a mesma hierarquia.
dizer que, nessa lgica, as permisses, restries, imposies etc. devem
interagir de modo a tornar o subsistema congruente, o que
perfeitamente vivel, porquanto o subsistema constitucional pode se
auto-limitar.
guisa de exemplo, o direito greve expressa essa inter-relao de
proposies dentro do prprio subsistema. A amplitude conferida no
art. 9, segundo o qual assegurado o direito greve, encontra limitao
no prprio Texto Maior no que concerne aos militares, j que o inciso
IV do 3 do art. 142, veda expressamente aos militares o exerccio
desse direito.
Aplicando o raciocnio exposto ao tema da presente construo,
teramos que os subsistemas penal ou processual penal jamais
poderiam afrontar validamente o subsistema constitucional, como o
fez a lei 9.299/96. Em mesmo sentido, o subsistema constitucional
conferiu, em nome do Estado de Direito social e democrtico, o
direito ao autor de um injusto penal capitulado como doloso contra
a vida de ser julgado por leigos, que entenderiam, por serem pares,
as peculiaridades afetas ao fato [24], porm, o prprio subsistema
excepcionou a regra ao tratar dos crimes militares conferindo s
Justias Militares a competncia de julgamento para os crimes
militares, inclusive aqueles dolosos contra a vida. Com o novo
texto do 4 do art. 125 da Constituio Federal, o constituinte
excepcionou para as Justias Militares Estaduais, agora em sentido
oposto (ao menos no que concerne aos atos perpetrados contra a vida
de civil), retirando destas a competncia de julgamento e
deslocando-a para a Justia Comum (Tribunal do Jri).
4. O exerccio da polcia judiciria nos crimes dolosos contra a
vida de civil
Pelo que at aqui se aduziu, conclui-se que, na esfera estadual,
o crime doloso contra a vida de civil continua a ser crime militar
[25], havendo, porm, a competncia de julgamento pelo Tribunal do
Jri.
Ainda com lastro na Lei Maior, cumpre iluminar que a misso
constitucional da Polcia Civil cinge-se, por fora do 4 do art. 144,
ressalvada a competncia da Unio, s funes de polcia judiciria e a
apurao de infraes penais, exceto as militares (grifei).
Bem clara, na lgica do subsistema constitucional, a exceo criada
pelo legislador constituinte, no sentido de que a infrao penal
militar ficasse margem das atribuies das Polcias Civis.
Os crimes dolosos contra a vida de civis, perpetrados por
militares dos Estados, ao encontrarem a plena tipicidade no Cdigo
Penal Militar [26], sero de atribuio apuratria das autoridades de
polcia judiciria militar, entenda-se do Comandante de Unidade e,
nos casos de delegao, do Oficial de servio delegado. Como reflexo,
as medidas previstas no art. 12 do Cdigo de Processo Penal Militar
devem ser encetadas pelo Oficial com atribuio de polcia judiciria
militar e no pelo Delegado de Polcia.
5. Concluso
Por todo o consignado, pode-se chegar concluso de que h duas
realidades no que se refere ao crime doloso contra a vida de civil
que encontre subsuno no Cdigo Penal Militar (Parte Especial com
complemento da Parte Geral): uma em mbito federal e outra em mbito
estadual.
No mbito federal, a Emenda Constitucional n 45/04 no alterou a
realidade existente, sendo possvel sacramentar que a previso do
pargrafo nico do art. 9 do CPM inconstitucional.
J no mbito estadual, a supracitada Emenda contribuiu para o
entendimento de que tais crimes permanecem com a classificao de
militares, porm com competncia de julgamento pelo Tribunal do
Jri.
Essa concluso perfeitamente aceitvel, porquanto a exceo partiu
do prprio subsistema constitucional, diferenciando o tratamento por
razes que fogem ao escopo deste trabalho.
Como j se alertou no incio, o objetivo do raciocnio sobreposto
no o de sacramentar o entendimento de forma intransigente, mas de
iniciar uma discusso que pode parecer estril para os operadores do
Direito Penal Militar que militam nas Justias Militares, mas de
suma importncia para aqueles afetos ao exerccio da polcia judiciria
militar.
Vultus animi janua est!
Notas
01 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. So Paulo:
Atlas, 2004. p. 598.
02 Cf. MORAES, Alexandre de. Op. cit. p. 109.
03 ASSIS, Jorge Csar de. Comentrios ao Cdigo Penal Militar Vol.
1. Curitiba: Juru, 2001, p. 294 a 300.
04 Embora a ao no tenha tido seguimento por ilegitimidade da
Associao para prop-la, os votos do relator e dos demais Ministros
ao apreciarem o pedido de liminar, que foi denegado, deixaram clara
a posio do Supremo Tribunal Federal.
05 LOBO, Clio. Direito Penal Militar. Braslia: Braslia Jurdica,
2001, p. 112.
06 ASSIS, Jorge Csar. A Reforma do Poder Judicirio e a Justia
Militar. Breves Consideraes sobre seu Alcance. Revista Direito
Militar, n. 51, jan./fev. 2005. p. 23 a 27.
07 LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. So Paulo:
Mtodo, 2004, p. 55.
08 MORAES. Alexandre de. Op. cit. p. 563 (grifei).
09 MIRABETE, Julio Fabbrini. Ob. Cit. p. 26.
10 LOBO, Clio. Direito Penal Militar. Direito Penal Especial.
Direito Penal Comum. Direito Processual Especial. In Direito
Militar Histria e Doutrina Artigos Inditos. Florianpolis: AMAJME,
2002. p. 38 a 45.
11 LOBO, Clio. Direito Penal Militar. Direito Penal Especial.
Direito Penal Comum. Direito Processual Especial. In Direito
Militar Histria e Doutrina Artigos Inditos. Florianpolis: AMAJME,
2002. p. 40.
12 Idem. Ibidem.
13 CARVALHO,Paulo de Barros. Curso de Direito Tributrio. So
Paulo: Saraiva, 1997. p. 79.
14 Idem. p. 81.
15 Idem. p. 80.
16 Idem. p. 81.
17 Idem. Ibidem.
18 Idem. Ibidem.
19 Idem. Ibidem.
20 Idem. p. 82.
21 Idem. Ibidem.
22 Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. Ob. cit. p. 82. Nessa relao
entre Cincia do Direito, com feio de foros sistemticos, e o direito
posto, identifica o autor a importncia da descoberta da norma
hipottica fundamental, empreendida por Hans Kelsen, porquanto se
torna ela "o postulado capaz de dar sustentao Cincia do Direito,
demarcando-lhe o campo especulativo e atribuindo unidade ao objeto
de investigao". Ob. Cit. p. 83.
23 CARVALHO, Paulo de Barros. Ob. cit. p. 86.
24 Vide art. 5, XXXVIII, "d" da Constituio Federal.
25 Para alguns, de acordo com a soluo adotada anteriormente, o
crime voltou a ser militar.
26 A tipicidade dos crimes dolosos contra a vida no CPM merece
ateno redobrada, porquanto h que se considerar que, diferentemente
do Cdigo Penal comum, no h um captulo que condense os crimes contra
a vida. Nesse contexto, seriam crimes contra a vida apenas o
homicdio e a provocao direta ou auxlio ao suicdio, excluindo-se,
embora haja entendimentos diversos, o genocdio que seria um delito
contra a humanidade e no contra a vida. Deve-se atentar, ademais,
que a tipicidade do crime militar , em regra, indireta, ou seja, no
h um pleno preenchimento da tipicidade apenas pela anlise da Parte
Especial do CPM, devendo-se complementar com a Parte Geral,
mormente os dispositivos do art. 9.