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Laudelino Freire

Jul 07, 2018

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  • 8/19/2019 Laudelino Freire

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    LAUDELINO FREIRE

    ERFIL DO ACADÊMICOSegundo ocupante da Cadeira 10, eleito em 16 de novembro de 1923, na sucessão de

    Rui Barbosa e recebido pelo Acadêmico Aloísio de Castro em 22 março de 1924. Recebeuo Acadêmico Aldemar Tavares.

    Cadeira:

    10

    Posição:

    2

    Antecedido por:

    Rui Barbosa

    Sucedido por:

    Osvaldo Orico

    Data de nascimento:

    26 de janeiro de 1873

    Naturalidade:

    Lagarto - SE

    Brasil

    Data de eleição:

    16 de novembro de 1923

    Data de posse:

    22 de março de 1924

    Acadêmico que o recebeu:

    Aloísio de Castro

    Data de falecimento:18 de junho de 1937

    BIOGRAFIA 

    Laudelino Freire (Laudelino de Oliveira Freire), advogado, jornalista, professor, político,crítico e filólogo, nasceu em Lagarto, SE, em 26 de janeiro de 1873, e faleceu no Rio de

    Janeiro, RJ, em 18 de junho de 1937.

    http://www.academia.org.br/academicos/rui-barbosahttp://www.academia.org.br/academicos/osvaldo-oricohttp://www.academia.org.br/academicos/aloisio-de-castrohttp://www.academia.org.br/academicos/osvaldo-oricohttp://www.academia.org.br/academicos/aloisio-de-castrohttp://www.academia.org.br/academicos/rui-barbosa

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    Foi aluno da Escola Militar do Rio de Janeiro, tendo interrompido o curso por doença.Formou-se em Direito em 1902. Além de advogar, exerceu cargos públicos, o magistério eo jornalismo, colaborando na imprensa também, sob os pseudônimos Lof e Wulf.

    Depois de cumprir três mandatos como Deputado Estadual na Assembleia Legislativa de

    Sergipe, Laudelino Freire fixou-se definitivamente no Rio de Janeiro. Foi professorcatedrático do Colégio Militar, tendo lecionado várias disciplinas (Português, Espanhol,Geografia, História e Geometria) e consolidado sua carreira de escritor, jornalista e filólogo.

    Como jornalista, foi diretor daGazeta de Notícias e colaborou em diversos jornais, entreeles o Jornal do Brasil, Jornal do Comércio eO País. Seus artigos foram reunidosemNotas e perfis, em onze volumes (1925-1930), definindo cada um deles a cultura e asideias de Laudelino Freire, um dos maiores investigadores dos estudos clássicos e

    filológicos no Brasil.

    Em 1918 fundou aRevista da Língua Portuguesa, que dirigiu, publicando trabalhos de altovalor, quer literário, quer filológico, como aRéplica de Rui Barbosa. Os seus 68 volumespublicados são até hoje um indispensável subsídio para quem pretenda estudar a Língua

    Portuguesa. Fundou e dirigiu também aEstante Clássica (15 volumes). É o autor doGrande e novíssimo dicionário da Língua Portuguesa, de publicação póstuma em cinco

    volumes, com a colaboração de J. L. de Campos, Vasco Lima e Antônio Soares FrancoJúnior.

    Foi um dos maiores defensores da simplificação da ortografia no Brasil. Em toda a sua

    obra de escritor e de jornalista cultivou o Português não com o espírito avaro do amador, esim com a generosidade larga de uma vocação, divulgando os tesouros que descobria.Não era a gramática que ele venerava, e sim, a história, o desenvolvimento, o espírito da

    língua.

    Em 1920, a Liga da Defesa Nacional convidou-o a substituir Olavo Bilac, para proferir a

    conferência “A defesa da língua nacional”, dentro da programação da Liga em prol dosinteresses brasileiros.

    Segundo ocupante da cadeira 10, foi eleito em 16 de novembro de 1923, na sucessão de

    Rui Barbosa, e recebido pelo acadêmico Aloísio de Castro em 22 março de 1924. Recebeuo acadêmico Aldemar Tavares.

    FREIRE, Laudelino de Oliveira

      Nasceu em Lagarto, Sergipe, a 26 de janeiro de 18!" #rans$eriu%separa o Rio de &aneiro onde cursou a Escola 'ilitar, (ac)arelando%se emmatem*tica +18-., e a Faculdade Livre de /ireito" Ensinou durante

    algum tempo na Escola 'ilitar e $oi deputado em seu Estado natal+18018. mas seguiu pre$erentemente a carreira jurdica, no Rio de

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    &aneiro" 3ola(orador assduo na imprensa peri4dica $oi tam(5mcorrespondente do /i*rio de ernam(uco no Rio de &aneiro" olemi7oucom Silvio Romero" ertence ao Instituto dos dvogados e ao Instituto9ist4rico" Elegeu%se em 12! para a cademia de Letras onde su(stituiua Rui :ar(osa" Faleceu no Rio de &aneiro a 18 de jun)o de 1!, aos 60anos"

    BIBLIOGRAFIA 

    Escritos diversos, 1897.

    História de Sergipe, 1900.

    Sílvio Romero, 1900.

    Linhas de polmica, 1901.

    Sonetos !rasileiros, 190".

    #s próceres da crítica, 1911.

    Est$dos de %iloso&ia e 'oral, 191(.

     )s s$as contradi*+es, resposta a Sílvio Romero, 191".

    m s-c$lo de pint$ra, 191.

    Rio /ranco, 1918.

     ) de&esa da líng$a nacional, 19(0.lssicos !rasileiros, 19(2.

     3er!os port$g$eses, 19(4.

    5isc$rsos, 19(4.

    Livros de amilo, 19(4.

    6otas e per&is, 11 vols., 19(41920.

    ra*as e galas da ling$agem, 1921.

    Seleta da líng$a port$g$esa, 192".

    Ling$agem e estilo, 1927.

    :i(liogra$ia;

    Escritos diversos" Rio de &aneiro ; #uadro corogr*$ico de Sergipe" re$*cio :ar?o do Rio :ranco" aris ;#

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    9ist4ria de Sergipe ; resumo did*tico para uso das escolas pB(licasprim*rias" racaju ; #

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    de$esa da lngua nacional" Rio de &aneiro ; #

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    DISCURSO DE POSSE

    SENHORES Acadêmicos:

    Cantam ainda, nas largas ressonâncias das vibrações patrióticas, os hinos triunfais da

    Festa do Sol.

    Todo um povo coroava, no altar da sua admiração, o jubileu de uma existência flamejante,

    não raro combatida, mas sempre venerada, cheia de lutas, vicissitudes e contrastes, massó vivida para simbolizar o bem e a beleza, a justiça e a liberdade, o saber e a glória. Era oBrasil unânime, sem antagonismos nem rivalidades, por suas legítimas soberanias – “asoberania da nação, a soberania da inteligência, a soberania da consciência social e a

    soberania da verdade eterna” – a divinizar um nome, aclamando-o, entre os esplendoresde uma solenidade singular e rara, à face do mundo e com o testemunho de Deus, o domaior dos seus homens.

    Dir-se-ia que, no primeiro dia do tríduo memorável, ao celebrar-se no Campo de São

    Cristóvão a imponente cerimônia religiosa, se consumara afinal o consórcio da grandezamoral da pátria com a onipotência espiritual do filho.

    Sublime quadro, e talvez único em toda a nossa vida, foi o desse instante!

    Quando, sob a comoção de tantas e tamanhas dignificações, de olhar volvido aos céus,

    pedia o excelso compatriota ao Senhor dos mundos lhe desse força para resistir e ânimopara agradecer, – toda a multidão ali compacta, enternecida e arrebatada nos estos damesma exaltação, banhava-se na luz de dois sóis – a que descia das alturas siderais e aque se derramava da eloqüência do homem, em cuja boca selara Deus o poder prescientedo verbo, que o fizera divino entre humanos.

    E como se lhe não arrebentaram as cordas do coração, represado pela intensidade de

    tantas alegrias, de tantas compensações, de tantas vitórias, alcançadas sobre tantosdissabores, tantos reveses, tantos martírios? Que se passaria no recôndito daquela alma,

    vendo-se assim transformada em objeto de veneração tão profunda e de tão grandiosas

    pompas, como só se tributam aos que, mergulhados já no sono da outra vida, ressurgem,no seio da história, engrandecidos pela posteridade?

    A vida de Rui Barbosa, onímoda e onipatente, revela o quer que seja de essênciamiraculosa.Eleito para galgar os altos cimos do pensamento, tornou-se mestre entre sábios, arquétipodo homem de estado, assombro da tribuna; encarnação viva do espírito liberal, idealista eevangelizador; a mais elevada expressão mental e política do seu país e do continente,

    condensando em si uma época e um idioma.

    À luz dos julgamentos definitivos é que há de avultar-lhe o nome. Resplandecidos entãopelo crisol da justiça sem manchas, refulgirão os predicados que lhe deram a ele a posição

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    extraordinária e única, que começou de conquistar, tanto que se estreou, madrugando, naslides e lutas do homem público.Contemporâneos da sua época, aquecidos ao calor dos seus ideais, tocados da magia da

    sua palavra e do fogo comunicativo das suas paixões; participantes das suas pelejas,nelas combatidos ou com elas solidários, ora arrebatados no torvelinho dos temporais, ora

    arroubados nos transportes dos hinos das suas vitórias, sentindo as mesmas alegrias, oucurtindo as mesmas dores, – nós, os que aspiramos o ambiente em que viveu, lutou e se

    desdobrou esse homem-prodígio, apenas podemos sentir-lhe a grande obra e gozar-lhe osprimeiros frutos.

    Sentimo-la somente, mas não a entendemos; fruímo-la, sem lhe penetrarmos a extensão,que a eleva indisputavelmente ao plano das maiores construções ideais em prol do direitocontra o despotismo, da verdade contra o erro, da virtude contra a maldade, da firmezacontra a frouxidão, das realidades grandiosas contra o instituto das razões de estado, nãoraro delusórias e fementidas.Coevos desse esforço de reconstrução política e trabalho messiânico de beleza e

    patriotismo, nem por isso deixam de existir vozes negativas, que acusam o reformador,como a Cristo acusaram os judeus dizendo, no pretório do magistrado que lavou as mãos

    diante da sua fraqueza (segundo o Evangelho de S. Lucas, cap. 23, 2): “A este temosachado pervertendo a nossa nação.”

    Há uma luz, Senhores, a luz da verdade, que dissipa o fumo negro que se exala doprofundo da maldade humana. A lâmpada que ilumina as campas mortuárias não tem amudez sempiterna do sepulcro. – “Lampas contempta apud cogitationes divitum, parata adstatutum.” – São palavras de Jó.Para o julgamento do homem que se divinizou na obra do engrandecimento de um povo,na redenção de uma raça, na vigilância das liberdades, no apostolado do regime; dopolítico clarividente cuja ação teve epopéias como a do civilismo, a de Haia, a de BuenosAires e a do Código Civil – “há de estar sempre guardada e prestes para quando for

    tempo” aquela lâmpada que, sem intermitências, já ardia nos templos das divindadespagãs, simbolizando a luz da verdade eterna.

    É através dessa claridade que há de mostrar-se a figura de Rui, esculpida na grandeza doprofeta e na majestade do pensamento, como o brasileiro que maior obra doutrináriarealizou para a sua pátria, que nele não teve o agitador estéril, o retórico, o demagogo, oparalogista, senão o semeador do bem e o realizador fecundo, o missionário da paz e osustentador da ordem, o apóstolo do direito e o antessignano da igualdade jurídica dasnações.

    Tão extenso fora o campo das suas lidas e fainas; em tantas províncias da sabedoria forao primeiro; de tantas coisas tratara e em tantas cuidara que, dir-se-á, nenhum assunto

    importante, quer político, econômico ou financeiro; jurídico, internacional ou lingüístico; deensino, de ética ou estética, dele deixou de receber soluções, que para logo serviam a

    inspirar governos e estadistas, legisladores e economistas, tribunais e juízes, juristas e

    advogados, professores e filólogos, educadores e periodistas. A sua palavra tornara-se

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    os escritores; ou o próprio gênio, através do evolver dos séculos, resumindo, nas maisarrojadas manifestações, inúmeras daquelas virtudes antigas que inspiraram a Plutarco agaleria imortal dos seus varões.

    Bastaria vos lembrásseis que de Sólon e Licurgo teve a larga visão no legislar; de

    Publícola, a resistência contra a tirania; de Péricles, a dignidade do proceder e a grandezad’alma; de Marcelo, a coragem cívica; de Catão, aquele saber e utilidade nas orações doSenado; e de Demócrito, a mesma doçura e humanidade depois do triunfo, porque em Ruicomo naquele varão de Plutarco havia o horror da “vitória que degola os vencidos”.

    O que de César escrevera Salústio pode-se-lhe aplicar:

    “Grande pelos seus benefícios e pela sua munificência; pela afabilidade e clemência seilustrara, dando, socorrendo e perdoando, glória alcançou; (Cesar dando, sublevando,

    ignoscendo... gloriam adeptus est); era o refúgio dos perseguidos, e tinha por sistema

    trabalhar, velar..., não denegar, coisa digna de conceder-se”.

    Se César para si só quisera coroas e honras marciais, por exemplo “um grande comando,um exército, uma nova guerra”, a fim de que, por inteiro, se lhe patenteasse todo o valor ougênio – Rui, ambicionando o poder, no posto de mais árduos sacrifícios, que é pelourinho,só desejara, devemos crer, com a afirmação da liberdade e da ordem, pôr a grandeza doseu saber a serviço da sua nação.Num país onde o censo da elegibilidade faz que se colham os triunfos dos sufrágios nateia urdida pela lógica e sentimentos que radicam a política do poder pessoal, a livresanção das urnas é ainda virtude insólita.

    Ninguém, no entanto, mais talhado para encaminhar-nos os destinos do que o homemque, no dizer de Coelho Neto, sustentou nos ombros, ele só, toda uma pátria, levantando-a

    tão alto que o mundo todo a vê e admira.

    Envaidecem-nos tais confrontos, porque eles só cabem aos predestinados, a exemplo docompatriota abnegado, a quem se ajusta o diadema com que Tácito circundara a fronte deJúlio Agrícola: “Tudo... quanto nele nos maravilhou, subsiste e subsistirá no pensamentodos homens, na série dos tempos e na recordação das coisas...”

    Se no reconhecer ao vosso confrade, como estou a fazer, tantos cabedais e tamanhasvirtudes há exageração, não é minha só, porque consenso quase universal é que nuncaninguém, entre nós, subiu mais alto que aquele que chegou a ser o orgulho e o ídolo dos

    brasileiros.

    Fácil é, portanto, Senhores Acadêmicos, sentirdes a angústia que me oprimiria, se desta

    tribuna, aonde me trouxeram os vossos generosos e reiterados sufrágios, tivesse eu dedescer para ocupar, substituindo-o, a cadeira em que se ele assentou.

    Não; não me elegestes para substituir a Rui Barbosa.

    Influem sem dúvida as eleições acadêmicas certas relações ou alianças; mas o que nelasrealmente ocorre é um seguir-se, um vir depois, ou melhor, uma perpetuação sucessiva de

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    nomes, enlaçados apenas na solidariedade espiritual do culto e amor das letras e dalíngua. A liberdade de escolha é sempre o que se nos depara nas instituições literárias deorganização eletiva, não raro inspirada na equivalência paradoxal dos contrastes e dos

    extremos. Nem sempre os resultados correspondem, como em tudo sói acontecer, à justaconformidade de valores, que se quisera fosse o critério inspirativo; mas nem por isso

    deixam de ajustar-se a causas preponderantes, a que se não furta nenhuma atuação entrehomens.

    * * *

    Tendes em mim um caso que vos será lícito incluirdes entre os daquela equivalência; mascabe-me obtemperar: se a morte, ao ceifar de vidas entre as vossas fileiras, impusesse aafinidade ou igualdade de virtudes e talentos por norma invariável de vossas preferências– que gênio poderia restituir àquela cadeira o brilho da luz que se nela extinguiu? Quemlograria fixar-lhe os clarões da eloqüência que dela irradiou?

    Ligam-me ao meu antecessor, além dos sentimentos de veneração, os laços daquelasolidariedade espiritual no culto do idioma, do mesmo modo que se lhe afeiçoam quantos

    à língua materna testificam devotamento e amor.

    É possível que nem uma escolha houvésseis até agora feito, sem que vos tivésseisinspirado em determinadas relações. É possível que, também, quando escolhestes aOsvaldo Cruz para sucessor de Raimundo Correia, ou o bispo de Mariana para suceder aAlcindo Guanabara, pudesse ser discutida a existência de quaisquer semelhançasintelectuais. Porventura, porém, na obra comum do engrandecimento do país e do seu

    patrimônio mental, não se unem e completam a ação beneditina do sacerdote com a açãotumultuária do jornalista, ou a grandeza daquele poeta com a estatura daquele sábio?

    Assim o entendestes e assim o deliberastes.Não se obstinou, por outro lado, o vosso escolher no só critério literário das obras de

    imaginação; ou de mera fantasia. Não quisestes empunhar o fantascópio. E por isso nãodesconhecestes, antes o proclamastes, o merecimento dos trabalhos de Francisco deCastro, de Jaceguai, de Lafayette, de Pedro Lessa e de Rio Branco, e não parece queobras de ficção sejam as Efemérides, as Dissertações e Polêmicas, o Direito da Família, aGuerra do Paraguai e a Clínica Propedêutica. É que não compreenderíeis a Academia,sem que aqui luzissem aqueles altíssimos engenhos, e deixasse este recinto de encher-sede nomes tão cobertos de benemerência e glória.

    Não fostes insensíveis talvez à referência honrosa ao meu nome aqui feita, no seu

    discurso de recepção, por um dos vossos mais brilhantes confrades, crítico arguto esevero, em cuja pena a paixão com que olha homens e livros não lhe prejudica a

    independência; e, sem embargo do velho princípio dos extremos, bebido nos primórdios dafilosofia clássica, entre os que, dentro de uma mesma ordem, distam um do outro o mais

    possível, fostes buscar-me, isto é, trazer o último para seguir-se ao primeiro, o menor paravir depois do maior dos escritores, dando por sucessor do advogado-rei o menor dossúbditos do dever profissional.

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    Mas, Senhores, direi com Castilho: “Vós sois a Academia e sem dúvida estais pedindoconta das suas obras.”

    * * *

    Foi a infância de Rui como todas as infâncias que se entreabrem e transcorrem nos laresfelizes.A sua educação, fruto de severa disciplina, deram-lha, esmerada e completa, osprogenitores, presidindo-lhe toda a fase do curso preparatório, quer o de adaptação àsdisciplinas secundárias, quer o de adaptação às matérias superiores, o próprio pai, o Dr.João José Barbosa de Oliveira, humanista provecto, espírito nutrido de larga cultura, e “naprovíncia a maior cabeça da sua época, o orador mais perfeito, distinguindo-se, ao mesmotempo, como um caráter de limpidez e inflexibilidade adamantinas” (são palavras do filho).

    Forma a boa educação almas austeras e puras. E Rui poderia repetir o que confessara

    Marco Aurélio: “Meu pai ensinou-me a não ter nada de cobarde, nem de efeminado; minhamãe a evitar o pensamento do mal... a ser benfazejo, a preferir a verdade a tudo”; e aindaacrescentar: “amei as crianças e fui amigo das flores.”

    Aos quinze anos concluíra, perfeitamente habilitado, o estudo das humanidades, não coma preparação vulgar do comum dos alunos, mas com a madureza capaz de dar-lheautoridade magistral. Ele próprio o confirma:

    “Estudante pertinaz e incansável, estava eu, em fins de 1864, aos meus quinze anos deidade, habilitado para a matrícula no Recife, com atestados como o do engenheiro Silva

    Pereira, grande matemático, rival outrora do primeiro Rio Branco nos bancos acadêmicos,que me declarara capaz de ‘ensinar matemáticas elementares’, e o de fr. Antônio daVirgem Maria Itaparica, sábio filósofo daqueles dias, que testificava achar-se o seu jovem

    discípulo em condições de ensinar ‘filosofia racional e moral’.”Era a Bahia nessa época, e em todos os tempos, viveiro de inteligências aprimoradas e de

    estadistas de renome, centro de grandes mestres, tribuna da eloqüência, e região ubérrimade talentos predestinados; e nesse meio e nesse ambiente foi que madrugou aquelacriança.“Esse menino de cinco anos de idade”, atesta o velho professor Ibirapitanga, “é o maiortalento que conheço em trinta anos de magistério; em quinze dias fez a análise gramatical,distinguiu as diferentes partes da oração e conjugou todos os verbos regulares.”

    Causou isso assombro a mestres e condiscípulos. Estando ainda a cursar o GinásioBaiano, dirigido pelo Dr. Abílio Borges, depois barão de Macaúbas, ensaiou os primeiros

    vôos tribunícios. Informa um dos seus biógrafos que “Contando apenas onze anos, porocasião de uma festa literária ali realizada, pronunciou um discurso tão sentencioso e

    cheio de lindas imagens, que seu pai, radiante de alegria, inquiriu do diretor do colégio: –Você não colaborou neste discurso do Rui? – A mesma pergunta lhe ia eu fazer, retorquiu-

    lhe Macaúbas.

    Presente à festa, Muniz Barreto pediu imediatamente a palavra, improvisando estasquadras:

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    Admira numa criançaO engenho, o critério, o tinoQue possui este menino

    Para pensar e dizer.

    Não, não me iludo na minhaBem firmada profecia:Um gigante da BahiaNa tribuna ele há de ser.

    Concluindo o curso, o barão declarou ao Dr. Barbosa: – “Seu filho nada mais tem aaprender comigo.”

    Foi nessa fase inicial que se lhe despertaram os pendores para os estudos clássicos,

    hauridos nos ensinamentos paternos e dos primeiros mestres Fiúza, Ibirapitanga, Itaparica

    e Carneiro Ribeiro, nomes veneráveis.

    Na mesma inclinação incitou-o ainda uma sociedade de estudos filológicos, então aliexistente e da qual fazia parte. E assim, em boa companhia “se imbuiu desse classicismo,que lhe tornou admiráveis as orações, os artigos, as polêmicas” (palavras de um seubiógrafo).Não deixou jamais de viver no trato dos clássicos, fazendo-se-lhe familiar a língua deCícero, e penetrando já o halo luminoso e circundante do monumento que ao idioma legouo gênio de Vieira.Não é, minhas Senhoras e Senhores, sem entranhada comoção, sentindo palpitar-me o

    amor de filho, neste momento que seria de tanto júbilo e glória para os entes dignos e bonsque me trouxeram à vida, que eu vos recordo a gratidão filial que em Rui foi sentimento

    preponderante.Em todos os instantes das suas maiores alegrias, ou quando sobre a cabeça do homem

    político se desencadeavam as descargas dos ódios e ultrajes, do seu amor filial era quefazia o sacrário, onde confiava que as amarguras e injustiças podiam dissipar-se, ou para

    nele depôr os estemas que lhe coroavam os triunfos.

    “Vós, Senhor, me destes progenitores imaculados, que buscaram ensinar-me a não erraros vossos caminhos.”Como se lhe derrama o suave da linguagem em toadas de harpa eólia, e se lhe desabotoao sentir à flor dos lábios para envolver no perfume da ternura a imagem dos pais:“Espírito supremo daquele que me ensinou a sentir o direito e querer a liberdade, espíritosevero de meu pai; imagem da bondade e da pureza, carícia do céu na manhã de meusdias, espírito sideral de minha mãe... Vós, autores benignos do meu ser, vós sois a árvore

    dadivosa, cujos benefícios sobrevivem no reconhecimento, que não murcha.”

    Mais tarde, em ímpeto dominador, respondendo a um julgamento iníquo, assim invoca a

    memória paterna:

    Nasci, é verdade, na pobreza; e de tal me honro... Mas se disso me desvaneço, não émenor a honra, para mim, de ter sabido, com o suor de tantas agonias, transformar

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    espinhos em frutos de bênção, fazendo do meu trabalho um manto de respeito para amemória de meu pai. E por isso bem é que a memória do pai venha trazer hoje otestemunho incorruptível dos mortos em favor do filho indignamente difamado.

    E, de fato, a memória do pai ficou dignificada “na honra triunfante do filho”.

    Embora clínico, e clínico que do labor médico fizera apostolado, na presciência de largoshorizontes que se abririam ao futuro do filho, encaminhou-o o Dr. Barbosa para aFaculdade do Recife, na qual iniciou ele em 1866 o curso jurídico, tendo-se transferido em68 para a de S. Paulo, onde se formou em 70.Aí, a frase é dele, “o mundo acadêmico e o mundo político penetraram-se mutuamente”.Os seus companheiros de estudos; as vibrações das idéias liberais, que enchiam ascabeças daqueles moços, contra a repercussão dos atos emanados do trono; o golpe que,a pretexto da escolha senatorial de Inhomirim, fora desfechado contra o partido liberal,subindo ao poder o conservador, com o seu ministério chefiado por Itaboraí; a reação quelhe opuseram José Bonifácio, Nabuco de Araújo e Zacarias, este que não podia conformar-se com a iniqüidade da queda do gabinete a que presidia; a irradiação do liberalismo de

    Saldanha Marinho, na presidência da província – tudo formava ambiente propício para osurgimento do entusiasmo dos moços em prol da idéia democrática, e, especialmente, em

    favor da redenção da raça infeliz que sofria o guante do cativeiro. Rui, Américo deCampos, Luís Gama, Benedito Otoni, Bernardino Pamplona, Joaquim Nabuco, Ferreira de

    Meneses, Castro Alves (que geração!) eram o escol da mocidade em cujo peito ecoavamas apóstrofes de José Bonifácio, verberando no parlamento nacional os supostos golpesda coroa.

    Foi nesse tempo, em 1869, e em meio assim preparado por sucessos emergentes eincidentes que, no jornal O Radical Paulistano e na loja maçônica A América, despontara jornalista e orador o discípulo que mestre já saíra do colégio do Barão de Macaúbas.

    Enunciava o semanário acadêmico, de que fora ele o principal redator, o programarepublicano em essência, pois que se embebera nos princípios democráticos. Na tribuna,

    “ali acidentalmente sob o rito maçônico”, se mostrara o moço, de vinte anos apenas, oprecursor da lei relativa aos nascituros de mãe escrava, fincando destarte o primeiro marco

    da majestosa atuação que, meio século depois, se tornara objeto do culto cívico quecelebramos sob aclamações nacionais e ruidosas.Descerrava-se assim o gênio que na unidade integral do seu eu fora por excelência umaorganização política. A unidade consubstancial, trabalhada por fascinações empolgantes,tresdobrou-se na obra imensa realizada pelo jornalista, pelo advogado e pelo orador.

    E cheguemos, Senhores Acadêmicos, aos grandes clarões deste espírito que foi maior doque o seu tempo, e deste homem que, consoante as expansões que se lhe rebentaram daalma crivada de desgostos na sua já incurável descrença dos últimos anos, “atravessou

    uma vida inteira em quase perene combate com o seu meio”, empenhado “num ingratoduelo com o irrealizável”.

    * * *Pelo saber quase enciclopédico e mágico prestígio da palavra, pelos problemas de que se

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    ocupou e eficiência que exerceu nos últimos tempos do Império e na República, foi semcontestação o primeiro dos periodistas, em cuja consciência, segundo o sentia, lavrava “oincêndio comunicativo da fé nos princípios, a paixão ignescente do ódio à tirania”. “Pelo

    temperamento reverencial de su’alma,” definia-se ele, “pelos hábitos metódicos do seuespírito, pelo pendor artístico do seu gosto, nunca foi senão um liberal de molde

    conservador, um amigo do progresso pela reforma, um incrédulo na eficácia dasrevoluções.”

    Pregoeiro da ordem constitucional, não ocultava que o lábaro que devia acobertar as vivascomunicações do jornalista com a nacionalidade era a majestade semidivina da justiça.“Todo o bem de que vive um povo civilizado”, sustentou, “se resume neste elemento deconfiança que se chama justiça; e não há justiça sem imprensa. A publicidade é o princípioque preserva a justiça de corromper-se. Todo poder que se oculta, perverte-se.”

    De ânimo mergulhado nesse credo, desenvolveu-se-lhe a trajetória jornalística numa

    ascensão de astro que, já assomando formoso e luzente, vai subindo às amplidões demais intensa irradiação.

    Das suas memoráveis campanhas, a primeira foi a do Diário da Bahia, no decênio de 70 a80. Aí batalhou lutas ingentes pela vitória dos princípios fundamentais do partido liberal, a

    que se filiara, posto às vezes dele se divorciasse, sobretudo nos momentos em que,“rompendo-lhe o programa, esposava o federalismo como bandeira de ação e reformaimediata”.

    Empenhou-se com ardor na defesa de todas as questões que encerravam as “aspiraçõesgerais à liberdade e a democracia”. Da cruzada redentora foi campeão; campeão daeleição direta. Na questão religiosa declarou-se, diante do poder indissimulável do clero,adversário do ultramontanismo, tendo sido, todavia, segundo o seu próprio testemunho,“pelo direito dos prelados católicos ao livre exercício da autoridade espiritual contra o

    odioso e inepto regalismo da coroa”. Mereceu-lhe estudo especial a lei da conscrição.Imprimiu sempre aos seus editoriais notável força persuasiva e lançava-os com tal esmero

    artístico, que com a plena maturidade de mestre e estilo inscreveu na história do nossoperiodismo aquele decênio de doutrinação liberal.

    A segunda campanha foi a de 1889, no Diário de Notícias, cujo programa apontou arepublicanizar a monarquia, a bem da sua conservação, porque nutria o vidente político acerteza de que “não há monarquia compatível com a liberdade, se não for essencialmenterepublicana”. A verdadeira fórmula, indicou-a ele, seria “praticar seriamente o governoparlamentar, e conceder à opinião nacional, inclinada nessa direção de 1831, a grandedescentralização: a federalização das províncias, sob o regime parlamentar da monarquia”.

    Sobre os troféus da idéia abolicionista soergueu a da federalização, a fim de, com esta,como afinal sucedeu, abismando-se o império atravessado no incidente da questão militar,

    concorrer para implantar a descentralização, que, na torrente dos acontecimentos, já nãopodia ficar sob a presidência parlamentar da monarquia, mas sob a direção

    presidencialista da União Federal. Foi das mais intensas a campanha do Diário, e bem adefiniremos se a tomarmos pelo fator mais ostensivo e imediato da revolução de 89. A

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    idéia republicana, com a vitória da abolição, ganhara indisputável terreno. Pugnar naquelemomento, segundo o fizera o Diário, pelo pensamento descentralizador, seria aumentar aconfusa orientação dos partidos que sustentavam o trono, facilitando que se viesse a

    concretizar a aspiração dos que combatiam a monarquia. E assim se deu. Quandoestampou Rui Barbosa o seu célebre artigo Plano contra a Pátria, o qual na opinião de

    Benjamin Constant foi o impulso decisivo para a revolução, uma semana depois, naalvorada de 15 de novembro, tremulava vitoriosa a bandeira da República, sem embargo

    de nunca ter formulado em programa a solução republicana:

    Nunca a advoguei: apontei-a à coroa, aos partidos e à nação, como perigo evitável,mediante a reforma federalista. E quando... se verificou tão depressa o meu prognóstico,aceitei o fato como resultado por todos os motivos irrevogável.

    Aí tendes, Senhores Acadêmicos, o papel que coube ao vosso glorioso confrade no dramafinal do Segundo Reinado, perfeitamente idêntico ao que desempenhou Evaristo da Veiga,

    na terminação do primeiro; e, com ele, a afinidade evidente entre o patrono da grandeCadeira e o seu primeiro ocupante.

    Vitoriosa a questão do fato político, não estavam contudo triunfantes os princípios. Feita aRepública, mais que nunca havia mister do trabalho de preparação. Recrudesceu, por isso,

    o esforço de Rui, em quem desapareceu o jornalista para surgir o organizador no ministro,no subchefe do governo revolucionário e no autor da Constituição, das leis orgânicas e dasábia lei que separou a Igreja do Estado.1Em tudo atuou com liberalismo indefectível e larga visão, adquirindo prestígioincontrastável. É Benjamin Constant, o chefe militar, então de maior autoridade moral,quem declara: – “Acompanho cada vez com mais confiança o senhor Rui Barbosa, comquem prefiro errar a acertar com outros.”

    Cai sobre a República nascente o golpe de estado de 1892. Floriano Peixoto encarna a

    reação e, conseqüentemente, o princípio de legalidade. Mas quando ao doutrinadorpareceu que o marechal começava de praticar ilegalidades, rasgando as constituições

    estaduais com a de deposição dos governadores solidários com Deodoro, se insurgiu onume tutelar da democracia contra o erro da legalidade. Sentiu Rui que a sua velha tribuna

    seria o posto de onde poderia “pugnar pela Constituição para restabelecê-la, restabelecera Constituição para conservá-la”. E ei-lo à frente do Jornal do Brasil, em 1893.

    Nova cruzada e nova vitória, concretizada no estabelecimento do poder constitucional,engrandecido na austeridade, na pureza e energia do eminentíssimo varão, que foi oprimeiro governo civil da República.Não houve na vida do jornalista a continuidade do tempo, mas a contigüidade dosprincípios nunca foi interrompida. A par com a firmeza do esforço a conservação dosmesmos sentimentos. Notai que nele a pertinácia na defesa do liberalismo, da federação,

    do governo civil e da verdade constitucional se conservou inalterável em todos os tempos.

    Em 1898, sob o sugestivo título A Imprensa, fundou a sua nova tribuna, e aí desenvolveu,

    com igual abnegação patriótica, mais uma das suas fainas de guerreador-profeta,penetrado sempre da fé nos princípios que se lhe antolhavam por úteis e convenientes à

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    nação. Levanta, com prudência, no artigo “Projetos e esperanças”, a idéia do revisionismo.E idéia em que uma vez tivesse meditado para logo adquiria força capaz de resistir aosmais desenfreados choques adversos.

    Daí a transformação do apóstolo no lutador, que com a mesma dedicação pleiteava asboas idéias, fortalecendo-as, ungindo-as e purificando-as no espírito da “regeneração, da

    verdade e da resistência”.Ainda outra vez reviveu o Diário de Notícias, e de novo ficou assinalado na imprensa do

    país mais uma fase de evangelização e esplendor.

    O civilismo, no seu aspecto de construção doutrinária contra as negações dos princípiosfundamentais da democracia e liberdade, é, sem dúvida, a mais levantada e significativadas batalhas que se hão travado na vida política do país. A natureza dos elementos que senele empenharam, dão a extensão da notável cruzada, na qual, como em nenhuma outra,participara o sentimento cívico do povo, excetuado talvez o momento histórico em que,esboçando-se já a consciência da nacionalidade, o amor nativo impôs ao General Avílez oembarque das suas tropas impertinentes, e outras coisas mais soube exigir em prol do

    advento da independência.

    Duas temerosas forças, de quando em quando divorciadas para o infortúnio dos povos em

    formação, travando-se das suas armas – a palavra e a espada – procuram devorar-se,tendo ambas por árbitro a uma personalidade de influência ocasional e efêmera, como,entre nós, costuma ser toda força de índole política. O poder civil luta contra o podermilitar, diante de um pretório, que impunha o prestígio soberano e irrecorrível das decisõeseleitorais.

    Três nomes de brasileiros ilustres, infelizmente já mergulhados na noite eterna,representam naquele instante as aspirações exaltadas dos elementos prosélitos militantes.É cedo para o exame sereno dos processos e resultados que do conflito advieram para a

    regeneração dos nossos costumes. Todavia pode afirmar-se que com Rui estava a nação.Mas se este juízo que, conforme vedes, é contemporâneo, está sujeito a restrições, uma

    verdade permanecerá de pé, hoje, amanhã e sempre: naquela luta memorável, alteia-se,grandiosa e estupenda, a figura de um lutador com proporções descompassadas.

    Debaixo de tempestades chamejantes, de ventos que bramem e de raios que, riscando aprofundeza do espaço, estalam em descargas aterradoras, tendo no alto a natureza atremer no furor dos elementos desencadeados, e ouvindo, em torno, o troar dos canhões,“os trovões de artilharia”, o metralhar das máquinas, o fuzilar das armas e o brandir dasespadas – imaginai, Senhores, assim “nessa atmosfera eletrizada”, diante do espantosodesse bombardeio geral de céus e terra, um só homem a lutar, lutar sempre, lutarheroicamente, imperturbável, erecto, pequenino e imenso, cada vez mais abraçado à“onipotência incompressível” da sua palavra, que respondendo a tudo – tremebrilha, chispa

    e fagulha, lampeja, atroa e deflagra, fere, flagela e fulmina, – e aí tendes a Rui no civilismo.

    “Um lutador não é um apóstolo”, sentenciou o mestre. “Exigir”, sustentou ele, referindo-se a

    Pombal, “exigir, nas condições de um destino tão excepcional, a benevolência filosófica deVoltaire casada a essa exuberância de energia; a esse temperamento de combate que

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    caracteriza aquele extraordinário extirpador de abusos seculares, é converter empossibilidade o mais quimérico dos entes de razão. Um lutador não é um apóstolo.” (M. dePombal, 39).

    Toda obra de Rui, versasse assunto que versasse, é, no entanto, a afirmação de que na

    alma do homem que viveu a pregar a fé nas doutrinas, dela se não apartou nunca a docombatente que se coroava no sacrifício das realizações.

    Não seria dado, portanto, desconhecer a missão apostólica do jornalista, que permaneceusempre na fileira da vanguarda, de pena transformada em clava, e de onde só se recolhiaabençoado dos hinos de triunfo.Essa, Senhores Acadêmicos, a vida de Rui no jornalismo: “vida inteira de ação, peleja, ouapostolado.”

    * * *

    No tirocínio da profissão do advogado, que tanto ilustrou, divisa-se também e também se

    sente a rija fibra do combatente a palpitar nos monumentos de doutrinação jurídica, quelhe inscreveram o nome, insigne entre os maiores, nessa ordem onde fulgem Nabuco,Lafayette, Teixeira de Freitas, Carlos de Carvalho, Ouro Preto, José Higino, Clóvis,Carvalho de Mendonça, Eduardo Espínola, Mendes Pimentel, Alfredo Bernardes...

    No profissional tendes ainda o lutador, ou, melhor, pressente-se a fascinação do político.Penetrai-lhe a multidão de pareceres, de razões, de petições, de habeas corpus e demaistrabalhos forenses, e sentireis que o que aí mais vibra é o sentimento, a índole, a alma

    daquela atração irresistível, o que, contudo, não inibira o homem do direito de, no direito,perpetuar-se em maravilhas de sabedoria.A desafiar os tempos – aí está a sua doutrina acerca do conceito extensivo do habeas

    corpus, que nenhuma legislação consagra e pratica com maior perfeição; aí correm osseus ensinamentos sobre o estado de sítio; aí tendes um tratado de matéria constitucional

    contido no Direito do Amazonas ao Acre Setentrional, nos Atos Inconstitucionais doCongresso e do Executivo, na Anistia Inversa, na interpretação do Art. 6.o; aí está a Possedos direitos pessoais; aí se nos deparam os seus vastos estudos referentes às questõesde limites; aí está, enfim, essa Constituição republicana, fruto das suas prédicas, do seuliberalismo e da sua cultura.

    * * *

    Aos primeiros albores da adolescência infiltrara-se-lhe na alma a paixão política, que haviade empolgá-lo por todo o transcurso da vida.

    O seu espírito, que se formara nas idéias do constitucionalismo inglês e bebera na infânciaos princípios da veracidade e da independência, não se voltaria senão para a política coma influição soberana do seu contato; para a política que disciplina, dirige, vigora e felicitapovos; institui ao governo normas sábias, retas, prudentes e benéficas; ampara e assegura

    a administração incontaminada e incorruptível da justiça; da política que encaminha eequilibra os Estados, evitando-lhes os antagonismos.

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    “Meu pai”, escreveu ele, “meu pai que era um liberal de educação política essencialmenteinglesa, imprimiu as suas simpatias na trama do meu tecido moral... Destarte meaparelhava para a política... Educado nessa escola de sinceridade moral e liberdade

    constitucional... entrei em cheio na vida pública, levando a ela no meu seio, como base detudo, a persuasão de que os princípios eram verdades, as ligações políticas obrigações, as

    idéias deveres, os programas pactos de honra, e de que na palavra humana, empregadano serviço do bem, reside uma força irresistível, em sendo perseverante e desinteressada.”

    Atentai nessa sua persuasão de que na palavra humana reside força irresistível.É que com ele nasceu essa faculdade, o maior dos seus dons, a qual ao calor daquelapaixão se sublimara a ponto de chegar a ser o que foi: o mais alto poder de expressão,entremesclado às maravilhas de eloqüência quase sobre-humana.

    Conjugadas a fascinação política e a virtude da palavra, formaram ambas o homempúblico que, consagrando-se ao labor das grandes construções, criou para o seu país a

    escola política do liberalismo e da verdade; da intransigência diante do erro; da reaçãocontra a prepotência, contra a dissimulação, contra a fraqueza; a escola do respeito, da

    polidez e da competência; a da construção da ordem civil e da eficiência do direito comoveículo das grandes conquistas; a escola, em suma, da política que transpôs as fronteiras

    continentais e internacionais para, penetrando o contubérnio das nações, doutrinar evencer em Haia, evangelizar em Buenos Aires, fazer febricitar de comoção a alma daBélgica, pesar nas grandes decisões da Conferência da Paz, e tornar mais fortes os laçosda solidariedade que nos une às gloriosas irmãs sul-americanas, ou sejam os nossosqueridos amigos paraguaios, uruguaios, argentinos e chilenos, ou sejam as dignas naçõesdo Equador, Bolívia, Venezuela, Colômbia e Peru.Vencer em Haia! Bastaria esse feito, que enche um século; bastaria que daquele “comícioimenso”, onde se congregaram quarenta e duas sumidades mundiais, tivesse Rui Barbosasaído aureolado com a vitória moral do princípio da igualdade soberana das nações, paraenvolver-se-lhe o nome na imortalidade!

    Escutai-lhe o depoimento do que para o mundo e, especialmente, para América, significoua grandiosa conquista da sua consciência jurídica:

    Da resistência do Brasil com a unanimidade do apoio das nações americanas resultou oadvento da América triunfante nas serenas regiões do direito. Tal, na sua síntese evidente,a lição do drama de Haia, que a intuição das suas testemunhas mais diretasimediatamente classificou, sem contestadores, como o novo descobrimento político, arelevação do peso deste grande fator, até então desconhecido, na vida internacional.

    Que brasileiro já houve que fizesse tanto? Quem possuiu jamais tamanho prestígio, ação

    mais radiante e maior benemerência?Serei enfático? Perdoai-me.

    Estarei de olhos turvos, no altar da minha admiração por esse compatriota?

    O deslumbramento é o que me causa a sua altura. E não é estranho que a intensidade daluz turve a vista e deslumbre o olhar, reduzindo ou ampliando as proporções objetivas. Dir-

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    vos-ei, no entanto, se é que a minha visão vacila, que não só a mim é que porventura anévoa encobre ou a luminosidade ofusca.Toda a nação brasileira, ou quase toda, nunca deixou de seguir, aplaudir, endeusar esse

    filho, essa vida, esse apóstolo, com extraordinárias expansões de admiração e respeito.Não há ênfase em referir-vos que ninguém nesta terra recebeu ovações iguais nem alvo foi

    de tantas e tão entusiásticas glorificações populares. Nem mesmo os grandes cabos deguerra que, trazendo ao peito distinções marciais, conduziram por entre hinos de vitória a

    bandeira da nação, receberam mais altas honras, consagrações públicas mais solenes eapoteoses mais soberbas.

    E eram-lhe assaz compensadoras essas efusões do sentimento cívico nacional.Um dia visitei-o em Petrópolis. Acolheu-me com a bondade de sempre, e, como se nadalhe tivesse acontecido, com a serenidade que transparecia do profundo do seu olhar,disse-me: – “O Presidente da República acaba de decretar a intervenção federal na Bahia,a fim de manter o governador. Aí está a solução da campanha de patriotismo e libertaçãoem que me envolvi. Vou endereçar ao chefe de Estado esta carta, que lhe passo a ler.”

    Ouvi a leitura da vibrante contestação ao ato presidencial, e ainda uma vez tive a visão daalteza de tão privilegiado espírito, e espírito de energia tão inflexível. Ousei dirigir-lhe

    palavras referentes à impressão produzida na opinião pública pela formidável cruzadapolítica. “Educa-nos todos os dias V. Ex. na verdadeira escola da democracia”, afirmei-lheeu. “Sim, meu amigo, respondeu-me, tenho certeza de que o poder entre nós é detestado,mas a oposição é estéril. Isso, contudo, não me derriba o ânimo, porque sinto que o povome ouve no interesse porque essa nacionalidade não se arruíne pela desunião, peladescrença e pela injustiça, e tudo já o disse por escrito.”

    Sim, sabemos todos que toda vez que ele falava da tribuna popular, orando ao povo “rostoa rosto”, tinha a certeza de que a influição comunicativa do seu verbo ungia, corrigia e

    convencia a consciência das multidões.

    “Em torno do homem que fala aos seus concidadãos”, dizia-o ele, “as multidões

    engrossam como os mares ao redor do veleiro, que, de crista em crista, se vai agüentandonas águas agitadas. A eloqüência aí é a da concisão das vozes de manobra entre osassovios do vento, ou a dos clarões do farol entre os cabeços dos abrolhos.”

    Li, em boa fonte, Senhores, que a persistência do direito contra a obstinação da lei é aorigem dos males sociais. A constante desarmonia entre o princípio e a aplicação gera asperturbações e as lutas.Em regra, a lei não traduz o direito: desvirtua-o. A lei, é certo, “decorre do direito”, masvede que “a lei procede do direito” “como o rio da sua origem”, recurvado em várias

    direções e “apanhando as impurezas das margens”. É que por homens elaborada, a leiterá necessariamente as imperfeições da falibilidade humana.

    Alta expressão do direito é a liberdade; no entanto a lei que a traduz é, não raras vezes, ada proscrição, ou a do jugo sob qualquer das suas formas.Mais alta expressão ainda da ordem jurídica é a inviolabilidade da vida, mas a lei criou a

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    guilhotina e, não raro, de outro aspecto, abre as portas das penitenciárias para a evasãodos matadores.A ordem pública, além de condição, é expressão do direito, mas a lei se detém diante do

    problema da intervenção do poder central na vida dos Estados, de modo que a própriaintervenção sirva de meio, ou pretexto de perturbar a ordem.

    Escreveu Victor Hugo que lhe impunha a consciência, nas suas funções de legislador, aconfrontação permanente e perpétua da lei que os homens fazem com a lei que faz oshomens.A vida de Rui exauriu-se nesse esforço de pregar a expressão veraz do direito nafidelidade incorruptível da lei; e no alto de todas as tribunas que iluminou, o pensamentoque o guiara fora sempre o Pro jure contra legem.

    Essa, Senhores, a flâmula do orador miraculoso que agitou e dirigiu seus concidadãos;profligou a desvirtuação da verdade; incentivou aspirações e fortaleceu ânimos; amparou

    os fracos, animou a infância; flagelou costumes, adversou impatriotas, enfrentoupotentados, defendeu adversários; derrocou situações, e levantou o sentimento brasileiro

    até os hinos ao patriotismo, à democracia, à crença e à beleza; orador em quem afecundidade e imaginação, unidas ao ardor das paixões e à magnitude da coragem cívica,

    davam a impressão de que o seu gênio, no dizer de Plutarco, nem era de homem nem deDeus, mas participava de uma e outra natureza; orador que a tal eminência subiu que,quando falava na rua de São Clemente, a sua palavra era ouvida em Berlim, Londres eParis, e por toda parte onde pudessem ser escutados os ecos dos grandes pensamentos.

    Sem embargo das negações dos dissidentes, pois Rui os teve, díscolos por temperamento,partidarismo, ou porque lhe não conhecessem a obra, (e cumpre dizer que não menos doque a injustiça assim também a prevenção irreverente se extremaram), ser-me-á lícitoescrever esta verdade: maior orador do que ele não possuiu o Brasil.

    As suas proporções, pelas pompas da eloqüência e elevação do pensamento, tornaramcerto que, maior do que o orador parlamentar só o orador acadêmico; maior do que o

    orador da tribuna judiciária, só o orador das candidaturas presidenciais; maior que o oradorde Haia, só o orador de Buenos Aires.À semelhança de Cícero, foi Rui tribuno, jurisconsulto e gramático; escritor e analista comoTácito; homem de estado e orador como Demóstenes.

    Eu não me animaria a inculcar-vos que o varão brasileiro, o seu estilo quase sobrenatural,se mostrara maior do que Tácito e, no Senado da República, a sua figura ultrapassasse ado príncipe dos oradores romanos, nem transcendesse os “ecos da palavra demostênica”.

    Mas, Senhores Acadêmicos, se as tradições de um passado tão distante, confrontadas

    com as opulências da cultura contemporânea, podem ensejar, sem despropósitos,comparações que nos honram, eu vos recordaria que a plasticidade da eloqüência do

    grande Rui se retratou em formas que, sublimando-lhe o verbo, o fizeram rival deDemóstenes, mais rico do que Tácito e, pela força da idéia, de ação mais penetrante naconsciência coletiva do que Cícero.

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    Não desertareis a observação de que o seu estilo teve a magnificência e concisão doorador grego, “que falava à razão de preferência às paixões, com gravidade, sem afetação,austero e meditativo”; possuiu a eloqüência serena da verdade, a doçura da harmonia, a

    beleza da simplicidade do estilo de Tácito; e revestiu-se das modalidades invectivas dascatilinárias, sem a exclusão do perluxo, à feição do de Cícero.

    Se se buscasse em Tácito o retrato que traçou da palavra de Cícero, oratória que se lheafigura edifício de arquitetura grosseira, de paredes sólidas e duráveis, mas sem brilhonem polimento, e tribuno que do seu jus verrinum e do eterno esse videatur, nos seusdiscursos, só de três em três frases é que dava lugar a um pensamento, sentiríeis que nãoaventurei apenas simples voto pessoal para engrandecer na hipérbole a figura formidáveldo civilismo. Todavia, não deixará de haver quem descubra na vida e obra do Cícerobrasileiro aquilo que admiravelmente salienta Boissier na obra e vida do acusador deCatilina: certa insaciável vaidade, certa mobilidade de impressões, certa facilidade adeixar-se prender e dominar pelos acontecimentos, e ainda aquela maravilhosa faculdadede fazer-se o espectador do que ele próprio referia e narrava.

    O copioso desenvolvimento que costumava dar às orações fruto era do seu sabervastíssimo, enriquecido da aptidão de levar a análise até aos excessos do meticuloso.

    Procurava o bem, o mal e o belo na alma das coisas e dos fatos para, louvando, ferindo oucantando, abraçar-se ao ideal, que ele dizia se não define, mas “se enxerga por clareirasque dão para o infinito: o amor abnegado; a fé cristã; o sacrifício pelos interessessuperiores da humanidade; a compreensão da vida no plano divino da virtude; tudo quealheia o homem da própria individualidade, e o eleva, o multiplica, o agiganta, por umacontemplação pura, uma resolução heróica, ou uma aspiração sublime”.O mesmo doutrinador que discursava durante horas seguidas, – duas, quatro e, às vezes,mais, em dias sucessivos, – possuía o condão da síntese capaz de resumir numa fraseuma doutrina, numa apóstrofe um julgamento, um programa numa sentença e numapalavra uma individualidade. Numa só imagem encerrava páginas de psicologia. Vede O

    estoiro da boiada; vede o Caranguejeiro; O perdigueiro e o Tatuaçu; vede o Chantecler dospotreiros; As aves palreiras e guinchantes; vede a Múmia de Sesóstris; A couve e o

    carvalho ...

    Nesses quadros, debuxos e epigramas, lançados e pintados através de uma burilada, comas farpas da ironia e estiletes cruéis, não se livrou aquela palavra de mergulhar no fel daspaixões para mostrar que, entre sublime e divina, não deixava de ser humana.

    Nem era de esperar que disso se apartasse um homem que viveu meio século a lutar esofrer, vencer e ser vencido, dizendo verdades e semeando idéias, com a vigilância do“piloto que mostra os escolhos”.Pouco menos de dois anos antes que se lhe apagasse a vida, a sua consciência elevara-

    se à nobreza destas palavras:

    Ainda hoje estou na persuasão de que, em geral, fui justo. Pelo menos, sempre trabalhei

    pelo ser. Mas, onde quer que, contra a vontade, me tenha sucedido a desgraça de pecarcontra as maiores de todas as leis, as leis da justiça, e da caridade bem entendidas,

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    perdoem-me os agravados, como Deus me perdoará! Não pequei de propósito: tereipecado por erro, ignorância, ocasião, falibilidade incurável dos juízos humanos. Devoconfessar, e confesso que, verdadeiro sempre quanto aos fatos..., nem sempre no apreciar

    dos indivíduos consegui acertar.

    Ainda, em colóquio, de suavíssima ressonância ática com os moços de S. Paulo, abrindo-lhes, num ato de fé, o livro da sua vida, reafirmou a sinceridade dos seus sentimentos:

    Deus me é testemunha de que tudo tenho perdoado... Assim me perdoem, também, os aquem tenho agravado, os com quem houver sido injusto, violento, intolerante, maligno oudescaridoso.

    Aí está o exemplo edificante de uma velhice excelsa, envolvida nas siderações da verdade,mas amadurecida no fragor das lutas, a mostrar à mocidade o caminho da mansuetude e

    do perdão.

    Nas vibrações da sua palavra – e assim na oratória de todos os grandes tribunos –esfusiava a ironia, a destilar-se em trocadilhos e paronomásias. Ironia fina e sutil, amarga epenetrante, mas respeitosa e polida. Nunca resvalou a insulto, ainda nos momentos em

    que, defrontando inimigos e detratores, sentia mister de responder a eles no tom explosivoem que Catulo, o satírico, revidara ao advogado que, em pleno debate, lhe inquirira“porque ele, quando discursava, ladrava tão alto”,2 ou ainda quando, ao calor das grandescausas, a palavra lhe saía, consoante o mostrara, “rechinando, esbraseando, chispandocomo o metal candente dos seios da fornalha”.

    Na do orador alvorejou em 1869 a alma do abolicionista. Aos vinte anos, realizou a sua

    primeira defesa do escravo contra o senhor. Em 1871 estreou-se na tribuna judiciária; em74, ainda na tribuna popular, em favor da eleição direta, assunto de que aos vinte e cinco

    anos já se preocupava. Em 76 é o conferencista a propugnar a liberdade religiosa; no anoseguinte, a sua eloqüência literária derrama-se sobre a memória de Alexandre Herculano.

    O orador parlamentar surge em 78, no Legislativo Baiano, em prol da liberdade comerciale, no ano imediato, no parlamento nacional, respondendo triunfalmente a Silveira Martins.3

    Sem a pretensão de com acerto distinguir, não me furto, todavia, ao impulso de umareferência, na qual se nos mostra o titão a escalar, em maravilhosa ascensão, os cimos atéaonde parece ser capaz de chegar o humano poder da eloqüência.

    Aí tendes, entre o Discurso de 79, em resposta a Silveira Martins, e a Oração de BuenosAires, por traços mais luminosos da trajetória do orador:– Discurso, no Teatro S. João, na Bahia, resposta a Manuel Vitorino;

    – Conferências abolicionistas, ali proferidas em 24 e 26 de maio de 1897;– Elogios de Castro Alves, Pombal, José Bonifácio e Osvaldo Cruz;

    – Discurso, no Senado, à porfia com o deputado Zama, modelo de réplica parlamentar;– Orações de paraninfo em Friburgo e São Paulo;

    – Discurso, no banquete do Jornal do Commercio;– Discurso a Machado de Assis;– Discurso no Instituto dos Advogados;

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    – Conferência, no Liceu de Artes e Ofícios;– Orações, no Supremo Tribunal, contra o bombardeio na Bahia e as de habeas corpusem favor do cônego Galrão, e do doutor Aurélio Viana;

    – Fala às andorinhas de Campinas;– Conferências da cruzada civilista;

    – Orações, na campanha eleitoral da Bahia.

    Os discursos parlamentares, de que servem de modelo os que constituem o livro Finançase política, são talvez hoje inumeráveis.Sentindo com verdade a eloqüência de que fora encarnação, ninguém melhor do que elepoderia traduzir o que ela é:

    É o privilégio divino da palavra na sua expressão mais fina, mais natural, mais bela. É aevidência alada, a inspiração resplandecente, a convicção eletrizada, a verdade emerupção, em cachoeira ou em oceano, com as transparências da onda, as surpresas do

    vento, os reflexos do céu, os descortinos do horizonte.

    Neste trecho retrata-se: esta eloqüência é o orador, orador que, pela irradiante influição

    artística, e força oracular da linguagem, era, de plano, e à semelhança de Cícero, no dizerde Fernando de Azevedo, primoroso escritor, um vulto “que tinha as grandes dimensõespara o Capitólio”.

    * * *

    As qualidades que lhe enriqueciam a linguagem falada, por maneira tal se ajustam às da

    língua escrita, que, em se pintando assim na eloqüência, ressurge, ao mesmo tempo e nasmesmas linhas, perfeito e completo, o escritor, com aquele privilégio divino da palavra noestilista hierático, inimitável e soberbo.

    A sua linguagem é gama surpreendente dos segredos e riquezas idiomáticas, mimo deelocução culta, polida, abundante e clara; exemplar na correção, copiosíssima no

    vocabulário; fluente e harmoniosa, cheia de aticismo e plasticidade estética.Na gradação da luz, que ora é claridade branda e suave; ora, clarão, ou fusil derelâmpago, ofuscante e rápido; ora esplendor, que é luz em plenitude, o seu estilo dotadodestas tonalidades radiantes, reflete-lhe as tempestades da vida, o ímpeto das paixões, asquimeras dos sonhos; eleva-se às regiões ideais do belo, envolve-se nas cintilações,brilha, auriluz, e extravasa-se na expressão da sua facúndia arrebatadora.

    Tomai, Senhores, as proporções inauditas deste homem, nas múltiplas formas em que selhe subdividiu a atividade.

    Custa a crer que atrás do jornalista que tão largo tempo passou a doutrinar; do batalhadorpolítico de tão flagelante e eficiente ação; do parlamentar envolvido em pugnas

    incessantes; do advogado e jurisconsulto de cujas luzes se não prescindia nos litígiosimportantes; custa a crer que, atrás de tantas personificações, ainda houvesse lugar e

    tempo para o escritor, que se não improvisa, mas se faz à custa de vigílias estafantes,áridas investigações e pesados estudos.

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    E se vos detiverdes no admirável do fato, tereis ainda por detrás do prosador o poligloto eo filólogo, precedidos do gramático.

    E não vos surpreenda que lhe chame nome tão suspeito, como, entre nós, é este último.

    Prazer ou malícia é fulminar censuras, em fórmulas de sucinta proscrição, a toda a classe

    dos estudiosos, em regra modestos e simples, que se consagram ao estudo dasistematização dos fatos lingüísticos.Aos gramáticos costumam reconhecer o papel de guardas impertinentes das complicaçõesdo idioma, ainda àqueles que lhe têm dado o cabedal dos seus conhecimentos. É opiniãopreponderante que são eles quem criam e inventam as dificuldades.

    Ora, direis que isso parece um paradoxo de insciência, ou, pelo menos, mau sintoma deobstinação contra o aprendizado essencial da língua, que nenhuma existe sem ter os seusfenômenos e fatos estabelecidos e regulados.

    Certo é, porém, que os que nutrem horror aos gramáticos são os que justamente nãoamam a gramática e, na persuasão de que logram passar sem ela, tanto se lhes dá oescreverem segundo os cânones sintáticos, como o escreverem com desatenções,

    indiferentes aos solecismos, às impurezas vocabulares e de ouvidos moucos às formasexatas que rutilam a beleza das idéias.Afirma-se, e é verdade, que a gramática não cria a língua, não tece a linguagem; nem fazo estilo. A língua preexistiu à gramática. Mas, no evolver dos acontecimentos, coube-lhe opapel disciplinador e o ser fonte imprescindível onde primeiro vamos aprender como deveser praticado o idioma, consoante ao gênio tradicional e à legitimidade da construção, quenão deve ficar no livre alvedrio dos fantasistas descuidosos.

    Também é verdade que os agrupamentos humanos preexistiram à legislação escrita.

    Onde, porém, encontrareis grupos de homens social e politicamente organizados, vivendosem submissão às leis e obediência aos códigos?

    Num país, à semelhança do Brasil, onde a cultura filológica se patenteia assazdesenvolvida, não há cabimento para o desapreço iníquo em que são tidos aqueles que,se o quiserem, podem rir-se dos escritores que menosprezam a sua língua.

    Infelizmente não sou gramático, nem filólogo sou, e, talvez com razão, e por castigo de o

    não ser, se me inclua no rol dos últimos. Como quer que seja, sinto o amor do idioma e,por isso, não me é dado deixar de ter para com os seus mestres, os seus paladinos, osseus gramáticos, acatamento e veneração.Quando vejo que em minha terra é que à língua portuguesa se deparou o maior dos seus

    escritores, aquele que lhe simboliza o gênio, avulta a minha admiração pelo brasileiro que, já sendo em tudo o maior, chegou ao ponto de condensar um idioma, comum a dois povos

    tão distanciados pelo espaço quão amigos pelos laços étnicos e pelo coração.

    De mim afasto a faculdade de um juízo pessoal, e entrego a missão de sentenciar a quemde direito, a um dos gramáticos primazes, educador emérito e prosador de escol, oprofessor Carneiro:

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    Não nos lembra escritor algum, excetuados o padre Antônio Vieira e o fecundo AntônioFeliciano de Castilho, em alguns de seus passos, que escreva e fale com a propriedadecom que se exprime este exímio escritor.

    Não somente em virtude deste já excepcional predicado, aí acentuado, ascendeu Rui àculminância a que chegou nas letras portuguesas, de aquém e além-mar.

    Na exuberância do vocabulário, e no opulentar o léxico com a faculdade inventiva devozes, dificilmente se lhe apontará outro igual. No farto da sinonímia, luxuriante e donosa,é prosador sem rival. Lede a Esfola da Calúnia, o panegírico de Osvaldo Cruz e os seuseditoriais de imprensa, por amostras.As expressões jorram-lhe sem artifício e têm o cunho autenticamente clássico. Se, àsvezes, as repassa o sabor arcaico, dir-se-á que antes é para as impregnar “desse aromade antiguidade, une certaine fleur d’antiquité, que do hábil emprego das boas locuçõesantigas se desprende”, segundo ele declarava.Para Rui o arcaísmo “é um dos segredos da graça e força nos escritores de grande raça,nos estilistas de escola, nos renovadores do gosto literário, nos criadores de obras d’arte

    duradoiras”.Não empregava a palavra antiga pelo simples desejo de ostentar estilo clássico, que, no

    caso, rebuscado e artificioso, não sairia de pena feita e refeita na segurança davernaculidade.

    “Não convertamos em espantalho o nome de arcaísmo”, aconselhava ele. “Todas asgerações assistem ao reabrir de palavra antiquadas, que outra vez, ao influxo de novostempos, rebentam de seu, espontâneas e belas, sob a pena dos escritores do bom gosto.”

    Aliás o emprego do arcaísmo foi de todos os tempos e entre bons escritores. Já oscontemporâneos de Salústio lhe exprobravam o hábito sistemático e abusivo do giro dafrase antiga e de locuções inusitadas em Roma. Cícero não lhe perdoava a ele a maneirade Lucrécio e a mania de imitar a Catão, o antigo.Em França de tanto arcaísmo usam ilustres escritores que acabam tendo a linguagem

    “parasitária, sem graça, sem sabor e sem beleza”.

    A exemplo de Vieira, teve Rui a predileção das antíteses para engrandecer a frase e o

    prazer das repetições para realçar o estilo. É notável, pela superabundância, a adjetivaçãodo delicioso autor das Cartas de Inglaterra. Onde é que Boileau foi descobrir que bastaenunciar simplesmente as coisas para as fazer admirar?É possível que assim seja no idioma francês, língua de índole e construção diversas doportuguês, onde, pelo contrário, o adjetivo exerce função importante, qual a de vigorar afrase, em não sendo inexpressivo, mal ajustado, trivial e impróprio.

    Eliminai, por exemplo, da descrição profundamente comovedora do suplício de Dreyfus, nomomento em que se passa a cena da degradação militar, aqueles adjetivos, que ali

    palpitam e tanto avultam a cruel solenidade, e sentireis que o artista soube daquelesepítetos fazer notas vibrantes na harmonia descritiva do episódio trágico, que até nós

    chegaria descorado, se ali eles não estivessem a pôr em relevo, no grandioso horrível da

    cerimônia, o horrível pomposo do sofrimentoMas na língua francesa, como na portuguesa, o adjetivo imprime ao estilo graça,

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    exuberância e força. Aí está Chateaubriand, cuja pena é modelar, e que foi um dos reis doadjetivo, como lhe chamaram; tendes a Lamartine, Victor Hugo e Renan para confirmaremesta observação de um crítico francês: “Os adjetivos são as mais ricas e numerosas

    palavras da nossa língua. Oferecem recursos infinitos. Representam valores e dão vida àsdemais palavras.”

    Possui mais Rui Barbosa inigualável poder descritivo, manifestado eloqüentemente naassociação das vozes e nos segredos do uso verbal.Reatentai no vigor desta descrição:

    Calmaria ainda não vi igual. Não sopra o vento; não gemem as vagas; não murmuram osrios; não cantam as fontes; não ramalham as árvores; não ondeiam as messes; nãoacenam as flores; não bolem as folhas; não trinam as aves; não zumbem os insetos; nãoavoejam as borboletas; não se move o ar; a luz não oscila; não se mexem as sombras; avela não se enfuna; o lago não se increspa; o homem não respira: como que não vive a

    natureza.

    Observou alguém que foi Bossuet quem fez ressaltar, na índole do estilo, a importância

    dos verbos, máxime dos verbos criados, “que são os que surpreendem pela novidade, pelaimagem, pelo sentido e aplicação imprevista”.

    Dentro das mais rigorosas normas da derivação vernácula dotou Rui o dicionário brasileironão só de muitos verbos expressivos e enérgicos, senão ainda de outros inumeráveisvocábulos significativos, formosíssimos e irrecusáveis.4

    Pode dizer-se que o estilista matinou já de posse dos singulares cabedais que lheadornam o escrever.Se se pretendesse, entretanto, assinalar-lhe a fase em que atingiu mais vigor, correção e

    excelência, no grau de quase perfeição que é o do escritor sem erros, – não se iludiriaquem olhasse as Cartas de Inglaterra como a primeira na série das suas mais acabadas

    produções. E se não estivesse longe de mim a intenção de fatigar-vos, fácil seria ordenaroutras e outras escritas com os primores da língua, desde os pareceres acerca do ensinoaté os volumes da Queda do Império.

    Dir-vos-ei contudo que, se entre as suas produções esparsas e menores, merece

    distinguida, por modelo de lídima vernaculidade, a Oração aos Moços, na Faculdade deSão Paulo, entre os seus livros é a Réplica às Defesas da Redação do Projeto de CódigoCivil aquele em que o prosador está sobranceiro na plenitude dos seus dons e méritosliterários.

    Gramática das gramáticas, porque vale por todas, a Réplica é tesouro de riquezasidiomáticas, que as obras congenêres mais consagradas na língua portuguesa não

    igualam.É livro-evangelho, na filologia; livro-padrão, na linguagem; livro de oiro, no estilo, emonumento dos monumentos nas letras brasileiras.

    * * *

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    Minhas Senhoras e Senhores:O panegírico do Sr. Conselheiro Rui Barbosa, à altura do seu verdadeiro e extraordináriomerecimento, excede os limites desta solenidade.

    Aí tendes, Senhores Acadêmicos, o que dentro neles pude condensar.

    Quisestes que eu fosse o ocupante da sua Cadeira e aqui estou para ter a honra insignede, recebido pela voz amiga, eloqüente e magistral do eminente Sr. Aloísio de Castro, nelatomar assento e ficar no vosso luminoso convívio.Serei o último dentre vós, não importa; serei o último, mas com a sinceridade do crenteque se posta diante do seu ídolo.

    E ídolo foi ele, sem rivais, de todos os homens de letras que, admirando-lhe a correção, apureza, a resplandescência e contextura deslumbrante da frase, as excelências dalinguagem e os lavores requintados do estilo, o proclamaram o artista supremo do idiomapátrio.

    Objeto ainda do mais entranhado afeto, também o foi do sentimento nacional, que chegoua extremá-lo do resto dos mortais, numa apoteose, da qual já, em vida, o ia arrebatando a

    própria imortalidade.E ele subiu, subiu e deixou-nos, para elevar-se até àquela estátua mitológica, banhada na

    transparência das lágrimas da Aurora.

    Mas, assim como, nas primeiras alvas do despontar do dia, derrama a Aurora o orvalho,para nos raios do sol nascente banhar a estátua de seu filho Memnón, assim a PátriaBrasileira, inconfortada e triste, não deixará nunca de envolver nas lágrimas da sua dor onome de Rui, que é o seu orgulho e a sua glória.

    E para que dele e não de mim vos fique a impressão última, que suavize a monotonia

    deste discurso, aspirai, por momentos, o aroma que, em volutas de sublime louvor, se lhedesprende da pena, ao cinzelar a personalidade de Carlyle, dando-nos, talhada em alto

    relevo, a própria índole do seu gênio e obra, oraculares e maravilhosamente grandes:

    A sua inflexível sinceridade, o íngreme dos seus contrastes, o bravio das imagens que lhepovoam o estilo, a luta contínua da sua originalidade com os preconceitos e convençõessociais, o seu entusiasmo pelas expressões heróicas da individualidade humana, o fragordas suas apóstrofes, as mutações indefiníveis do seu humorismo, melancólico e ridente,austero e escarninho, eloqüente e brutal, a própria monotonia de certas correntes do seupensamento iterativas e periódicas como certos ventos em certos quadrantes do céu, dãoa lembrar um panorama de penhascos escalvados à borda das águas azuis, com o cristaldas ondas franjando-se em espuma branca, a marulhada rebramindo contra ospromontórios silenciosos, o vôo solitário das aves marinhas, e por cima, nas tréguas da

    procela, quando as faíscas não esfusiam pelas arestas atrevidas, a eterna calma dofirmamento, a força, o conflito, a pureza, a eloqüência, a imortalidade.

    TEXTOS ESCOLHIDOS

     A DEFESA DA LÍNGUA NACIONAL

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      [...]

    Entre os elementos orgânicos de uma nação, é o idioma a revelação mais eloquente doespírito de nacionalidade e, do mesmo passo, o vínculo mais forte da união nacional.

      [...]

    O dever de conservar a língua tanto mais avulta quanto mais cresce o número dos que a

    corrompem, de parelhas dadas com inumeráveis elementos perturbadores e dissolventes,que fazem periclitar a homogeneidade idiomática. Tudo lhe impõe conservação. Mas,como articular, em condições de exequibilidade, a defesa de uma língua, que tudo trabalhapara vasá-la ‘nos resíduos impuros de um idioma de aluvião”, ao revés de “espelhá-lanessa língua decantada e transparente, que a tradição filtrou no curso dos tempos”? Comose deve traduzir o nosso empenho para a tornar mais nacional, mais estimada, mais pura emais vernácula?

    A língua portuguesa, sabei-lo, é patrimônio comum de dois povos. Portugueses no-laherdaram, e portugueses foram os que no-la ensinaram. Ao cabo, porém, de um viverquatro vezes secular, no transcurso do qual, com superioridade inegável, nos libertamoseconômica e politicamente, logrando em seguida a emancipação na literatura, não fora deesperar, hoje, que a nossa cultura, zelo, orgulho, nos não desse a certeza de que já somosum povo, que possui, como os demais, a sua língua, e, como os demais, sabe exigir quetodos lha reconheçam como própria.

    E essa condição é, senhores, o primeiro passo na defesa do idioma, porque com ela é quemadrugamos na jornada larga que temos que fazer, é ela que nos imporá o sermos tãozelosos dele quanto o são dele ciosos outros que também o falam. Sim. Se há quase umséculo logramos desempeçar as asas das mãos que as detinham, razão hoje não há para

    que consideremos, a nós mesmos, empecilhados no em que nos cumpre serabsolutamente autônomos. Cada povo com a sua língua. A velha e amiga nação foi, é

    certo, a nossa Metrópole. Ela, porém, lá, e nós aqui. Hoje, porque ela aqui está, e nósdaqui não saímos, não se segue que ela continue a ser Metrópole, e nós sejamos os

    primeiros em levar mão dessa autonomia, para que não fique de pé a presunção dos quequerem reduzir-nos a pouco, como já o quis fazer no seu tempo esse Herculano, a quem

    tanto admiramos, quando nos brindou com estas palavras, que refletem o pensamento dosque não conformam com as opulências deste país, da sua inteligência e da sua raça: “Anossa melhor colônia é o Brasil, depois que deixou de ser colônia nossa.” Ouvi a LatinoCoelho: “Só na América fizemos exceção à desídia hereditária com que semeamos semcolher. Só ali colonizamos na própria acepção desta palavra.”

    Nessa caçoada jovial entretinham-se eles, que, afinal, parece não queriam quechegássemos nós onde já estamos. “A todos e a cada um se podia perguntar, comoàquela dama da aula de Luís XIV, de calçado alto, de riçado alteroso, de mangas tufadas,de ancas e ilhargas postiças ‘Tudo isso sois vós, ou é vós tudo isso?’” (Cast., Liv. Clas.)

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    Valha-nos, senhores, a verdade de que o anfitrião tem, e há de ter sempre, direitosinauferíveis. Se na Índia, na China, no Japão e em África, o mistagogo das novascivilizações não soube efetuar o processo da verdadeira colonização, e somente a nós, na

    própria acepção desta palavra, soube fazê-lo infestadamente, como o entende o autor da“Oração da Coroa”, é o caso de preferirmos ser China ou África, contanto que fiquemos

    com a liberdade de nos não considerarmos a nós mesmos colônia de ninguém.

    Repito-vos, senhores, com convicção tresdobrada: a primeira defesa do idioma está no

    reconhecimento obfirmado desta verdade: cada povo com a sua língua.

      ***

    E cada língua, escreve o príncipe do idioma, cada língua tem no seu gênio uma força deespontaneidade e seleção, um critério de acerto e um tipo de beleza, que se exercem, ouse enunciam, pela sensibilidade e o instinto dos que falam. É essa intuição davernaculidade, esse como que sexto sentido, o da linguagem, que parece ter por órgão oouvido, e do ouvido recebe o nome.

    Com o ter a língua no Brasil a sua intuição de vernaculidade, a sua espontaneidade nativa,o seu critério, a sua moldagem, o seu torneio, cunho especial da frase, e fisionomiaparticular, porfiam glotologistas lusitanos em descobrir em tudo isso, que é o gênio dela, aexistência de um dialeto brasileiro, “surrão amplo, como lhe chama Rui, onde cabem àlarga, desde que o inventaram para sossego dos que não sabem a sua língua, todas as

    escórias da preguiça, da ignorância e do mau gosto”.

    Não falamos nós um simples dialeto, como entendem Leite de Vasconcelos, Júlio Moreira,Adolfo Coelho, Mendes dos Remédios, Gonçalves Viana e Ribeiro de Vasconcelos, -senão a mesmíssima língua em que escreveram Camões, Sousa, Bernardes, Herculano,

    Vieira e Castilho. O dialeto, como o querem aqueles sabedores dos fatos glóticos, seriauma forma de “relaxação e de desprezo da gramática e do gosto”, seria forma de

    inelegância, obscuridade e deturpação do sabor clássico; seria, em suma, forma de línguainculta, dosermo rusticus, dosermo castrensis.

    Brasileiros e portugueses, de parte a parte, colocam o problema, que não devera sair do

    terreno da glotologia, no ponto de vista regionalista, ou melhor, patriótico.

    Não pretendem os segundos que falemos língua literária e culta, senão língua, cujoscaracteres morfológicos, semânticos, sintáticos e lexicológicos, a põem dependente e em

    plano inferior à deles. Entre os mais convencidos de que falamos um dialeto está Leite deVasconcelos, para quem – “a língua nacional do Brasil é o português, o qual levado para

    meio mui diverso do da sua origem, tem sofrido muitas modificações. Os escritoresbrasileiros muito têm discutido, no ponto de vista patriótico, se o português no Brasil é ou

    não dialeto. Se chamo dialeto, por exemplo, ao português de Trás-os-Montes, com maisforte razão ao português do Brasil, ou brasileiro, devo dar este nome”. Aqui Leite de

    Vasconcelos foi muito além do ponto de vista dos escritores brasileiros; foi ao ponto devista do exagero depreciativo, e de jeito tal que, passando a indicar os caracteres

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    principais do que ele chama dialeto brasileiro, faz observações acerca da fonologia, damorfologia, da sintaxe e do léxico, que, contrastando com a sua indiscutida autoridade,muito longe ficam de poder aspirar a qualquer conclusão.

    Fácil, porém, será contrapor às palavras do emérito dialetologista as do nosso sábio

    filólogo João Ribeiro, que, depois de tratar o assunto, com maior e melhordesenvolvimento, conclui por afirmar que as modificações da língua no Brasil nuncaconstituíram verdadeiro dialeto. Vai mais longe Alfredo Gomes, sabedor igualmente

    acatado: “Não há verdadeiramente dialeto brasileiro... Há, pelo contrário, tendênciaassinalada, da parte dos que são instruídos, para uniformizar sintaticamente as duas

    línguas... A tentativa de aproximação fraseológica, cada vez maior, não sofre peias opostaspor premeditado ódio entre as duas nações.”

    Não há, nem pode haver entre elas, no tocante à língua, nenhuma supremacia. Bifurcado,há quatrocentos anos, aqui e lá, o português prossegue evolução divergente sob o influxo

    de fatores mesológicos. Esses, não operam, para menos, diferenciação alguma que dê àex-Metrópole o ostentar-se na elevação de um falar tradicional e culto, enquanto nós

    gaguejamos um falar regional e corrupto, podendo nós apenas contentar-nos com averdade que proclama Littré - o dialeto também pode comportar certa cultura literária.

    A primeira condição da existência do dialeto é uma língua mãe, da qual seja aquele umadiferenciação caracterizada; e a segunda, igualmente necessária à existência dele, é que

    essa diferenciação se opere em região do domínio da língua comum. De modo que oconceito do dialeto outro não é que o conjunto das alterações que caracteriza a linguagem

    de uma província, colônia ou outra qualquer região, em relação à língua da Metrópole.

    As modificações da língua brasileira não têm sido nem são de molde que caracterizem

    uma dialetação, consoante aquele conceito.

    O nosso vocabulário é o mesmo, “mais opulento com o elemento tupi-guarani, e mais

    alguns termos africanos”. Diferenças sintáticas não existem e as que possam sersalientadas tão pequenas se nos antolham, que não são suficientes para particularizar

    uma linguagem. São frases isoladas, de construção nossa, tais como: vi ele, isto é paramim ver, estava na janela, resido à rua, e outras, que não chegam a assinalar uma

    diferenciação diversa da construção sintática lusitana. Poderíamos salientar aqueleemprego do pronome sujeito pelo objeto, no vi ele, e a maneira muito nossa de colocar nafrase as variações pronominais. Mas nem esses mesmos fatos linguísticos sãoexclusivamente nossos. Todos os clássicos, como nós, ora usaram a próclise em lugar daênclise, ora essa em lugar daquela. É que o problema do sinclitismo pronominal, lá comoaqui, é também uma questão de eufonia.

    Se meras diferenças da fonética pudessem, por si sós, constituir uma dialetação, nemassim - posto seja na prosódia onde o falar brasileiro mais se distingue do falar português -nem assim teríamos nós um dialeto, porque tais diferenças apenas se limitam, por mera

    influência climatológica e desatenção à lei do menor esforço, a fazermos soar as vogaiscom maior vigor e em acentuarmos sílabas subordinadas que em geral o português omite.

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    Ainda que no período colonial estivéssemos sob o domínio da língua da Metrópole,contesto, senhores, que nele tivéssemos chegado a uma dialetação.

    No período áureo do Quinhentismo, por intermédio dos donatários e colonos que nosvieram povoar, recebemos a língua de Camões, que aqui sob a influência de novos fatores

    mesológicos se transformou numa “vergôntea vigorosa e forte”; e “nesta evoluçãodivergente, escreve Carlos Pereira, o falar brasileiro e o lusitano apresentam-se comocodialetos do português quinhentista”. Sob este aspecto sim, a língua brasileira é um

    dialeto, como dialeto é a língua de Portugal. No em que, porém, a querem considerar osglotólogos de além-mar - dialeto não é essa língua em que escreveram Gonçalves Dias,

    Francisco Lisboa e Machado de Assis, e na qual foi vazada essaRéplica, que é modeloimortal “daquela formosa maneira de escrever que deleitava os nossos maiores”.

    Quantos escritores, entre os que mais souberam ilustrar a língua oriunda do Lácio, deCamões a Filinto, de Filinto a Latino, atingiram essa culminância e assim se revelaram:

    “rico, opulento, substancioso nos pensamentos, variado e abundante no vocabulário,

    delicado no jeito e torneio da frase, sempre tersa e castigada, perspícuo, luminoso eelegante no falar,ore rotundo, sempre elevado, sempre grande, sempre sublime, sempre

    igual a si mesmo, se, por vezes, se não excede? Não nos lembra escritor algum,excetuados oPadre Antônio Vieira, e o fecundoAntônio Feliciano de Castilho, em

    alguns de seus passos, di-lo o nosso gloriosoCarneiro Ribeiro, que escreva e fale com a

    propriedade com que se exprime este escritor;... que encontra em si mesmo os modelos

    de sua linguagem, que admiravelmente se adapta ao pensamento, o debuxa e traduz,passando a palavra pelo cadinho mágico de seu espírito, onde se refina e aprimora e

    donde distila em gotas de cristal e fios de oiro.”

    Vede bem queRui é o maior escritor que a língua tem dado; e aRéplica , um dos maisgrandiosos monumentos literários que já saíram da pena de escritor de língua portuguesa.

    E se assim é, encostemos, senhores, esse livro ao coração dos nossos moços; levemosessa obra ao conhecimento dos mestres da juventude, dos nossos professores dehumanidades e de todos os nossos intelectuais; espalhemo-la pelo país inteiro, porque elavalerá pela melhor das defesas, e por uma falange de hinos que hão de perpetuar a línguano Brasil.

    Na pena de Rui, a língua não é hóstia pacifica, nos sacrifícios judaicos, para deleite dahorda de corruptores e bárbaros.

      ***

    Não pequeno será o desserviço trazido à língua, se a nossa Academia de Letras persistirno intento de levar ao cabo um dicionário de brasileirismos, o qual de modo algum deve

    preceder ao dicionário de genuíno vocabulário. Brasileirismo, como o está entendendoaquele areópago de humanistas, e segundo tem tomado a si demonstrá-lo o provectoSr.

    Solidônio Leite, é sinônimo de corruptela, e toda corruptela vocabular nunca deixou de

    ser escalracho da linguagem. Não continue a egrégia corporação a gastar o tempo com

    essas cogitações. O que lhe cumpre fazer é organizar o nosso dicionário, haja o que

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    houver, custe o que custar, porque é esse dos seus fins o que mais lhe justifica e abona aexistência.

    Esse, sim, o mais assinalado serviço que prestará à nossa cultura literária, de quedepende o aperfeiçoamento da língua.

    Já lá vão mais de três séculos que a língua francesa se estorcia em piores condições doque a nossa. Incumbida, porém, que foi, aAcademia Francesa de elaborar o dicionário

    normal, que o governo adotou, para logo, como faz sentirGrivet, sob o influxo dessa

    organização definitiva, a que aliás aderiram patrioticamente as mais altas inteligências,veio o idioma daquela nação a assumir a imponente preponderância que exerceu e aindaexerce no mundo das ideias. Disto se faz manifesto que a almejada fixação da maternalíngua só se completará, como a da francesa e a da castelhana se completaram, quandotivermos uma academia que nos dote com um dicionário.

    E por que não o fará a nossa, se o caminho lhe está traçado?

    Tendo ela, como tem, no seu seio, entre autoridades várias, notáveis profissionais daFilologia, e todos dentro da ordem -João Ribeiro, Laet, Alberto Faria e Silva Ramos -,

    bastaria que estes se constituíssem em comissão central da grande obra, eempreendessem a revisão e fusão dos dicionários desde o de Morais até o de RamizGalvão, para o que à própria competência deveriam juntar a colaboração dos mestres, quenenhum lha negaria. E destarte, quando obra original e completa não realizasse, dar-nos-ia, ao cabo de algum tempo, uma edição consideravelmente melhorada e acrescida do

    melhor dos nossos dicionários, na qual se procuraria pôr termo à anarquia ortográfica, como simplificar e uniformizar a escrita; se incluiriam os inumeráveis vocábulos que ali não

    figuram, procurando-se de todos dar a legítima etimologia; esclarecer-se-iam pontosduvidosos da prosódia, da sintaxe, da lexicologia, à luz dos textos dos grandes escritores.

    Ser-lhe-ia ainda dado, se o entendesse, ouvir a sua coirmã de Lisboa.

    Será porventura irrealizável esse trabalho? Não. Por que foi possível a Morais, no retiro

    solitário da Moribeca, em Pernambuco, elaborar um dicionário ao alvorecer do séculopassado, e não pode hoje a Academia de Letras Brasileira, num centro, como este, onde

    nada lhe falta e tudo lhe sobra, empenhar-se na feitura desse livro?

    Acerca do nosso inolvidável lexicógrafo, disfarçamos uma injustiça com que se lhe diminui

    o mérito.

    O douto Herculano não via com olhos de simpatia aquele grande compatriota nosso. Apropósito da palavra brial, a que ele deu a significação de manto dos cavaleiros, disse oemérito historiador, em nota das suasLendas e narrativas: ‘É um dos ba