FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ UNIVERSIDADE DE FORTALEZA – UNIFOR Vice-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação - VRPPG Centro de Ciências Humanas - CCH Mestrado em Psicologia Lana Mara Andrade Nóbrega Literatura e Psicologia Ambiental: uma análise do livro Memorial de Maria Moura a partir da relação pessoa-ambiente. Fortaleza 2009
129
Embed
Lana Mara Andrade Nóbrega Literatura e Psicologia ...livros01.livrosgratis.com.br/cp121876.pdf · Lana Mara Andrade Nóbrega Literatura e Psicologia Ambiental: uma análise do ...
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ UNIVERSIDADE DE FORTALEZA – UNIFOR
Vice-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação - VRPPG Centro de Ciências Humanas - CCH
Mestrado em Psicologia
Lana Mara Andrade Nóbrega
Literatura e Psicologia Ambiental: uma análise do livro Memorial de Maria Moura a partir da relação
pessoa-ambiente.
Fortaleza 2009
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
Lana Mara Andrade Nóbrega
Literatura e Psicologia Ambiental: uma análise do livro Memorial de Maria Moura a partir da relação pessoa-ambiente.
Dissertação apresentada ao curso de Mestrado em Psicologia do Centro de Ciências Humanas da Universidade de Fortaleza – UNIFOR, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Psicologia, na linha de Pesquisa Ambiente, Trabalho e Cultura nas Organizações Sociais, sob a orientação da Profa. Dra. Sylvia Cavalcante.
Fortaleza 2009
3
______________________________________________________________________ N754l Nóbrega, Lana Mara Andrade. Literatura e psicologia ambiental : uma análise do livro memorial de Maria Moura a partir da relação pessoa-ambiente / Lana Mara Andrade Nóbrega. - 2009. 124 f. Cópia de computador. Dissertação (mestrado) – Universidade de Fortaleza, 2009. “Orientação : Profa. Dra. Sylvia Cavalcante.”
1. Psicologia ambiental. 2. Psicologia - análise. I. Título. CDU 159.9:504 ______________________________________________________________________
4
Universidade de Fortaleza Mestrado em Psicologia Ambiente, Trabalho e Cultura nas Organizações Sociais
Dissertação intitulada “Literatura e Psicologia Ambiental: uma análise do livro Memorial de Maria Moura a partir da relação pessoa-ambiente” de autoria da mestranda Lana Mara Andrade Nóbrega, submetida à banca examinadora constituída pelos seguintes professores: _________________________________________________________________ Profa. Dra. SYLVIA CAVALCANTE. - Orientadora (Universidade de Fortaleza - UNIFOR) ___________________________________________________________________ Prof. Dr. JOSÉ PINHEIRO (Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN) ___________________________________________________________________ Profa. Dra. LEÔNIA TEIXEIRA (Universidade de Fortaleza - UNIFOR) ___________________________________________________________________ Profa. Dra. VIRGÍNIA MOREIRA (Universidade de Fortaleza - UNIFOR) _____________________________________________________________________ Prof. Dr. HENRIQUE FIGUEIREDO CARNEIRO (Coordenador do Curso de Mestrado em Psicologia – UNIFOR) Fortaleza, ____ de ___________ de 2009 Av. Washington Soares, 1321, Edson Queiroz- Fortaleza, CE – 60.811-905 – Brasil - tel: 55 (0**85) 3477-3000
5
Na disciplina de Estética, ainda na graduação de Jornalismo, o Prof. Dr. Márcio Ascerald pediu um dia que nós, seus alunos, trouxéssemos para a aula algo que fosse para nós uma representação da beleza. Eu levei uma foto dos meus pais. Agora, já no mestrado em Psicologia, é mais uma vez a imagem deles que me vem à mente quando penso em beleza. Dedico este estudo a essa beleza que eles despertam em meus olhos. A meus pais: esses dois seres de tantas palavras, de tantos silêncios e de tantos momentos. A esses dois seres que são para mim, lugar. Pausa. Referência. Origem. Lar. A eles, que têm que lidar sempre com o que eu sou e com o que eu deixo de ser. Que amam tão generosamente que sonham para mim sonhos que sequer são meus. Que se entregam a tal ponto que sequer sabem direito onde eles terminam e onde eu começo. Que querem tanto cuidar que teimam em fazer de meus espaços, seus espaços. A meus pais: por toda a graciosidade e encantadora confusão que seu amor gigante me traz. A eles o meu amor mais fiel e a minha gratidão por representarem tudo o que representam.
6
Agradecimentos:
Agradeço a Deus, a essa Força maior, a essa Energia que nos guia e acompanha, que
rege nossos espaços e ser. Para mim, se estamos longe dessa energia, é como se
estivéssemos em um rio lutando com as águas com o nosso próprio corpo. Estamos ali,
nos debatendo, soltos, exaustos, tentando sobreviver à violência das águas. Molhados,
engelhados e com frio. Mas quando estamos em sintonia com essa energia maior, é
como se estivéssemos nesse rio dentro de uma canoa sólida. Ainda somos nós ali, na
água. Mas a canoa nos protege. É nela que a força das águas bate. Dessa canoa,
podemos guiar melhor nosso percurso no rio, escolher nossos caminhos sem a falta de
sobriedade da exaustão, do desespero. A canoa nos equilibra, se torna um escudo entre
nosso corpo e o mundo (a água). Ao mesmo tempo, de dentro da canoa, notamos a
fragilidade do nosso corpo. O que nos faz entender muito sobre a vida e a necessidade
de alimentar o espírito. De que o que deve ser enfeitado é nossa alma, e não nosso
corpo. A minha gratidão, então, a essa ‘canoa’, que me faz me sentir acompanhada e
protegida sempre.
Agradeço, mais uma vez, aos meus pais. Adalberto e Socorro. Por sua preocupação
ininterrupta, por seu amor imensurável, por sua dedicação constante, por seu colo
sempre.
Agradeço aos meus irmãos, Nóbrega e Francisco, por torcerem sempre por mim, por
serem companheiros e por acreditarem em mim sempre. Por me incentivarem e por
terem paciência com o mau humor matinal de sua única irmã.
Agradeço à minha avó materna Espedita Moreira (in memorian). A ela que continua
sempre tão presente em mim. Que é ainda lugar e que enfeita ainda a minha vida com o
amor imenso que me deu durante os dezesseis anos que a tive a me mimar.
Agradeço à minha avó torta, Marta Agildes (in memorian), pelas histórias contadas com
exageros, entonações e suspenses na varadinha. Essas histórias ainda continuam a me
embalar.
7
Agradeço à minha avó paterna, Adalice Gomes Nóbrega, por sua doçura, orações,
torcida e veia artística.
Agradeço à minha orientadora, a Profa. Dra. Sylvia Cavalcante: por ter sido apoio e
incentivo sempre. Por ter acreditado no meu tema antes que eu mesma tivesse a certeza
de estudá-lo. Por ter ultrapassado as fronteiras acadêmicas e se tornado uma voz e
presença que ilumina a minha vida e escolhas. Obrigada por todas as orientações, no
sentido mais amplo do termo, por essa caminhada de dois anos ter sido feita sempre
com o seu apoio e entendimento. Obrigada, ainda, por eu ter a certeza de seus conselhos
e presença no tempo além-mestrado.
Agradeço aos professores que compõem minha banca: Prof. Dr. José Pinheiro, por
tanta acessibilidade e incentivo. Por ter quebrado a distância hierárquica que às vezes se
faz entre docentes e discentes, por ter me dito palavras que continuarão sempre comigo
e por ter, assim, me feito crer que eu tinha algo relevante a falar. Profa. Dra. Leônia
Teixeira, por sempre ser sinônimo de doçura e sobriedade. Por despertar em mim
sempre a vontade de ouvi-la mais. Pelos livros emprestados durante tanto tempo, pela
confiança e disponibilidade. Pelos conselhos e orientações que me foram tão válidos e
essenciais em minha pesquisa. Profa. Dra. Virgínia Moreira, por sempre me deixar
divagar e por sempre me dar a liberdade de sair dos padrões acadêmicos. Por se
empolgar comigo em minhas viagens escritas, por ser ‘mulher de azul’ e, com isso, me
fazer livre para que eu me enfeite de azul também. – A vocês três, meu muito obrigada!
Pelo seu sim em participar da minha banca, pela sua paciência com as trocas de datas,
pelo tempo que vocês usaram nas leituras e observações em minha pesquisa, por vocês
serem a banca que eu tinha almejado ter.
Alguns professores, ao falarem conosco como alunos, na realidade chegam a tal
profundidade que suas falas entram em nosso âmbito pessoal: no Mestrado em
Psicologia, esse professor foi, para mim, o Prof. Dr. Francisco Cavalcante Júnior. A
disciplina dele me realinhou e me fez ter a certeza de continuar no mestrado. Foi nessa
disciplina que as várias partes de mim entraram em acordo sobre o caminho que meus
pés queriam seguir. Há muito ainda do reflexo de sua disciplina em minha pesquisa.
Muito obrigada por ter sido um grande ‘iluminador de palco’.
8
Ao entrar no Mestrado em Psicologia, juntamente com minha grande alegria por tudo o
que eu aprenderia e poderia ter espaço para refletir sobre, veio a preocupação e
dificuldade financeira em dar seguimento a esse curso. Então, meu imenso
agradecimento à CAPES e ao Mestrado em Psicologia, representado na pessoa do
Coordenador Prof. Dr. Henrique Carneiro. Foi a bolsa integral PROSUP-CAPES que
fez acontecer meu percurso nesses dois anos de mestrado. Obrigada de coração ao
fomento que fez esta pesquisa possível.
Agradeço à minha família acadêmica, o Laboratório de Estudos das Relações Humano-
Ambientais, LERHA, da UNIFOR. Em especial à professora Terezinha Elias, pela
doçura, carinho e apoio sempre, e, principalmente, pelo exemplo extraordinário e
contagiante que é; à professora Tereza Matos, por sempre me dizer palavras de apoio,
por sempre torcer por mim, por sempre tecer observações de incentivo e me fazer se
sentir querida; à professora Ângela Araújo, por sua torcida e presença sempre; Aninha,
Salete, Madson, Thiago, Andrezza, Danny, Leo e demais membros do LERHA, que
sempre dão as mãos e enfeitam de sensibilidade o estudo das relações pessoa-ambiente.
Agradeço aos meus amigos-irmãos, que a vida me deu de presente e transformou em
família, que foram já testados pelo tempo e espaços. A eles que sempre têm tanta
paciência comigo e que foram imprescindíveis nessa caminhada acadêmica: Timbal
Filho, meu irmão de alma, por seu companheirismo único, de ontem, de hoje e de
sempre, por sua presença que vence qualquer distância, por sua preocupação e amor, por
ser sempre um sorriso e aceitação, por fazer tudo em seu alcance para sempre me dar a
mão. Cláudia Donato, por ser uma irmã quase de sangue, por me fazer querê-la ao meu
lado para o resto da vida, por sorrir meus sorrisos e chorar minhas lágrimas, por ser colo
certo. Danise Gondim, meu presente de mestrado: que era colega e se tornou amiga e se
tornou irmã, por todas as conversas tidas, por toda a cumplicidade, pelas reflexões e
conclusões, pelas inúmeras risadas e páginas escritas, por ter feito a minha bagagem tão
mais leve e significativa, por ser exemplo e inspiração, por ser meu ouvido acadêmico e
por sempre me dar a segurança confortante de seu aval, por compartilhar comigo os
seus sorrisos, e, assim, também me fazer sorrir. Luiza Matos, por ser parte de mim, por
ser ouvido certo e entendimento, por ser conselheira e consciência, por ser certeza e
vontade de estar-se com sempre. Paula Neves, por ser sempre a risada mais espontânea
e contagiante, por ser minha companheira de praia, por estar sempre de peito aberto para
9
me dar conselhos sobre o meu sentir, por ouvir de forma aberta e carinhosa sempre.
Janaína Lisboa, por ser sorriso certo, por ser inteligência agitadora, por sempre me
trazer a sensação de que ‘a vi ontem mesmo’. Ticiana Bezerra, pelo seu constante sim a
qualquer pedido meu e pelo seu apoio sempre.
Agradeço também as minhas amigas de mestrado, que fizeram esses dois anos bem
mais divertidos e reflexivos. Bem como as amigas agregadas que ganhei ao longo de
nossas ‘terapias’ de quinta-feira.
Agradeço a tantos outros amigos, de vida e de momentos. Entre eles, Camila e
Fabrício, o querido casal-doçura pelo apoio e sorrisos certos sempre; Kamila Bossato,
pelas gargalhadas-explosões e reflexões geradas em nossas quartas-feiras; Loredana
Sofia, em muitos sentidos, um anjo em minha vida; Weaver Lima, por ser sócio de
projetos e de sonhos e por me fazer lembrar da parte mais forte de mim.
Agradeço aos professores da graduação que continuam a ser voz constante em mim, são
Gabriela Reinaldo e Profa. Inês Sampaio. Ainda, agradeço ao Prof. Dr. Ricardo Jorge,
que me orientou e apoiou na especialização em Teorias da Comunicação e da Imagem,
na Universidade Federal do Ceará, UFC, feita juntamente com o Mestrado em
Psicologia.
Agradeço à minha família como um todo: por sempre correr para perto na hora da
alegria e da tristeza. Em especial, agradeço à minha madrinha tia Noeme, por seu apoio,
confiança e carinho sempre. Agradeço também à minha tia Verinha, por ter sempre se
lembrado de oferecer sua ajuda ao longo desses dois anos de mestrado.
A categoria de espaço hoje, mais do nunca, cresceu. Paralelamente ao nosso mundo
físico, temos um outro mundo: virtual por não ser palpável, mas real em relação aos
vínculos que faz criar. Agradeço assim, aos amigos que tenho nesse mundo e que se
misturam à minha vida e espaços concretos e os enfeitam da encantadora complexidade
que vem junto com qualquer coisa humana. Em especial, agradeço ao Fabrizio Lima,
por tantas palavras trocadas, por tantas imagens perfeitas, por tantos sorrisos e
cumplicidade. À Helena, por ser espaço para mim, por ser ouvidos e reflexões; à
10
Adriana, por tantas gargalhadas inesquecíveis, por sua leveza, benevolência e bom
humor; à Ká, por tantas dicas literárias e reflexões inestimáveis; à Luna, pelas palavras e
pensamentos conjuntos, pelas sincronicidades e boas intenções; à Luisa, pelas músicas,
vídeos e preocupações com minha pesquisa; à Mari, pelo apoio constante e pelos
sorrisos contagiantes.
Ainda, como não poderia deixar de ser, agradeço aos tantos autores que preenchem esta
pesquisa e a minha vida: de razão-de-ser, de significados e de sentir. De forma muito
especial agradeço à Rachel de Queiroz por ter criado a Maria Moura, por ter escrito
personagens-espaço, por ter criado casas tão repletas de simbologias que permitem que
entremos nelas com nossa alma. Se Rachel de Queiroz foi meu amor nesses dois anos,
Clarice Lispector foi minha amante. Agradeço à Clarice por ela ter existido, por ela ter
sentido tudo o que sentiu: por ela ter sorrido os sorrisos que sorriu, e por ter chorado as
lágrimas que chorou. Clarice foi, e é, o meu ‘cubico’: é nela que guardo o meu cantinho
de sorrisos e reflexões. Ainda, não posso deixar de citar o homem cuja alma eu gostaria
de ter colada à minha: Joseph Campbell, que sempre tem o que me dizer sobre tudo.
Agradeço com toda a intensidade do meu ser à vida. A essa existência terrestre que em
minha opinião nada mais é do que a alma sendo levada à escola. A vida é minha paixão
maior, meio para tudo o mais que se possa experienciar e sentir. A minha gratidão,
então, pelo tempo e espaços que ela me dá. Pelo que ela oferece e desperta.
Se minha lista de agradecimentos é extensa é porque sou pelo outro. É na relação com o
outro, e nos reflexos que eles geram em mim, que se dá a relação comigo mesma. É ao
descobri-los que descubro a mim mesma. É através do outro, seja pessoa, animal, livro,
música, lugar, objeto etc, que me desperto para mim e para minha existência enquanto
ser único. Clarice Lispector diz: “A felicidade aparece para aqueles que choram. Para
aqueles que se machucam. Para aqueles que buscam e tentam sempre. E para aqueles
que reconhecem a importância das pessoas que passam por suas vidas”. E realmente
seriam necessárias muito mais páginas do que as que formam esta pesquisa: porque sou
sim grata a todos os que passaram por minha vida e que são os responsáveis por eu ser
exatamente o que sou hoje e, ainda, por eu ser matéria transforme, que anda de mãos
dadas com o tempo e com os espaços.
11
Filmes têm diferentes receitas para grandes sopas, servidas para 300, 400 pessoas por vez. Um livro é
um jantar solitário.
Michael Ondaatje
A palavra pertence metade a quem a profere e metade a quem a ouve.
Michel de Montaigne
A leitura de um bom livro é um diálogo incessante: o livro fala e a alma responde.
André Maurois
O livro já nasceu perfeito, é leve, prático. Ele não precisa de um aparelho para fazer funcionar. Ele só
precisa de você.
Ruy Castro
12
Um texto bonito LANA NÓBREGA
Na verdade a beleza é um sorriso. Você vê o que lhe é belo e pronto: você simplesmente sorri. Mas o que é um texto bonito? As imagens que vamos formando, imaginando, à medida que lemos o texto? O sentimento que o texto desperta em nós? Acho que todas as anteriores. A depender do momento, do texto ou do espírito. O que sei é que precisamos de um texto bonito. Precisamos alimentar o que há de belo. Precisamos estimular o que sentimos que é bom, o que nos faz sonhar, o que nos faz ver tudo um pouco mais colorido. Um texto bonito nos traz leveza, nos faz terminar a leitura com um sussurrante “é verdade...!”. Quase como uma confissão a si mesmo. Quase como a mensagem de um anjo que nos foi enviada para que ainda acreditássemos em algo. E não somos nós quem encontramos um texto bonito. É ele que nos acha. Chega às nossas mãos ou vem à nossa mente no momento da precisão. E a verdade é que necessitamos do texto bonito. Que traga à tona boas lembranças, que abrace nossos sonhos, que endosse nossas esperanças. No entanto, creio eu, não é o autor quem faz o texto bonito. Ou se o faz, faz para si – porque é, também, leitor. E é o leitor quem faz o texto bonito. É o leitor quem vê o que de belo há ali. É o leitor quem confessa para si: “é exatamente isso que eu sinto. Que eu precisava ouvir. Perfeito isso!”. Perfeito sim. Porque na verdade só nós somos capazes de reconhecer as peças que nos faltam. E um texto bonito é isso. Um pedacinho seu que estava perdido por aí e que você, de repente, achou.
13
Resumo
A Literatura ao guardar relações humanas, é, também, guardadora de espaços. O leitor,
ser onipresente na obra que está sendo lida, expõe-se não apenas à realidade presente na
obra, mas às associações que esta desperta em relação as suas próprias vivências. Em
uma releitura do livro Memorial de Maria Moura (MMM), de Rachel de Queiroz,
percebemos no trecho em que a personagem-título abraça as paredes de sua casa em
despedida, o teor ambiental contido nesta obra. Dessa forma, este estudo constitui-se de
uma análise literária feita a partir da relação pessoa-ambiente presente neste livro.
Como recorte, analisou-se as falas de Maria Moura e a relação dela com os ambientes
presentes em sua vida. Nesta relação, foram identificados alguns conceitos da
Psicologia Ambiental (PA), ramo da Psicologia que estuda as relações pessoa-ambiente.
Entre os conceitos encontrados, foram escolhidos para serem trabalhados ao longo deste
estudo os de territorialidade, apropriação e vinculação ao lugar. Além disso, como
elementos-chave dos estudos dessa área, foram ainda discutidos os Pressupostos da
Psicologia Ambiental nesta análise. Esta pesquisa teve também como objetivo trazer à
tona as possibilidades de estudos da relação pessoa-ambiente através da Literatura. Em
MMM, a presença dos ambientes é tão forte, que a história desta personagem pode ser
contada através de seus espaços. Estes estão presentes de tal forma que podem,
inclusive, serem considerados personagens da mesma. Ao analisar as simbologias dos
espaços de Moura e a relação dela com estes, pode-se entender sobre sua história de
vida, bem como os vários significados presentes nos espaços vivenciados e sonhados
por ela. Ao analisar Maria Moura e seus espaços, percebeu-se que nas obras literárias a
criação paulatina do contexto dado pelo autor e o acesso à intimidade das personagens,
nos permite observar a construção da relação pessoa-ambiente, a formação dos vínculos
com os lugares, bem como suas simbologias e porquês.
Palavras-chave: Literatura; Psicologia Ambiental; Memorial de Maria Moura; Análise
literária; relação pessoa-ambiente.
14
Abstract
Literature, because it contains human relations, it is also, a depository of spaces. The
reader, an omnipresent being in the book that is being read, exposes himself not only to
the reality present in the book, but also to the associations that the story awakes in
regard to his own experiences and life. When reading the book Memorial de Maria
Moura (MMM), by Brazilian writer Rachel de Queiroz, we perceived on the scene that
the main character hugs the wall of her house saying good-bye to it, the environmental
issues contained in this book. In such way, this study constitutes a literary analysis
emphasized on the people-environment relation contained in the book. As focus, were
analyzed only the passages of Maria Moura and her relation with the environments
present in her life. In such relation, were identified some concepts of Environment
Psychology, branch of Psychology that studies the people-environment relations.
Among the concepts found, the ones chosen to be studied in this research were
territoriality, appropriation and place attachment. Furthermore, as key-elements to the
studies in this area, were discussed in this analysis the Assumptions of Environmental
Psychology. This research also had as goal to bring light to the possibilities of people-
environment studies present in Literature. In MMM, the presence of the environments
holds such strength that the story of this title-character can be told through them. They
are so present in the story that they can also be considered as characters. When
analyzing Maria Moura and her spaces, it was perceived that in literary works the
author's slow and crescent creation of the context and the access to the intimacy of the
characters allows us to observe the construction of the people-environment relation, the
formation of attachments to the places, as well as their symbologies and reasons.
Key-words: Literature; Environmental Psychology; Memorial de Maria Moura;
Literary analysis; people-environment relation.
15
Sumário
I - INTRODUÇÃO........................................................................................................ 16
II - A RELAÇÃO PESSOA-AMBIENTE E A LITERATURA ........................................... 22
2.1 - O TEXTO, A PERSONAGEM, O AMBIENTE ........................................ 33
2.2 - A AUTORA, O LIVRO E O CONTEXTO ............................................... 40
2.2.1 - RACHEL DE QUEIROZ ......................................................... 40
2.2.2 - MEMORIAL DE MARIA MOURA ............................................ 42
2.2.3 - O MASCULINO E O FEMININO EM MMM .............................. 45
III - A PESQUISA: NAS PÁGINAS DE MMM COM UMA LUPA AMBIENTAL ............. 51
3.1 - UMA ANÁLISE DO LIVRO MEMORIAL DE MARIA MOURA – POR
implica em desmembrar o texto em seus principais núcleos” (Moisés, 1987, p. 14).
Divide-se para então multiplicar: o texto fragmentado exige a conexão com o seu todo,
o contexto que palpita dele gera as diferentes leituras que o texto suscita. O texto
fragmentado abre portas diversas para o todo de que faz parte.
Assim, dividiu-se o livro Memorial de Maria Moura em quatro núcleos de análise:
1) o sítio do Limoeiro; 2) o período de Andança, 3) o período de Assentamento e 4) A
Casa Forte. O sítio do Limoeiro e a Casa Forte são os dois ambientes principais do
livro: e tudo o mais (andança e assentamento) é a trajetória e a preparação entre a saída
do sítio e a construção da Casa Forte:
1. Sítio do Limoeiro: A casa do sítio do Limoeiro é onde Maria Moura nasceu: é
seu lugar primeiro, receptáculo e palco de suas memórias. No entanto, é nesta casa
também aonde sempre conviveu com o sonho da terra das Serras dos Padres, em
histórias e direcionamentos contados e recontados por seu avô e seu pai, na esperança
de que um dia essas terras fossem retomadas por um marido ou filho de Maria Moura
(no contexto de MMM é esperado do homem a luta pela terra, pelo lugar).
2. Andança: quando acontece a saída forçada do sítio do Limoeiro e onde a
personagem Maria Moura inicia um período de mudança de entornos e valores. Maria
Moura e seu – então pequeno – bando iniciam a longa caminhada rumo às terras a que
ela tem direito por lei, herdadas da família paterna.
54
O período da Andança é a representação do conhecimento do espaço por Maria
Moura: é movimento, percepção das possibilidades de mundos, é trajetória rumo a um
lugar, espaço transitório e rito de passagem (transformação pessoal) (Campbell, 1990).
3. A Serra dos Padres e o Assentamento: Terra prometida de Maria Moura. Da
qual era a única herdeira do avô paterno. Tomar posses dessas terras era o sonho da sua
família a gerações. Maria Moura e seu bando iniciam então o processo de planejamento
e construção da Casa Forte. Um lugar especial é muitas vezes um lugar projetado,
sonhado, pensado, idealizado, planejado: e assim é a Casa Forte para Moura. Ao fim da
Andança, ao encontrar a Terra das Serras dos Padres, Maria Moura ainda necessita de
tempo e espaço para apropriar-se de seu lugar ideal. Esse período, pré-Casa Forte, é o de
Assentamento, quando um pouso temporário é achado (de onde se sai e para onde se
retorna) enquanto se dá a construção da Casa Forte.
4. A Casa Forte (CF): A Casa Forte era a fortaleza idealizada e construída por
Maria Moura, como uma pequena cidade, a CF tem relações e leis próprias de seu
contexto. É também a materialização de um lugar que já existia no plano abstrato:
repleto de simbologias das figuras masculinas de sua família. Maria Moura finalmente
constrói para si a representação social de que necessitava para ter poder numa sociedade
de homens: sua casa era mais que um pai ou marido: era uma masculinidade criada
para si própria. Mais que uma casa, a Casa Forte é uma mensagem.
Essas quatro partes não representam seções definidas na própria estrutura do
romance escrito por Rachel de Queiroz, mas uma divisão em que nos apoiamos para
abordar os diferentes entornos presentes na história. Não por acaso, essas quatro partes
também apresentam tempos diferentes dentro do contexto do livro, bem como relações e
percepções distintas, porque momentos diferentes, sobre os entornos presentes nas
mesmas.
3.2 – O objeto e o método
Horácio Dídimo (2002) recitou: “começo a andar pelas calçadas/olhando para
fora/de mim/descubro pedras objetos pessoas caminhos” (p. 41). A relação pessoa-texto
é um diálogo: o como-fazer está no leitor, mas está também no texto. Moisés (1987) diz
que o método de análise é escolhido “sempre que o texto determinar” (p. 18). Isso,
claro, acontece por meio do leitor: que percebe através do texto os instrumentos que
55
esse disponibiliza para a análise. Essa relação é então sensitiva: como na poesia de
Dídimo, o caminho está fora de nós, mas somos nós quem caminhamos no caminho, é
uma relação entre o olho e o que se deixa ser olhado. As ‘pedras objetos pessoas
caminhos’ estão fora de nós, mas é deixando-os entrar em nós através do
andar/descobrir que somos realmente capazes de vê-las.
Assim, como objeto deste estudo temos os capítulos narrados por Maria Moura no
livro de Rachel de Queiroz (1992). De dentro deles, foram extraídas passagens que
guardam em si as relações pessoa-ambiente: essas, ao se evidenciarem no texto através
das leituras, puderam ser delineadas e encaixadas em categorias que pertencem à
Psicologia Ambiental. Dessa forma, no processo de separação desses trechos, se
percebeu neles a presença constante de três conceitos trabalhados nos estudos pessoa-
ambiente: a Territorialidade (Itteltson, et all, 1974; Pedersen, 1997; Sockza, 2005;
Sommer, 1973); a Apropriação (Pol, 1996; Tuan, 1980; Bachelard, 1998), e a
Vinculação ao Lugar (Tuan, 1983; Giulinani, 2004; M. Santos, 1982; Hay, 1998).
No entanto, ao buscarmos a forma mais próxima do ideal para analisarmos essas
passagens, nos deparamos com algumas questões: deveríamos utilizar que métodos de
análise textual? Se esse estudo se pretendia uma pesquisa das relações pessoa-ambiente,
como adentrar o universo literário e utilizar, neste, referenciais da Psicologia
Ambiental?
Deparamos-nos com algumas estratégias disponíveis para estudos em Literatura:
métodos de análise crítica (Bergez et all 1997; Moisés, 1987), métodos de análise social
(Facina, 2004), métodos de análise psicológica (Bartucci, 2002; Leite, 2002) e
fenomenológica (Ramos, 1972; Bachelard, 1998), dentre outros. Em todos esses
métodos, o teor literário do texto aqui escolhido poderia ser trabalhado. Salvaguardando
que tivemos como conteúdo não apenas a análise literária de Memorial de Maria Moura,
mas a associação dessa com outra ciência, decidimos por nos pautar no olhar crítico
dessa reunião.
A cada vez que entramos em contato com um texto literário, o que
encontramos são restos que nos escapam e o inominável que nos inquieta. A crítica,
ao indicar o texto como seu objeto, ao invés de extrair dele um sentido, nos
presenteia com produções mais complexas resultantes da articulação com o pré-
texto estudado. (Radaelli, 2007, p. 105).
56
Fizemos assim, uma leitura crítica textual que teve como primeira fase a
fragmentação do texto, o desmembramento desse: uma vez que a relação pessoa-
ambiente teve como critério inicial os quatro núcleos de análise já citados (Casa do
Limoeiro, Andança, Assentamento e Casa Forte).
Uma das preocupações ao longo dos porquês desta pesquisa foi a de apontar não
apenas as possibilidades contidas na Literatura para os estudos pessoa-ambiente, mas a
de pontuar a sua especificidade, uma vez que o que está sob análise é um contexto
fictício. Dito isso, e considerando o caráter muitas vezes formal dos estudos
acadêmicos, perguntamo-nos: como fundamentar um olhar analítico sobre as relações
humano-ambientais em uma obra literária trazendo para o estudo em questão a
legitimidade científica que se almeja?
A resposta que encontramos foi a de que este estudo se dá através de duas
ferramentas: um par de olhos e um diálogo. O par de olhos é o da leitora-pesquisadora
que conversou durante meses com Maria Moura; o diálogo são as várias associações
que a leitora fez entre o mundo de Moura e o mundo real – nessas associações estão,
entre outros, teóricos da Psicologia Ambiental, da Literatura e da Filosofia. Como ser
que se deixa adentrar pelo texto, ao leitor resta conversar com o impacto que a leitura
causa em si:
Isso porque, com o impacto surpreendente, o leitor interrompe bruscamente a
leitura e entra em suspensão. Com isso, é conduzido para uma posição de
'fantasmar' e de refletir sobre o que aconteceu, para poder retornar à leitura logo em
seguida. Nesta retomada, a continuidade temporal se restabelece e o eu do leitor se
recompõe novamente. Enfim, se restabelece um retorno do leitor sobre si mesmo,
que é o correlato do seu retorno para a seqüência narrativa do texto. (Briman, 1996,
p. 57)
Assim, como a análise sobre um texto a partir da própria experiência de leitura não
pode fugir de uma escrita autoral, este é então um estudo-sentido do livro Memorial de
Maria Moura, tendo em foco a mútua convivência entre Moura e os espaços que lhe
foram significativos.
57
3.3 – Conceitos da relação pessoa-ambiente presentes em Memorial de Maria
Moura
Barbosa (1999) fala sobre Memorial de Maria Moura: “a terra exerce um fascínio
extraordinário sobre a protagonista e sua família, por ela são capazes de tudo, inclusive
matar” (p. 46). A bem verdade é que é a nossa relação com as coisas que as definem. É
o meu sentimento para com tal coisa que lhe conferirá sua importância (ou não) para
mim.
Não amamos ou desamamos lugares, coisas, paisagens. Amamos ou
desamamos o significado delas para nós como representantes dos nossos
investimentos que por seu turno bem podem ser outras representações de outros
representantes, uma complexa cadeia de constructos entrelaçados. (Sockza, 2005, p.
9).
Assim, é a todo esse complexo contexto sócio-emocional que cabe não apenas as
experiências de cada um, mas o tempo que produz esses significados. “Experiências
íntimas são difíceis, mas não são impossíveis de expressar” (Tuan, 1983, p. 163). A
Literatura, por sua vez, é um instrumento de expressão das experiências íntimas dos
personagens: mais que isso, ela guarda em si o tempo destes. Como uma seqüência de
acontecimentos, a obra guarda diferentes momentos, logo, diferentes percepções dos
espaços tratados e das relações com esses. “Dir-se-ia que o fim último, consciente ou
não, de qualquer narrador consiste em criar tempo” (Moisés, 1987, p. 101). O tempo
que se divide em si mesmo na sua fragmentária continuidade é também criador dos
espaços. Os espaços, por sua vez, ao serem concretos geograficamente, abstraem-se e se
misturam ao sentido, por receberem impressão e interpretação.
A literatura costuma interrogar a certeza que possuímos quando acreditamos
na concretude dos espaços. Não se trata de negar a existência do espaço físico, mas
de chamar atenção para o fato de que é impossível dissociar, do espaço físico, o
modo como ele é percebido. (L. Santos, Oliveira, 2001, p. 69).
É justamente nessa percepção dos espaços, criadora da relação que se tem com
eles, de onde nasce o elo entre pessoa e ambiente. Dentro das inúmeras caracterizações
possíveis desse elo, três estão constantemente presentes em Memorial de Maria Moura;
58
foram esses os três conceitos da Psicologia Ambiental por nós trabalhos ao longo da
análise:
1) Territorialidade – Sentimento de proteção ante um lugar e/ou o próprio corpo.
Geralmente a territorialidade se torna mais evidente quando há ameaça de invasão,
quando algo ou alguém tenta trespassar a área sentida como território. Essa área sequer
necessita ser de posse legal do indivíduo, já que a territorialidade é intrínseca à
apropriação e a vinculação ao lugar, ou seja, à vivência, à relação que se tem com esse
lugar. A territorialidade é sentida como aspecto intrínseco da relação pessoa-ambiente:
está relativa ao que se tem como seu, ao seu espaço, ao seu ambiente, ao seu lugar.
“One way man achieves a sense of control over his life is through his ability to control
significant behaviors in defined areas of space” (Itteltson, et all, 1974, p. 142). Embora
evocada sempre que se sente o perigo de invasão, o sentido de territorialidade também
pode estar associado a atitudes preventivas: muros, portões, delimitações de terreno,
esquema de segurança, etc. O conceito de territorialidade está interligado também à
privacidade: “privacy may be viewed as a boundary control process in which the
individual regulates with whom contact will occur and how much and what type of
interaction it will be” (Pedersen, 1997, p. 147). Ao longo da trajetória de Moura
podemos observar predominância desse conceito não apenas em relação ao seu corpo,
mas aos espaços que tem como queridos, em especial a casa do Limoeiro, a Casa Forte e
as roupas e objetos de seu pai.
2) Apropriação – À medida em que um espaço vai se tornando parte de nossas
vidas, temos a necessidade de personalizá-lo de acordo com nossas características e
subjetividade. Quanto mais tempo se passa em nossa relação com esse lugar, mais
marcas nossas deixamos nele: provas concretas para nós mesmos e para os outros de
que habitamos, de que utilizamos tal lugar. Nas palavras de Pol (1996):
El ser humano, como la mayoría de otros seres animales necesita marcar su
territorio, aunque sea de forma sofisticada. Necesita sus referentes estables que le
ayuden a orientarse, pero también a preservar su identidad ante si y ante los demás.
Identidad y pertinencia, privacía e intimidad, ser causa y a su vez dejarse llevar por
sus referentes, constituyen la clave de la creación y la asumción de un universo de
significados que constituyen la cultura y el entorno del sujeto, fisicalizado a través
59
del tiempo en un espacio ‘vacío’ que deviene un ‘lugar’ con sentido. Es lo que
llamamos apropiación. (p. 45)
Moura passa, em termos gerais, por quatro períodos distintos de apropriação da
casa do Limoeiro: um com o pai vivo; outro com a mãe viúva; outro já órfã, mas com a
presença do padrasto Liberato; e um último já sozinha. Além desse espaço, podem ser
observadas ainda apropriações dela em relação aos espaços com que entra em contato
nos períodos da Andança e do Assentamento. No entanto, são ainda mais visíveis,
porque nascem inclusive de antecipações e planejamentos, as apropriações de Moura em
relação a Casa Forte.
3) Vinculação ao Lugar – O contato contínuo com um lugar cria um elo afetivo
que, mesmo quando da destruição desse lugar, ou mesmo que ele só exista no plano
abstrato, nos sentimos vinculados a ele. Nesse vínculo perpassa a nossa identidade e o
nosso senso de lugar. Daily or periodic (physical) contact with a place is necessary to
maintain a sense of place, just as such contact is necessary to maintain other
relationships; otherwise, the sense of place becomes more nostalgic in character (Hay,
1998, p.6). É esse elo emocional (place attachment), que cria “potenciais similitudes
entre vinculações íntimas a pessoas e a lugares e o por vezes amargurado luto com a sua
perda” (Speller, 2005, p. 140) ou não realização. Por ser parte das nossas referências
enquanto criadores de sentimentos, a vinculação ao lugar está imbricada à nossa história
pessoal, bem como à nossa própria identidade. All aspects of identity will, to a greater
or lesser extent, have place-related implications (Twigger-Ross, Uzzell, 1996, p. 206).
Os ambientes de MMM estão arraigados de simbologias: e, muitas vezes, é delas
que parte o vínculo de Moura com os mesmos. Aspectos como sua infância, a relação
com seus pais, e a metáfora masculina são algumas das associações aos vínculos
relativos aos lugares presentes na obra.
A partir desses três conceitos pudemos perceber melhor a significação dos espaços
para Moura. Entre o tempo e a espacialidade da vida dessa personagem, a percepção dos
ambientes sob sua cognição e sentir nos foi caracterizada. O ser humano Maria Moura é
benevolente com quem o lê: dá-se por inteiro. Tivemos assim acesso à Moura que
nenhum personagem do livro teve; somos um pouco Rachel de Queiroz nesse sentido:
escrevemos Maria Moura à medida que a lemos.
60
3.4 – A Psicologia Ambiental e seus Pressupostos
O pressuposto para se estar vivo é fazer escolhas: inerente ao ser humano, a
capacidade de fazer escolhas chega a ser pragmática: até o ato de não fazer escolhas já é
uma escolha. A questão é que não há como falar do ser humano sem falar, obviamente,
de suas escolhas: são elas que perfazem seus sentimentos, experiências e destinos. Da
mesma forma, não se pode usar da Psicologia Ambiental sem, mesmo que
minimamente, falar de seus pressupostos: eles estão implícitos em sua própria estrutura
e conceitos. Os Pressupostos da Psicologia Ambiental (Ittelson et al. 1974; Rivlin,
2003), são características básicas que perfazem a relação pessoa-ambiente. São então
um conjunto de fundamentos nos quais estão inseridos o próprio viver do humano e,
portanto, seus espaços. De forma pontual, os Pressupostos são:
1º. O ambiente é experienciado como um campo unitário (Ittelson et al, 1974, p.12). Tal pressuposto se refere à natureza do ambiente e como as pessoas vivenciam o (seu) mundo (Rivlin, 2003, p. 216). 2º. A pessoa tem qualidades ambientais tanto quanto características psicológicas ambientais (Ittelson et al, 1974, p.12). Ou seja, as pessoas são componentes do ambiente (Rivlin, 2003, p. 217). 3º. Não há ambiente físico que não esteja envolvido por um sistema social e inseparavelmente relacionado a ele (Ittelson et al, 1974, p.13). Dessa forma, as dimensões cultural, econômica e política também são parte desse envoltório (Rivlin, 2003, p. 217). 4º. O grau de influência do ambiente físico no comportamento varia de acordo com o comportamento em questão (Ittelson et al, 1974, p.13). Assim, as influências podem ser tanto sutis quanto poderosas (Rivlin, 2003, p. 217). 5º. O ambiente freqüentemente opera abaixo do nível de consciência (Ittelson et al, 1974, p.13), o que sugere que a pessoa se torna consciente do ambiente quando algo muda nele e é preciso adaptar-se a isso (Rivlin, 2003, p. 218). 6º. O ambiente ‘observado’ não é necessariamente o ambiente ‘real’ (Ittelson et al, 1974, p.13). O que permite reconhecer as diferenças individuais, geradoras das diferentes percepções; ainda, o mesmo local pode ser percebido diferentemente em diferentes momentos (Rivlin, 2003, p. 218). 7º. O ambiente é organizado como um conjunto de imagens mentais (Ittelson et al, 1974, p.14). Enquanto percepções podem ser consideradas como um conjunto de imagens, a cognição como um todo sofre o impacto das expectativas e dos objetivos pessoais, os quais, por sua vez, levam a pontos de vista seletivos que afetam o papel dessa mesma pessoa no ambiente (Rivlin, 2003).
61
8º. O ambiente tem valor simbólico (Ittelson et al, 1974, p.14), o que apresenta as dimensões visíveis e invisíveis dos locais (Rivlin, 2003, p. 5).
Chico Buarque canta: “Vou voltar/ Sei que ainda vou voltar/ Para o meu lugar/ Foi
lá e é ainda lá/ Que eu hei de ouvir cantar / Uma sabiá”. Ao lermos esses versos fica
implícito muito do teor emocional que um lugar comporta. Os Pressupostos da PA
envolvem esse contexto espacial-emocional de uma forma circular: cuidam do visível e
do invisível, do dito e do que está nas entrelinhas, do individual e do coletivo, do
subjetivo e do cultural.
Ao longo da análise do livro de Rachel de Queiroz pudemos então usá-los como
base para as entrelinhas que todo texto suscita. Por termos metodológicos e para facilitar
a análise feita, bem como por, tanto os Pressupostos como os conceitos de
Territorialidade, Apropriação e Vinculação ao lugar estarem muito próximos um dos
outros, se interligando e se complementando sempre, não foi feita uma separação de
cada um desses fatores para que a interpretação fosse realizada. Respeitadas as quatro
divisões de tempo do livro (que ligam os espaços de chegada e saída dos lugares aqui
analisados), trabalhamos esses conceitos e pressupostos ao longo da análise do texto.
3.5 – A interpretação do texto literário, a interpretação das relações pessoa-
ambiente e o tempo
Sobre a campanha de Canudos, Euclides da Cunha (2002) escreveu: “Aquela
campanha lembra um refluxo para o passado. E foi, na significação integral da palavra,
um crime” (p. 7). A guerra de Canudos (1893-1897) foi um fato histórico; deu-se no
tempo real:
Conseguindo reunir um grande número de seguidores, Antônio Conselheiro
estabeleceu-se em Canudos, um velho arraial no sertão baiano. Em pouco tempo,
Canudos transformou-se numa das cidades mais povoadas da Bahia, com uma
população com cerca de 30 mil habitantes. (...) Finalmente, um poderoso exército
de 7 mil homens foi organizado pelo próprio ministro da Guerra, e, depois de
sangrentas batalhas, Canudos foi completamente destruído. Era 5 de outubro de
1897. Mais de 5 mil casas foram incendiadas pelo Exército. Toda a população
sertaneja morreu defendendo sua comunidade. (Cotrim, 1996, p. 255).
62
Aqui temos uma convergência interessante: um romance, Os Sertões, de Euclides
da Cunha, foi escrito em meio (literalmente) a um fato real. Ficção e realidade se
misturaram: no entanto, o livro de Euclides é ainda um registro da guerrilha que ele
presenciou, e o leitor sabe disso. O julgamento de regressão, tamanha a violência
perante os sertanejos, e o taxamento disso como crime, expressam ao leitor a
interpretação valorativa de Euclides. Mas é importante perceber que isso se dá
naturalmente: o texto nos guia, enquanto leitores, ao deixar à tona posicionamentos. O
texto entrega: e cabe a cada leitor escolher o que irá receber.
Ainda, a relação texto versus realidade na verdade não faz sequer sentido: a
realidade não pode ser abarcada pelo texto e, em contrapartida, o texto é uma realidade
em si. “Não que a realidade seja desprovida da importância, mas porque a arte não se
confunde com o real” (Ramos, 1972, p. 96). Mesmo no caso citado, aonde fontes
históricas podem confirmar fatos narrados por Euclides, a Canudos dele não será jamais
a Canudos que se passou no mundo palpável – e vice versa. Trouxemos o exemplo de
Canudos à tona para mostrar que o interessante é que justamente por ser realidade de
seu próprio contexto a Literatura se confere uma auto-legitimidade.
Sob essa perspectiva, ambas as interpretações, do texto literário e das relações
pessoa-ambiente, são formadas da mesma matéria: ambas existem em um contexto
humano específico e ambas existem pelo homem. Ainda, “o espaço é a matéria
trabalhada por excelência: a mais representativa das objetificações da sociedade, pois
acumula, no decurso do tempo, as marcas das práxis acumuladas” (M. Santos, 1979, p.
18). E essa é uma verdade para qualquer espaço: seja o impresso nas páginas de um
livro, seja o existente no mundo concreto: mesmo porque ambos passam por nossa
cognição para serem reconhecidos como espaço.
Para a interpretação do texto literário e das relações humano-ambientais é
necessária então uma perspectiva dinâmica, a consciência de que as experiências de
temporalidade e de espacialidade são fundantes do subjetivo. A construção textual, por
sua vez, permite essa dinamicidade no sentido de ser fiel ao processo de formação de
lugar, já que a lógica do texto precisa apresentar os comos e porquês paulatinamente e
de maneira que o leitor possa compreendê-las à medida que forem sendo apresentadas.
No livro de Lewis Carroll (2006, p. 73), Alice e o gato travam o seguinte diálogo:
― Podes dizer-me, por favor, que caminho devo seguir para sair daqui?
― Isso depende muito de para onde queres ir - respondeu o gato.
63
― Preocupa-me pouco aonde ir - disse Alice.
― Nesse caso, pouco importa o caminho que sigas - replicou o gato.
O processo de leitura é assim: um entregar-se. Os caminhos vão surgindo à
medida que às páginas vão sendo viradas, e o leitor tem apenas uma certeza: está indo
para algum lugar. Esse caminho, no entanto, vai lhe fazendo sentido: a interpretação
dele vai se multiplicando perante a sua percepção – o sensitivo-poético que o texto
desperta. “Ao nível da imagem poética, a dualidade do sujeito e do objeto é irisada,
reverberante, incessantemente ativa em suas inversões” (Bachelard, 1998, p. 4). Assim,
não se lê apenas o que se está escrito, se lê, principalmente, as entrelinhas: e às
entrelinhas cabe a interpretação do leitor.
Para se jogar um pouco de acidez ante uma análise textual, se poderia versar que o
livro me transforma, mas eu não posso transformar o livro. Em um diálogo constante
acontecido no mundo real, na interpretação da relação pessoa-ambiente nesse mundo
concreto, o fator tempo é fluido: o sujeito observado estaria constantemente se
transformando ante a minha cognição, reagindo a mim, e criando reações também
constantes em minha pessoa. Seria necessária uma constante adaptação da minha
interpretação perante as mudanças que vão acontecendo para que eu pudesse dar conta
de registrar o máximo. Ainda, tudo no mundo real está sujeito a mudar no próximo
minuto: o acaso é sempre um fator a ser considerado. No entanto, a questão é que o
livro que está sendo interpretado pela leitura, na realidade, não é o mesmo livro estático
que há poucos minutos antes estava na estante. O livro que leio vai se transformando em
matéria dentro de mim: e essa construção textual por mim absorvida nada tem da
estaticidade do texto concreto. E ela se transforma na mesma velocidade em que eu sou
transformada pelo lido.
Pontes (1992) defende que “o espaço é de alguma maneira menos abstrato, mais
próximo de nós que o tempo” (p.7). No entanto, o espaço, como nós o conhecemos, está
inserido em um tempo (um espaço em que estivemos, um espaço em que estamos, um
espaço em que estaremos; um espaço em que pensamos ontem, um espaço em que
pensamos hoje, um espaço em que pensaremos amanhã). Espaço e tempo verbal vêm
juntos na linguagem – seja essa falada, escrita, pensada ou, ainda, sentida. Para nos
situarmos espacialmente, necessitamos também nos situarmos temporalmente (no
âmbito literário, excetuam-se a esse critério, em nossa opinião, obras nonsense ou
gêneros demasiado fantásticos que não tenham em si o tempo humano – ex: universos
64
paralelos). Espaço e tempo não poderiam então ser dissociados, até porque, em última
análise, o tempo é guardador de espaços. A essa junção entre tempo e espaço na
Literatura se dá o nome de cronotopo (Bakhtin, 1996). Por sua própria organização
temporal e espacial acessível em conjunto (passado, presente e futuros podem ser vistos
a qualquer hora em um simples abrir de páginas) o cronotopo é mais facilmente
percebido na literatura. Nas palavras de Bakhtin (1996): We will give the name
chronotope (literally 'time space') to the intrinsic connectedness of temporal and spatial
relationships that are artistically expressed in literature (p. 84).
Assim, vemos um romance (obra literária) como pertencente a dois tempos
distintos: 1) o tempo estático: sob a perspectiva do mundo real – já que uma obra
concluída será sempre isso: uma obra concluída. Posso adaptá-la de inúmeras formas,
criar diferentes versões daquela primeira obra, mas a obra original assim o permanecerá
enquanto existir. O livro Memorial de Maria Moura de Rachel de Queiroz, por
exemplo, terá sempre a forma que tem em cada publicação. Assim, para este primeiro
tempo temos o livro fechado: obra criada e estática que existe no mundo material;
tempo guardado. O primeiro tempo só existe quando o indivíduo ainda não é leitor da
obra: o livro ainda está na estante. Como segundo tempo, temos: 2) o tempo contínuo: já
não sou eu – indivíduo separado da obra – sou leitor: o romance se transforma sob meus
olhos e sob minha cognição. Temos assim o livro aberto. Esse tempo segundo será
sempre transforme, já que se deixará depender da subjetividade e do momento em
questão. Essa obra aberta (Eco, 1988) se deixará depender do leitor e mudará a cada
nova interpretação, a cada releitura ou reflexão. É nesse segundo tempo, criador de
cognições e apresentador de personagens, que este estudo se foca e é nele que a
interpretação do texto literário e a interpretação das relações pessoa-ambiente se
convergem em uma mesma matéria interpretativa.
65
IV – Memorial de Maria Moura: do Limoeiro à Casa
Forte As palavras são pequenas formas no
maravilhoso caos que é o mundo. Formas que focalizam e prendem idéias, que afiam os
pensamentos, que conseguem pintar aquarelas de percepção.
(Diane Ackerman)
São essas as últimas linhas do livro Memorial de Maria Moura:
Duarte tomou as rédeas do cavalo das mãos de Pagão, esperou que eu me
aproximasse para montar. E antes que eu botasse o pé no estribo, rogou mais uma
vez:
― Ainda está na hora de mudar de idéia, Sinhá. Vai ser uma luta muito dura,
com esses homens traquejados para matar. Não é briga pra mulher. E se lhe matam?
Saltei na sela. Mas, antes de dar partida, me dobrei sobre o pescoço do cavalo
e disse, olhando nos olhos de Duarte:
― Se tiver que morrer lá, eu morro e pronto. Mas ficando aqui eu morro
muito mais.
Saí na frente, num trote largo. Só mais adiante, segurei as rédeas, diminuí o
passo do cavalo, para os homens poderem me acompanhar. (Queiroz, 1992, p. 482).
Maria Moura é uma personagem que representa a busca, ela faz o seu caminho até
sentir que chegou a um limite; e uma vez reconhecido esse limite, ela põe em prática
uma quebra: escolhe um novo caminho, uma forma de continuar a sua jornada, e segue
adiante. Então, talvez a trajetória dessa personagem represente a trajetória de todos nós:
peregrinos da vida que nos foi dada. Talvez os espaços de Maria Moura sejam os nossos
espaços: a casa dos pais que um dia se transforma em memória, o processo de achar o
seu canto no mundo, o sonho de uma casa que lhe seja o lar ideal, e a esperança de
encontrar um propósito na vida depois de uma grande desilusão.
Os compositores brasileiros Toquinho e Vinicius de Moraes escreveram em sua
música Aquarela: “um menino caminha/ e caminhando chega no muro / e ali logo em
frente / a esperar pela gente/ o futuro está”. O futuro, tempo por vir de qualquer ser
humano, representa uma quebra temporal: o passado necessita ficar para trás para que o
66
futuro seja recebido. E qualquer mudança é a transgressão do que existe no agora: o
futuro é a transgressão do presente. Essa mudança de percurso que acontece na divisa
entre tempo presente e tempo futuro se dá justamente quando se chega ‘ao muro’. O
muro é parada, é limite: o muro representa a necessidade de um novo lugar, um lugar
que permita todas as coisas que estão no além-muro. Assim, podemos dizer que o
percurso de Moura é formado de quatro ‘muros’ principais: o momento de expulsão da
casa do Limoeiro, o fim do período da andança, o encerramento do período do
assentamento e o sentimento de esgotamento de possibilidades da Casa Forte – que já
não mais supria Moura.
4.1 – O sítio do Limoeiro
O ser humano é um ser social. Seu mundo é sempre dinâmico: fica a passear entre
a esfera privada e a esfera coletiva. “Do ponto de vista da dinâmica, o espaço vital de
cada indivíduo é uma totalidade que é equivalente à totalidade do mundo físico todo”
(Lewin, 1973, p. 87). Assim, como não cabe à nossa cognição apreender o mundo por
completo em todas as suas instâncias de tempo, espaços, fatos etc, acabamos por ter
como nosso mundo, o ‘pedaço do mundo’ com o qual nos relacionamos, o espaço que
cabe à nossa socialidade. Sabemos que há ‘outro mundo’ lá fora, sabemos que o mundo
é maior do que o que (convi)vemos, mas sabemos também que ele nos é abstrato, uma
vez que não nos relacionamos diretamente com ele. Assim, é o nosso espaço cotidiano
que nos concentra. E “o espaço reproduz a totalidade social” (M. Santos, 1979, p. 18).
O primeiro espaço de Maria Moura foi a casa onde nasceu: a casa do sítio do
Limoeiro. A Bíblia diz: “Pois onde estiver vosso tesouro, ali estará também o vosso
coração” (Lc 12, 34). É pelo afeto que passa o nosso bem-querer e o nosso repúdio, as
nossas cognições e interpretações sobre o que nos cerca. O nosso elo com as coisas e
com os lugares.
Talvez não exista nenhum sentimento de afinidade mútua, comunidade,
fraternidade entre as pessoas, seja ele formal ou informal, institucionalizado ou não
– nem nenhum sentimento de diversidade, aversão, hostilidade –, que não esteja
relacionado de alguma forma a questões de lugar, território e apego a lugares.
(Giuliani, 2004, p. 90).
67
Podemos afirmar isso na medida em que a vida de qualquer ser estará sempre
associada a um lugar. No entanto, quando de um olhar mais próximo, quando existe a
intimidade, quando a aproximação (física e/ou emocional) permite o desenvolver de
uma relação, cria-se o apego. É como Saint-Exupéry (1987) conclui: “A gente só
conhece bem as coisas que cativou” (p. 70). Um lugar é um espaço que foi não apenas
cativado por nós, mas que também nos cativou. Então, “o apego é definido como o laço
afetivo entre um indivíduo e um lugar, acompanhado do desejo de estar próximo a esse
local” (Giuliani, 2004, p. 94). A esse apego, nesta pesquisa chamamos de vinculação ao
lugar.
O mundo dos homens, assim é formado de ‘coisas’ e seres – e da relação entre
ambos. Na entrevista com Bill Moyers, Campbell fala sobre os significados que as
coisas carregam em si:
MOYERS: Em que sentido? O que se pode extrair do relógio que você está
usando? Que espécie de mistério ele revela?
CAMPBELL: O relógio é uma coisa, não é?
MOYERS: É.
CAMPBELL: Você sabe realmente o que é uma coisa? O que a fundamenta?
É algo no tempo e no espaço. Pense em como é misterioso que alguma coisa possa
ser. O relógio se torna o centro de uma meditação, o centro do mistério inteligível
de ser, que está em toda parte. Este relógio é agora o centro do universo. O ponto de
repouso do mundo que se move. (Campbell, 1990, p. 64).
Assim é também qualquer coisa sobre a qual se volte o olhar humano: ela torna-se
o foco pulsante, o centro e o ponto de partida do situar-se. O arredor vira o ‘tudo mais’,
cenário; mas o olhar, o sentir e o ponto referencial estão ali: na coisa. Quando a coisa é
um lugar, a pontecialidade de ser ‘centro do universo’ é ampliada: ali são criadas
vivências, tanto no plano físico como no emocional: ali se passa a vida. “O lugar é mais
do que o contexto, sendo uma parte integrante do processo identitário” (Speller, 2005, p.
138).
Quando falamos de uma casa onde toda a infância se passou, uma grande carga
emocional e simbólica está ali inserida. “A casa é uma das maiores (forças) de
integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem. (...) O passado,
68
o presente e o futuro dão à casa dinamismos diferentes” (Bachelard, 1998, p. 26). O
sítio do Limoeiro de MMM é assim: uma casa-mistura-de-tempos:
Me fervia o sangue, pensar que aquele bando de insetos tinha a ousadia de vir
me ameaçar dentro da minha casa! A casa do meu pai e da minha mãe, a casa onde
eu tinha nascido; que tinha sido a casa da minha avó, levantada de telha e taipa pelo
meu próprio bisavô! Era ousadia demais. (Queiroz, 1992, p. 42).
A questão não era a casa: mas tudo o que estava associado à casa do Limoeiro. Ali
viveram seus avós, ali viveram e morreram seu pai e sua mãe. Moura carregará ao longo
de toda a sua jornada as palavras de ‘Pai’ – como ela o chamava – e do avô. “A nosso
favor nós tínhamos a posse do sítio por estes anos todos – também ouvi Pai dizer isso
mais de uma vez”. (Queiroz, 1992, p. 37). Talvez possamos imaginar que o lugar que
pressupõe todos os outros lugares é o lar: algo como a condensação da essência do que
torna um espaço um lugar. O lar está ali: falando muito mais do que o que as palavras
podem abarcar. O lar comunica, guarda, afaga. O lar faz companhia com suas inúmeras
memórias: é um canto cheio de passado. “O lar é um lugar íntimo”, diz Tuan (1983, p.
160); e citando Freya Stark, complementa: “Este é certamente o significado de lar – um
lugar em que cada dia é multiplicado por todos os dias anteriores” (Tuan, 1983, p. 160).
O sítio do Limoeiro é isso: a reunião de todos os dias anteriores que lá se passaram. E
Moura tentará ‘reconstruir’ essa realidade sempre: toda a sua busca passa pela
idealização que o Pai lhe deixara: pelas histórias, lugares e sonhos do tempo vivido com
ele. “Aqui eu estou na minha casa. Este sítio é meu, foi o que o meu pai sempre me
disse. Se os ladrões dos meus primos querem tomar o que é meu, que venham, com
delegado e tudo. Eu enfrento. Da minha casa só saio à força e amarrada.” (Queiroz,
1992, p. 38).
Ittelson (et al, 1974) e Rivlin (2003) afirmam com o oitavo pressuposto que o
ambiente tem valor simbólico: e o sítio do Limoeiro era todo formado dessa matéria
emocional-representativa:
Deitada no mato, olhando as estrelas no céu escuro, eu ia me lembrando das
conversas do Avô, os casos que ele me contava tantas vezes, tantas. Começou a
contar quando eu era pequena e me deitava com ele, em noite de lua, na rede do
alpendre. Depois, eu já mocinha, ouvia os mesmos casos, repetidos já agora por Pai,
69
às visitas, aos parentes. E muito mais explicados do que no tempo em que ainda eu
não podia entender. (Queiroz, 1992, p. 87).
A questão é que essa casa, embora física, era formada de uma malha abstrata: de
uma mistura de tempos e realidades. Era formada de lembranças que ainda alimentavam
a alma de Moura – agora sozinha no mundo. Mas todos ainda estavam lá naquele lugar:
a lhe fazer companhia, a conversar com ela, a representar tudo o que sempre
representaram. A casa do Limoeiro é raiz, é referência, é base, é chão gerador de afago e
de segurança.
Man is cognitive animal. He does more than see, hear, feel, touch, smell, in
the simple sense of ‘recording’ his environment. He interprets it, makes inferences
about it, judges it, imagines it, and engages in still other human forms of knowing.
It is all of these forms of knowing that permit the individual to accumulate a past,
think of the present, and anticipate the future. The ‘poetry’ of this human process is
the substitution of an ‘inner reality’ of words, images, ideas, feelings, and still other
symbols and representations for an ‘outer reality’ of shapes, sizes, objects,
movements, sounds, structures, and other attributes of the environment” (Ittelson, et
all, 1974, p. 85).
Essa associação, típica do ser humano, é extremamente presente na relação de
Maria Moura com o sítio do Limoeiro. “A casa é um corpo de imagens que dão ao
homem razões ou ilusões de estabilidade” (Bachelard, 1998, p. 36). E era precisamente
isso: Moura mantinha sua estabilidade através das lembranças do Limoeiro. Quando
morta sua mãe, Maria Moura diz: “Aquele quarto, aquela cama, o baú, a santa na
parede, era só o que me restava dela. Da pessoa dela.” (Queiroz, 1992, p. 20). O valor
estava impresso na casa, nos móveis, nos lugares que existiam dentro do lugar maior: o
sítio. “O lugar pode adquirir profundo significado para o adulto através do contínuo
acréscimo de sentimento ao longo dos anos. Cada peça dos móveis herdados, ou mesmo
uma macha na parede, conta uma história” (Tuan, 1983, p. 37).
Ainda assim, os diferentes tempos do sítio do Limoeiro também exigiam
diferentes comportamentos de Moura. Como afirma o segundo pressuposto (Itelson et
al, 1974; Rivlin, 2003): a pessoa tem qualidades ambientais tanto quanto características
psicológicas ambientais. Cada vez que a ausência de uma pessoa acontecia (no caso, por
morte), também o ambiente mudava e Moura necessitava se adaptar a isso. Por essa
70
razão, sua relação diária, suas ações e altivez em relação ao Limoeiro iam se
transformando com essas mudanças.
A participação individual (ou de um grupo) em um determinado ambiente
físico é influenciada não só pelo espaço físico e suas propriedades, mas também
pelas pessoas que aí estão, seus papéis e atividades, definidos pelo contexto social
no qual está inserido aquele ambiente físico. (Campos de Carvalho, 1993, p. 438).
Quando o pai de Moura morre, Maria e sua mãe se vêem então sozinhas: um novo
começo é necessário. E mesmo que o livro não mostre detalhes ou passagens específicas
em relação a isso, já que a memória em relação ao pai da protagonista aparece de forma
fragmentada ao longo de todo o romance, fica sempre implícita nas falas de Moura a
veneração pelos tempos do Pai vivo: “Quando Pai morreu, eu não era tão pequena
assim. Nunca me esqueci de Pai (...). Meu pai, esse vivia fechado no meu coração,
sozinho” (Queiroz, 19992, p. 20).
Pelo que se deixa entender, o sítio foi sobrevivendo com o que já tinha, sem que a
mãe interferisse muito no dia a dia do Limoeiro: “Depois da morte de Pai o gado foi se
acabando” (Queiroz, 1992, p. 82). Mesmo com a chegada do Liberato ao sítio – “A
amizade com Liberato, Mãe nunca escondeu de ninguém, era mesmo amigação de porta
aberta” (Queiroz, 1992, p. 33) – a administração do Limoeiro segue solta, sem grandes
feitios ou investimentos, sem apropriações mais significativas.
Após a morte da mãe (Moura tinha então dezessete anos), Maria não sabe ainda
que papel ocupar, mas aos poucos foi ocupando espaços que antes eram da mãe: “Uns
dias passados, comecei a dormir no quarto de Mãe, me deitando na cama que foi dela”
(Queiroz, 1992, p. 20). Agora, a Sinhá do Limoeiro era ela: e ela começava a ver isso e
a querer ocupar o seu papel.
É precisamente quando o Liberato é morto a mando de Moura porque a ameaçou
pela posse da casa, que ela poderia começar a realmente se apropriar do sítio do
Limoeiro. “Eu tinha que pensar era na minha herança; o nosso sítio do Limoeiro, dentro
do distrito de Vargem da Cruz, boa terra de planta e cria, agora meio abandonado, é
verdade” (Queiroz, 1992, p. 30). É importante ressaltar que tanto a mãe de Moura, como
a própria – mesmo antes de se assumir efetivamente como Sinhá do Limoeiro – têm um
sentido de territorialidade muito grande em relação ao sítio.
71
The dynamic nature of people’s relationships to places not only demonstrates
that these relationships include many different places, feelings and experiences, but
also suggests that our relationships to places include both conscious and
unconscious processes. (Manzo, 2003, p. 53).
Moura e sua mãe não entendem muito bem como, mas sabem que tem que
proteger o sítio, inclusive das tentativas do Liberato de se apoderar dele:
Já tinha se passado bem uns seis meses da morte de Mãe, já tinha se
desvanecido dos meus olhos o vulto do corpo pendurado, a visão daquele rosto
horrível que não era o dela, quando, certa noite, ele (Liberato) chegou trazendo um
papel enrolado, que era para eu assinar. Explicou com poucas palavras que, sendo
eu menor de idade, não ia ser capaz de tomar conta da herança de Mãe. Daí, Mãe
também não entendia de negócios; e só de teimosia, não concordou em casar com
ele e lhe passar a propriedade. (...) O pior é que eu, tal como mãe, não queria assinar
nada. (Queiroz, 1992, p. 21).
Elas sabem que o Limoeiro faz parte delas, de sua história, de sua segurança. E
sentem-se atreladas a esse lugar, relutando sobre qualquer coisa que signifique colocá-
lo, mesmo que minimamente, sob risco.
Place Identity. To begin with, it is, a sub-structure of the self-identity of the
person consisting of, broadly conceived cognitions about the physical world in
which the individual lives. These cognitions represent memories, ideas, feelings,
attitudes, values, preferences, meanings, and conceptions of behavior and
experience which relate to the variety and complexity of physical settings that
define the day-to-day existence of every human being. (Proshansky, Fabian,
Kaminoff, 1983, p. 59).
A formação dos vínculos e as significações do espaço dão-se pela vivência:
pessoas e entornos influenciam-se mútua e continuamente a construir essas simbologias
que passam a fazer parte da subjetividade de cada indivíduo. “Quanto aos lugares,
aqueles ligados à nossa infância, frequentemente, parecem manter um determinado
status na hierarquia afetiva” (Giuliani, 2004, p. 97). Moura nasceu na casa do Limoeiro,
foi lá que se criou: há um acúmulo grande de tempo envolvendo esse espaço e suas
72
significações. “Mais que um centro de moradia, a casa natal é um centro de sonhos”
(Bachelard, 1998, p. 34). E o sítio do Limoeiro tem essa representação: é casa natal no
senso lato, é casa do nascimento de memórias, vivências, senso familiar e referencial. É
tecido temporal-espacial vivenciado: e “o tempo confere valor” (Tuan, 1983, p. 211). O
Limoeiro é, acima de tudo, lar. E o que é um lar? Talvez possamos até dizer que um lar
é o receptáculo que guarda a mais forte essência humana: sua idéia de origem, de
referência. O lar remete a um princípio: é tão complexo, tão subjetivo e valorativo que
se deixa depender apenas do sentir. Não há como englobar em palavras a totalidade de
significados de um lar. O lar remete ao querido: à referência minha, e minha apenas.
Há um exemplo que pode ser citado do livro O Pequeno Príncipe, de Saint-
Exupéry (1987): o principezinho tem como referência e significado do seu lar – o
Asteróide B-612 –, uma flor. Essa flor representa todo o sentir e toda a importância e
valor do seu pequeno asteróide. Após chegar à Terra, o principezinho encontra um
campo de grande extensão cheio de flores exatamente iguais à sua: a mesma flor que ele
amava tanto por pensar única. É então que, após encontrar a raposa, chega à conclusão
de que não importa quantas flores existam, a sua será sim sempre única, precisamente
por ser sua:
― Vós não sois absolutamente iguais à minha rosa, vós não sois nada ainda.
Ninguém ainda vos cativou, nem cativastes a ninguém. Sois como era a minha
raposa. Era uma raposa igual a cem mil outras. Mas eu fiz dela um amigo. Ela é
agora única no mundo. (...) ― Sois belas, mas vazias, disse ele ainda. Não se pode
morrer por vós. Minha rosa, sem dúvida um transeunte qualquer pensaria que se
parece convosco. Ela sozinha é, porém, mais importante que vós todas, pois foi a
ela que eu reguei. Foi a ela que abriguei com o pára-vento. Foi dela que eu matei as
larvas (exceto duas ou três por causa das borboletas). Foi a ela que eu escutei
queixar-se ou gabar-se, ou mesmo calar-se algumas vezes. É a minha rosa. (Saint-
Exupéry, 1987, p. 72).
A questão é essa: o nosso lar nos é tão querido e importante que vale ‘morrer por
ele’. “A casa é o nosso canto do mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro
universo. É um verdadeiro cosmos” (Bachelard, 1998, p. 24). Ali se concentram os
tesouros da alma: o que vale o mundo para nós, o que nos pulsa como lugar principal.
‘Home’ is a spatial metaphor for relationships to a variety of places as well as a way of
73
being in the world, but more literal interpretations connect this term to the residence
and positive feelings toward it (Manzo, 2003, p. 56). Como ‘metáfora espacial’, o lar
tem imbricado em si significações relevantes e que pertencem apenas ao conhecimento
de quem delega àquele espaço o título de lar: cada um de nós, quando chega em casa
após um dia difícil e recita para si a frase Ah! Lar, doce lar! sabe o que se quer dizer
com isso, sabe os sentimentos que estão arraigados a esse espaço: não o espaço físico ou
geométrico, mas o espaço-contexto, que envolve precisamente o que a palavra lar
comporta em termos de sentimento e de identidade para cada indivíduo.
O sítio do Limoeiro tem então essa gama de significados: é lugar pulsante de
sentimentos relacionados à vida e ao passado de Maria Moura. E a legalidade dessas
terras – ou seja, sua partilha – lhe é inadmissível. A apropriação dessa terra, o estar nela
e poder imprimir nela esse estar, é mais importante que qualquer papel: já que só Moura
contém em si todas as significações da história do lugar. A casa é de Maria porque são
dela as histórias vividas nesse lugar: o sentido de territorialidade se dá não apenas pelo
estar neste entorno no presente, mas também pelo tempo em que se esteve nele no
passado, a malha temporal de sua vida, se junta ao tempo a que a casa pertence
formando um contexto que a transforma em lar e em referência de lugar e elo.
Pode um lugar conter em si expressões de vivência de uma família, de uma
pessoa? O lugar sozinho não é nada. É como uma caneta sem a mão humana: não se
pode esperar que ela crie palavras, que produza vocabulário. Los espacios, los objetos y
las cosas toman un significado a través del usos y del tiempo (Pol, 1996, p 48). O
espaço necessita do humano a atribuir-lhe significações, a transformá-lo em lugar, a
preencher de vivências sua geografia. Assim, para os primos de Maria Moura, o sítio do
Limoeiro era uma terra a mais em suas mãos, herança financeira; para Moura, essa casa
era sua referência de mundo e família, herança simbólica. “Eu me levantei, já danada da
vida. Eles pouco se importavam com Mãe, casada ou amigada, queriam era passar a
mão nas terras do Limoeiro” (Queiroz, 1992, p. 35).
Esse sentimento de propriedade, de território, fazia com que Moura também se
sentisse em controle dessa terra. One way man achieves a sense of control over his life
is through his ability to control significant behaviors in defined areas of space
(Itteltson, et all, 1974, p. 142). Maria Moura tinha assim o controle do sítio do
Limoeiro, era ela quem decidia quem podia permanecer na terra que tinha como sua:
74
Me senti tão enfurecida que de novo me levantei do banco e corri abrir a
cancelinha do alpendre. E botei os dois pra fora:
― Podem fazer caminho, que eu não estou aqui para ouvir vocês destratando
Pai e Mãe.
Chamei João Rufo, que escutava por perto, encostado no pé de jucá do
terreiro:
― João, sele os animais desses moços, que eles já vão embora.
E, para arrematar, me virei para os primos, procurando imitar o que eu ainda
lembrava das palavras de Pai:
― Se acham que têm parte na herança, vão procurar os seus direitos na
justiça. E agora adeus, boa viagem. (Queiroz, 1992, p. 36).
Lembramos que o sentimento de Territorialidade muitas vezes é despertado
quando o indivíduo sente a segurança do seu espaço ameaçada.
Quando podemos compreender as funções de determinado espaço, podemos
predizer a intensidade com que será defendido e os tipos de táticas defensivas que
provavelmente serão usadas. Mesmo que não aceitemos a idéia de territorialidade
instintiva nos seres humanos, parece que as pessoas defendem ativamente alguns
espaços contra a invasão através de emprego de todo o repertório de técnicas
defensivas no reino animal, além de algumas outras. (Sommer, 1973, p. 54).
Maria Moura, com a chegada dos primos a cobrar suas partes da herança, viu seu
território em perigo: “Só eu, de ignorante, podia pensar que, acaso se perdendo o papel
das escrituras, eu estava garantida, pois não havia mais outra prova. Mais tarde é que
soube: no livro do cartório se escreve tudo, seja caso de compra ou de herança”
(Queiroz, 1992, p. 37). Seu lar estava em perigo e era preciso defendê-lo a todo custo.
“Fiquei meio inquieta, com medo de tanta trapalhada de lei. Mas uma coisa eu resolvi:
da minha casa ninguém me retirava. Só à força bruta.” (Queiroz, 1992, p. 37).
Ao ter acesso aos pensamentos de Maria Moura em relação à sua terra, podemos
perceber que essa não é uma guerra apenas sua: é uma guerra pela memória de seus
pais, pela terra que para ela carregava o nome, a imagem e a importância deles. E ela
pensa como se compactuasse com esse pai que parece guiar seus passos em nome da
terra que defende e representa.
75
“Se o homem está ameaçado, ele se defende. Às vezes, atacando aquele que o
ameaça, às vezes ignorando-o” (Pankow, 1988, p. 30). Defender essa casa então se
tornou seu objetivo maior de vida: seu legado familiar estava em jogo. “Minha primeira
ação tinha que ser a resistência” (Queiroz, 1992, p.40). Ela era a única a ‘enxergar’
tantos elementos na casa do Limoeiro e a única que era capaz de defendê-lo. “Eu senti
que tinha chegado a uma encruzilhada na minha vida e era hora de escolher o caminho
novo” (QUEIROZ, 1992, p. 40). Em meio à ameaça, montou suas estratégias de defesa.
Contratou ‘caboclos’ e os administrou na defesa dessa terra, a ‘sinhazinha do Limoeiro’
começava a morrer: dando lugar à ‘Maria Moura’, guerreira de sua terra e de sua
liberdade. “Nunca se viu mulher resistindo à força contra soldado. (...) Pois, comigo eles
vão ver. E se eu sinto que perco a parada, vou-me embora com os meus homens, mas
me retiro atirando. E deixo um estrago feio atrás de mim” (QUEIROZ, 1992, p. 40).
O ex-presidente americano Winston Churchil disse: “primeiro construímos nossas
casas; depois são elas que nos constroem” (SANTOS, 1982, p. 20). Quando um espaço
torna-se atrelado a inúmeras significações e simbologias, ele faz parte de nós, de nossa
subjetividade e identidade. Barchelard (1998) diz que a casa é como “um instrumento de
análise para a alma humana” (p. 20). A casa é como uma extensão de nosso corpo, de
nosso ser. A casa não é a rua: a casa é o nosso lugar. A casa somos nós mesmos porque
a casa é o nosso mundo. Assim, Maria Moura via a si mesma na casa do Limoeiro: e a
defendia como se defendendo sua própria pessoa, seu próprio corpo. “Defender a minha
morada e a minha pessoa, pra desgraçado nenhum botar a mão em qualquer das duas”
(Queiroz, 1992, p. 43). Ambas, seu corpo e sua casa, estavam em um mesmo patamar de
importância.
Joseph Campbell (1990) defendia que ao longo da vida morrem-se várias mortes
simbólicas: e que são essas mortes simbólicas que nos permitem vestir ‘novas
roupagens’ de nós mesmos e, assim, transformar-nos a cada nova fase de nossas vidas.
“Nas situações mais graves, em que a ameaça pesa sobre sua vida e torna-se
insuportável, há sempre a possibilidade de uma fuga, isto é, de uma evasão no espaço”
(Pankow, 1988, p. 31). A ‘sinhazinha do Limoeiro’ percebia sua morte, já que ela só
cabia à realidade do Limoeiro: sabia que uma nova decisão e destino a esperavam. Seu
mundo acabara de ficar maior. Estava sendo empurrada de seu ninho e necessitava
aprender a voar. “É, eu me sentia encurralada. E o meu coração me pedia para sair dali.
Sentia que tinha acabado o meu tempo no Limoeiro. Que me adiantava ficar no sítio, me
agüentando a ferro e fogo, sem recursos, mulher sozinha, nova?” (Queiroz, 1992, p. 62).
76
O ninho, primeira morada, tem sempre algum reflexo sobre nós: amado ou odiado,
ele nos gera um afeto, seja esse positivo (apego) ou negativo (repulsa). E quando chega
a hora de partir sentimos alegria e/ou tristeza – não existe a neutralidade ao se sair do
ninho. A percepção dessa hora de partir fez com que Maria Moura refletisse sobre o
significado da casa de Limoeiro para ela: “Mas esse meu desejo de ir embora não tem
nada a ver como o meu amor pela casa e pela terra: aqui nasci e me criei. Acontece que
sempre chega a hora de largar o ninho. Do pinto quebrar a casca e pular do ovo”
(Queiroz, 1992, p. 62).
Quando chega a hora da partida, o mundo alarga-se. O que se tinha antes como
mundo, torna-se pequeno: como uma geografia limitada. O lar desprende-se da casa
física e roga ser encontrado novamente em outro lugar, pois ali não está mais: é tempo
de busca. Aquele canto que antes era lar, continuará repleto de significações pelo tempo
que for memória. E será lar ainda – mas um lar abstrato, preso a um tempo e a um
espaço que não mais se constituem presentes. “Vi que tinha chegado a hora principal da
minha vida. Ou era hoje ou era nunca. A minha casa, a impressão que dava agora, era a
de um mundéu se fechando em cima de mim” (Queiroz, 1992, p. 63).
No entanto, nascia ‘Maria Moura’: a guerreira. E ela jamais deixaria sua casa
amada, seu elo com sua vida até ali, para essa ser tomada por quem lhe expulsou, por
quem lhe forçou a saída de seu lar. Maria Moura, a futura chefe de jagunços e dona de
um império, não permitia ver maculado o que lhe era querido. Antes destruir, antes
‘matar’, a ver o espaço que amava usado por pessoas que achava indignas desse espaço.
“Espalhei pelos cantos da casa uns canudos de pólvora (...). Derramei pelo chão e pelas
paredes todo o pote de azeite de carrapato que se guardava para as candeias. Ensopei
tudo de azeite, o mais que podia” (Queiroz, 1992, p. 64). Maria Moura ateou fogo em
sua própria casa. Ali matava uma existência sua. Deixava para trás um passado e iria
rumo ao futuro.
Me benzi, senti os olhos ardendo, aquele aperto horrível no coração. Fui até o
quarto, beijei o lugar onde ficava a santinha de Mãe. Abri os braços, abracei e beijei
as paredes da minha casa, me despedindo para sempre. (...) Vendo minha casa
transformada num fogaréu, e feito pela minha própria mão, desabei em pranto.
(Queiroz, 1992, p. 65).
77
Destruída a casa que lhe guardava, Moura estava agora em movimento, solta no
mundo. A casa do Limoeiro, fisicamente deixando de existir, trazia um novo destino a
Maria Moura. Era necessário que Maria vestisse uma nova ‘couraça’, uma nova versão
de si que fizesse jus ao novo espaço que iria ser buscado. Ao perder um canto fixo,
também sua vida estava solta, em busca de uma nova alocação de si. Mais uma vez a
simbologia do seu pai entra em cena como referência do agir, como a masculinidade de
que Moura necessitava para ser aceita socialmente como ser que busca espaço dentro da
sociedade paternalista em que vivia. “Eu enfiei uma calça que tinha sido de Pai, pra
montar com mais liberdade. Me servia perfeitamente, eu sabia. Pai era magro como eu,
e tinha pouco mais que a minha altura” (Queiroz, 1992, p. 63). A simbologia que
impregnava todo o Limoeiro opera mais uma vez nas atitudes de Moura, que se prepara
para deixar o sítio.
Os significados simbólicos que se desenvolvem ao longo do tempo estão
contidos nas lembranças tanto de ambientes específicos quanto das pessoas lá
presentes (domínio sócio-físico), e também nos elementos simbólicos dos locais que
nos fazem lembrar de alegrias, prazeres, qualidades estéticas e terror. Eles se
tornam componentes das conexões das pessoas com os lugares e do seu apego aos
mesmos (Rivlin, 2003, p. 219).
Joseph Campbell (2003) dizia que “quando ocupamos um lugar em nossas vidas e
queremos estar em outro, há um obstáculo para superarmos, um limiar que deve ser
transposto” (p. 157). O Limoeiro esgotava-se diante dos olhos de Moura: mesmo que
tenha sido por violência imposta, ela não tinha outra opção senão deixar seu lar. Para
além do Limoeiro, estava o resto do mundo. Um mundo que só havia existido para
Moura de forma abstrata. Para ter forças e referenciais para seguir adiante, no entanto,
ela necessitava levar do Limoeiro não apenas as memórias, a sua idéia de lar, mas
objetos que simbolizassem para ela a essência daquele lugar:
Chamei as meninas, disse que elas pegassem as trouxas que já tinham
preparado de véspera, com a roupa delas e algumas das coisas que Mãe me deixou –
três lençóis bordados, uma toalha de mesa e uma peça de renda que Mãe guardava
“para o meu enxoval”. À Chiquinha, que era a mais cuidadosa, entreguei, imagine!
78
enrolados num cobertor de baeta, um copo de vidro fino, uma faca e uma colher de
prata e a santinha que Mãe tinha no quarto. Era o que eu possuía de mais valor. (...)
Fui em seguida ao baú de Mãe, de onde eu já tinha tirado aquelas coisas que a
Chiquinha levou. Peguei lá o papo-de-ema que Pai, quando viajava, usava para
guardar o dinheiro. (...) Peguei também, no baú, todo o dinheiro que ainda tinha –
doze patacas de prata, um dobrão de ouro, que era do tempo do meu avô. Enfiei
tudo no papo-de-ema, e amarrei aquele rolo grosso em redor da minha cintura,
apertado, como via Pai fazer. Vesti em cima o casado de Pai, para esconder a
cintura aumentada. (...) Trabalhava ligeiro, mas calma, nunca pensei ter tanta calma.
Desde a chegada da tal da intimação que eu estava me prevenindo para um ataque
como o daquela noite. (...)
Botei a tiracolo o saco da munição; tinha ali o chumbo, e o polvarim grande
de chifre, as pedras de isca e o artifício de fazer fogo. Tudo herança de Pai. Peguei
também a faca que era dele, uma pajeú linda, com cabo de rodelas de osso e prata,
na sua bainha bordada. (...) Voei em cima da sela – sela de homem – claro que
também de Pai. Ali tudo era dele, até eu – até eu, não – principalmente eu, sangue e
carne dele. (Queiroz, 1992, p. 64-65)
Ao coletar os valores do Limoeiro que podia carregar consigo, Moura concentrava
a ‘imagem’ do sítio nesses objetos. O apego de Moura ao Limoeiro estava representado
não só em suas lembranças, mas na simbologia desses objetos. Como Tuan (1983)
argumenta, “os objetos seguram o tempo” (p. 207). O sentimento de territorialidade de
Moura, antes a defender o sítio do Limoeiro a todo custo, havia sido transferido para
essas pequenas coisas: coisas pulsantes de um valor invisível, mas grande. Ainda, por
condensar em si diferentes tempos e memórias, “a casa nos fornecerá simultaneamente
imagens dispersas e um corpo de imagens” (Bachelard, 1998, p. 23). Assim, diante da
fragmentação do seu mundo, a ex-sinhazinha tentava ainda abraçar o que quer que lhe
desse a noção de segurança, de referência. No meio disso tudo, a guiá-la, a imagem de
seu pai: é das recordações e idealização dele que ela consegue vestir a armadura
necessária para transgredir seu destino feminino. Joseph Campbell (1990) explica:
É o que acontece na mitologia: ao se defrontar com uma mitologia em que a
metáfora para o mistério é o pai, você terá um conjunto de sinais diferentes do que
teria se a metáfora para a sabedoria e o mistério do mundo fosse a mãe. E ambas
79
são metáforas perfeitamente adequadas. Nenhuma delas é um fato. São metáforas. É
como se o universo fosse meu pai (p. 20).
Assim é a metáfora (simbologia) do pai de Moura: ele é caminho: está presente em
todas as suas referências e nas escolhas que faz. É muitas vezes personificando a forma
como pensa que o pai agiria, que Moura age. Em um contexto masculino, Moura
tornou-se não apenas seu próprio homem, mas seu próprio pai.
Mas essa transformação, como toda morte simbólica, foi dolorosa. “Ser posto para
fora de casa significa algo violento, pois, se estamos expulsos de nossas casas, estamos
privados de um tipo de espaço marcado pela familiaridade” (Da Matta, 1997, p. 54). Foi
necessário ter seu mundo destruído, foi necessária a violência e a expulsão. Foi
necessária a destruição da casa que a criara e a transformara em Sinhazinha.
O Limoeiro então virou cinzas: lembranças abstratas no coração e mente de
Moura. Ela agora era outra: a sinhá estava ali, nas cinzas do lugar a que pertencia. O
passo seguinte seria então livrar-se de vez de qualquer semelhança à Sinhazinha do
Limoeiro. Afinal, somos, também, o que o espaço nos permite ser. Já longe das terras
do sítio, na primeira parada que ela e seu bando fizeram, bradou aos seus jagunços:
― Vou prevenir a vocês: comigo é capaz de ser pior do que com cabo e
sargento. Têm que me obedecer de olhos fechados. Têm que se esquecer de que sou
mulher – pra isso mesmo estou usando estas calças de homem. (...)
Não sei que é que tinha na minha voz, na minha cara, mas eles concordaram,
sem parar pra pensar. Aí eu me levantei do chão, pedi a faca de João Rufo, amolada
feito uma navalha – puxei o meu cabelo que me descia pelas costas feito uma trança
grossa; encostei o lado cego da faca na minha nuca e, de mecha em mecha, fui
cortando o cabelo na altura do pescoço. (...)
Os homens olhavam espantados para os meus lindos cabelos. Pareceu até que
o Maninho tinha os olhos cheios de água. E eu desafiei:
― Agora se acabou a Sinhazinha do Limoeiro. Quem está aqui é a Maria
Moura, chefe de vocês e herdeira de uma data na sesmaria da Fidalga Brites, na
Serra dos Padres. (Queiroz, 1992, p. 84).
Maria Moura, com o Limoeiro destruído, daria então início a outra etapa de sua
vida: em outro ambiente. Como se a cada novo espaço, fosse necessária uma nova
versão de si. No entanto, “os verdadeiros bem-estares têm um passado” (Bachelard,
80
1998, p. 25). E esse sentimento-referência em relação ao sítio do Limoeiro iria continuar
sempre. “La construcción del significado ambiental se realiza en función de distintos
tipos de variables” (Corraliza, 2000, p. 61). Por essa razão, a todo lugar que cabe a
palavra lar, só podem ser explicados os detalhes dessa construção, por quem tem acesso
aos sentimentos formadores dessa – o que muitas vezes acontece inconscientemente, já
que, como o quinto pressuposto afirma, “o ambiente freqüentemente opera abaixo do
nível de consciência” (Ittelson et al, 1974, p.13; Rivlin, 2003, p. 218). Uma das
vantagens de ser leitor-observador seria, então, ter acesso a esses processos formadores
de lugar, necessários para a compreensão do personagem e do contexto que ele faz
parte, bem como para o melhor entendimento das relações pessoa-ambiente.
No entanto, Moura tem consciência de que foi arrancada de seu primeiro lar, ela
sabe que sua saída foi feita precipitadamente e de forma a não lhe deixar escolhas. Esse
sentimento de remoção, de deslocamento forçado ainda ficou presente nela por muito
tempo:
Agora eu estava livre de tudo, sem casa, sem dono, sem família, e daí? Pelo
menos ninguém me botava o pé no pescoço; e falando em botar o pé no pescoço, de
repente me lembrei do Tonho, aquele condenado. Se me saísse tudo errado nessa
vida que eu começava, no remate dos males a culpa era dele. Foi o Boca-mole, com
a ajuda do bestalhão do Irineu, que precipitou tudo. Embora eu saiba que nunca ia
ficar o resto da minha vida presa no Limoeiro; nem mesmo em casa de rua na
Vargem da Cruz; mas não carecia começar com tanta violência. (Queiroz, 1992, p.
122).
O vínculo a um lugar independe de sua existência física: carregamos o lugar em
nós. E um lugar, uma vez criado, não deixa de existir (Tuan, 1983). Maria Moura
continuava a ter dentro de si a casa do Limoeiro. Era a lembrança do vivido nessa casa
que a guiava para a terra nova, a Terra das Serras dos Padres, da qual era a única
herdeira. A história de Maria Moura era impulsionada pelos espaços presentes nela: seu
destino era sua casa, seu lar. E por ele, sempre, mataria ou morreria.
Embora não pudesse mais se apropriar fisicamente do Limoeiro, Moura
continuamente apropriava-se da essência desse lugar, pensando sempre sobre o que lá se
passara, sobre o que lá vivera – o vínculo forte que mantinha com esse lugar era sempre
alimentado em si. E Maria Moura carregava consigo todo o poder-referencial que era
tudo o que advinha do Limoeiro: que havia sido sua noção de território, que era ainda o
81
lugar que significava elo e que representava tanto – no período de Andança, já longe da
época do Limoeiro, Moura relembra:
Acabei arrancando uma folha de uma caderneta velhinha onde Mãe tinha
assentado o nome dela e o de Pai, o nome dos pais deles, o dia em que casaram. E o
dia em que eu nasci, o meu nome e o meu sobrenome. Eu nunca me separava
daquele caderninho. Era o único documento que eu tinha. (Queiroz, 1992, p. 197).
Já o território de Maria era agora indefinido: percorria o espaço, estava em
movimento, andava no novo caminho de sua vida, esperando por novos lugares e se
preparando para o seu lar sonhado: as terras que eram suas por direito. E ela então
bradava para o seu bando, como quem proclama um hino: “A terra é minha, o direito é
meu” (Queiroz, 1992, p. 83). Buscando a segurança da legalidade, do reconhecido
socialmente, Moura buscava um canto em que pudesse ser, em paz. Acima de tudo,
buscava. E é essa busca que representa a próxima etapa de sua história: o período que
intitulamos de Andança.
4.2 – A Andança
O corredor significa passagem, movimento, nascimento para uma nova vida
(Chevalier, Gheerbrant, 1998). O corredor simboliza a saída de um espaço para outro:
mudança de ambiente. Todos nós estamos sujeitos a diversos tipos de corredores ao
longo de nossas vidas: físicos e emocionais. O primeiro corredor por qual passamos é a
própria mãe: primeiro mundo, primeiro lar, primeiro lugar. Ao passar por esse primeiro
corredor, deixamos de ser o ser duplo que somos com a mãe gestante e começamos a ser
um: indivíduo de corpo próprio, destinado a achar novos lugares sempre. O período de
Andança em MMM é como um grande corredor: ali será o rito de passagem (Campbell,
1990), o caminho que levará Moura ao nascimento do seu sonhado lar.
O oposto da casa, no entanto, é a rua. Assim como o oposto ao fechado, é o
aberto: e ambos figuram a bivalência entre o seguro e o inseguro. Moura está pela
primeira vez na vida no aberto. “Se a casa distingue esse espaço de calma, repouso,
recuperação e hospitalidade (...), a rua é um espaço definido precisamente ao inverso.
(...) A rua é um local perigoso” (Da Matta, 1997, p. 57). Maria se surpreende então com
a imensidão do mundo: “Ai, a gente só descobre quanto o mundo é grande e
82
despovoado quando se anda nele perdido” (Queiroz, 1992, p. 85). Mas embora
apresente perigo, a ‘rua’ também apresenta possibilidades: como todo lugar aberto,
vários caminhos lhe são possíveis. E Moura tem consciência disso:
Teve um cantador no Limoeiro que, no desafio, quando um perguntou ao
outro onde é que ele morava, o cabra soltou a voz e respondeu: ‘Em cima das
minhas apragatas, em baixo do meu chapéu...’ Fiquei sonhando com aquela
liberdade. (...) Pois agora eu era livre. Em cima do meu cavalo Tirano, em baixo do
meu chapéu de palha... (Queiroz, 1992, p. 87).
Contudo, se o espaço aberto representa possibilidades e conquistas a serem feitas,
é também um caminho custoso: com o tempo vivido de cada passada dada, de cada
estrada trilhada – com tudo o que cabe dentro do tempo. Rubem Alves (2003) diz que
“o tempo se mede com batidas. Pode ser medido com as batidas de um relógio ou pode
ser medido com as batidas de um coração” (p. 67). O tempo sentido (e convém lembrar
que o tempo existe dentro do espaço) é um tempo mais perceptível: nossos sentidos
estão aguçados, cada segundo conta e é percebido de forma mais consciente – o que
sugere que a pessoa se torna consciente do ambiente quando algo muda nele e é preciso
adaptar-se a isso (Rivlin, 2003). Quando isso acontece, referências estão sendo
buscadas, e tentar se localizar e tentar construir um caminho e um destino provoca
excitamento e cansaço. É período de transição, de mudanças, de adaptação.
Me doíam os lombos, me doía o espinhaço. Os pés já estavam meio inchados,
dentro dos coturnos. Quando o cavalo chouteava forte, me atacava aquela dor que
chamam dor de veado, a que dá uma pontada forte nos vazios. Me sentia suja, sem
os meus banhos de cheiro, sem roupa branca pra trocar. (Queiroz, 1992, p. 87).
O período de Andança é quase um lidar com a perda-de-lugar, ao mesmo tempo
em que se cria a consciência de uma necessidade-de-lugar. Ele se estende da saída
forçada do Limoeiro ao momento em que Moura finalmente encontra o seu lugar-
destino: a terra das Serras dos Padres. El espacio no tiene un sentido meramente
funcional. Es el resumen de la vida y las experiencias públicas e íntimas. La
apropiación continua y dinámica del espacio da al sujeto una protección en el tiempo y
garantiza la estabilidad de su propia identidad (Pol, 1996, p. 45). Ao construir seu
83
caminho, como não podia deixar de ser, Maria construía a si própria: ou à persona que
criara para sobreviver no mundo masculino de que fazia parte. "A dupla moral patriarcal
legitimou a exploração feminina frente aos interesses masculinos. No entanto, a
protagonista em questão passa a se beneficiar dessa moral, ao reproduzir o modelo
masculino nas relações.” (Langaro, 2006, p. 19).
Se para ter espaço, Maria tinha que personificar a imagem de seu pai em si
mesma, ela faria justamente isso. E foi isso o que fez, herdeira do legado sempre
presente em si em detrimento do seu pai não ter tido filhos homens – “Afinal, coitado,
de todos os filhos que ele esperava, só vinguei eu – e mulher” (Queiroz, 1992, p. 83) –
Maria destina então seu bando de jagunços a ‘captar’ os recursos que não tinham ainda.
Ao longo da Andança vão fazendo pequenos e grandes assaltos aos transeuntes do
caminho, ou nos pontos de parada. O terceiro Pressuposto da PA afirma: “não há
ambiente físico que não esteja envolvido por um sistema social e inseparavelmente
relacionado a ele” (Ittelson et al, 1974; Rivlin, 2003, p. 217). A lei no descampado da
Andança era a lei do mais forte: qualquer pessoa representava perigo e qualquer posse
estava à mercê de ser perdida. O sistema social a que pertencia o campo aberto era o da
aventura: tinha-se que sobreviver e por esse propósito tudo se justificava:
Continuamos vivendo de aventura e evitando as casas. Arruado mesmo não
avistamos nenhum; só duas vezes uns passantes nos visaram, mas foi de longe;
antes que chegassem perto, pegamos a primeira vereda e sumimos na catinga. De
comida não se passava tão ruim. Os rapazes fizeram um bodoque com uns cordões,
e sempre conseguiam derrubar rolinha, nambu. Até jacu eles mataram. (...)
Andamos mais algumas léguas – era sempre aquela solidão. A farinha se acabava
no fundo do saco; em compensação a caça era mais fácil. A espingardinha já podia
ser usada; quem ia ouvir tiro naquele desterro? Mas tinha-se que poupar a munição.
A qualquer momento era capaz de surgir um mau encontro e a gente não podia ficar
desprevenida. (Queiroz, 1992, p. 111).
Ao viver está relacionado um, e apenas um, comportamento nosso: a reação a esse
viver. Somos uma interpretação-de-texto em forma de ser, estamos sempre a absorver o
que está à nossa volta com nossa subjetividade: e cabe a nós o que fazer com esse
‘texto’ que nos é dado em forma de vida. Engolimos a vida, cada um de nós, e a
digerimos com o nosso-modo-de-ser. Sobre o processo criativo, Ostrower (1999) diz:
84
Compreendemos que todos os processos de criação representam, na origem,
tentativas de estruturação, de experimentação e controle, processos produtivos onde
o homem se descobre, onde ele próprio se articula à medida que passa a identificar-
se com a matéria. São transferências simbólicas do homem à materialidade das
coisas e que novamente são transferidas para si” (p. 53).
Sugerimos aqui que o processo de criação de um lugar não é diferente de qualquer
outro processo de criação humana. A criação de um lugar passa por uma identificação,
por uma valoração, por uma apreensão (apropriação) deste. Antes do lugar, há um
vazio: que o lugar vem preencher. Somos então, na verdade, a soma dos lugares de
nossas vidas: porque é a eles que está atrelada nossa vivência: nosso caminho terreno.
Ao perceber que estava à deriva, Moura percebe também a necessidade de um canto de
repouso, de uma referência, de uma pausa estável.
Nessa noite, dormimos um belo sono. João Rufo atou a minha rede em duas
chibatas grossas de louro. (...) Deitada na rede, eu me sentia inquieta. Ah, não era
aquela vida de correria miúda que eu procurava, quando fugi do Limoeiro. A gente
tinha que tomar uma decisão. Reuni de novo os homens ao redor no nosso fogo e
decretei:
― De hoje em diante, nós vamos procurar um canto pra fazer o nosso ponto
de parada. Um lugar nosso mesmo, de onde a gente saia e para onde volte, por mais
longe que se vá, e se meta no que se meter. Tem que ser um lugar escondido e com
aguar perto. Essa mata por aí é muito grande; procurando a gente acha.
Levou quase três semanas para achar. Mas numa manhã bem cedo, ainda com
névoa no ar, a gente descobriu o que queria. (Queiroz, 19992, p. 114).
Na voz do velho negro Amaro, o nome desse lugar foi dito: “Nós chamamos de
Lagoa do Socorro, pois foi ela que nos socorreu.” (Queiroz, 1992, p. 118). Maria Moura
concorda então com o velho senhor: “― Socorro. É isso mesmo. Vai ser Socorro para
nós também.” (Queiroz, 1992, p. 118). Existe um livro infantil de Ruth Rocha (1976)
intitulado Marcelo, Marmelo, Martelo, no qual ela chama a atenção para a apropriação
coletiva que fazemos das coisas e objetos através dos nomes convencionados a eles.
Marcelo, indo contra a esses nomes que para ele não fazem sentido porque não remetem
ao por quê de ser das coisas, conclui:
85
Pois é, está tudo errado! Bola é bola porque é redonda. Mas bolo nem sempre
é redondo. E por que será que a bola não é a mulher do bolo? E bule? E belo? E
bala? Eu acho que as coisas deviam ter nome mais apropriado. Cadeira, por
exemplo. Devia chamar sentador, não cadeira, que não quer dizer nada. E
rodear-se de tudo o que o mundo concreto poderia oferecer como ostentação de poder e
proteção.
91
Já na vida de jagunça com seus homens, cada vez mais preparados para o destino
furtivo do crescimento financeiro de Maria Moura, ela, ainda na Lagoa do Socorro, diz
sobre a pequena riqueza que já acumulava:
De noite, eu não ia mais precisar mais sonhar com botija dos outros. Já
possuía a minha.
Fiquei algum tempo sentada na rede, me balançando, pensando em mim, na
vida, nas coisas do mundo. O que é bom e o que é ruim, na vida. Pra mim, pra todas
as pessoas. (...)
Quem sabe a força dos ricos está mesmo é nas casas de alvenaria, nos cavalos
de sela, na roupa de seda e veludo, o muito gado pastando nos campos sem fim – e
os próprios campos sem fim? O ouro será o confeito dessas posses? Pois quem tem
ouro tem tudo que o ouro compra, que o ouro vale.
Fiquei então assim, cismando, passando a mão pelos meus ouros que me
enrolavam o pescoço, tirando e enfiando os anéis dos dedos.
É. Eu tinha que ter o ouro para ter o poder. As terras, o luxo, a força para
mandar nas pessoas. (Queiroz, 1992, p. 177).
Embora envolta de escudos, como a própria persona de “Maria Moura”, ou o seu
bando de homens, ou até as riquezas que ia já acumulando, a verdade é que Maria tinha
medo. Maria era ainda uma sinhazinha assustada, uma sinhazinha sem uma Casa
Grande que lhe acolhesse em sua função de sinhá. El sentimiento de inseguridad o el
miedo sentido en un lugar es real, y está basado en la construcción del significado que
para el sujeto tenga el lugar en su conjunto o facetas específicas del mismo (Corraliza,
2000, p. 62). Brigando sempre com sua ‘condição de mulher’ e personificação
masculina, Moura vivia a tentar buscar o espaço a que realmente pertenceria. Como diz
o terceiro pressuposto da Psicologia Ambiental, “não há ambiente físico que não esteja
envolvido por um sistema social e inseparavelmente relacionado a ele” (Ittelson et al,
1974, p.13): a sociedade de Moura a fazia viver essa bivalência ambiental, transitando
sempre entre as fronteiras do feminino e do masculino, buscando transgredir o sistema
social a que pertence para poder ter tudo o que deseja. Dentro de si, calculava que ao ter
sua fortaleza poderia enfim ser realmente as duas coisas: sua própria mulher, com as
regalias femininas de banhos perfumados, lençóis finos, cabelos penteados, e camisolas
brancas; e seu próprio homem, com seu espaço próprio, a comandar e administrar seu
próprio destino, a ser respeitada e ouvida, a ter poder e grandes posses, a ser dona e
92
feitora de sua terra. O sonho desse lugar que faria tudo o mais possível era o que a
mantinha em sua Andança.
A Lagoa do Socorro, como todo lugar temporário, um dia deixou de ser
necessária. Expirou. O próprio lugar às vezes comunica que já propiciou o que poderia.
A inter-relação constante entre pessoa e ambiente cria vários diálogos comunicados pelo
sentir: é com base nessa ‘comunicação’ entre nós mesmos e nossos espaços que vamos
escolhendo nossos caminhos, decidindo nossas direções e delineando nosso destino.
Chega então o dia em que Moura percebe que já é hora de partir para seu lugar-objetivo:
“Enfim achei que tinha chegado a hora de fazer a minha grande viagem – quer dizer, a
romaria em procura da Serra dos Padres. Lá ficava o meu destino: disso eu tinha
certeza” (Queiroz, 1992, p. 225). Para Moura, a ida ao encontro da sua terra sonhada era
justamente isso: uma peregrinação. Esse lugar representava a exaltação e condensação
de todos os seus planos e sonhos: era realmente terra sagrada, envolta de toda a
simbologia do que fala à alma, carregada de toda a intensidade do sentir.
Como oração, tinha o caminho para essa terra decorado. Repetido de novo e de
novo: do Avô para ela, do Pai para ela, dela para si própria. A rota desejada que levaria,
enfim, para a terra que tinha como herança paterna já era mais do que conhecida:
Passa por catinga e por serrotes; por mata e cerrado, por léguas de campos e
alagados. Dois rios se atravessa, sempre secos no verão; mas no inverno eles correm
encachoeirados, das águas que descem da serra. E, depois que se atravessa os dois
rios, e se topa com os primeiros contrafortes do pé de serra, segue sem desencostar,
até encontrar com dois serrotes juntos, um pequeno e mais baixo, o outro comprido
e alto, e que chamam o Pai e o Filho.
Essa é que era a referência importante. A gente quebra às direitas, anda mais
de uma légua, costeando sempre o pé de serra, até alcançar um ponto em que as
pedras se amontoam, grandes e pequenas; e no meio delas, dá de cara o Pai e o
Filho. Só que aquele amontoado não é pedra caída lá de cima, é pedra firme,
enraizada no chão. Então já se está nas próprias quebradas da serra.
E o local especial onde fica a furna é onde o mato está sempre verde, de verão
a inverno; lá fica a nascente, o olho d’água. (...)
Como se vê, eu tinha todo aquele roteiro na cabeça. Aprendi como quem
aprende reza, ensinada pelo Avô. Que o velho, no desgosto de não ter um neto
macho, me obrigava a aprender tudo dos nossos direitos na terra das Serras dos
93
Padres, para eu fazer o meu marido, ou um filho, um dia, recuperar aquele chão que
valia mais do que ouro, com a sua água perene, com suas terras frescas.
E era nosso, nosso! Nosso, que tinha sido comprado, parte da sesmaria da
Fidalga Brites. Na mão dos herdeiros dela.
Eu agora já tinha mais tenência com as coisas. Sabia esperar para fazer, e
fazer com propósito. (...)
A nossa ausência do Socorro não devia ser longa. A gente ia, mas era pra
voltar. (Queiroz, 1992, p. 225/226).
Os espaços se sobrepõem sobre si mesmos: em outras palavras, para sair de um
espaço, é necessário entrar em outro. Quando essa saída se dá de forma forçada ou por
perda, são mais intensos os nossos sentimentos em relação a um lugar que venha suprir
o que o outro supria.
Por outro lado, quando uma pessoa sente que ela mesma está dirigindo as
mudanças e controlando os assuntos importantes para ela, então a saudade não tem
lugar em sua vida: a ação, em vez de lembranças do passado, apoiará seus sentido
de identidade. (Tuan, 1983, p. 208).
A perspectiva real do lugar sonhado enche de forças e metas o indivíduo que
busca. Moura sonhava em encontrar esse lugar já tão conhecido em sonho. A vinculação
ao lugar não necessariamente se dá no contato físico com esse lugar, mas pode ser
construído pelas sensações que a imagem desse lugar causa à pessoa. A terra das Serras
dos Padres já pertencia ao imaginário de Moura desde os tempos do Limoeiro e, agora,
com ela se encaminhando para a real apropriação desse lugar, o vínculo tornava-se
ainda mais forte, uma vez que se alimentava de toda a realização e sentimento de
identidade que essa terra despertava em Moura.
The person’s needs and desires may be gratified to varying degrees, and there
can be little doubt that physical settings vary from time to time to the next in their
capacity to satisfy these needs and desires. Out of these ‘good’ and ‘bad’
experiences emerge particular values, attitudes, feelings and beliefs about the
physical world – about what is good, acceptable and not so good – that serve to
define and integrate the place-identity of the individual. (Proshansky, Fabian,
Kaminoff, 1983, p. 59/60).
94
A Lagoa do Socorro não representava mais apelo algum para Moura, para a busca
de sua terra-destino, ela poderia partir como se sequer fosse voltar, essa busca valeria
isso: “Me arrumei com o maior capricho, como quem vai para outro mundo, sem volta”
(Queiroz, 1992, p. 228). A terra das Serras dos Padres, embora ainda não fosse uma
realidade palpável, era a condensação de bons sentimentos e crenças. Lá Maria Moura
esperava encontra-se a si própria, seria essa terra uma terra-espelho, em que ela pudesse
finalmente ser em liberdade e expansão, em que ela pudesse estar em paz com o
passado, por ter finalmente tomado posse das terras de herança, como era desejo de seu
Avô e Pai, e em que ela pudesse, enfim, abraçar o futuro de fama e poder que almejava.
Como toda peregrinação, foi necessário um preparo para a jornada, que se sabia longa e
difícil.
Num estirão como o que a gente ia enfrentar, a água era o mais importante de
tudo. (...) Desta vez não se estava indo enfrentar luta, arriscar briga; a gente estava
querendo só ir conhecer o terreno, ver se tinha ainda alguém ocupando o lugar que
era meu. (...)
Era isso, exatamente, o que a gente ia descobrir. Pisar na terra, fazer visão do
lugar, avaliar os recursos. (...)
A marcha foi custosa. A cada hora se perdia o rumo, porque se tinha que
andar ao capricho das trilhas e não se sabia bem para onde botavam; e às vezes se
afastavam demais do nosso rumo norte-poente. (...)
Pelos nove dias de viagem, era sol alto, nós tínhamos saído da mata mais
fechada e entrado num vargueado, quando de repente levantei os olhos e soltei um
grito:
― Lá está! Lá está!
Na verdade, bem no meio do rumo entre o norte e o poente, se levantando aos
poucos até tomar mais altura, se via muito bem o lombo azulado da serra.
― Lá está! – e eu apontava com a mão trêmula. ― Lá está a Serra dos
Padres!
Avançamos quase a galope. Até os cavalos pareciam animados. Então o
caminho estava certo! O rumo dado pelo Avô servia mesmo de guia seguro.
(Queiroz, 1992, p. 229/230).
95
Não há outra forma de conhecer um ambiente: é preciso vivenciá-lo, seja por meio
de palavras, pensamentos, olhares, experiências, enfim, convivências que faça possível
algum tipo de relação com o ambiente tratado. No contexto de Maria Moura, datado
aproximadamente de meados do século XIX, ainda no Brasil imperial, quando a
escravatura ainda era uma realidade mesmo que decadente, o meio de transporte mais
comum eram os cavalos e carruagens. Em grandes caminhos percorridos, era a própria
paisagem que servia de referência e localização no espaço. As distâncias medidas em
dias e léguas, um rio que passa por lá, uma serra que se avista: é a geografia que
direciona e sinaliza o homem nos espaços abertos.
Portanto, a partir das perspectivas descortinadas pela experiência única e
individual, a noção abstrata de espaço vai-se transformando, à proporção que o
nosso conhecimento direto e íntimo ou indireto e conceitual se amplia, chegando,
então, a fundir-se com o sentido de lugar, mesclando razão e emoção. (Lima, 1999,
p. 154).
O caminho de busca até a Serra dos Padres já foi uma forma de assimilação, de
conhecimento daquele território: os olhares atentos observavam as informações que a
paisagem lhes fornecia e, à medida que caminhavam, iam reconhecendo nessas a
descrição que Moura tanto ouvira toda a sua vida. Ainda, de acordo com o sétimo
pressuposto da Psicologia Ambiental, “o ambiente é organizado como um conjunto de
imagens mentais” (Ittelson et al, 1974, p.14). Por sua vez, reconhecer um lugar é
apropriar-se dele com os olhos: é como se a imagem mental que se tem se juntasse à
imagem concreta, como chave e fechadura, como signo e significante, como palavra e
som.
De acordo com Twigger-Ross e Uzzel (1996), o apego nasce do significado que o
lugar tem para a identidade da pessoa. O desejo maior de Moura era apropriar-se
daquela terra, fazer dela território demarcado, tomar conhecimento de seus relevos e
declives, de sua vegetação e água, de todos os pormenores relativos àquele lugar. Ela
queria fazer com que o vínculo emocional que já sentia há tempos fosse colocado,
enfim, em prática; que pudesse se relacionar fisicamente com aquela terra que já lhe
influenciava tanto.
96
Eu não podia negar o alívio que sentia. Esperava encontrar gente armada, a
raça dos posseiros em pé de guerra e afinal estava ali só a triste Jove, viúva,
desvalida, com o pobrezinho do Pagão, que, só de olhar pra ele, dava um aperto no
coração. (...)
Felizmente era terra do Avô, pai de Pai, não tinha nada a ver com aqueles
almas de sapo das Marias Pretas.
Não, do Limoeiro eu queria a distância e as poucas lembranças.
― Quem faz o dono é a posse, João. Se nós temos as escrituras no cartório,
melhor. O que eu quero é tomar posse da terra, fazer aqui a minha casa.(...)
O João ainda estava em dúvida:
― Mas, como é que vai ser essa posse? Aqui não tem nada, nem um começo
de nada.
― É assim mesmo que eu quero. Quero fazer uma casa pra mim, defendida
por estes serrotes e as suas furnas. Quero uma casa que cachorro de Tonho nenhum,
ou outro qualquer, se atreva a cercar.
Dito isto, pensei um pouco, determinei:
― Nós demoramos uns dias, descansando e tomando sentido das coisas.
Depois se volta para o Socorro. Vou arranjar uns machados e mais toda a
ferramenta que for preciso para se levantar a casa. Nesta terra tem muita madeira de
lei, é só olhar, até daqui se vê. Dá pra fazer cem casas de taipa, quanto mais uma.
― E a telha? Cobrir com quê?
― Você vai me descobrir um oleiro. Não precisa nem ir na Vargem da Cruz
para encontrar. Na Camiranga não tem casa coberta de telha? Então, tem lá quem
sabe fazer. A gente traz um mestre telheiro nem que seja à força; depois se vê o que
se faz com ele. Daí, tem que se alistar mais uns homens. Nós vamos precisar de
gente. O Roque pode ajudar nisso: o alistamento é de se fazer devagarzinho, de um
em um, pra não se correr risco. (Queiroz, 1992, p. 236/237).
O processo construtivo de um lugar pode se dar tanto do espaço que já existe para
o indivíduo, como do indivíduo para um espaço projetado e ainda a ser construído: o
lugar está ali, a pulsar possibilidades, tanto o lugar já físico como o ainda abstrato.
Veículo de nossas ações, um lugar é palco de nossas vidas e momentos, sentimentos e
percepções.
Place is more than mere physical or spatial location, capable of being
translated into neatly bounded, compartmentalizing definitions. (…) Human beings
97
are not simply materially placed within a world, nor do they simply occupy space.
On the contrary, the human subjectivity is actively immersed in the environment,
interpreting, intuiting, sensing, responding emotionally and intellectually, and
meaningfully assigning signification in a complexity of ways. (…) It follows that
special places are more than merely lone points of geographical interest, but that
they may reveal something essential about human ways of being-in-the-world.
(Stefanovic, 1998, p. 32/33).
De acordo com o quarto pressuposto da Psicologia Ambiental, O “grau de
influência do ambiente físico no comportamento varia de acordo com o comportamento
em questão” (Ittelson et al, 1974, p.13). Assim, em relação ao ambiente, “as influências
podem ser tanto sutis quanto poderosas” (Rivlin, 2003, p. 217). Com a chegada à terra
das Serras dos Padres, Moura pôde juntar a resposta emocional que tinha em relação a
esse lugar, com o envolvimento intelectual: lá estava a terra, esperando ser
administrada, esperando que Moura operasse nela as modificações próprias à
convivência, que Moura deixasse nela as marcas de sua subjetividade.
O período que se dá em que Maria Moura passa a realizar modificações na terra
das Serras dos Padres é o que chamamos de Assentamento. Moura não necessitava mais
buscar: havia encontrado o que procurava. Restava agora construir ali sua morada.
4.3 – A Serra dos Padres e o Assentamento
Diz a Clarice Lispector que “a causa é matéria de passado” (1973, p. 9). A coisa
segura em si todas as significações que cabem ao tempo: a essas, não se pode colocar
em palavras; pode-se, no mínimo, trazer à tona referências através de frases que
expressem uma parcela ínfima dos sentimentos que aquela coisa faz emergir no
indivíduo. Mas é só no sentir, proliferação de percepções internas, domínio da alma, que
são abraçados fielmente os porquês que envolvem a coisa.
Maria Moura estava agora exatamente sobre a meta que pulsara por tanto tempo
no imaginário de três gerações da sua família. Cada um de nós sabe o valor de achar a
coisa com que se sonhou: o mundo parece entrar em sintonia consigo; de repente, o
corpo enche-se de energia e tudo o mais é também possível.
98
La valoración de la experiencia del ambiente, de esta forma considerada, se
convierte en un recurso a través del cual el sujeto se implica a sí mismo en el lugar:
se imagina actuando, y, sobre todo, es capaz de imaginar el grado de adecuación del
ambiente en su conjunto o de una parte del mismo a sus propias metas e
intenciones. (Corraliza, 2000, p. 62).
Moura poderia finalmente agir sobre a terra que sempre sonhara. No entanto,
grandes planos têm que ser bem arquitetados, terrenos novos precisam primeiro ser
conhecidos, materiais precisam ser coletados para que se tornem disponíveis, e
atividades precisam ser enumeradas para que caibam dentro do plano de ações que toda
construção demanda. “O espaço convida à ação” (Bachelard, 1998, p. 31). A primeira
ação de Moura seria então o reconhecimento de área. A percepção ambiental da terra
das Serras dos Padres.
Like all perceptual processes, environment perception plays a dual role in our
lives. First, it is the source of our phenomenal experience of the world; all its sights
and sounds and smells, all its simple and subtle meanings, all its ugliness and its
beauty, all its sense of value comes to us through the process of perception. Second,
it provides us with a guide to action in the environment, it gives us both the arena
within which actions take place and the ability to register and record the
consequences of these actions. (Ittelson, Proshansky, Rivlin, Winkel, 1974, p. 123)
Como animal cognitivo, o homem vive a interagir com seus ambientes, vive no
constante binômio da ação e reação. A percepção ambiental assim, quando nascida da
consciente exploração e observação do ambiente, é uma coleta de informações, como
dados necessários para o agir futuro, como o enquadramento de características
existentes para que se possam então realizar as mudanças desejadas.
A cavalo, a pé, começamos a travar conhecimento com a Serra dos Padres, e
com a vargem larga e comprida que ficava no sopé. Lá em cima, os serrotes se
entremeavam com os morros; e quanto mais esses morros tomavam altura, mais a
mata ia engrossando. Por toda parte os homens me mostravam madeira de lei, os
pais d’arco, as aroeiras, os angicos, os cumarus, e tudo esperando ser cortado e
servir na construção. (...)
99
Se a serra subimos a pé, pelas várzeas lá de baixo a gente andou a cavalo,
conferindo as esperanças de comida e bebida para o gado. É verdade que tinha o
olho d’água, muito bom para servir a uma casa; mas dar de beber a um magote
maior de reses, já era outra empreitada. E o Roque que, anos antes, tinha trabalhado
nas obras de um açude, acabou descobrindo um riacho com umas ombreiras muito
boas para levantar uma barragem apoiada nelas.
― Dá uma parede famosa, vai ser água muita. Esta barranca é só pedra e
pirraça. E olhe, Dona, o espraiado pra represa! Vai ser um pai das águas!
Derrubamos o velho rancho da Jove, fizemos uma casinha nova pra ela, ainda
coberta de palha, era o jeito. Mas ficava prometido que logo estaria coberta de telha.
Era só eu trazer o oleiro, pois o precioso Roque já tinha descoberto barro de telha na
terra onde ia ser a futura represa do futuro açude. (...)
Fui descobrir a furna que já era famosa desde o tempo dos Padres. Era mesmo
um esconderijo difícil de se achar igual. Nascia numa fenda de pedra, embaixo, e
seguia por um corredor de umas duas braças de comprimento e saía disfarçado, mas
tão bem encoberto que só podia dar conta dele quem já de antes soubesse onde
ficava.
Depois de um mês, na madrugada, nos arrancamos de lá. Eu, pelo menos, me
arranquei, e com dor. Ali eu senti, de verdade, que tinha encontrado o meu canto no
mundo, o meu condado. (...)
― Pois então, acredite agora. Eu vou mas eu volto. Esta terra é minha! Vou
levando os homens comigo porque careço deles pra adquirir as coisas pra casa
nova. Os ferrolhos e as dobradiças, os ferros todos que se precisa para uma casa de
gente rica. A nossa casa, aqui, vai ser uma casa de rico, e você vai morar com a
gente, vai ter o seu quarto, seu e do Pagão, por toda a sua vida. Vou trazer roupa
nova pra você e pro Pagão, vou trazer comida pra gente, vou trazer semente pra se
plantar. Vou trazer sal pra temperar a panela. (...)
― Olhe, Mestre Luca, eu vou levantar aqui, neste lugar, uma casa importante,
pra ser sede da minha fazenda. E eu, mais o João Rufo, estava se quebrando a
cabeça pra descobrir de onde se podia tirar barro, fazer uma olaria. E aí descubro
que o senhor mesmo é mestre oleiro, sabe arrancar o barro e fazer a telha e o tijolo!
Pode crer, eu lhe dou tudo o que pedir para a minha olaria: os homens, os ferros, a
lenha pra queimar, tudo mesmo! O senhor só precisa ir ensinando a eles, que a
minha rapaziada faz todo o resto!
Seu Luca sorria meio assustado:
― Mas Vossa Senhoria não vai sair de viagem ainda hoje?
100
― Eu vou ali e já volto, Mestre! Enquanto eu não chego, vá marcando as
minas do barro e vá praticando numas telhas, pra refrescar a memória.
Ele se levantou, espigado, parecia que tinha ficado mais moço:
― Pois vá e venha, Senhora Dona Moura! Vá e venha que quando chegar de
volta já encontra novidade. (...)
Os outros me acompanharam e eu me virei para os Serrotes do Pai e do Filho,
olhei os dois um instante, depois deu adeus com a mão.
― Adeus, minha Serra dos Padres! Adeus minha Casa Forte que eu vou
levantar!
E ora essa, adeus não, que isto não é despedida. Até qualquer hora, que eu
volto logo!
Estava tão feliz que comecei a chorar. Apertei o Tirano com o tacão da bota,
ele tomou galope. O vento, batendo no rosto, me secou as lágrimas. (Queiroz, 1992,
p. 237/238-244/245).
Achar o seu ‘canto no mundo’. Existe algo mais valoroso que isso? Perceber, estar
consciente do seu vínculo e territorialidade a um lugar; estar-se certo da apropriação
emocional e física que lhe liga àquele lugar, que faz dele uma extensão sua. Para Moura
a Casa Forte era já um sonho realizado: porque agora era toda formada de possibilidade,
de viabilidade, e para um sonho se concretizar basta que percebamos que chegou a sua
hora, que é tempo dele acontecer.
Se o apego é definido como o laço afetivo entre um indivíduo e um lugar,
acompanha do desejo de estar próximo a esse loca, a literatura atual sobre laços
pessoas/lugares distingue pelo menos três processos diferentes, que podem resultar
em um sentimento de apego. (...)
a) o apego deriva de uma avaliação positiva da qualidade do local ante as
necessidades do indivíduo. (...)
b) o apego deriva do significado que o lugar tem para a identidade da pessoa
(Twigger-Ross e Uzzel, 1996). (...)
c) o apego deriva de um longo período de residência e familiaridade. A base é
mais emocional do que funcional. (Giuliani, 2004, p. 94/95).
Podemos assim dizer que o apego, o vínculo, que Maria Moura tem em relação à
terra das Serras dos Padres é tão forte que envolve esses três processos de apego: a nova
terra apresenta todas as possibilidades e demandas para o que ela sonha; o significado
101
daquele lugar ressoa não apenas ao seu vínculo familiar e ao desejo de seu Avô e Pai,
mas a toda a conjuntura de sonhos e planos que ela tem para si mesma; embora tenha
acabado de chegar a terra, seus pensamentos estão ali já faz tempo e a base emocional
daquele lugar lhe vem servindo de alimento e força há muito.
Maria volta então ao lugar que se tornou seu canto-preparo: a Lagoa do Socorro.
De lá queria juntar tudo o que fosse preciso para enfim partir uma última vez em destino
a Serra dos Padres.
A volta da Serra dos Padres foi muito melhor do que a ida. Aqueles homens,
depois que passam por uma trilha, não esquecem nada, nunca. Se lembram da
jurema torta, da rebolada de pau branco, do juazeiro caído; são marcos do caminho.
Na volta já estão à procura deles, como velhos conhecidos. (Queiroz, 1992, p. 257).
O espaço é como um texto: ao ser lido, tem a possibilidade de ficar impresso em
nossas mentes, a nos servir de referência constante, a nos ser uma memória e
informação a mais, a nos trazer à mente coisas que nos confortem ou gerem incômodo.
No contexto de Moura, a referência espacial é, inclusive, questão de sobrevivência: a
natureza ainda é predominante na grande quantidade de estradas cruas e campos abertos
que lá existem, a convivência do homem com a natureza é ainda de subserviência, ele
tenta adaptar-se à soberania da terra na maior parte do tempo, e lida com ela de forma
pacífica e passiva. Embora todo espaço gere senso de orientação, no contexto de MMM
isso é ainda mais evidente uma vez que a mobilidade deixa-se a depender das marcas da
paisagem natural e das características formadas pela própria natureza. O olhar de
atenção é grande, porque é uma árvore, uma mata, ou uma pedra que indicará a certeza
do caminho e direção.
Depois de algum tempo preparando a si mesma, aos seus homens e angariando os
materiais de que necessitaria, chegou a hora da ida definitiva para a Serra dos Padres:
Saímos quando a barra levantava (...).
Cada um levava a sua arma à bandoleira. Isto é, quem a tinha.
E eu me mirava neles, os meus cabras. Deus que me perdoe, mas até se podia
dizer que era uma tropa bonita, gente nova e bem resolvida. E agora, que já se
conhecia o caminho para a Serra dos Padres, a volta ia ser quase um passeio.
Os tabuleiros também estavam lindos. Mês de julho – fins d’água, a terra
agradecia as chuvas e rebentava em flor.
102
Não tivemos nenhum encontro importante, em caminho. (...)
Passou-se por toda parte sem perigo. Àquelas alturas, a gente é que era o
perigo.
Afinal avistamos a serra. Parecia ainda mais bonita, depois que perdeu o
mistério: já se sabia o que ia se encontrar nas entranhas daqueles serrotes. Eu, então,
já via a minha Casa Forte levantada, encostada na pedra. E olhava as vargens onde
ia pastar o meu gado. (...) Paciência não me faltava; nem paciência, nem esperança.
(Mestre Luca) Pegou no meu estribo, eu saltei no chão sentindo que pisava no
que era meu. (Queiroz, 1992, p. 271/272).
Há momentos em que todos os afluentes de nossa vida seguem para a mesma
direção, em uma sintonia fluida. Como uma metáfora para o aportar, Moura havia
chegado a seu destino. Tudo ali comunicava seu sonho, tudo ali significava mais do que
o que os olhos podiam ver, a terra das Serras dos Padres, é matéria da alma para Moura.
Uma identidade pulsava ali: havia encontrado a si própria, àquela terra cabia o pronome
possessivo que a ligava a ela. A Serra dos Padres gerava em Moura um senso de ser-se
atrelado à paz de estar-se, ali tudo fazia sentido e tudo parecia possível. Ali, o tempo e a
pressa sequer importavam: pois já estava no lugar em que queria.
What emerges as ‘place-identity’ is a complex cognitive structure which is
characterized by a host of attitudes, values, thoughts, beliefs, meanings and
behavior tendencies that go beyond just emotional attachments and belonging to
particular places. (Proshansky, Fabian, Kaminoff, 1983, p. 62).
O ser humano é como um quebra-cabeça de peças infindáveis: estaremos sempre
incompletos, com pecinhas ainda faltando; no entanto, estaremos sempre no ato de nos
completar, sempre agregando à nossa falta, novas pecinhas. A complexidade que nos
envolve e, assim, envolve tudo a que submetemos nossa subjetividade faz com que as
coisas que à nós são ligadas estejam sempre além do que o que parecem em um
primeiro olhar. A continuidade do tempo que tanto nos forma como nos constrói faz
com que nossos significados, nossas percepções e vínculos estejam também em
movimento, junto à massa fluida e abstrata que forma o nosso sentir. A identidade de
lugar, em termos de representação, que Moura sente na Serra dos Padres era uma antes
de sua chegada, é outra agora que lá está e continua transforme: a movimentar-se junto
103
com a vivência e tempo na relação com esse lugar. No entanto, lá está sua Casa Forte,
simbólica até em seu título, a representar toda uma carga de valores e emoções.
4.4 – A Casa Forte
João Cabral de Melo Neto (1998) diz em um de seus poemas:
Até que, tantos livres o amedrontando,
renegou dar a viver no claro e aberto.
Onde vãos de abrir, ele foi amurando
opacos de fechar; onde vidro, concreto;
até refechar o homem: na capela útero,
com confortos de matriz, outra vez feto. (Melo Neto, 1998, p. 189).
Nossa maior sede e desespero é a segurança: buscamo-la sempre. Ao primeiro
risco de perdê-la, ficamos como que soltos do chão, a buscar a proteção de algo, de
alguma referência que traga de volta a sua certeza. Nossas casas, separação da rua que
são, limite que se volta para dentro, fechado que permite a privacidade e a intimidade, e
muitas vezes reflexos de quem somos e de nossos gostos, são como um ser materno:
limitam-nos; mas também abraçam-nos, confortam-nos, protegem-nos, aceitam-nos.
“Sabemos e aprendemos muito cedo que certas coisas só podem ser feitas em casa e,
mesmo assim, dentro de alguns de seus espaços” (Da Matta, 1997, p. 50). O lugar que
temos como representante de segurança nos é benevolente. Ali, em termos gerais, não
necessitamos ser o advogado, o médico, o empregado, a doceira; ali estamos
resguardados dos títulos sociais e públicos, ali se configura nossa existência privada.
Na vida do homem, a casa afasta contingências, multiplica seus conselhos de
continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem
através das tempestades do céu e das tempestades da vida. É corpo e é alma. É o
primeiro mundo do ser humano. (...) E sempre, em nossos devaneios, ela é um
grande berço. (...) A vida começa bem, começa fechada, protegida, agasalhada no
regaço da casa. (Bachelard, 1998, p. 26).
104
No entanto, a casa é vista como um conjunto, mas também há outros espaços
dentro da casa: espaços que simbolizam diferentes coisas, espaços que diferem em suas
significações e liberdade. Para Moura, a Casa Forte era, antes de mais nada, uma
mensagem: erguia-se imponente, segura e rica, a intimidar e a mostrar quem era Maria
Moura. Nessa casa, no sentido geral do termo, Maria Moura ainda estava, a bem dizer,
na rua: ainda tinha que manter sua persona, sua cara sisuda, suas ordens, seu cargo de
Dona Moura. Era no seu quarto, entretanto, que Moura podia soltar os cabelos e vestir
sua camisola de renda branca: era esse lugar que era verdadeiramente seu lugar íntimo.
A Casa Forte era a extensão de sua fortaleza interna, e seu quarto era o acolhimento de
sua fragilidade.
Mas enquanto símbolo de tudo o que sempre sonhara, a Casa Forte era justamente
a materialização de todos os desejos de Moura: sua mão estava em cada espaço
planejado, em cada função atribuída, na dinâmica que aquele espaço tinha. Olhava para
ela com orgulho de si e da Casa, extensão sua.
Foi duro e foi devagar. Mas agora estava eu no alpendre da minha Casa Forte,
olhando o mundo em redor: lá embaixo na várzea, lá em cima na Serra e, para os dois
lados, as perambeiras do pé do morro.
Nas vargens, tudo quanto era roçado, já de broca feita neste tempo de verão,
esperando a sementeira. Para além, o açude ainda por acabar. (...)
O curral do gado. (...) Com tudo isso, meu orgulho maior era a casa. Começando
pela cerca, as estacas de aroeira, com sete palmos de altura, tudo embutido numa faxina
fechada, rematando em ponta de lança. Entre um pau e outro não passava um rato. E pra
abalar um mourão daqueles, só a força de uma junta de bois: eram enterrados a mais de
quatro palmos de fundura, socados com bagaço de tijolo e pedra miúda. (...)
Pra dentro da cerca, o terreiro batido, aberto, subindo devagar o alto onde a casa
fica. E aí, a casa mesma, se espalhando dos lados, na frente, o alpendrão largo, com os
seus esteios também de aroeira bem lavrada, o chão ladrilhado. As paredes rebocadas,
caiadas, como as do Limoeiro. (...)
Muito tempo se viveu no rancho provisório, que era praticamente o da Jove
melhorado e alargado. (...)
Era pra dar mesmo um orgulho, enchia o peito pensar que todo aquele mundo de
meu Deus a gente podia chamar de seu... (Queiroz, 1992, p. 293/294).
105
Territorialidade, apropriação, vinculação ao lugar: todos três conceitos fronteiriços
e interligados, todos três a falar do bem-querer ao lugar que lhe significa algo, todos a
envolver a relação que se tem a partir do que o lugar lhe desperta. A Casa Forte,
símbolo maior de MMM, personagem que existe desde as primeiras páginas do
romance, vem ser a culminância da significação dos ambientes do livro.
Os verdadeiros bem-estares têm um passado. Todo um passado vem viver,
pelo sonho, numa casa nova. (...)
Assim, a casa não vive somente no dia-a-dia, no curso de uma história, na
narrativa de nossa história. Pelos sonhos, as diversas moradas de nossa vida se
interpenetram e guardam os tesouros dos dias antigos. (...)
Por vezes, a casa do futuro é mais sólida, mais clara, mais vasta que todas as
casas do passado. (...) Casa sonhada. (...) Assim, a casa sonhada deve ter tudo.
(Bachelard, 1998, p. 25/74).
Tão forte é a simbologia da Casa Forte dentro da história de Maria Moura que,
uma vez ela estável e construída, parece-me que o romance perde um pouco o seu foco,
pareceria que ali já poderia acabar: construiu-se a Casa Forte!
Mas esse ambiente, no entanto, se transforma aos poucos em uma pequena
sociedade, com ritmo, cotidiano, hábitos, valores e leis próprias. “Dizia o povo que a
Dona da Casa Forte não carece de cadeia nem de delegado. Lá mesmo ela julga e dá
sentença.” (Queiroz, 1992, p. 333). A reger tudo, estava, até então, Maria Moura. Em
um momento do romance chega-lhe seu meio-primo Duarte, e logo depois a mãe deste,
a escrava forra Rubina, a quem Moura simbólica e literalmente entrega as chaves para a
administração do lar:
Horas passadas da sua chegada, quando Rubina, depois de ter tomado o seu banho e
enfiado um galho de manjericão no cabelo, veio me pedir as ordens, eu tirei do cinto a
grande cambada onde estavam todas as chaves da casa, e declarei:
― Estas chaves agora são suas, Rubina. Pergunte às meninas onde é que serve cada
uma. E eu fico livre de qualquer responsabilidade! Casa, roupa, comida, não é mais
comigo. Você que providencie tudo!
Rubina ficou muito séria:
― Isso eu sei fazer! (Queiroz, 1992, p. 304).
106
A dinâmica do dia a dia, a partir da época desses novos parceiros na
administração, vai tomando conta da Casa Forte e o romance vai se centrando mais nas
relações entre as personagens humanas do que nas personagens-espaço – fato que
acontece principalmente pela chegada de Cirino, que se torna a grande paixão de
Moura. A interferir e ser palco e intercessão de tudo, no entanto, está a Casa Forte, a
reinar solene e rica, passando ininterruptamente sua mensagem do poder de Moura,
sendo-lhe fiel em sua própria existência.
Dentro da pequena cidadela que é a Casa Forte, festas são feitas, casamentos são
realizados, criação de gado, plantações, e até fabricação de pólvora: “aos poucos fui
descobrindo a força que aquela produção nos dava. Em toda uma distância de cinqüenta
léguas em roda, só na Casa Forte havia moinho de pólvora” (Queiroz, 1992, p. 331). A
Casa Forte funcionava quase que sozinha agora. Se auto-sustentava. Era uma entidade
em si própria, a sustentar sempre a fortaleza e fama de Maria Moura.
No entanto, por tornar-se espaço cada dia mais complexo e rico em relações
humanas, haveria ainda um espaço que seria construído dentro da Casa Forte. Como não
poderia deixar de ser, esse espaço é carregado de simbologias e está atrelado à própria
pessoa de Moura: o ‘Cubico’.
4.4.1 – O ‘Cubico’
Temos, todos nós, cantinhos de segredo. É necessário sempre, e provavelmente até
inevitável, mesmo que inconscientemente, resguardar uma parte de nós para nós
mesmos. Como reflexo disso, há espaços que são só nossos, seja fisicamente, seja em
seu significado ou em ambos os casos. Além disso, tendemos a sempre esconder o que
nos é mais precioso, como que a guardar, a cuidar; talvez o medo da constante
socialização a que estamos sempre expostos seja algo presente em nós: temos medo de
que o que guardamos como tesouro e precioso seja espalhado aos quatro ventos, temos
medo dos olhos dos outros sobre as nossas coisas mais secretas. Guardamos aquela
coisa escondida como se fosse um pedaço de nós, como se a nossa própria segurança
dependesse disso – e talvez muitas vezes dependa realmente.
Assim era o ‘cubico’ para Moura:
Mas o que a ajuda de Duarte me deu de melhor foi de realizar um meu sonho,
meio maluco, que dizia respeito a uma certa obra muito especial, dentro da casa.
107
Tinha-se que fazer alterações nas paredes e justamente Duarte chegou quando ainda
se podia mexer nas divisões de dentro, contanto que se respeitasse a cumeeira e as
paredes grossas dos oitões.
Bem era o seguinte: acontece que Pai, entre os casos da família que me
contava, quando eu menina, falava muito no ‘cubico’ que existia na fazendo da avó
dele. Era um quartinho disfarçado entre as paredes da sala e dos quartos, mas tudo
tão bem encoberto, que o exame mais exigente não tinha como encontrar nem rastro
do cômodo extra. A planta era mais ou menos assim, como estou mostrando aqui, já
modificada por mim. Pai desenhou para eu ver e eu conservei o papel, junto com
aqueles poucos outros guardados que pus na trouxa dos salvados do incêndio (...).
E fiz o meu cúbico tão bem disfarçado que qualquer pessoa, até mesmo a
mais esperta, não ia conseguir atinar com o nosso jogo de paredes. Os cantos das
duas salas e os dois quartos se desencontrando, para ocultar aquele vão metido no
meio.
O cubico não tinha porta nem janela, as paredes corriam lisas, como se pode
ver pelo risco. Só no meu quarto se abria um alçapão com uns três palmos de alto e
uns quatro de largura; e trancado com uma fechadura de segredo, de que eu trazia
sempre a chave pendurada no meu cinto. Tapando o alçapão, encostamos à parede o
meu baú grande, taxeado, aquele do M.M.
O chão do cúbico tinha um fundo falso; quem fez todo o trabalho foi o
Duarte. Era cavado palmo e meio de fundura, ladrilhado, e, na altura do rés do chão,
corria em cima dele um assoalho de que se podia levantar uma parte. Pois debaixo
desse fundo falso eu fiz o meu cofre, onde guardava os meus ouros e o dinheiro;
onde até podia guardar as escrituras da terra, quando as tivesse na mão.
Mas o verdadeiro fim do cubico não era servir de cofre; isso foi invenção
minha. Ele se destinava, conforme contava Pai, a esconder algum amigo
perseguido, ou a guardar em segredo algum prisioneiro. Se viesse atrás de um deles,
dando busca, quer os da justiça, quer os inimigos, as paredes, corridas até em cima,
não deixavam adivinhar nada. (Queiroz, 1992, p. 304/305).
Tamanha é a significação e orgulho de Maria Moura em relação ao ‘cubico’, que a
única imagem do seu Memorial é justamente a imagem dele (a que ela fez referência na
fala acima):
108
Se formos pensar para além da utilidade prática do ‘cubico’, poderíamos perguntar
por que uma mulher que é tão temida e respeitada, que construiu toda uma fortaleza ao
seu redor, que têm tantos homens e mulheres como seguidores fiéis seus, ainda sentiu a
necessidade de mais um espaço que representasse segurança. O ‘cubico’ ficava no
quarto de Moura, guardava os tesouros de Moura e ainda tinha a ocultá-lo o baú tão
querido com suas iniciais. Seria o ‘cubico’ apenas um cômodo a mais da casa? Ou seria
ele a própria representação de quão escondida de todos era a pessoa de Moura?
Bachelard (1998) diz:
As imagens de intimidade que são solidárias com as gavetas e os cofres,
solidárias com todos os esconderijos em que o homem, grande sonhador de
fechaduras, encerra ou dissimula seus segredos. (...)
Os móveis complexos, construídos pelo operário são o testemunho sensível
de uma necessidade de segredos, de uma inteligência do esconderijo. Não se trata
simplesmente de guardar a sete chaves um bem. Não há fechadura que resista à
violência total. Toda fechadura é um convite para o arrombador. Que umbral
FIGURA I: O ‘CUBICO’
109
psicológico é uma fechadura! Quantos “complexos” numa fechadura ornamentada!
(...)
No cofre estão as coisas inesquecíveis; inesquecíveis para nós, mas também
para aqueles a quem daremos os nossos tesouros. O passado, o presente, um futuro
nele se condensam. E assim o cofre é a memória do imemorial. (p. 94/97).
Então o que se diria do fato de Moura carregar a chave da fechadura do ‘cubico’ –
que está embaixo de um alçapão, coberto por um baú, sem janelas ou portas ou luz, com
fundo falso – em sua cintura sempre? Essa chave, que guarda tanto segredo junto,
colada ao seu corpo ininterruptamente, quase como parte de si quereria talvez dizer o
quanto ela tinha necessidade de ser decifrada? Quereria talvez mostrar quantas camadas
de personas, de máscaras sociais eram necessárias para que essa mulher reinasse em um
mundo de homens? Deixamos essas reflexões para os psicólogos.
Ressaltamos apenas o quanto Moura necessitava, ao máximo, delimitar espaços
seus, aos quais só ela teria acesso e controle; o quanto ela tinha a precisão de criar
territórios que representassem sua segurança, espaços que fossem uma prova para si de
sua esperteza, esquivo e preparo ante qualquer tentativa contra a sua pessoa.
It has been suggested before that a person’s sense of identity is fostered by
the places and things that are important to him. The loss of valued objects or places,
or the involuntary removal from familiar settings for long periods of time, may
contribute in some measure to a blurring if not a loss of self identity. Considered in
this context, territoriality becomes one means of establishing and maintaining one’s
sense of self. In part this may explain why territorial behavior manifests itself under
conditions of isolation. (Ittelson et al., 1974, p. 144).
Durante o processo de qualificação desta pesquisa, uma das professoras da Banca,
a Dra. Leônia Teixeira, levantou a hipótese do percurso de Maria Moura ser uma
jornada para a morte – não pelo final incerto do livro, mas justamente pelo conjunto de
reações, atos e autodefesas que a fizeram cada vez mais fechar-se em si mesma.
Depois da perda do Limoeiro, às vezes se tem a noção de que Moura perdeu-se
também: e vive a buscar esse ninho perdido, sem nunca porém encontrar algo a que se
agarre por tempo suficiente, sem nunca sentir-se realmente salva e segura. Os espaços
de Moura parecem sempre tentar suprir essa grande falta: e falham porque a falta na
realidade parece ser interna.
110
4.5 – Os Lugares, os Conceitos e os Pressupostos – Algumas Considerações
Até aqui vimos mais de perto os lugares de MMM: na relação de Moura com eles,
encontramos constantemente a presença dos conceitos de Territorialidade, Apropriação
e Vinculação ao Lugar, além dos aspectos que permeiam os Pressupostos da Psicologia
Ambiental. De início, pensamos em listar cada um desses conceitos e pressupostos e
trabalhar, dentro de cada um separadamente, os trechos da obra. No entanto logo
entendemos ser tarefa impossível: assim como não se pode dissociar do espaço o tempo
ou o contexto social a que ele pertence, também não poderíamos tratar de conceitos tão
próximos – e muitas vezes complementares e crescentes em envolvimento – de forma
pontual; tampouco poderíamos falar em forma de lista de pressupostos que estão
presentes em qualquer relação humano-ambiental.
Assim, nesta análise literária feita tendo como foco a relação entre a personagem-
título e as personagens-espaço da obra, tentamos apontar como a própria essência da
relação explicava por si só a presença dos conceitos e os aspectos dos pressupostos.
Como diz Clarice Lispector (1973), deixamo-nos envolver no fascínio que é “a palavra
e sua sombra” (p. 10). E deixamos muitas vezes subentendido o envolvimento dos
conceitos e pressupostos ao leitor deste estudo. Ainda como diz Clarice (1973), usamos
a palavra como isca: e deixamos que o ‘pescar’ próprio de cada pessoa entenda os
aspectos ambientais que quisemos ressaltar nesta análise.
111
V – As Casas de Papel e o Memorial de Maria Moura
O homem é o único ser que sorri. O que poderia significar isso? Não seria de
tamanha responsabilidade carregar em si a consciência do sorrir? Não seria pela nossa
capacidade de associar umas coisas a outras que isso se dá? Olho para a água no chão e
lembro do tombo que um dia levei em pleno pátio da escola na hora do intervalo. Sorrio
pela confusão que foi aquele tempo e momento que estão já tão distantes do hoje,mas
que permanecem vivos em minha memória.
Há uma poesia de Horácio Dídimo (2002, p. 90):
os meninos estão brincando na calçada
vamos começar tudo de novo
pode ser que os relógios de aço
nos esqueçam:
as folhas verdes
o sol
os velocípedes
E nós, ao lermos a poesia, logo criamos dentro de nós essa imagem: os meninos
brincando na calçada. Os meus meninos sorriem alto e escandalosamente, são quatro ao
todo, vestem camisas soltas e coloridas, shorts manchados de peraltices, dois deles estão
descalços, que é para ficar mais à vontade na brincadeira; de vez em quando os
velocípedes brigam com o quebrado da calçada, o vento faz as folhas dançarem e o sol
queima de leve os meninos entretidos em serem crianças. Mas esses são os meus
meninos, não são os seus ou sequer os de Horácio Dídimo. Clarice Lispector está certa:
pegamos a palavra como isca.
É por isso que ao ler a vontade de ‘começar de novo’ e o desejo dos ‘relógios de
aço’ esquecerem do tempo, remeto-me à seriedade e às vezes à falta de despreocupação
da vida adulta, fato que fica metaforizado no frio brutal e imparcial do aço. Mas o fato é
que tudo isso, e o tanto mais que continua aqui a se materializar em minha mente à
medida que me ocupo em escrever estas linhas, me veio porque essas seis frases da
poesia de Dídimo me tocaram. Conversaram comigo, criaram diálogo, apresentaram
112
ambiente e me mostraram crianças interagindo com um local em um tempo e contexto
específico.
Assim o faz a palavra. Ela delineia realidades, expõe contextos, descreve situações
e, por mais precisa ou evasiva que seja a sua descrição, ainda muito será dito pelas
entrelinhas que o leitor preenche com sua subjetividade. Ao longo desta pesquisa,
quando os trechos de Memorial de Maria Moura me saltavam aos olhos encaixando-se
ao que eu tinha lido em livros teóricos dos estudos pessoa-ambiente, outros livros e
textos teimavam em se intrometer querendo também ser usados como o mesmo
exemplo. Não resisti a esses apelos e usei ao longo deste estudo na realidade várias
obras. Quereria ter usado outras ainda, que continuam aqui a pedir sua vez.
No entanto, o que quero ressaltar aqui neste breve trecho do trabalho, é a grande
variedade de riqueza ambiental que nossos livros, músicas e poesias carregam. Ao
olharmos para eles, olhamos para a própria vida. Olhamos para nós mesmos. Olhamos
profundamente para o reflexo de nossa interação com o meio que nos cerca. Luiz
Gonzaga cantava: Aquilo sim que era vida/Aquilo sim, que vidão/Aquilo sim que era
vida, seu moço/A vida lá do sertão (música: “Aquilo sim, que vidão”, de composição
dele). E, por conhecer um pouco sobre Psicologia Ambiental, percebo logo o vínculo e
o apego ao lugar. Lembro também de boas fases da minha vida. Imagino o ambiente que
Luiz Gonzaga canta e, ao mesmo tempo, imagino também o meu. O fotógrafo Oliviero
Toscani diz que o "olhar é um ato criador". Seríamos então essas máquinas fotográficas
em forma de gente a registrar imagens dos lugares que nos tocam?
O Pequeno Príncipe de Saint-Exupéry (1987) escolheu fugir de sua rosa e depois
passou todo o resto de sua existência a sentir saudades da rosa: percebeu então que a
rosa, problemática, bela e imperfeita, era a sua representação de lar. A Alice do Carroll
(2006) precisou sonhar com um mundo louco e sem sentido para que percebesse a nossa
necessidade de constância, estabilidade e previsão. Fabiano e sua família precisaram
viver os terrores da seca relatada por Graciliano Ramos (1999) para que se lesse a
subserviência do homem ante os dizimadores fenômenos da natureza.
Roberto da Matta (1997) veio e me disse que “um livro é como uma casa” (p. 11).
E eu acreditei nele porque lembrei que fiz morada em todos os livros que li e que deixei
guardados dentro de mim: eles viraram lugares; e, se são lugares, é porque me têm valor
e são, assim, um pouquinho lar. Lembrei também, como ele diz, que toda casa tem porta
de entrada, depois uma sala, e, mais para dentro, lugares mais íntimos, que só os que
deixam de ser apenas visitas e viram amigos podem conhecer. Essas casas de papel
113
precisam disso: precisam que a gente vire amigo íntimo, que vá conversar muitas vezes,
que se discuta e debata e escute; que escute muito.
O Horácio Dídimo (2002) versou: “a palavra verde/amadurece; a palavra ave/ voa
no papel” (p. 102). A função da palavra é comunicar: mas ela deixa-se a depender não
apenas de quem a profere, mas de quem a recebe. A palavra tem que amadurecer, a
palavra tem que voar.
Há um quadro do pintor belga René Magritte (1898–1967) chamado The
Treachery Of Images (1928/1929) – ou, ‘a traição das imagens’, em tradução livre.
Nele, está a imagem de um cachimbo; logo abaixo dela, a frase: Ceci n'est pas une pipe.
E você fica ali olhando, se achando a criatura mais louca do mundo: Mas eu tenho
certeza de que isso é sim um cachimbo! Aí, embevecida com a imagem, concentrada na
reflexão que ela lhe desperta, você finalmente percebe: Mas é claro que isto não é um
cachimbo! É uma pintura de um! Todo livro resume-se justamente a convencer-lhe de
que ele “não é um cachimbo”. Todo livro quer ser mais que um mero livro: quer virar
parte do leitor, quer entrar em sua vida, quer virar parte de suas lembranças, quer que
seus personagens virem pessoas amadas ou odiadas, pessoas sentidas. Como disse o
autor Ernest Hemingway, se realmente lemos o livro, até o clima daquele ambiente fica
conosco; tudo ali vira coisa vivida por nós, a fazer parte de quem somos e do que
fizemos.
E então temos o Memorial de Maria Moura, com seus ambientes-chave: o sítio do
Limoeiro e a Casa Forte. E parece-nos que eles são como o ponto “A” e o ponto “B”: e
sabemos que entre dois pontos há uma reta, e que uma reta é formada de inúmeros
outros pontos. MMM nada mais é do que a história de vida de uma mulher e seus
espaços: acontece que em um contexto em que seu sexo já determina o seu percurso de
vida, ou se aceita tal destino ou sai-se enfrentando o mundo em pé de guerra. Maria
Moura escolheu justamente essa segunda opção. Como animal acuado, revoltou-se. E
em sua revolta conquistou o mundo dominado pelos homens.
Mas Maria Moura na verdade nunca deixou de ser vítima de sua própria história:
primeiro órfã de pai em uma época em que era o homem quem dava dignidade à casa;
depois órfã de mãe, sozinha no mundo; depois seduzida e ameaçada pelo próprio
padrasto; depois expulsa de sua casa pelos primos. Maria Moura sai de sua casa
destruindo-a: encena ali o que sente por dentro, está sem canto no mundo, sem
identidade, sem referências concretas.
114
Agarra-se então à memória-referência mais constante em sua vida: seu Pai.
Vestida nas calças dele, incorpora-o; e passa a ser seu próprio pai, passa a ser a imagem
e segurança que um homem representaria em sua vida. Mas tinha a consciência de que
esse não era o destino ideal. Tinha a consciência de como teria que lutar por cada
centímetro de espaço conquistado: “Ai, Pai, se o senhor não tem morrido, a vida nossa
seria tão diferente. Talvez eu já estivesse casada, dormindo nos braços do meu marido.”
(Queiroz, 1992, p. 227).
A morte do pai foi o divisor de águas em sua existência. Mas, bem ou mal, dentro
da casa do Limoeiro, havia ainda espaço para a Sinhazinha Moura, a menina abusada e
cheia de vontades que ela era. Ali ela ia vivendo uma vida pequena, delimitada pelos
espaços do sítio. Mas ainda filha de fazendeiro. Ainda mulher órfã e jovem a ser
respeitada e cuidada. Mas então acontece o que de pior pode acontecer: é arrancada de
seu ninho por terceiros. E isso não faz parte do percurso natural da vida: do ninho, ou
sai-se por vontade própria quando se vê que chegou a hora, ou é-se empurrada para fora
pelos pais, como a ave-mãe que diz que é hora de voar. Maria, não: foi forçada por seus
primos em sua saída prematura:
Um dia ainda vou me vingar daquelas almas de morcego das Marias Pretas.
Mas isso tem o seu tempo. Afinal, não fosse a investida deles eu talvez não tivesse
coragem de sair de casa, ficasse presa dentro dos dois palmos de terra do Limoeiro,
brigando pelas extremidades com os outros vizinhos. Foi na verdade o Tonho quem
me deu o primeiro empurrão. Assim mesmo, um dia eles ainda me pagam. Um dia.
Pela minha casa queimada, pela agonia daquela noite. (Queiroz, 1992, p. 125).
E então Maria Moura torna-se de tal modo personagem de si mesma que esconde
de si e de todos qualquer sinal de fraqueza. Como naquela noite da fuga do Limoeiro,
acredita que precisa ser sempre essa guerreira em pé de guerra para sobreviver, não
consegue nunca apenas ser-se, acha que é necessário sempre estar vestida de sua
armadura de Maria Moura; sem ela, tem medo, deixar-se-ia ser apenas uma mulher:
No escuro, na cama, de noite, quando me vi, estava chorando. Enxuguei os
olhos no lençol, danada da vida. Te aquieta, Maria Moura. Você não é mulher de
chorar, nem mesmo escondido.
115
Cadê a Dona da Casa Forte, a cabecel desses homens todos, que comanda de
garrucha na mão e punhal no cinto? Com vinte bacamartes carregados, garantindo a
retaguarda, pra o que der e vier?
Mas ali, na cama vazia, vestida na minha camisola cheirosa a manjericão, eu
não tinha vontade nenhuma de ser durona, tinha vontade era de abrir a boca e cair
no berreiro, tal e qual o Xandó estava fazendo naquele instante mesmo. (Queiroz,
1992, p. 383).
Pode ser que Maria tenha virado refém de Maria Moura. Pode ser que mesmo
tendo achado seu ‘canto no mundo’, Maria Moura tenha se perdido mais uma vez,
esquecendo-se do sentimento de paz que tivera quando chegou à Serra dos Padres. Pode
ser que ela tenha construído uma casa, e não um lar: já nunca pudera usufruir da
intimidade desarmadora que o âmbito do lar propicia.
Na grande carência por encontrar esse lar, fez de instrumento para conseguir
permitir-se esse sentir, a sua paixão por Cirino. Entregou-se a esse homem e deixou-se
ser mulher, de cabelos soltos e passiva. Mas Cirino também não era o lar que Maria
pensava ter encontrado, e mais uma vez Maria Moura teve sua segurança destruída.
Dessa última perda, não se recuperou: nem mesmo a Casa Forte parecia ter mais o
brilho e significação que um dia tivera.
Cria seu testamento deixando todas as suas posses e terras para o afilhado Xandó,
filho da sua prima Marialva. Apega-se então a uma aventura arriscada, em que ela e seu
bando roubariam um grupo de marchantes ricos e poderosos. Sai com seu bando
dizendo: “― Se tiver que morrer lá, eu morro e pronto. Mas ficando aqui eu morro
muito mais.” (Queiroz, 1992, p. 482).
No livro O meu Pé de Laranja Lima de José Mauro de Vasconcelos (1994, p. 189)
se dá o seguinte diálogo entre Zezé e seu pai:
― Depois tem mais. Tão cedo não vão cortar o seu pé de Laranja Lima.
Quando o cortarem você estará longe e nem sentirá.
Agarrei-me soluçando aos seus joelhos.
― Não adianta, Papai. Não adianta...
E olhando para o seu rosto que também se encontrava cheio de lágrimas
murmurei como um morto:
― Já cortaram, Papai, faz mais de uma semana que cortaram o meu pé de
Laranja Lima.
116
Zezé fala, na verdade, sobre o Portuga, que viera preencher o papel de pai e dar-
lhe sentido à sua vida. Com a morte dele em um acidente com o trem, o pé de Laranja
Lima perdera o sentido, a magia, o encantamento. Estava, a bem dizer, como se já
tivesse sido cortado.
Assim parece ser com Maria Moura: a consciência da perda do encantamento com
a Casa Forte, que veio à tona com a morte de Cirino – a mando seu – fazia-a morrer em
vida, já que não conseguia mais ver sentido em tudo aquilo, já que perdera a
significação que aquele ambiente poderia ter para si.
Joseph Campbell (2003) afirma que nossas verdadeiras mortes são mortes
simbólicas: são mortes de significados. Como existimos através dos espaços que
habitamos, não parece haver morte mais cruel realmente do que a morte de um lugar e
do que o que ele significa.
117
VI - Considerações Finais: de mãos dadas com Moura
Há dois anos, eu estava relendo o Memorial de Maria Moura, já cursando o
Mestrado em Psicologia, quando a cena de Moura abraçando as paredes do Limoeiro me
tocou de uma forma diferente: vi ali o que eu estava estudando, vi ali a Psicologia
Ambiental.
Os dois anos foram se passando e Moura fez-me companhia, falando-me sobre a
importância de achar o seu canto no mundo, falando-me sobre as significações e
simbologias contidas nos espaços, mostrando-me as lutas envolvidas na conquista de
um espaço seu, os sorrisos e lágrimas que os lugares guardam.
Essa personagem de Rachel de Queiroz me fez repensar sobre lugares, sobre a
importância de um lar, de um lugar que proporcione segurança emocional e física, que
seja base de comparação e referência para todos os outros lugares que possamos ocupar
durante nossas vidas.
Chorei juntamente com Maria Moura, ao vê-la perder-se de si mesma, ao vê-la
sempre tentar deixar de ser o bicho acuado que se tornou com a morte do pai e com a
perda do Limoeiro: e sempre falhar por não ter em ninguém, lugar. Maria Moura me fez
despertar para o lugar que determinadas pessoas são, que nos dão a sensação de lar, que
nos remetem a esse; simplesmente por existirem, seja fisicamente, seja em nossas
memórias. Lembrei-me de que na volta de minhas viagens, depois de meses fora, só
tinha a sensação de realmente ter chegado em casa, quando via o rosto de meus pais no
aeroporto. Ao ver suas faces, eu então sabia que estava em casa.
Ao longo desses dois anos, tive reações diversas de outras pessoas em relação à
minha pesquisa: alguns logo se interessaram pela temática e a acharam inovadora;
outros fizeram uma observação que por um tempo me entristeceu: ah, eu prefiro estudar
coisas da vida real. Perguntei-me então o que seriam ‘coisas da vida real’. Perguntei-me
que diferença havia entre a dor da perda do Limoeiro de Maria Moura, e a dor da perda
da casa de uma família em um incêndio. Não morria ali um lugar? Não iam junto com
ele muitas das imagens que existiam naquelas paredes e espaços? Não sentiam todas
essas pessoas a mesma dor? O mesmo medo? Não eram todos eles seres agora acuados,
precisando de um novo canto no mundo?
Então, fiz o que todos nós precisamos fazer às vezes para seguir em uma estrada:
desviei-me dos buracos. Continuei a acreditar nos lugares que influenciam e são
118
influenciados pelo homem: seja na literatura, seja no mundo concreto. Eles são feitos da
mesma matéria: são lugares. Com todas as complexidades e relações que lhes cabem.
Estão ali a comunicar relações, a falar sobre significados, a guardar vidas e histórias.
São um olhar sobre o mundo: delimitando-o e tornando-a apreensível.
Passeei junto com os teóricos dos estudos pessoa-ambiente por várias obras
literárias, e os tinha como a apontar para mim em determinados trechos das obras:
“Olha, era isso o que eu quis dizer quando falei sobre privacidade!”; “Veja! Isso aqui
serve como exemplo para o que dissemos sobre territorialidade.”; “Está notando? Aqui
cabe justamente o que argumentamos sobre apropriação!”.
Conversei com eles e deixei que conversassem comigo. Pensamos juntos sobre as
várias histórias, os vários espaços, os diferentes contextos, lugares e tempos que
observamos em conjunto. Tendo a fala desses teóricos em mente, percebi em todos
esses ‘lugares literários’ uma constância: a relação pessoa-ambiente. Mudavam as
histórias, mudavam as personagens, mudavam as sociedades e valores: mas ali estavam
os lugares; a servirem de território, a serem apropriados, a despertarem o vínculo
humano.
Dei então as mãos com Maria Moura e a acompanhei intima e longamente. Entrei
em seu sentir mais privado, fui testemunha do processo de formação dos lugares para
ela. Pude ver de perto as raízes dos sentimentos que tinha em relação aos seus
ambientes: por que significavam o que significavam. Pude seguir os passos de Moura
lado a lado com ela, ao mesmo tempo em que vivenciava tudo o que ela vivenciava.
Pude estar presente no momento exato de suas lágrimas, sorrisos e medos. Pude assim,
olhá-la com uma lupa que ia além da ambiental: que adentrava o campo do sentir
pessoal, que se deixava ir além das palavras e que não me deixava outra opção a não ser
a de sentir tudo o que Moura sentia.
Ao fim desse percurso, tenho apenas uma certeza: muito mais poderia ser dito. Os
lugares são infinitos em suas significações. Descrevi aqui apenas um olhar sobre os
espaços de Maria Moura. E um olhar está sempre preso a um tempo. E um olhar é
sempre transforme. Chegado ao fim deste tempo, muito já vejo de novo. Muito mais há
que significam os lugares de Moura.
Tive o pretenso objetivo de lançar luz às relações pessoa-ambiente contidas em
obras literárias. Em todo caso, como não poderia deixar de ser, os lugares com os quais
tive contato me transformaram, me fizeram viver relações e interações, me guiaram por
seus limites e fronteiras, me comunicaram o tempo de ficar e a hora de partir. Sobre as
119
questões levantadas no início desta pesquisa, temos como certo que as relações pessoa-
ambiente presentes na literatura são tão significativas e complexas quanto as do mundo
tido como real. Assim, ambas apresentam em si os conceitos dos estudos pessoa-
ambiente. As formas de análise dessas relações (literatura X mundo real), no entanto,
são diferentes: já que são também diferentes o meio e as formas de obtenção de
informações a respeito dessas.
Dessa forma, pude pensar sobre a relação leitor e livro: o caminho que se percorre
ao ler, ao adentrar esse espaço que é, como diz Bachelard (1998), imagem poética. Esse
espaço que contém vários espaços em si, e nos faz viver outras existências a partir de
nossa própria. Pude refletir sobre as transformações e discussões que esses livros
despertam em mim. Pude pensar sobre as relações que as personagens têm com seus
espaços e como essas relação se transferem e se encaixam em relações que podem ser
observadas em meu próprio cotidiano.
Ao refletir sobre o contexto de Maria Moura, pude entender como às vezes
existem tempos históricos e valores que fazem com que o gênero defina e delimite
nossas relações com os espaços. Ao testemunhar Moura transgredindo o papel
permitido às mulheres de sua sociedade, pude pensar sobre as várias transgressões que
temos que fazer ao longo de nossas vidas em nome de nossos espaços; pude pensar
sobre as eternas brigas por territórios que acontecem ao redor do mundo; pude refletir
sobre quão forte é chamar um espaço de seu e sobre como é uma forma de estupro
simbólico que outros se apossem de seu lar por meio de força e coerção.
Maria Moura mostrou-me toda a carga pessoal e sentimental que pode estar
presente em um lugar sonhado. Com ela pude testemunhar como a busca por um lugar
nos faz criar força e coragem para enfrentar as barreiras que existem pelo caminho.
Transpus o sonho de Moura para a casa própria que tantos almejam; para a
materialização de um sonho familiar que tantos querem ver concretizado. Pude perceber
que existem várias formas de se manter vivas as presenças daqueles que amamos e que
já se foram: e que uma delas é pelos espaços.
Concluí que os espaços são também livros, esperando serem abertos, lidos,
interpretados. Esperando estável e pacientemente para ganhar o movimento e
complexidade da presença humana. Esperando serem transformados e transformarem.
Esperando virarem verdadeiramente história: ao virar memória, ao virar parte de nós.
Memorial de Maria Moura é, realmente, um livro sobre uma mulher e seus
lugares. Podemos crer que Moura tem em seu percurso um ponto ‘A’ (que é a casa do
120
Limoeiro) e um ponto ‘B’ (que é a Casa Forte): entre esses dois pontos, há uma reta; e
como se sabe, em uma reta há uma gama de outros vários pontos. Cada movimento e
pausa de Moura, cada espaço e lugar, é percorrido de forma a criar sua história. Moura,
arrancada de seu berço, tenta achar outro ninho que lhe dê a guarida emocional de que
necessita. Quantos existem de nós, ainda buscando, ainda deslocados de um lugar que
nos dê o espaço de sermos o que somos, de desenvolver plenamente nosso potencial e
subjetividade. Moura traz isso à tona em sua jornada ambiental: percebe-se que para
encontrarmos a paz interior, é necessário que encontremos um lugar que se encaixe às
nossas necessidades; não apenas as básicas, mas ao abraçar emocional que faz com que
o espaço físico dê às mãos com o nosso espaço interno, nos possibilitando então ser
tudo o que somos, sem máscaras sociais ou personas criadas. A busca incessante de
Moura, sua falta de paz e lugar, talvez se dê pelo fato de que lar, no fim, seja justamente
um lugar em que possamos estar nus de alma; frágeis, sem medo de julgamentos ou
recriminações; sem o risco de ataques ou necessidade de estar-se sempre armados.
Os espaços de Moura, ao serem analisados, trazem à tona justamente essa
discussão: quais as implicâncias para a vida de uma pessoa de um lar perdido e nunca
mais achado? Até que ponto uma casa é verdadeiramente um lar? Até quando se deve
tentar reconstruir a exata noção de segurança que um dia se teve? Ao mudarmos
juntamente com nossos espaços, será que nos perdemos se eles na verdade não
refletirem o que somos realmente? A Casa Forte de Maria Moura era, antes de tudo,
uma mensagem: mas não uma mensagem para si, e sim para os outros; para a imagem
que ela gostaria que os outros tivessem dela; para a representação social de poder que
ela almejava. Moura pensava assim conseguir o poder e a segurança que sempre
desejou. Mas o vazio de si continuava: sua busca ainda não havia cessado. Pergunto-me
se encontrar o seu ‘canto no mundo’ na verdade é encontrar não o canto que lhe deixe
ser a versão mais forte de si; mas sim um canto que lhe deixe ser a versão mais frágil de
si. Concluo então que um lar é na verdade uma casa-caracol: um lugar que abrace o seu
corpo no formato mais mole e vulnerável que ele possa ter.
Para finalizar, devo dizer que depois de dois anos ao lado de Moura, termino este
estudo sem me despedir dela. Não sentirei sequer saudades: para sentir saudades é
necessária a ausência, a falta, o vazio específico. E Maria Moura continua aqui onde
sempre esteve desde o início de nossa jornada: dentro de mim. Ainda a dialogar comigo,
ainda a me mostrar seus espaços e porquês, ainda a ser lugar em mim e a me gerar
reflexões.
121
Seguimos agora, eu e ela, juntas, para outras páginas e outros espaços. Vamos
mais completas porque percebemos que ao descobrir lugares, ao interpretá-los,
descobrimos e interpretamos também a nós mesmas.
A palavra sagrada diz: Dize-me com quem tu andas que te direi quem és. Descobri
que os estudos que voltam o seu olhar para as pessoas e os ambientes dizem: dize-me
quais as tuas relações com os ambientes da tua vida que te direi quem és. Nossos
espaços são formadores de nós: nos significam, nos limitam e nos expandem enquanto
seres; são veículos de nossas experiências; palcos de nossas vidas e guardadores de
nosso tempo. Sou não o que me acontece, mas o que faço com o que me acontece; sou
não o que olho, mas o que faço com o que olho; sou não o que leio, mas o que faço com
o que leio.
Então, obrigada, Sinhazinha. Obrigada Maria Moura. Obrigada senhora Dona
Moura da Casa Forte. Porque ao estudar os seus lugares, pude também estudar os meus.
Por ver suas várias existências dentro de uma única vida, pude também despertar para as
minhas várias existências. Por entender os porquês de seus espaços, pude também
entender alguns porquês dos meus. Acho que um estudo relevante é aquele que
adiciona, que gera reflexões, que ensina, que agrega valor, que modifica positivamente,
que transforma, que faz crescer. Então, posso dizer que este estudo me foi relevante e
essencial. Assim como tudo o que coube nos dois anos que o fizeram nascer pouco a
pouco em mim. Termino hoje não apenas esta dissertação de mestrado, mas uma fase da
minha vida. Tudo foi válido: e os lugares criados permanecem em mim.
122
VII - Referências Bibliográficas Alves, R. (2003). As cores do crepúsculo: a estética do envelhecer. Campinas: Papirus. Assis, M. (s/d). Memorial de Aires. São Paulo: Editora Escala. Assmar, O. B. (2006). Uma leitura de O Lampião, de Rachel de Queiroz. Rio de Janeiro: Publit Soluções Editoriais. Ataide, V. (1974). A narrativa de Ficção. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil. Bachelard, G. (1998). A poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes. Bakhtin, M. (1996). The Dialogic Imagination. Austin: University of Texas Press. Bandeira, P. (1989). O fantástico mistério de Feiurinha. São Paulo: FTD. Barbosa. M. L. D. L. (1999). Protagonistas de Rachel de Queiroz: caminho e descaminhos. Campinas: Pontes. Barthes, R. (1984). O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes. Bartucci, G. (2002). Psicanálise, Arte e Estéticas de Subjetivação. Rio de Janeiro: Imago. Belluzzo, A. M. de M. (1992). Voltolino e as raízes do modernismo. São Paulo: Editora Marco Zero. Bergez, D. Barbéris, P. Biasi, P. Marini, M. Valency, G. (1997). Métodos críticos para a análise literária. São Paulo: Martins Fontes. Birman, J. (1996). Por uma estilística da existência - sobre a Psicanálise, a Modernidade e a Arte. São Paulo: Editora 34. Bredella, L. (1989). Introdução à didática da literatura. Lisboa: Dom Quixote. Bruno, H. (1977). Rachel de Queiroz. Rio de Janeiro: Editora Cátedra. Campbell, J. (1990). O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athena. Campbell, J. (2003). Reflexões sobre a arte de viver: em companhia de Joseph Campbell. Osbon, D. (org.). São Paulo: Gaia. Campos de Carvalho, M. I. (1993). Psicologia Ambiental, algumas considerações. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 9(2), 435-447. Candido, A. Rosenfeld, A. Prado, D. A. Gomes, P. E. S. (2005). A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva.
123
Carroll, L. (2006). Alice no País das Maravilhas. São Paulo: Martin Claret. Chevalier, J. Gheerbrant, A. (1998). Dicionário de símbolos. 12ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio. Chiappini, L. Brescianini, M. S. (orgs.). (2002). Linguagem e cultura no Brasil: Identidades e fronteiras. São Paulo: Cortez. Contrim, G. (1996). História e Consciência do Brasil. São Paulo: Editora Saraiva. Corraliza, J. A. (2000). Emoción y Ambiente. In: Aragonés, J.I. y Amérigo, M. (eds.), Psicología Ambiental. Madrid: Pirámide (Capítulo 3: Emoción y Ambiente, pp. 59-76). Cunha, E. (2002). Os Sertões. v.1. A terra e o homem. Fortaleza: ABC editora. Da Matta, R. (1997). A Casa e a Rua. Rio de Janeiro: Rocco. Deleuze, G. (1990). Imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense. Dídimo, H. (2002). A palavra e a PALAVRA. Fortaleza: Editora UFC. Eco, U. (1988). Obra aberta. Forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo: Perspectiva. Facina, A. (2004). Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. Faraco, C. E. Moura, F. M. (1993). Literatura Brasileira. São Paulo: Editora Ática. Fischer, G-N. (1989). La notion de territoire. In: Psychologie des Espaces de Travail. Paris: Armand Colin Éditeur. Foucault, M. (2004). Verdade, poder e si mesmo – Ditos e escritos. Ética, sexualidade, política. Vol. V. São Paulo: Forense Universitária. Freyre, G. (2000). Sobrados e mucambos: decadência do patriacardo rural e desenvolvimento do urbano: introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil. Rio de Janeiro: Record. Gil, J. (1988). Fernando Pessoa ou a Metafísica das sensações. Lisboa: Relógio D’água. Giuliani, M. V. (2004). O lugar do apego nas relações pessoas-ambiente. In: Tassara, E. Rabinovich, E. Guedes, M. Psicologia e Ambiente. São Paulo: Educ. Hay, R. (1998). Sense of Place in Developmental Context. Journal of Environmental Psychology, v. 8, pp. 5-29. Ittelson, W. Proshansky, H. Rivlin, L. Winkel, G. (1974). An Introduction to Environmental Psychology. New York: Holt, Rinehart and Winston Inc.
124
Langaro, J. A. (2006). De sinhazinha a jagunça/De senhorinha a senhora: uma leitura de Memorial de Maria Moura e Dôra, Doralina. Universidade Estadual do Oeste do Paraná, campus de Cascavel. Leite, D. M. (2002). Psicologia e Literatura. São Paulo: HUCITEC: Ed. UNESP. Lewin, K. (1973). Princípios de Psicologia Topológica. São Paulo: Cultrix. Lima, S. T. de L. Percepção Ambiental e Literatura: Espaço e Lugar no Grande Sertão: Veredas. In: DELRIO, V. OLIVEIRA, L. de. (1999). Percepção Ambiental – A experiência Brasileira. São Paulo: Studio Nobel; Editora da UFSCAR. Lispector, C. (1973). Água viva. São Paulo: Círculo do livro. Lispector, C. (1999). A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco. Machado, A. (1997). Memorial de Aires. São Paulo: Ed. Globo. Manzo, L. C. (2003). Beyond house and haven: toward a revisioning of emotional relationships with places. Journal of Environmental Psychology, 23, 47-61. Matta, R. da. (1997). A casa & a rua. Rio de Janeiro: Rocco. Melo Neto, J. C. (1998). Melhores Poemas. São Paulo: Global Editora. Merleau-Ponty, M. (1980). Merleau-Ponty. Seleção de textos de Marilena de Souza Chauí. São Paulo, Abril Cultural. Coleção os Pensadores. Moisés, M. (1987). A análise literária. São Paulo: Editora Cultrix. Oliveira, M. L. C. (1999). A leitura e as miragens do virtual. In: Lobo, L. Fronteiras da Literatura. Rio de Janeiro: Dumará. Ostrower, F. (1999). Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Vozes. Pankow, G. (1988). O homem e seu espaço vivido. Campinas: Papirus. Pedersen, D. M. (1997). Psychological Functions of Privacy. Journal of Environmental Psychology, 17, 147-156. Pol, E. (1996). La apropriación del espacio. In: L. Iñiguez & E. Pol (Orgs.), Cognición, representación y apropriación del espacio (Monografies psico-socio-ambientals, n. 9, pp. 45-62). Barcelona: Publicacions de la Universitat de Barcelona. Pontes, E. (1992). Espaço e Tempo na Língua Portuguesa. Campinas: Ed. Pontes. Prado Jr., B. (2000) Alguns ensaios. São Paulo: Paz e Terra. Proshansky, H. M., Fabian, A. K. & Kaminoff, R. (1983). Place-identity: physical world socialization of the self. Journal of Environmental Psychology, 3, 57-83.
125
Quitana, M. (1977). A Vaca e o Hipógrifo. Porto Alegre: Guaratuja. Queiroz, R. (1992). Memorial de Maria Moura. São Paulo: Siciliano. Radaelli, J. (2007). O sujeito e a ficção da escrita. Uma articulação entre Psicanálise, Literatura e Educação. Universidade de São Paulo. Faculdade de Educação. Ramos, G. (1999). Vidas Secas. Rio, São Paulo: Record. Ramos, M. L. (1972). Fenomenologia da Obra Literária. Rio de Janeiro: Forense. Rivlin, L. G. Olhando o passado e o futuro: revendo pressupostos sobre as inter-relações pessoa-ambiente. Estud. psicol. (Natal) [online]. 2003, vol. 8, no. 2 [citado 2007-09-26], pp. 215-220. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-294X2003000200003&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 1413-294X. Rocha, R. (1976). Marcelo, marmelo, martelo. Rio de Janeiro: Salamandra. Rosenfeld, A. Literatura e personagem. in: CANDIDO, A. Rosenfeld, A. Prado, D. A. Gomes, P. E. S. (2005). A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva. Saint-Exupéry, A. (1987). O Pequeno Príncipe. Rio de Janeiro: Agir. Santos, M. (1979). Espaço e Sociedade. Petrópolis: Ed. Vozes. Santos, M. (1982). Pensando o Espaço do Homem. São Paulo: Hucitec. Santos, L. A. B. & Oliveira, S. P. de. (2001). Sujeito, tempo e espaço ficcionais. São Paulo: Martins Fontes Schpun, M. R. (2002). Lé com lé, cré com cré? Fronteiras móveis e imutáveis em Memorial de Maria Moura. In: Chiappini, L. Brescianini, M. S. (orgs.). Linguagem e cultura no Brasil: Identidades e fronteiras. São Paulo: Cortez, 2002. Soares, A. (2001). Gêneros literários. São Paulo: Editora Ática. Sockza, L. (2005). Contextos Humanos e Psicologia Ambiental. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Sommer, R. (1973). Espaço Pessoal. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. Speller, G. M. (2005). A importância da vinculação ao lugar. In: Sockza, L. Contextos Humanos e Psicologia Ambiental. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Stefanovic, I. L. (1998). Phenomenological encounters with place: Cavtat to Square One. Journal of Environmental Psychology, 18, 31-44. Tuan, Yi-Fu. (1980). Topofilia – um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo, Rio de Janeiro: Difel.
126
Tuan, Yu-Fu. (1983) Espaço e Lugar – a perspectiva da experiência. São Paulo: Difel. Twigger-Ross, C. L. Uzzell, D. L. (1996). Place and Identity Processes. Journal of Environmental Psychology, 16, 2005-220. Valera, S. Psicologia Ambiental: Bases Teóricas y Epistemológicas. In L. Iñiguez & E. Pol (Orgs.). (1996). Cognición, representación y apropriación del espacio (Monografies psico-socio-ambientals, n. 9, pp. 02-14). Barcelona: Publicacions de la Universitat de Barcelona. Vasconcelos, J. M. de. (1994). O meu Pé de Laranja Lima. São Paulo: Melhoramentos.
Livros Grátis( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download: Baixar livros de AdministraçãoBaixar livros de AgronomiaBaixar livros de ArquiteturaBaixar livros de ArtesBaixar livros de AstronomiaBaixar livros de Biologia GeralBaixar livros de Ciência da ComputaçãoBaixar livros de Ciência da InformaçãoBaixar livros de Ciência PolíticaBaixar livros de Ciências da SaúdeBaixar livros de ComunicaçãoBaixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNEBaixar livros de Defesa civilBaixar livros de DireitoBaixar livros de Direitos humanosBaixar livros de EconomiaBaixar livros de Economia DomésticaBaixar livros de EducaçãoBaixar livros de Educação - TrânsitoBaixar livros de Educação FísicaBaixar livros de Engenharia AeroespacialBaixar livros de FarmáciaBaixar livros de FilosofiaBaixar livros de FísicaBaixar livros de GeociênciasBaixar livros de GeografiaBaixar livros de HistóriaBaixar livros de Línguas
Baixar livros de LiteraturaBaixar livros de Literatura de CordelBaixar livros de Literatura InfantilBaixar livros de MatemáticaBaixar livros de MedicinaBaixar livros de Medicina VeterináriaBaixar livros de Meio AmbienteBaixar livros de MeteorologiaBaixar Monografias e TCCBaixar livros MultidisciplinarBaixar livros de MúsicaBaixar livros de PsicologiaBaixar livros de QuímicaBaixar livros de Saúde ColetivaBaixar livros de Serviço SocialBaixar livros de SociologiaBaixar livros de TeologiaBaixar livros de TrabalhoBaixar livros de Turismo