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Mrcio Couto Henrique**
SER EDUCADOR:
UMA EXPERINCIA
MODIFICADORA DE SI*
PO
NT
O
DE
V
IST
A
m agosto de 2004, ministrei oficina intitulada Afinal, O que
SoSociedades Indgenas? juntamente com Jane Felipe Beltro, noE
Encontro Regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da
Cincia(SBPC), realizado em Belm do Par. Em meio s discusses,
narreiaos participantes algumas de minhas experincias de contato
com po-vos indgenas poca em que trabalhei como Chefe do Servio de
Edu-cao na Fundao Nacional do ndio (Funai), na AdministraoRegional
de Belm. Basicamente, utilizei essas experincias para dis-cutir com
os participantes uma srie de preconceitos dos quais os
povosindgenas ainda so vtimas no Brasil e tambm para discutir
categoriastais como etnocentrismo, civilizao e cultura. At hoje,
lembro-me deque, ao final da oficina, uma das participantes veio me
dizer do espantoque teve ao me ver ainda jovem e, segundo ela, com
tantas histriaspara contar.
De fato, sempre notei que levar para a sala de aula
experinciasvividas fora do mbito escolar constitui um diferencial
para os alunos egeralmente facilita a compreenso e a interao nas
discusses. Ocorreque, se todos ns temos experincias mltiplas
vividas fora da escola,nota-se que nem todos os educadores
conseguem estabelecer relaesentre o que se vive fora e o que se
discute dentro da escola.
Uma das disciplinas que mais me marcou no doutorado foi AHistria
da Sexualidade de Michel Foucault, ministrada pelo professorErnani
Chaves. As lies que aprendi sobre o mestre francs foram ines-
A VIAGEM DO CONHECIMENTO
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190 , Goinia, v. 13, n. 1, p. 189-202, jan./jun. 2010.educ
quecveis, mas gostaria aqui de fazer meno a uma viagem que
fiznessa disciplina, mesmo sem ter sado da sala de aula. Na
introduo dovolume 2 da sua Histria da Sexualidade, Foucault (1984)
explica aosleitores as modificaes que teve que fazer no percurso de
sua pesqui-sa. Diz ele que todos os seus esforos de pesquisa so
feitos no sentidode [...] mudar-se a maneira de ver, para modificar
o horizonte daquiloque se conhece e para tentar distanciar-se um
pouco (FOUCAULT,1984, p. 15). Esse distanciamento me parece ser a
chave da questo! necessrio distanciar-se de si, das coisas que
estamos acostumados aver diariamente e, mais precisamente,
necessrio distanciar-se damaneira como estamos habituados a ver as
coisas que vemos diaria-mente. Esse ato de tomar distncia das
coisas Foucault (1984, p. 15)compara com uma viagem e, para ele, a
[...] viagem rejuvenesce ascoisas e envelhece a relao consigo
mesmo. Em outras palavras, quan-do viajo, conheo outros mundos,
outras formas de agir e de pensar,outras concepes do que significa
a felicidade, a vida, a morte etc. Porisso, a viagem rejuvenesce as
coisas. Por outro lado, o conhecimentodesses outros faz com que eu
adquira mais experincia, com queamadurea minhas prprias ideias, da
porque a viagem envelhece arelao consigo. J no consigo mais olhar
para as coisas como olhavaantes, pois agora sei que existem outras
respostas possveis para asmesmas questes que enfrento no dia a dia.
nesse sentido que Foucaultdiz que a viagem uma experincia
modificadora de si.
O leitor mais acostumado com as discusses antropolgicas dirque
essas reflexes do filsofo francs sobre o distanciamento so
re-correntes na Antropologia desde o incio desta cincia. verdade!
Masconsiderando que a atitude antropolgica no exclusividade
dosantroplogos, no vejo problema em iniciar a discusso sobre
odistanciamento recorrendo a um filsofo, ainda mais tendo sido
Foucaultterico fundamental para a renovao de temticas de pesquisa
em di-versas reas das chamadas Cincias Humanas.
Mas o que essa discusso toda tem a ver com o trabalho do
pro-fessor em sala de aula? Tudo! Digo isso porque, se muitas vezes
noconseguimos utilizar nossas prprias experincias em sala de aula,
porque no conseguimos olhar para as coisas de maneira diferente
daque estamos acostumados. Todos os dias fazemos viagens dentro
oufora de casa, mas no permitimos que elas constituam uma
experinciamodificadora de ns mesmos! Por isso, muitas vezes no
conseguimosperceber que o mundo nossa volta que tambm, em certo
sentido,
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191, Goinia, v. 13, n. 1, p. 189-202, jan./jun. 2010.educ
o mundo de nossos alunos nos oferece inmeras possibilidades
derecursos que podem ser levados para dentro das salas de aula.
Numa outra situao, lembro que ministrava a disciplina
Meto-dologia da Histria em determinada faculdade em Belm e
precisavaexplicar aos alunos a noo de estranhamento, que seria o
equivalen-te noo de distanciamento utilizada por Foucault. Depois
de discu-tir o texto Ritual do Corpo entre os Nacirema, em que o
antroplogoHorace Minner (1956) realiza interessante exerccio de
estranhamentoda sociedade norte-americana, olhando-a de maneira
distanciada, pediaos alunos que fizessem seu prprio exerccio de
estranhamento, a par-tir da observao de algo que lhes fosse
familiar. Para meu espanto,nenhum aluno das duas turmas em que
ministrava essa disciplina apre-sentou qualquer exerccio na data
marcada. Para facilitar o trabalho,dando-lhes ideia de como a
atividade poderia ser desenvolvida, haviafeito meu prprio exerccio
de estranhamento para dividir com os alu-nos. Meu esforo, a partir
da leitura do conto O Espelho, de Machadode Assis (1996), resultou
no pequeno texto abaixo.
A CAIXA DE SONHOS
No intrigante conto O Espelho, o romancista Machado de Assisps
na boca do personagem Jacobina uma interessante reflexosobre a
natureza da alma. Em primeiro lugar, dizia Jacobina,no h uma s
alma, h duas. Cada criatura humana traz duasalmas consigo: uma que
olha de dentro para fora, outra que olhade fora para dentro. Esta
ltima a que o personagem chama denossa alma exterior. H casos em
que a alma exterior pode serum esprito, um fluido, um homem, um
livro, uma mquina, umpar de botas. Tal como a primeira alma, o
ofcio dessa segunda transmitir a vida. Estas duas almas completam o
homem. Aqueleque perde uma delas, perde metade da existncia. H
mesmo ca-sos em que a perda da alma exterior implica a da existncia
in-teira. Em outras palavras, a perda da alma exterior, nesses
casos,implica na morte do perdedor. No caso de Jacobina, sua
almaexterior era o ttulo de alferes da Guarda Nacional.Gostaria de
refletir sobre a alma exterior de grande parte daspessoas do mundo
dito civilizado: a Caixa de Sonhos. Quandode seu surgimento, ela s
era acessvel aos muito ricos, mas des-de sempre se constituiu num
objeto de desejo de todos, pobres ou
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192 , Goinia, v. 13, n. 1, p. 189-202, jan./jun. 2010.educ
ricos. A razo de todo esse encantamento com a Caixa devidaao
fato de que ela tem o poder mgico de refletir imagens dequaisquer
coisas, o que causa um verdadeiro fascnio nas pesso-as. No incio,
as imagens refletidas na Caixa eram em preto ebranco, mas hoje elas
so a cores, o que s aumentou seu fasc-nio. Tal como as pessoas,
coloridos tambm so os sonhos, fan-tasias e ideologias que a Caixa
reproduz, sempre com ar deveracidade.Atualmente, pode-se ver que
algumas casas tm vrias Caixasde Sonhos, mas nem sempre foi assim.
Antes, quem no tinhauma Caixa sequer, assistia as imagens na casa
de quem tinha, oque conferia ao dono da casa certo status. Hoje
elas tambm sode tamanhos diferentes e bem mais sofisticadas, at
mesmo per-mitindo s pessoas escolherem os programas que
alimentaroseus sonhos e fantasias. Parece mesmo existir uma relao
entr eo tamanho da fantasia e o tamanho da Caixa. Em algumas
situa-es, quanto maior a Caixa, parece que maior o status ou,
pelomenos, a sensao de bem estar do dono. Mas em outras, o ta-manho
da Caixa vai exatamente na direo contrria: quantomenor ela for,
mais orgulhoso ficar o dono, ostentando-a napalma da mo, como se
carregasse a prpria alma. Os que nopodem carregar a alma nas mos,
olham de soslaio.Causa certo espanto perceber que algumas pessoas
passam porprivaes a fim de acumularem dinheiro para compr-la.
Vriasoutras situaes nos indicam o fascnio que a Caixa de
Sonhosexerce sobre as pessoas. Elas so objeto de desejo de ladres;
bastante comum tambm vermos casais em processo de separa-o
brigando, muitas vezes publicamente, pela posse da Caixade Sonhos;
em algumas casas, os filhos tm Caixa em seu pr-prio quarto; em
algumas famlias, h briga para assistir a Caixaem determinados
horrios; em outras, todos assistem a Caixajuntos.J houve quem me
dissesse que em sua casa, a briga maior para ver a quem caber o
controle da Caixa de Sonhos, poisatualmente, j possvel acessar a
Caixa distncia, bastandoter em mos um acessrio que, direcionado
para ela, faz comque as imagens apaream automaticamente, sendo
possvel defi-nir sries de imagens preferenciais. Ou seja, quem tem
o acess-rio em mos, tem o controle da Caixa de Sonhos, o que no
deixa
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193, Goinia, v. 13, n. 1, p. 189-202, jan./jun. 2010.educ
de significar um controle sobre todos os que esto diante
dela.Eis o motivo das brigas! Certos programas conseguem
reunirmilhares de pessoas diante das Caixas, em clima de festa,
comdireito a bebida, comida...Pessoas que aparecem na Caixa, muito
embora apenas repre-sentando papis, muitas vezes so tratadas como
deuses e noconseguem andar nas ruas sem serem assediadas, correndo
orisco de terem suas roupas rasgadas, seus cabelos arrancadosou
serem beijadas mesmo contra sua vontade. E tais pessoas de-vem
corresponder a esse assdio, mantendo o riso, a simpatia,muito
embora tais caractersticas s lhes sejam peculiares naCaixa de
Sonhos.A Caixa de Sonhos lana modas, costumes, modifica a
lingua-gem das pessoas. Os mais encantados chegam a pautar sua
vidaou seu comportamento em funo do que a Caixa apresenta
comovalor. Cozinheiros e cozinheiras, empregadas domsticas, mui-tas
vezes preparam os alimentos nos intervalos das sries de ima-gens
veiculadas na Caixa.Mas nem todos se entregam Caixa de Sonhos de
corpo e alma.Muitos acusam-na de desestruturar as famlias,
corromper osvalores; alguns pais probem seus filhos de lig-la;
ouve-se atreaes Caixa de Sonhos em msicas com letras agressivasonde
se diz que a Caixa me deixou burro, muito burro, demais.Agora todas
as coisas que eu penso me parecem iguais. Nada,no entanto, parece
conseguir arranhar a imagem da Caixa. Defato, parece que, assim
como no conto de Machado de Assis ottulo de alferes eliminou o
homem, na sociedade ocidental ditacivilizada a Caixa de Sonhos
eliminou de muitos de ns uma par-te considervel de humanidade.A
alma exterior que antes era o sorriso dos filhos, o olharterno dos
pais, o beijo da namorada, o afago do marido, o poe-ma para a
mulher amada foi eliminada pela Caixa de Sonhos.
DE VOLTA ESCOLA
O fato de nenhum dos meus alunos ter conseguido realizar o
exer-ccio, mesmo depois de ler o texto de Horace Minner e o meu
prprio,alm de me deixar bastante frustrado, fez-me refletir ainda
mais sobreessa dificuldade que no exclusiva daquele grupo de
alunos. De certa
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194 , Goinia, v. 13, n. 1, p. 189-202, jan./jun. 2010.educ
maneira, esse tipo de estranhamento requer de ns educadores
postu-ra semelhante a dos antroplogos. Roberto Cardoso de Oliveira
(1996,p. 13-17), importante antroplogo brasileiro, afirmou que os
trs mo-mentos ou etapas da apreenso dos fenmenos sociais feita pelo
an-troplogo so o olhar, o ouvir e o escrever. Com relao ao olhar,o
autor diz que nossa maneira de ver a realidade influencia
previa-mente o modo como dirigimos nosso olhar para o objeto de
nossapesquisa. Algo semelhante ocorre quanto ao ouvir, pois a
teoria so-cial que adquirimos durante nossa formao acadmica tambm
pr-estrutura o nosso olhar. no momento de escrever que, de fato,
oantroplogo cumpre sua mais alta funo cognitiva, iniciando
propri-amente o processo de textualizao dos fenmenos scioculturais
ob-servados no campo.
Talvez esteja faltando a ns educadores exatamente esse tipo
deexerccio, de (re)aprender a olhar, ouvir e, sobretudo, escrever.
Assim,todos os dias temos acesso a experincias nossas ou de outras
pessoasque poderiam ser transformadas em algo que pudesse ser
trabalhado emsala de aula, mas nossos olhos e ouvidos esto to
massacrados pelocotidiano que mal conseguimos refletir sobre nossa
realidade a pontode a transformarmos em texto. Se considerarmos
como Cardoso de Oli-veira (1996) que o ato de escrever um ato
igualmente cognitivo,ao no escrever estamos abrindo mo da
possibilidade de exercitar nos-sa capacidade de elaborar descries e
narrativas, aprofundar nossasanlises e consolidar nossos
argumentos.
Em setembro de 2005, tive a oportunidade de exercitar
essasideias com um grupo de alunos do Curso de Especializao em
Cinciase Matemtica, em Abaetetuba, Par, promovido pelo
Educimat/UFPA1.A disciplina era Antropologia da Educao e os alunos
eram graduadosem Matemtica, atuando como professores nos municpios
paraensesde Abaetetuba, Limoeiro do Ajuru, Igarap Miri, Concrdia do
Par,Bujaru e Moju. Depois de discusso mais terica e de delimitar os
cui-dados que devemos ter com nossa postura em campo, elaboramos
rotei-ro bsico de perguntas que deveriam ser feitas aos informantes
ouinterlocutores, orientei os alunos a realizarem exerccio de
trabalho decampo em que deveriam identificar os saberes matemticos
nos seguin-tes lugares: na oficina de produo de brinquedos de
miriti2, feira doaa3, marcenaria e serraria. A turma foi dividida
em grupos, que foramliberados durante uma manh para realizar a
tarefa. tarde, os alunosdeveriam apresentar o resultado do trabalho
de campo, via atividade
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195, Goinia, v. 13, n. 1, p. 189-202, jan./jun. 2010.educ
que evidenciasse como seria possvel levar o conhecimento
adquiridona pesquisa para a sala de aula.
A apresentao dos trabalhos tarde mostrou que a atividade foibem
sucedida e que os grupos se empenharam em executar a tarefa
commuito afinco. Todos apresentaram sua experincia de campo, sendo
quemuitos fizeram questo de demonstrar satisfao por estarem
realizan-do exerccio de pesquisa de campo pela primeira vez. Foi
consenso apercepo de que este tipo de trabalho bastante acessvel
aos profes-sores e que eles podem dinamizar suas aulas dessa forma,
inclusiveenvolvendo os alunos. No relatrio da pesquisa de campo
apresentadopelo grupo que visitou uma oficina de produo de miriti,
os alunosconcluram que
[o] arteso estudou at a 5 srie e afirma ter sido um bom alunode
Matemtica, sendo esta disciplina uma das suas favoritas.Para ele os
conhecimentos matemticos obtidos na escola o aju-daram bastante na
produo dos artesanatos de miriti nos se-guintes aspectos: na
proporcionalidade, atravs dela possvelsaber a quantidade de
matria-prima necessria para produzirdeterminada quantia de
brinquedos; na aritmtica, atravs damultiplicao e diviso do nmero de
peas necessrias para semontar uma determinada quantidade de
produtos; na equao,atravs do processo de produo envolvendo a
quantidade deprodutos, o tempo para produzi-los e o preo para venda
dosmesmos (PINHEIRO, 2005).
Na apresentao das atividades que evidenciassem como seriapossvel
levar o conhecimento adquirido na pesquisa para a sala de aulaos
alunos foram bastante criativos, explorando ao mximo as
possibili-dades de exerccio na matemtica, inclusive ensejando
debates em tor-no de questes especficas da rea, deixando o
professor da disciplinamuitas vezes viajando, em sentido bem
distinto do proposto porFoucault...
Tambm em Abaetetuba, ao ministrar Antropologia da Educaopara
turma de professores que trabalham com Sries Iniciais, pedi aalguns
alunos que tentassem transformar em texto alguma das
muitasexperincias interessantes que eles narravam nas aulas. A
aluna MarilyFernandes de Souza (2005), do municpio de Concrdia do
Par, acei-tou o desafio e produziu o texto a seguir.
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196 , Goinia, v. 13, n. 1, p. 189-202, jan./jun. 2010.educ
Uma experincia inusitada4
Essa histria se passou em meados de 1994, em perodo eleitoral
nointerior do Maranho, no municpio de Montes Altos, numa
aldeiaKrikati.Nessa poca morava em Belm e, a convite de uma cunhada
que esta-va candidata a Deputada Estadual no Maranho, fomos eu, meu
ex-marido e trs casais de amigos participar do comcio na aldeia
dosndios Krikati, no mesmo Estado. Por solicitao de minha
cunhada,seu irmo a ajudaria em sua campanha poltica levando um trio
deforr para animar seu comcio. Bom, importante lembrar que
aoaceitarmos o convite nos organizamos de forma a no perder um
smomento na aldeia: filmadora, mquina fotogrfica e muita
cerveja,seria uma grande festa, afinal iramos conhecer ndios de
fato.Viajamos aproximadamente 10h. Claro! amos parando,
parecamosrealmente turistas! Ao chegarmos em Montes Altos tomamos
banho eseguimos numa estrada de cho perigosa e cansativa, estvamos
an-siosas para conhecermos o objeto da nossa aventura, os ndios.
Bem,finalmente avistamos a aldeia, nossos olhos brilhavam, nunca
nenhumde ns havia estado numa aldeia indgena. Ao adentrarmos, nos
ocor-reu o primeiro estranhamento: antenas parablicas, caminhes,
ca-minhonetes, casas ao invs de ocas, enfim, parecia uma
pequenacidade. Havia milhares de ndios, e logo percebemos que no
vera-mos ndios pelados ou com as vestimentas tpicas que nos
acostuma-mos a ver nos livros didticos.Mas o melhor, ou pior, ainda
estava por vir. Quando estacionamosos carros, minha cunhada logo
apareceu, e pediu que o trio de forrcomeasse logo o show, pois
todos estavam ansiosos para comear.Ao iniciar o show os ndios
comearam a zombar e gritavamMastruz com leite!, Mastruz com leite!
(Banda de forrrenomada naquela poca), e no conseguamos entender o
motivo.Logo em seguida um ndio se aproximou de nosso grupo e pediu
queum de ns se dirigisse at o cacique da aldeia. L o cacique
expli-cou que eles haviam sido enganados, pois minha cunhada
haviaprometido uma banda de forr e no um sanfoneiro, um zabumbeiroe
um tringulo. Avisou que ficaramos todos presos e um de nspoderia
sair para buscar a banda de forr. Entramos todos em de-sespero,
ouvamos eles dizerem que iam quebrar os carros, haviarevolta em
suas vozes.
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197, Goinia, v. 13, n. 1, p. 189-202, jan./jun. 2010.educ
Descobrimos com minha cunhada que funcionrios do INCRA j ha-viam
sido presos por vrios dias, amarrados a troncos que
inclusiveestavam bem visveis a nossos olhos, e eram alimentados com
sanguede um cachorro que um dos funcionrios do INCRA havia
matado.Da em diante estenderam-se as negociaes, alguns ndios
universi-trios nos ajudaram, amenizando a problemtica.O dia j
estava amanhecendo quando resolveram o impasse nos li-bertando,
porm minha cunhada deveria levar em uma data determi-nada por eles
uma banda maior, o que realmente aconteceu depois.Mas, claro, s ela
foi!Foi uma experincia e tanto! No incio ficamos muito revoltados,
en-tretanto, percebemos que os ndios ainda possuem valores muito
maislapidados que os nossos. E que o homem branco querendo
semprelevar vantagem em tudo, acaba rompendo com tais valores
ferindoessa relao entr e ndios e brancos. Hoje, principalmente aps
tertido essa experincia e de ter cursado a disciplina Antropologia
daEducao, tenho concepes acerca da cultura indgena completa-mente
diferente daquelas que possua, resultado de uma educaotradicional,
carregada de preconceitos.Marily Fernandes de SouzaConcrdia do Par,
19 de maio de 2006.
Note-se que a professora Marily Fernandes de Souza construiu
belae rica narrativa valendo-se de uma experincia inusitada ou uma
belaviagem, nos termos de Foucault. Ao aceitar o desafio de
textualizar essaexperincia, transformou-a numa experincia
modificadora de si mesma e,ao mesmo tempo, num ato cognitivo. De
objetos de nossa aventura, osndios Krikati passaram condio de
sujeitos de sua prpria histria,demonstrando forma peculiar de
apropriao dos cdigos de nossa cultura,revelando dinamismo cultural
que escapava ao olhar at ento precon-ceituoso da professora. Com
texto produzido por ela, enriquecido comelementos de sua experincia
de vida, a professora Marily Fernandes deSouza tem em mos
instrumento pedaggico que lhe abre a possibilidadede discutir com
seus prprios alunos noes tais como preconceito,etnocentrismo,
respeito pelas diferenas, identidade cultural, entre ou-tros. Ainda
mais se considerarmos que, muito possivelmente, seus
alunoscompartilham de muitos dos esteretipos que ela demonstrava
ter a res-peito dos ndios, esperando encontr-los pelados ou com as
vestimentastpicas que nos acostumamos a ver nos livros
didticos.
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198 , Goinia, v. 13, n. 1, p. 189-202, jan./jun. 2010.educ
OS NDIOS E A CARTA DE CAMINHA S AVESSAS
Outra experincia bastante satisfatria que tive foi durante
cursode Etno-Histria que ministrei para professores indgenas Temb,
Kaapore Guajajara, em Santa Ins, Maranho, organizado pelo
ConselhoIndigenista Missionrio (Cimi) e Funai, no ano de 2000. Em
uma dasatividades que programei, fizemos a leitura e discusso da
famosa Cartade Pero Vaz de Caminha. Depois disso, solicitei aos
ndios que elaboras-sem carta em grupo, com a viso (imaginria) dos
ndios sobre os primei-ros europeus que chegaram ao Brasil. O
destinatrio da carta deveria sero chefe ou cacique maior da aldeia.
Seria uma espcie de Carta de Ca-minha s avessas. O resultado
deixaria meus alunos de Metodologia daHistria com inveja... vejamos
alguns exemplos5:
CARTA 1: Aldeia Morro Branco, 22 de abril de 1500Il.mo.
Cacique,Disponho deste presente documento para comunicar-lhe que
te-mos invaso de pessoas estranhas em nossa terra. So pessoasaltas,
cheias de plos pelo rosto, peito e pernas. Seus ps so co-bertos de
um material que parece couro das caas que comemos,possuem canoas
com muitos detalhes e so muito grandes.No conseguimos compreender
suas falas, nem eles entendem nossalngua. Usam objetos brilhosos
nos pescoos que no sabemos oque , so muita gente nas canoas
grandes. Parece-nos que ca-ram do cu, so muito diferente que ns.
Usam tambm um objetosobre suas peles. No comem a nossa comida e nem
ns consegui-mos comer o que eles comem. Diante desse fato solicito
a presen-a de todos os parentes para v-los e experimentarmos a
carnedestes seres que so gordos.Atenciosamente,Sebastio Bento de S.
Lima
CARTA 2: O primeiro encontro com os Karayu no ceculo XVIIandando
numa canoa Eu e um companheiro. fazendo uma pesca-ria de flecha.
direpente fumos soprendido pro umas pessoas quenis no conhecia
eles. tinham as pelis mais bm clara de que anossa. os cabelos
louros. e as comidas deles ram totalmnte dife-rente do nossa. elas
no tm o meimos sabor do quanto osmuquidado qu fazemos na nosa
aldeia. eles mostraram um
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199, Goinia, v. 13, n. 1, p. 189-202, jan./jun. 2010.educ
arapurra qu e diferente dos nossos, que temos aqui na nossa
ter-ra. mostraram tambm um muntm qu tambm diferente do qunois
conhecemos. deu ate para faze meido.mostran tambm um parauah qu
este igual o nossos daqui. soas penas diferente, mais tudo isto foi
dificio de ns ci entende bmproque ns no tinha o meimos tronco
liguista. mais atraveis doacnos comvesamos um pouco. mas ditudo o
qu o capito delistm de bonito um colar qu so capito pode uza. Eu
ainda pdirpara ele mais no mi entendeu.aulado deli tinha uma coisa
to bonita, qu so capito pode uza.mais um delis tinham-se um colar
de frutinhas branca, logo Eulipdir para faz uma brasadeira. ele mi
deu. Mais ai Eu pesebirqu no era frutinha. lidei de volta.Ass
Carlos Kaapor
CARTA 3: Santa Ins, 27 de janeiro de 2000Carta ao leitor sobre a
chegada dos Europeus no Brasil.No incio, ou seja, como dizem antes
do descobrimento do talBrasil, ns indgenas vivamos com total
liberdade, no haviaperseguio, opresso e nem massacre. Em 1500,
precisamen-te 22 de abril aqui chegaram os portugueses vindo de um
lugarbem distante chamado Portugal. Que com certeza jamais sab-amos
a existncia desse pas. A caravela que aqui chegou eracomandado por
senhor chamado, Pedro Alvares Cabral, o gran-de mentiroso, com ele
veio um escrivo chamado Pero Vaz deCaminho, que tinha a misso de
registrar tudo. Inclusive sobrens, indgenas. Chegaram sem pedir
nenhuma permisso a ns,a terra que servia somente para caar
desenvolver nossas ati-vidades culturais, os rios eram para pescar,
as caas serviamde alimentos, nos tomaram tudo. Aps essa chegada
deles aquipara nos mudou tudo. apartir da ento no tnhamos
maissocego. Comearam nos matar por que nos no queriamos fa-zer o
que eles queriam com a gente, comearam tambm nosescravisar e hoje
estamos vivos graas a fora de resistnciaque temos, so 500 anos de
luta e umilhao, mas estamos naluta para reverter esse quadro.
Queremos ser reconhecidos quesomos pessoas diferentes que os nossos
conhecimentos sejamrespeitados por todos.Zezico Rodrigues
Guajajara.
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200 , Goinia, v. 13, n. 1, p. 189-202, jan./jun. 2010.educ
Mesmo com as dificuldades apresentadas no domnio da
lnguaportuguesa, posto que muitas vezes mais acostumados com o
relato oral eem sua prpria lngua, os professores indgenas aceitaram
e enfrentaramo desafio de textualizar sua compreenso dos primeiros
encontros edesencontros entre ndios e no-ndios no Brasil,
transformando o exerc-cio proposto, de fato, num ato cognitivo.
Outra experincia interessantenesse curso foi a elaborao de
calendrios a partir da realidade das aldei-as, substituindo o nome
convencional dos meses pelo aspecto que identi-fica o respectivo ms
em cada aldeia (fenmenos sociais ou da natureza).Por exemplo:
substituir janeiro por milho, dezembro por festa, fevereiropor rio
cheio etc. Essa atividade, comum em escolas indgenas espalha-das
pelo Brasil caberia a muitos municpios brasileiros, que muitas
vezestm que se adaptar a calendrio padronizado imposto pelas
secretarias deeducao, distante das realidades locais, geralmente
marcadas pelasazonalidade, em que as referncias so o tempo do aa,
do milho, otempo da cheia ou da seca e no janeiro e fevereiro, por
exemplo.
Figura 1: Carta de Caminha s avessas, escritapelo professor
indgena Carlos Kaapor,janeiro de 2000.
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201, Goinia, v. 13, n. 1, p. 189-202, jan./jun. 2010.educ
Infelizmente, no tive como acompanhar os desdobramentos des-sas
experincias no trabalho desses professores, mas a atitude deles
mefaz acreditar que, se no ampliaram essas experincias, pelo
menosvisualizaram novas possibilidades de encaminhar o trabalho com
seusalunos. De todo modo, a atitude dos professores indgenas, em
sua dispo-sio cognitiva antropofgica, sempre abertos para tudo
devorar e atri-buir novos significados (v-los e experimentarmos a
carne destes seresque so gordos, nas palavras do Guajajara Sebastio
Lima), serve comoindicativo da necessidade dessa disposio dialgica
que precisamos tercomo educadores, estando sempre dispostos a
enxergar as coisas de ma-neira diferente, a fim de que, junto com
nossos alunos, possamos alcan-ar uma compreenso maior do mundo em
que vivemos.
Notas
1 O Programa Educimat est localizado no Ncleo Pedaggico de Apoio
ao Desenvol-vimento Cientfico (NPADC)/UFPA unidade acadmica de
integrao na produode conhecimentos e em aes de educao continuada de
professores de Cincias eMatemtica, em todos os nveis de ensino,
inclusive no de ps-graduao lato e strictosensu. Trabalha na formao
de tutores em nvel de especializao lato sensu e produzcursos
distncia para a educao distncia , com produo de materiais
didticospara o ensino e a aprendizagem nessa rea.
2 O miriti (mauritia setigera), da famlia das palmceas, a
palmeira utilizada pelos osartesos de Abaetetuba para a produo dos
famosos brinquedos de miriti, recriando,em miniatura, a fauna e a
flora da Amaznia, alm de aspectos do imaginrio amaz-nico. Mas
veem-se tambm miniaturas de embarcaes, objetos do trabalho
cotidia-no, avies, figuras humanas e vrios outros. Os brinquedos de
miriti foram um doselementos considerados essenciais no Crio de
Nazar, de Belm do Par, sendo alvode registro no Instituto do
Patrimnio Histrico e Artstico Nacional como PatrimnioCultural
Imaterial Brasileiro. Os outros elementos considerados essenciais
so a Ima-gem Original encontrada por Plcido, a Imagem Peregrina, a
Trasladao, a ProcissoPrincipal do Crio, a Berlinda, a Corda, o
Almoo do Crio, o Arraial, as Alegorias e oRecrio. Cf. Dossi Iphan
(2006, p. 74).
3 O aa ( euterpe oleracea) uma palmeira com at 30m de altura,
folhas pinadas eflores ssseis. O fruto uma baga contendo amndoa
pequena e dura, chamado aa;fornece o refresco de aa, de sabor muito
apreciado nas regies produtoras. Ocorredesde a Amaznia at a Bahia.
Cf. Larousse Cultural (1988, p.6).
4 Agradeo a gentileza de Marily Fernandes de Souza pelo envio de
seu relato de expe-rincia e pela permisso para utilizao neste
artigo.
5 Conservei a grafia original das cartas, escritas pelos prprios
ndios.
-
202 , Goinia, v. 13, n. 1, p. 189-202, jan./jun. 2010.educ
Referncias
CARDOSO DE OLIVEIRA, R. O trabalho do antroplogo: olhar, ouvir,
escrever. Revistade Antropologia, v. 39, n. 1, p. 13-17, 1996.CARTA
DE CARLOS KAAPOR ao cacique de sua aldeia, Santa Ins, Maranho,
janeirode 2000. Acervo pessoal de Mrcio Couto Henrique.CARTA DE
SEBASTIO BENTO de S. Lima ao cacique de sua aldeia, Santa
Ins,Maranho, janeiro de 2000. Acervo pessoal de Mrcio Couto
Henrique.CARTA DE ZEZICO RODRIGUES Guajajara ao cacique de sua
aldeia, Santa Ins,Maranho, janeiro de 2000. Acervo pessoal de Mrcio
Couto Henrique.DOSSI IPHAN. Crio de Nazar. Rio de Janeiro: Ed. do
Iphan, 2006.FOUCAULT, M. Histria da sexualidade 2: o uso dos
prazeres. Rio de Janeiro: Graal,1984.LAROUSSE CULTURAL. Brasil A/Z.
So Paulo: Universo, 1988.MACHADO DE ASSIS, J. M. O espelho. In:
MACHADO DE ASSIS, J. M. Contos. Riode Janeiro: Paz e Terra, 1996.
p. 21-35.MINNER, H. O ritual do corpo entre os Sonacirema? Traduo
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503-507,1956.PINHEIRO, A. R. et al. Procurando a matemtica onde ela
est: no cotidiano das pessoas.Relatrio de pesquisa de campo da
disciplina Antropologia da Educao, ministrada porMrcio Couto
Henrique no Curso de Especializao para Formao de Tutores na ` rea
deCincias e Matemtica, turma de Matemtica. Abaetetuba, Par,
setembro de 2005, mimeo.Acervo pessoal de Mrcio Couto
Henrique.SOUZA, M. F. de. Uma experincia inusitada. Relato de
experincia feito na disciplinaAntropologia da Educao, ministrada
por Mrcio Couto Henrique no Curso de Especia-lizao para Formao de
Tutores na `rea de Cincias e Matemtica, turma de SriesIniciais.
Abaetetuba, Par, outubro de 2005, mimeo. Acervo pessoal de Mrcio
CoutoHenrique.
* Artigo destinado ao Curso Presencial de Formao Continuada de
Professores em EducaoIndgena, organizado pelo Educimat: Formao,
Tecnologia e Prestao de Servios em Educaoem Cincias e Matemticas,
integrante da Rede Nacional de Formao Continuada de Professoresde
Educao Bsica (MEC/SEIF/UFPA). Belm: Educimat, 2006.
** Doutor em Cincias Sociais/Antropologia pela Universidade
Federal do Par (UFPA). Professorna Faculdade de Histria e no
Programa de Ps-G raduao em Histria Social da Amaznia.