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KOTHE, Flavio - O Heroi

Oct 12, 2015

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  • Direo Benjamin Abdala Junior

    Samira Youssef Campedelli Preparao de texto

    Jos Pessoa de Figueiredo Arte

    Coordenao e projeto grUlco/miolo

    Antnio do Amaral Rocha Arte final

    Ren Etiene Ardanuy Joseval Souza Fernandes

    Capa Ary Almeida Normanha

    Impresso nas oficinas da Grfica Palas Athena

    ISBN 85 08 01157 1 ? .

    Todos os dkitos resenmdos pela Editora tica Rua Baio de Iguape, 110 - CEP 01507-900

    Cau

  • 8. Heris altos 52 Percursos e percalos 52 Heris nacionais 55 Um heri portugus 56 Reverses e transgresses 58

    9. Heris da modernidade 61 Heris da decadncia 62 Heris do avesso 64 Heris proletrios 66 Heris burgueses 67

    10. A narrativa trivial 69 Direita volver! 70 Esquerda volver! 75 Feminino/masculino 76

    11. Poticas e operrios 78 Poticas normativas 78 Heris proletrios 80

    12. Concluso 84 Esttica da recepo 84 Em sntese 88

    13. Vocabulrio crtico 90

    14. Bibliografia comentada 93

    Introduo

    Personagem plano e esfrico

    As habituais categorias "personagem plano" e "perso- nagem esfrico" foram propostas de um modo bastante Ilgciro por Forster numa conferncia, e, desde ento, tm sido repetidas por todos. Servem para caracterizar perso- nagens de traos simples e permanentes ou personagens que se modificam ao longo da narrativa, surpreendendo por sua complexidade. So categorias analiticamente ope- ricionaliuveis e teis, mas elas no apreendem o que efeti- vimente acontece com os personagens. So insuficientes

    I at6 mesmo enquanto termos: de certo modo, nada mais pla- no do que uma esfera; at quando se d a mesma resposta a perguntas e situaes diferentes, a resposta nunca a mesma. Mas isto no levado em conta quando se fala em personagem plano e esfrico! Por outro lado, um personagem aparentemente "redondo" pode ser intrinseca- mente muito plano.

    Essas categorias encaram o personagem como exis- tente em si no texto literrio, isolado do contexto social. Pressupem que a obra literria exista como um ente aut-

  • Sistema e dominante

    6

    nomo. Decorrem de uma viso idealista da literatura, da qual comungam todas as correntes modernas da crtica.

    Se, ao contrrio do que pensa o idealismo, no a conscincia que determina o ser, mas basicamente o ser social do homem que determina a sua conscincia, ento no apenas porque o sol brilha no alto e as rvores crescem para cima que o alto significa o elevado, enquanto o que est embaixo significa o inferior (afinal, o sol tam- bm declina e todos sabem que as rvores tambm crescem para baixo). A natureza capaz de fornecer compro- vantes para qualquer tipo de argumento. A natureza no

    i obriga a selecionar certas metforas: o modo de viver dos I homens que desperta a sensibilidade para certos aspectos I da natureza, como a grandeza do alto e a baixeza do

    baixo. Todas as sociedades histricas so sociedades de classes.

    Haver uma classe "alta" e uma classe "baixa" se I reflete de modo fundamental e necessrio na literatura, ! tanto no modo de ser dos personagens e enredos quanto

    As narrativas so sistemas cujas dominantes geral- mente tm sido algum tipo de heri. Na dominante est a chave do sistema. Um sistema um conjunto de elemen- tos coerentes entre si e distintos do seu meio. A domi- nante o seu princpio de organizao, o governo do sistema, assim como o governo a dominante do sistema social. O modo de produo sistemtico, inclusive o de produo literria, e o pensamento tambm opera por sis- temas. A dominante est presente em todos os elementos do sistema, mas, por sua vez, resulta de todos eles. Para entender o sistema, preciso entender a natureza da do- minante, mas, para isso, preciso captar e entender o que no cabe na natureza dessa dominante.

    !

    A dominante no mera diviso em captulos, cenas ou estrofes, tambm no simplesmente a estrutura pro- funda ou o gesto semntico da obra. A dominante con- texto textnalizado de modo partidrio ou totalizador para persuadir segundo a diretriz semntica traada pela orienta- o de sua estrutura profunda. E um poder secreto que impera em todo o sistema, o conjunto das conexes entre as partes, a razo ntima de suas nfases e seus escamotea- mentos. Ela o mais evidente e, ao mesmo tempo, o mais recndito do sistema. Pode ser aflorada subitamente num detalhe, numa expresso mais ou menos obscura, num elemento primeira vista inexplicvel. Mas para chegar a isso, preciso conhecer todo o sistema e as suas alter- nativas. A dominante a diretriz poltica do sistema, a teia ntima daquilo que vai acontecendo no sistema, a ins- tncia que decide o que nele cabe e o que nele no cabe, bem como o modo pelo qual a vai se integrar. Ela o que diferencia um sistema em relao aos demais, o que faz com que ele seja ele mesmo e no outro. E a prpria

    na hierarquia dos gneros e das obras. No sendo os con- ceitos "meta-fsicos", mas "fsicos", derivados da sociedade, e sendo a sua dinmica poltica decorrente do conflito entre a minoria privilegiada e a maioria fornecedora desses pri- vilbgios, ento a seleo de elementos da natureza para constituir conceitos e metforas (conceitos tambm so metforas) reflete essa dinmica social. Portanto, o incons- ciente das metforas o nvel poltico. Tem-se a sempre a identidade entre elementos no-idnticos, como nos con- ceitos.

    O "alto" e o "baixo" da sociedade se operacionali- zam e se entrecruzam de vrios modos na literatura. Ten- dem a ecoar a natureza fazendo o alto aparecer como elevado e mostrando o baixo como inferior, mas isto corresponde prpria possibilidade de a classe dominante dominar ideologicamente a sociedade.

    I

  • essncia enquanto vontade de poder. Defini-la abstrata- mente , porm, um modo de escamote-la. preciso fazer um percurso contrastivo pelos sistemas constitudos por obras, correntes e pocas, ao longo da histria da Literatura ocidental, para tentar captar na dominante do percurso do heri a prpria dominante do curso da histria.

    Enquanto dominante, o heri , portanto, estratgico para decifrar o texto como contexto estruturado verbal- mente. Este no um problema apenas literrio, mas atinge a todas as narrativas, seja qual for o seu veculo.

    Se todas as sociedades historicamente conhecidas fo- ram sociedades estruturadas em classes, trata-se de ver a conseqncia disso para a estmturao das suas obras narrativas (inclusive o teatro). Esta uma questo ex- cluda do horizonte idealista vigente nos estudos literrios, mas preciso no se assustar com essa questo: mesmo que no haja pensamentos inocentes, pens-la ainda no altera a realidade. Pelo contrrio, confirma-a mais uma vez.

    Se as obras literrias so sistemas que reproduzem em miniatura o sistema social, o heri a dominante que ilumina estrategicamente a identidade de tal sistema. Ras- trear o percurso e a tipologia do heri procurar as pe- gadas do sistema social no sistema das obras. Nenhuma obra literria consegue ser a totalidade, mas o percurso do heri pelo alto e pelo baixo pode ser um ndice de tota- liza~o, uma totalidade indiciada. As obras literrias maiores sugerem a totalidade, enquanto as obras triviais escapam dela e deixam que ela escape: no captam pro- priamente sequer a natureza d o fragmento de realidade para o qual se voltam.

    A trivialidade, ainda que entre ns seja preponderan- temente de direita, tambm pode ser uma trivialidade de esquerda. Ela tambm pode ser masculina ou feminina, dependendo tanto do phblico a que se volta quanto, con-

    comitantemente, da estrutura que assume. A televiso , hoje, o maior veculo da trivialidade. Comparada com a te- leviso, a literatura , entre ns, quase elitista. As revistas em quadrinhos - livros a imitar a televiso at mesmo antes de ela existir - so domnios absolutos da trivia- lidade: feminina nas fotonovelas, masculina nos gibis.

    Gneros maiores e menores Na Arte potica de Aristteles, os gneros literrios

    so divididos em maiores (epopia e tragdia) e menores (comdia e stira menipia). Ser que no h uma dimen- so oculta nessa classificao? Por que preciso privile- giar um gnero em detrimento de outro? O que ser que Aristteles no diz? Ainda que haja grandes tragdias e epopias, por que ser que elas como gnero precisam a ser consideradas, cada uma, um gnero maior?

    H uma primeira resposta bem simples: a epopia e a tragdia clssicas tratam de aristocratas, enquanto na co- mdia aparecem as pessoas do povo. Ento, parece que Aristteles um idelogo da classe dominante, a aristo- cracia. Mas as tragdias e epopias a que ele se refere at hoje nos convencem de sua grandeza. Onde est a chave dessa grandeza?

    A questo da "grandeza" est esquematicamente ainda hoje presente na contraposio entre gneros mais com- plexos, como o romance, e gneros considerados mais sim- ples, como o conto. H personagens considerados de tipo elevado (como o heri trgico ou pico), assim como os h de tipo baixo (o pcaro).

    Parece, de certo modo, um contra-senso falar em "heri baixo", pois se supe pertencer natureza do heri que ele seja elevado. O heri "elevado" pode ter muito de

  • 10

    baixeza ou fazer todo um percurso pelo "baixo". O heri trivial pretende ser elevado e tende a no admitir em si o baixo: mas, exatamente por isso, ele se inferioriza artis- ticamente, a medida que se torna unidimensional e na0 capta nem exprime a natureza contraditria do real.

    A mera tipologia analtica - como personagem plano e redondo - no consegue apreender o que acontece com os vrios heris. O percurso deles ao longo do enredo estraalha qualquer rgido enquadramento analtico. H personagens de extrao social alta e personagens de en- trao social baixa; h gneros e perodos literrios que se voltam precipuamente para personagens oriundos da classe dominante, como h outros que se concentram mais em personagens de extrao social baixa. Tal nfase en- volve sempre uma postura poltica da obra.

    Com a industrializao, o acirramento do conflito de classes tem feito a literatura redobrar o seu bombardeio ideolgico: quanto mais avanada se pretende a humani- dade, mais tem preponderado a trivialidade narrativa. Cada vez mais a classe alta tem tido a necessidade de ser vista como elevada; cada vez mais tem sido tambm possvel mostrar grandeza na classe baixa. No se deve confundir, porm, defesa do povo com defesa do status quo: pode-se achar o povo to maravilhoso que acaba sendo at melhor deix-lo como ele est. E preciso que a teorizao do trivial no seja mera trivialidade.

    Num instigador artigo, Weinrich pro@s que a potica clssica em trs nveis (stilus sublimis, srilus mediocris e stilus humilis) tena passado, no sculo XVI, a dois g- neros: o alto, tratando de aristocratas, na tragdia da honra; e o baixo, a comdia, tratando de escravos, pcaros e burgueses pretensiosos. O que a se procurava, de modo todo especial, era mostrar a classe alta como elevada e a classe baixa como inferior, colocando-se essa diferena

    como diferena entre o mundo com honra e o mundo sem honra. Subjacente a questo da "honra" est, contudo, no s a legitimao da classe "alta" como "naturalmente" superior, mas tambm a "honra" como expresso qualita- tiva de um maior poderio quantitativo financeiro (que, por sua vez, necessariamente baseado na explorao do tra- balho alheio). Por outro lado, nesse deslocamento para um puro mundo axiolgico afloram elementos que no so mera falsa conscincia.

  • Heris clssicos

    A classe do clssico

    Os heris clssicos so heris da classe alta, que procuram demonstrar a "classe" dessa classe. "Classificar" a tragdia e a epopia como gneros maiores e ver nos seus heris apenas o elevado seria desconhecer uma dife- rena bsica entre o heri pico e o heri trgico, bem como uma dinmica estrutural que se manifesta nas "grandes obras". Ainda que passe por grandes difimlda- des e provaes, e ainda que venha a constituir b m parte de sua grandeza atravs de uma srie de "baixezas" (ma- tar, mentir, tripudiar cadveres, enganar e mentir), a nar- rativa pica clssica, adotando o ponto de vista do heri, trata de metamorfosear a negatividade em positividade, e o heri pico tem, por isso, um percurso fundamentalmente mais pelo elevado do que o heri trgica, cujo percurso o da queda. Mas a queda d o heri trgico o que lhe possibilita resplandecer em sua grandeza, assim como as "baixezas" do heri pico que o "elevam".

    O heri pico e o heri trgico unem em si e em seu percurso as duas pontas do alto e do baixo. Aquiles, o

    grande guerreiro, humilhado por Agammnon, perde a sua escrava preferida, perde o seu melhor amigo, fica ausente de muitas lutas e se barbanza ao tripudiar o cadver de Heitor; Odisseu, o astuto, vencedor de Tria, demora a descobrir o caminho de volta, perde todos os companheiros e trofus nesse percurso, para se recuperar no fim; mipo, rei e benfeitor, v-se transformado em mal- feitor e pria social.

    Plemos e polmica O heri trgico a dominante do sistema constitudo

    pela tragdia. Ele vai aparecendo como trgico a medida que se desenrola a tragdia que ele mesmo desenvolve com a fora do destino. A tragdia (= ode do bode) se origina de uma cerimnia religiosa em que um bode era sacrificado em favor da comunidade, para expiar-lhe as culpas. O heri trgico , originariamente, um bode ex- piatrio. Diz-se que "bom cabrito no berra". Mas o heri trgico, pelo contrrio, um bode que berra ao ser sacrificado, expe publicamente o que lhe acontece, I enquanto o destino, com mos de ferro, pendura-o de cabea para baixo e se prepara para cortar-lhe o pescoo.

    Todo grande personagem uma unio de contrrios: ele o alto cuja grandeza est na baixeza, ou o alto que cai e readquire grandeza na queda, ou ento o

    I baixo que se eleva e se mostra grandioso apesar dos pesa- I res. Quanto maior a sua desgraa, tanto maior a sua gran-

    deza. A sua desgraa no mera choradeira, mas duro aprendizado da "condio humana", transcendendo a doutrinao que lhe inerente. A medida que a expiao da culpa originria aponta para uma soluo do conflito trfgico, leva tambm a uma reconciliao interior.

  • No h grande obra de arte que no una os contr- rios. O heri trgico um carvalho em que caem os deci- sivos raios do destino; o heri pico o grande pinheiro indicador dos caminhos da histria: nenhum deles tem a sabedoria dos canios. O pcaro o canio que se dobra aos ventos para conseguir sobreviver: nele o que pensa o estmago. Ele tem a pouca dignidade daqueles que sem- pre tm o suficiente para comer, mas, em sua indignidade sem indignao, ele revela a pouca dignidade daquilo que pretende ser digno e superior na sociedade.

    O heri pico A epopia um sistema em que o pico domi-

    nante, mas no exclusivo. Nela - por exemplo na Illada, a epopia por excelncia na literatura ocidental - podem aparecer personagens antipicos: o ridculo soldado Tr- sites, as mulheres troianas derrotadas e chorosas, um deus atingido por uma lana no traseiro e voltando para o Olimpo em saltos quilomtricos, guerreiros caindo em bosta de vaca e cuspindo o que engoliram, etc. So mo- mentos em que o cmico baixo e at grosseiro (como na cena do porteiro no Macbeth: o cmico desanuviando a tenso do trgico) se instaura na epopia, para depois

    ! dar novamente lugar ao tom geral pico. Importante tambm o momento de queda ou rebaixamento do heri: Heitor com medo de morrer, Heitor fugindo, Heitor ven- cido e tripudiado. Mas a medida que o heri pico decai em sua "epicidade", ele tende a crescer em sua "humani- dade" e nas simpatias do leitor/espectador. Em suas an- danas de puro guerreiro, ele tende a se aproximar do pseudo-heri das "narrativas triviais masculinas", mas ele no se esgota em enfrentar dificuldades e vencer no fim. Os grandes feitos do heri pico tambm poderiam ser

    descritos como uma srie de baixezas: "c'est le ton qui fait Ia chose".

    O heri trivial masculino de direita - a verso mo- derna desse heri clssico - tambm atravessa dificulda- des e sofre derrotas, mas elas como que permanecem ex- ternas a ele, ainda que s vezes um soco do bandido venha a exigir um band-aid: no alteram substancialmente nada no bom mocinho. H um enredo que, com todas as suas trapalhadas, serve basicamente para restaurar a situao anterior a violao inicial desencadeadora do enredo. Esta preocupao bsica em demonstrar como felicidade e meta a situao inicial, o status quo anterior, caracteriza a natureza conservadora e at reacionria desse tipo de narrativa em seu nvel profundo de estrutura, o que acompanhado pela postura e pelos valores de seus perso- nagens, por mais moderninhos que possam parecer.

    Por outro lado, o mais tpico e puro heri pico clssico, Aquiles, adquire nova dimenso quando visto a partir de sua queixa no Hades, quando lamenta ter aceito morrer jovem e herico ao invs de morrer velho e rnedo- cre: assim ele reafinna a beleza fundamental que estar vivo. O que ajuda a engrandecer o heri pico a sua dimenso trgica. O heri pico o sonho de o homem fazer a sua prpria histria; o heri trgico a verdade do destino humano; o heri trivial a legitimao do poder vigente; o pcaro a filosofia da sobrevivncia feita gente.

    O anti-heri pico Na segunda rapsdia da Iliada, o soldado Trsites

    surrado em pblico por Odisseu, pois, cansado de dez anos de guerra, apresenta uma reclamaqo e uma reivindicao: diz que os resgates originados de nobres troianos aprisio- nados pelos soldados gregos acabavam revertendo apenas

  • 16

    para os chefes, para os aristocratas gregos, tendo estes todas as vantagens da guerra; prope, alm disso, que seria melhor voltar para casa. A fala de Trsites parece a de um lder sindical dos soldados rasos. O que ele diz tem p e cabea; parece bastante de acordo com o que se pode imaginar que fosse uma forte tendncia entre a maio- ria dos soldados. Mas Homero o apresenta como pro- fundamente desprezado pelos companheiros. Alm de ele ser ridicularizado pela surra, apresentado como vesgo, corcunda e torto: em suma, uma inacreditvel figura de soldado, impossvel. Desperta a sensao de que boa parte de tal deformao decorre no da natureza, mas das palavras que proferira, contrrias aos interesses domiiian- tes naquele momento. Nenhum heri pico por aquilo que faz; ele s se torna pico pelo modo de ser apre- sentado aquilo que faz. Assim, tambm, o anti-heri s deixa de ser "heri" por ele no se enquadrar no esque- ma de valores subjdcente ao ponto de vista narrativo.

    Nesse episdio se evidencia bastante a posio aristo- crtica e no-popular do ponto de vista do rapsodo. Neste sentido, Homero no um "clssico", um autor "acima de qualquer suspeita" e pairando por sobre as classes e suas ideologias, mas um "intelectual orgnico", um ser- vial da aristocracia grega. No se trata de querer exigir de uma obra de 2 800 anos atrs uma postura s adotada por obras de um sculo para c: trata-se de entecder que a estrutura profunda dessas obras e o seu gesto semntico bsico implicam um direcionamento poltico. Trata-se simplesmente de entender que as obras clssicas tambm so construidas a partir de determinadas perspectivas so- ciais, bem como entender que mudanas no modo de produo e no regime poltico criam novas sensibilidades e iluminam com novas luzes as obras do passado, obri- gando-nos a repens-las.

    Arte e ideologia

    A Ilada, mesmo sendo construda a partir de uma perspectiva aristocrtica, no se torna, no entanto, uma mera pea de propaganda ideolgica, pois ela d a volta por cima do unidimensional e sabe mostrar o alto como baixo e o baixo como alto. Trsites no viola este esque- ma, pois a sua "baixeza", como a de um cavalo numa esttua equestre, garante-lhe um espao no elevado mundo da epopia: ele ser surrado por um aristocrtico heri o que lhe garante alguma presena nessa obra elevada, como se a sua humilhao de algum modo o exaltasse, como se o contato com a aristocracia - mesmo que por uma surra - de algum modo auratizasse. Caso as relaes de produo literria da poca lhe tivessem dado espao, Trsites poderia ter contado uma guerra de Tria bem dife- rente daquela que foi contada por Homero: provavelmente no sobraria muita dignidade nem grandeza a tantos desses picos heris. . . (Na Literatura Portuguesa, a Peregrina- o, de Ferno Mendes Pinto, constitui a wntrapartida "baixa" ao tom elevado de Os lusadm.)

    Tal perspectiva avessa e travessa no , contudo, por si s, garantia nenhuma de uma obra artisticamente pior

  • 18

    ou melhor. A obra de Homero, nascida grandemente sob o signo da ideologia, foi se tornando mais arte medida que morria a classe social que a inspirou. E isso no s porque deixou de ser recebida como religio para ser per- cebida como literatura ficcional, mas tambm porque pde ir se desvencilhando da manipulao segundo interesses sociais bem imediatos, como legitimar o poder, as pro- priedades e os privilgios dos aristocratas medida que estes eram ai considerados descendentes desses heris, que, por sua vez, nessas obras, eram apresentados como des- cendentes dos deuses, completando-se assim um ciclo de legitimao da aristocracia base de um direito divino. Por outro lado, mesmo aps o desaparecimento do antigo mundo grego, a leitura de Homero pode reconstruir o mo- mento ideolgico inclusive at pelo gesto de citar Homero.

    Arte e ideologia no so elementos excludentes. No h arte sem ideologia nem ideologia sem arte; no h obra de arte que no seja tambm ideolgica e no h ideologia que no possa ser utilizada na produo artstica. Mesmo que se queira que a arte seja pura, nenhuma obra de arte completamente pura, isenta de interesses sociais camuflados. O prprio gesto de quer-Ia "pura" acaba sendo "impuro" medida que significa indiferena ante as "impurezas" do mundo. Quem deseja ter na arte um mundo melhor confessa, implicitamente, a negatividade do real; quem, na arte, insiste na negatividade, espera dela consolo e superao.

    Que o ensino ou o que publicado desconheam os interesses sociais a que servem e que os pem em movi- mento no significa que esses interesses no existam: pelo contrrio, reconhec-los e explicit-10s pode ser uma ten- tativa de neutraliz-los, de ser menos "interesseiro". No h hermenutica desvinculada de interesse. Uma obra de arte sempre produto de conflitos e interesses sociais: ela

    mesma um pacto provisrio deles. Quer se queira rew- nhecer isto, quer no. Uma obra de arte sempre opera com o ideolgico. Enquanto obra de arte, ela no pode ser ideolgica no sentido de camuflar e escamotear o real e as suas contradies: ela precisa devorar o ideolgico, no ser devorada por ele. O interesse tanto leva a ver quanto a no-ver. Olhar para uma direo significa optar por no-ver para outras direes: a este luxo, caracteris- tico do trivial, as obras de arte no se podem dar. Toda cegueira fomenta o desenvolvimento de outro tipo de per- cepo. Toda viso cegueira. As obras triviais institu- cionalizam o caolho sem senso de profundidade; as obras de arte olham com dois olhos, para todos os lados.

    O ideolgico As obras triviais de direita procuram fazer crer que

    tudo o que pertence classe alta , por isso mesmo, eleva- do, e que todo baixo inferior. As obras triviais de es- querda procuram fazer crer que tudo o que pertence classe alta j por isso baixo, enquanto que todo o social- mente baixo j por isto seria superior. Nem a trivialidade de direita nem a de esquerda conseguem apreender a natu- reza contraditria da realidade. Mas tanto uma quanto a outra fazem parte das contradies entre os interesses de classe. Cada uma procura responder, a seu modo, aos conflitos de interesses que as geram, circulam e movimen- tam.

    Os vrios sentidos do termo ideologia em Marx - ou seja, algumas disciplinas que tratam de comporta- mentos sociais, supra-estrutura, falsa conscincia, projeto histrico do proletariado - apontam para um denomina- dor comum no explicitado por ele e que talvez se en-

  • contre na conjuno de interesse, verdade e historicidade. Mesmo a "falsa conscincia" contm a contradi50 entre conscincia e falsidade: este elemento da "conscincia" s falso medida que no conhece nem reconhece os deslo- camentos, as distores e as condensaes ocorridos no percurso das diversas foras em conflito. Ainda que entre ns se esteja mais acostumado a tomar o termo "ideologia" no sentido de "falsa conscincia", preciso cuidar para no cair numa viso pr-dialtica da questo. Est-se ainda muito acostumado a uma concepo idealista da verdade: at parece que, por ser histrica, a verdade deixe de ser verdadeira.

    I3 difcil pensar esta questo como a conscincia pos- svel a uma poca e a uma sociedade. Que h de determi- nar exatamente qual seria a possibilidade efetivamente possvel? Ser que este possvel no tende a ser sempre reduzido ao horizonte alcanado?

    Mesmo a concepo de "conscincia" enquanto "ver- dade", alm de tender ao subjetivismo idealista, tambm insuficiente a medida que entende a verdade dentro da tradio da adequatio, caindo na antinomia simples do no-adequado como sendo o falso. O conceito heidegge- riano de verdade como altheia insuficiente a medida que desconsidera os concretos interesses sociais que im- pregnam o processo de conhecimento, tanto para fomen- t-lo quanto para obstru-10. Trata-se de repensar o conhe- cimento - e literatura tambm conhecimento - como necessria errncia histrica do homem, em que todo des- velamento implica ocultao, assim como todo ocultamen- to carrega e traz as marcas das foras que o acarretam. Quando a correlao de foras o permite, possvel deci- frar deslocamentos havidos, pois em cada resultante esto presentes, ainda que ocultas e escamoteadas, foras das quais ela se tornou, afinal, a conseqncia.

    O artstico Na rapsdia XXII da Ilada, tratando do combate

    entre Aquiles e Heitor, tem-se uma espcie de sinopse de todo o movimento bsico dessa epopia, pois a derrota de Heitor e a vitria de Aquiles indiciam e resumem todo O desenrolar da guerra: tem-se a, num detalhe, o todo, assim como a obra indicia toda uma poca. Em suma, a sindo- que de uma sindoque. No se tem, contudo, a, apenas a elevao de Aquiles pela vitria e o rebaixamento de Heitor pela derrota. A medida que Heitor cai como guer- reiro, ele se eleva na compreenso e na simpatia do leitor ( e no s do leitor cristo), assim como a vitria de Aquiles apressa a sua prpria morte e, a medida que tn- pudia o cadver, leva-o a uma diminuio porque desres- peita o sagrado dever de homenagear e enterrar os mortos para que possam descansar no Hades. Constitui-se a um duplo quiasmo, a resumir todo o movimento da obra, e que se configura do seguinte modo:

    A dimenso do "guerreiro", linha de foras que c c ~ mea no alto e vai para baixo medida que ele vai sendo derrotado, acaba no sendo apenas a dele mesmo, sozi- nho, mas representa, alegoricamente, a totalidade das for- as troianas. O termo "cidado" no deve ser entendido,

    -.

  • obviamente, no sentido moderno de citoyen: representa as vrias facetas de Heitor como pai, marido, filho, um homem com vrias outras qualidades e atributos que no simplesmente militares, implicando inclusive a simpatia e a piedade que envolvem o ouvinte e o leitor. Heitor cai do alto para o baixo, mas em sua queda ele tende a subir em sua humanidade e na empatia do leitor. A sua rela- tiva fraqueza o engrandece como objeto de comiserao e compreenso, ainda que, por outro lado, tambm seja "humano" cuspir no cadver do inimigo. O ponto nevrl- gico da alterao da balana ocorre quando Heitor tem a sensao de ter sido enganado e abandonado pelos deuses: a sua derrota interior, preldio da derrota exterior.

    Aquiles nunca chega a cair propriamente como guer- reiro: o que muda o seu grau de participao na guerra. Seus momentos nevrlgicos intermedirios so a perda da escrava (levando-o ao ponto mais baixo de sua partici- pao), a morte de Ptroclos (momento da virada), a vin- gana da morte do amigo, o duelo com Heitor. Cada uma dessas fases vai constituindo um patamar, numa sucesso que constri uma linha ascendente, enquanto diminui nele o grau de relacionamento amoroso e de amizade, a dimen- so de "cidado". Em relao a Heitor, Aquiles faz um movimento exatamente contrrio e constitui um novo X, um novo quiasmo:

    Aquiles

    A Ilada uma grande obra exatamente porque tem este duplo movimento contraditrio em si. Ela no nega espao nem ao grito de triunfo do vencedor nem aos gemi- dos e lamentos do derrotado. Se ela fosse apenas uma coisa ou outra, tenderia a ser mais ideolgica e menos ar- tstica. Ela no mostra o heri apenas como grandioso. Mostra a dor que decorre desses grandiosos gestos. Mostra tambm os seus "defeitos", at mesmo a sua grandeza en- quanto baixeza. O dio repleno de rancor, a total falta de corniserao, a raiva que no acaba sequer com a morte do adversrio, a sede de vingana at o fim. Tais gestos no so monoplio de personagens, no so apenas "lite- ratura": foi da vida mesma que a literatura os aprendeu. Por outro lado, a grande obra capaz de mostrar a "gran- deza" existente naquilo que aparenta ser apenas baixo e derrotado. A obra trivial linear, exibe apenas a "gran- deza" do seu heri e a "baixeza" do seu vilo, sem enten- der a natureza contraditria e problemtica desses con- ceitos.

    Gnero e gesto semntico Agammnon, glorioso e exitoso chefe de uma longa

    e perigosa expedi~o militar, morto tragicamente ao voltar para casa (pois, como quase no podia deixar de acontecer, a sua mulher arranjara entrementes outro h* mem): ele, que antes comandara uma epopia, torna-se protagonista de uma tragdia.

    Por outro lado, se a histria de gdipo fosse contada por um rapsodo enfatizando o seu processo de aprendizado e formao, as suas andanas, as lutas na estrada, o epi- sdio da esfinge e as atividades do governante, poder-se-ia ter nele um heri pico e no trgico. O heri pico um heri potencialmente trgico, mas um heri cuja histria

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    deu certo; o heri trgico um heri potencialmente pico e azarado pelo destino. O heri pico provoca o surgimento do heri trgico; o heri trgico guarda em sua sombra o seu heri pico.

    O pcaro pode ser visto w m o um heri a beirar o trgico e se assumindo como um heri pico s avessas. O pcaro de extrao social baixa e se comporta de modo pouco elevado, mas se eleva literariamente a medida que se toma o centro de toda a narrativa e conta at6 mesmo com a complacncia e a simpatia do leitor. Ele o modo pelo qual a classe baixa consegue entrar no pica- deiro da literatura. O pcaro um heri cuja grandeza no ter grandeza nenhuma. Ele o reverso dos grandes heris picos e trgicos.

    O heri trgico

    Na tragdia clssica - por exemplo, em Edipo rei -, no se tem apenas o percurso da superioridade de um heri elevado. mas se tem o desvelamento de sua queda e a descoberta de sua maior grandeza na queda. Todo heri grego um hbrido, um semideus (ou melhor, como todos ns, ele tem em si a dimenso de deus e de homem, de forte e de fraco, do adulto e da criana). Ele carrega o pecado "original" (diferente do pecado original cristo, que se supe que seja de toda a humanidade) de ser pro- duto de uma hybris, uma desmedida, uma violao da medida, d a ordem natural das wisas: ele sempre o pro- duto, mais ou menos remoto, do acasalamento entre um ser humano e uma divindade, em geral sendo de um deus com uma mulher, mas podendo ser tambm de um homem com uma deusa. Isto caracteriza os seres superiores, os heris e aristocratas, mas tambm a desgraa, a origem da desgraa do heri. Este dado religioso subjacente tragdia grega s nos acessvel intelectualmente, mas no como crena imediata: corresponde, contudo, a estruturas psicolgicas profundamente arraigadas, levando inclusive crena de que o detentor do poder possa fazer milagres, mudando inclusive o curso da natureza e da histria.

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    O clssico heri trgico nunca um membro do povo ou da camada mdia. Dentro da filosofia de que, quanto maior a altura, maior tambm o tombo, ele geralmente est no topo do poder. Parece pertencer por direito natural ao plano elevado, mas aos poucos vai-se descobrindo o quanto ele est chafurdando no charco. Ele descobre a mo-de-ferro do poder, do destino, da histria: descobre que o seu agir foi errado; descobre que no devia ter feito tudo o que fez; descobre que o mais fraco na correlao de foras, embora aparente ser o mais forte, ou ainda que tenha acreditado ser o mais forte. E l embaixo que ele redescobre a sua grandeza, no significando isto, porm, que ele necessariamente deixe de morrer ou que venha a recuperar o poder perdido. Ele como que perde o poder terreno para conquistar um poder espiritual; ele como que se despe do agora, para, l debaixo, resplandecer elevada sabedoria, transcendendo todos os seus juzes e algozes. A custa do prprio sangue, torna-se mensageiro do passa- do para o futuro, como as almas dos mortos eram evoca- das, convocadas a comparecerem ao presente. O sangue trgico do presente conclama o passado para superar pela sabedoria a tragdia.

    Prometeu acorrenlado a histria de um rebeIde po- ltico que, tendo desafiado os deuses, condenado e pu- nido. A sua dimenso de humanidade a prpria sim- patia que ele sente pelos seres humanos. Tendo estes sido condenados ao aniquilamento por Zeus, ele Ihes d o prin- cpio civilizador, o fogo, e assim os salva. Apesar de ser condenado pelo poder, ele tem o poder da fala: ele no condenado ao silncio; pelo contrrio, condenado a falar. A medida que o seu poder poltico reduzido a zero, o seu poder literrio cresce, a ponto de dominar toda a cena:

    poder politico, ,,

    Ele tem a viso do futuro e nele vislumbra a esperana, a esperana de um novo decreto do destino: sabe inclusive que aqueles dos quais ele depende chegaro a depender dele um dia. E martirizado, mas est em paz consigo mesmo. Sabendo-se que Zeus reina no Olimpo, sente-se que Prometeu reina cada vez mais no palco: ele conta com a simpatia dos espectadores, pois ele os salvou:

    Nessa obra, h vrios nveis de leitura possveis: o hist- rico, relacionando este enredo com as conquistas dos aqueus por volta de 1300 a.C.; o poltico, vendo a disputa pelo poder e suas conseqncias; o filosfico, percebendo o paulatino processo de desvelamento das coisas como ex- presso do conceito de verdade enquanto altheia; o inter- textual, examinando as vrias verses desse texto e as suas relaes com outras obras, como a histria de Cristo.

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    Trata-se, aparentemente, de uma obra submissa as regras da unidade de espao, tempo e ao. Mas todas essas unidades so rompidas por eventos rememorados ou previstos, como a luta dos tits, a ajuda aos homens, o advento de Hrcules e a libertao de Prometeu. O fato de a tragdia e a epopia clssicas girarem em torno do poder sugere a idia de que a epopia a histria dos vence- / dores, enquanto a tragdia a histria dos vencidos.

    ! Talvez a origem disso tambm possa ser encontrada no antigo ritual do sacrifcio anual do rei e a sua substituio por um novo rei, devido identificao primitiva - descrita por Frazer - entre a fertilidade da natureza e a fora do rei. Mas o problema do poder - o verdadeiro cerne da questo - bem mais abrangente e permanente d o que uma primitiva antropomorfizao da natureza ou uma identificao da natureza com um ser humano. Neste i quadro, porm, o c6mico e at o picaresco, expresses do carnavalesco, seriam a perspectiva do "momo" substitutivo do rei para o sacrifcio. ! O trgico um raio que s atinge os altos c a ~ a l h o s e no as plantas rasteiras. Tal elitismo impregna a cultura grega que nos foi transmitida. Ainda que encarar o tr- gico enquanto uma disputa em torno do poder e, especifi- camente, um temor de cair no vazio da perda do poder (temor a que s pode chegar quem usufmi do poder), ainda que este seja um momento existente nas grandes tragdias, esta perspectiva fica aqum do momento em que o personagem trgico, acuado e posto contra a parede, assume e vivencia radicalmente a nua existncia, numa dimenso em que a verdade no se restringe e no redu- tvel ao poder governamental. Tal momento, em que o poder j no mais to essencial, representa uma enorme potencia~o do poderio artstico. E o momento em que um Macbeth profere as terrveis palavras do ato V, cena 5:

    Life's but a walking shadow. a poor player That struts and freis his hour upon the stage, And then is heard no more: it is a tale Told by an idlot, fui1 of sound and fury. Signlfying nothing.

    E a fala de um personagem que ir morrer e que, portanto, rebaixa o que est a perder ou, pelo contrrio, reconhece cruamente o que a vida porque no precisa mais se iludir.

    O trgico se torna um rito solene no por qualquer formalismo superficial, mas por ser o desfile da conscin- cia diante do espelho desnudo da existncia. Fi como se, nesse momento, o social mais imediato fosse abolido, como se a distncia entre o alto e o baixo fosse a catapulta necessria para, com o impulso da queda, arremessar e mergulhar um homem lcido, com toda a fora, no corao da niatna. Mesmo os artistas que entendem o belo como sublimao confessam, implicitamente, que a realidade no sublime. Como, porm, eles no atacam de frente a negatividade que os pressiona na direo do sublime, ten- dem a escamotear fortes componentes do real. As obras de arte precisam ser verdadeiras e a verdade pode ser horrivel, como tambm pode ser encantadora. O horrvel pode ser o resplendor da verdade. No podendo ser mal- feitas, as obras de arte no podem ser belas simplesmente no sentido de enfeitadas, embelezadas. A verdade, concre- tizando fantasmas, mesmo que por um percurso de sangue, suor e lgrimas, acaba trazendo a calma e a tranquilidade da sabedoria.

  • Heris bblicos

    I Prometeu est para Edipo assim como Lcifer est para Caim: o primeiro termo de cada parcela coloca no 1 plano mitico o que o segundo coloca no plano mais hu- I mano. Todos eles colocam o gesto de desafio a autoridade

    constituda e ostentam a misria da derrota e da punio. I Esses textos gregos ensinam a obedecer ao poder e a se

    submeter ao "destino"; esses textos bblicos tambm en- sinam isso, sem ensinar, contudo, a respeitar e at a amar o derrotado. Isto fica, aparentemente, reservado a outras figuras bblicas: Jos e Cristo.

    A histria de Jos Na histria de Jos e seus irmos - uma das mais

    bem tramadas e marcantes histrias da literatura ocidental -, o plano divino parece estar ausente medida que no h interferncia direta de qualquer divindade: mas, de fato, o enredo procura demonstrar que "Deus escreve certo por linhas tortas", o que acaba levando ao conformismo e a

    inao do "deixa estar para ver como que fica" e do "no fim tudo vai acabar dando certo". A sacralizao de tex- tos faz pane do processo de legitimao de interesses sociais, mas a hermenutica pode servir tanto para dessa- cralizar textos quanto para. interpretando indcios, chegar a novas sacralizaes, inclusive de elementos considerados oficialmente como demonacos.

    A histria de Jos marcante porque um verdadeiro plemos, uma mltipla unio de contrrios. Assim, Jos por ser o irmo mais novo, est numa situao de infe- rioridade em relao a seus irmos; por nutro lado, exata- mente por ser o filho mais novo, toma-se o predileto d o pai, o que o eleva, mas, ao mesmo tempo, desperta os cimes dos irmos. A elevao no afeto paterno desperta sentimentos baixos nos irmos. Os sentimentos se trans- formam em ao: Jos jogado no fundo do poo. O fundo do poo uma plstica representao espacial da queda, apontando implicitamente para o alto como a nica alternativa de sada. A inveja mata: no tanto o invejoso quanto o invejado. Jos chega a ser declarado morto, mas no assassinado: algum resto de sentimentos elevados, somado a rasteiras vantagens comerciais, faz com que os irmos prefiram poup-lo, vendendo-o como escravo. Ser escravo configura um estado de absoluta degradao so- cial. Deste estado bem baixo, Jos consegue ser elevado, por sua hermenutica e previdncia, ao elevado posto de ministro do fara, situao em que o encontram os seus irmos suplicantes e inferiorizados. Tem-se assim uma reverso especular e espetacular da relao anterior de foras, remoto sonho de todos os derrotados. Neste mo- mento, ele tem a grandeza de todos os picos heris bon- zinhos: d-se a conhecer e perdoa aos seus antigos algo- zes. Temos, portanto, os seguintes esquemas evolutivos de Jos:

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    dos irmos humanidade, pretendem iniciar a civilizao, so punidos x por seus atos e conseguem no fim ressurgir gloriosamente. Apesar de se afirmar que no possvel haver tragdia sentimentos crist, j que dentro da concepo crist possvel o arre- pendimento e o perdo (que no existem para o heri trgico grego, pois ele tem de cumprir at o fim seu ri- tual de sangue e horror ainda que no tenha tido nenhu- do pai ma inteno de cometer os crimes pelos quais punido), a figura por excelncia do cristianismo - o prprio Cristo

    ,:= - expia um pecado que no nele originado (wmo

    em casa tambm no o a hybris do heri trgico grego) e pode ser encarado como um grande personagem trgico.

    Cristo rene em si, como um "hbrido", o alto da situao divindade com o baixo da humanidade. Ele tem o seu

    apogeu no momento em que mais degradado: na Paixo. Ele no , porm, degradado aos nveis mais baixos - fora de casa trado, aoitado, cuspido, coroado de espinhos, humilhado pelas ruas da cidade ou pregado numa cruz - simples-

    Obviamente, no final, tudo isto sofre novas reverses, medida que os irmos, quando reconhecem Jos na corte e so protegidos por ele, tanto passam a nutrir outro tipo de sentimentos quanto passam a gozar de uma situao diferente neste momento. Os sentimentos do pai pelo seu benjamim s podem ir surgindo e crescendo i medida que o prprio Jos vai se desenvolvendo, o que provoca a contrapartida nos sentimentos dos irmos.

    A histria de Cristo

    mente porque um homem, mas sim porque considera- do um deus. Ele nunca desempenha um papel mais ele- vado do que no momento em que mais degradado: neste momento que ele mais redentor e deus. Essa unio de contrrios, que mais do que uma soma ou uma colocao lado a lado de contrrios (pois decorre tambm da reverso de cada elemento em seu contrrio), mostra-se plasticamente configurada em vrios momentos: trado, mas por um elemento desprezvel, que acaba intenorizan- do a culpa a ponto de se enforcar e, assim, condenar e renegar o seu gesto; aoitado e cuspido, mas por inimigos que no sabiam o que estavam fazendo; coroado, mas de

    s e ~ o s tem as caractensticas de um heri pico, espinhos; desfilando pelas ruas, mas debaixo de uma cruz; tendo as suas andanas vrias analogias com as de um no alto de um morro, mas para morrer etc. E, no fim, Odisseu, Jesus Cristo corporifica um esplndido heri tr- ressuscita glorioso, em toda a sua divindade. Ainda que gico, com vrias semelhanas bsicas em relao a Pro- dentro da cultura crist parea estranha a ousadia de meteu, especialmente porque ambos se propem salvar a pensar Cristo como um personagem literrio e a Bblia

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    como literatura, Jesus Cristo uma esplndida encamao de heri trgico, numa perfeita elaborao dialtica. E um personagem modelar, um modelo da natureza do grande personagem.

    Como Jos, Cristo literariamente exemplar. Ele no simplesmente elevado ou baixo. Est no alto porque est embaixo e est embaixo porque est no alto. Todo grande personagem essa unio dialtica de contrrios (o alto e o baixo, o distante e o prximo, no espao e no tempo) : numa unio hiposttica, em que no se pode pensar um elemento sem o outro. Cristo , na Bblia, ao mesmo tempo deus e homem: ele um homem especial, superior, porque um deus, mas por ser um deus que ele arrastado aos nveis mais baixos da humilhao e do sofrimento. Sendo um deus, pode ressurgir, glorioso, dessa misria absoluta. Passa de um extremo ao outro, dissolvendo "absolutos": quando ressuscita, ostenta marcas da degradao passada (emblematicamente, a ferida da lana); quando est sendo aoitado, w m o pseudocetro lia mo e a coroa de espinhos na cabea, refulge nele a divindade, inclusive artisticamente ele o mais importante de todos, a divindade, o centro do quadro, o cerne em torno do qual tudo gira (portanto, por que no acreditar que ele um deus se artisticamente ele o ?).

    A rigor, apesar de toda a aparncia externa, em seu cerne ele jamais atingido, jamais degradado: pelo contrrio, quanto mais degradado, tanto mais ele se eleva. Para o cristo, quem se degrada o algoz, aquele que parece ter uma posio de superioridade (e, por todas as evidncias, acreditava que a tinha). Em nenhum mo- mento Cristo literariamente mais "divino" do que quando est pregado na cruz. Em nenhum momento eIe est lite- rariamente melhor do que quando est na pior. So os momentos em que ele pousa para os grandes quadros da Paixo.

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    A cruz, com sua barra horizontal a expressar simbo- licamente a diviso entre o superior ( o acima da barra) e o inferior ( o abaixo da barra), somada a uma barra ver- tical, que no s sustenta a outra barra, mas representa a conexo e a possibilidade de unio do alto com o baixo e do baixo com o alto, configura o encontro e a unio dialtica dos contrrios: a cruz o prprio smbolo do plemos. Grandes personagens e grandes textos so aqueles que conseguem fazer o sinal da cruz como domi- nante estrutural do seu percurso. As grandes narrativas, sistemas cujas dominantes so grandes heris, acompa- nham e ecoam esse gesto que as estrutura. A grande leitura presentifica na leitura de um texto outros textos anlogos ou antitticos - a nvel de personagem, enredo, gnero etc. -, formando um eixo paradigmtico que se constri ao longo do eixo sintagmtico da prpria leitura desse texto e, ao mesmo tempo, nele vai se projetando.

    Por mais empatia que o cristo sinta por Cristo, pelo seu sofrimento na Paixo, ele sabe que, a rigor, por ser um deus, inatingvel em seu cerne: como se brin- casse de ser homem e de se deixar martirizar (o que en- cenado inclusive nas gozaes dos soldados dizendo que ele desa da cruz caso seja um deus). Este cerne inatingvel corresponde ao cerne tranquilo do espectador ou leitor que com ele se identifica, sofre, mas com a certeza de que nele no correr sangue nem a sua prpria morte ser o final do espetculo. Corresponde ao que cada homem que sofre gostaria que acontecesse com ele. Equivale a esperana que nutre Prometeu. A identificao com tais personagens um ndice de vida infeliz.

    Em termos literrios, a ressurreio de Cristo um deus ex machina, um miraculoso happy-end para uma his- tria e uma situao catastrfica. Esse mecanismo, apa- rentemente absurdo do ponto de vista Igiw, corresponde ao instinto de sobrevivncia e ao desejo de felicidade: e

  • isto to forte que cega qualquer argumenta~o. Por outro lado, literariamente falando, Cristo tem na ressurrei- o apenas a representao emblemtica da ressurreio que ele j experimenta enquanto um mito que ressurge a cada leitura: de certo modo, ele ressurge antes mesmo de ressuscitar; no h, portanto, literariamente nenhuma razo para no acreditar que no tenha havido ressurrei- o. Em suma, o quiasmo bsico da Paixo se estnitura do seguinte modo:

    O trivial e o artstico

    Cristo Personagens planos e triviais Os heris das narrativas triviais de direita procuram

    apresentar a classe alta como elevada e a classe baixa como inferior (enquanto as de esquerda procuram mostrar o socialmente alto como inferior e o baixo como superior). Procuram mostrar o seu "alto" como elevao e o baixo dos outros como baixeza. Ainda que correspondam ao que acontece na superfcie do social, essas antinomias emper- ram no que se pode chamar de ideolgico, pois so, antes de mais nada, a prpria recusa de entender que na socie- dade a classe "alta" precisa extrair a mais-valia do traba- lho da classe "baixa". Esta , portanto, uma dawe "rebai- xada", ou melhor, mantida baixa mediante a canalizao de uma parte do seu trabalho para o benefcio da classe que, assim se eleva, se toma "elevada". S que a narrativa trivial de direita serve para encobrir isso, enquanto a de esquerda serve exatamente para demonstr-lo.

    Todo heri trivial 6 um personagem plano, mas nem todo personagem marcante da tradio literria precisa ser um personagem esfrico. O personagem Jos Dias, no Dom

  • Casmurro, de Machado de Assis, vive de favores e, em compensao, a exaltar os seus patres. O Conselhei- ro Accio, no Primo B d i o , de Ea de Queirs, tem um esprito to limitado a ponto de insistir em, cavalheiresca- mente, acompanhar uma mulher que quer livrar-se dele para ir encontrar-se com o amante. Mesmo assim, os per- sonagens dominantes nas grandes narrativas s i o persona- gens esfricos, que, com a sua dinmica, movimentam ainda mais aquilo que os movimenta. Bouvart e Pcuchet, na obra homnima de Flaubert, demonstram que possvel ser esfericamente plano sem ser planamente esfrico: quanto mais eles mudam, tanto mais eles continuam sendo os mesmos. Tambm Aquiles toma atitudes diversas - des- de o retirar-se em sinal de protesto at participar decisiva- mente na guerra -, mas ele basicamente sempre o guer- reiro por excelncia: tanto na ao quanto na inao.

    Supor que o socialmente alto elevado apenas por suas qualidades constitui um passe de mgica que est de acordo com a perspectiva do poder. A no se discute a natureza da qualidade nem se ela efetivamente uma qualidade ou apenas a mscara de uma qualidade. Ao que parece, a qualidade positiva ou negativa de um gesto de- pende mais da perspectiva em que ele iluminado do que de qualquer valor "em si". No h "fatos", apenas verses. Mas h tambm a lgica da histria. Da perspectiva dos vencidos, mais pelos defeitos e pelas qualidades negati- vas que as carreiras ascendentes so feitas: a custa de cotovelaos, mentiras, espertezas, gestos calculados, aes sem escrpulos, safadezas etc. Tais atos podem, por sua vez, ser apresentados como atitudes certeiras, necessidades do momento, astcia, previses inteligentes, aes conse- qentes, fins justificadores dos meios etc. Dessa iluso tambm participa a "grande" literatura. Talvez no haja, ainda, Literatura efetivamente Grande, pois toda litera- tura at hoje traz o estigma da ideologia.

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    A tragdia clssica, ao mostrar a queda de um perso- nagem socialmente elevado, talvez apenas esteja dando a "oportunidade" de se redimir e penitenciar do anterior per- curso oculto (que disfarado sob a tese do direito divino do rei). A tragdia ser vivenciada como trag&a ainda decorre da identificao do baixo com o alto ( o que, no fundo, aparenta acabar com a distino estabelecida entre arte e ideologia): vivenciar a queda como sofrimento por perda estar do lado de quem cai, pressupor ingenua- mente o direito dele de estar no poder. Os inimigos poli- ticos do governante em estado de queda no vivenciariam isso como tragdia, mas w m a secreta alegria do palhao ao ver o circo pegar fogo. Neste sentido, o esquema bsico da grande tragdia, enquanto gnero, tambm trivial: ela s mais sutil e indireta do que a narrativa trivial. No fundo, ambas participam do mesmo esquema do poder. No h arte que no seja estetizao da fora bruta. No h obra de arte que no seja tambm um documento d a barbrie. J? o golfinho do trabalho alheio que salva Arion das guas da luta pela sobrevivncia mais imediata e que lhe possibilita compor e cantar.

    Tragdia e poder No Ricardo 11, de Shakespeare, como notou Antonio

    Cnndido em aulas ministradas na USP em 1969, tem-se implcito o referido movimento em cruz de baixo para cima E de cima para baixo: enquanto Ricardo 11 rei, ele i i i i i rci fraco e pusilnime, ou seja, enquanto a sua posio iiu Iiicrarquia social alta, ele baixo como personagem iciiirnl, mas, assim que destronado, ele vai adquirindo, csl~cci;ilniciite quando preso e condenado a morte, uma

    I .. . .ILL.I. i i i i i : ~ grtinclez;~ c uma dignidade que no tivera iiiilc%. A% 511;is 1';iI;i.;. iIcl>i~is (Ic pcrcler o poder poltico,

  • tornam-se cada vez mais impressionantes. Isto culmina na estranha dignidade de morrer com uma espada na mo, peleando. A medida que perde poder poltico, ele ganha poder literrio ( o que um belo consolo para quem no tem poder poltico, mas sohras de masoquismo):

    O que, afinal de contas, a se tenta provar a tese monarquista de que quem nasceu para ser rei acaba sem- pre mostrando realeza, modo sutil de superar a consta- tao de que possa haver reis demasiado fracos e pusi- lnimes para governar. Neste sentido, Shakespeare ideo- lgico: um dramaturgo oficial da corte. O que o salva de ser um mero propagandista de um determinado grupo social num certo momento histrico o fato de que o significado de sua obra no se esgota neste momento, ainda que este seja o seu gesto constitutivo mais imediato

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    (Shakespeare efetivamente foi o dramaturgo oficial da corte inglesa). Mas o que faz com que ele ultrapasse esse momento ideolgico?

    Para alem do trivial

    Os heris trgicos tm a sabedoria dos momentos sintticos, o resplendor dos grandes gestos: eles podem dar-se ao luxo de morrer. Podem dizer: "o resto siln- cio", quando o silncio exatamente o resto a ser percor- rido. So um Odisseu que, ao ouvirem as sereias do desti- no, agem e pulam na gua. Eles no tm gesto esta- turio do intelectual que, preso ao mastro de sua escriva- ninha, ouve as sereias s custas da castrao do gesto. Mas eles tambm no so os operrios-marinheiros, tapa- dos, presos ao rema-rema da sobrevivncia no dia-a-dia: o espao daqueles personagens clssicos se instaura no alm da luta cotidiana pelo feijo com arroz. Esses man- nheiros simples e sem nome, que sustentam o andar do navio, esto abaixo da linha de flutuao literria clssica.

    Ainda que nem toda unio de contrrios faa de uma obra necessariamente uma grande obra (pois as obras tn- viais tambm aproximam contrrios para desencadear a ao), toda obra de arte um plemos, uma unio de con- trrios. Ela tenta, assim, superar a viso limitada de uma classe, tenta indiciar a totalidade e a sua natureza contra- ditria. Caso a sociedade no fosse estruturada em classes, talvez o modo de ser das obras artsticas fosse completa- mente diverso. No sendo assim, as obras, para serem verdadeiras e, portanto, poderem ser artsticas, precisam poder reproduzir em si o alto e o baixo, em suas contra- dices.

    Estudar, portanto, o alto e o baixo no percurso do heri um modo estratgico de superar a antinomia da

  • critica moderna entre mtodo sociolgico e anlise ima- nente do texto. Esta antinomia corresponde no plano te- rico a trivialidade no plano das obras. E preciso evitar o subjetivismo, ainda que ele se esconda sob palavras como "mtodo", "abordagem" ou "cincia"; preciso acaute- lar-se ante a pretenso de cientificidade no s da anlise formal restrita, mas tambm da prpria sociologia da arte. Por outro lado, trata-se de aprender o que esses mtodos ensinam e de aproveitar a sensibilidade que certas expe- rincias sociais e histricas criam, no sentido de perceber certas caractersticas e marcas do passado e das obras.

    Se, na Ilada, a vitria militar dos gregos pode lev-los a uma espcie de derrota nas simpatias pessoais do leitor no-grego, entre os troianos aparecem personagens sim- pticos e polivalentes como Astianax, Heitor e Anddmaca. Astanax a prpria fragilidade em pessoa, a vtima ino- cente dos azares da guerra (ecoando a figura de Ifignia, sacrificada pelo pai Agammnon, para propiciar bons ven- tos as embarcaes gregas); Heitor pai, filho, marido, cunhado, chefe poltico, chefe militar e guerreiro; Andr- maca a prpria corporificao da derrota. A Ilada pretendia cantar a ira de Aquiles e decantar a vitria dos gregos, mas acaba mostrando a selvageria dessa ira e dando uma espcie de vitria literria aos vencidos, nios- trando-os como seres replenos de humanidade, e no sim- plesmente, tal como o faria a narrativa trivial, como sim- ples esquemas possibilitadores do surgimento da heroi- cidade do heri positivo.

    Heris baixos

    O cmico e o tragicmico

    A tragicomdia antiga era uma comdia em que apa- reciam deuses (da a dimenso do elevado, do "trgico"). Era um gnero misto ("trgico" pela presena dos deuses, "cmiw" pela presena dos homens) que no andou dando muito certo: servia para os deuses rirem dos homens, mas no propriamente para os homens rirem dos deuses. Como normalmente os deuses j passam o dia rindo dos homens, isso no tem nada de engraado. A alternativa talvez fosse a stira altiva dos homens contra os deuses: mas como possvel querer ser altivo quando a humilhao impera?

    Na comdia, a todo momento se mostra como baixo o que pretende ser no s alto mas tambm elevado, sem que a necessariamente se mostre o baixo como elevado. No incio da comdia Nuvens, de Aristfanes, o filsofo Scrates (considerado na pea como um supremo sofista) aparece sentado numa cesta que paira bem no alto do palco, esperando-se que, com isso, ele tenha pensamentos elevados. . . Colocado, assim, num plano alto, ele rebai- xado, mas isto s ocorre porque ele considerado "alto"

  • por outros segmentos sociais. Usando da contraposio entre corpo e esprito, inclusive para perguntar como num corpo to feio possam desenvolver-se pensamentos to elevados, em sua figura e posio so ridicularizados pensamentos, agredindo-se aos seus discpulos. Em suma, quanto mais ele elevado no palco fisicamente, tanto mais rebaixado espiritualmentc: c isto ocorre como reao elevao que certos gmpos sociais dele faziam. Ao mesmo tempo, centrando nele a ateno da comdia, ele litera- riamente elevado e, assim, mais uma vez reconhecida a sua importncia. No Soldado Fanfarro (Miles gloriosus) , de Plauto, quanto mais o "guerreiro" Pirgopolinices pro- cura elevar-se com as suas "grandiosas" faanhas militares, contando para isso com a especial "ajuda" do parasita Arto- trogo (que, em funo de algumas azeitonas, entoa gran- des loas ao seu protetor), tanto mais aparece e ressalta a sua covardia e incompetncia. militar. Quanto mais ele procura elevar-se, tanto mais ele cai.

    O satrico A stira tende a voltar-se contra os poderosos do mo-

    mento, numa espcie de vingana dos fracos. S que ela possvel to-somente na proporo em que estes fracos no so fracos: e isto tanto no contedo satirizado quanto na forma pela qual isso pode ser levado populao em geral ou a certos grupos. A stira - cujo vilo por exce- lncia o governante e cujo heri o intelectual que s detm o poder da palavra - procura mostrar o social- mente elevado como baixo, centralizando a sua ateno no alto, na elevao que de si mesmo o alto pretende, para mostrar isto como um conjunto de baixezas (como se mostra, poca da Inconfidncia Mineira, no Fanfarro Minsio) .

    O cmico procura mostrar o alto como baixo, mas centraliza a ateno no baixo. O trgico procura mostrar a queda do elevado e a grandeza do cado: por isso a tragdia tende a ser um gnero maior, mais denso e mais completo do que a comdia (ainda que haja tragdias inferiores a certas comdias). O grande pblico prefere em geral o cmico assim como prefere o trivial, pois a sua formao cultural tende a no ir alm do trivial e a sua vida j to atribulada que mais se prefere esquecer a lembrar.

    Ainda que a comdia nem sempre explicite o con- tragesto de elevar um elemento baixo (o que, de fato, ela muitas vezes chega a fazer, mostrando, por exemplo, a esperteza de um criado ou a faceirice de uma criada), ela tem sempre implcito o gesto de elevar certos segmentos sociais. O heri cmico, assim como qualquer outro heri, participa da luta entre diferentes interesses sociais: a rigor, a luta da qual todos os heris participam a luta de classes, ainda que em geral tudo seja feito, em termos de desloca- mentos, deformaes e escamoteamentos, para que este nvel profundo no aparea enquanto tal. A luta de classes no apenas o motor da Histria, mas o motor de qual- quer histria, em qualquer gnero, literrio ou no-lite- rrio.

    Quando algum ri, numa comdia, ele sempre ri de algum; quando algum est rindo, sempre h algum cho- rando: s que a comdia escamoteia o choro e a dor. A comdia est ai para diluir os problemas no riso. Ao / mesmo tempo. ela um modo de aflorar problemas que, de outro modo, no poderiam ser aflorados, pois viola- riam os interesses daqueles que detm o poder. O riso uma suprema demonstrao de vitalidade. Para rastrear o percurso do heri cmico, preciso perguntar qual o grupo social que ele representa e contra quem ele se volta. A pergunta a ser, portanto, colocada na anlise de

  • uma comdia : "quem ri de quem?W heri cmico tende a ser o vilo da comdia: ele o alvo do riso assim como o vilo no far-west est predestinado a ser o alvo das balas do mocinho. Na comdia, morre-se de rir (no o pblico, mas o seu heri): o heri cmico vive deste morrer. Quanto mais difcil a vida do espectador, provavel- mente tanto mais ele prefere o cmico: de trgica j lhe basta a vida. Ter tempo e disponibilidade para a tragdia e a tristeza exige ter condies de vida muito saudveis. O xito do cmico tende a ser um ndice de doena social e, ao mesmo tempo, um primeiro esforo de cura: a res- posta da vida corroso da morte.

    O picaresco O pcaro no apenas um heri trivial s avessas,

    que, ao invs de querer mostrar o alto como elevado, procuraria mostrar o baixo como inferior, pois, alm de dar o grande passo de centrar a ateno literria no social- mente baixo, ele faz um grande desnudamento - e con- seqente rebaixamento - do que socialmente pretende ser elevado e superior. Geralmente escrito na primeira pessoa, aparentando dar, portanto, a palavra a um perso- nagem de extraco social baixa. Mesmo assim, no d propriamente a palavra a este personagem: s faz de conta que d. No faz necessariamente a defesa do socialmente baixo: pelo contrrio, tende a ridiculariz-lo, rebaixando-o mais uma vez. Tende a expressar os interesses e o esprito crtico de uma classe social ou de um grupo social em processo de ascenso e que, astutamente, faz de conta que se identifica com um elemento socialmente inferior para, assim, poder dar melhor uma cacetada na classe ou grupo que ainda lhe superior. A astcia do foco narrativo pica- resco dar, aparentemente, a palavra ao prprio pcaro,

    -

    concentrando nele toda a ateno, para, num passe de m- gica, pelo outro lado, acabar no fazendo nem uma coisa nem a outra. Quanto mais central o pcaro, tanto menos ele o ceme de toda a questo. Quanto mais ele elevado literariamente por essa ateno, tanto mais ele rebaixado.

    H uma grande habilidade poltica subjacente ao foco narrativo picaresco: a habilidade do toureiro em apresentar a capa a fim de melhor manejar a espada. 13 a postura de um grupo social que se prepara para dar o bote na direo do poder, mas ainda no suficientemente forte para faz-lo. O astuto no a o rebaixamento do pcaro sob a aparncia de elev-lo literariamente, mas o rebaixa- mento de segmentos sociais considerados elevados sem que aquele que os rebaixa aparea como tal. Na leitura do romance picaresco preciso discemir no pcaro a sn- drome de foras contraditrias que nele encontram uma via de expresso, sem que elas apaream claramente como tais. O pcaro tenta matar a cobra sem mostrar o pau. O pcaro apenas o executor de um plano: o importante descobrir o autor intelectual dos "crimes" cometidos pelo pcaro. Geralmente a natureza desses eventos fornece pis- tas suficientes para adivinhar onde queria chegar esse mentor intelectual.

    Ainda que o sistema do romance picaresco seja cr- tico em relao estrutura social (pois rebaixa elementos socialmente altos), a figura do pcaro no propriamente revolucionria. O pcaro tem predecessores na comdia clssica (p. ex., na figura de Artotrogo) e na Bblia (p. ex., na figura de J e de Lzaro), mas o pcaro clssico, o Lazarillo de Tormes, s podia ter surgido quando o capi- talismo se implantava. O Lazarillo - lazarento social e lazer da sociedade - tem uma mobilidade espacial que seria impossvel a um servo medieval: neste sentido, ele representa um estgio inicial da "liberdade" do operric

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    em escolher o seu patro. A mobilidade social do capita- lismo corporificada nessa figura do picaro. I3 a "mobili- dade" proletria de cada um estar procurando salvar a pr- pria pele, sem qualquer segurana de emprego ou assistn- cia social. Este picaro configura o "direito" de vender a prpria fora de trabalho, ainda que ele mesmo esteja longe de ser um trabalhador modelar. H tudo nele, me- nos a ingenuidade que o romance picaresco aparenta. Re- presenta uma crtica indireta as condies proletrias de trabalho. O pcaro um manipulador dos mil truques necessrios a sobrevivncia: ele um "virador", um artista da gigolagem.

    O pcaro procura obter o mximo trabalhando o m- nimo possvel, enquanto o capitalista procura extrair do operrio o mximo de trabalho pagando o mnimo possi- vel. O pcaro a caricatura avessa do capitalista. A sua louvao da preguia e da vagabundagem carrega em si um implcito protesto contra o trabalho alienado. Mas ele no tem qualquer conscincia nem organizao poltica. A sua iniciativa apenas privada, como o prprio em- presrio da livre iniciativa. Ele a caricatura do capita-

    l lista - a comear pelo fato de ele no ter capital -, o I protesto impotente contra um sistema que o toma marginal, I mas a partir de cuja marginalidade ele desvenda e desvela

    o cerne do sistema. Ele no valoriza o trabalho, mas tam- ! bm no discerne a possibilidade histrica de o trabalho vir a ser valorizado. Em si, ele no tem nenhum projeto poltico, nenhuma participao partidria. Ele um alie- nado protesto contra o trabalho alienado. O seu cerne social, mas ele no tem esprito societrio. I3 um empe- dernido individualista e egocntrico. Mas nele desabrocha o avesso do modo de produo.

    Todo modo de produo cuida da reproduo deste modo de produo. Como o pcaro engraado, o seu percurso crtico se torna uma dissoluo do problemtico

    no riso. O riso acaba fazendo de conta que a negatividade social no to problemtica assim. Mas muitas vezes o nico modo dessa negatividade ainda poder aflorar. O pcaro, percebendo as relax5es de produo como uma m- quina de moer carne humana, procura tirar o corpo fora e dansar beira do abismo. Sempre est com fome, nunca se sente seguro. o mais mortal dos mortais. Aparenta no ter princpios morais. Aparenta cortejar os poderosos, mas acaba por desnud-los como que involuntariamente, desmascarando-lhes as fraquezas. Ele no fala em nome de princpios mais elevados. Mas por que desmascara ele o que pretende ser socialmente elevado?

    Levada mais,avante a pergunta imanente figura do pcaro, a atitude dele talvez sugira, simplesmente, que no h princpios mais elevados, mas to-somente diversidade de interesses, aparecendo como bons os interesses dos mais fortes. A verdade acaba sendo ento apenas a verso ofi- cial. Mas, se esta fosse efetivamente a nica seriedade possvel, nem o riso teria razo de ser. O pcaro faz-se de bobo, veste a roupa do riso: para melhor encenar a dana do acaso, a desvalia daquilo que pretende ser valor social supremo.

    Memrias de um sargento de milcias faz esta inver- so picaresca da sociedade imperial brasileira. V o mundo de uma perspectiva que no a da literatura oficial da poca. Macunama, por sua vez, uma cacetada contra a imigrao italiana, mas especialmente contra o capital estrangeiro corporificado num imigrante italiano. A dis- puta do muiraquit a disputa emblemtica em torno da mais-valia. O pcaro Macunama vai de um lado para o outro, sempre procurando viver as custas dos outros e no trabalhar. Macunama no um heri sem nenhum carter: ele tem o carter de um pcaro, de um picareta, de um picarus brasiliensis.

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    O grande mentecapto, de Fernando Sabino, um p- caro mineiro, cuja cena mais sintomtica e significativa aquela em que ele vai a uma festa onde se rene toda a alta sociedade e toda a elite governamental do ps-64. Ele come desbragadamente. Depois, precisando ritender com urgncia a certas necessidades fisiolgicas e no encon- trando o lugar adequado, sobe at um andar superior e, vendo l uma abertura, alivia nela as suas necessidades. S que esta abertura a abertura do sistema de ventilao, fazendo com que o material seja espalhado por todo o salo. Nesta cena, em suma: 1 ) o pcaro, elemento social- mente baixo, est posto acima do socialmente elevado; 2) no alto, o pcaro faz algo considerado baixo; 3 ) o baixo que o pcaro faz no alto rebaixa toda a alta sociedade que est embaixo. Ou seja: o que est embaixo fica em cima, o que est em cima se rebaixa, enquanto o elevado de baixo rebaixado. Isto equivale surra que o braslico Macunama d em Venceslau Pietro Pietra, o represen- tante do capital, do capital estrangeiro. Isso tanto mais engraado na fico quanto mais contrrio realidade. O riso vingana.

    Um dos empregos do Lazarillo ser guia de cego. S que este cego - mesquinho, ganancioso e tirnico - no lhe d sequer comida suficiente, vivendo a infernizar-lhe a vida. Lazarillo resolve vingar-se e largar esse servio. Diz ao cego que h um largo crrego que precisa ser saltado. Indica-lhe a direo em que ele deve pular. Com toda a fora o cego salta e vai bater no meio de um poste em plena rua. . . Ao pcaro nada mais resta seno buscar outro emprego. O cego tinha, portanto, uma superioridade de patro sobre o pcaro, mas uma inferioridade fsica. Esta utilizada para reverter aquela "superioridade" que se mostrava to baixa. A histria s continua sendo engraada porque o pcaro consegue escapar vingana do cego,

    demonstrao de sua superioridade de patro, em decor- rncia da ruptura das relaes trabalhistas.

    Ao trmino de sua histria, o Lazarillo est casado com a criada de um clrigo, ao qual ela presta servicos diversos, inclusive amorosos. O pcaro d a entender esta sua situao como altamente wmoda e vantajosa: ele tem uma pequena ascenso social aparente, s custas do rebai- xamento moral de mando enganado. Mas, por outro lado, e isto o que efetivamente importa, demonstra-se a hipo- crisia do clrigo, a diferena entre a "virtude" que ele prega e aquilo que ele mesmo pratica.

  • Heris altos

    Percursos e percalos O romance foi um gnero menor que se tomou maior:

    de marginal ele passou a dominante na literatura contem- pornea. Se, na literatura brasileira, at o sculo XVIII, poesia era praticamente sinnimo de literatura, na metade do sculo passado a narrativa passou a se desenvolver, a ponto de ter-se tornado o gnero plenamente dominante, invertendo-se a situao anterior. Ainda que a literatura brasileira se tenha desenvolvido a partir de parmetros eu- ropeus (especialmente da literatura francesa, inglesa e portuguesa), no se pode simplesmente julg-la a partir da evoluo desse "modelo" europeu (ainda que haja "atrasos" da chegada, por exemplo, do romantismo ou do realismo), pois seria desconhecer a especificidade da evoluo brasi- leira. E historicamente falso querer isolar a literatura brasi- leira e estud-la fora do contexto da literatura mundial, pois da no se consegue entender a sua especificidade.

    No estava dentro dos interesses portugueses que poca do Brasil-Colonia houvesse o desenvolvimento da publicao de livros aqui, pois isto poderia ajudar a criar

    um pensamento autnomo e independente. Isso inibiu o desenvolvimento da narrativa mais do que da poesia, pois esta ainda circulava entre a elite (portuguesa). A narrati- va enquanto gnero no necessariamente mais direta e engajada do que a poesia, mas ela pode tender mais nessa direo. No necessariamente a narrativa configura e pro- pe a reverso entre o alto e o baixo. Apesar do roman- tismo no Brasil ser em geral mais caracterizado pela poe- sia do que pela prosa, o romantismo europeu viu original- mente no romance o seu gnero por excelncia, aquele gnero que reunia em si todos os demais gneros, tornan- do-se como que sntese e sinnimo de literatura. O ro- mance se desenvolve mais com o processo de industriali- zao.

    Segundo Baudelaire, o poeta o grande heri da mo- dernidade, pois vive numa espcie de realidade em que no h propriamente lugar para o poeta: o que ele faz no vale nada para a sociedade. Ento s possvel ser poeta como pardia do papel de poeta: em desespero de causa, dedi- cando o melhor dos seus esforos para algo que no tem maior circulao, valorizao e, portanto, remunerao social. Mesmo assim, produz sob o signo da convico da absoluta importncia daquilo que faz. Por outro lado, estamns demasiado acostumados imagem do heri apetre chado com trajes de batalha romanos nu de cowboy: acabamos esquecendo quo herico preciso ser para sobreviver com o salrio mnimo e resistir s condies de trabalho vigentes!

    Diante da questo de a poesia no ser mais o gnero literrio dominante, mas ter sido atropelada pelo consumo em massa da narrativa trivial, reconhecendo-se, por outro lado, a enorme importncia intelectual da poesia herm- tica, o professor Hans Georg Gadamer (em conversas pes- soais em Heidelberg, em junho de 1982) destacou que a importncia da poesia no est simplesmente em sua di-

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    menso quantitativa, em seu pblico consumidor (onde s vezes at parece haver mais poetas do que leitores de poe- sia) : a poesia o refgio do cultivo da linguagem. A lin- guagem uma instncia estmturadora do pensamento.

    Estamos numa era em que progresso tem sido con- fundido com tecnologia. At mesmo a poesia tem sido analisada to-somente sob o signo da tcnica. Quando tiver sido ultrapassado o fascnio pela tecnologia e quando mais homens puderem beneficiar-se dela, talvez haja no- vamente um florescimento da poesia. As condies de vida moderna tm levado as pessoas a se entregarem trivialidade da televiso: mas talvez possa haver uma reao no sentido de buscar, em pouw tempo, a informa- o densa e concentrada da poesia. A diviso entre gne- ros significa aqui, na prtica, uma diviso entre massa e elite.

    Quando se leciona uma determinada literatura nacio- cional, tende-se, por motivos vrios, a hipewaloriz-ia. Tem-se, por exemplo, no Brasil, uma tendncia implcita nos cursos de Letras no sentido de considerar a literatura brasileira como o centro literrio do mundo, assim como h outros que a subavaliam e menosprezam. H, por con- seguinte, tanto a tendncia de consider-la como o litera- riamente "elevado" (para os brasileiros?) quanto a tendn- cia de consider-lo literariamente "baixa". Esta contrapo- sio precisa ser superada mediante a literatura compa- rada.

    A perspectiva desde cima e a perspectiva desde baixo encontram a sua expresso em dois pontos de vista nar- rativos diversos: o do pssaro, que sobrevoa os fatos e v de modo ahrangente tudo um tanto reduzido; e o do sapo, que v tudo de baixo para cima e fica boquiaberto diante da enormidade de tudo o que maior do que ele (para ele ainda comer o que menor). O primeiro parece corresponder possibilidade de produo do artstico, en-

    quanto o segundo parece permanecer no horizonte do tri- vial. Nem sempre assim, pois num detalhe microsc- pico pode colocar-se estrategicamente uma representao do todo, assim como a pretenso de estar por cima pode ser um modo de acabar no percebendo nitidamente nada.

    Heris nacionais H personagens da histria de um povo que personi-

    ficam a "alma" desse povo segundo a ideologia que num certo momento seja a dominante. Pode ser uma figura como Tiradentes, uma espcie de Joo Batista da liber- tao nacional, como pode ser um Duque de Caxias en- quanto heri da unidade do Brasil. Alm desses heris (com seus correspondentes vilos, conforme o ponto de vista do qual a histria estiver sendo escrita) oriundos das "pginas da histria", h heris literrios que pre- tendem corporificar imagens mais ou menos estereotipa- das de naes. Quando pretendem corporificar apenas qualidades positivas, tornam-se literariamente inferiores: o caso de Vasco da Gama. Quando fabricados sem a inteno de corporificar apenas qualidades positivas, po- dem eventualmente dar certo: o caso de Macunama. A figura de Fausto pode representar certos aspectos de um esprito nacional, mas pura ideologia achar que a nao toda tenha essas qualidades. O final do Fausto um deus ex machina que sugere que se pode fazer o que se quiser na vida, pois no fim sempre se acabar sendo salvo: isso problemtico.

    Um grande personagem nunca patrimnio exclusivo de uma nao. Assim que ele alcana um nvel artstico, passa a fazer parte do progresso de toda a humanidade, e tanto mais Estados procuram aproveitar-se disso. Ne- nhuma filosofia, msica, literatura ou cincia , em si,

  • importante por ser alem, inglesa, francesa, brasileira ou norte-americana, mas porque , em alto grau, Filosofia, Msica, Literatura ou Cincia. A inverso ideolgica, a transformao do adjetivo em substantivo, em elemento substancial, , contudo, muito frequente.

    Um heri portugus

    Ainda que escritos dentro da perspectiva da burgue- sia comercial ascendente, Os lusadas so um panegrico das classes dominantes e uma estetizao do imperialismo portugus, numa perspectiva basicamente unilateral, em que no h maior abertura para a alteridade do outro, dos povos visitados. O modelo de O s lusadas a Eneida, assim como o modelo desta a Odissia.

    A Eneida foi escrita para defender a origem divina da famlia que governava Roma (a famlia Jlia, como descendente de Enias, o troiano), para justificar a wn- quista da Grcia (como vingana dos romanos, conside- rados descendentes dos troianos, sobre os gregos), para explicar as guerras pnicas (como vingana dos cartagi- neses por Enias ter abandonado Dido, a antiga rainha deles). Assim como a Odissia a continuao da Ilada enquanto narrativa de episdios ocorridos depois da guerra, isto , durante o regresso de um grupo de gregos para casa, a Eneida pretende ser esta mesma continuao por parte de um grupo de troianos vencidos e que se te- riam tornado os fundadores de Roma. No importa que isto seja historicamente verdadeiro ou no: o que im- porta apenas que se tenha querido que fosse verdadeiro para legitimar determinados interesses.

    Desconhecendo a Odissia e tomando a Eneida por modelo, Cames perdeu como artista o que ganhou como idelogo. Odisseu, tendo sido um brilhante vencedor na

    Ilada, percorre na Odissia um roteiro cheio de altos e baixos: naufrgios e salvamentos miraculosos, humilha- es e homenagens pblicas, sofrimentos e alegrias, derro- tas e vitrias. Desempenha uma diversidade de papis: pai, filho, amante, marido, namorado, nufrago, lder militar, decifrador de enigmas etc.

    O seu filho literrio Enias e, portanto, o seu neto ignoto Vasco da Gama. Estes seus descendentes vo se tornando cada vez mais hierticos, rgidos, planos e po- bres como personagens: cada vez mais prepondera o lado ideolgico. O que a se ganha em poder perdido em fora literria. Vasco da Gama apenas uma esttua des- filando pelo mar. Se Enias ainda foi capaz de ter um caso amoroso com Dido (mesmo que fosse para os ro- manos se arranjarem uma bela patranha para explicar as guerras pnicas, que alis, foram basicamente uma disputa pela begemonia comercial sobre o Mediterrneo assim como a guerra de Tria fora uma disputa pela hegemonia co- mercial sobre a regio de Bsforo e no em torno da bela Helena), Vasco da Gama um tpico heri da contra-re- forma, um cruzado dos mares. O que ele aparenta ganhar em piedade e santidade, portanto em grandeza moral (dentro dessa moralidade da contra-reforma), ele perde em vitalidade e complexidade, portanto em grandeza arts- tica.

    Em Os lusadas, Vnus e Marte servem para legitimar o imperialismo portugus atravs do romano, enquanto Baco o deus dos no-cristos. Este representa os senti- mentos baixos ( e baixo acaba sendo tudo aquilo que no seja favorvel aos interesses portugueses), enquanto aque- les representam os ideais ditos elevados, numa antinomia absolutamente trivial. A aventura portuguesa divinizada, sublimada, transformando comerciantes e conquistadores em hericos missionrios da f. Atravs de Baco, toda e qualquer resistncia contra aqueles portugueses apresen-

  • tada como intriga do deus dos menos recomendveis senti- mentos.

    No caso da identificao com Roma, seguramente no se trata da Roma dos escravos nem dos gladiadores de Spartacus, nem sequer a Roma dos catecmenos, mas a Roma de Csar, a Roma conquistadora de vrios pases. Todos os episdios mais romanescos de O s lusadas servem sempre de novo para enfatizar a heroicidade da empreitada portuguesa (p. ex., o episdio de Adamastor). O Velho do Reste10 parece um equivalente ao soldado Trsites da Ilada e aparenta condenar toda a empreitada. De fato ele serve apenas para mais uma vez enfatizar a heroicidade da aventura. Ele no representa tanto uma viso popular, mas uma perspectiva feudal, de ficar fixado na prpria terra de nascena.

    Reverses e transgresses Quando se quer criar um personagem apenas subli-

    me, elevado, acaba-se criando algum artisticamente baixo porque carente de veracidade. Todo personagem que apenas corporifique qualidades positivas ou negativas um personagem trivial, pois foge natureza contraditria das pessoas e no questiona os prprios valores. A tri- vialidade corresponde a uma viso ingnua ou, talvez, viso que se tem nas horas de paixo absoluta, seja de amor, seja de dio. Pode ser, tambm, uma economia estrategicamente necessria a construo da obra.

    Apesar de grandemente verdadeiro, seria simplifica- dor dizer que a potica antiga classificava a grandeza dos gneros apenas em funo da mmese que neles se fazia da classe alta (gneros maiores) ou da classe baixa (gneros menores), pois, como se viu, nesse processo de mmese apareciam tambm os azares e apertos da classe alta e

    no s o destino tolo e tolhido da classe baixa (mas nunca praticamente como tolhido: apenas como baixo). Nas antigas obras clssicas, mostra-se a baixeza do baixo (s vezes tambm a sua esperteza), mas, como j se viu, no s a grandeza do alto. Na tragdia, essa grandeza preci- sa da desgraca, da queda, para melhor podcr manifestar-se.

    como se essa literatura de classe dominante servisse para exorcizar fantasmas, fazendo-os aparecer. O grande fantasma da classe alta , afinal de contas, a possibilidade de deixar de ser classe alta, de cair dessa posio elevada: este fantasma encenado na tragdia clssica. Purga-se assim esse temor e ensina-se o povo a temer os deuses que legitimam a classe governante no poder. Na verdade, os deuses so os prprios governantes, os governantes so os deuses. O que, na tragdia e na epopia clssicas, no chega a ser desenvolvido a possibilidade de a classe baixa eventualmente assumir uma posio elevada. Mas a fantasia atrelada as relaes vigentes numa certa poca, e as condies vigentes naquela poca impossibilitavam o desenvolvimento de tal hiptese. S o processo de indus- trializao capitalista, colocando muitas pessoas, prximas umas s outras, numa situao similar e com os mesmos entraves e problemas, que possibilitou o desenvolvimento da classe mdia e a organizao do operariado propi- ciando o advento de correntes literrias como o natura- lismo. Mais tarde, com o advento da revolu~o, surgiu o realismo socialista. Nessas escolas, os enredos encena- ram a possibilidade de a classe baixa desempenhar altas funes: polticas e literrias.

    Hoje, entre ns, boa parte da assim chamada "classe mdia" constituda por trabalhadores (por no-possui- dores de capital), que tanto podem identificar-se com a classe capitalista quanto podem afinar-se mais com as reivindicaes implcitas na situao do operariado. Isto faz com que o socialmente baixo v sendo transformado

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    em literatura. Mas uma das formas de conservadorismo pode ser exatamente o endeusamento do "z povinho", a louvao do status quo do povo: ele mostrado como sendo to bom que acaba sendo melhor deixar tudo assim como est.

    Por outro lado, a grande massa das narrativas que, por veculos diversos (livro, televiso, revista, cinema etc.), so aqui jogadas ao consumo do pblico caracteriza-se por sua trivialidade de direita: procura mostrar a natureza elevada das coisas da classe alta, cabendo classe baixa servi-la do melhor modo possvel. Isto no impede que eventualmente algumas "safadezas" de elementos da classe alta participem do enredo: mas s podem aparecer como faibas de determinados participantes dela, no como algo "constitutivo" da prpria classe (questo que se decifra, afinal, com a "mais-valia", a parcela no-remunerada do trabalho do assalariado que exatamente permite a "eleva- o" da classe alta).

    O paradoxo que se instaura o de que essa narrativa trivial de direita dirigida basicamente para a classe do- minada, enquanto que a trivialidade de esquerda (na qual se procura mostrar a baixeza da classe alta e a natureza elevada da classe baixa) em grande parte consumida pela prpria classe dominante. Este paradoxo resolve-se pelo fato de que em ambos os casos se refora e legitima a estruturao da sociedade em classes: ensinando os de baixo a respeitarem os de cima e alertando os de cima quanto aos seus possveis pontos vulnerveis.

    Heris da modernidade

    Na modernidade, segundo Weinrich, tambm existe uma potica normativa: nela seria preciso mostrar o alto como baixo e o baixo como elevado para que se possa ter uma obra de arte literria. Ora, esta questo no pode ser entendida em sua abrangncia dentro de uma perspec- tiva apenas idealista. Quando se tem o socialmente alto sendo apresentado s como elevado e o socialmente baixo se elevando s pela identificao com o socialmente ele- vado, acrescentando-se a isso um final feliz, cai-se quase inevitavelmente na literatura trivial de direita. Segundo Weinrich, as obras modernas, para poderem ser artistica- mente superiores, tm como que uma proibio de heris positivos e de felicidade. Exceto no realismo socialista, onde se tem heris positivos e final positivo. Isso tambm acontece, alis, nas narrativas triviais de direita: a questo que se coloca a da qualidade artstica do realismo socia- lista; a questo segunda se volta, ento, para a prpria definio de "qualidade artstica". Essa definio o ponto nevrlgico de todas as estticas, onde o discurso no vai mais adiante, como que sugerindo a sua reverso: o esttico enquanto legitimao do poder.

  • Heris da decadncia Quando h heris positivos e felicidade, a potica

    moderna aponta normativamente para a trivialidade. Wein- rich pensa que Proust uma exceo a isso. Em busca do tempo perdido uma obra absolutamente centrada e con- centrada na aristocracia, mas os aristocratas que nela apa- recem no so apenas elevados. Pelo contrrio, relen- do-se a obra a comear pelo stimo volume (O tempo reencontrado), a partir do momento em que o persona- gem-narrador toma a resoluo de escrever esta obra, observa-se claramente que ela no registra apenas o fas- cnio do autor pela aristocracia. No stimo volume apa- recem os aristocratas exilados em Paris pela Revoluo Russa. Soa claramente o sino que anuncia a morte hist- rica dessa aristocracia: o que a se ouve o seu rquiem. Em busca do tempo perdido um grande museu de um mundo parasitrio, condenado a morte.

    Alm de esses aristocratas serem re-vistos como de- funtos, quanto mais elevados esto em sua hierarquia, tanto mais neles aflora o baixo. Exemplo disso o Baro de Charlus. O fato de ele ser homossexual (como vrios dos principais personagens) no ocasional. A perverso sexual corresponde a perverso econmica que todos eles representam: so apenas consumidores. O mundo a visto apenas da perspectiva do consumidor, do para- sita. Pertencendo a classe alta e no precisando lutar para sobreviver, esses personagens de Proust tambm no pre- cisam ser pcaros. A Duquesa de Guermantes parece ser uma exceo nesse mundo de personagens de extrao social alta, mas cheios de "baixezas". O comportamento do marido dela, com seus vrios casos amorosos, levan- do-a a ter num adolescente uma espcie de namoradinho platnico, acaba, porm, com esta exceo: ao mesmo

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    tempo, uma cena falta de maldade aumenta-lhe a ruindade literria e diminui a fora do seu impacto.

    Retornando aos sales aristocrticos aps anos de ausncia, Marcel nota como esse mundo, que parecia to imutvel, andou se alterando: no s porque antigas pros- titutas se tornaram respeitabilssimas damas da sociedade, mas especialmente devido a acelerao dos acontecimentos com a Primeira Guerra Mundial. Faz o registro do mundo tal como dele se lembra. Registra aquilo que propria- mente no existe mais. Mas que continua lembrado gran- demente porque existe muito mais do que se imagina. Desvinculado dos acontecimentos mais imediatos, pode dedicar-se ao estudo das leis do corao, da memria e da percepo, transcendendo o horizonte de um determi- nado grupo social do momento. Faz no apenas um pane- grico da aristocracia, mas lhe passa tambm um atestado de bito e morbidez: os seus divinos aristocratas so pro- fundamente demonacos. A felicidade que ele procura na obra literria aquela que no encontrou na vida.

    A vida aparece como um duro processo de enganos e desilues. Albertina, a grande mulher amada, no lhe fiel: e isto no com outros h