O DESCONSOLADO KAZUO ISHIGURO http://groups.google.com/group/digitalsource
O DESCONSOLADO
KAZUO ISHIGURO
http://groups.google.com/group/digitalsource
Traduo de Ana Luiza Dantas Borges
ROCCO Rio de Janeiro 1996
Ttulo original em ingls: THE UNCONSOLED
Copyright, 1995 by Kazuo Ishiguro
Fico japonesa.
Ishiguro, Kazuo, 1954 -
Para Lorna e Naomi
PARTE I
1
O motorista do txi pareceu embaraado ao ver que no havia
ningum sequer um funcionrio no balco da recepo me
aguardando. Atravessou o saguo deserto, quem sabe esperando
encontrar algum empregado escondido atrs de uma das plantas ou de
alguma poltrona. Acabou colocando minhas malas no cho, ao lado das
portas do elevador, e, murmurando alguma desculpa, despediu-se e
partiu.
O saguo era razoavelmente espaoso, possibilitando que
vrias mesinhas fossem dispersas, sem dar a impresso de atravancar a
passagem. Mas o teto era baixo e arqueado, criando uma atmosfera
ligeiramente claustrofbica, e, apesar de o sol brilhar l fora, a luz era
sombria. Somente prximo ao balco da recepo, um raio de sol incidia
na parede, iluminando uma parte do revestimento de lambri escuro e
uma pilha de revistas em alemo, francs e ingls. Alm disso, vi um
pequeno sino de prata sobre o balco e estava prestes a sacudi-lo
quando uma porta se abriu em algum lugar atrs de mim e surgiu um
jovem de uniforme.
Boa tarde, senhor disse com a voz cansada e, indo para
trs 'o balco, deu incio ao registro.
Embora murmurasse uma desculpa por sua ausncia, sua
conduta permaneceu durante algum tempo nitidamente descuidada.
Assim que falei meu nome, entretanto, teve um sobressalto e aprumou-
se.
Senhor Ryder, sinto muito, no o reconheci. O Senhor
Hoffman, o gerente, queria muito receb-lo pessoalmente. Mas,
infelizmente, neste exato momento, teve de comparecer a uma reunio
importante.
No tem problema. Terei muito prazer em conhec-lo mais
tarde.
O rapaz apressou-se a preencher os formulrios de registro,
sem parar de resmungar a respeito de como o gerente ficaria aborrecido
por no estar presente.
Mencionou duas vezes o fato de os preparativos para "a noite
de quinta-feira" o terem colocado sob uma presso fora do comum,
mantendo-o afastado do hotel mais do que o habitual. Eu apenas
abanava a cabea, sem foras para indagar sobre a natureza exata da
"noite de quinta-feira".
Ah, o Senhor Brodsky est se saindo de modo esplndido
hoje disse o recepcionista, animando-se. Realmente de modo
esplndido. De manh, ensaiou a orquestra por quatro horas seguidas.
Escute o agora! Obstinado, aprimora o trabalho sozinho.
Apontou para os fundos do saguo. S ento percebi que um
piano estava sendo tocado em alguma parte do prdio, quase inaudvel,
abafado pelo rudo do trnsito l fora. Levantei a cabea e escutei com
mais ateno. Algum tocava uma nica frase curta era do segundo
movimento de Verticality, de Mullery repetidamente, de um modo
lento e absorto.
Evidentemente, se o gerente estivesse aqui dizia o rapaz
, traria o Senhor Brodsky para apresent-lo. Mas no sei... Deu uma
risada. Bem, no sei se devo perturb-lo.
Quando fica assim to concentrado...
Claro, claro. Fica para outra vez.
Se o gerente estivesse aqui... calou-se e riu de novo.
Ento, inclinando-se para a frente, disse em voz baixa: Sabia que
alguns hspedes tiveram a coragem de se queixar? De fecharmos a sala
de estar sempre que o Senhor Brodsky pede o piano? incrvel como
certas pessoas pensam! Na verdade, ontem mesmo, dois hspedes
reclamaram com o Senhor Hoffman. Mas pode estar certo de que foram
rapidamente colocados em seus devidos lugares.
Estou certo que sim. Disse Brodsky? Refleti sobre o nome,
mas no me disse nada. Ento, percebi que o recepcionista me
observava com uma expresso intrigada e declarei rapidamente:
Sim, sim, terei muito prazer em conhecer o Senhor Brodsky
na hora oportuna.
Se pelo menos o gerente estivesse aqui.
Por favor, no se preocupe. Bem, mas se isso tudo,
gostaria de...
claro, senhor. Deve estar muito cansado depois de uma
viagem to longa. Esta a sua chave. Gustav, que est logo ali o
conduzir ao quarto.
Olhei para trs e vi que um carregador idoso esperava do
outro lado do saguo. Estava em frente ao elevador aberto, observando
seu interior com um ar absorto. Teve um sobressalto quando me
aproximei.
Ento, pegou as malas e entrou prontamente no elevador, logo
atrs de mim.
Quando comeamos a subir, o velho continuou carregando as
duas malas e percebi que ficava cada vez mais vermelho em razo do
esforo. As malas eram pesadas e uma preocupao sincera com a
possibilidade de ele vir a desfalecer na minha frente fez com que eu
dissesse:
Sabe, acho que realmente devia coloc-las no cho.
Fico contente que tenha mencionado isso, senhor disse
ele, e sua voz, surpreendentemente, pouco traa o esforo fsico que
estava fazendo. Quando comecei nesta profisso, h muitos anos,
costumava colocar as malas no cho. S as carregava quando
estritamente necessrio. Isto , quando em movimento. De fato, nos
primeiros quinze anos, tenho de admitir que usava esse mtodo. o
que muitos dos carregadores jovens desta cidade ainda empregam. Mas,
agora, no me ver fazendo esse tipo de coisa. Alm disso, no vamos
para um andar to alto.
Continuamos a subir em silncio. Ento, eu disse:
Pelo visto, trabalha neste hotel j h algum tempo.
Faz vinte e sete anos, senhor. Vi muitas coisas durante esse
tempo. Mas, evidentemente, o hotel j existia muito antes de eu vir para
c. Dizem que Frederico, o Grande, hospedou-se por uma noite aqui, no
sculo XVIII, e, pelo que contam, j era um hotel de renome na poca.
Sim, ao longo dos anos, aqui se deram eventos de grande interesse
histrico. A qualquer hora, quando no estiver to cansado, terei prazer
em relatar algumas dessas coisas ao senhor.
Mas estava dizendo falei , por que acha um erro colocar
a bagagem no cho.
Ah, sim disse o carregador. Esta uma questo
interessante. Como pode imaginar, em uma cidade como esta, h
muitos hotis. Isso significa que muita gente, em algum momento, j
tentou ser carregador. Muita gente acha que basta vestir o uniforme e
pronto, j pode exercer o ofcio. uma iluso particularmente
alimentada nesta cidade. Chame de mito local, se quiser. E confesso
que houve um tempo em que eu tambm pensava assim. Ento, certa
vez, isso foi h muito tempo, minha mulher e eu viajamos durante um
feriado. Fomos Sua, a Lucerne. Minha mulher j falecida, mas,
quando penso nela, me lembro desse feriado. L muito bonito, beira
do lago. O senhor com certeza sabe disso. Fizemos passeios de barco
adorveis depois do caf da manh. Bem, voltando ao assunto, durante
o feriado, observei que as pessoas naquela cidade no faziam o mesmo
tipo de suposies que as pessoas daqui acerca dos carregadores. Como
posso dizer? L demonstravam muito mais respeito pelo carregador. Os
melhores possuam certo renome e os grandes hotis disputavam seus
servios. Isso abriu meus olhos. Mas, nesta cidade, bem, uma outra
idia prevalecia h muito, muito tempo. De fato, h momentos em que
acho que nunca ser erradicada. No estou dizendo em absoluto que as
pessoas daqui sejam rudes conosco. Longe disso. Sempre fui tratado
com cortesia e considerao. Mas, veja, sempre h a idia de que
qualquer um pode fazer esse trabalho se meter na cabea, se cismar em
faz-lo. Acho que porque todo mundo nesta cidade teve, de alguma
forma, a experincia de carregar bagagem de um lugar para outro.
Como j fizeram isso, acham que o carregador de hotel apenas um
prolongamento da mesma coisa. Ao longo dos anos, ouvi, neste mesmo
elevador, pessoas me dizerem: "Devia abandonar o que fao e me tornar
carregador." Assim mesmo. Bem, certa vez, pouco depois do feriado em
Lucerae, um dos principais membros da cmara municipal me disse
exatamente o seguinte: "Gostaria de fazer isso um dia desses." E
apontando para a bagagem: "Isso que vida. Nenhuma preocupao."
Acho que tentava ser gentil. Queria dizer que eu devia ser invejado. Isso
foi quando eu era mais jovem e no carregava as malas. Deixava-as no
cho, aqui, neste elevador, e acho que, nessa poca, eu parecia, de
certa forma, assim. Entende? Despreocupado, como o cavalheiro
insinuou. Bem, uma coisa certa: foi a gota d'gua. No estou
querendo dizer que as palavras dele, por si ss, tenham me deixado com
raiva. Mas, quando me disse isso, bem, as coisas como que ficaram
claras de vez. Coisas em que eu pensava j h algum tempo. E, como
expliquei antes, tinha acabado de chegar de Lucerne, lugar que me
abriu uma nova perspectiva. E pensei c comigo: bem, est mais do que
na hora de os carregadores desta cidade mudarem a atitude que
prevalece na cidade. Entende? Vi uma coisa diferente em Lucerne e
senti que realmente no era muito certo o que acontecia por aqui.
Ento, refleti profundamente e decidi tomar uma srie de medidas
pessoalmente. claro que, mesmo naquela poca, eu sabia que ia ser
difcil. Eu j devia perceber, h tanto tempo, que talvez fosse tarde
demais para minha gerao. Que as coisas tinham ido longe demais.
Mas, pensei, se fizer minha parte e conseguir mudar a situao, nem
que seja um pouquinho, pelo menos tornarei as coisas mais fceis para
aqueles que vierem depois. Ento, adotei minhas medidas e insisti
nelas, a partir do dia em que o vereador disse aquilo. E sinto orgulho
em afirmar que vrios carregadores desta cidade seguiram meu
exemplo. Isso no significa que tenham adotado as mesmas medidas.
Mas digamos que suas medidas fossem, bem, compatveis.
Entendo. E uma das medidas era no pr as malas no cho,
mas continuar a carreg-las.
Exatamente, o senhor entendeu perfeitamente.
Evidentemente, tenho de admitir que, quando assumi essas normas,
era muito mais jovem e mais forte e no pesei o fato de que, com a
idade, ficaria cada vez mais fraco. engraado, mas no pensei nisso.
Os outros carregadores disseram coisas semelhantes. Todos da mesma
maneira tentaram manter as antigas resolues. Tornamo-nos, ao longo
dos anos, um grupo muito unido, doze de ns. Somos os que restaram
dos que tentaram mudar as coisas h tantos anos. Se agora eu tentasse
voltar atrs em algum ponto, acho que desapontaria os outros. E, se
qualquer um deles deixasse de obedecer as antigas regras, eu sentiria o
mesmo. Pois no h dvida de que houve um progresso em relao a
isso nesta cidade. Ainda resta um longo caminho a ser percorrido,
verdade, mas sempre falamos sobre isso quando nos reunimos aos
domingos tarde no Hungarian Caf, na cidade velha. O senhor podia
aparecer por l, seria um convidado muito bem-vindo. Bem, discutimos
freqentemente sobre esse tipo de coisa e todos concordamos que, sem
dvida alguma, houve uma melhora considervel da atitude em relao
a ns. Os que vieram depois, os mais jovens, claro, tomam isso como
natural. Mas nosso grupo, do Hungarian Caf, ns sabemos que
interferimos na mudana, por menor que tenha sido. O senhor ser
muito bem-vindo. Teria prazer em apresent-lo ao grupo. Hoje, somos
muito menos formais do que ramos, e entendemos que, s vezes, em
circunstncias especiais, convidados sejam introduzidos nossa mesa.
muito agradvel nesta poca do ano, com um sol to generoso
tarde. Temos nossa mesa sombra, sob o toldo, de frente para a velha
praa. muito agradvel, estou certo de que vai gostar. Mas, voltando
ao assunto, discutimos muito essa questo no Hungarian Caf. Isto ,
as velhas resolues que tomamos naquele tempo. Mas nenhum de ns
tinha pensado no que aconteceria quando ficssemos mais velhos. Acho
que estvamos to envolvidos no trabalho que s pensvamos nas
coisas com base no presente.
Ou, talvez, subestimssemos o tempo que levaria para que
tais atitudes, to profundamente arraigadas, se modificassem. Mas aqui
estamos. Agora, tenho esta idade e fica mais difcil a cada ano.
O carregador fez uma pausa e, apesar do esforo fsico,
parecia perdido em seus pensamentos. Depois, ele disse:
Vou ser franco com o senhor. Temos de ser justos. Quando
era mais jovem, quando formulei as regras para mim mesmo, sempre
carregava at trs malas, por maiores e pesadas que fossem. Se o
hspede tivesse uma quarta, eu a colocava no cho. Porm de trs eu
sempre dava conta. Bem, a verdade que h quatro anos estive doente,
e as coisas ficaram mais difceis, o que foi discutido no Hungarian Caf.
No final, meus colegas concluram que eu no deveria ser to rigoroso
comigo mesmo. Afinal, me disseram, o que interessava era transmitir
aos hspedes algo da verdadeira natureza de nosso trabalho. Duas ou
trs malas, o efeito seria basicamente o mesmo.
Deveria reduzir o meu mnimo para duas e no afetaria nada.
Acatei o que disseram, mas sei que no verdade. Percebo que no
causa o mesmo efeito quando as pessoas olham para mim. H uma
diferena entre ver um carregador com duas malas e outro com trs.
Temos de admitir que, mesmo para o olho menos experiente, o efeito
consideravelmente diferente. Eu sei disso e confesso que doloroso
admiti-lo. Mas voltando ao assunto, espero que agora compreenda por
que no ponho suas malas no cho. O senhor s tem duas. Pelo menos
por mais alguns anos, duas estaro no limite de minha capacidade.
Bem, isso tudo muito louvvel eu disse. Com certeza,
causou o impacto desejado em mim.
Gostaria que soubesse que no sou o nico que mudei.
Discutimos esse tipo de coisa o tempo todo no Hungarian Caf e a
verdade que cada um de ns teve de se modificar.
Mas no quero que pense que estejamos tolerando desvios de
nossa inteno. Se fizssemos isso, nossos esforos, nesses anos todos,
teriam sido em vo. Ns nos tornaramos rapidamente motivo de
chacota. As pessoas zombariam ao nos verem reunidos nas tardes de
domingo. Oh, no! Continuamos rigorosos um com o outro e, como
estou certo de que a Senhorita Hilde confirmaria, a comunidade
respeita nossos encontros aos domingos tarde. Como j disse, o
senhor ser bem-vindo. Tanto o caf quanto a praa so extremamente
agradveis nas tardes ensolaradas. E s vezes o proprietrio
providencia para que violinistas ciganos toquem na praa. O
proprietrio tem um grande respeito por ns.
O caf no grande, mas ele sempre reserva um espao para
que fiquemos confortveis em nossa mesa. Mesmo quando est muito
cheio, providencia para que no sejamos excludos ou perturbados. At
mesmo nas tardes com maior movimento, se todos em nossa mesa
quiserem esticar os braos ao mesmo tempo, nenhum tocar no outro.
Por a se v como o proprietrio nos respeita. Tenho certeza de que a
Senhorita Hilde confirmaria o que estou dizendo.
Queira desculpar-me disse eu , mas quem essa
Senhorita Hilde a que tanto se refere?
Nem bem terminei de falar, notei que o carregador olhava para
algum ponto atrs de mim. Ao me virar, fiquei surpreso ao perceber que
no estvamos sozinhos no elevador.
Uma mulher jovem e pequena, elegante em seu traje de
trabalho, estava no canto atrs de mim. Percebendo que finalmente eu
a notara, sorriu e deu um passo frente.
Desculpe disse ela , espero que no pense que eu estava
bisbilhotando, mas no pude deixar de ouvir. Ouvi o que Gustav lhe
contava e devo dizer que ele foi injusto conosco, com a gente desta
cidade. Quer dizer, quanto a no valorizarmos os carregadores de hotel.
Claro que valorizamos, e a Gustav mais que todos. Todos gostam dele.
Como v, h uma contradio no que ele acabou de dizer. Se os
subestimssemos tanto, como explicaria a deferncia com que so
tratados no Hungarian Caf? Realmente, Gustav, no foi gentil nos
descrever dessa forma ao Senhor Ryder.
Isso foi dito em um tom incontestavelmente afetuoso, mas o
carregador pareceu ficar envergonhado. Endireitou o corpo, afastando-
se de ns, as malas pesadas, com o movimento, bateram em suas
pernas, e desviou o olhar, encabulado.
Pronto, assim ele aprende disse a jovem sorrindo. Mas
ele um dos melhores. Todos gostamos dele. excessivamente modesto
e nunca admitiria isso ao senhor.
Na verdade, no seria um exagero afirmar que o reverenciam.
H vezes em que os ver sentados em volta da mesa, nas tardes de
domingo, sem comearem a falar at que Gustav tenha chegado. Acham
que seria desrespeitoso, entende?, darem incio conversa na sua
ausncia. comum estarem, dez ou onze deles, ali sentados em
silncio, tomando caf, aguardando. No mximo trocam sussurros
casuais, como se estivessem em uma igreja. Mas s relaxam e comeam
a conversar realmente quando Gustav chega.
Vale a pena ir at l para assistir sua chegada. O contraste
entre antes e depois flagrante.
Em um primeiro momento o que se v so caras sombrias e
silenciosas em volta da mesa. Ento, Gustav aparece e comeam a
gritar e rir. Empurram-se, do tapinhas uns nas costas dos outros,
brincando. Algumas vezes chegam a danar, sim, em cima das mesas!
H uma "Dana dos Carregadores", no , Gustav? Realmente, se
divertem. Mas no antes de Gustav chegar. Evidentemente, ele nunca
lhe contaria isso, to modesto! Todos nesta cidade gostam realmente
muito dele.
Enquanto ela falava, Gustav deve ter continuado a se virar,
pois, quando olhei para ele, estava de frente para o canto oposto do
elevador, de costas para ns. O peso das malas fazia arquear seus
joelhos e os ombros estremecerem. Sua cabea estava baixa, de modo a
ficar praticamente fora do alcance de nossa vista, mas difcil dizer se
isso era em razo da timidez ou do esforo fsico.
Desculpe, Senhor Ryder disse a jovem , ainda no me
apresentei. Sou Hilde Stratmann. Fui incumbida de providenciar para
que tudo corra da melhor forma enquanto estiver conosco. Fico feliz
por, finalmente, ter conseguido chegar. Estvamos todos comeando a
ficar preocupados. Todos o esperaram o mximo que podiam, pela
manh, mas muitos tinham compromissos importantes e tiveram de se
ausentar. Ento, coube a mim, uma simples funcionria do Instituto
Municipal de Artes, dizer-lhe como estamos honrados com sua
presena.
um prazer estar aqui. Mas, quanto a esta manh, acabou
de dizer que...
Oh, no se preocupe com esta manh, Senhor Ryder.
Ningum ficou nem um pouco aborrecido. O importante que est aqui.
Sabe, se h uma coisa com que concordo com Gustav sobre a cidade
velha. realmente muito interessante e sempre aconselho que a
visitem. Tem uma atmosfera maravilhosa, cheia de cafs pelas caladas,
lojas de artesanato, restaurantes. Fica a poucos passos daqui, por isso
deve aproveitar a oportunidade assim que seu horrio permitir.
Farei isso com certeza. A propsito, Senhorita Stratmann,
por falar em horrio... Fiz uma pausa deliberada, esperando que se
lembrasse, ou talvez que pegasse em sua pasta um papel ou um folheto.
Mas, embora tenha me interrompido prontamente, foi para
dizer:
um horrio apertado sim. Mas no me parece invivel.
Tentamos nos ater estritamente s coisas essenciais. Inevitavelmente,
fomos inundados por tantas de nossas sociedades, pela mdia local, por
todo mundo. O senhor tem muitos admiradores nesta cidade, Senhor
Ryder. Muitas pessoas acham que no apenas o maior pianista vivo,
mas, talvez, o maior deste sculo. Mas acredito que tenhamos
conseguido reduzir sua agenda ao essencial. Estou certa que no
encontrar nada que julgue to inoportuno.
Nesse exato momento, as portas do elevador se abriram e o
velho carregador saiu para o corredor. As malas faziam com que
arrastasse os ps pelo carpete e a Senhorita Stratmann e eu o
seguimos, medindo os passos para no alcan-lo.
Espero que ningum tenha ficado ofendido disse
enquanto andvamos. Refiro-me a no ter havido tempo para todos.
Oh, no, por favor, no se preocupe. Todos sabemos por que
est aqui e ningum gostaria de ser responsvel por perturb-lo. De
fato, Senhor Ryder, afora dois compromissos sociais muito importantes,
o resto de sua programao est mais ou menos diretamente
relacionado noite de quinta-feira. claro que at ento j estar
familiarizado com sua agenda.
Havia algo na maneira como proferiu esta ltima observao
que tornou difcil que eu respondesse de modo totalmente franco.
Apenas murmurei:
Sim, claro.
uma programao pesada. Mas nos guiamos por seu
pedido de ver o mximo possvel com os prprios olhos. Uma inteno
muito louvvel, se posso dizer assim.
nossa frente, o velho carregador parou diante da porta.
Finalmente ps as malas no cho, e comeou a mexer na fechadura. Ao
nos aproximarmos, Gustav tornou a segurar as malas e cambaleou para
dentro do quarto dizendo:
Por favor, siga-me.
Estava prestes a obedec-lo quando a Senhorita Stratmann
ps a mo em meu brao. No quero prend-lo disse ela. Mas s
me falta verificar se h alguma coisa na programao com que no
esteja satisfeito.
A porta ficou encostada, nos deixando do lado de fora, no
corredor.
Bem, Senhorita Stratmann eu disse , no geral me
pareceu... uma agenda muito bem equilibrada.
Foi precisamente com seu pedido em mente que
providenciamos o encontro com o Grupo de Apoio Mtuo. Este grupo
formado por pessoas comuns, de todos os ramos, reunidas pela
sensao comum de serem vtimas da crise atual. Poder ouvir relatos
em primeira mo do que algumas pessoas tm passado.
Ah, sim. Vai ser muito til, com certeza.
E, como deve ter reparado, tambm respeitamos seu desejo
de conhecer o Senhor Christoff pessoalmente. Dadas as circunstncias,
entendemos perfeitamente as razes do pedido de tal encontro. O
Senhor Christoff, por seu lado, est encantado, como era de se esperar.
Naturalmente ele tem seus prprios motivos para querer conhec-lo.
O que quero dizer que ele e seus amigos faro,
evidentemente, todo o possvel para que veja as coisas maneira deles.
Naturalmente, ser um contra-senso, mas estou certa de que achar
tudo muito til para compor um quadro geral do que est acontecendo.
Senhor Ryder, parece muito cansado. No quero prend-lo por mais
tempo.
Aqui est meu carto. Por favor, no hesite em me chamar se
tiver qualquer problema ou dvida.
Agradeci e a observei se afastar no corredor. Ao entrar no
quarto, ainda refletia sobre as diversas implicaes dessa conversa e
precisei de um momento para notar Gustav, em p, ao lado da cama.
Aqui est, sir.
Depois da preponderncia da madeira escura por toda parte
no prdio, fiquei surpreso com a decorao leve e moderna do quarto. A
parede diante de mim era de vidro, do cho at quase o teto, e o sol
atravessava, de modo agradvel, as persianas verticais, penduradas
contra ela. As malas haviam sido colocadas, uma ao lado da outra,
perto do armrio.
Bem, sir, se puder ter um pouco mais de pacincia disse
Gustav , mostrarei as acomodaes. Desse modo, sua estada ser a
mais confortvel possvel.
Acompanhei-o pelo quarto, enquanto ele mostrava os
interruptores e outras facilidades. A certa altura, conduziu-me ao
banheiro e, ali, prosseguiu com as explicaes.
Eu estava prestes a interromp-lo, como costumo fazer
quando um carregador me mostra o quarto em um hotel, mas alguma
coisa na diligncia com que desempenhava sua tarefa, alguma coisa em
seu empenho em personalizar algo que fazia vrias vezes ao dia,
comoveu-me e impediu-me de dispens-lo. Ento, enquanto ele
prosseguia com as explicaes, apontando com a mo para vrias
partes do quarto, me ocorreu que, alm de seu desejo genuno de me
ver confortvel, uma determinada questo que o preocupara durante o
dia todo novamente ocupava sua mente. Em outras palavras, estava
mais uma vez preocupado com sua filha e o netinho.
Quando lhe propuseram o acordo h vrios meses, Gustav
no pensou que isso lhe causaria nada alm de um prazer sem maiores
complicaes.
Passaria algumas horas de uma tarde por semana passeando
pela cidade velha com seu neto, permitindo, desse modo, que Sophie
tivesse um pouco de tempo para si mesma. Alm disso, o acordo logo se
revelou um sucesso e, em algumas semanas, av e neto desenvolveram
uma rotina extremamente agradvel para os dois. Nas tardes em que
no chovia, iniciavam pelo parque dos balanos, onde Boris
demonstrava suas ltimas proezas. Se chuviscava, comeavam pelo
museu dos barcos. Depois, andavam pelas ruelas da cidade velha
olhando as lojas de presentes, e talvez parassem na velha praa para
assistir a um mmico ou a um acrobata. Como o velho carregador era
muito conhecido na rea, nunca iam muito longe sem que algum
viesse cumpriment-los, e Gustav ouvia muitos elogios a seu neto. Em
seguida, iam at a ponte velha observar os barcos que passavam sob
ela. A expedio era, ento, encerrada em seu caf predileto, onde
pediam bolo ou sorvete e aguardavam a volta de Sophie.
No comeo, esses pequenos passeios foram motivo de imensa
satisfao para Gustav. Entretanto, o maior contato com a filha e o neto
obrigou-o a reparar em coisas que, em tempos passados, talvez
rechaasse. Chegou um momento em que no pde mais fingir que
estava tudo bem. Para comear, havia a questo do estado de esprito
de Sophie. Nas primeiras semanas, ela se despedia animada,
apressando-se para ir ao centro da cidade fazer compras ou encontrar
alguma amiga. Porm, ultimamente, andava desanimada, como se no
tivesse nada para fazer. Alm disso, havia claros sinais de que o
problema, qualquer que fosse, comeava a afetar Boris. bem verdade
que seu neto, na maior parte do tempo, continuava a se mostrar alegre.
Mas o carregador havia notado que de vez em quando, principalmente
quando se referiam casa, uma sombra encobria a expresso do
menino. Foi ento que, h duas semanas, aconteceu uma coisa que o
velho carregador no conseguia tirar da cabea.
Caminhava com Boris e, ao passar por um dos vrios cafs da
cidade velha, nele viu, subitamente, sua filha. O toldo protegia a
vidraa, permitindo uma clara viso do interior, e ali estava Sophie,
sentada sozinha, com uma xcara de caf frente e uma expresso de
profunda desolao. A revelao de que ela no tivera nimo de deixar a
cidade velha, sem contar a expresso em seu rosto, provocou um
choque no carregador to forte que precisou de um tempo para refletir
e tentar distrair a ateno de Boris. Mas era tarde demais. Boris,
seguindo o olhar do av, viu claramente sua me.
Imediatamente, o menino desviou o olhar e continuaram a
andar, sem nenhum dos dois comentar nada a respeito. Boris
recuperou o bom humor em poucos minutos, contudo o episdio
perturbou muito o carregador e, desde ento, no lhe saa da cabea.
De fato, era a recordao desse incidente a responsvel pelo ar absorto
l embaixo, no saguo, e que agora o atormentava mais uma vez
enquanto mostrava o quarto.
Afeioei-me ao velho e senti um impulso de compaixo em
relao a ele. Era evidente que andara remoendo o incidente durante
muito tempo e que, agora, suas preocupaes corriam o risco de atingir
propores irracionais. Pensei em abordar o assunto, mas ento,
quando Gustav concluiu sua rotina, o cansao, que eu experimentava
intermitentemente desde que sara do avio, voltou a me dominar.
Decidido a conversar com ele sobre isso mais tarde, eu o dispensei com
uma gorjeta generosa.
Assim que a porta se fechou, ca na cama, totalmente vestido,
e fiquei, por algum tempo, fitando vagamente o teto. De incio, minha
cabea permaneceu tomada por Gustav e seus diversos problemas.
Mas, continuando ali deitado, me vi pensando na conversa que tivera
com a Senhorita Stratmann. Obviamente esta cidade esperava mais de
mim que um simples recital. No entanto, quando tentava lembrar
alguns detalhes bsicos a respeito desta visita, no tinha xito. Percebi
como tinha sido tolo em no falar mais francamente com a Senhorita
Stratmann. Se no recebera uma cpia da programao de meu horrio
na cidade, a culpa era dela, no minha, e no havia razo para minha
atitude defensiva.
Voltei a pensar no nome Brodsky e, dessa vez, tive a ntida
impresso de no ter ouvido falar nem lido sobre ele recentemente. E,
ento, de repente, ocorreu-me um momento na longa viagem de avio
que eu acabara de fazer. Estava em minha poltrona os outros
passageiros dormiam e examinava a programao da visita sob a luz
fraca da lmpada de leitura. A certa altura, o homem ao meu lado
despertou e, passados alguns minutos, fez como que uma observao
casual. De fato, como pude me lembrar, havia se inclinado e me feito
uma pergunta, alguma coisa relacionada aos jogadores de futebol da
Copa do Mundo. No querendo ser distrado da anlise atenta que fazia
de minha programao, eu o cortei de certa forma friamente. Tudo isso
me voltava mente com bastante clareza. Na verdade, lembrava-me da
textura do papel cinza e grosso no qual a programao havia sido
datilografada, da mancha opaca e amarelada refletida sobre ele pela
lmpada de leitura, do zumbido dos motores do avio. Contudo, por
mais que me esforasse, no conseguia me lembrar de nada do que
estava escrito.
Aps mais alguns minutos, senti que o cansao me dominava,
e decidi que no adiantava muito me preocupar at ter dormido um
pouco. Na verdade, sabia, por experincia prpria, como as coisas se
tornavam mais claras depois de um bom repouso. Ento, procuraria a
Senhorita Stratmann, explicaria o mal-entendido, receberia uma cpia
da programao e esclareceria quaisquer que fossem os pontos
necessrios.
Comeava a cochilar quando, subitamente, algo me fez abrir
os olhos e encarar o teto. Prossegui escrutando-o por algum tempo,
depois me sentei na cama e olhei em volta, com uma sensao de
identificao que se tornava cada vez mais forte. Dei-me conta de que o
quarto em que estava era o mesmo em que dormira durante os dois
anos em que eu e meus pais havamos morado na casa de minha tia, na
divisa da Inglaterra com o Pas de Gales. Tornei a olhar em volta,
depois, me deitei novamente e encarei mais uma vez o teto. Havia sido
recentemente revestido de reboco e repintado, suas dimenses
ampliadas, as cornijas retiradas, e os ornamentos em volta do lustre
totalmente alterados. Mas, inegavelmente, era o mesmo teto, o mesmo
que eu contemplara tantas vezes de minha cama estreita e frgil,
naquele tempo.
Virei-me de lado e olhei para o cho, ao lado da cama. O hotel
colocara um tapete exatamente onde meus ps pisariam. Lembrei-me de
como antigamente a mesma rea de cho fora coberta por um capacho
verde e gasto, sobre o qual, vrias vezes por semana, eu arrumaria
cuidadosamente meus soldadinhos de plstico mais de cem ao todo
, que guardava em duas latas de biscoitos. Estendi a mo e deixei
meus dedos roarem o tapete do hotel. Ao fazer isso, veio-me
lembrana uma tarde em que, perdido no mundo de meus soldadinhos
de plstico, uma discusso violenta irrompeu l embaixo. A ferocidade
das vozes foi tal que, mesmo para uma criana de seis ou sete anos, era
evidente no se tratar de uma discusso comum. Mas disse a mim
mesmo que no era nada e, apoiando a face no capacho verde,
continuei os planos de minha batalha. Quase no centro do capacho,
havia um rasgo que sempre me causava certa irritao. Porm, nessa
tarde, enquanto as vozes esbravejavam l embaixo, ocorreu-me, pela
primeira vez, que o rasgo poderia ser usado como uma espcie de
matagal que os soldados teriam de transpor.
Essa descoberta de que a falha que sempre ameaara minar
meu mundo imaginrio poderia, na verdade, ser incorporada nele me
causou certa excitao e esse "mato" se tornou um fator chave em
muitas das batalhas que planejei subseqentemente.
Tudo isso me veio lembrana enquanto contemplava o teto.
Evidentemente, continuei totalmente consciente de como as
caractersticas do quarto haviam sido alteradas ou removidas. No
obstante, a percepo de que depois de todo esse tempo eu estava mais
uma vez de volta ao meu velho santurio da infncia me causou uma
profunda sensao de paz. Fechei os olhos e, por um instante, foi como
se novamente estivesse cercado por todos o antigos mveis. No canto,
minha direita, o grande armrio branco com a maaneta quebrada. O
quadro retratando a catedral de Salisbury na parede, sobre minha
cabea. A mesinha-de-cabeceira com suas duas gavetas, cheias de
meus pequenos tesouros e segredos. Toda a tenso do dia a viagem
longa, as confuses com a programao, os problemas de Gustav
parecia distante e me senti caindo em um sono profundo e exausto.
2
Quando fui despertado pelo telefone ao lado da cama, tive a
impresso de que j tocava h algum tempo. Atendi e uma voz disse:
Al? Senhor Ryder?
Sim.
Ah. Senhor Ryder. Aqui o Senhor Hoffman, o gerente do
hotel.
Ah, sim, como vai?
Senhor Ryder, estamos extremamente honrados por t-lo
finalmente conosco. O senhor muito bem-vindo.
Obrigado.
Realmente, muito bem-vindo. Por favor, no se preocupe
com o atraso. Como acredito que a Senhorita Stratmann tenha lhe dito,
todos ns o compreendemos perfeitamente.
Afinal, quando se tem de cobrir distncias como a que
percorreu, e com tantos compromissos pelo mundo todo, nossa!, essas
coisas s vezes so inevitveis.
Mas...
No, realmente no precisa dizer mais nada sobre isso.
Todas as senhoras e senhores, como j disse, foram muito
compreensivos. Portanto, vamos esquecer o assunto.
O importante que est aqui. E basta isso, Senhor Ryder,
para que nossa gratido seja imensa.
Obrigado, Senhor Hoffman.
Agora, sir, se no estiver muito ocupado, gostaria muito de
finalmente cumpriment-lo. Dar-lhe pessoalmente as boas-vindas
nossa cidade e ao nosso hotel.
muito gentil eu disse. Mas eu estava tirando um
cochilo...
Um cochilo? Houve um momento de irritao na voz. Logo
em seguida, a afabilidade retornou por completo. Mas claro, claro.
Deve estar muito cansado, veio de to longe. Bem, ento, quando puder.
Estou ansioso por conhec-lo, Senhor Hoffman. Certamente,
no demorarei a descer.
Por favor, venha quando lhe convier. De minha parte,
estarei esperando aqui, isto , aqui no saguo, no importa quanto
tempo. Portanto, por favor, no se apresse.
Refleti por um momento. Ento, disse:
Mas, Senhor Hoffman, o senhor deve ter muitas coisas para
fazer.
verdade. Esta uma parte da tarde muito agitada. Mas
para o senhor, Senhor Ryder, esperarei com prazer o tempo que for
necessrio.
Por favor, Senhor Hoffman, no perca seu tempo valioso por
minha causa. Descerei logo e, ento, o procurarei.
Senhor Ryder, no se incomode, ser um prazer aguard-lo.
Como eu disse, venha quando lhe convier. Asseguro-lhe que ficarei
esperando at que chegue.
Agradeci e desliguei. Sentei-me, olhei em volta e imaginei, pela
luz, que deveria ser final da tarde. Sentia-me mais cansado que nunca,
mas parecia no ter outra escolha, a no ser descer ao saguo.
Levantei-me, fui at uma das malas e encontrei uma jaqueta menos
amarrotada do que a que estava usando. Enquanto a vestia, me veio a
vontade forte de um caf e deixei o quarto alguns instantes depois, com
uma espcie de urgncia.
Sa do elevador e encontrei o saguo muito mais animado que
antes. Ao meu redor, os hspedes estavam recostados confortavelmente
nas poltronas, folheando jornais ou batendo papo enquanto tomavam
um cafezinho. Prximo ao balco da recepo, vrios japoneses
saudavam uns aos outros animadamente.
Fiquei ligeiramente confuso com essa transformao e no
reparei no gerente at que ele se dirigiu diretamente a mim.
Estava na faixa dos cinqenta e era maior e mais pesado do
que tinha imaginado a partir da voz ao telefone. Estendeu-me a mo,
sorrindo exultantemente. Notei, ento, que respirava com dificuldade e
que sua testa estava levemente coberta de suor.
Enquanto apertvamos as mos, repetiu vrias vezes a honra
que minha presena representava para a cidade e para o hotel, em
particular. Ento, inclinou-se frente e disse com um ar de confidncia:
E posso garantir que j foram tomadas todas as
providncias para a noite de quinta-feira. No precisa se preocupar com
absolutamente nada.
Esperei que dissesse mais alguma coisa, mas como seguiu
apenas sorrindo, eu disse:
bom saber disso.
Realmente, no h nada com que se preocupar.
Houve uma pausa constrangedora. Em seguida, Hoffman
pareceu que ia dizer alguma coisa, mas se deteve, deu uma risada e me
bateu levemente no ombro gesto que achei excessivamente familiar.
Por fim, ele disse:
Senhor Ryder, se houver qualquer coisa que eu possa fazer
para tornar sua estada mais confortvel, avise-me imediatamente.
muita gentileza.
Houve outra pausa. Ento, ele riu novamente, balanou a
cabea e bateu mais uma vez em meu ombro.
Senhor Hoffman eu disse , h algo particular que
gostaria de me falar?
Oh, nada em particular, Senhor Ryder. Gostaria apenas de
cumpriment-lo e me assegurar de que est tudo a seu contento. Ento,
repentinamente, soltou uma exclamao.
Claro, agora que me pergunta, sim, havia algo. Mas era um
assunto sem importncia.
De novo, abanou a cabea e riu. Tinha a ver com o lbum
de minha mulher.
lbum de sua mulher?
Minha esposa, Senhor Ryder, uma mulher muito culta.
Naturalmente, uma grande admiradora sua. De fato, ela acompanhou
sua carreira com muito interesse e, h alguns anos, compila notcias
dos jornais sobre o senhor.
Mesmo? gentil da parte dela.
De fato, reuniu dois lbuns de recortes inteiramente
dedicados ao senhor. Foram organizados cronologicamente e remontam
h muitos anos. Irei direto ao assunto. Minha mulher sempre alimentou
a esperana de um dia o senhor poder examin-los pessoalmente. A
notcia de que visitaria nossa cidade naturalmente avivou essa
esperana. Contudo, sabia como estaria ocupado e no admitiria que o
senhor fosse incomodado por sua causa. Mas percebi o que ela desejava
secretamente e, ento, prometi pelo menos comentar o assunto com o
senhor. Se tiver um minutinho s para dar uma olhada neles, no
imagina o que significaria para ela.
Transmita minha gratido sua esposa, Senhor Hoffman.
Ficarei feliz em ver os lbuns.
Senhor Ryder, muita gentileza sua! Realmente, muita
gentileza! Na verdade, para facilitar, trouxe os lbuns para o hotel. Mas
posso imaginar como deve estar ocupado.
Realmente meu horrio est apertado. Mas estou certo de
que encontrarei tempo para os lbuns de sua mulher.
O senhor muito gentil, Senhor Ryder! Mas devo deixar
claro que a ltima coisa que desejo ser um incmodo extra para o
senhor. Por isso, permita-me fazer uma sugesto. Aguardarei um sinal
seu de quando estar pronto para examinar os lbuns. At l, no o
incomodarei. A qualquer hora, do dia ou da noite, quando achar que o
momento certo, por favor me procure. Geralmente, fcil me encontrar,
s deixo o prdio muito tarde. Interromperei o que estiver fazendo e lhe
mostrarei os lbuns. Eu me sentirei bem mais vontade se for assim.
No suportaria pensar que estou estreitando mais ainda seu tempo.
muita considerao de sua parte, Senhor Hoffman.
Na verdade, agora me ocorreu que nos prximos dias talvez
eu parea demasiadamente atarefado. Mas quero que saiba que nunca
estarei ocupado o bastante para tratar desse assunto. Assim, mesmo
que eu parea muito absorvido, por favor, no deixe de me procurar.
Est bem. Eu me lembrarei disso.
Talvez devssemos combinar algum tipo de sinal. Digo isso
porque, ao me procurar, posso estar do outro lado de uma sala cheia.
Seria muito incmodo o senhor ter de atravessar uma multido to
tumultuada. Sendo assim, quando o senhor me vir, de qualquer parte
do salo, eu irei ao seu encontro. Por isso um sinal seria conveniente.
Algo facilmente distinguvel, visvel acima das cabeas das pessoas.
Realmente, parece uma boa idia.
Excelente. Estou feliz por ter encontrado no senhor uma
pessoa to agradvel e gentil, Senhor Ryder. Se ao menos pudssemos
dizer o mesmo de outras celebridades que hospedamos. Bem, s resta
combinar o sinal. Talvez eu pudesse sugerir... bem, alguma coisa assim.
Levantou a mo, a palma para fora, os dedos abertos, e fez um
movimento como se estivesse limpando uma janela.
s um exemplo disse ele, colocando a mo rapidamente
para trs. Mas claro que talvez outro sinal seja mais de seu agrado.
No, esse est timo. Eu o darei assim que estiver pronto
para ver os lbuns de sua mulher. Realmente foi muita gentileza dela
ter se dado esse trabalho.
Sei que lhe causou uma imensa satisfao. evidente que
se, mais tarde, lhe ocorrer outro sinal que prefira, por favor telefone de
seu quarto ou deixe o recado com um dos funcionrios.
muito atencioso, mas o sinal que sugeriu me parece muito
elegante. Bem, Senhor Hoffman, onde posso tomar uma boa xcara de
caf? Neste momento, sinto que poderia tomar vrias xcaras.
O gerente riu de modo teatral.
Conheo a sensao muito bem. Vou lev-lo ao trio. Siga-
me, por favor.
Ele me conduziu pelo saguo e atravessamos duas pesadas
portas de vaivm. Penetramos em um corredor comprido e sombrio, com
as paredes revestidas de madeira escura.
Filtrava to pouca luz natural que, mesmo a essa hora do dia,
era preciso deixar acesas as lmpadas dos apliques ao longo das
paredes. Hoffman continuou a andar rapidamente minha frente,
virando-se a cada poucos passos para me sorrir por sobre o ombro.
Aproximadamente na metade do caminho, passamos por uma porta
majestosa e Hoffman, que deve ter notado que eu a olhava, disse:
Ah, sim. O caf normalmente servido nessa sala. Uma sala
esplndida, Senhor Ryder, muito confortvel. E agora foi decorada com
algumas mesas artesanais. Eu mesmo as descobri recentemente,
durante uma viagem a Florena. Estou certo de que as aprovaria. Mas,
neste momento, como sabe, a fechamos para o Senhor Brodsky.
Oh, sim. Ele estava l, mais cedo, quando cheguei.
Ainda est. Eu o levaria para apresent-lo, mas que...
bem, talvez ainda no seja o momento. Ha, ha! Mas no se preocupe,
haver muitas oportunidades para que os senhores se conheam.
O Senhor Brodsky est naquela sala agora?
Olhei para trs, para aquela porta, e possivelmente devo ter
reduzido um pouco a marcha. De qualquer modo, o gerente tomou meu
brao e me afastou com firmeza.
Est, senhor. Pois bem, ele est, neste exato momento,
sentado l, em silncio, mas lhe asseguro que recomear a qualquer
momento. Nesta manh, ensaiou a orquestra por quatro horas
seguidas. Pelo que sabemos, tudo est indo muito bem. Por isso no h
nada com que se preocupar.
Finalmente o corredor fez uma curva, depois da qual se
tornou mais iluminado. De fato, ao longo de uma das paredes, havia
janelas que filtravam a luz, formando crculos de sol no piso. Somente
quando j tnhamos nos afastado dessa parte, Hoffman me soltou. Ao
diminuirmos o passo, o gerente deu uma risada para disfarar seu
embarao.
O trio fica logo ali. essencialmente um bar, mas
confortvel e poder pedir caf e o que quiser. Por favor, por aqui.
Deixamos o corredor e passamos sob um arco.
Este anexo Hoffman disse, me introduzindo foi
concludo h trs anos. Ns o chamamos de trio e estamos orgulhosos
dele. Foi projetado por Antnio Zanotto.
Entramos em um vestbulo amplo e iluminado. Em razo do
alto teto de vidro, tinha-se a sensao de se estar saindo para um ptio.
O piso era uma vasta extenso de cermica branca, no centro da qual,
predominando sobre tudo, havia uma fonte um emaranhado de
figuras de mrmore, espcie de ninfas, esguichando gua com fora.
Na verdade, a presso da gua me pareceu excessiva. Mal
dava para olhar para qualquer parte do trio sem ter de espreitar
atravs da nvoa que flutuava no ar. Ainda assim, percebi prontamente
que havia um bar de cada lado, cada qual com seus prprios bancos
altos, poltronas e mesas. Garons de uniforme branco entrecruzavam o
cho e parecia haver um nmero considervel de hspedes dispersos
embora a sensao de espao fosse tal que mal os
notssemos.
Percebi que o gerente me observava com uma expresso
presunosa, esperando eu manifestar minha aprovao ao ambiente. No
entanto, naquele momento, a necessidade de um caf era to urgente
que simplesmente me virei e me dirigi ao balco mais prximo.
J estava sentado em um banco alto, os cotovelos apoiados no
balco, quando o gerente me alcanou. Estalou os dedos para o
barman, que de qualquer jeito j se dirigia a mim, dizendo:
O Senhor Ryder gostaria de uma xcara de caf. Queniano!
Depois, virando-se para mim, disse: Nada me daria mais prazer que
ficar aqui com o senhor, Senhor Ryder. Conversar sossegado sobre
msica e arte. Infelizmente, h muitas coisas que tenho de fazer e que
no podem ser adiadas. O senhor me perdoaria?
Embora eu insistisse em que ele tinha sido extremamente
gentil, levou ainda vrios minutos se despedindo. Finalmente,
consultou o seu relgio, soltou uma exclamao e partiu apressado.
Deixado s, devo ter sido rapidamente arrastado por meus
prprios pensamentos, pois sequer notei a volta do barman. Ele deve ter
aparecido, j que logo me vi tomando o caf e encarando a parede
espelhada atrs do balco, onde via no apenas meu reflexo, mas
tambm quase todo o salo. Depois de algum tempo, no sei por qu,
me pus a relembrar momentos chaves de um jogo de futebol a que
assisti h muitos anos uma partida da Alemanha contra a Holanda.
Endireitei o corpo sobre o banco alto percebi que estava
excessivamente curvado e tentei lembrar os nomes dos jogadores do
time holands daquele ano. Rep, Krol, Haan, Neeskens. Aps vrios
minutos, tinha conseguido lembrar todos menos dois, e esses dois
nomes permaneceram fora do alcance de minha memria. Quando
tentava lembrar, o som da fonte s minhas costas, que de incio achara
confortante, comeou a me aborrecer. Era como que, se parasse, minha
memria se abriria e eu, finalmente, recordaria os nomes.
Ainda tentava me lembrar, quando, atrs de mim, uma voz
disse: Com licena. o Senhor Ryder, no ?
Virei-me e deparei com a fisionomia jovem de um rapaz de uns
vinte anos. Quando o saudei, ele se aproximou ansioso do bar.
Espero no estar atrapalhando disse ele. Mas, quando o
vi, no consegui deixar de vir dizer como estou emocionado pelo senhor
estar aqui. Sabe, tambm sou pianista. Quer dizer, em termos
estritamente amadores. E, bem, sempre o admirei demais. Quando meu
pai finalmente obteve a confirmao de que estava vindo, fiquei
extremamente emocionado.
Pai?
Desculpe. Sou Stephan Hoffman, filho do gerente.
Ah, sim, entendo. Muito prazer.
Incomoda-se de eu me sentar aqui um minuto? O jovem
sentou-se no banco ao meu lado. Meu pai ficou to emocionado
quanto eu, se no mais. Eu o conheo e sei que nunca lhe diria o
quanto estava emocionado. Mas, acredite em mim, isso significa tudo
para ele.
Verdade?
Sim, realmente no um exagero. Lembro-me do perodo
em que ele estava esperando sua resposta. Um silncio peculiar
apoderava-se dele sempre que seu nome era mencionado. E ento,
quando a tenso se tornava demasiada, comeava a resmungar a meia
voz sobre tudo isso. "Quanto tempo vai demorar? Quanto tempo at dar
a resposta? Ele vai recusar, estou sentindo." Tive muito trabalho para
manter seu nimo elevado. Resumindo, o senhor j pode imaginar o que
sua presena significa para ele. Ele to perfeccionista! Quando
organiza um evento como o da noite de quinta-feira, tudo, mas tudo
mesmo, tem de estar perfeito. Examina cada detalhe inmeras vezes. s
vezes, toda essa obsesso chega a ser exagerada. Mas, depois,
pensando melhor, vejo que se ele no tivesse esse lado, no seria meu
pai, e no realizaria nem metade do que realiza.
Parece realmente uma pessoa admirvel.
Bem, Senhor Ryder disse ele , tem uma coisa que eu
queria lhe perguntar. Na verdade um pedido. Se for impossvel, por
favor, seja franco. No me sentirei ofendido.
Stephan Hoffman fez uma pausa, como que para reunir
coragem. Bebi um pouco mais do caf e olhei o reflexo de ns dois
sentados lado a lado.
Bem, tem a ver com a noite de quinta-feira prosseguiu.
que meu pai pediu para eu tocar piano no evento. Pratiquei e me
sinto preparado, no isso que me preocupa, nem qualquer coisa...
Ao dizer isso, suas maneiras seguras vacilaram s por um segundo, o
suficiente para trarem um adolescente ansioso. Mas quase que
imediatamente se refez com um encolher de ombros negligente.
porque a noite de quinta-feira to importante que no quero
decepcion-lo. Indo direto ao assunto, achei que talvez o senhor tivesse
alguns minutos para ouvir minha interpretao da pea que escolhi.
Decidi tocar Dahlia, de Jean-Louis La Roche. Sou apenas um amador e
ter de ser muito paciente. Mas achei que poderia pratic-la e o senhor
me dar algumas sugestes sobre como aprimorar a execuo.
Refleti por um momento.
Ento disse eu depois de algum tempo , se apresentar
na noite de quinta-feira.
Claro que uma contribuio muito pequena, com tantas...
deu uma risada bem, com tantas coisas acontecendo. Ainda assim
quero que minha pequena participao seja a melhor possvel.
Sim, compreendo. Bem, terei prazer em fazer o que puder
por voc.
O rosto do jovem se iluminou.
Senhor Ryder, no sei o que dizer! tudo de que preciso...
Mas h um problema. Como deve imaginar, meu tempo
muito restrito. Terei de achar um momento em que tenha alguns
minutos livres.
Claro. Quando for conveniente para o senhor, Senhor Ryder.
Meu Deus, como me sinto lisonjeado! Para ser franco, achei que me
rejeitaria de cara.
Um bip soou em alguma parte da roupa do jovem. Stephan
teve um sobressalto e buscou algo dentro do palet.
Sinto muito disse ele , mas urgente. Eu no deveria
estar aqui j faz tempo, mas quando o vi, Senhor Ryder, no consegui
deixar de me aproximar. Espero poder continuar nossa conversa em
breve. Mas, no momento, por favor, com licena.
Desceu do banco e, por um instante, pareceu tentado a
encetar nova conversa. Ento, o bip soou novamente e ele se apressou a
partir com um sorriso encabulado.
Voltei ao meu reflexo no espelho atrs do balco e recomecei a
beber meu caf. No entanto, no consegui retomar o estado de
contemplao relaxada em que me encontrava antes da chegada do
rapaz. Pelo contrrio, senti-me mais uma vez incomodado pela
impresso de que esperavam muito de mim, alm de, nesse momento,
as coisas estarem longe das condies satisfatrias. De fato, parecia que
a nica coisa a fazer era procurar a Senhorita Stratmann e esclarecer
certos pontos de uma vez por todas.
Decidi v-la assim que terminasse aquela xcara de caf. No
havia razo para ser um confronto desagradvel e seria simples explicar
o que havia acontecido no nosso ltimo encontro. "Senhorita
Stratmann", eu podia dizer, "estava muito cansado naquela hora, por
isso, quando perguntou sobre a programao de meu horrio, no a
compreendi. Acho que me perguntou se eu teria tempo para examin-la
imediatamente se me desse uma cpia naquele mesmo instante." Ou
poderia ser mais agressivo, adotando at mesmo um tom de reprovao.
"Senhorita Stratmann, tenho de admitir que estou um pouco
preocupado e, sim, de certa forma, desapontado. Dado o nvel da
responsabilidade que a senhorita e os cidados desta cidade esto
dispostos a colocar sobre meus ombros, acho que tenho o direito de
esperar um certo padro de suporte administrativo."
Senti um movimento perto e, ao olhar para cima, vi Gustav, o
velho carregador, em p, ao lado de meu banco. Ao me virar para ele,
sorriu e disse:
Ol, senhor. Eu o vi por acaso. Espero que esteja gostando
de sua estada.
Oh, sim, claro. Mas infelizmente ainda no tive a
oportunidade de visitar a cidade velha, como me recomendou.
uma pena, senhor. realmente uma parte muito bonita
de nossa cidade, e fica to perto. O tempo que est fazendo o ideal.
Um friozinho no ar, mas ensolarado. Quente o bastante para sentarmos
ao ar livre, embora seja necessrio vestir uma jaqueta ou um casaco
leve. Hoje faz o tipo de dia para se conhecer a cidade velha.
Sabe eu disse , talvez um pouco de ar fresco seja
justamente do que estou precisando.
o que eu recomendaria. Seria uma pena que em sua
passagem pela cidade no fizesse sequer uma curta caminhada pela
cidade velha.
Pois acho que o farei agora. Vou sair agora mesmo.
Se tiver tempo de ir ao Hungarian Caf, na velha praa,
estou certo de que no se arrepender. Sugiro que pea um caf e uma
fatia de torta de ma. Incidentalmente, me ocorreu se... O carregador
fez uma pausa. Depois, prosseguiu: S estava pensando se poderia
lhe pedir um pequeno favor. Normalmente no costumo pedir favores
aos hspedes, mas, no seu caso, sinto que acabaremos por nos
conhecer muito bem.
Ficarei feliz em fazer alguma coisa pelo senhor se estiver
dentro de minhas possibilidades eu disse.
Por alguns instantes, o carregador permaneceu ali, em
silncio.
s uma coisinha disse finalmente. Sei que minha filha
est agora, com Boris, no Hungarian Caf. uma jovem muito
agradvel, sei que simpatizar com ela. Quase todo mundo simpatiza.
Ela no o que chamam de bonita, mas tem uma aparncia atraente.
uma pessoa de bom corao. Mas acho que tem uma pequena fraqueza.
Talvez, conseqncia da maneira como foi criada, quem pode saber?
Mas sempre a teve. Isto , tende a deixar que as coisas a esmaguem,
mesmo quando tem capacidade de p-las em seu devido lugar. Quando
surge um pequeno problema, em vez de tomar as medidas necessrias
mais simples, fica remoendo a questo. Desse modo, como sabe, um
probleminha se torna um grande problema. No demora e as coisas
parecem mais srias e ela comea a entrar em desespero. Tudo to
desnecessrio. No sei exatamente o que agora a est atormentando,
mas tenho certeza de que no nada insupervel. J vi isso tantas
vezes antes. Mas que agora Boris comeou a perceber.
Com efeito, se Sophie no controlar as coisas logo, receio que
o menino fique seriamente preocupado. E ele est um encanto, to
cheio de franqueza e confiana. Sei que impossvel ele continuar
assim a vida inteira, talvez isso no seja nem mesmo desejvel. Mas,
com a idade que est agora, acho que poderia ter mais alguns anos
acreditando que o mundo um lugar de alegria e felicidade. Ficou
novamente em silncio e, por alguns instantes, pensativo. Ento,
erguendo os olhos, prosseguiu. Se pelo menos Sophie pudesse
enxergar o que est se passando, sei que controlaria as coisas. No
fundo, ela muito conscienciosa, muito zelosa de fazer o melhor para
as pessoas de quem mais gosta. Mas o problema que, quando fica
nesse estado, precisa de uma ajudinha para recuperar o senso de
perspectiva. Uma boa conversa tudo de que precisa. Basta algum
sentar-se com ela por alguns minutos e faz-la ver as coisas com
clareza. Isso esclarecer quais so os verdadeiros problemas, que
medidas deve tomar para super-los. S precisa disso, de uma boa
conversa, algo que lhe restitua a perspectiva. Far o resto sozinha.
muito sensvel quando quer. A questo a seguinte: se por acaso o
senhor for cidade velha agora, se incomodaria de trocar algumas
palavras com Sophie? Claro que sei que talvez seja um incmodo para o
senhor. Mas como est indo para aquele lado, achei que podia fazer
esse pedido. No precisa conversar por muito tempo. Apenas algumas
palavras, s para descobrir o que a est atormentando e lhe devolver o
senso de proporo.
O carregador calou-se e olhou para mim de modo comovente.
Aps um instante, eu disse com um suspiro:
Gostaria de ajudar, gostaria muito. Mas, ao escutar o que
dizia, me pareceu provvel que quaisquer que sejam as preocupaes de
Sophie, devem estar relacionadas a questes familiares. E, como sabe,
tais problemas costumam ser extremamente intricados. Um estranho,
como o meu caso, pode no final de uma conversa franca chegar a uma
concluso que simplesmente se relaciona a outro problema. E assim
sucessivamente. Honestamente, na minha opinio, acho que, para lidar
com a rede intricada das questes familiares, o senhor seria o mais
indicado. Afinal de contas, como pai de Sophie e av do menino, possui
a autoridade natural que simplesmente me falta.
O carregador pareceu sentir imediatamente o peso dessas
palavras e quase me arrependi de t-las proferido. Era bvio que eu
atingira um ponto sensvel. Virou-se ligeiramente e por um longo
momento ficou a contemplar de modo vago o trio, na direo da fonte.
Finalmente, disse:
Entendo o que acaba de me dizer. Por direito, sei que
deveria ser eu a falar com ela, sei disso. Bem, vou ser franco. No sei
como dizer, mas tentarei ser franco com o senhor. A verdade que
Sophie e eu no falamos um com o outro h muitos anos. Realmente
no, desde que era pequena. Portanto pode entender como de certa
forma difcil para mim cumprir essa tarefa.
O carregador olhou para baixo, para os ps, e parecia estar
esperando o que eu iria dizer, como em um julgamento.
Desculpe eu disse depois de um tempo , mas no
compreendi direito. Est dizendo que no viu sua filha durante todo
esse tempo?
No, no. Como sabe, eu a vejo regularmente, sempre que
vou buscar Boris. O que quis dizer que no nos falamos. Talvez fique
mais claro se eu der um exemplo. s vezes em que eu e Boris a
esperamos depois de nosso passeio pela cidade velha, por exemplo,
quando estamos sentados no caf do Senhor Krankl. Boris pode estar
animado, falando alto, rindo de tudo, mas, assim que v a me
atravessar a porta, fica em silncio. No se mostra chateado. Apenas se
reprime. Respeita o ritual, entende? Ento, ela vem at a mesa e se
dirige a ele. Tivemos um bom dia? Aonde fomos? No estava muito frio
para o av? Oh, sim, ela sempre pergunta por mim. Preocupa-se com
que eu fique doente andando pelo bairro dessa maneira. Mas, como
disse, no falamos diretamente um com o outro. "Despea-se de seu
av", diz para Boris, como maneira de tambm se despedir, e vo
embora. assim que as coisas se do entre ns h muitos anos e
parece que no se alteraro a esta altura da vida. Portanto, em uma
situao como essa, me sinto um tanto perdido. Sei que de uma boa
conversa que precisa. E algum como o senhor, na minha opinio, seria
o ideal. Apenas algumas palavras, sir, s para ajud-la a identificar o
verdadeiro problema. Se puder fazer isso, ela far o resto, pode ter
certeza.
Pois est bem disse, aps refletir. Muito bem, verei o
que posso fazer. Mas insisto no que disse antes. Essas coisas so muito
complicadas para um estranho. Mas verei o que posso fazer.
Ficarei em dvida com o senhor. Ela est, neste momento,
no Hungarian Caf. No ter dificuldades em reconhec-la. Ela tem o
cabelo preto comprido e traos parecidos com os meus. Se tiver dvida,
pode perguntar ao proprietrio ou a um dos empregados.
Est bem. Irei agora mesmo.
Ficarei to em dvida com o senhor. Se por algum motivo for
impossvel falar com ela, sei que ser agradvel caminhar pela rea.
Desci do banco.
Pois bem disse eu , logo saber como me sa.
Muito obrigado, sir.
3
O trajeto do hotel cidade velha caminhada de uns quinze
minutos era nitidamente pouco promissor. Na maior parte do
caminho, edifcios comerciais envidraados agigantavam-se ao longo
das ruas barulhentas, em razo do trnsito do final da tarde. Mas ao
alcanar o rio e comear a atravessar a ponte arqueada que conduzia
cidade velha, senti que estava prestes a penetrar em uma atmosfera
completamente diferente. Na margem oposta, eram visveis os toldos e
pra-sis coloridos dos cafs. Percebi o movimento dos garons e as
crianas correndo em crculos. Um cachorro pequenino latia excitado
para o lado do cais, talvez por ter me visto aproximar.
Aps alguns minutos, j me encontrava na cidade velha. As
estreitas ruas de pedras estavam repletas de gente caminhando com um
passo tranqilo. Por alguns minutos, fiquei a vagar por ali, sem rumo,
passando por vrias lojas de souvenirs, confeitarias e padarias.
Tambm passei por muitos cafs e, em certo momento, me ocorreu que
talvez tivesse dificuldade em localizar aquele a que o carregador tinha
se referido. Foi quando deparei com uma grande praa no corao do
bairro, e o Hungarian Caf logo em frente. As mesas espalhadas, que
ocupavam o canto mais distante da praa, emanavam, como pude ver,
de uma pequena passagem sob um toldo listrado.
Parei um pouco para recuperar o flego e assimilar o local. Na
praa, o sol comeava a se pr. Soprava, como Gustav havia alertado,
uma brisa fria que volta e meia fazia com que os pra-sis ao redor do
caf adejassem.
Ainda assim a maioria das mesas estava ocupada. Muitos dos
clientes pareciam ser turistas, mas tambm havia um grande nmero
de habitantes locais que haviam sado cedo do trabalho e relaxavam
com um caf e um jornal. Atravessando a praa, passei por muitos
grupos de funcionrios de escritrios, com suas pastas e conversando
animadamente.
Ao alcanar as mesas, fiquei alguns instantes errando em
torno delas, procurando algum que parecesse ser a filha do carregador.
Dois estudantes discutiam sobre um filme. Um turista lia Newsweek.
Uma mulher idosa atirava pedacinhos de po aos pombos em volta de
seus ps. Mas no vi qualquer jovem com cabelo preto comprido e um
menino. Entrei no caf e descobri um pequeno compartimento escuro,
com apenas cinco ou seis mesas. Percebi como o problema de
superlotao, mencionado pelo carregador, deveria se tornar real
durante os meses mais frios. Mas, naquele momento, o nico cliente era
um homem idoso com uma boina, sentado nos fundos. Decidido a
deixar o assunto para l, retornei ao lado de fora e procurava um
garom para pedir um caf, quando ouvi uma voz chamar meu nome.
Ao me virar, vi uma mulher sentada com um menino a uma
mesa prxima, acenando para mim. O par combinava perfeitamente
com a descrio feita pelo carregador e no consegui entender como no
os havia notado antes. Alm disso, fiquei um pouco surpreso com o fato
de estarem me esperando e precisei de um certo tempo at acenar de
volta e ir at eles.
Apesar de o carregador ter-se referido a ela como uma "mulher
jovem", Sophie comeava a meia idade, em torno dos quarenta anos.
Com tudo isso, era, de certa forma, mais atraente do que eu
esperava. Era alta, esguia e o cabelo preto lhe dava um certo ar cigano.
O menino a seu lado era um pouco gorducho, e, naquele instante,
lanava me um olhar irritado.
Ento? Sophie olhava para mim e sorria. No vai se
sentar?
Sim, sim eu disse, me dando conta de que ficara ali, de
p, hesitante. Isto , se no se importam. Sorri meio forado para o
menino, mas ele me lanou de volta um olhar de reprovao.
Claro que no nos importamos. No , Boris? Boris, diga ol
ao Senhor Ryder.
Ol, Boris disse eu, sentando.
O menino continuou a me olhar com desaprovao. Depois,
disse me:
Por que lhe disse que podia se sentar? Eu estava falando
com voc.
Este o Senhor Ryder, Boris Sophie disse. um amigo
especial. Claro que pode se sentar conosco, se quiser.
Mas eu estava explicando para voc como o Voyager voa.
Sabia que no estava ouvindo. Devia aprender a prestar ateno.
Desculpe, Boris disse Sophie, trocando um breve sorriso
comigo. Eu estava me esforando ao mximo, mas toda essa coisa
cientfica est alm da minha capacidade. Agora, por que no diz ol ao
Senhor Ryder?
Boris me olhou por um instante, depois disse mal-humorado:
Ol. Dito isso, desviou o olhar.
Por favor, no quero ser motivo de atrito disse eu. Por
favor, Boris, continue a explicao. Na verdade, tambm estou
interessado em ouvir sobre esse avio.
No um avio disse Boris, chateado. um veculo
para atravessar os sistemas estelares. Mas no entenderia mais que a
mame.
Mesmo? Como sabe que eu no entenderia? Talvez eu tenha
uma mente cientfica. No devia julgar as pessoas to rapidamente,
Boris.
Ele deu um suspiro profundo e manteve os olhos afastados de
mim.
Voc faria como a mame. Falta concentrao.
Deixa disso, Boris disse Sophie , devia ser um pouco
mais amvel. O Senhor Ryder um amigo muito especial.
No apenas isso disse eu. Sou amigo de seu av. Pela
primeira vez, Boris me olhou interessado. Oh, sim, nos tornamos
grandes amigos, seu av e eu. Estou hospedado em seu hotel.
Boris continuou me observando atentamente.
Boris disse Sophie , por que no diz al gentilmente ao
Senhor Ryder? At agora no lhe mostrou boas maneiras. No vai
querer que ele fique com a impresso de que voc um rapazinho mal-
educado, vai?
Boris continuou me examinando por algum tempo. Ento,
subitamente, deixou a cabea cair sobre a mesa, cobrindo-a com os
braos. Ao mesmo tempo, comeou a balanar os ps por baixo da
mesa, pois ouvi seus sapatos batendo contra o metal da perna da mesa.
Desculpe disse Sophie. Ele hoje no est muito bem-
humorado.
Para ser franco disse calmamente , queria falar com voc
sobre uma coisa. Mas... Fiz um sinal com os olhos na direo de
Boris. Sophie olhou para mim, depois virou-se para o menino e disse:
Boris, preciso falar um instante com o Senhor Ryder. Por
que no vai ver os cisnes? s um minuto.
Boris manteve a cabea entre os braos, como se dormisse,
embora os ps continuassem a bater ritmicamente. Sophie sacudiu
seus ombros com delicadeza.
Vamos disse ela. Tambm tem um cisne negro. V e
fique perto da cerca, onde esto aquelas freiras. Com certeza, dali
poder v-lo. Daqui a pouco voc volta e nos conta o que viu.
Boris ficou mais alguns segundos sem responder. Ento,
ergueu a cabea, soltou outro suspiro de enfado e se levantou da
cadeira. Por alguma razo, que s ele conhecia, afetou as maneiras de
algum bbado e se afastou cambaleando.
Quando o menino estava a uma distncia suficiente, virei-me
para Sophie. Ento, fui tomado por uma insegurana em relao a
como deveria comear e permaneci hesitante por um momento. Seja
como for, Sophie sorriu e falou primeiro:
Tenho boas notcias. O Senhor Mayer ligou mais cedo para
falar sobre a casa. S ficou disponvel para venda hoje. Parece
promissor. Pensei nisso o dia todo. Alguma coisa me diz que vai ser
essa, que essa que procurvamos por todo esse tempo. Disse-lhe que
a primeira coisa que faria amanh de manh seria ir v-la. Parece
perfeita. Cerca de meia hora a p at a cidade, fica sobre a colina, trs
andares. O Senhor Mayer disse que h anos no deparava com uma
vista to bela da floresta. Sei que est muito ocupado, mas, se for to
boa quanto parece, ligo para voc e quem sabe poder ir v-la. Boris
tambm. Deve ser exatamente o que estamos querendo. Sei que levou
muito tempo, mas finalmente acho que a encontrei.
Ah, sim. timo.
Pegarei o primeiro nibus para l, de manh. Temos de agir
rpido. No ficar venda por muito tempo.
Ela se ps a me dar mais detalhes sobre a casa. Fiquei
parcialmente em silncio, por causa da minha dvida de como
responder. Pois a verdade que, enquanto estvamos ali sentados, a
fisionomia de Sophie me parecia cada vez mais familiar, e cheguei a ter
a impresso de me lembrar vagamente de algumas discusses passadas
a respeito da compra dessa casa na floresta.
Nesse nterim, minha expresso talvez tenha se tornado mais
absorta, pois ela acabou se interrompendo e dizendo em um tom de voz
diferente, mais cauteloso:
Desculpe o ltimo telefonema. Espero que no continue
aborrecido.
Aborrecido? Oh, no.
Fiquei pensando sobre isso. No devia ter dito nada daquilo.
Espero que no tenha tomado muito a srio. Afinal, como voc estaria
em casa agora? Que casa? E com a cozinha daquela maneira! E passei
tanto tempo procurando alguma coisa para ns. Mas, agora, estou
muito esperanosa com a casa de amanh.
Recomeou a falar sobre a casa. Enquanto falava, tentei me
lembrar de alguma coisa, o que quer que fosse relacionado conversa
ao telefone a que ela acabara de se referir. Um pouco depois, me veio
mente a sensao vaga de j ter escutado essa voz ou melhor, uma
verso mais spera e irada dela ao telefone em um passado recente.
Por fim, achei que conseguia lembrar de uma certa frase que gritara
para ela: "Voc vive em um mundo to pequeno!" Ela continuou a
discutir e eu a repetir insolentemente: "Um mundo to pequeno! Vive
em um mundo to pequeno!" Entretanto, para minha frustrao, no
consegui me lembrar de mais nada.
Possivelmente, nesse meu esforo para despertar a memria,
devo t-la ficado encarando, pois perguntou de modo acanhado:
Acha que engordei?
No, no. Dei uma risada. Voc est tima!
Ocorreu-me que ainda no mencionara nada sobre o assunto
relacionado a seu pai e, de novo, tentei pensar em uma maneira
conveniente de abordar o tpico. Mas, precisamente nesse instante,
alguma coisa sacudiu minha cadeira por trs, e vi que Boris tinha
voltado.
De fato, o menino corria em crculos perto de nossa mesa,
chutando uma caixa de papelo como se fosse uma bola de futebol. Ao
notar que eu olhava para ele, fez malabarismos com a caixa, jogando de
um p para o outro, e, ento, chutou-a com fora entre as pernas de
minha cadeira.
Nmero Nove! gritou, com os braos para o alto. Um gol
fantstico do Nmero Nove!
Boris eu disse , no seria melhor pr esta caixa na cesta
de lixo?
Quando vamos embora? perguntou, virando-se para mim.
Vamos chegar tarde. J est escurecendo.
Olhando para alm dele, vi que realmente o sol se punha na
praa e que grande parte das mesas estava vazia.
Desculpe, Boris. O que est querendo fazer?
Depressa! O menino deu um puxo em meu brao. -
Assim, no vamos chegar nunca!
Aonde Boris quer ir? perguntei me dele.
Ao parque de balanos, claro. Sophie deu um suspiro e
se levantou. Quer mostrar o que j sabe fazer.
Parecia que eu no tinha outra escolha a no ser me levantar,
e, no momento seguinte, ns trs atravessvamos a praa.
Ento disse a Boris, que ia ao meu lado , vai me mostrar
algumas coisas.
Quando fomos l mais cedo disse ele, pegando meu brao
, havia um menino maior que eu que nem conseguia fazer um torpedo!
Mame acha que ele era pelo menos dois anos mais velho. Eu mostrei
como devia fazer cinco vezes, mas ele estava com muito medo. S ficava
indo at em cima, e depois no conseguia fazer!
Mesmo? claro que voc no tem medo de fazer essa coisa.
Esse torpedo.
Claro que no tenho medo! fcil! muito fcil!
Isso timo.
Ele estava apavorado! Foi muito engraado!
Deixamos a praa e comeamos a andar pelas ruazinhas de
pedra. Boris parecia conhecer bem o caminho, muitas vezes correndo,
impaciente. A certa altura, ps-se de novo a meu lado e perguntou:
Conhece meu av?
Sim, eu j disse. Somos bons amigos.
Vov muito forte. um dos homens mais fortes da cidade.
mesmo?
um grande lutador. J foi soldado. Est velho, mas ainda
luta melhor que a maior parte das pessoas. Esses briges de rua s
vezes no percebem isso, e, depois, tm uma baita surpresa. Boris fez
um gesto de luta enquanto andava. Antes que se dem conta, meu
av j derrubou todos eles.
Verdade? Isso muito interessante, Boris.
Nesse exato momento, enquanto caminhvamos pelas vielas
de pedra, me veio lembrana um pouco mais da discusso que tivera
com Sophie. Devia ter ocorrido mais ou menos h uma semana. Eu
estava em um quarto de hotel em algum lugar, ouvindo sua voz do
outro lado da linha gritar:
Durante mais quanto tempo esperam que voc continue
assim? J no somos jovens! J fez sua parte! Deixe que agora outro
faa isso!
Oua disse para ela, com a voz calma , a questo que
as pessoas precisam de mim. Chego em um lugar e quase sempre
descubro problemas terrveis. Problemas arraigados, aparentemente
sem soluo, e as pessoas se mostram muito agradecidas por eu ter ido.
Mas por quanto tempo poder continuar a fazer isso pelas
pessoas? E para ns, refiro-me a mim, a voc e a Boris, o tempo est
passando. Antes que se d conta, Boris ser um adulto. Ningum pode
esperar que voc continue assim. Por que essa gente no pode resolver
seus prprios problemas? Ia lhes fazer muito bem!
Voc no faz idia! eu disse, agora com raiva. No sabe
o que est dizendo! Em alguns dos lugares que visito, as pessoas no
sabem nada. No conhecem o mais elementar sobre a msica moderna
e, se so deixados sozinhos, bvio que os problemas se tornam cada
vez mais profundos. Sou necessrio, por que no consegue entender?
Precisam de mim! No sabe o que est dizendo! Foi ento que gritei
para ela: Um mundo to pequeno! Voc vive em um mundo to
pequeno!
Havamos chegado a um pequeno playground circundado por
grades. Estava vazio e achei a atmosfera melanclica. Porm Boris nos
conduziu entusiasticamente pelo porto.
Veja, fcil! disse ele e correu em direo ao trepa-trepa.
Sophie e eu permanecemos, por algum tempo, sob a luz opaca,
observando a figura dele subir cada vez mais alto. Ento, ela disse
calmamente:
Sabe, engraado. Enquanto escutava o que o Senhor
Mayer dizia, a maneira como descrevia a sala da casa, uma imagem no
saiu da minha cabea: a do apartamento em que morei quando era
pequena. Durante o tempo todo em que falou, eu formava essa imagem.
Nossa velha sala de visitas. E meu pai e minha me, como eram ento.
Provavelmente no ser nada parecido. No estou esperando que seja.
Irei at l amanh e verei que completamente diferente. Mas isso me
deixou esperanosa. Uma espcie de pressgio, entende? Deu uma
risadinha e tocou em meu ombro. Est to soturno.
Estou? Desculpe. Foi a viagem. Acho que estou muito
cansado. Boris tinha chegado ao topo do trepa-trepa, mas a luz havia
cado tanto que mal se distinguia sua silhueta contra o cu. Gritou para
ns, depois, segurando na barra superior, deu como que um salto
mortal, girando seu corpo em volta dela.
Ele tem tanto orgulho de saber fazer isso disse Sophie.
Depois, chamou-o. Boris, est muito escuro. Desa.
fcil. mais fcil no escuro.
Agora desa.
Foi a viagem disse eu. Um hotel atrs do outro, sem ver
ningum, voc sabe. Foi muito cansativo. Mesmo agora, nesta cidade, a
tenso muito grande. As pessoas daqui. Obviamente, esto esperando
muito de mim. Quer dizer, est bvio...
Oua Sophie interrompeu gentilmente, colocando a mo
sobre meu brao , por que no esquece tudo isso agora? Teremos
muito tempo para conversar mais tarde. Estamos todos cansados.
Venha conosco ao apartamento. Fica a apenas alguns minutos, logo
depois da capela medieval. Estamos precisando de um bom jantar e
descansar um pouco.
Ela falou com a voz macia, a boca perto de meu ouvido, de
modo que pude sentir seu hlito. O cansao de antes se apossou de
mim outra vez, e a idia de relaxar no aconchego de seu apartamento
ficar toa com Boris no tapete, enquanto Sophie preparava a comida
subitamente pareceu tentadora. A tal ponto que por um breve momento
fechei os olhos e fiquei ali sorrindo, como em sonhos. Seja como for, fui
despertado de meu devaneio pela volta de Boris.
fcil fazer isso no escuro disse ele.
Percebi, ento, que ele parecia com frio e tremia. Toda a
energia anterior havia se esvado e me ocorreu que sua atuao de h
pouco lhe exigira muito esforo.
Agora, vamos todos para o apartamento eu disse. L,
tem uma coisa bem gostosa para comer.
Vamos disse Sophie, saindo. Est ficando tarde. Uma
garoa fininha comeou a cair e, agora que o sol tinha se posto, o ar
estava mais frio. Boris me deu a mo e acompanhamos Sophie para fora
do parque, para uma ruela deserta.
4
Era evidente que havamos deixado a cidade velha para trs.
Os muros de tijolos encardidos, que se elevavam nos dois lados da rua,
no tinham janelas e pareciam ser os fundos de armazns. Ao
caminharmos, Sophie manteve uma marcha determinada e, no
demorou muito, pude ver que Boris sentia dificuldade em acompanh-
la. Mas quando lhe perguntei se estvamos andando rpido demais,
olhou-me com a cara furiosa.
Posso andar muito mais rpido! gritou e apressou o
passo, puxando minha mo.
Mas diminuiu a marcha quase em seguida, com uma
expresso magoada. Pouco depois, embora eu andasse devagar, senti
que ele respirava com dificuldade. Comeou, ento, a murmurar algo
para si mesmo. De incio, no dei muita ateno, supondo que se
tratasse simplesmente de uma maneira de se manter animado. Mas
ento o ouvi sussurrar:
Nmero Nove... o Nmero Nove...
Olhei com curiosidade. Ele parecia mido e frio, e achei que
seria melhor mant-lo conversando.
Esse Nmero Nove disse eu , um jogador de futebol?
O melhor do mundo.
Nmero Nove. Sim, claro.
Muito nossa frente, a figura de Sophie desapareceu ao
dobrar uma esquina e Boris apertou minha mo. At esse momento,
no tinha percebido como sua me estava to adiante, e apesar de
acelerarmos a marcha, parecia que precisaramos de um tempo
excessivo para alcanar a esquina. Quando finalmente a dobramos,
fiquei contrariado ao ver que Sophie havia se distanciado ainda mais.
Passamos por mais muros sujos, de tijolos, alguns com
grandes manchas de umidade. O calamento era irregular e, nossa
frente, vi poas cintilando sob a iluminao dos postes.
No se preocupe disse a Boris. Estamos quase
chegando. Boris continuava a murmurar para si mesmo, repetindo no
ritmo de sua respirao ofegante, "Nmero Nove... Nmero Nove..."
No comeo, as aluses de Boris ao "Nmero Nove" no me
diziam nada. Agora, ao ouvi-lo, lembrei-me de que o "Nmero Nove" no
era um jogador de futebol real, mas um de seus jogadores em
miniatura, de seu jogo de futebol. Os jogadores, modelados em
alabastro, cada qual com um contrapeso na base, podiam ser movidos
com o dedo para driblar, passar e lanar uma pequenina bola de
plstico. O jogo fora projetado para duas pessoas, cada uma
controlando um time, mas Boris sempre jogava sozinho, passando
horas deitado de bruos, planejando partidas repletas de derrotas
dramticas e revides excitantes.
Possua seis times completos, assim como gols em miniatura,
com rede de verdade, e um pano verde de feltro que servia de campo.
Boris ignorava a suposio dos fabricantes de que seria divertido fingir
que os times eram de verdade, como o Ajax de Amsterd ou o AC de
Milo, e lhes deu outros nomes.
Entretanto, aos jogadores embora conhecesse intimamente
a fora e a fraqueza de cada um nunca dera nomes, preferindo
cham-los simplesmente pelo nmero da camisa.
Talvez porque no soubesse o significado dos nmeros das
camisas no futebol ou quem sabe fosse mais uma peculiaridade de
sua imaginao , o nmero do jogador no tinha qualquer relao com
a posio em que Boris o colocava na formao do time. Por
conseguinte, o Nmero Dez de um time podia ser o lendrio zagueiro
central, e o Nmero Dois, o promissor ponteiro. O "Nmero Nove"
pertencia a seu time favorito e era, de longe, o jogador mais talentoso.
Entretanto, em razo de sua imensa habilidade, era de carter instvel.
Ocupava uma posio no meio do campo, mas, muitas vezes, pela
grande tenso do jogo, retirava-se amuado para alguma parte obscura,
aparentemente esquecido de que seu time estava perdendo de goleada.
s vezes, continuava nessa letargia por mais de uma hora, de modo que
o time adversrio marcava quatro, cinco, seis gols, e o comentarista
pois havia um comentarista diria aturdido: "O Nmero Nove at agora
no mostrou seu jogo. No sei o que est acontecendo."
Ento, restando uns vinte minutos para o final da partida, o
Nmero Nove finalmente daria mostra de sua verdadeira capacidade,
retornando sua posio e chutando na direo do gol, com muita
habilidade. "Agora sim!", o comentarista exclamaria. "Finalmente o
Nmero Nove mostra o que pode fazer!" A partir desse momento, sua
atuao se firmaria e no demoraria para que comeasse a marcar um
gol atrs do outro e o time adversrio se concentrasse totalmente em
evitar a qualquer custo que o Nmero Nove recebesse a bola. Porm,
mais cedo ou mais tarde, ele a conseguiria e, ento, independente de
quantos adversrios se colocassem entre ele e a baliza, encontraria uma
maneira de marcar mais um. Dentro em pouco, a inevitabilidade do
resultado, uma vez que tivesse recebido a bola, era tal que o
comentarista diria " gol", com uma admirao resignada, no quando
a bola realmente balanasse as redes, mas no momento em que o
Nmero Nove a dominasse mesmo que isso acontecesse em sua parte
do campo. Os espectadores tambm havia os espectadores se
punham a gritar triunfalmente assim que o viam tocar na bola.
O clamor continuaria intenso e uniforme, enquanto o Nmero
Nove passaria, graciosamente, por seus adversrios, deslocaria o
goleiro, e se viraria para receber os cumprimentos de seus
companheiros.
Enquanto recordava tudo isso, me veio a vaga lembrana de
um certo problema recente em relao ao Nmero Nove, e interrompi o
sussurro de Boris para perguntar:
Como est o Nmero Nove atualmente? Em boa forma?
Boris deu alguns passos em silncio, depois disse:
Deixamos a caixa.
Caixa?
O Nmero Nove se soltou da base. Aconteceu o mesmo com
outros, fcil consertar. Coloquei o Nmero Nove em uma caixa
separada e ia consert-lo quando a minha me comprasse o tipo de cola
necessrio. Coloquei-o na caixa, uma caixa especial, para que no me
esquecesse de onde estava. Mas o esquecemos.
Entendo. Vocs o deixaram onde moravam.
Minha me se esqueceu de pr na bagagem. Mas disse que
voltar logo ao velho apartamento para peg-lo. Posso consert-lo, j
compramos a cola. Juntei um pouco de dinheiro.
Entendo.
Minha me disse que no tem problema, que vai cuidar de
tudo, para que os novos moradores no o joguem fora por engano. Ela
disse que voltaremos logo.
Tive a ntida impresso de que Boris estava sugerindo alguma
coisa e, quando se calou, eu disse:
Boris, se quiser, posso lev-lo at l. Sim, podemos voltar os
dois juntos. Voltar ao antigo apartamento e buscar o Nmero Nove.
Podemos fazer isso em breve. Talvez at mesmo amanh, se eu
conseguir um tempo livre. Como disse, j tem a cola certa. Ele logo
voltar sua melhor forma. Por isso no se preocupe. Logo cuidaremos
disso.
A figura de Sophie desaparece