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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Educação e Humanidades
Faculdade de Educação
Kátia Maria Soares
Pelos narradores da solidão: marcas do integralismo nas memórias sobre a
educadora Aurélia de Souza Braga (Belford Roxo, 1930-1945)
Rio de Janeiro
2016
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Kátia Maria Soares
Pelos narradores da solidão: marcas do integralismo nas memórias sobre a educadora
Aurélia de Souza Braga (Belford Roxo, 1930-1945)
Tese apresentada como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor em Educação, ao
Programa de Pós-Graduação em Educação
(ProPEd) da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro.
Orientadora: Profa. Dra. Ana Chrystina Venancio Mignot
Rio de Janeiro
2016
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CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
tese, desde que citada a fonte.
___________________________________ _______________
Assinatura Data
S676 Soares, Kátia Maria.
Pelos narradores da solidão: marcas do integralismo nas memórias sobre a
educadora Aurélia de Souza Braga (Belford Roxo, 1930-1945) / Kátia Maria
Soares. – 2016.
301 f.
Orientadora: Ana Chrystina Venancio Mignot.
Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Faculdade de Educação.
1. Educação – História – Teses. 2. Braga, Aurélia de Souza, 1909-1995 –
Teses. 3. Educadores – Teses. I. Mignot, Ana Chrystina Venancio. II.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Educação. III. Título.
es CDU 37(815.3)
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Kátia Maria Soares
Pelos narradores da solidão: marcas do integralismo nas memórias sobre a educadora
Aurélia de Souza Braga (Belford Roxo, 1930-1945)
Tese apresentada como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor em Educação, ao
Programa de Pós-Graduação em Educação
(ProPEd) da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro.
Aprovada em 25 de fevereiro de 2016.
Banca Examinadora:
_______________________________________________________
Professora Doutora Ana Chrystina Venancio Mignot (Orientadora)
Faculdade de Educação/PROPEd/Universidade do Estado do Rio de Janeiro
_______________________________________________________
Professora Doutora Márcia Cabral da Silva
Faculdade de Educação/ProPEd/Universidade do Estado do Rio de Janeiro
_______________________________________________________
Professora Doutora Alexandra Lima da Silva
Faculdade de Educação/PROPEd/Universidade do Estado do Rio de Janeiro
_______________________________________________________
Professora Doutora Oresta López Pérez
El Colegio de San Luis/COLSAN/San Luis Potosí/México
_______________________________________________________
Professora Doutora Rosa Maria Feiteiro Cavalari
Programa de Pós-Graduação em Educação/ IB/ UNESP/ Rio Claro/ São Paulo
Rio de Janeiro
2016
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DEDICATÓRIA
Aos meus pais, Victor e Fernanda, por me ensinarem o valor das memórias e do
pertencimento à terra das goiabas e das laranjas.
À Verena, que espero ainda possa colher os frutos.
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AGRADECIMENTO
Expresso a minha gratidão.
A minha orientadora Professora Doutora Ana Chrystina Venancio Mignot,
primeiramente pela honra de ter me aceito como sua orientanda. Por todas as referências de
pesquisa e, principalmente, de compromisso com a trajetória acadêmica. Por ter me mostrado
a UERJ e construído em mim o afeto que hoje nutro por esta instituição. E por me
acompanhar, com cuidados, durante esta viagem de formação.
Aos meus queridos Narradores, pela generosidade em dividir suas memórias. Por suas
inestimáveis participações neste meu grupo de contadores de ―histórias de Aurélia‖. Vida
longa aos papa-goiabas!
Às Professoras Doutoras Oresta López Pérez, Rosa Maria Feiteiro Cavalari, Márcia
Cabral da Silva, Alexandra Lima da Silva, Maria Celi Chaves Vasconcelos e Maria Teresa
Santos Cunha, pela aceitação generosa da leitura desta tese e por contribuírem com suas
experiências acadêmicas para esta conquista.
Às colegas de grupo de pesquisa, Leila de Macedo Varela Blanco, Heloisa Helena
Meirelles dos Santos, Adriana Valentim Beaklini, Daiane de Oliveira Tavares, Sara Raphaela
Machado de Amorim, Patricia Amaral Siqueira, Shayenne Schneider Silva, Priscila de Araujo
Garcez, Anaise Cristina da Silva Nascimento e Andreza Felipe do Nascimento, pelas leituras e
sugestões e pelo acolhimento carinhoso que sempre pautou nosso grupo. Levarei vocês em
meu coração.
Aos colegas de grupo de pesquisa, que estiveram no decorrer desta caminhada,
Alexandra Lima da Silva, Marcelo Gomes da Silva, Valeria Maria Neto Crespo de Oliveira
Lima, Robson Fonseca, Jaqueline de Albuquerque Varela, Rory Santos, e, ao mais querido
―adotado‖, Ednardo Monteiro Gonzaga do Monti, por todas aprendizagens.
À coordenação e aos funcionários do Programa de Pós-graduação em Educação da
UERJ/ProPEd, pela presteza no atendimento a todos os meus pleitos e pela delicadeza e
atenção com que sempre fui tratada por todos.
À Professora Doutora Oresta López, pela oportunidade do ―encontro‖ e ao Professor
Doutor Jorge Aceves, pelos ensinamentos. A todos os docentes, discentes e funcionários em
El Colegio de San Luis, COLSAN, com os quais tive o privilégio do convívio saudável e
amistoso, em especial à Professora Doutora Maria Cecilia Costero Gabarino por toda atenção
e respeito.
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À Equipe da Faculdade de Belford Roxo (FABEL) e Colégios CEM e Castelinho, por
manter o espírito de equipe por todo tempo do meu doutorado, pela torcida, pelo auxílio e
compreensão. Em especial à Deliane de Assis Silva de Moura, pelas imagens dos mapas
criados para este trabalho. Ao Jefferson da Silva Valentim e equipe do CPD, pela ajuda com as
fotografias e impressões e à Denise Pereira pela dedicação aos narradores na entrevista
coletiva.
À Equipe do ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO,
especialmente ao diretor do Departamento de Acesso à Informação, Johenir Jannoti Viégas e a
bibliotecária Joyce Silva Campos pela atenção dedicada a este trabalho.
Aos cidadãos de San Luis Potosí, que receberam esta brasileña com muita
consideração, abrindo as portas de suas casas e cozinhas, permitindo-me sentir una potosina!
Especialmente ao Alejandro Landeros, por ser um grande amigo e cicerone.
As minhas tias, que honram a descendência de minha avó Zaira: Heloisa Bicchieri
Antonio, Lúcia Helena Bicchieri, Virgilina Maria Bicchieri Medeiros e Elisabeth Bicchieri
por serem para mim exemplos de mulheres que constroem valores, como do trabalho e da
valentia.
Aos meus amigos-irmãos com quem neste, e em outros tempos, pude sempre contar:
Fernando Carlos Soares, Marcio Emerson Santana da Silva, Ednardo Monteiro Gonzaga do
Monti, Flávio Medeiros, Ronald Antonio, Ana Maria Christofidis, Demetrios Christofidis,
Rosane Antonio, Thiago Bicchieri Dias, Douglas Vicente Magno Gomes, Luciano Bicchieri
Medeiros, Sandra Vicente Magno Gomes, Eduardo Bicchieri Medeiros, Evaldo de Oliveira
Bento, Solange Maria Luçan de Oliveira, Vilma Bezerra Ferreira, Hilton Andrade Ferreira
Filho, Deise Lucia Lourenço de Souza e Eduardo d‘Albuquerque Browne. Agradeço,
principalmente, pela presença silenciosa, constante e sempre pertinente!
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES – por ter
subsidiado o meu período de doutorado no México.
À Professora Doutora Vera Rudge Werneck, pelos exemplos de elegância, integridade
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Quasimodo dizia que ser de um lugar e de um tempo é que faz o segredo da escrita
universal. Alguém disse que o mundo começa na nossa aldeia. Mas eu não sei até que ponto
fui capaz de fazer o retrato da minha aldeia.
Mia Couto 1
1 Mia Couto, em entrevista à Nelson Saúte. (ROTHWELL, P. Leituras de Mia Couto, aspectos de um pós-
modernismo republicano. [Trad. Intr. Margarida Calafate Ribeiro]. Coimbra: Edições Almedina, 2015, p.60).
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RESUMO
SOARES, Kátia Maria. Pelos narradores da Solidão: marcas do integralismo nas memórias
sobre a educadora Aurélia de Souza Braga (Belford Roxo, 1930-1945). 2016. 301 f. Tese
(Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.
Este estudo interpreta a trajetória de Aurélia de Souza Braga, no período que
compreende os anos 1930 a 1945, a Era Vargas, pelas suas práticas educacionais, políticas,
sociais, culturais e assistenciais, no povoado e distrito de Belford Roxo, então município de
Nova Iguaçu, Baixada Fluminense, estado do Rio de Janeiro, trazendo ao debate o seu legado
à educação nesta região. Ao percorrer o caminho trilhado pela professora desde sua vida no
norte do estado, em busca de vestígios de sua formação e participação no movimento
integralista, toma os depoimentos de vinte narradores que a conheceram, e os que, desde a
chegada de Aurélia de Souza Braga à cidade, passaram pela alfabetizadora, conviveram com
ela, leram o impresso que editou. Assim, ao longo dos quatro capítulos, o estudo trata da
alfabetização e da assistência à criança, discute as ações pedagógicas da professora e o
hibridismo de diferentes métodos em suas práticas. Perscruta sua cultura política, pelos vieses
da socioantropologia e da antropologia política. Conclui que, embora não pregasse nenhuma
crença ou doutrina política, as visões integralistas, católicas, republicanas e estadonovistas
nortearam as ações da professora Aurélia enquanto mediadora pedagógica e política em
Belford Roxo.
Palavras-chave: Aurélia de Souza Braga. História da Educação no estado do Rio de Janeiro.
Integralismo. História Oral. História da Educação de Belford Roxo. História
da Educação da Baixada Fluminense.
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ABSTRACT
SOARES, Kátia Maria. Through the narrators of Solidão: Integralismo‘s marks in the
memories of the teacher Aurélia de Souza Braga (Belford Roxo, 1930-1945). 2016. 301 f.
Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.
This study analises the trajectory of Aurélia de Souza Braga, in the period between
1930-1945, called the Vargas‘ Era, by their educational practices, political, social, cultural
and welfare in the village and district of Belford Roxo, where at that moment was a county of
Nova Iguaçu, Baixada Fluminense, state of Rio de Janeiro, bringing to debate her legacy to
education in this region. To follow the path taken by the teacher from her life in upstate,
searching for traces of her training and participation in the brazilian Integralist Movement, it
takes the testimony of twenty storytellers who knew her, and those who, since the arrival of
Aurélia de Souza Braga at that city, went through literacy, lived with her, read her scholar
journals. Thus, over the four chapters, this study deals with literacy and child care, discusses
the pedagogical actions of the teacher and the hybridity of different methods in her practices.
Scrutinizes its political culture, the biases of the Socio-anthropology and political
anthropology. Concludes that even while not preaching any belief or political doctrine, the
brazilian integralist views, catholic, republican and "estadonovistas" guided the actions of
Teacher Aurelia as an educational and political mediator in Belford Roxo.
Key-words: Aurélia de Souza Braga. History of Education in the state of Rio de Janeiro.
Integralismo. Oral History; History of Education of Belford Roxo. History of
Education in Baixada Fluminense.
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RESUMEN
SOARES, Kátia Maria. Por los narradores de Solidão: Marcas del integralismo en las
memorias acerca de la educadora Aurélia de Souza Braga (Belford Roxo, 1930-1945). 2016.
301 f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade do Estado do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.
Ese trabajo presenta la trayectoria de Aurélia de Souza Braga, desde el año de 1930
hasta 1945, llamado Era Vargas, por sus prácticas educacionales, políticas, sociales, culturales
y asistenciales en Belford Roxo, que en ese período estaba ubicado en la ciudad de Nova
Iguaçu, Baixada Fluminense, Rio de Janeiro, justificando y presentando su legado a la
educación de esa región. Buscamos las actitudes pedagógicas de la profesora a lo largo de su
vida profesional en el Norte de Rio de Janeiro y también conocer un poco de su formación y
participación en el movimiento integralista, es decir, oímos 20 narradores que conocieron su
trabajo los que, desde su legada a la ciudad, participaron de su tarea de alfabetización,
trabajaron con ella y conocieron el impreso que ella hizo la edicción. Así, a lo largo de los
cuatro capítulos el texto se refiere a la alfabetización y a la asistencia a los niños, discute las
acciones pedagógicas de la profesora y la hibridez de los distintos métodos en sus prácticas.
Analiza su cultura política, con las herramientas de la socio-antropología y de la Antropología
política. Concluye que aunque no tuviera una posición política, las influencias integralistas,
católicas, republicanas y estadonovistas estuvieron en sus acciones como mediadora
pedagógica y política en Belford Roxo.
Palabras-Claves: Aurélia de Souza Braga. História de la educación en el estado de Rio de
Janeiro. Integralismo. História Oral. História de la educación de Belford
Roxo. História de la educación de Baixada Fluminense.
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 01 - Aurélia (imagem mais encontrada). Aurélia com cerca de 55 anos, quando
na direção do Patronato São Vicente. .................................................................. 67
Figura 02 - Mapa ―Caminhos de Aurélia‖. ............................................................................ 94
Figura 03 - Aurélia em Gargaú. Aurélia, na faixa etária de 25 anos. Vê-se a Lagoa do
Comércio. ............................................................................................................ 96
Figura 04 - Aurélia e irmãos em Gargaú. Sentada, ladeada por Vicente e Aládia. Vê-se o
Barracão de Gargaú ao fundo. ........................................................................... 104
Figura 05 - Sede da 7ª. Região Integralista. Sobrado da Praça São Salvador – centro de
Campos dos Goytacazes. Além de sede do núcleo, sede da região que
abarcava grande parte do norte fluminense. ...................................................... 112
Figura 06 - Mapa das Regiões Integralistas do Estado do Rio de Janeiro ........................... 113
Figura 07 - Núcleos da 4ª. Região – Raiz da Serra/Baixada Fluminense. ........................... 119
Figura 08 - Mapa da Baixada Fluminense. Posição relativa ao Distrito Federal 1930. ....... 122
Figura 09 - ―Bica da Mulata‖. Escultura recuperada pelo empenho dos membros do
CENPRE junto ao primeiro prefeito de Belford Roxo, José Júlio Costa dos
Santos, o Joca. ................................................................................................... 123
Figura 10 - Lavoura de laranja em Belford Roxo, anos 1930. Granja Santo Antônio, de
propriedade do Conde de Pombeiros e do Dr. Almeida Braga. Fazia divisa
com as terras do Comendador Barone, também laranjal em Belford Roxo,
área rural do então 1º distrito. À esquerda Emigdio Vicente, administrador. ... 124
Figura 11 - Fazenda do Brejo – sede. Fazenda que deu primeiramente nome a Belford
Roxo .................................................................................................................. 125
Figura 12 - Desastre de trem dos integralistas em Mesquita, Baixada Fluminense, 1937. .. 133
Figura 13 - Manchetes do Correio da Lavoura.de 09-12-1937, no momento em que o
município se adequava à nova ordem instaurada em 10-11-1937. .................... 134
Figura 14 - Pedra Fundamental da I. N. S. da Conceição, em Belford Roxo, seu
lançamento. ....................................................................................................... 140
Figura 15 - Getúlio de Moura e Aurélia Braga, desfile cívico. ............................................ 143
Figura 16 - Carteira Funcional – frente e verso, identifica Aurélia de Souza Braga
professora do município de Nova Iguaçu e confirma data de nomeação: 15-
03-1935. ............................................................................................................. 146
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Figura 17 - Escola Sagrado Coração de Jesus na Igreja da Solidão. ................................... 151
Figura 18 - Relicário e dedicatória família Trévia, assinada por Elisio, Giovani e
Antonio Ponte Trévia, presenteado à Aurélia, 1936. ......................................... 158
Figura 19 - Aurélia de Souza Braga em 1936, Belford Roxo – aproximadamente um ano
após chegada à Baixada – em torno dos 26 anos. ............................................. 160
Figura 20 - Biografia de Maria Stuart, dedicatória/segunda capa. Presenteada à
professora em 1943, ano seguinte à edição do livro. ........................................ 162
Figura 21 - Escola e Igreja do S. C. de Jesus, fundada em 1928, na Solidão, fotografada
em 1986, hoje pertencente à Diocese de Nova Iguaçu. ..................................... 169
Figura 22 - Relatório nominal das escolas integralistas do estado, 1937, constante
Belford Roxo, onde se lê os nomes das 124 escolas, em ordem alfabética, a
de Belford Roxo é a 10ª. .................................................................................... 176
Figura 23 - ―Festa Auvre: Escolas Reunidas‖. Ano 1936. ................................................... 179
Figura 24 - Página do caderno de Aurélia. Exemplo de uma página. As datas apostas
após trechos reproduzidos variam de 1938 a 1941. .......................................... 184
Figura 25 - Passeio à Serra do Tinguá. E.M. Prof. Paris. Aurélia e seus alunos na
estação do Tinguá. Baixada Fluminense, 1936. ................................................ 185
Figura 26 - Lista de materiais da Escola Carlos Mattos – Núcleo de Cantagalo, estado
do Rio de Janeiro. .............................................................................................. 195
Figura 27 - Núcleo de Cantagalo – Divisão de Educação. Relatório das atividades da
Escola Carlos de Mattos. ................................................................................... 196
Figura 28 - Escola Municipal Prof. Paris/ Primeiro prédio: ―Villa União‖ ......................... 199
Figura 29 - Infância e maternidade – obra de assistência. Abertura do relatório da
Sociedade de Proteção à Infância e à Maternidade de Belford Roxo,
realizada em 31 de maio de 1950 ...................................................................... 213
Figura 30 - Enterro de criança, E.M. Prof. Paris, pela Praça Getúlio Vargas. As crianças
conduzem. Anos 1930. ...................................................................................... 215
Figura 31 - Lactário Anna Francisca, São Paulo. ................................................................. 218
Figura 32 - Ingresso ao Festival Artístico Integralista em Nilópolis. Atividade cultural
promovida em benefício à escola e à Secretaria de Assistência Social. ............ 219
Figura 33 - Cabeçalho de O Infantil – 1ª. Edição. Agosto de 1939. .................................... 226
Figura 34 - Capa de O Infantil nº 2, de 1º de setembro de 1939. A segunda edição é
comemorativa da Independência e contém 6 páginas. ...................................... 231
Figura 35 - Coluna Tesoura Escolar de O Infantil ............................................................... 233
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Figura 36 - O Infantil: ―Manifestação de apreço ao Presidente da República‖. Matéria
do nº 05 – de 01 de dezembro de 1939.............................................................. 238
Figura 37 - ―No Cincoentenario da Republica‖, Armanda Álvaro Alberto. Publicação de
O Infantil nº 6, página 3. ................................................................................... 239
Figura 38 - Anunciantes do nº 6 de O Infantil. Constantes na página 6. ............................. 245
Figura 39 - Memorando da Inspetoria de Instrução de Nova Iguaçu, sobre O Infantil. ...... 246
Figura 40 - O Infantil, nº 4. ―15 de novembro‖. De Joaquim Vicente (irmão do narrador
Walter). .............................................................................................................. 250
Figura 41 - Manuscrito de Manoel Melo,―10 de novembro de 1937‖. ................................ 252
Figura 42 - O Infantil nº 5 – Editorial Infortunio – Assassinato da Profa. Felismina. ......... 258
Figura 43 - Ed. nº 6 de O Infantil. Texto do aluno Marinho sobre a morte da Professora
Felismina. .......................................................................................................... 259
Figura 44 - Manuscrito ―A Guerra‖. Paulinho – 2º Ano da E.M. Prof. Paris....................... 262
Figura 45 - O Infantil nº 4 – Textos das irmãs Danilce e Maria Eunice. ............................. 265
Figura 46 - Inventário da Biblioteca do núcleo integralista de Cantagalo, enviado ao
Chefe Municipal do movimento, Paulo Lontra, datado de 06 de janeiro de
1937. .................................................................................................................. 267
Figura 47 - Através do Brasil nas páginas de O Infantil, nº 2, p. 6. ..................................... 267
Figura 48 - ―Joia Rara‖. Texto de Maria Eunice publicado em O Infantil nº 6. .................. 271
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LISTAS DE QUADROS
Quadro 01 - Narradores, perfil dos entrevistados, ex-alunos de Aurélia de Souza Braga. ... 38
Quadro 02 - Narradores, perfil dos entrevistados, família de Aurélia de Souza Braga. ....... 38
Quadro 03 - Narradores, perfil dos entrevistados, descendentes da rede de sociabilidade
de Aurélia de Souza Braga/ Memorialistas da Baixada e Norte Fluminense. .. 39
Quadro 04 - Perfil dos Anunciantes de O Infantil. Estabelecidos em Belford Roxo.
Frequência de publicações. ............................................................................. 242
Quadro 05 - Perfil dos Anunciantes de O Infantil. Estabelecidos fora Belford Roxo.
Frequência de publicações. ............................................................................. 244
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LISTA DE TABELAS
Tabela 01 - Província do Rio de Janeiro/Integralismo. ........................................................ 114
Tabela 02 - Escolas pelo Decreto do Interventor Sebastião de Arruda Negreiros em 10-
03-1931. Município de Nova Iguaçu ................................................................. 203
Tabela 03 - Coleção de O Infantil do Coleção Aurélia Braga/ CENPRE. ........................... 222
Tabela 04 - Colunas de O Infantil – edições pesquisadas. ................................................... 232
Tabela 05 - Editorais de O Infantil. ...................................................................................... 257
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABHO Associação Brasileira de História Oral
AGCRJ Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro
AIB Ação Integralista Brasileira
AI 5 Ato Institucional nº 5
ANPEd Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação
APERJ Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro
BN Biblioteca Nacional
BPE Biblioteca Parque Estadual
CAPsad Centro de Apoio Psicológico
CEAL Centro de Estudios de América Latina
CENPRE Centro de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural de Belford Roxo
CEDIM Centro de Documentação e Imagem/ UFRRJ
CEDIM Conselho Estadual dos Direitos da Mulher
CIEP Centro Integrado de Educação Pública
CIPA Congresso Internacional de Pesquisas Autobiográficas
CJBI Cruzada Juvenil da Boa Imprensa
CPDOC Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil
Deips Departamentos estaduais de imprensa e propaganda
DESPS Departamento Especial de Polícia Social
DHBB Dicionário Histórico Bibliográfico Brasileiro
DIP Departamento de Imprensa e Propaganda
DNCr Departamento Nacional da Criança
DOP Departamento Oficial de Publicidade
DOPS Departamento de Ordem Política e Social
FGV Fundação Getúlio Vargas
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INEPAC Instituto Estadual do Patrimônio Cultural
IPHAB Instituto de Pesquisas Históricas e Análises Sociais da Baixada Fluminense
IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
IPMs Inquéritos Policial-Militares
LBA Legião Brasileira de Assistência
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MÊS Ministério da Educação e Saúde
OAB Ordem dos Advogados do Brasil
PCB Partido Comunista Brasileiro
PRP Partido de Representação Popular
PSD Partido Social Democrático
SIPS Serviço de Inquéritos Políticos e Sociais
S.N.A.F.P. Secretaria Nacional de Arregimentação Feminina e Plinianos
UDN União Democrática Nacional
UFF Universidade Federal Fluminense
UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFRRJ Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
UNICAMP Universidade Estadual de Campinas
UPF União Progressista Fluminense
USIS Serviço de Divulgação e relações Culturais dos EEUU em suas embaixadas ao
redor do mundo.
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SUMÁRIO
PERSCRUTANDO SEGREDOS, SUSSURROS E SILÊNCIOS .......................... 19
1 NARRADORES E SEUS SEGREDOS ..................................................................... 33
1.1 Histórias de solidão ..................................................................................................... 37
1.1.1 Política no povoado ...................................................................................................... 48
1.1.2 Integralismo e esquecimento ........................................................................................ 54
1.1.3 Mito e geração .............................................................................................................. 63
1.1.4 Vozes silenciadas .......................................................................................................... 72
1.1.5 Professoras ao espelho .................................................................................................. 84
1.1.6 Formação e memória .................................................................................................... 88
2 DESVELANDO RECÔNDITOS DO TERRITÓRIO ............................................. 95
2.1 Efervescência fluminense dos anos 1930-1934 ....................................................... 103
2.2 Província do Rio de Janeiro ..................................................................................... 111
2.3 Recôncavo da Guanabara: lugar da Solidão .......................................................... 120
2.4 Repressão na “política de Iguassú” ......................................................................... 127
2.5 Esperanças e utopias: a escola rural ....................................................................... 145
2.6 Mulher fluminense .................................................................................................... 153
3 INFÂNCIA, ALFABETIZAÇÃO E ASSISTÊNCIA ............................................ 165
3.1 (I)Materialidades na Escola do Sagrado ................................................................. 168
3.1.1 Mistérios da ―caixa-preta‖ .......................................................................................... 180
3.1.2 Cartilha da Infancia e suas apropriações ................................................................... 186
3.1.3 Alfabetização integralista ........................................................................................... 193
3.2 Criando escolas em Belford Roxo ........................................................................... 197
3.3 Proteção à Infância e à Maternidade de Belford Roxo ......................................... 206
3.3.1 Ações sociais das ―blusas-verdes‖ .............................................................................. 216
4 ESCRITAS E MEDIAÇÕES NAS PÁGINAS DE O INFANTIL ........................ 221
4.1 Infância e cultura escrita .......................................................................................... 223
4.2 Impresso escolar ........................................................................................................ 226
4.2.1 Parcerias na produção do jornal .................................................................................. 241
4.2.2 Formando almas: traços da Primeira República ......................................................... 247
4.2.3 Pelas escritas: disseminando ideias ............................................................................ 251
4.2.4 Editoriais e suas pautas ............................................................................................... 256
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4.2.5 Formação do escritor no periódico escolar ................................................................. 260
4.2.6 Através do Brasil – formação do leitor pelo folhetim ................................................ 266
GUARDANDO VELHOS PAPÉIS ......................................................................... 273
REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 282
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19
PERSCRUTANDO SEGREDOS, SUSSURROS E SILÊNCIOS
Houve um tempo em que eu, menina, brincava na Solidão. Também ouvia histórias da
época em que os meus bisavós foram morar lá. Isto era contado na calçada, onde o velho
mandou gravar bem grande aquele ano, 1934. Pelo tempo que demorava chegar o Natal, esse
ano para mim vinha logo depois do Descobrimento do Brasil. Foi pela minha meninice que
ouvi falar de Aurélia. Era um tema recorrente nas conversas dos primeiros narradores de sua
vida que conheci. Além das muitas histórias sobre as aulas da professora, as iniciativas de
criação de escolas e promoção da educação das crianças, eles contavam que quando Aurélia
chegou à Solidão, no primeiro mês de 1935, foi morar na casa da colina, ao lado da igreja. D.ª
Ermelinda, aparentada da família, acolheu-a e ao pai, mãe, uma irmã e um irmão. Em tom
baixo, aos sussurros, diziam que o pai estava doente do pulmão, talvez para que as crianças
não ouvissem, que falar de doenças era coisa de adulto! Outras palavras, assim, eram
pronunciadas acompanhadas de entreolhares e outros gestos que eu também não compreendia:
integralista, espírita...
Quando a sala de minha mãe ficou vazia da sua presença, em virtude do seu declínio
de saúde quase cinco décadas depois, eu entrei um dia para procurar por fotos, era um projeto
que nem me lembro mais. Em meio ao emaranhado de papéis, imagens e documentos, por ela
tão avidamente reunidos, eu encontrei um caderno de Aurélia. Foi diante do caderno que me
dei conta daquele legado. O que faria de tudo aquilo que preenchia a sala? Lembrei de
Aurélia, e do seu discurso, convocando os ex-alunos a fundarem o centro de memória da
cidade que se adivinhava. Em 1986 nós já estávamos pleiteando a emancipação de Belford
Roxo. E Aurélia, aproveitando uma homenagem que esses alunos lhe fizeram, disse que era
urgente a fundação da instituição para reunir a memória do passado e daquele momento.
Como sempre, minha mãe seguiu seu pensamento. Ah, ela sempre fez isso, afinal, eu pensei.
Perplexa, foi que entendi que minha mãe era sua sucessora. Herdeira não. Vasculhei nas
lembranças uma conversa que tive com ela sobre a diferença dessas coisas. Herdar sem
suceder não servia para ela. Quem sucede não precisa fazer igual, mas tem que fazer melhor
com o legado. Ampliar, desdobrar, produzir, fazer efetivamente. Sim, ela foi sucessora de
Aurélia. Como eu sou sucessora da minha mãe. Mas esse legado eu não entendia que era
responsabilidade minha. Eu entregaria isso a um grupo, reuniria os que ainda tivessem
interesse em tocar o Centro de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural de Belford
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Roxo2, o CENPRE, como eles chamaram. Documentos, imagens, o que tivesse, não podiam
pertencer a uma só pessoa, essa não era uma herança pessoal, era coletiva.
Mas, o que eu estaria entregando aos próximos membros do CENPRE? Foi este o
legado de Aurélia? Fotografias, manuscritos, jornais, documentos... Aquele acervo que hoje
preenche a sala? Qual foi a verdadeira herança da professora? Toda ela caberia neste espaço
agora também dedicado à memória do novo município? Que professora foi ela? O que fez?
Como fez? Ao que aspirava? Por quê? Quem, afinal, foi essa mulher?
Foram esses questionamentos que direcionaram meu olhar para o que busquei
investigar: a trajetória de Aurélia de Souza Braga em Belford Roxo, então um povoado no
município-sede de Nova Iguaçu, Estado do Rio de Janeiro, no período que se insere na Era
Vargas (1930-1945), quando a professora deu seus primeiros passos nesta região –
começando pelo lugarejo chamado Solidão – coincidentes com os movimentos iniciais de
criação de escolas e de referências do que viria a ser a educação oferecida no local.
Escolhi fazer isto continuando a ouvir histórias, daqueles e de outros narradores, e
assim criar uma reunião, uma coleção, um coletivo de narrativas sobre Aurélia Braga, suas
iniciativas e seus alunos. Pela pesquisa das memórias relacionadas à professora, procurei
chegar as suas práticas e as representações construídas pelos grupos com os quais conviveu,
alunos e amigos principalmente. Busquei inserir Aurélia em Belford Roxo para perceber qual
o seu legado na Baixada Fluminense, uma das oito regiões que compõem este território, que
ainda conhece muito pouco de sua história3, mas que ora faz parte da região metropolitana da
capital do estado.
Queria poder perceber o ―esquecimento‖ vivido pelo grupo, que Pollack (1989)
assinala, quando assuntos interditos vieram à tona expressando-se como tabus. Desejei
interpretar o silêncio de fatos ainda presentes na memória, mas capazes de fugir à voz que
lhes daria vida e publicidade. Busquei ir além dessas palavras sussurradas e interditadas, não
ditas, entreditas, aprisionadas nos recônditos das memórias, para trazê-las às lembranças. Um
desses assuntos, a participação de Aurélia no movimento integralista, que não foi confirmada
por ela, nem em seu esboço autobiográfico, nem em conversas com as gerações mais novas de
2 O CENPRE, sem finalidades financeiras, foi criado em 1986, pelos ex-alunos da professora, pelo seu estímulo.
Ela foi distinguida por eles como sua presidente de honra.
3 FERNANDES (2009). Tanto a Baixada, quanto o próprio estado fluminense carecem de estudos. ―Aliás, a
historiografia não vem tomando o estado do Rio de Janeiro como um tema relevante, como podemos concluir
das análises dos balanços historiográficos da produção do conhecimento histórico sobre o Rio de Janeiro‖ (p.
20).
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sua família, tornou-se por isto um dos alvos das investigações que nortearam o trabalho,
conduzindo o seu trajeto.
Pensei, ao iniciar neste doutorado em 2012, que meu compromisso como educadora
nesta comunidade, desde os meus dezesseis anos, quando auxiliava na escola criada
juntamente com minha mãe, em 1976, ultrapassa agora os limites das suas propostas de
criação. Conduzir essa instituição, hoje formadora de administradores e de professores, nas
licenciaturas de Pedagogia e História, significa também ser gestora de um legado. A
compreensão do que recebi como herança é fundamental para a decisão do que vou deixar. E,
de uma certa forma, o legado de Aurélia Braga também faz parte dessa herança, ela nomeia,
inclusive, a biblioteca da instituição. Percebo que poderei realizar melhores escolhas, ao final
desta tese, sobre o que abandonar e o que carregar adiante. Mas, principalmente, estarei dando
o assento merecido a essa instituição como guardiã da memória de uma cidade. Ao mesmo
tempo em que abrirei a ela novos horizontes de possibilidades de pesquisa e extensão, que
pude vislumbrar melhor no doutorado sanduíche que realizei em El Colegio de San Luis, na
cidade de San Luis Potosí, no México, em 2014, com financiamento da CAPES. Pude
perceber o COLSAN como uma instituição voltada para o aprofundamento do conhecimento
de todos os setores atinentes à vida humana em sua região, criando propostas para a melhoria
de suas condições, assumindo assim o protagonismo e tornando-se um centro irradiador da
elaboração do pensamento nessa criação.
Ao refletir sobre este estudo biográfico, suas possibilidades de fontes e os caminhos
para escrever esta história de vida, percebo que Aurélia aparece na junção de si com os outros,
porque, como diz Sartre (1967, p. 173), dialeticamente ―o coletivo social e o singular
universal iluminam-se reciprocamente‖. Percebo, ainda, nos diálogos com Ferrarotti (2007,
1991, 1988, 1991), que cada indivíduo é representativo do seu espaço social imediato, dos
pequenos grupos dos quais faz parte, e nestes grupos é agente ativo que totaliza o seu
contexto. Ou totaliza o espírito do seu tempo, como ensina Morin (1962). Concordo com
Ferrarotti, quando conclui que as histórias de vida têm a capacidade de expressar e elaborar o
cotidiano das estruturas sociais, tanto as formais quanto as informais, e por isso dão um aporte
fundamental na investigação social.
A penumbra que envolve os motivos da vinda de Aurélia para Belford Roxo se
originaria na própria doença do pai, outro assunto tabu por essa época por ser contagiosa e
sem possibilidades de cura? Pode ter origem nas disputas entre integralistas e comunistas,
que, também na capital e no município-sede de Nova Iguaçu, intensificaram-se no período?
Ou seria resultado da própria expansão do movimento na região da Baixada? "Se non è vero,
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è ben trovato", se algo não é verdadeiro costuma ser bem contado, por isso uma história mal
contada pode converter-se em um campo de exploração passível de descobertas. Penso que
esta forma de abordar uma história de vida vem ao encontro de suas especificidades. E espero
que suas revelações possam contribuir para a história da educação, tendo em vista que as
ações da professora deixaram marcas nesta região que ela adotou e que a acolheu,
justificando, com isto, a busca pelo seu legado.
Entendo que conhecer uma pessoa é trabalho mais complexo que aproximar-se dos
grupos sociais dos quais participa ou, de alguma forma, estão a ela ligados. Como síntese ou
totalização desses grupos, ela proporciona poder conectar sua biografia com determinadas
características globais de uma dada situação histórica (FERRAROTTI, 2007). Vislumbro que,
ao elucidar o tempo inspirador das ações, seja possível entender as mudanças e as
permanências na educação promovida neste local. As ações da professora no período da Era
Vargas foram várias e se perpetuaram de diversas maneiras. Tais experiências deixaram,
inclusive, legados físicos até hoje importantes para a população do município. Entretanto,
algumas vão além do período recortado, transpõem o ano de 1945, embora tenham sido
iniciadas e, de alguma forma, se referenciem na época anterior, evidenciando a importância
cultural política do período.
Pelos relatos dos vinte narradores da vida de Aurélia – fontes privilegiadas desta
pesquisa – busco subsídios para sua biografia. São eles que levantam as questões, trazem e
elucidam fatos, são eles que, pelas memórias, vão me conduzindo às outras fontes e abrindo
caminhos de pesquisa. Depreendi de suas narrativas, primeiramente, que não deve ter sido por
mero acaso a família Souza Braga procurar abrigo na Solidão. O nome do lugar já era um
recado herdado de um tempo em que as febres imperavam nesta região chafurdada no brejo.
Ninguém queria morar ali nem passar pela Estrada de São Bento, que era então conhecida
como Estrada da Solidão. Os solos alagadiços favoreciam o aparecimento da malária e
ninguém queria habitar aquela área por causa do mosquito transmissor. O cultivo da laranja
estava em seu rápido apogeu na região, onde havia chácaras que produziam para a exportação
arredando o brejal. Mas a Solidão ainda tinha aquela atmosfera nostálgica dos lugares
segregados do país presentes na literatura euclidiana. Certo é que a maioria dessa gente que
existiu por essa época, de 1930-45, pioneira e formadora de uma nova classe média urbana,
não dispunha de muitos recursos, buscava oportunidades, melhores condições de vida e sair
da invisibilidade social (FAUSTO, 1997; TRINDADE, 1979).
Vários aspectos da vida da professora, ainda na região de Campos dos Goytacazes,
onde nasceu, ou mesmo em Belford Roxo, sempre estiveram envoltos em mistérios. E isto foi
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motivo de elucubrações e disputas. Narradores também são assim, especulam, titubeiam,
juntam caquinhos de informações aqui e acolá e, por vezes, a memória falha (BOSI, 1979).
Muitos interessam-se por informações secundárias, que por não serem relevantes foram por
mim reelaboradas. Aurélia fora noiva? Havia sofrido uma desilusão? Seu pai havia realmente
falido e tiveram que contar com a benevolência de parentes? Teriam mesmo viajado às
pressas? Por que apareceram de repente na Solidão? Por que ali? O lugar era também uma
espécie de refúgio? Refúgio? A todos, a família só dizia que vinham de Campos.
Apesar das especulações e interesses sobre a vida privada e pública de Aurélia Braga,
ao dar início às investigações sobre sua possível participação no movimento integralista,
deparei-me com a quase total falta de vestígios. Tanto na historiografia da Baixada
Fluminense, onde praticamente não encontrei o assunto, quanto nas memórias daqueles aos
quais primeiro busquei saber. Se não tivesse escutado as histórias da Solidão, em minha
infância, e a palavra não tivesse surgido junto ao nome de Aurélia, creio que talvez jamais isto
viesse ao conhecimento público. Notei que o integralismo era um assunto tabu, um grande
segredo, não só entre as pessoas que privavam da minha intimidade. Supostamente
desconhecido em Belford Roxo pelos filhos de antigos moradores e políticos, quem primeiro
considerei entrevistar, vários, por telefone, tinham desculpas do tipo: – ―Papai não conversava
sobre assuntos de política com as filhas mulheres, meu irmão já morreu...‖. Ou: – ―Teve um
tempo que todo mundo queimou todas as camisas verdes que existiam em casa, com medo da
patrulha que andava em Belford Roxo [...] Não, não posso dar entrevista‖. Mesmo os
narradores, aqueles que se propuseram falar, ou realmente não sabiam, ou fugiam do assunto,
ou falavam mais baixo, sussurrando, não olhavam diretamente para a câmera ao pronunciarem
―integralista‖. Poucos sustentaram o olhar e pareciam falar mais abertamente, mas notei o
esforço. Percebi o quanto o mistério envolvia a vida da professora, que a todos só repetia que
vinha de Campos.
A região da qual provinha a professora tinha uma vasta tradição agrícola, com uma
sociedade que mantinha diversos dispositivos de irradiação de cultura e entretenimento, tendo
já inclusive reivindicado a condição de capital do estado. Nova Iguaçu viveu período de
desenvolvimento também com a produção dos engenhos de açúcar, porém houve a
consequente decadência e despovoamento com a libertação de sua mão de obra escrava. A
proximidade, relativa, da Baixada Fluminense à capital e as condições econômicas e
ambientais4 não favoreceram, da segunda metade do século XIX até essa década, um grande
4 Torres e Carvalho (2004, p. 9). ―Em 1885 a região foi atacada por uma epidemia de colera-morbus e, seguindo-
se a febre amarela e demais doenças causadas pelos mosquitos, grande parte da população foi dizimada ou
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desenvolvimento agrícola que fixasse a população, nem a criação em escala maior dos meios
culturais. Quem podia, buscava esses recursos no Rio de Janeiro. Estando próximos da
capital, os municípios vizinhos para ela perdiam visibilidade e ficavam sob sua sombra,
política, econômica, social e culturalmente. Experimentando, nesses primeiros anos da
década, um crescimento econômico e social com a lavoura da laranja, a região era agora uma
promessa. Entretanto, seriam fatores econômicos os elementos que motivariam a família a se
estabelecer na Baixada? Que outros fatores concorreriam nesta decisão?
Observando o quadro político de Campos dos Goytacazes no ano anterior à vinda da
família Braga para o município de Nova Iguaçu, percebe-se o acirramento da disputa entre as
duas correntes políticas que ganhavam força no país e na região, o comunismo e o
integralismo (FAUSTO, 1997; TRINDADE, 1979; CARNEIRO, 1999). Importante explicar
que nos anos de 1933 e 1934 o chefe nacional do integralismo, Plínio Salgado, fez duas
visitas à cidade, reunindo-se com as lideranças de Campos e angariando adeptos. O congresso
integralista de 1934 ocorreu na cidade de Vitória, no Espírito Santo, carreando as atenções da
cúpula da Ação Integralista Brasileira (AIB), para a região mais próxima. A partir do ano de
1934 houve um redimensionamento do papel da educação neste movimento no país, já que
somente as pessoas alfabetizadas tinham direito ao voto. Então, a partir desse ano o papel da
mulher no movimento teve sua importância duplamente ampliada pelo fato de que, em 1934,
ela teve assegurado o direito de exercer seu voto e era a responsável principal pela
alfabetização dos futuros eleitores. Em Campos, naquele momento, ―Ser integralista ou ser
comunista eram as duas opções alternativas que se colocavam para a vida política da cidade, o
que explica os constantes embates travados por esses grupos, na imprensa ou nas
manifestações de rua‖ (CARNEIRO, 1999, p. 21-22).
Com base na perspectiva socioantropológica de Karina Kuschnir (2002), interpreto
que esta não tem como objetivo criticar as práticas políticas, mas entender a maneira pela qual
as relações de poder emergem numa situação determinada, adquirindo significado para os
atores sociais. Esse campo privilegia técnicas de pesquisa qualitativas, utilizando-se,
inclusive, de entrevistas e produzindo ―estudos de casos‖, como pode, também, ser
considerada a história de vida de Aurélia Braga. Para Kuschnir (2002), cabe a quem investiga
não ignorar que as práticas e representações observadas estão inseridas numa sociedade
maior, em um sistema político formal, com instituições de larga escala. E nesse esforço de
fidelidade ao particular, necessário se faz produzir generalizações, ou seja, observar em que, e
fugiu dali, e a decadência se alastrou em seguida com a Lei Áurea e a consequente falta do trabalho escravo
para a lavoura e a limpeza dos rios‖.
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em como, esta história de vida pode gerar reflexões e ampliação de conhecimento sobre a
sociedade.
A expressão cultura política pode referir-se tanto ao conjunto de atitudes, normas,
crenças e valores políticos, partilhados pela maioria dos membros de uma determinada
sociedade ou nação, quanto ao tipo do sistema ou regime em vigor num país, incluindo as
instituições políticas existentes. Em detrimento dos regimes políticos, a cultura pode
permanecer. ―Com efeito, regimes políticos fazem-se e desfazem-se em pouco tempo, até
mesmo em poucos dias ou horas, mas uma cultura cria-se e solidifica-se ao longo de muitas
décadas, isto é, por ‗tempos longos‘, utilizando uma expressão cara ao saudoso Milton
Santos‖ (NOSELLA, 2005, p. 229).
Sobre o integralismo, nesse cenário da Era Vargas, muito se tem escrito, após a tese de
Hélgio Trindade (1979), defendida em Paris em fins de 1972, e que traz muitos subsídios para
uma visão ampliada do movimento, inclusive em toda América Latina (TRINDADE, 2004).
Mas em João Caldeira (1999), ao tratar de uma história do integralismo pelo viés regional do
Maranhão, é possível perceber que estudos regionais oferecem subsídios para as análises tanto
da história social, como da história das ideias, e cultural do Brasil. Outros autores, desta
forma, também evidenciaram particularidades e abrangências, como o caso de Canabarro
(1999) no município de Ijuí, no Rio Grande do Sul. Em Rosa Cavalari (1999) esta história vai
encontrar a escola, evidenciando que ela foi instrumento de divulgação da doutrina que
penetrou em seu cotidiano através da alfabetização, voltada para a disseminação de uma visão
de cultura por uma vigorosa máquina de propaganda, de comunicação, que visava à criação
do Estado Integral.
Olhar as ações do movimento por suas intervenções na região da Baixada Fluminense
e pelo ângulo de escolas nela localizadas é buscar sair de uma dada perspectiva
historiográfica, para uma visão diferenciada e que pode revelar aspectos inéditos do período,
com novas fontes e novos sujeitos. Nesse sentido, como um estudo regional, este trabalho
permite lidar com singularidades e particularidades do movimento integralista, oferecendo
outras possibilidades de análise ao estudo de cunho nacional. Apesar das semelhanças, do
ponto de vista nacional, é possível pelo regional lidar com as diferenças, com as
multiplicidades (AMADO, 1990, p. 12).
Para tanto, reuni, instiguei, ouvi, retruquei, interpretei relatos que me exigiram seguir
orientações teórico-metodológicas trazidas à reflexão pela antropóloga Oresta López (2001,
2002). A maneira como a pesquisadora tece seu trabalho, aliando fontes documentais e
empíricas, como relatos de contemporâneos e companheiros políticos e de ofício, auxiliou
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pensar na construção deste estudo biográfico. Outros trabalhos dela também colaboram para a
reflexão sobre os procedimentos nesta pesquisa, como as entrevistas que realizou com
professores indígenas e professores rurais. Nesse sentido, o que se estuda não são somente os
sujeitos, mas aqueles que são protagonistas de fenômenos locais que se mesclam em
complexas redes de relações sociais. Ou seja, a partir das minúcias da vida cotidiana se
formam e se reconstroem as redes de relações.
Por isso, servindo-me dessas referências metodológicas, dimensionei o número de
narradores e os escolhi para que pudessem se constituir em uma amostra representativa, que
proporciona pontos de vista diferentes e mais abrangentes sobre a vida da professora, para
fazer emergir à visibilidade uma mulher que, como outras, deixou suas marcas na história da
educação, e que, provavelmente, cairia no esquecimento não fosse pelas iniciativas de
pesquisa. Esforços esses que também estiveram presentes nas investigações sobre mulheres
desta região, e que possibilitaram o entendimento dos caminhos que essas referências vão
traçando com suas ações, como os de Armanda Álvaro Alberto, percorridos por Ana
Chrystina Mignot, os de Lydia da Cunha, cujo cotidiano foi perscrutado por Elsa Dely Veloso
Macedo, os de Josefa Pureza, iluminados pelo trabalho de Marlúcia Santos de Souza. Além
das lutas travadas nos movimentos sociais por Lourdes Batista, Azuleicka S. Rodrigues,
Maria José de Souza e Terezinha Lopes, tratadas por Marília Figueiredo Jorge. Todas estas,
inseridas na historiografia da Baixada Fluminense, também serviram de orientação para este
trabalho5.
Aurélia, aqui lembrada, afirma-se pelo seu projeto pedagógico e por ocupar um espaço
político ao qual a mulher nesta localidade não aspirava. Essa afirmação também passa pela
construção do nacionalismo. Entendo que aos ―processos de construção das nações, sobretudo
no Ocidente, associou-se a necessidade de construir um imaginário que fortalecesse a noção
de pertencimento, sedimentando a constituição de cidadanias nacionais‖ (ALVES; MIGNOT
2012, p. 374). Essa noção disseminada no imaginário nacional incidiu também na escola, nos
seus rituais, festividades e textos para uso escolar. Neste sentido, a sala de aula e as escolas
geridas e orientadas por Aurélia, entre 1935 e 1945, dão testemunho de como esse imaginário
se imiscuiu na sociedade pela educação, obrigando-me a compreender que: ―A história da
educação vasculha esses terrenos, deparando-se com muitas narrativas autorizadas, assim
como de tantas outras que foram sufocadas‖ (ALVES; MIGNOT, 2012, p. 375). O trabalho de
5 Todos esses trabalhos foram reunidos pelo Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (CEDIM) e organizados
por SIMÕES (2004)
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Aurélia, impregnado desse sentido, é permeado de elementos autorizados, mas também de
outros, que não fazem parte, ainda, da historiografia da educação.
Procuro, por meio de entrevistas em áudio e vídeo, conhecer as versões dos narradores
sobre Aurélia. Essas entrevistas, como técnica de investigação, observam a construção dos
trabalhos de López (2010) e Aceves (1997), principalmente quanto à forma de entrevistar,
com os recursos da história oral, e o modo de interpretação do que é comunicado. As
entrevistas são as principais fontes do trabalho, tendo em vista que os documentos do período
nesta comunidade, tanto relativos ao movimento integralista quanto da educação em Belford
Roxo estão ainda dispersos, carecendo de ações para reuni-los e organizá-los, ou nem mais
existem. Atento na recolha dos relatos, também, para o que diz Bosi (1979) e Kotre (1997)
quanto aos cuidados a serem tomados e ao conhecimento sobre as memórias das pessoas mais
velhas, como é o caso da maioria dos entrevistados, procuro nos registros localizar memórias
repetidas, que às vezes apresentam ruídos, silêncios e estereótipos. Por isso, ao proceder as
entrevistas fiz uma lenta preparação de cada uma, não tendo pressa para concluí-las,
procurando dar voz a esses que busquei como narradores e representantes de alguns grupos
sociais da Baixada e Norte fluminense.
Instiguei os narradores para que trouxessem vários assuntos aos depoimentos, no
roteiro preliminar das entrevistas, como as práticas pedagógicas e educacionais da professora,
a cultura material das suas escolas, sua rede de sociabilidade, suas ações políticas e
assistenciais, as concepções de família, escola, igreja, estado, o que sabiam sobre o território,
a região. Apareceram também, nessas narrativas e relatos, suas visões e vivências de infância,
as representações que construíram sobre a professora, questões sobre a profissão, como a
construção da carreira de professor, o duplo papel de mãe e professora exercido por Aurélia e
as conquistas femininas carreadas por ela no povoado. Tudo isto, para ir além do que sabia
sobre a professora: que havia criado uma escola privada; trabalhado e dirigido uma escola
pública onde implantou vários dispositivos de cultura, e lutado para que essa escola tivesse
um prédio modelar e um jornal escolar que foi órgão oficial da educação do município;
fundado uma instituição de proteção à infância e à maternidade, e construído seu prédio
através de doações; dirigido a educação do município de Nova Iguaçu, e também dirigido um
orfanato para 300 meninos, por vinte e cinco anos, nesse município.
Para buscar saber mais, além das fontes orais, outras fontes documentais são
levantadas na pesquisa, e, por suas características regionais6, principalmente nos acervos
6 Segundo Amália Dias (2012, p. 21), que realizou pesquisa sobre o processo de escolarização no distrito-sede de
Nova Iguaçu, ―o levantamento de fontes, quando se trata da história regional, possui uma trajetória
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pessoais dos próprios narradores; em acervos abertos ao público de instituições, como da E.
M. Prof. Paris, das Secretarias Municipais de Educação de Nova Iguaçu e Belford Roxo, da
Câmara Municipal de Nova Iguaçu, e da Câmara Municipal de Duque de Caxias, e também
do Centro Social São Vicente; na imprensa local, no jornal Correio da Lavoura, em sua sede
e nos acervos digitalizados pelo Centro de Documentação e Imagem (CEDIM), da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ); e na imprensa de Campos dos
Goytacazes, o Jornal Folha do Commercio. Busquei também a Biblioteca Nacional, os
acervos da Biblioteca Parque Estadual (BPE), o Arquivo Nacional, o Arquivo Geral da
Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ), o Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil (CPDOC), o Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro
(APERJ), e o Centro de Memória de Nova Iguaçu.
Não tenho como não mencionar as dificuldades inerentes a esta pesquisa ainda
pioneira na região, sob muitos aspectos, como as ações do movimento integralista na Baixada
Fluminense e a educação no município de Belford Roxo. Não há arquivos públicos em
Belford Roxo, não há acervos organizados relativos à educação, bem como não há uma
política para criação desses espaços por parte do governo municipal, implantado desde 1993.
Apesar das dificuldades, reuni um considerável acervo de pesquisa. Todos esses documentos
foram fotografados, digitalizados e organizados. Os documentos pertencentes ao Centro de
Preservação do Patrimônio Histórico de Belford Roxo (CENPRE), relativos à Aurélia, e os
demais que foram doados pelos narradores à pesquisa constituíram-se em um arquivo, a
Coleção Aurélia Braga, para que, ao final da investigação, retornem aos acervos do CENPRE,
que hoje estão sob a guarda da Faculdade de Belford Roxo, que administro.
Inestimável para esta tese a contribuição de pesquisa do Arquivo Público do Estado do
Rio de Janeiro (APERJ), onde investiguei: o Fundo do Departamento de Polícias Políticas, o
Fundo do Departamento da Educação, o Fundo da Delegacia Especial de Segurança Política e
Social, a Mensagem do Presidente do Estado do R/J (1930), o Relatorio da Interventoria ao
Conselho Consultivo (1931-1934) e o Relatorio do Interventor do Estado do R/J (1934). No
Arquivo Público Histórico do Município de Rio Claro, localizado no interior do estado de São
Paulo, pesquisei o Fundo Plínio Salgado; e, no Norte do estado, no Arquivo Público
Municipal de Campos dos Goytacazes, o jornal Folha do Commercio nos anos 1933-34.
Estive, também, em Gargaú, local de pertencimento da família Souza Braga, antes de
diferenciada, porque foi maior a dependência dos acervos de particulares, ou de instituições privadas. A
ausência de um ordenamento, de um arquivo público municipal etc. repercutiu em estratégias distintas na
constituição das fontes. A consulta ao acervo do jornal local Correio da Lavoura, na sede de sua redação, foi
essencial para a realização da pesquisa‖.
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migrarem para Belford Roxo, com a finalidade de entrevistar alguns antigos moradores
pertencentes ao grupo Mana-Chica de Gargaú, uma tradição que remonta mais de cem anos na
localidade, além de memorialistas locais.
Para narrar a história de vida de Aurélia, portanto, esta tese constitui-se de quatro
capítulos, no primeiro capítulo – ―Perscrutando segredos, sussurros e silêncios‖ – trago os
entrevistados, quem são, muito do que disseram e como procedi à recolha desse material, do
ponto de vista metodológico. Nesse capítulo esclareço as escolhas dos narradores, porque,
como, onde e o que indagá-los. Explico como conduzi as entrevistas de forma a respeitar os
ritmos, as formas e possibilidades dos entrevistados. Busco responder às inúmeras indagações
sobre o objeto da pesquisa, ou seja, a vida de Aurélia, mas também, indago sobre os próprios
narradores. Procuro saber principalmente: como eles veem Aurélia e o que ela representou
para o/a narrador/a; como suas vidas se conectaram com a da professora; como ela interviu
em seus processos de escolarização e de formação; o que lembram a respeito da professora; e
quem são eles no cenário do grupo social ao qual pertencem. Dialogo nesse capítulo,
privilegiadamente, com teóricos que tratam da história oral, como Jorge Aceves, Cléria
Botelho da Costa e Verena Alberti. Sobre as memórias, as orientações depreendidas dos
trabalhos de Ecléa Bosi, que elabora uma forma de como tomar e tratar as lembranças das
pessoas mais velhas, e John Kotre, que discute a memória pelo viés psicológico.
No segundo capítulo – ―Desvelando recônditos do território‖ – faço um levantamento
das questões de educação no período, das escolas e dos professores; da política em Campos
dos Goytacazes; das questões sociais e políticas da Baixada Fluminense; e do movimento
integralista, situando a historiografia do estado do Rio de Janeiro com as memórias dos
narradores. Busco saber que território educacional e político era esse no qual a professora se
circunscrevia na década de 1930; se nessas suas condições de vida, no norte do estado, era
possível que tivesse tido contato com a doutrina integralista e se traria isto consigo na
bagagem; afinal, que expressão teve esse movimento no estado do Rio de Janeiro, território de
onde a professora nunca saiu; qual era o cenário político da região de Campos antes da
migração da família para a Baixada; qual o cenário da educação neste território fluminense; O
que era a região da Baixada Fluminense para a qual migrou; qual era o quadro da profissão
docente que a professora abraçou nesse período; e, finalmente, o que podia, como mulher,
Aurélia aspirar naquele momento. Enveredo pela questão da mulher na Baixada Fluminense,
para compreender: como Aurélia transita nessa rede de relacionamentos; que caminhos ela
trilhou para chegar a exercer papel de liderança na criação e administração de trabalhos de
assistência social; ao que precisou abdicar; quais as suas estratégias, de resistência, de
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tolerância, de submissão, de conivência. No sentido da autonomia, que conquistas foram
alcançadas nessa época pelas mulheres da Baixada Fluminense; o que significou, para as
mulheres que formou nessa comunidade, a sua presença. Para escrever o capítulo dialogo,
principalmente, com os historiadores que tratam sobre o integralismo, principalmente, Helgio
Trindade, Rosa Cavalari, Márcia Carneiro e Juliana Carneiro. A história do Brasil,
principalmente, por Boris Fausto, e da região, as contribuições de Marlucia Santos de Souza e
Amália Dias foram valiosas. Sobre a questão da mulher, dialogo com Joan Wallach Scott, da
mulher na Baixada Fluminense com Raquel de Castro Högemann, e da mulher integralista, as
―blusas-verdes‖, com Lidia Possas, Laís Ferreira e também Rosa Cavalari.
No terceiro capítulo – ―Infância, alfabetização e assistência‖ – levanto a situação
encontrada por Aurélia no que diz respeito ao processo de escolarização, em Belford Roxo, e
as suas primeiras participações. A indagação principal que conduz o terceiro capítulo é como
o ideário do Estado Novo relativo à educação, à educação católica, e à educação pensada pela
cúpula integralista se imiscuem nas ações da professora? Para responder aos questionamentos,
dialogo principalmente com Ana Chrystina Mignot e Claudia Alves, para interpretar a cultura
material das escolas de Aurélia, pelos objetos descritos por seus ex-alunos nas entrevistas, e
nas matérias do Correio da Lavoura retratando a materialidade de sua sala de aula. Tomo
Maria do Rosário Mortatti, considerando o trabalho de alfabetização realizado por Aurélia
com a Cartilha da Infancia de Thomaz Galhardo. Sobre o Método Intuitivo, utilizado por
Aurélia, dialogo com Maria Helena Câmara Bastos. Sobre a educação na Era Vargas, com
José Silvério Baía Horta. Para investigar com que quadro de educação a professora se
deparou; quem foram os primeiros a integrar seu grupo primário, sua rede de relacionamento
local; que objetivos ela deixa transparecer em suas ações; que estratégias ela utiliza para
afirmar sua prática docente; qual a cultura da escola que ela cria e leciona na Igreja do
Sagrado, quais as suas ações políticas nesses anos iniciais; como, e se, essas ações se
entrelaçam, ou não, com suas práticas educativas; como isto se relaciona com as orientações
da Ação Integralista Brasileira (AIB) para a educação; se por essas práticas e pela cultura
material de sua escola seria possível entender isto; o que havia da doutrina integralista e
ideário da própria época na história desta educação; ainda nesse capítulo trago o que encontrei
nos acervos do CENPRE sobre a Sociedade de Proteção à Criança e à Maternidade, uma
instituição criada e presidida pela professora, com fins de cuidar da saúde dos lactentes, das
crianças e suas mães. Também investigo os lactários integralistas, buscando saber se o nome
que se perpetuou entre os narradores poderia ser um sinal de que Aurélia aproveitou-se das
estratégias do Estado Novo – como o incentivo à criação de Postos de Puericultura – para dar
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continuidade às ideias implantadas pelas ações integralistas. Então questiono, seria a entidade
criada por Aurélia um ideal alentado em uma fase de militância integralista? Minha
interlocução para estas indagações é com Laura Valéria Pinto Ferreira, sobre a questão da
assistência aos menores no Estado Novo e sobre os lactários integralistas, com Rosa Cavalari.
No quarto capítulo – ―Escritas e mediações nas páginas de O Infantil‖ – mergulho nas
escritas de Aurélia, na escrita de seus discursos; nas escritas dos seus alunos, as muitas
dezenas de textos manuscritos que compunham para o jornal O Infantil. Busco estudar o
próprio jornal e por ele compreender aspectos de Belford Roxo – trazendo os financiadores do
periódico, os comerciantes locais – e do trabalho da professora enquanto divulgadora da
cultura e de ideias na localidade. Para indagar, o que é possível saber de Aurélia pela escrita
de si e sobre ela; qual o papel da imprensa integralista na propagação das suas ideias e, nesse
contexto, do jornal escolar criado por Aurélia em 1939. Para esse capítulo, procuro dialogar
com Castillo Gómez, Antonio Viñao Frago e Ana Chrystina Mignot sobre as escritas infantis
e as correspondências oficiais como fontes de pesquisa. Também com Jose Maria Hernandez
Díaz, Denice Barbara Catani e Maria Helena Câmara Bastos, sobre a imprensa escolar.
Enveredo pela formação de Aurélia – como professora, leitora e líder política – pelas suas
leituras. Para saber o que lia Aurélia; o que e como estimulava os alunos lerem; que
mensagens eram veiculadas nos impressos que liam a professora e os alunos; o que havia de
comum nas mensagens recolhidas por ela em seu misterioso caderno de fragmentos de textos;
que leituras sugeriam esses fragmentos; como eram disseminadas as visões integralistas para
educação através dos livros de Plínio Salgado e dos textos diretamente focados na educação,
presentes principalmente na imprensa integralista; se seria possível me aproximar da
professora pelo que ela lia e indicava ler; se é possível me aproximar de Aurélia percorrendo
as páginas dos livros que participaram de sua formação. Nesse capítulo também dialogo com
Márcia Cabral da Silva e Roger Chartier, sobre a construção da subjetividade pela leitura
literária, que os narradores indicam que eram leituras de Aurélia e deles. Também com alguns
estudos já realizados por pesquisadores como Marisa Lajolo, Claudefranklin Monteiro Santos
e Terezinha Alves de Oliva, pois no periódico O Infantil, a professora passou a publicar, em
capítulos, o livro Através do Brasil de Olavo Bilac e Manoel Bonfim.
No caso da biografia de Aurélia, cujas principais fontes são as orais, os vieses da
socioantropologia bem como da antropologia política, dialogados principalmente com Karina
Kuschnir e Gilberto Velho, foram utilizados tanto na investigação quanto nas análises
decorrentes. Portanto, não se trata de demarcar campos, mas de caminhar por eles
complementarmente. Como pedagoga e jornalista de formação, este trabalho inaugura em
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minha própria história novos modos de viver, narrar e guardar7, e essas novas dimensões
ampliam as perspectivas. Animada por isto, procedo esta pesquisa com o mesmo espírito com
o qual, tão pequena, sentava na calçada, o ―1934‖, para escutar histórias antigas da gente
simples da Solidão. É como se pudesse ainda ouvir de um mais velho o anúncio que precedia
aos tantos episódios, inúmeras vezes, repetidos oralmente. Caminho nesta pesquisa com a
mesma curiosidade, vontade e esperança de descobrir, de ver o tanto da gente na professora e
de ver a professora na gente. Hoje, afinal, sou também uma narradora da Solidão. Investida
deste papel, então peço:
–―Silêncio... escutem! Agora eu vou falar de Aurélia‖. E, que sua vida fale8.
7 MIGNOT, SOUZA, BRAGANÇA (2014) Proposta do VI CIPA - Congresso Internacional de Pesquisa
(Auto)Biográfica.
8 LÓPEZ (2010). Que nuestras vidas hablen. Historias de vida de maestras y maestros indígenas tének y nahuas
de San Luis Potosí.
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1 NARRADORES E SEUS SEGREDOS
Os discursos de quem não viu, são discursos; os discursos de quem
viu, são profecias.
Padre Antonio Vieira, Sermão da Terceira Dominga do Advento, 1669
Devo ter passado os olhos por esse sermão, quando pequena – os ―sermões do padre‖
faziam parte de uma estante na casa da minha avó, na Solidão –, na época em que passei
fome, de livro. Aurélia também deve ter visto isso, a coleção em capa dura compunha a
biblioteca do meu avô que, dizem alguns narradores, ela vivia emprestando. Isso muito antes
de eu pensar em existir. De qualquer forma, meu apetite não seletivo não era garantia de
entendimento, mas nunca me preocupei com isto. Acho que intuía que um dia essas coisas
lidas se encaixavam.
Para narrar a história de vida de Aurélia de Souza Braga, primeiramente, ouvi muito
contar sobre ela daqueles que conviveram com a professora como alunos, e pude compreender
o que significa dizer de alguém com quem se conviveu intensamente por todos os dias letivos
de vários anos da infância. Algumas histórias eu já havia escutado desde sempre, mas isso era
algo que sabia poder estar repleto de mitificações e cristalizações nem sempre condizentes
com o que tinha se passado. A princípio, achava que não encontraria muitos documentos
escritos dela ou sobre ela, e esse foi somente o primeiro pretexto para a escolha da história
oral como forma de pesquisar, mas que não se configura hoje como exclusividade, tendo em
vista que a professora acabou deixando um legado e pistas dessas fontes nas mãos também
dos seus ex-alunos.
Quando dei os primeiros passos na busca por saber mais sobre Aurélia, sem dúvida,
ouvir falar sobre ela foi importante para que pudesse construir um mapa mental para nortear
inicialmente a pesquisa. Entretanto, o contato com as fontes orais proporcionou tanto mais,
que os narradores dessa história de vida ganharam protagonismo, dada a diversidade de pistas
e informações que forneceram ao longo do trabalho. Além da história de vida da professora,
me fizeram saber sobre as suas também, por sinal, muitas entrelaçadas com a minha. E passei
a me sentir membro dessa rede, a pertencer a esse grupo, aquela, dentre eles, que escreve.
Para não correr o risco de assemelhar-me ao malquisto Antonio Biá, encarregado de
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escrever a história de Javé9, cuja incompetência levou ao malogro da empreitada e ao fim do
seu povoado, tantas eram as versões dependendo do narrador, ocupei-me de cuidados. O fato
de ser descendente da rede de sociabilidade da professora Aurélia, e pertencer à comunidade
que a acolheu na maior parte de sua vida, entre 1935-1995, foi importante para que eu
pudesse selecionar os narradores e obter deles a disponibilidade, o interesse e até o incentivo
às iniciativas da pesquisa. Em geral fui recebida em suas casas com sabores, cheiros e afagos.
Encontrei primeiramente Verena Alberti e seus estudos sobre a história oral, o método,
desenvolvidos no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil
(CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e na definição que utiliza para pesquisa
biográfica, baseada também em Rosenthal: ―A denominação ‗pesquisa biográfica‘ significa
que a biografia enquanto tal é o objeto. Me interessa saber como as pessoas constroem, para
outrem, sua história de vida e porquê‖ (ALBERTI, 2004, p.55). Para essa autora, a melhor
forma de serem recolhidos os depoimentos (auto)biográficos, é a que foi seguida por Plato10
e
a que tentei primeiramente adotar neste trabalho. Ou seja, ―a grande narrativa do entrevistado,
sem interrupção‖; após, ―perguntas de esclarecimento da narrativa recém-ouvida‖; e, por fim,
as ―perguntas que ainda restam no roteiro preliminar‖.
Nesse sentido, o roteiro preliminar traçado para as entrevistas não contemplou buscar
apenas saber os acontecimentos do período em que os entrevistados foram alunos ou
contemporâneos da professora Aurélia, mas principalmente o que foi construído dessa história
neles. O desenho de projetos de história oral, traçado por Linda Shopes (2001), e o
detalhamento que essa autora faz das formas e procedimentos nas entrevistas, auxiliaram não
só a traçar o roteiro para as entrevistas, mas principalmente algumas de suas recomendações
me vinham à mente no momento em que estava frente a cada um. Procurei, nas primeiras
entrevistas, seguir as recomendações de Alberti, que enfatiza que o entrevistador deve
interferir o menos possível nas lembranças evocadas. Porém, entrelacei a isto a sensibilidade
de Bosi (1979), que ao tomar os relatos de pessoas mais velhas estimula as recordações com
objetos que possam evocá-las. Então, primeiramente mostrei a eles fotografias da época, e da
professora Aurélia, juntamente com os exemplares do jornal escolar editado por ela e com
textos deles ou dos seus pais e conhecidos, inclusive. Também foram mostradas fotografias do
9―Narradores de Javé – a escrita pela sobrevivência‖, é um filme brasileiro dirigido por Eliane Caffé, de 2003.
Conta a luta de um povo, do Vale de Javé, localizado no Sertão Baiano, que busca garantir a sobrevivência da
comunidade, ameaçada de ser inundada para construção de uma represa. A saída é escrever um ―documento
científico‖ que comprove a existência de um patrimônio histórico, condição imposta pelas autoridades do
governo para justificar a sua salvação e preservação.
10
Que realiza pesquisas em história oral na Alemanha, segundo Alberti (2004).
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lugarejo, bem como da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, na Solidão, onde alguns
estudaram.
Utilizei para registro dos relatos um equipamento de áudio e vídeo, uma câmera
digital, colocada em um tripé, de modo que eu poderia ficar com as mãos livres e manter um
diálogo mais espontâneo, pois colocava a câmera de forma que se fazia quase esquecida pelo
narrador no decorrer da entrevista. Decidi utilizar a câmera por dois motivos, primeiro para
perpetuar a imagem dessas pessoas, e, segundo, porque queria captar gestos mais
significativos que permitissem outras análises. Nesse momento eu não tinha ideia do quanto
essa decisão foi acertada, porque quando procedi às transcrições o que resultou foi um texto
escrito e não a própria oralidade. No texto não era possível identificar ritmos de falas, que as
vezes mudam todo sentido, também algumas expressões faciais e corporais, as causas de
hiatos de falas, dos silêncios, entre tantas coisas que se passam e que são ou não captadas pelo
microfone, mas que são captadas pela câmera. Todavia são muito difíceis, quase impossíveis,
de se reproduzir nas transcrições11
. A possibilidade de rever as entrevistas foi importante para
que pudesse proceder às análises.
Entrevistar e recolher os dados para analisar juntamente com outras fontes foi um
processo ao qual dei início muito cedo, logo no primeiro ano que ingressei no doutorado em
2012. Eu precisava escrever artigos e meu material não era suficiente para dar conta dessas
escritas. Embora ainda não dominando toda teoria para proceder às interpretações, foram os
dados recolhidos entre os narradores que me conduziram às outras fontes e acervos e
contribuíram diretamente para que eu pudesse eleger os temas que utilizei para construir
argumentos. A operação historiográfica realizada por Leila Blanco (2014), através da história
oral, foi um estímulo para algumas tomadas de decisão e incentivo para o uso dos relatos
como método de pesquisa.
Na prática, diante dos narradores da Solidão, fui descobrindo suas reações
diferenciadas, durantes as narrativas, que, por vezes não fluíam como o esperado e de acordo
com as observações da pesquisadora, não seguindo às intenções do meu principal referencial
teórico, e isto sucedeu-se na maioria das vezes. Foi necessário instigar alguns com perguntas
curtas, diretas e sem insinuações, porque, talvez, os narradores não houvessem se dado conta
da importância de suas lembranças, e, em sua maioria, não vinham praticando o exercício de
lembrar. A maior parte das entrevistas, realizei nas casas dos entrevistados, o que remetia a
11
Sobre a diferença entre a oralidade e a transcrição da oralidade, encontrei na bibliografia do curso do Prof.
Jorge Aceves, que frequentei em El Colegio de San Luis, Mexico: MOSS, W. La historia oral: qué es y de
donde provenie? En MOSS, PORTELLI, FRASER et al. (s.f.) La Historia Oral. Colección Los Fundamentos
de las Ciencias del Hombre, nº 26. Buenos Aires: CEAL, pp 21-35. (Sem ano).
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uma maior espontaneidade e certas características menos formais.
No decorrer do período em que realizei as entrevistas, comecei a me fazer um outro
questionamento: talvez, não fosse melhor construir um trajeto próprio para pesquisar a
história de vida de Aurélia utilizando os recursos da história oral? Realizei, então, uma
entrevista coletiva, com alguns narradores que já havia entrevistado e alguns que ainda
pretendia, para buscar elucidações que me faltavam, julguei que necessitava, também,
confrontá-los com algumas interpretações que havia feito do material coletado nas entrevistas
e de outros documentos pesquisados. Utilizei para o registro das falas um gravador digital,
pois a gravação em vídeo demandaria uma estrutura com diversas câmeras e eu temia perder a
espontaneidade das narrativas.
Afinal, se eram tantas especificidades na recolha dos testemunhos, começava a me
preocupar as suas análises, essas, que iriam depender também da organização do recolhido,
que fiz com a ajuda do programa ATLAS. ti12
, e de um referencial para a busca de sentido de
tudo isto. Interpretar desta forma é buscar sentidos naquilo que o narrador quis dizer, é uma
viagem ao imaginário do outro, é empreender uma caçada ao invisível e ao que não foi
escrito, para ampliar o campo da interpretação (COSTA, 1998). Sendo assim, o que se
interpreta pode não ser exatamente aquilo que o narrador quis dizer:
Parto do entendimento de que o narrador, ao reconstruir um fato, imprime sua marca
na interpretação; e o pesquisador, ao ouvi-lo, pode atribuir ao mesmo fato outro
significado. Está posto o desafio: como o pesquisador pode fazer o trabalho
interpretativo sem sufocar a voz do narrador? Como trabalhar a polifonia de vozes –
narrador e pesquisador – na sua interpretação? (COSTA, 2014, p.47)
Se realizar longas entrevistas individuais e uma coletiva, com duração entre uma hora
e uma hora e quarenta minutos efetivas de gravação cada uma – que geraram uma média de
25 páginas de transcrição, ou seja, cerca de 450 páginas no total – demandou um esforço de
pesquisa, organizar e interpretar esse material me parecia um exercício em terreno movediço,
tantas as incertezas e possibilidades de erros. Preciso deixar claro que não sou um elemento
neutro neste grupo, e mesmo que dele não fizesse parte, a minha própria subjetividade
também estaria presente nessas análises, desde a separação das falas por eixo temático até a
interpretação do narrado. Mas o que menos desejava era sufocar as vozes dos que passei a
12
O programa ATLAS.ti foi utilizado para ajudar a localizar e interpretar sistematicamente questões mais
complexas escondidas em dados não estruturados, como trechos de documentos e também os textos transcritos
que derivaram das entrevistas. O programa forneceu ferramentas que permitiram demarcar no escrito esses
dados, por eixo temático, e anotar os resultados, trazendo à baila com maior rapidez a memória do que foi
selecionado.
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chamar os narradores da Solidão.
E, se a ―vida humana es una ficción que el hombre inventa a medida que camina‖
(HELD, 1989, p.54), como contaram momentos de suas vidas? Como entrelaçaram esses
trechos com a vida da professora? Afinal, o que ficou de Aurélia nesses narradores?
1.1 Histórias de solidão
Para escolha e localização dos narradores, consultei a ata de fundação do Centro de
Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural de Belford Roxo (CENPRE), e privilegiei
buscar primeiramente aqueles ex-alunos ainda residentes no município. Os primeiros levaram-
me a outros, pelas lembranças e por ainda manterem contato. Por eles foi possível também
localizar os familiares da professora, que presumi, principalmente importantes na elucidação
de fatos da vida pregressa a sua chegada em Belford Roxo. Os demais, alguns filhos de
pessoas mais próximas na rede de sociabilidade de Aurélia e, finalmente, procurei localizar
pessoas que poderiam trazer informações sobre o movimento integralista na região do então
município-sede de Nova Iguaçu e no município de São João da Barra, do qual Gargaú, local
de origem da professora fazia parte. Após criar uma lista de possibilidades, entrava em
contato, na maioria das vezes por telefone, e marcava, quando este se dispunha, a entrevista
no local escolhido pelo entrevistado.
Em geral, iniciava as entrevistas mostrando fotografias e outros elementos que
pudessem trazer à tona as lembranças. Depois fazia uma pergunta do tipo: - ―o que você se
lembra da época em que estudou, ou conviveu, com Aurélia?‖. Notei que a maioria dos
narradores trazia lembranças de momentos com ela e fatos de sua vida, também de pessoas e
lugares de convivência, mas logo vinham à mente lembranças outras que tinham para eles
uma grande significação. Lembrei do que Alberti havia dito sobre a vocação terapêutica da
história oral. A autora chama de ―vocação‖, agora entendo, porque ao lembrar e pronunciar,
aquele que fala consegue reelaborar ou recriar para si o seu passado, de forma a eliminar ou
amenizar algo que lhe foi doloroso e/ou mobilizador de sensações marcantes e, de alguma
forma, negativas, como procedem algumas terapias. A necessidade de falar sobre esses
assuntos surgiu em muitos momentos das entrevistas.
Para introduzi-los no trabalho, trago neste capítulo, de cada um, alguns desses relatos
pronunciados, sussurrados ou engasgados. Colocando, primeiramente e de forma sucinta,
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38
quem são aqueles que foram alunos da professora, tanto na Escola Sagrado Coração de Jesus
– quando sediada na Igreja da Solidão ou no centro de Belford Roxo – quanto na E. M. Prof.
Paris:
Quadro 01 - Narradores, perfil dos entrevistados, ex-alunos de Aurélia de Souza Braga. Nº
13 NARRADOR/A PERFIL GRUPO
ETÁRIO
DATA
ENTREVISTA
01 Danilce Soares Micho Aluna da Escola da Solidão. Poeta. Foi
professora. Formada contadora.
Acima de
80
12-05-2012
02 Amilcar Fernandes
Aluno da E.M. Prof. Paris14
, antes do prédio
―novo‖.
Estudou até o ginásio. Autodidata. Reflexivo.
Acima de
80 14-03-2013
13 Walter Vicente
Filho de Emigdio Vicente, um dos três
primeiros alunos citados no esboço
autobiográfico de Aurélia. Aluno da Escola da
Solidão.
Acima de
80 10-05-2014
14 Ester Gomes
Aluna da Escola da Solidão. Estudou
catecismo com Aurélia. Procuradora da
República.
Acima de
80 05-09-2013
08 Fernanda Bicchieri
Soares (1937-2014)
Neta de Emigdio Vicente, afilhada de
batismo. Aluna na Sagrado Coração de Jesus.
Acima de
75 anos 17-05-2013
17 Cícero Rodrigues
Aluno da Escola Sagrado Coração de Jesus,
também na Prof. Paris, fazendo parte do
Orfeão de das aulas de teatro.
Acima de
75 06-02-2014
Outro grupo se consiste dos familiares da professora, todas descendentes do irmão
Vicente de Souza Braga, tendo em vista que sua irmã, Aládia Braga, não deixou filhos.
Vicente teve quatro filhas, das quais três e uma de suas netas foram entrevistadas. Das
sobrinhas, apenas Vania não foi possível entrevistar por encontrar-se enferma.
Quadro 02: narradores, perfil dos entrevistados, família de Aurélia de Souza Braga. Nº NARRADOR/A PERFIL GRUPO
ETÁRIO
DATA
ENTREVISTA
03 Vanda Roberto Braga
Sobrinha de Aurélia, filha de Vicente, com
quem Aurélia morou. Estudou em colégio em
Petrópolis.
65 a 75 01-06-2013
04 Vanilce Roberto Braga Sobrinha de Aurélia, filha de Vicente, estudou
no G.E. Prof. Paris. De 60 a 65 01-06-2013
05 Maria Amélia Braga Sobrinha neta de Aurélia, filha de Vanilce. De 30 a 40
anos 01-06-2013
18 Vanira Roberto Braga
Entrevista Coletiva
Sobrinha de Aurélia, filha do irmão de
Aurélia, Vicente, estudou no G.E. Prof. Paris.
Acima de
60 28-02-2015
O terceiro grupo de narradores é formado pelos filhos daqueles que participaram
13
A numeração segue a ordem dada ao material transcrito e organizado.
14
Posteriormente tornou-se o primeiro Grupo Escolar de Belford Roxo, pelo empenho da professora Aurélia.
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39
diretamente da rede de sociabilidade da professora e que conviveram com ela, de alguns
memorialistas da Baixada e do Norte Fluminense, como Paulo de Tarso Machado, Robinson
Azeredo e Mario Menezes. Luiz Scapin foi escolhido por ter convivido com militantes
integralistas na Baixada Fluminense.
Quadro 03 - narradores, perfil dos entrevistados, descendentes da rede de sociabilidade de
Aurélia de Souza Braga/ Memorialistas da Baixada e Norte Fluminense.
Nº NARRADOR/A PERFIL GRUPO
ETÁRIO
DATA
ENTREVISTA
07 Maria José Haddad
Entrevista Coletiva
Filha do político José Haddad, maior
aliado político de Aurélia. Conviveu com
Aurélia.
Acima de
70 28-02-2015
09 Eliane Barcelos Porto
Ferreira
Neta de Ernesto Pinheiro Barcelos. Filha
de Léa Barcelos. Professora de História.
Conviveu com Aurélia.
Acima de
70 08-08-2013
10 Sara Rozinda Martins
Moura Sá dos Passos
Casada com Álvaro Passos, família de
políticos de B. Roxo, estudaram com
Aurélia. Mãe trabalhou no Patronato.
Conviveu com Aurélia.
65 15-10-2013
11 Paulo de Tarso Machado
de Barros
Filho do Prof. Newton de Barros,
sobrinho do Prof. Leopoldo Machado15
e
irmão de Ney Alberto. Gestor do Colégio
Leopoldo. Memorialista da Baixada
Fluminense. Conheceu Aurélia.
Acima de
65 06-06-2013
12 Luiz Scapin Filho de Mário Scapin, reconhecido
integralista em Nova Iguaçu.
Acima de
80 26-09-2013
15 Robinson Azeredo
Neto do fundador do Correio da Lavoura,
hoje seu editor. Memorialista da Baixada
Fluminense. Conviveu com Aurélia.
Acima de
70 01-10-2013
16 Jorge da Luz
Interno no Patronato São Vicente16
, sob a
direção de Aurélia. Trabalha no Ginásio
Leopoldo.
Acima de
50 06-06-2013
19 Antonio Ferreira Junior
Entrevista Coletiva
Esposo de Eliane Barcelos. Professor de
História. Conviveu com Aurélia.
Acima de
70 28-02-2015
20 Mario Barreto Menezes
Conheceu Aurélia em Gargaú, mora em
Campos dos Goytacazes. Memorialista da
região de Campos e São Francisco do
Itabapoana.
Acima de
85 22-07-2015
Outros relatos estarão presentes ao longo dos demais capítulos como fontes para tratar
dos vários temas. Aqui, a intenção é que Aurélia seja primeiramente conhecida pelo que
disseram os narradores, por suas vozes. Mas apresento-os não só com o que falaram da
15
Sobre o professor Leopoldo Machado, ver NASCIMENTO (2016).
16
A instituição foi fundada em 1959, por políticos e empresários do Município de Nova Iguaçu. Getúlio de
Moura foi pessoalmente à casa de Aurélia, como relatou Vanilce Braga, em Belford Roxo, convidá-la para
participar da fundação e administrar o local que por muitos anos foi abrigo e escola para 300 meninos. O
prédio amplo e bem localizado em Nova Iguaçu, abriga hoje o Centro Social São Vicente. Estive no local, mas
constatei que pouco guarda das memórias de Aurélia. https://www.google.com.br/webhp?sourceid=chrome-
instant&ion=1&espv=2&ie=UTF-8#q=patronato+s%C3%A3o+vicente
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40
professora, indo além, do que falaram também deles mesmos. Buscando ainda perceber
possibilidades de outras interpretações e se, para o narrador ou narradora, ―A anamnesis
(reminiscência) é uma espécie de iniciação, como a revelação de um mistério. [Se] A visão
dos tempos antigos, libera-o de certa forma, dos males de hoje‖ (BOSI, 1979, p. 48).
Importante nessas intepretações, a percepção de que a maioria dos narradores, com
exceção de Jorge da Luz e Maria Amélia, situa-se entre 65 e 90 anos de idade. Nove deles
acima dos 75 anos, Danilce, Walter, Amilcar, Ester, Luiz, Fernanda, Heloisa, Cícero e Mário.
Cinco entre 70 e 75 anos, Zezé, Eliane, Antonio, Vanda e Robinson. E os demais, Sara17
,
Paulo, Vanira e Vanilce, entre 65 e 70. O perfil da minha amostra, portanto, encontra-se
maciçamente na terceira idade, 80% está acima dos 65 anos. 30% do total dos 20 narradores
está na faixa dos 85 anos de idade, Danilce, Walter, Amilcar, Ester, Luiz e Mário. As
lembranças evocadas pelos entrevistados precisam ser observadas por esse viés, são memórias
de pessoas mais velhas. Neste sentido elas possuem características comuns à faixa etária, que
ressalto, mas também aspectos individuais decorrentes da história, personalidade e da saúde
física de cada um.
Muitos e variados foram os relatos, cada narrador forneceu um ponto de vista
diferente, ângulos que, ora construíam um mosaico de linhas fechadas, como um vitral, ora
deixavam perceber possibilidades de interseção. A forma como Aurélia se projeta e conquista
notoriedade e respeito na comunidade foi algo percebido nesses relatos, que evidenciam que a
professora ao chegar à Baixada Fluminense vai trilhando um caminho que delineia tornar-se
uma autoridade ocupando o lugar de professora, na sua condição de mulher. Para isto também
foi importante conhecer as redes de sociabilidade que construiu e suas articulações políticas,
suas acomodações ou resistências no cenário político vigente, entre 1930 e 1945,
principalmente na relação integralismo e Estado Novo.
Numa outra abordagem apareceu como se trata a memória nesse território de Belford
Roxo, na Baixada Fluminense, lugar que surge esboçado nas narrativas. As representações
que foram construídas ao redor de Aurélia também emergiram dos relatos, e, nesse âmbito,
também, as associações entre a mãe, simbolizada para alguns, e a professora. Como se
configurava a questão docente, como profissão, e a própria visão de Aurélia para esse
exercício, bem como suas práticas políticas, pedagógicas, assistenciais e culturais, tudo isto é
depreendido de alguma forma nas narrativas. E mesmo o fato do desconhecimento ou da
ausência é significativo, é revelador.
17
Na época da entrevista Sara tinha poucos anos menos.
Page 43
41
Foi possível perceber alguns aspectos das construções institucionais de escola, família
e nação pelos relatos, e, ao fim de todas entrevistas, já havia obtido muitas informações
valiosas dessas fontes orais. Porém, todos esses temas pretendi revistos à luz de outras fontes.
Ao que não esperava, ao buscar saber sobre a infância, era encontrar relatos tão contundentes
quanto à questão da exclusão, social e racial, que acabou surgindo na narrativa de Cícero
Rodrigues, na de Amilcar Fernandes e, de forma enfática, na história de Jorge da Luz, o
―acaso‖ da pesquisa. Apesar deste ser o único narrador que não proporcionou vínculos com o
período da Era Vargas, o período estudado, ele permitiu compreender com mais propriedade a
importância de todo trabalho biográfico para a memória coletiva, e, também por um
compromisso ético, ele é a pedra de toque para futuras abordagens da questão da exclusão
racial da infância em possíveis outros estudos. Pollack (1989) analisa esse aspecto da história
oral em detrimento do que chama ―memória oficial‖, em uma perspectiva que denomina
construtivista:
Ao privilegiar a análise dos excluídos, dos marginalizados e das minorias, a história
oral ressaltou a importância de memórias subterrâneas que, como parte integrante
das culturas minoritárias e dominadas, se opõem à "Memória oficial", no caso a
memória nacional. Num primeiro momento, essa abordagem faz da empatia com os
grupos dominados estudados uma regra metodológica e reabilita a periferia e a
marginalidade. (POLLACK, 1989, p. 4)
Alberti (2004) coloca um outro ponto de vista sobre o papel da história oral com
aqueles que se situam ―abaixo‖ na escala social, ou seja, para mim os indivíduos comuns,
deixados de lado pela historiografia oficial. A conclusão da autora sobre esse aspecto da
história oral é que esse argumento acaba por reforçar o estigma e o preconceito de que os ―de
baixo‖ não são ―capazes de deixar registros escritos sobre si mesmos‖ (ALBERTI, 2004, p.
47). No caso de Aurélia, por exemplo, ela cuidou de deixar sim, como eu viria descobrir nos
encontros para as entrevistas, porém, percebe-se pela sua trajetória de vida que esteve muito
mais preocupada com as ações do que com os registros delas. Mas foi com Bosi (1979) e
Kotre (1997) que encontrei outras faces desse mesmo prisma, a narrativa dos excluídos, no
caso as memórias dos mais velhos.
Como aspecto também comum, apareceram em todos os relatos a questão da
mitificação, de variadas maneiras, dos pais, dos amigos, dos lugares, das instituições, dos
acontecimentos. Mas sobre uma visão mitificada de Aurélia, como uma pessoa muito austera;
que dominava a cena, e principalmente os homens e meninos; que todo mundo respeitava; que
era muito culta; que lia muito; que era onipresente, onisciente e vidente, depreende-se também
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das falas dos narradores, principalmente de Cícero Rodrigues, Amilcar Fernandes, Sara
Passos, Heloisa Bicchieri Antonio, Danilce Micho e Ester Gomes, esta reivindica a estátua de
Aurélia na praça principal de Belford Roxo. Kotre (1997) diz que quando as pessoas
envelhecem não precisam mais ser realistas para enfrentarem os desafios, a dureza da vida,
com isso os laços com a realidade se afrouxam e se pode experimentar viver sonhos e ilusões.
Isto se deve também ao fato de que se tem que lidar muito mais vezes com perdas e o ―mito
na memória ajuda a preservar o eu‖ (KOTRE, 1997, p. 217).
Observei, primeiramente, que os que conviveram mais diretamente com Aurélia até o
final de sua vida tinham uma visão um pouco menos mitificada da professora, utilizando
menos expressões de intensidade em seus relatos e evidenciavam menos uma certa
―sacralização‖ de sua imagem. Imaginei que a mitificação tivesse haver com o fato de terem
convivido com ela somente na infância, que era uma visão infantil, da criança que olha para
uma pessoa que ocupa um papel de autoridade bem marcado. Numa leitura mais detida, pude
encontrar vestígios do mito de Aurélia em todos os relatos, em maior ou menor grau, menos
no de Luiz – o narrador não conheceu a professora, o seu alvo de criação do mito foi
principalmente seu pai. A família do marido de Sara, os Passos, transmitiu o mito de Aurélia a
sua geração. Em seu discurso a professora aparece como responsável sozinha por um grande
feito, a união coletiva de todo Belford Roxo em prol de sua proteção. A figura mítica da
heroína está desta forma consolidada. ―A memória é a faculdade épica por excelência‖ (BOSI,
1979, p. 48).
Em Luvas Brancas, Kotre (1997, p. 216) explica que o gerontólogo Sheldon Tobin
buscou quantificar o nível mítico das recordações, do nível 1, que significa ―absolutamente
nenhum mito‖, ao nível 5, ―um nível alto‖. Essa classificação varia principalmente com a
intensidade e quantidade de palavras utilizadas para explicar ou descrever pessoas,
acontecimentos, lugares, tanto de forma positiva, quanto negativa. Não se trata aqui de
proceder a esse tipo minucioso de análise, mas de compreender a questão da criação do mito
de Aurélia pelo grupo estudado. Os resultados dessas pesquisas de Tobin apontaram que
pessoas mais jovens tendiam a um nível de mitificação menor, ao que o autor acrescenta que
não é que os mais jovens não pensem miticamente, é que o mito não está concentrado em suas
lembranças, ao contrário dos mais velhos. Nas palavras de Kotre:
Quero dizer que o eu está sendo reconfortado e nutrido em face da perda, que está
recebendo um sentido do ‗sempre‘ em face de um vazio que se aproxima. Quero
dizer também – e aqui temos de estar conscientes de todo ecossistema da memória –
que nossas experiências de vida e nossas identidades estão sendo preparadas para
uma transformação final em vida coletiva (KOTRE, 1997, p. 218-219).
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Reflito, com o autor, que se nasce em um contexto coletivo, uma família, e as
memórias são geradas coletivamente. Muitas lembranças que se evoca não foram, exatamente,
depreendidas dos fatos vividos pelo indivíduo, mas foram geradas a partir do que ele escutou
no interior do grupo familiar. Em grande parte da vida esse indivíduo passa a produzir
lembranças próprias, suas, para ao final abrir mão delas. Suas lembranças passam a pertencer
novamente à coletividade e, em geral, as pessoas ―doadoras‖ das memórias tendem a cuidar
que estas sejam as melhores. Aurélia cuidou disto, principalmente incentivando seus ex-
alunos a fundarem um centro de memória da cidade, e deixou com eles, e nesse centro, muitos
documentos e fotografias, fontes desta pesquisa. Pode-se dizer que a professora buscou
formas de controlar aquilo que seria lembrado também a seu respeito. Uma dessas formas foi
ter omitido, dos possíveis ―recebedores‖ de memórias, fatos de sua vida pregressa a Belford
Roxo e, possivelmente, suas relações com o movimento integralista. Mas esse pretenso
controle é fugidio, na medida em que suas lembranças passaram a ser também lembranças de
outrem, mescladas com tantas outras memórias e interpretações.
A memória pessoal vista por este prisma é social, familiar e grupal e é construída pelos
laços de convivência, familiares, escolares e profissionais (BOSI, 1979). No grupo cada um
assume uma máscara, uma persona, e esta é com a qual o indivíduo se relaciona com outros.
Goffman (2013) analisa que não é um acidente histórico o fato da palavra pessoa significar
máscara. O eu, representado na vida cotidiana, necessita assumir suas ―máscaras‖. Estas são
expressões daquilo que o indivíduo gostaria de ser e viver. Por isso ele afirma que a máscara é
o verdadeiro eu: ―Ao final, torna-se uma segunda natureza e parte integral de nossa
personalidade‖ (GOFFMAN, 2013, p.32). Ao longo da vida, o indivíduo adquire um caráter e
se torna pessoa. Não é por acaso, portanto, que cada narrador ao falar de Aurélia falou de si. A
maturidade implica na assunção e consolidação das máscaras. Entretanto, além da questão das
mitificações, encontrei outra comum, possível de ser percebida em muitos dos relatos, a
solidão.
No quarto mais velho da minha ―amostra‖, os na faixa dos 85 anos, ficou claro o
sentimento de solidão. Primeiramente, pela atitude demonstrada por ter um ―recebedor grato‖
de suas memórias. Não é sempre que na velhice se encontra essa ventura, alguém disposto a
ouvir as lembranças, que nesse tempo da vida é o alento. Senti no pedido de Danilce Micho e
de Amilcar Fernandes, de aproveitarem a ocasião da entrevista para reverem Walter Vicente,
uma necessidade de preenchimento, de encontrarem essa identificação. De certa forma, os
laços de amizade parecem estreitarem-se hoje, pelo reconhecimento de algo comum, creio que
esse algo é a solidão da velhice. Com as dificuldades de locomoção inerentes à idade, os
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encontros são muito raros. Além disto, Amilcar queixa-se claramente da falta de interlocução.
Ele adquiriu hábitos, gostos e reflexões, muitos deles estimulados pela professora, como a
leitura, que não encontram ressonância na cultura na qual hoje se insere. Talvez este seja um
elo comum aos que estudaram com Aurélia e permaneceram em Belford Roxo.
A solidão dos enfermos aparece nos relatos de Fernanda Bicchieri e na ausência de
Vânia Braga, uma das quatro sobrinhas de Aurélia, a única delas que não consegui entrevistar.
Aliás, a solidão de Aurélia no final da sua vida também aparece no desconhecimento de sua
história, preferências e hábitos, pela família. A solidão de Jorge da Luz, por não lembrar quem
foi sua família, é notória, mas os que tiveram mães e pais e que perderam, todos de alguma
forma expressam a solidão decorrente dessa perda. Existe a ―solidão de Copacabana‖, os que
hoje moram lá, a família de Aurélia e principalmente Ester Gomes, estão sós, apartados do
lugar de origem, das pessoas desse lugar, de suas histórias coletivas, de Belford Roxo. Sim,
também existe a solidão de Mário Menezes, compensada pelos registros de suas memórias, e
a da narradora que escreve.
Pertencendo ao grupo de pesquisa ao qual me vinculo, não posso crer que tenha sido
apenas um ―acidente histórico‖ o fato do rincão, que primeiramente acolheu Aurélia em
Belford Roxo, chamar-se Solidão. Ana Chrystina Mignot trabalha com os detalhes, com os
rodapés de páginas, com o paradigma indiciário de Ginzburg, mas principalmente com as
palavras e objetos e os seus ―segredos‖. Concordo com a autora quando diz que nome não é
neste sentido um acaso, ele dá identidade e identifica – as pessoas, seres, lugares e objetos aos
quais pertence. Quando Aurélia chegou no rincão, pertencer à Solidão significava não ter luz,
água potável, estar exposto à febre amarela, aos mosquitos, a andar muito para chegar ao
trem. Ao trem que demorava horas para chegar à capital. Como lugar o nome indica
isolamento, distância, falta de atenção do poder público. Porém, sabe-se que o sentimento de
solidão não requer a falta de outras pessoas, pode ser sentido em lugares densamente
ocupados. O sentimento também pode ser descrito como a falta de identificação, compreensão
ou compaixão.
Alguns filósofos, como Jean-Paul Sartre (2005), acreditam que a solidão é epistêmica,
é parte fundamental da condição humana por causa do paradoxo entre o desejo consciente do
homem de encontrar um significado dentro do isolamento e do grande vazio que representa o
universo. A escola existencialista vê a solidão como essência do ser humano. Cada pessoa
vem ao mundo sozinha, atravessa a vida como um ser em separado e, no final, morre sozinha.
Aceitar o fato, lidar com isso e aprender como direcionar a vida de forma satisfatória seria a
condição humana. Mas, parafraseando Nietzsche, ainda não foi resolvida uma deficiência na
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formação dessa condição, pelo menos não pela educação, seria o fato de que ninguém
aprende, aspira ensinar, ou ensina a suportar a solidão (NIETZSCHE, 2004).
Neste sentido, sem querer, afinal, atribuir juízos de valor à solidão, muitas questões
emergiram das entrevistas com os narradores, mas talvez a que mais mobilizou a pesquisa, o
grande guarda-chuva que abrigou todas as outras foi: como Aurélia lidou com a solidão? A
observação de Rilke (2007, p. 137) não me saiu da mente: ―Os mais solitários são,
precisamente, os que mais contribuem para a coletividade‖.
Sobre a morte, sim, ela esteve presente em vários momentos das narrativas, mas um
em especial eu gostaria de imortalizar. Ao final da vida, Fernanda Bicchieri buscava aprender,
e parece que as referências de infância também lhe serviram. Lembrava-se de ―Seu‖ Benedito,
tio de Aurélia, o ―maior exemplo de morte bem morrida da Solidão‖.
Sabe como é que ele morreu? Ele morreu dando uma gargalhada, você já ouviu falar
de alguém morrer dando uma gargalhada? Ele era um cara assim, feliz. Dando uma
gargalhada, lá no quintalzinho dela lá. Tudo dela era tudo meio francês [...]. Dona
Ermelinda18
, tudo dela era muito cuidado, muito feito com cuidado. (FERNANDA
BICCHIERI, 2013)
Ao cruzar as narrativas, outra questão que observei merecedora de cuidados é o que
provoca nos narradores recordar o passado. Eliane Barcelos chamou-me a atenção para o fato
de que ao recordar, muitas vezes o narrador se volta para falar e sentir como no passado.
Quando, na entrevista, ela relatou um tombo que sofreu em meio a uma reunião política que
envolvia Aurélia e sua mãe, foi que percebi o quanto eu havia sido ansiosa em meu foco de
investigar questões que queria aprofundar sobre Aurélia. Neste momento em que a narradora
se esforça para lembrar das vezes em que teve contato direto com Aurélia, ela está tentando
sair do que lhe disseram sobre a professora para mergulhar naquilo que realmente a menina
Eliane havia percebido dela. Nisto, ela faz uma volta ao passado e se vê novamente como a
criança que acompanha a mãe para uma reunião que provavelmente para ela não tinha
18
Ermelinda de Souza Lima, nascida em 03-10-1878, falecida em 01-01-1968, tia de Aurélia, foi modista e
chapeleira na Rua do Ouvidor, onde conheceu o tipógrafo, e foi casada com, Benedito Francisco Souza. Filha
de Manoel de Souza Lima e de Maria Cezar Rosa. Informações recolhidas no título eleitoral e na certidão de
óbito, fornecidos pela família. O filho do primeiro casamento de Benedito Souza foi um dos líderes dos
rebeldes do 3º Regimento de Infantaria, Capitão Álvaro Francisco de Souza, que juntamente com outros
capitães, Agildo Barata e José Leite Brasil, protagonizou uma das ações da Intentona Comunista de 1935. Os
relatos indicam que ele esteve preso em Fernando de Noronha. Os narradores Walter e Fernanda mencionaram
que ―Seu‖ Benedito morreu sem ter visto o filho comunista livre, pois ele foi solto poucos meses depois do
falecimento do pai, em 1941. O Capitão Álvaro, foi preso juntamente com Luiz Carlos Prestes, segundo:
―Como réus, incursos nas penas do art.1º, combinado com o art.49 da Lei nº 38, de 04 de abril de 1935. ‗Ex-
capitão Luiz Carlos Prestes— [...] ex-capitão Agildo da Gama Barata Ribeiro — ex-capitão Alvaro Francisco
de Souza — ex-capitão José Leite Brasil‘‖ Encontrado em http://arquivoememoria.wordpress.com/2008/09/11/
a-valorizacao-da-memoria/.Acesso em 14/10/2013. Também em Zilda Iokoi (2004) há referências à
participação do Capitão Alvaro na Intentona Comunista e a sua prisão juntamente com Prestes.
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nenhum sentido. Ficava à margem do que se passava na sala da casa de Aurélia, brincando
com suas sobrinhas e exposta aos acontecimentos, longe dos olhos e das atenções de sua mãe.
Senti que ela caia pela segunda vez, agora diante dos meus olhos, e eu tinha tido a
oportunidade de acolhê-la e não o fiz.
Existem momentos em que é necessário na investigação sair da faceta de pesquisador,
aquele que atua racionalmente, e deixar os aspectos sensível e empático expressarem-se.
Lembrou-me disto Bosi (1979, p. XVIII), que lembrou de Benjamin. Por que? Por isto
mesmo, somente o que se coloca no lugar do outro vê o que é importante e merecedor de ser
contado. Quando revi, dias depois, a gravação da entrevista de Eliane Barcelos senti-me
despencando, naquele momento lembrei que recebi a narradora no centro de memória da
minha instituição, porque ela estava de mudança de Belford Roxo, finalmente após a morte da
mãe, e, por isso, não pode me receber em sua casa, como havia proposto. Mais preocupada em
colher as informações necessárias à pesquisa, eu demonstrava frieza diante das emoções da
narradora. Então é isso que é história oral? Não, não pode ser isto. Foi Eliane quem me fez
refletir sobre os objetivos neste trabalho naquele momento. Foi seu tombo, que me fez acordar
para buscar escrever sem perder de vista a sensibilidade, sem na verdade me perder. A matéria
prima do meu texto não é somente um documento encontrado em um arquivo esquecido no
tempo. Não é o vazio que aprisiona o buscador de evidências e provas de existência. Enfim,
concluí que a matéria prima da história oral é sensível, volátil, alternadora, inspiradora, é
sentimental.
Eliane Barcelos forneceu informações valiosas que contextualizaram o Belford Roxo
que recebeu Aurélia em 1935. Falou do político Ernesto Pinheiro Barcelos, seu avô, que foi
fundamental para a consolidação de Aurélia como professora e membro respeitado da
comunidade. Trouxe dados sobre o processo de escolarização e de desenvolvimento de
Belford Roxo, apontou caminhos de pesquisa, mas posso dizer que sua maior contribuição foi
ter proporcionado enxergar o valor dos narradores que se esforçam para sair dos estereótipos,
daquilo que todos falam sobre alguém, num trabalho legítimo de rememoração de suas ações,
sem julgamentos, mas com a intenção de reconstruir os significados que foram muitas vezes
instaurados sem reflexão. Como poderia a criança Eliane dizer a mim naquele momento se as
pessoas faziam o que Aurélia pedia, ou seja, se realmente votavam em quem ela indicava? A
professora Eliane Barcelos, a adulta, diria talvez. Mas a menina que se apresentava, em sua
narrativa das lembranças de infância, não poderia dizê-lo.
Na entrevista coletiva, focada nas questões da política da Baixada Fluminense, apenas
Danilce Micho e Walter Vicente não participaram das discussões. Pude observar que apesar de
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terem o que dizer, eles estavam ali com outras intenções. Danilce levou suas poesias que fez
sobre a escola e sobre a professora, e Walter havia me dado um diálogo, que representou na
escola de Aurélia, um ―teatrinho‖. Escreveu de memória em um papel, e me entregou dias
antes. Ele queria que alguém, uma das colegas, representasse outra vez com ele. Walter havia
perdido a esposa há dois meses. Consegui encaixar a leitura de uma das poesias por Danilce,
mas não houve tempo para treinarmos o diálogo de Walter. Percebi que os mais velhos tinham
necessidade de expressarem os tempos de escola, sobre Aurélia, de outras maneiras, não
daquela que havia planejado com duração e objetivos específicos.
Entre as recomendações ao tratamento dedicado pelos entrevistadores aos
entrevistados, ferramentas da história oral como metodologia de pesquisa, poderia figurar
mais esta. É necessário perceber com quem se está lidando no momento em que o/a narrador/a
rememora o passado. Percebi que nem sempre se lida com quem está à frente. Pode ser que
neste esforço de retorno ao passado a pessoa do passado, neste caso a criança, emerja para
falar. Tomando a palavra, esse ser desconhecido tem necessidades, caprichos e sentimentos
que precisam ser considerados, sob pena de se perder momentos valiosos não só para a
pesquisa, mas de encontro com o outro. E isto também é história oral, mais um de seus
aspectos.
―Vejo a história como descontínua, posto que trabalho com as memórias como uma
polifonia de vozes que compõem uma orquestra, na qual o pesquisador ocupa o lugar de
maestro‖ (COSTA, 2014, p. 52). A imagem que a pesquisadora Cléria Botelho da Costa tem
do trabalho de interpretação em história oral evidencia que nesse momento, no qual se dá
sentido ao que foi dito, o pesquisador é o maestro. Mas enxergo que no momento da recolha
dos depoimentos ele também o é. Os aspectos éticos da história oral são hoje discutidos por
um grupo de pesquisadores que se debruça sobre as questões metodológicas, reunidos
institucionalmente pela Associação Brasileira de História Oral (ABHO). No decorrer do
trabalho de recolha dos relatos, percebi como importante o debate relacionado à fidedignidade
do que é dito, à credibilidade do registro, à interpretação criteriosa à luz de teorias
consistentes e, por último, mas não menos importante, ao tratamento dispensado aos
narradores, que deve ser alvo de reflexões constante. Há que se cuidar do ―coro‖.
Narrar as narrativas desses narradores, esta é a tarefa que se impõe a mim daqui em
diante. Como Benjamim, sinto que minha alma, olho e mão estão agindo. Narrar, neste
momento, não é mais apenas obra da voz, intervém a atividade da mão. ―Aquela velha
coordenação alma, olho e mão, é a coordenação artesanal que encontramos no habitat da arte
de narrar‖ (BENJAMIN, 1975, p. 74).
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1.1.1 Política no povoado
É possível encontrar um número considerável de trabalhos sobre a história da região
da Baixada Fluminense, porém em muito menor número os relacionados ao século XX. E,
levando-se em consideração os voltados para a política, esse número decresce. Sobre a
política, especificamente, de Belford Roxo encontrei apenas um estudo19
em período bem
mais recente. Mesmo no jornal Correio da Lavoura, maior jornal de Nova Iguaçu na época
estudada, pouquíssimo aparecia o distrito. Aliás, como um dos municípios da Baixada
emancipados na década de 1990, com seu primeiro governo constituído em 1993, Belford
Roxo, esteve tangenciado e não só nas pesquisas acadêmicas sobre a região. Neste caso a
história oral abriu caminhos de pesquisa, facilitou e serviu como uma primeira abordagem do
tema.
A constituição do grupo para a entrevista coletiva objetivou privilegiar as questões
políticas locais, pertinentes ao período estudado, tendo em vista que esse viés da vida da
professora era o que eu sentia que mais carecia de fontes e elucidações. Reuni o grupo em um
sábado à tarde, no Espaço Cultural da instituição que trabalho, local de fácil acesso a todos. O
foco era a faceta política de Aurélia, principalmente, a política de Belford Roxo no período da
Era Vargas. Apenas três dos que participaram eu ainda não havia entrevistado. A entrevista
coletiva propriamente, que foi gravada em áudio, demorou cerca de quase uma hora para
iniciar-se. Os narradores todos se conheciam e muitos não se viam há muito tempo. Tinham,
portanto, muitos assuntos, principalmente os que atualizavam o que sabiam da vida uns dos
outros, os netos recém-nascidos, os casamentos, falecimentos, etc. Demorou para
cumprimentarem-se e lamentarem juntos por suas perdas e comemorarem algumas conquistas.
Maria José Haddad, Zezé, filha do político José Haddad, era importante para facilitar a
condução do tema da política local. A sobrinha de Aurélia, Vanira Roberto Braga, não pode
comparecer no dia em que entrevistei as irmãs e por isso se disponibilizou desta vez. Antonio
Ferreira Jr. esposo de Eliane Barcelos e professor de História, acompanhou com interesse as
atividades de Eliane em cooperar com a pesquisa, cedendo material, auxiliando a fazer os
contatos com os narradores. Como nascido em Belford Roxo e participante da família da
19
Encontrei apenas o seguinte estudo: Para além do ―voto de sangue‖: escolhas populares e liderança política
carismática na Baixada Fluminense. O caso Joca. Do Prof. Linderval Augusto Monteiro, Professor adjunto da
Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados (MS). Sobre o primeiro prefeito
do município. Um artigo publicado em: Cadernos do Desenvolvimento Fluminense, Rio de Janeiro, n.2, julho/
2013. As fontes utilizadas pelo autor foram as recolhidas na imprensa.
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mulher, conheceu Aurélia e também ouviu muitas histórias sobre ela. Os demais, Vanda,
Eliane, Danilce, Walter e Heloisa foram os entrevistados que percebi terem mais potencial
para falarem do assunto. Quando consegui que sentassem em círculo, fiz a eles uma
apresentação, com fotos, dos trabalhos apresentados, no Brasil, Portugal e no México,
derivados da pesquisa, da história de vida da professora. Eu queria devolver ao grupo alguns
resultados e evidenciar a importância de seus relatos, a título de agradecimento também.
Direcionei minhas perguntas iniciais para a relação de Aurélia com os políticos José
Haddad e Getúlio de Moura20
. Sobre Moura eu já havia consultado vários trabalhos, como os
de Marlucia Santos de Souza (2002, 2012) e Amália Dias (2012, 2014), e também obtido
matérias no Correio da Lavoura que falavam da relação entre Moura e Tenório Cavalcanti,
polêmico político de Caxias. Os relatos mostraram o quanto era estreita a ligação de Aurélia
com Haddad e Moura, e o quanto a visão dos narradores diferia da historiografia da região21
.
Sobre o integralismo, só haviam escutado as histórias de perseguição em Belford Roxo:
Zezé –Eu me lembro desse aspecto de perseguição de integralistas numa ocasião em
que eles estavam buscando integralistas em casa. Ia uma patrulha e ia de casa em
casa, mas eu não me lembro, assim, a quem eles estariam buscando.[...] Peguei, mas
só essa perseguição. [...]Então, porque eu nasci em 42, eu nasci em 42. A minha
memória não é, lógico, não me lembro desde quando eu nasci. Eu me lembro desse
aspecto. Talvez até papai tenha comentado alguma coisa, né? Por comentários,
entendeu? É a memória que eu ouvi, eu me lembro disso. Não é, porque eu não vi,
não sei a quem procuravam, mas eu me lembro desses relatos. Entendeu? [...] era
muito pequena, mas os relatos eram estes, que havia uma patrulha buscando
integralistas.
Vanira – Eu acredito que isso aí, as nossas famílias, se eram integralistas, não
passaram pra nós, porque talvez não fosse recomendável. Mas que a gente pegou,
não. Aí depois começou a ouvir uma notícia ali, outra aqui.
Eliane – É, mas com muita discrição. Eu acredito eu, é isso.
Vanira – É que nós acabamos com a biblioteca, porque pai conservava tudo que era
dela. Tinha que ter tudo. Então, nós demos pra bibliotecas assim, né? Tinha Plínio
Salgado e tinha a coleção toda. Tinha muitas coleções lá em casa e ela [Aurélia] lia e
relia. Ela tinha um orgulho daqueles livros, mas assim também, negócio de
perseguição essa coisa nunca foi falada lá em casa.
Zezé – Eram discretos, pra preservar a família.
Vanira –Foi um período muito ruim que eles nem gostavam de comentar, porque
quem passou, de repente se eles eram integralistas, no caso, acho que eles nem
gostavam de citar muito isso, porque foi uma época muito sofrida provavelmente.
Então, não foi relatado, nem passado pra gente, coisas que eles contam, que a gente
lembra hoje, mas essa parte não. Essa parte era vedada. (MARIA JOSÉ HADDAD;
VANIRA BRAGA; ELIANE BARCELOS, 2015)
20
―Getúlio Barbosa de Moura nasceu em 1903, em Itaguaí. Em 1924, passou a trabalhar como funcionário da
Estrada de Ferro Central do Brasil. Em Nova Iguaçu, tornou-se um dos mais importantes coronéis da região,
tendo ele também seu grupo armado e certo domínio da polícia local. Cursou o internato do Colégio Pedro II e,
em 1931, bacharelou-se pela Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro, especializando-se em
Direito criminal. Moura poderia ser visto por Tenório como uma figura política exemplar a ser seguida‖.
(SANTOS, 2002 p.80). Com base no Dicionário histórico-bibliográfico brasileiro – DHBB (1930-1983). 1 ed.
Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas: CPDOC, 1984, v. 3, p. 2.309.
21
Sobre o assunto, consultar o segundo capítulo desta tese.
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Por duas vezes eu desestabilizei o grupo. Primeiro colocando os políticos Getúlio de
Moura e José Haddad no mesmo patamar do temido Tenório Cavalcanti. E segundo,
perguntando diretamente sobre o integralismo, percebi que não esperavam. Mas como os
narradores de Javé, estavam ali com o interesse comum de contribuir para que a história de
vida de Aurélia fosse escrita.
Instalei um grande mapa de Belford Roxo no local de encontro, datado de 1994, e
solicitei que buscassem localizar as ruas e espaços das décadas anteriores ao mapa, inexistente
ainda na historiografia da região. Mostraram-me onde se localizavam as famílias, as casas de
comércio, as residências em que haviam morado e a professora. A atividade suscitou outras
lembranças, mais tranquilas que as da política nas décadas de 1930 e 40 na Baixada
Fluminense.
A professora Eliane Barcelos Porto Ferreira não foi aluna de Aurélia, mas como filha
da professora Léa Barcelos Porto conviveu bastante com ela e sua família. Eliane tornou-se
narradora por pertencer a um núcleo familiar dos mais antigos de Belford Roxo e partícipe da
rede de relacionamento da professora, no qual vários membros tiveram acesso à educação
formal. A professora Léa Barcelos foi a primeira, que se tem notícia, moradora do distrito que
se formou em Escola Normal, no Instituto de Educação do Rio de Janeiro. Desde muito
pequena ela seguia no trem para a capital para estudar. E Eliane, como professora de História
do município, sempre se interessou pela história do lugar.
Dos tempos de sua infância, Eliane traz a representação social de Aurélia como
professora que exigia muito das crianças. Porém, ela conheceu melhor o papel político da
professora nessa comunidade, que também atuava para ter voz junto aos políticos que
apoiava:
[Aurélia] conheci muito, porque minha mãe ia muito na casa dela, inclusive em
época de política, reuniões às vezes à noite lá pra decidir o trabalho que deveria ser
feito, porque mamãe tinha participação política. Então, mamãe me levava, levava
minha irmã, meu irmão, os três mais velhos (nós somos escadinha) e ali a gente
ficava brincando com as filhas do irmão da Dona Aurélia, enquanto elas estavam em
reunião. Elas e outras pessoas faziam reuniões pra decidir caminhos políticos aí,
quem elas iam apoiar e tal. (ELIANE BARCELOS, 2013)
Eliane Barcelos traz Aurélia como articuladora política, sua liderança nesta esfera e as
redes tecidas por ela na região de Belford Roxo e Nova Iguaçu, então a sede do município.
Indaguei-a: – ―Você a via como uma liderança?‖ Ao que ela respondeu: – ―Via. Via como uma
liderança inclusive política. Não só na parte educacional, mas política‖ (ELIANE
BARCELOS, 2013). E continuei indagando: ―As pessoas faziam o que ela pedia?‖ Ao que a
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narradora respondeu: ―Aí eu não sei, mas ela realizava na casa dela reuniões políticas pra ver
os caminhos, isso eu me lembro. Eu era bem pequena, me lembro de tombo que tomei, que
abri a cabeça, naquelas brincadeiras enquanto acontecia a reunião. Me lembro disso bem
mesmo‖. (ELIANE BARCELOS, 2013).
A narradora Heloisa Bicchieri Antonio demonstra que também prestou atenção na vida
política de Aurélia e sua rede de relacionamentos, seu olhar apurado deve-se ao fato de ter
trabalhado por mais de 40 anos ao lado do político José Montes Paixão, em seu cartório em
Nova Iguaçu. Ele lutou pela emancipação de Mesquita e foi seu primeiro prefeito. Seu relato
reforça as conquistas da professora Aurélia nesse território:
Eu me lembro da parte política, que ela participava muito, ela tinha uma
admiração... porque existia dois partidos, a UDN e o PSD, ela era amiga do José
Haddad, do Dr. Getúlio Moura, a turma do PSD, mas ela respeitava muito Jesus de
Castro Vieira, que era dentista, Dr. Luiz Guimarães, Dr. Mário Guimarães, Dr.
Sebastião Arruda, acho que ela foi até secretária, ou alguma coisa em relação à
educação, do Dr. Arruda, Sebastião Arruda Negreiros, foi prefeito de Nova Iguaçu.
Porque ela tinha... eles tinham por ela um respeito e um carinho por ela, porque ela
transitava livremente por todos eles...[...]É, então era assim, os desentendimentos
eram só políticos, mas não era por isso que a Dona Aurélia não tinha entrada livre
nos gabinetes, entrava mesmo sem ser anunciada, marcada entrevista, nada disso, ela
não tinha... ela chegava, entrava e eles tinham um carinho muito grande por ela, um
respeito muito grande por ela. (HELOISA BICCHIERI, 2013)
Pelas narrativas dos membros de suas redes sociais, desde que chegou a Belford Roxo
Aurélia participou de alguns grupos que se configuravam como um sistema aberto em
permanente construção. O conjunto de relações que ela teceu são fontes de reconhecimento,
de sentimento de identidade, do ser, da competência, da ação, na perspectiva de Meneses e
Castela Sarriera (2005). Estão imbricadas com os papéis que ela desempenhou nas relações
com outras pessoas e grupos sociais. Entretanto, apesar de inicialmente ter participado
ativamente do grupo social que frequentava a Igreja da Solidão, que se reunia em prol das
ações religiosas, a articulação com a educação e mais ainda com a política aparece como fator
aglutinador de suas ações, desde que migrou com sua rede familiar para a Baixada.
Robinson Belém de Azeredo é o editor-chefe do Jornal Correio da Lavoura, fundado
por seu avô, Silvino de Azeredo em 22 de março de 1917, no município-sede de Nova Iguaçu.
O periódico, por muitas décadas, foi o principal órgão de imprensa da região e hoje é uma
importante fonte de pesquisas. Preferi ir diretamente ao acervo do Correio da Lavoura, entre
1930 e 194022
, para poder fotografar as matérias e ter maior liberdade para produzir imagens,
22
O livro com o acervo do semanário correspondente ao ano de 1935 não se encontrava no Correio da Lavoura,
para esse ano tive que recorrer aos acervos do Centro de Documentação e Imagem (CEDIM) da Universidade
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e, por isto, procedi à recolha da maior parte do material na própria sede do jornal, ainda no
mesmo endereço. Escolhi o editor como narrador primeiramente para seguir as
recomendações de Shopes, sobre a variedade das amostras, e segundo porque havia
encontrado duas pequenas notas sobre um periódico citado por Rosa Cavalari (1999) como
um jornal de linha editorial integralista em Nova Iguaçu23
. Vinha envidando esforços para
descobrir onde havia sido rodado, e pensei que talvez na gráfica do Correio da Lavoura, e se
em algum lugar ainda existiam vestígios de suas publicações. De qualquer maneira, eu queria
sair um pouco do que já havia sido publicado pelo jornal Correio da Lavoura e obter outras
informações e outros olhares sobre a região.
A linha sucessória do Correio da Lavoura, Robinson explica: ―em 1939, meu pai
assumiu, Avelino, junto com meu tio Luiz e tocaram até agora, 60, 70, quando já assumi. Em
65, eu já comecei a trabalhar no jornal. Ou seja, há 48 anos atrás‖ (ROBINSON AZEREDO,
2013). Mas escutou muitas histórias na família que logicamente se interessava pelos
acontecimentos da região. Seu avô, por exemplo, não gostava de Getúlio Vargas, pois era
partidário da República Velha. Como ele, muitos ruralistas em Nova Iguaçu.
Azeredo conheceu melhor a faceta política de Aurélia e sua rede de relacionamentos
na Baixada Fluminense, conseguindo estabelecer suas vinculações nessa área, principalmente
nas décadas de 1940 e 1950.
No segundo período que você se referiu dela, que ela mantivesse, mesmo que lá no
fundo do coração, aquele ideário integralista, [acha que isso não prosseguiu] tanto é
que ela se filiou ao partido de centro, que era o [...] PSD, cujo líder em Nova Iguaçu
era Getúlio Moura, que comandou a política durante muito tempo. O Zé Haddad que
também tinha ascendência política sobre D. Aurélia era como se fosse um dos
representantes, talvez o principal, que o Getúlio tinha em Belford Roxo, como tinha
o Paixão em Mesquita, como tinha o Ari Schiavo em Japeri. Naquela época que
Nova Iguaçu tinha seus distritos, Queimados, Belford Roxo, Mesquita (...). Então,
em cada um desses distritos Getúlio Moura teria que ter o seu representante. O
Haddad foi o representante, ele foi feito pelo Getúlio, como os opositores do
Haddad, que também tinham sido feitos na grande chocadeira do Getúlio Moura,
que criou os seus representantes fortes e poderosos e quase todos eles chegaram a
chefes, nem sempre a prefeitos (quase todos eles foram) mas a deputados estaduais,
deputados federais como Zé Haddad, por exemplo. Zé Haddad não chegou a ser
prefeito porque perdeu a disputa em Nova Iguaçu com o Ari Schiavo, mas já na
época da revolução [1964]. (ROBINSON AZEREDO, 2013)
Até então eu havia lidado com as narrativas sobre Aurélia, a professora. Escutando
pronunciar seu nome em meio aos políticos da Baixada Fluminense, pude compreender que
essa dimensão, a política, não se restringiu ao mero apoio, como a realização de reuniões na
Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), campus Nova Iguaçu, que possui todo acervo do digitalizado.
23 Trago o assunto no segundo capítulo.
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sala de sua casa, ou seja, uma participação tímida e circunscrita aos círculos de Belford Roxo,
ou limitada à formação de lideranças a partir das suas ações pedagógicas com crianças e
jovens. Suas ações políticas repercutiram na imprensa iguaçuana, onde o redator transitava. É
o tempo trazendo novo sortimento de memórias.
Ouvindo a explicação do narrador para a minha questão sobre a falta de fotografias –
na verdade já havia consultado a, até então, única matéria sobre o integralismo encontrada
naquele jornal e desejava entender o porquê da falta de destaque dado pelo Correio da
Lavoura ao descarrilamento do trem dos integralistas, em Mesquita/Nova Iguaçu, que
voltavam ou se dirigiam à ―Marcha dos 50 mil‖, como foi chamado o levante integralista de
1937 – percebi o quanto o local está imbricado com o global:
Eu acho que o Correio da Lavoura tem registro sobre esse trem dos camisas verdes
que descarrilou. É por isso que evidentemente você já está aqui, você vai estar aqui
outras vezes, fique atenta nesse ano do descarrilamento nas edições do jornal que
falam, você vai ver menção a respeito. As pessoas que estiveram no trem, enfim,
uma série de outras informações exatamente, úteis. Fotos nem tanto, naquele tempo,
a questão da fotografia era uma coisa complicada. Hoje, foto é fácil você ilustrar
qualquer coisa através da solução digital, mas naquela época você tinha que
fotografar, mandar fazer clichê, entendeu? No Rio de Janeiro, não tinha clicheria
aqui em Nova Iguaçu. Era um processo trabalhoso e caro. Você vai começar a ver o
jornal ilustrado quando, em função até da política de boa vizinhança, os EUA,
através da USIS24
, que é um serviço de informação dos EUA, passou a fornecer
farto material de propaganda e informação aos países da sua área de influência,
como o Brasil também era. O Correio da Lavoura... Eu tenho várias fotos de
Roosevelt. Quer dizer, material que eles mandavam ficava com o Correio da
Lavoura, publiquei muito. Já mandavam tudo pronto, clichê e tudo. Clichê inclusive
de plástico, a gente não usava na época. [...]Pós-guerra, já no período da guerra
começou a propaganda do Eixo. Quando o Brasil entrou na guerra aí essa associação
ficou definitivamente cara, politicamente falando, então esse material foi derramado
em larga escala no país. Eu publiquei, os grandes jornais publicaram também. Já
naquela época tinha tecnologia avançada pros padrões aqui. Os EUA estiveram na
frente nessa parte tecnológica do setor gráfico. Eles e os alemães. Agora, eu creio
que você quando for vasculhar as edições desse período, você fatalmente vai
encontrar relato desse episódio do trem dos barrigas verdes que... sempre ouvi essa
história, desde garoto. (ROBINSON AZEREDO, 2013)
Estar frente a frente com Azeredo, editor de jornal local, permitiu compreender o que
Paul Ricouer (2007) chamou de ―jogo de escalas‖. Para o autor:
De fato, nem a micro-história, nem tampouco a macro-história opera continuamente
em uma única e mesma escala. Certamente, a micro-história privilegia o nível das
interações na escala de uma aldeia, de um grupo de indivíduos e de famílias; é nesse
nível que se desenrolam negociações e conflitos e que se descobre a situação da
incerteza que tal história evidencia. Além disso, ela não deixa de ler de baixo para
cima as situações de poder que se dão em outra escala. O debate sobre essas
24
Acredito que esteja referindo-se ao Serviço de Divulgação e Relações Culturais dos EUA (USIS), existente nas
embaixadas americanas.
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histórias locais vividas ao rés-do-chão pressupõe a imbricação da pequena história
na grande história; nesse sentido a micro-história não deixa de se situar num
percurso de mudança de escala que ela narrativiza enquanto caminha. (2007, p.257)
Enquanto caminhava na pesquisa com o olhar para minha ―aldeia‖, descobri nesta
entrevista o quanto a história de Aurélia mudava de escala, dependendo do ângulo abordado.
Os clichês de fotografias americanas chegavam à imprensa de Nova Iguaçu, que era tão
diminuta que nem recursos locais dispunha para, por si, produzir clichês. Essa era uma boa
imagem. Pensei na propagação de outras coisas, como as ideias e outros ‖clichês‖, que
também chegavam, e no quanto possivelmente se reproduziam nas salas de aula, na política
dos lugarejos de Nova Iguaçu, nas interações daqueles que vivem suas histórias ―ao rés-do-
chão‖. Assim, os efeitos de um sistema de poder atuam em uma escala descendente, até as
condutas de controle no nível psíquico individual, ―do plano superior de produção de sentido
para o inferior de efetuação concreta, graças ao esquecimento da causa dissimulada em seus
efeitos‖ (RICOEUR, 2007, p. 257). Neste sentido, depreendo do pensamento do autor, muitos
daqueles a quem chamamos de atores sociais, bem como as redes por eles constituídas, não
passariam de engrenagens de um sistema previsível, planejado por outrem.
1.1.2 Integralismo e esquecimento
―Eu sou de 29, eu sou do ano da Quebra da Bolsa de Nova York, lembra disso? Então,
a queda da bolsa que abalou o mundo inteiro‖ (WALTER VICENTE, 2014). Nada com
Walter está desconectado com o nacional e o mundial, ele transita em seu relato dos espaços
privados para os públicos, do local para o global, com a facilidade de quem chegou a Belford
Roxo no ―Dia 23 de abril de 1934, dia de São Jorge, viemos da Lapa aqui pra Solidão, nesta
casa [...]Naquele tempo era Solidão mesmo‖ (WALTER VICENTE, 2014). Entrevistei o
narrador no espaço de sua casa, na varanda, onde ele acompanha diariamente o desenrolar da
vida dos familiares e dos inúmeros conhecidos.
Walter Vicente foi meu primeiro narrador da vida de Aurélia. Escutei muitas histórias
da Solidão contadas por ele, desde pequena. Sua entrevista, entretanto, foi uma das últimas
que fiz. Vi como importante a preparação para as entrevistas com familiares, por isso
consultei uma bibliografia sobre o assunto, textos de outros pesquisadores que trabalharam
com memórias da própria família, ou de família, ou seja, a memória que recupera a
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ancestralidade de uma dada família. Em Zonabend (1991, p. 179), que exemplifica o segundo
caso, é possível perceber que essas memórias ―revelam aspectos mais perenes de uma
sociedade‖ e elas representam a luta contra a morte, enquanto se existe na memória, não se
morre. Mas isso foi o que também percebi do narrador, nesta fala logo no início da entrevista:
―não é dizer que sou melhor do que ninguém, mas, eu acho que quando eu partir para o outro
lado, alguém que vai ficar aqui vai lembrar bem de mim, não sabe? Isso aí pode ser falta de
modéstia, mas é verdade‖ (WALTER VICENTE, 2014).
Trabalhar com as memórias de Walter, e de outros membros da família, para mim
representava o enfrentamento de duas questões, uma metodológica, quanto ao meu
distanciamento enquanto pesquisadora. A outra, a participação no movimento integralista de
membros da minha família. A princípio pensei em não utilizar esses relatos, e não enveredar
pelo provável envolvimento de Aurélia nesse movimento, na década de 1930. Afinal, a
história de vida da professora proporciona tantas abordagens que pensei em abrir mão desta.
Entretanto, isto representaria também sonegar desta história pessoas que foram importantes na
vida de Aurélia e aspectos que podem explicar suas ações e pensamentos.
A casa de Walter é também um lugar de memória da vida da professora, que ao chegar
com sua família ao lugarejo foi morar muito próxima, e teve na família do narrador suas
primeiras relações. Minhas lembranças dessa casa remontam aos meus primeiros anos de
vida. Lembrei-me do jardim de cheiros e cores, da boneca de porcelana branca craquelada que
o ornamentava, do banco de pedra, da cor amarela e da inscrição em sua fachada, que
anunciava o ―Lar de Maria‖. Percebi o quanto essa memória me aproximava de Aurélia, pois
deveria ser sua também. Zonabend (1991) também constata o quanto a casa e os objetos
contam das famílias e dos seus hábitos, da cultura na qual está inserida e das suas relações
sociais. Walter vive cercado dessa memória, talvez por isso mesmo a preserve tanto. Foi a ele
que Aurélia entregou os textos manuscritos dos seus alunos, que serviam para a publicação
em seu jornal O Infantil, que circulou entre 1939 e 1940. Como outros narradores fizeram
com outros documentos e fotografias, Walter doou os textos para esta pesquisa. Aurélia
evidenciava assim que gostaria de ser lembrada por esta ação pedagógica, pois elegeu como
guardião um dos seus alunos que mais cultivou suas memórias.
Depois de falar sobre muitos assuntos, por cerca de sessenta minutos, com divagações
que variaram entre o saudosismo dos tempos de infância; a saga da família que morava na
Lapa, em um dos guetos de imigrantes portugueses, até chegar a Belford Roxo; a localização
das famílias e do comércio em comparação com os dias de hoje no município; entre inúmeras
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outras lembranças, como o assunto integralismo não surgiu espontaneamente eu resolvi
perguntar: “ – E quando é que seu pai virou integralista?‖
Meu pai não era integralista, meu pai queria conviver, porque a sociedade de Belford
Roxo toda fazia parte do Integralismo, foi José de Lima, foi, Seu Zé [Haddad] não,
Seu Zé era de Xerém, a família era toda de lá. Era Zé de Lima, era todo mundo,
enfim, a sociedade era integralista, porque era uma coisa muito bem organizada, foi
a maior covardia, a maior covardia que eu sei, que eu entendo até hoje, não deixa de
ser uma traição, pra mim foi uma traição, foi Getúlio legalizar o partido [...].
Naquele tempo ele legalizou o partido, não existia partido, não existia. Ele deixou
Plínio Salgado25
legalizar o partido, ele dizia que Plínio Salgado era fascista. Era
fascista, legalizou o partido e no dia seguinte ele jogou o partido fora de... Aí o
Partido Integralista botou dez mil homens desfilando na Avenida Rio Branco, numa
passeata noturna, uma marcha noturna, entendeu, mas só tinha adulto, criança não
tinha. Eu, por exemplo, fazia parte deles, depois eu passei (…) era pliniano, eles
diziam que era pliniano26
. (WALTER VICENTE, 2014)
Algumas vezes Walter Vicente havia me falado sobre o que se lembrava da participação no
núcleo integralista local, mas diante da câmera parecia diferente, isto ficaria gravado para posteridade.
Walter demonstrava não querer que o pai fosse associado ao fascismo, percebi pelo momento inicial
da sua fala. Entendi porque o integralismo caiu nas ―águas do Lete‖27
.
No prefácio ao livro de Rogério Lustosa Victor, Sandes, seu orientador, argumenta que os
pesquisadores que escrevem sobre o integralismo têm uma atitude inicial de condenação à doutrina, de
modo a suscitar a desvinculação com uma possível identificação entre o sujeito e o objeto da pesquisa.
Isto porque o pesquisador visaria ―tranquilizar o leitor de que não se trata de apresentar qualquer
justificativa para aquele movimento‖ (VICTOR, 2005, p. 14), possivelmente alguns desses
pesquisadores também descendiam de integralistas e não se referiram a isto. Logo lembrei-me de
Barthes e suas considerações sobre o que chamou de ―a morte do autor”28
, era tentador neste momento
deixar de pertencer ao grupo dos narradores da Solidão, e escrever na terceira pessoa, talvez evitasse
críticas sobre o meu distanciamento, mas isto não seria ético.
25
Plínio Salgado foi o Chefe Nacional do Integralismo, nasceu em São Bento do Sapucaí, Estado de São Paulo,
no dia 22 de janeiro de 1895, e faleceu em São Paulo (Capital), no dia 8 de dezembro de 1975. Começou sua
carreira como jornalista em 1916, em sua cidade natal, no semanário Correio de São Bento.Iniciou-se na
política em 1918, participando da fundação do Partido Municipalista. Suas ideias iniciais para a criação da
doutrina integralista foram resultantes das leituras de Raimundo Farias Brito e Jackson Figueiredo, pensadores
católicos brasileiros.
26
―Os Plinianos, crianças e jovens de ambos os sexos, cuja idade variava entre 4 e 15 anos, eram constituídos
por Grupos e pertenciam a quatro categorias: Infantis, que compreendiam as crianças de 4 a 6 anos; Curupiras,
as de 7 a 9 anos; Vanguardeiros, as de 10 a 12 anos; e Pioneiros, os jovens de 13 a 15 anos‖. (CAVALARI,
1999, p. 71).
27
VICTOR, R. Lustosa (2005). Refere-se ao título do livro: O Integralismo nas Águas do Lete. Na mitologia
grega Lete é um dos rios do Hades. Aqueles que bebessem ou até mesmo tocassem na sua água
experimentariam o completo esquecimento.
28
A MORTE DO AUTOR. Roland Barthes. Texto publicado em: O Rumor da Língua. São Paulo: Martins
Fontes, 2004.
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Esta não é uma tese sobre o integralismo, muito menos uma autobiografia, mas sobre como
uma professora se projeta em uma comunidade, principalmente, assumindo vigorosamente atitudes
políticas, pedagógicas, assistenciais e culturais. Nesse caminho, Aurélia, ao que parece, aproximou-se
de alguma forma desse ideário, que se configurou em um partido político por poucos anos, na década
de 1930. Então, não há necessidade de apresentar justificativas ao abordar o assunto integralismo, mas
de entender o cenário e ao mesmo tempo buscar sair dos estereótipos, na medida em que se
aprofundam as investigações e interpretações.
Mais precisamente em outubro de 1932, Plínio Salgado fundou um movimento político, a
Ação Integralista Brasileira (AIB), que cerca de quatro anos depois se configuraria no primeiro partido
de massa no Brasil, com núcleos políticos espalhados por muitas cidades em praticamente todo
território brasileiro. Também estabeleceu uma rede de imprensa consistente que foi responsável pela
ampla divulgação de suas ideias e ações. Em 1937, Salgado candidatou-se à presidência do país,
porém em 10 de novembro deste ano Getúlio Vargas desfecha um golpe, suspendendo a Constituição
de 1934 e implantando um regime ditatorial. Em 02 de dezembro desse ano de 37 o presidente decreta
a extinção de todos os partidos. As relações da Ação Integralista com Getúlio podem ser consideradas
como boas até este momento, após se deterioram muito rapidamente. Em 11 de maio de 1938, a cúpula
do movimento engendra e executa ações para um golpe no intuito de derrubar o presidente, que
resultou em fracasso. Ficou então conhecido como o fascismo brasileiro, por suas características
reacionárias principalmente. Seus integrantes foram perseguidos e punidos, muitos foram exilados.
Manteve-se na clandestinidade por alguns anos, mas muitos militantes abandonaram de vez o
movimento quando ao final da 2ª Guerra o aspecto fascista se evidenciou. Essas memórias ―se
apagaram‖ de muitos modos, também pela historiografia, como evidencia Victor (2005).
O ex-―pliniano‖ lembra-se bem de onde era o núcleo integralista em Belford Roxo.
Mas um outro rio, não o do esquecimento, da divagação, insiste em levá-lo:
Onde hoje, em frente, mais ou menos em frente ao banco, onde era o Banco Real,
quase em frente à Casa e Vídeo, na casa do Seu Trévia, Trévia, tinha uma filha
chamada Valquíria, bonitona, Amílcar lembra disso aí, que Amílcar estava
conversando aqui, ―mas ela é um pedação de moça‖, né, mas ela parecia homem,
que falava grosso. [...] A gente se reunia ali, ali que era o núcleo do Partido
Integralista, aí a gente fazia tudo, todo domingo tinha uma festividade, todo
domingo não, mas vamos dizer um domingo sim, o outro também [...]. Ali que a
gente fazia as festividades [...] A coisa era boa, tinha escola, tinha assistência
médica, tinha tudo aquilo ali. [...]. Tinha uma escola, mas que não... uma escola
pequena, mas a filha, a filha dele, a Walquíria e os outros filhos, ensinavam as
crianças ali e Dona Aurélia já dava aula cá na Escola Arruda Negreiros, depois que
passou lá para cima e passou a ser Professor Paris. Mas a escola era Dr. Arruda
Negreiros, onde nós estudamos, o secretário de educação, que eu falei ainda a pouco,
era o Capitão Paulino Barbosa, falava que era uma maravilha, a voz dele parecia até
um... então... (WALTER VICENTE, 2014)
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Então, por várias vezes eu insisti em voltar ao assunto e tinha que perguntar: –―Então
tinha uma escola dentro deste núcleo?‖
No núcleo tinha um colégio, tinha uma escolazinha para aqueles que não podiam,
não dava para ir para a escola, porque a escola já não tinha vaga para todo mundo,
que era a única escola que tinha em Belford Roxo, funcionava de manhã, com a
professora Emília e depois à tarde com Dona Aurélia. Ela ainda dava aula aqui.
(WALTER VICENTE, 2014)
Walter explica que Aurélia não dava aulas na escola do núcleo, que só existia uma
escola municipal nessa época em Belford Roxo, que ela dava aulas, a E. M. Arruda Negreiros,
que depois assumiu o nome de E. M. Prof. Paris. E dava aulas também na escola da Igreja, na
Solidão, particular, fundada por ela, cujo zelador era o pai do narrador. Acerca das escolas
integralistas, Rosa Cavalari (1999) aponta que também buscavam suprir as demandas por
escolas nesse período, além das óbvias intenções de alfabetizar seus prováveis eleitores. E que
havia orientações emanadas da cúpula do movimento e do próprio Plínio Salgado para a
educação. Como Walter dizia que Carlos Bicchieri havia equipado a escola para sua nora dar
aulas em casa, pensei que talvez ele também fosse integralista, e que essa escola também
pudesse seguir o ideário, mas ele me garantiu que não.
Não. Integralista era teu avô, o Carlos Bicchieri Filho, aquele que era integralista,
esteve preso, apanhou. Ele dizia, quem disser que bateu ali dentro e não apanhou é
mentiroso. Ficava sentado numa cadeira que tinha um foco de luz na cara, que o cara
não vê nada e porrada em cima. [...] Ele contava né, eu me lembro que ele contava
né. E eu nasci ali em frente, eu nasci naquela... tem o jornal aí, fotografia do que é
aquilo [Departamento de Ordem Política e Social (DOPS)29
].É, eu vou mostrar o que
é aquilo, se eu não me engano, ali é Evaristo da Veiga, pra cá Henrique Valadares,
depois tem a Gomes Freire, aqui é a Rua dos Inválidos. Eu vou procurar, apanhar o
jornal ali e vou emprestar pra você bater foto, você vai ver o que é a solitária, o que
é a prisão. Ainda existe aquilo. O chão é... é uma obra de arquitetura fora de série. O
chão todo em pastilhazinha, daquele desenho bonito. (WALTER VICENTE, 2014)
29 O prédio do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) foi construído para sediar a Repartição Central
de Polícia, foi inaugurado em 5 de novembro de 1910. O projeto é de Heitor de Mello, um dos mais renomados
arquitetos do início do século, que implantou a edificação de modo a ocupar simetricamente as duas frentes do
amplo terreno de esquina. Sua monumentalidade e sofisticação evidencia a essência do que havia de mais
moderno nos edifícios destinados a sedes de Polícia na Europa na intenção de assinalar, com a arquitetura, a
renovação da polícia então em curso. Ao prédio de três pavimentos, inicialmente composto apenas de uma ala
em L, foi acrescido, em 1922, outro L nas extremidades, de modo a se fechar em um quadrilátero, cujo pátio
interno comunica, ventila e ilumina. Durante o regime ditatorial da Era Vargas e nos tempos do regime militar
de 1964, o edifício foi sede do Departamento de Ordem Política e Social e cenário de atividades de tortura e
perseguição política. Seu tombamento visa à preservação das qualidades arquitetônicas notáveis, mas é
também e, sobretudo, um marco e testemunho histórico das lutas populares pela conquista de liberdade e lugar
de memória dos que ali foram torturados pela defesa de suas ideias políticas. Com base no texto divulgado pelo
Inepac, que somente menciona o regime militar. Disponível em http://www.inepac.rj.gov.br/. Acesso em 25 de
julho de 2014.
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O imaginário de Walter Vicente surge povoado de impressões causadas pela
suntuosidade do poder exercido pelo órgão público de repressão, situado próximo à rua dos
Inválidos, onde nasceu. Evidenciando que a sua infância foi aterrorizada, tanto pela repressão
ao integralismo como pela onda de temor que a deflagração da 2ª. Guerra causou:
A gente não tinha luz, então o meu irmão Carlito ganhou do falecido Seu Benedito,
que era o tio da Dona Aurélia, um rádio de ouvido, um rádio galena, tinha uma
pedrinha com uma agulha que a gente usava para mudar, um cursor para a gente
mudar a estação, só pegava estação de cinquenta quilowatts, era Rádio Nacional,
Rádio Tupi (…) depois vinha a Rádio Jornal do Brasil, o resto não pegava, só
pegava quatro emissoras só, porque era cinquenta quilowatts na antena. Aí, quando
afundaram o navio, Brasil declarou guerra à Alemanha, ah, meu pai veio lá de fora
que veio doido. [...]pegou a machadinha, quebrou tudo, despedaçou tudo e enterrou
tudo no fundo do quintal. Mas, ..., papai, o que está havendo, o que está havendo?
Ele diz assim, mas rapaz, se não... Ele num ponto tinha razão, ele pensava lá na
frente. Como ele era português e Salazar era outro fascista. E como ele era
português, ele tinha medo (…) a gente tinha um rádio de ouvido, como via
antigamente no cinema, o cara mexendo, a gente tinha um troço daquele. (WALTER
VICENTE, 2014)
A palavra fascista parece ter acompanhado Walter de muitas maneiras, pelo seu relato
a impressão que causa é que um grande e onipotente olho estava pronto a condená-lo e retirar-
lhe o que mais gostava. A Solidão só foi abastecida de luz elétrica em 1954, segundo seu
próprio relato, o rádio galena era o único meio de comunicação que havia nas décadas
anteriores: ―Agora papai quebrou o rádio todinho, que tristeza. Aí mamãe gostava de escutar
uma novelazinha de noite na Rádio Nacional...‖. (WALTER VICENTE, 2014)
Em 1937 houve uma cerimônia, da qual o então menino de oito anos também se
lembra:
O batizado da tua mãe, o que posso dizer é que foi feito aqui, tinha um grupo dos
integralistas, tinha na fotografia, em pé, na porta da igreja, Dona Aurélia, o falecido
meu irmão Joaquim ao lado e a Fernanda enrolada na bandeira integralista, com
aquele, aquilo é uma letra grega né, um ―e‖ ao contrário, ou três ao contrário, sei lá o
que que é. Que a gente usava pregado no braço. (WALTER VICENTE, 2014)
A descrição do narrador vem ao encontro das informações sobre as cerimônias
integralistas descritas por Cavalari (1999). Aurélia havia participado como protagonista, a
madrinha, em uma delas. Os símbolos e os rituais completavam a rede criada pela AIB,
constituída pelo impresso, pelas sessões doutrinárias e pelo rádio, para doutrinar seus quadros.
Havia orientações específicas para os rituais de casamentos, batizados e funerais:
Assim, a primeira cerimônia a que o integralista se submetia logo após o nascimento
era o batizado integralista, que deveria ocorrer simultaneamente ao batismo cristão.
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[...] Ao final do ato religioso, a criança deveria ser envolta na bandeira integralista,
e, fora do recinto da igreja, ser apresentada pelo pai ou pelo padrinho aos presentes
(CAVALARI, 1999, p. 172-173).
Quando perguntei diretamente se a professora frequentava o núcleo integralista de
Belford Roxo, já que concordara em participar da cerimônia, ele disse: –―Frequentava, ela era
uma pessoa de destaque ali naquele meio, estou dizendo que era... 1936...‖ (WALTER
VICENTE, 2014). Sobre a questão da ascendência de Aurélia sobre o grupo social, indaguei:
–“Quem mandava em quem? Seu pai mandava em Dona Aurélia, ou Dona Aurélia mandava
no seu pai?‖
Ela mandava em todo mundo, porque ela só fazia aquilo que o povo em geral
aceitava, entendeu? Ela só entrava na boa, o que ela aplicava era certo. Então, se ela
dissesse assim, olha, amanhã vocês vão chupar limão, porque limão é bom para
saúde. Amanhã todo mundo ia chupar limão. Comer banana verde, vai, entendeu?
Todo mundo aceitava. (WALTER VICENTE, 2014)
Entrevistar Walter Vicente suscitou muitas reflexões, sobre a memória individual que,
como lembra Halbwachs (1990), está sempre inserida nos quadros sociais da vida humana.
Proporcionou não somente saber mais sobre a professora, mas compreender melhor a infância
nessa região, nesse tempo em que o rural se transformava no urbano e no qual a escola se
afirmava como necessária ao projeto político e social. Perceber como o movimento
integralista penetrou no cotidiano de um pequeno povoado, buscando preencher necessidades
desse grupamento social. Também concluir, como Erica Jong30
em seu romance Memória
Inventada, que cada geração carrega a outra, pela memória.
Outro narrador que me falou de integralismo foi Luiz Scapin, entrevistei-o em seu
amplo escritório de advocacia, no edifício construído, e que leva o nome de seu pai, por Mario
Scapin, no centro de Nova Iguaçu. Eu tinha poucos dados sobre o integralismo na região, mas
queria investigar mais sobre a possível participação de Aurélia no movimento, assumi que não
poderia deixar de lado isto. Em 2012 eu tateava para encontrar fontes sobre o integralismo na
Baixada Fluminense e, a quem eu indagasse a respeito, era comum escutar o nome de Mario,
deduzi que era a pessoa mais representativa como integralista que poderia encontrar. Como já
falecido Mario, procurei Luiz na esperança de obter pistas sobre documentos e fatos que
pudessem elucidar a questão de Aurélia com esse movimento.
30
JONG (1999). Erica Jong apresenta um épico sobre um século de vida de uma família judia nos EUA através
da história de quatro gerações de mulheres de um clã pouco convencional. O livro começa com Sarah, que em
1905 deixa a Rússia e migra para os EUA. Continua com sua filha, a libertária escritora Salomé e a neta Sally,
uma cantora folk dos anos 60. Cabe a Sarah, herdeira dessas tradições, resgatar o passado de toda sua família
nos EUA para poder encontrar-se, também, com a própria identidade
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61
Logo percebi que Luiz seria o único entre os narradores que não chegou a conhecer
Aurélia, não esteve em nenhum momento com a professora, ou ao menos se lembrava dela.
Mas minha intenção era também diversificar o ―perfil da minha amostra‖ de narradores, e este
foi muito importante para esclarecer o que se passou na região de Nova Iguaçu nos anos 1930,
principalmente sobre os acontecimentos de 1938, com o grupo de integralistas da região, na
qual seu pai era um dos membros mais proeminentes e ativos. Luiz não estudou sobre o
integralismo e, como era pequeno no período, não conheceu o movimento em suas acepções e
ações. Sofreu seus reflexos ―na carne‖, como eu entenderia posteriormente, mas teoricamente
conhecia pouco sobre o que foi e o que representou o integralismo para a região e para o
Brasil.
Olha, diante a sua solicitação sobre o integralismo, de falar sobre o integralismo,
recordar o integralismo, eu, na época do Integralismo, né, apesar de eu ser novo, eu
não gostava do integralismo porque o meu pai era muito dedicado, muito... ele era
totalmente dedicado ao integralismo e nós éramos contra, mamãe era contra e nós,
filhos, acompanhávamos a mamãe. Mas, pensando bem, depois de ter lido algo,
muito pouco, por sinal até, mas deu para concluir, que se, hoje, eu quero crer que eu
seria um integralista, face aos maus exemplos dados pelos nossos governantes
atuais. Eu acredito que o integralismo, talvez, pelo menos pela sua trilogia de Deus,
Pátria e Família, nos desse um mundo melhor, um país melhor. (LUIZ SCAPIN,
2013)
A fala do narrador evidencia uma visão parcial do assunto. Ele diz que após o meu
contato, telefônico para marcar a entrevista, ele procurou informações na internet, com a
ajuda do seu filho, e depois de algumas poucas leituras concluiu que hoje ele poderia ser um
integralista. Segundo Boris Fausto:
O integralismo se definiu como uma doutrina nacionalista cujo conteúdo era mais
cultural do que econômico. Sem dúvida, combatia o capitalismo financeiro e
pretendia estabelecer o controle do Estado sobre a economia. Mas sua ênfase maior
se encontrava na tomada de consciência do valor espiritual da nação, assentado em
princípios unificadores: ―Deus, Pátria, Família‖ era o lema do movimento. [...] O
integralismo foi muito eficaz na utilização de rituais e símbolos: o culto da
personalidade do chefe nacional, as cerimônias de adesão, os desfiles dos ―camisas-
verdes‖ ostentando o sigma (∑) em uma braçadeira. [...] O recrutamento dos
dirigentes nacionais e regionais da AIB se fez principalmente entre os profissionais
urbanos de classe média e, em menor grau, entre os militares. O integralismo atraiu
para suas fileiras um número considerável de aderentes. Estimativas moderadas
calculam esse número entre 100 mil a 200 mil pessoas, no período de auge (fins de
1937), o que não é pouco, considerando o baixo grau de mobilização política
existente no país. (FAUSTO, 2012, p. 194-195)
Mario Scapin, pai de Luiz, viveu por longos anos acompanhando o pensamento de
Plínio Salgado, mesmo no período em que como partido político esteve na clandestinidade. A
AIB, como partido, foi legitimada por seus estatutos, tirados no II Congresso Integralista,
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realizado em Petrópolis, em março de 1935, e a partir desta data passou a ser "uma associação
civil, com sede na cidade de SP e um partido político, com sede no lugar onde se encontrar o
seu chefe supremo". Mario Scapin foi integralista nos anos 1930 e filiou-se também ao
partido criado por Salgado em 1945, o Partido de Representação Popular (PRP). Segundo
Luiz, o pai candidatou-se em alguns pleitos a cargos eletivos em Nova Iguaçu, por esse
partido, sem nunca ter logrado êxito.
O diálogo travado entre o pai e o filho, trazido por Luiz, pode contribuir para elucidar
o pensamento de Mario Scapin:
Tem uma passagem interessante, do papai, comigo, sobre a Maçonaria. Um dia eu
chego todo feliz (…) pai, eu quero te comunicar uma coisa. O quê que foi? Eu fui
convidado para ingressar na Maçonaria (batendo a mão na testa) botou a mão assim,
sabe? Abaixou a cabeça, que ele tinha este hábito. Como é que você vai fazer uma
coisa dessa? Mas a Maçonaria é perigosa, filho. Perigosa em qual sentido, pai? Não,
que eu tive um cunhado, que era maçom, e mataram ele. Dizem que quando um
maçom pratica um ato ilegal ou indevido no mundo aqui fora, eles viram o quadro
da pessoa... esse negócio de quadro é palavra dele... pode crer que aquele vai morrer
e ele morreu mesmo. (LUIZ SCAPIN, 2013)
Os mitos, símbolos e rituais ajudam a criar um clima de mistério, o que pode colaborar
com a intenção de pertencimento a algo que confere distinção e que causa a sensação de
exclusividade (GINZBURG, 1989). Além disto, as vantagens obtidas pelas relações de
compadrio, de irmandade, estão presentes em muitos gêneros de associação, onde os membros
se protegem mutuamente e prestam todo tipo de assistência através de favores em cadeia,
criando o sentido de corporativismo. A saudação característica dos integralistas, Anauê, quer
dizer ―somos irmãos‖, em língua tupi, também é uma demonstração do funcionamento desse
tipo de rede de relacionamento, onde os objetivos individuais são alcançados com a
colaboração mútua entre seus membros que possuem fortes laços derivados da ritualização de
suas atuações (LOMNITZ, 2009).
O diagnóstico de Mata Machado31
sobre a sua geração busca compreender porque essa
geração se engajara no movimento integralista, vindo ao encontro dessa análise:
De resto faltavam-lhe cultura sólida, gosto de análise, capacidade crítica à maioria
dos componentes do grupo. Sua própria vida cristã se equilibrava em ―normas‖, não
se ancorava em uma estrutura de fé esclarecida. Um partido aparentemente cristão
foi suficiente para lhes dar impressão de ―vida‖, de ―ação social‖, de ―irradiação‖ do
Cristianismo. [...] Apresentava ora uma, ora outra feição. Saiu a público fantasiado
de ―defensor da ordem‖ contra o ―terror bolchevista‖; de ―protetor do operário‖
31
O diagnóstico de Edgar Godoy da Mata Machado, parte integrante do trabalho de MOTA, C. G. (1977, p. 115),
Conhecido como pensador católico da mesma escola de Jacques Maritain e Alceu Amoroso Lima, notabilizou-
se pela luta contra os regimes autoritários.
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contra as ―opressões do dinheiro‖; de ―arauto do nacionalismo‖ contra as
―pretensões imperiais‖; de ―afirmador da autoridade‖ contra os ―libertinismos
liberais‖; de ―moralizador dos costumes‖; de ―pedagogo da mocidade‖... Depois de
travestir-se tão abundante e variadamente, acabou desconhecendo-se a si próprio,
confundindo-se com as suas máscaras. (MOTA, 1977, p. 115)
Impressionaram-me os inúmeros ícones cuidadosamente expostos no escritório de
Luiz Scapin, dentre eles os cristãos, os de religiões africanas, e os santos católicos que
ladeavam uma imponente balança, símbolo da justiça.
1.1.3 Mito e geração
Ester Gomes, como Danilce Micho e Walter Vicente, também estudou na igreja da
Solidão com Aurélia. Foi das primeiras turmas da professora em Belford Roxo. Encontrei
Ester bem instalada em seu apartamento ao lado do hotel Copacabana Palace. Ela credita à
Aurélia grande parte do seu sucesso profissional, pois logo quando a capital foi transferida
para Brasília ela passou em um concurso para um órgão federal, exercendo cargos elevados.
Ester inicia o relato anunciando:
Eu me lembro que como professora acho que não vai ter nunca uma igual, porque
ela era muito interessada nos alunos, ela se envolvia demais com eles. Se a gente
tivesse alguma dificuldade, ela chamava na casa dela. Ela explicava tudo, era
maravilhosa, gente. Maravilhosa, eu amava. Tanto que toda vez que eu ia a Belford
Roxo, mesmo estando em Brasília, eu ia visitá-la, sabe? Gostava dela demais.
(ESTER GOMES, 2013)
Interessava-me suas lembranças quanto ao apelido, colocado por Aurélia, que a
acompanha até hoje nesse grupo social, se isto de alguma forma a havia afetado
negativamente. Pelo que depreendi na convivência com o grupo, eram culturalmente
utilizados os apelidos nesse período, nesta comunidade. Um dos conceitos de cultura que
utilizo neste trabalho é o que denota um sistema de concepções simbólicas, herdadas, por
meio das quais os homens se relacionam, se comunicam, se desenvolvem e perpetuam seus
conhecimentos e suas atividades. ―Portanto a totalidade das linguagens e das ações simbólicas
próprias de uma comunidade constitui sua cultura‖.32
Embora o fato dos apelidos serem
normalmente utilizados, a palavra acompanhando o nome de Ester percebi que incomodava. A
narradora explica:
32
CHARTIER (2010, p. 35). O conceito baseia-se nas concepções de Clifford Geertz.
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Porque o meu irmão, que foi aluno dela antes de mim, ele era muito loirinho, muito
magrinho, olhos verdes, assim, muito magrinho mesmo. Aí ela botou o apelido dele
de Ratinho. Ele morreu dois anos depois, ou três, porque ele era mais velho, eu fui
pro colégio e herdei esse apelido. Todo mundo só me conhecia, pra diferenciar da
outra, né? Que a outra estudava comigo também, era Ester Ratinha e Ester Gordinha.
Não era nem pelo nome dela. Que ela era rechonchudinha, a Ester Taconi. Era bem
gordinha. Era Ester Ratinha e Ester Gordinha. Até uma vez a D. Aurélia, meu pai
tinha ódio de apelido, ódio, uma vez ela ligou lá pra casa ―dá pra chamar a Ratinha
pra mim?‖ Aí papai: ―não tem ninguém aqui com esse nome‖. ―Ah papai não faz
isso, não, poxa, não to ligando, é carinhoso‖. Papai tinha raiva dela me chamar de
Ratinha. (ESTER GOMES, 2013)
Ester inicia dizendo que o irmão é que era magro e muito branco, por isso o motivo do
apelido. Mas, primeiramente, não revela que o apelido teria a ver com seu biótipo, que era e
continua sendo o mesmo. A narradora atribui o fato de ter tentado e conseguido sair de
Belford Roxo, e não querer mais voltar, à falta de recursos do lugar:
Não, porque você não tinha vida. Você não tinha um cinema, você não tinha um
teatro, você não tinha nada. Era uma vida muito sem graça, né? Eu nunca gostei,
não. Eu sempre fiz tudo... Você vê, isso é coisa muito velha, mesmo. Porque eu era
menina, eu sabia que tinha uma rua aqui chamada Belfort Roxo, eu dizia que tinha
nascido aqui. A minha rejeição a Belford Roxo é desde muitos anos. E eu digo, eu
vou pro Rio, mas pra Belford Roxo eu não volto. Ah, não volto. (ESTER GOMES,
2013)
Seu relato fala de uma ―rejeição de muitos anos‖, de nenhum outro narrador ouvi a palavra
ódio empregada em algum momento. A mitificação da professora, presente em sua fala, pode servir de
camuflagem para que não a associe ao apelido que também odeia, como diz que o pai o fazia. E ela
transpõe para o lugarejo seu sentimento de rancor, afinal esse era o lugar onde todas as pessoas que a
conheciam só a identificavam desta forma. Algumas vezes me indaguei se não seria um
anacronismo33
, uma maneira de olhar o passado com os olhos do presente, encarar o ―Ratinha‖ como
empregado indevidamente. Mas a reação de Ester evidencia o quanto as formas jocosas de nomear, de
rotular, amplamente utilizadas nesse período, podiam marcar negativamente. Embora isto, a imagem
criada por ela da professora não parece vinculá-la ao apelido, mesmo sabendo que foi Aurélia
a responsável por ele.
Justamente essa precariedade em confronto com a vontade demonstrada pela
professora em vencer esses obstáculos, a fizeram voltar a lembrar que era importante
homenagear a professora, ―pessoa espetacular‖:
Você tem que falar que tem que ter uma estátua dela lá em Belford Roxo, mas teria
que ter quando ela era viva, porque ela merecia tudo! Tudo! [...] Com aquelas
33
BLOCH (2001).
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trancinhas e tudo, em cima da cabeça. Ela fazia uma trancinha, a vida inteira ela foi
assim, ela nunca mudou, né? Nunca mudou, sempre aquela trancinha no alto da
cabeça. Pessoa espetacular mesmo. Merecia todas as homenagens, mas nunca
fizeram, né? (ESTER GOMES, 2013)
Ao sair do apartamento de Ester Gomes, tinha certeza de que o mito de Aurélia era
muito maior do que havia interpretado. A narradora ofereceu oportunidades outras de saber
sobre a vida das mulheres em Belford Roxo, também sobre o trabalho pedagógico voltado
para o ensino religioso, uma das facetas da alfabetização na igreja34
, entre outros assuntos,
mas sua maior contribuição como narradora foi poder observar o quanto a criação do mito
tolda a percepção e o julgamento.
Nesta esteira, Amilcar Fernandes é mais um a enaltecer Aurélia de modo a
dimensionar seu conhecimento e sabedoria, além de questionar o esquecimento do nome da
professora em Belford Roxo:
Então, é muito difícil pra uma pessoa só dizer quem é D. Aurélia. [...] ela era um
compêndio de sabedoria e, não só sabedoria escolar, a sabedoria humana. Ela
conhecia o ser humano, ela sabia o quanto ela podia tirar daquele ser humano para
que ele se desenvolvesse‖. [...] Agora eu pergunto [...] A memória dessa mulher
não tinha que ser cultivada eternamente? Por que esse descaso? Porque ela
não era prefeita, não foi vereadora, nem deputada? [...] E foi isso que ela
transmitiu para nós. Tudo isso. Será que é pouco? (AMILCAR FERNANDES, 2013)
Outra narradora que proporcionou entender sobre as representações e mitificações
construídas ao redor do nome ―Aurélia‖ foi a professora Sara Rozinda Martins Moura Sá dos
Passos, ela foi escolhida como narradora por ter convivido com a professora no Patronato – eu
queria saber o que Aurélia havia conservado do tempo de sua chegada à Baixada até duas
décadas à frente – e por ter entrado para uma família cujos membros mais velhos, todos,
estudaram com a professora, oportunizando saber o que permaneceu dos ensinamentos e
práticas de Aurélia nessa família, os Passos. Também por ser Sara uma pessoa sempre
interessada na história de Belford Roxo. Encontrei um material apostilado, elaborado por ela,
no Instituto do Patrimônio Histórico da Câmara Municipal de Duque de Caxias – um dos
poucos trabalhos voltados para a história do então recém-criado município, que ela elaborou
para servir de material didático nas escolas da rede municipal35
.Entrevistei-a em sua casa em
Belford Roxo, no Dia do Mestre, em 2013. O que a narrativa de Sara permite adentrar é pelo
34
Tratada aqui no capítulo III.
35
Belford Roxo emancipou-se do município de Nova Iguaçu em 03 de abril de 1990, tendo seu primeiro governo
instalado em 1993.
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caminho da criação do mito de Aurélia na comunidade do antigo distrito. As impressões
causadas em uma menina de aproximadamente dez anos, na década de 1960, dão pistas da
aura de autoridade criada ao redor da professora. Sara inicia sua entrevista logo falando da
aparência de Aurélia e daquilo que inspirava nos meninos do Patronato São Vicente, que
administrava nesse período:
Bem, eu lembro muito das tranças, ela era uma pessoa, assim, ela não era clara,
minha mãe era muito clara, ela não era uma pessoa de pele clara. E as tranças36
,
eram umas tranças para cima e eu nunca tinha visto tranças naquela grossura e
naquele modo, assim, para cima. Ela não usava maquiagem, era uma pessoa forte,
tinha busto e a mão sempre pra trás, ela estava sempre com as mãos pra trás, como
se estivesse numa posição de sentido. E uma pessoa, que o olhar... ela exalava... é
como se ela tivesse uma auréola de autoridade, mas não era autoritária, ela tinha nela
esta questão da autoridade, ela falava com autoridade. E eu conheci a Dona Aurélia
quando a minha mãe foi dar aula de canto coral no Patronato São Vicente em Nova
Iguaçu, minha mãe era professora e ela conheceu Dona Aurélia porque, naquela
época havia duas professoras, era Dona Paula, em Nova Iguaçu [lembrando as
referências no ensino da região], e a Dona Aurélia em Belford Roxo. (SARA
PASSOS, 2013)
Revendo as inúmeras fotografias, reunidas nesta pesquisa, a imagem de Aurélia com
as tranças voltadas para o alto da cabeça é a que mais se repete. Quase todos os narradores
mencionam esse penteado, que acabou ficando eternizado como sua marca. Chegou-me às
mãos, por vários entrevistados, a mesma fotografia. O que faz pensar que a própria retratada
quis ser lembrada desta forma.
36
As tranças do cabelo da professora, presas no alto da cabeça ou enroladas próximas das orelhas, são
mencionadas por praticamente todos os narradores. Tornaram-se uma marca identitária e foram usadas por
Aurélia até o fim de sua vida. Na pesquisa de Cavalari (1999, p. 14), que utiliza como fonte o acervo de Plínio
Salgado, hoje sob a guarda do Arquivo Público e Histórico do Município de Rio Claro, SP, bem como nas
fotografias pesquisadas no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro – também as constantes do livro
organizado por Sombra & Guerra (1998), publicado pelo órgão sob o título de Imagens do Sigma e na
dissertação de mestrado de Tatiana Bulhões, defendida na UFF em 2007,―Evidências esmagadoras dos seus
atos”: fotografia e imprensa na construção da imagem pública da Ação Integralista Brasileira (1932-1937) –
referentes ao movimento integralista, Carmela Patti Salgado, esposa de Plínio Salgado, mantém os cabelos
presos de maneira similar.
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Figura 01 - Aurélia (imagem mais encontrada).
Aurélia com cerca de 55 anos, quando na
direção do Patronato São Vicente.
Fonte: Coleção Aurélia Braga. CENPRE.
Sara busca, então, na memória alguém que lembrasse a aparência da professora:
Bem, então voltando, a imagem que eu tenho de Dona Aurélia é correlata de Frida
Khalo37
,né, as tranças, aquele olhar de autoridade, a boca muito marcada, não era
uma figura esguia, mas ela tinha colo de mãe, Dona Aurélia me passava que ela...
não é maternal, mas aquela pessoa que acolhe. (SARA PASSOS, 2013)
Aurélia era da mesma geração de Frida Khalo, nasceu exatamente dois anos depois
que a artista mexicana, imagino que o penteado devia ser mais encontrado no período em que
foram jovens, na década em que a professora migrou para Belford Roxo, nos anos 1930. Mas
não era um penteado comum nesta região, tendo em vista o estranhamento causado em sua
chegada. Além de Khalo, que também perpetuou o penteado, encontro mulheres militantes do
movimento integralista, como a própria Carmela Patty Salgado, esposa de Plínio Salgado,
usando as tranças no alto da cabeça (BULHÕES, 2007, 2008). Penso que a imagem comunica
uma mulher ativa, menos preocupada com sua sensualidade, prática, intelectualizada,
politizada. Já o fato de decorridos cerca de trinta anos Aurélia ainda utilizar o mesmo
37
Magdalena Carmem Frida Kahlo Calderón nasceu em Coyoacán, México, no dia 7 de julho de 1907, e é alvo
de pesquisas que interligam sua história de vida com estudos psicanalíticos, para compreender como fatos
trágicos em sua vida são sublimados em sua obra, de cores vivas, alegres e intensas. (BASTOS; RIBEIRO,
2007).
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penteado, denota outras significações. Talvez o próprio desejo de criação deste mito. A
narradora Sara traz outros indícios que podem confirmar isto:
E o que eu ficava, assim, impressionada, era como os meninos do Patronato tinham
na Dona Aurélia adoração, eles olhavam para Dona Aurélia com adoração. E olha
que ela era uma pessoa rígida, não era ríspida, ela era rígida, quando chamava a
atenção, ela usava da autoridade dela, mas não era uma coisa assim... eu não via
revolta, não via os alunos com medo dela, não via. [...] E o que eu ficava assim,
como é que pode, uma pessoa dirigir um orfanato... ela não era bonita, mas o olhar
daqueles meninos para ela não era de medo, mas era de adoração, eles adoravam ela.
E muito tempo depois, quando eu conheci a família de Álvaro, meu marido, quando
eu ouvia Mariano José dos Passos, Seu Álvaro, falarem de Dona Aurélia, era com
aquela mesma adoração[...]. Então, quando ela te olhava, era como se ela te
adentrasse, ela sabia... o meu sogro dizia assim, que ela via por dentro, que ela sabia
quando eles estavam mentindo, ela sabia quando eles estavam enganando, ela sabia
quando eles estavam usando de subterfúgios. Então ela queria o olho no olho, né, ele
tinha impressão, que se ele usasse óculos, ela não ia conseguir pegar. Então, era uma
sedução, era o poder de sedução, que ela exercia sobre eles e eu acredito muito que
era, assim, na fala, no discurso, porque ela tinha eles na mão, eu vi isso no
Patronato. Aqueles meninos, ela sabia a história de todos. (SARA PASSOS, 2013)
A narrativa de Sara traz elementos que evidenciam que, três décadas após o período
estudado, Aurélia permanecia fiel a algumas ações pedagógicas e culturais que havia
introduzido nas práticas de educação das crianças desde que chegou à Baixada Fluminense.
Meninos com comportamento mais violento, ela tinha como neutralizá-los, ou de
trazer para perto dela, porque era justamente os dois mais velhos, que tinham um
histórico de violência, é que faziam, praticamente, a segurança dela. E eles tinham
panificação, tinham banda e conserto de sapatos, porque ela não admitia que eles
ficassem à toa, tinha a aula de Português, Matemática de manhã e, à tarde, eles
tinham outra atividade. Ela não admitia que eles ficassem ―reinando‖, aquela coisa
de que mão que não trabalha é oficina do diabo? Era mais ou menos por aí. Então,
ela queria uma atividade e por isso que ela foi atrás da minha mãe, porque eles já
tinham a banda, tinham a panificação, tinham conserto de sapato, mas ela queria
mais uma atividade musical para eles. [...]Canto orfeônico, não chegou nem a ser um
coral. Não me lembro também deles terem feito nenhuma apresentação, aquilo foi
uma atividade curricular ali. Agora o que eu me lembro bem é que ela queria
músicas com uma noção de brasilidade, com uma coisa que envolvesse sentimento
de nação, por aí, porque era eu que ia buscar as músicas de Villa-Lobos para minha
mãe. (SARA PASSOS, 2013)
Nos relatos de alguns narradores, primeiros alunos na Sagrado Coração de Jesus,
aparece a convocatória da professora para que estudassem no outro turno da E.M. Prof. Paris,
sua escola municipal. Ali ela também promovia atividades extras, como o orfeão, o teatro e os
passeios, não só com fins de apresentação, mas com finalidades culturais e pedagógicas. A
ideia de uma educação integral está presente desde os seus primeiros passos em Belford Roxo
até sua atuação por várias décadas no Patronato. Pelo visto, duas, três décadas depois, Aurélia
permanecia fiel as suas práticas e crenças político-pedagógicas, aparentemente buscando no
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repertório do Maestro Villa-Lobos os ideais da Era Vargas. Quando chegou ao Patronato ela já
havia formado uma geração de cidadãos de Belford Roxo, vários deles políticos, e outras
pessoas de expressão. Já havia criado fama, como lembra Sara: ―toda vez que se falasse em
professor, figura do professor, o saber do professor, o exemplo: Dona Aurélia. Ela era, na
família do meu marido, um exemplo, assim, citado várias vezes. Até nas reuniões de política o
nome de Dona Aurélia aparecia atrelado, ou a alguma liderança ou... vinha o nome dela‖
(SARA PASSOS, 2013).
Sara Passos lembra os levantes de 1962, antes do golpe militar que instaurou no país a
ditadura, e as repercussões na Baixada Fluminense, e atribui ao que chama ―liderança
política‖ ao ―dedo‖ de Aurélia, justificando assim o fato do distrito não ter sido alvo do
―quebra-quebra‖ naquela ocasião:
À liderança política em Belford Roxo e, com certeza, o dedo de Dona Aurélia, com
certeza. É como se ela tivesse criado, assim, soldados, sabe? Porque a maneira que
eles falavam de política, não a política de hoje, não essa. Eles falavam de política e
só pode ter nascido isso de... Não foram rapazes que viraram isso, não, esta
liderança, ela alimentou ali, de pequeno. É como se ela tivesse um olho clínico,
entendeu, aqui eu tenho uma liderança, então eu vou trabalhar isso aqui, como se
fossem mesmo soldadinhos do Brasil isso aqui, é como eu vejo, porque como
justifica se quebrar a Baixada toda. Caxias foi quebrada, São João foi quebrada,
Nova Iguaçu foi quebrada, por que não aconteceu em Belford Roxo? Liderança
política! Tanto é, que Belford Roxo elegia, né, tinham dois deputados federais, tinha
três estaduais, dois estaduais, e três vereadores, num lugar pequenininho. (SARA
PASSOS, 2013)
A menina Sara aparece várias vezes na entrevista, vivamente impressionada com a
figura de Aurélia, que a seus olhos parece ter adquirido uma forma mítica:
O gabinete dela, era assim, austero, uma mesa enorme, preta. Eu fiquei com medo
de entrar ali, até porque a figura dela, em mim, causava medo, mas eu não via nos
meninos este medo, eles não, aquilo ali era tranquilo. E o próprio Patronato, ele não
tinha aquele cheiro de... que minha mãe tinha este negócio de fazer visita em
orfanato, não sei o que, e em outros orfanatos que eu ia, tinha um cheiro, não sei te
dizer, de urina, de alguma coisa, assim, passada, e eu não sentia isso no Patronato,
esta coisa, assim, que eu achava medonha. Ia porque tinha que acompanhar a minha
mãe, mas lá eu não vi, não via mesmo, em momento algum. Eu tinha medo, eu, eu
Sara, né, mas não via nos meninos isso, em momento nenhum. (SARA PASSOS,
2013)
Do gabinete austero à aparência e postura, a Aurélia retratada por Sara é essa figura
que demonstra deter o poder, principalmente pelos emblemas. Carlo Ginzburg (1989) me
auxilia a perscrutar símbolos como sinais, pistas e rastros em seu paradigma. Percebo que a
criação do mito se dá desta forma pelos sinais emblemáticos, pelos rituais, pela atmosfera de
mistérios e conhecimentos presumidos e desconhecidos aos olhos dos demais que elaboram o
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mito como algo intangível e inalcançável. Aurélia não tinha a mesma ―cor‖ da mãe de Sara,
ela não tem palavras para dizer qual a ―cor‖ da austera diretora do orfanato. A professora
passou a ser um algo cuja existência figura em outro patamar, e tem a ―cor‖ do mito.
Como no mito de Ícaro relembrado por Ginzburg, ―é perigoso saber aquilo que está no
alto‖ (GINZBURG, 1989, p. 113) diz o emblema do século XVII, o saber de Aurélia é
pressuposto. Indaguei à narradora, para buscar compreender ao que atribuía tudo aquilo que
para ela representava a professora. Perguntei-lhe então: – ―Sara, ao que você atribui esta
característica tão marcante em Aurélia, de autoridade, de pessoa líder, política, o que você
acha disto?‖. Em resposta ela me disse: - ―Bem, eu atribuo, como naquela época não tinha a
tecnologia de hoje, mas, à leitura. Ela deve ter trazido isso de bagagem no que ela leu, no que
ela foi buscar...‖ (SARA PASSOS, 2013). Compreendi que além do penteado, da postura
solene, dos mistérios talvez nunca desvendados, do gabinete, entre outros, as experiências de
Aurélia como leitora haviam contribuído muito para a criação do mito. Afinal, quem poderia
dizer o que ela realmente leu e o que reteve das leituras? Percebi, por fim, que o mito de
Aurélia como dotada de um conhecimento excepcional, acima do impensado, começou a ser
construído desde que ―aportou‖ em Belford Roxo.
Mas não somente à Sara impressionam essas características de Aurélia, entrevistei
Heloisa Bicchieri Antonio juntamente com a irmã Fernanda. A visão que tem da professora
Aurélia perpassa por vários períodos de sua vida, e sua percepção recai na admiração pela
profissional Aurélia, como líder educacional e política. Heloisa foi aluna da E.M. Prof. Paris,
lembra-a como diretora, dessa época de 1944 em diante.
Ali não tinha nada, só tinha plantação de bambuzinho, que a Dona Aurélia pegava os
bambuzinhos, pra quem estivesse na fila, fora da fila, dar com o bambuzinho nas
pernas dos alunos. A gente tinha que ficar enfileirado igual soldado, não podia sair
um milímetro da fila, que ela vinha com aquela varinha do bambuzinho nas pernas,
aí você levava aquele sustinho, porque ela exigia... de uma rigidez, né, ela tinha um
amor tremendo pelos alunos, mas exigia dos alunos rigidez de comportamento,
entendeu, de amor à Pátria, porque ela tinha... a Pátria era tudo na vida, a primeira
coisa da vida do ser humano era a pátria. [...]O que vocês hoje chamam de
cidadania, ela já pregava isso naquela época, entendeu, hoje todo mundo fala, você
tem que ensinar cidadania, ela já fazia isso naquela época, que ela tinha uma visão
da vida muito lá na frente. Então, era isso que ela exigia de todo mundo, tinha que
ser impecável. No dia de desfile militar, desfile de sete de setembro, tinha que estar
todo mundo engalanado, todo mundo limpo, todo mundo de uniforme engomado,
tinha que ser impecável. (HELOISA BICCHIERI, 2013)
O conceito de cidadania para a narradora se confunde com o sentimento patriótico.
Mas não creio que isto se deva ao fato dela não ser um profissional da área da educação.
Como Heloisa mesmo menciona, a palavra cidadania iria penetrar mais amplamente na
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educação em décadas à frente, mas parece que no senso comum está atrelada ao conjunto de
saberes e práticas relativas aos símbolos da pátria. O conceito de cidadania é mais amplo,
porque a palavra representa a conquista dos direitos civis, políticos e sociais, os direitos à
educação, à saúde e ao trabalho. A narradora, então, elege alguns comportamentos adotados
pela diretora como evidências de uma educação para cidadania imposta por atitudes
autoritárias.
Isto não quer dizer que Aurélia não lutasse pelas conquistas coletivas, pode ser que na
falta de uma percepção e de conhecimento do conceito mais apurados, os exemplos que lhe
vieram à mente foram os do senso comum, aquilo que está mais evidente e emblemático de
ser lembrado. Talvez sua próxima fala seja um exemplo melhor de cidadania e Heloisa não
tenha toda dimensão disto:
Eu me lembro disso quando eu estava no Professor Paris, se faltasse a professora, ela
ia para a sala de aula dar aula, no lugar da professora, o aluno não voltava, entendeu,
ela entrava na sala de aula e ia dar aula para aquela professora que faltava, entendeu,
ela era assim. (HELOISA BICCHIERI, 2013)
Com as evidentes mitificações, expressas principalmente na palavra ―paixão‖ e na
expressão ―acreditava piamente‖, o crédito depositado à professora pelo grupo social é
fortalecido pela fala da narradora. E sua percepção de que a professora poderia estar errada de
acordo com os parâmetros da educação de hoje, mas para o período não, parece acertada:
...o que eu mais me lembro da Dona Aurélia é a parte da educação […] os pais de
alunos das escolas que Dona Aurélia dirigia tinham paixão pela Dona Aurélia. Eles
entregavam os filhos à Dona Aurélia. O que Dona Aurélia decidisse, os filhos
podiam até... naquele momento a Dona Aurélia podia estar até errada, hoje, na
educação de hoje, isto seria errado, mas a família acreditava piamente no que ela
fizesse, porque eles sabiam que o que ela fizesse era o melhor para os filhos,
entendeu, eu me lembro da Dona Aurélia nesta parte. (HELOISA BICCHIERI,
2013)
Ao que a narradora se refere é que o ideário com o qual Aurélia se pautava no
trabalho, no grupo social que passou a pertencer em 1935, não vinha de encontro às
expectativas do grupo, ao contrário, ele parecia se adequar muito bem.
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1.1.4 Vozes silenciadas
Estava entrevistando os ex-alunos de Aurélia que fazem parte ainda da mesma rede de
sociabilidade, pessoas que de alguma forma ficaram marcadas, que participaram da
constituição do CENPRE, quando senti a necessidade de constituir uma amostra mais variada
de narradores, de modo a obter diferentes pontos de vista que favorecessem o
entrecruzamento das narrativas, seguindo as recomendações de Shopes (2001). Precisava de
um narrador que não tivesse dado continuidade aos estudos depois de passar pela professora.
A entrevista com Cícero Rodrigues aconteceu em sua casa, que se localiza no mesmo
lugar onde Aurélia espreitava-o de longe, jogando bola no campinho de areia fina, no começo
da Estrada da Solidão. Ele iniciou contando onde havia estudado com a professora, o lugar
onde ficava a sala de aula e quanto sua mãe pagava pelos seus estudos na escola Sagrado
Coração de Jesus: ―um cruzeiro‖, enfatizava. O sacrifício da mãe como lavadeira, lavando e
passando as roupas de famílias moradoras na capital federal e enfrentando o trem, ―de pau‖, e
os bondes mais baratos, o ―Taioba‖, juntamente com ele para levar e trazer as trouxas de
roupa, o fez relembrar uma época em que:
Aí mamãe arrumou um emprego na casa de família lá no Largo de São Francisco, aí
me levou, me levou pra lá, tá entendendo? Mas eu não estava acostumado com
brinquedo nenhum, nem porcaria nenhuma, aí o filho lá do patrão, do dono do
apartamento né, tinha bicicleta, tinha velocípede, este negócio todo, eu cheguei e
tomei tudo dele, aí ficou tudo comigo. Ele queria brincar eu digo, não, agora é
comigo mesmo, batia no filho dele, tá entendendo? Aí o galego lá disse, ó, filho de
empregada bateu em filho de patrão, não pode mais ficar, pode embora, aí
mandaram mamãe embora, está entendendo? Aí, mamãe dizia assim, tudo por sua
causa, tá vendo, ele me mandou embora por causa de você. Eu não estava
acostumado a ver aquilo, não tinha nada daquilo. Isto aqui ó, os braços, tudo em
carne viva, porque eu não sabia andar de bicicleta, como é que eu ia andar? Então eu
andava no apartamento, ao lado do apartamento, então eu tinha que andar roçando
na parede e ficava tudo em carne viva... ah, fui moleque de infância né... (CÍCERO
RODRIGUES, 2014)
Cícero foi ―moleque de infância‖, desta que para ele parece significar poder
experimentar esse período da vida com prerrogativas de brincar sem limites. Esse relato
trazido logo nas primeiras falas da entrevista indica como essas memórias ficaram marcadas
na vida de Cícero, embora, com seu jeito zombeteiro, aparentemente dava entender que
encarava naturalmente os vários momentos de exclusão, por suas condições sociais e raciais,
que relatava, deixando explícita a sua revolta pelas diferenças entre ele o ―filho do patrão‖.
Moysés Kuhlmann Jr. (2015) destaca que é necessário que se conheça as representações de
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infância considerando as ―crianças concretas‖, principalmente nas suas relações sociais, para
reconhecê-las como produtoras de história:
Desse ponto de vista, torna-se difícil afirmar que uma criança teve ou não teve
infância, seria melhor perguntar como é, ou como foi, sua infância. Porque
geralmente se associa o não ter infância a uma característica das pessoas pobres. [...]
O que os excluídos não têm é o que a sociedade lhes sonega. A vida, sofrida,
enquanto dura, ao menos, é algo que lhes pertence. (KUHLMANN, 2015, p. 30).
Cícero narrou muitos aspectos interessantes do trabalho da professora e sua ação como
divulgadora de cultura, como intelectual e educadora, sobre sua visão de educação, que
evidencia que se deveria manter os meninos ocupados de maneira integral, bem como
aspectos geoeconômicos de Belford Roxo, como localização de rios, granjas, o relevo, o solo,
mas principalmente trouxe a infância, o que representava ser criança nesse tempo. Foi ele
quem primeiro me falou do orfeão da E.M. Prof. Paris, uma introdução de Aurélia na cultura
local:
A escola da Dona Aurélia era fantástica, ela fazia de tudo. Então ela contratou um
coreógrafo, o senhor Otacílio, fez um teatrinho bacana pra caramba, um teatrinho
bacana pra caramba! Levava duas, três horas, mudando peça de peça. Eu, por
exemplo fazia... contracenava com a Terezinha Daher. Conhece Terezinha Daher?
Eu contracenava com a Terezinha Daher, minha parceira de teatro. [...] Ela [a colega
Julia Miranda] que passou a ser cantora. Porque ela cantava que era formidável, um
vozeirão que não era brincadeira. E era aluna da mesma sala do Sagrado Coração de
Jesus. E qualquer negócio de cantar, Dona Aurélia, é a Júlia, é a Júlia, e a Júlia era a
predileta dela. Eu me lembro dela, era irmã do Edil Miranda e irmã do Euclides
Miranda. Sr. Euclides trabalhava na Cruzeiro, na revista Cruzeiro. O Edil não sei o
que fazia, sei que trabalhava em um lugar lá. Mas ele era um tremendo puxa saco
deste pessoal da rua do meio, estes aí, filhos de (…), filhos de Zé de Lima, filhos
destes caras, só andava com estes caras, ele, em vez de andar com crioulos iguais a
ele, só andava com estes caras, tá entendendo? (CÍCERO RODRIGUES, 2014)
Em meio às lembranças sobre o orfeão, o teatro e as coreografias, da amiga Julia
Miranda, que tinha ―um vozeirão‖, Cícero fala do ―crioulo‖ que só tinha amigos na ―rua do
meio‖, a rua onde moravam os mais afortunados do lugarejo, na década de 1940. O orgulho
por sentir-se parte do orfeão perde o brilho diante dos sentimentos pelas diferenças
socioeconômicas e raciais. Ele também mostra uma Aurélia educadora além dos muros da
escola:
A Dona Aurélia não era brincadeira. Todo o santo dia a Dona Aurélia tinha que
passar por esta rua, ela morava lá fora, mas ela passava aqui para ir para a igreja,
todo dia! Mas todo dia... E a gente ficava jogando bola aqui, depois que acabava a
aula, aquele negócio todo, mais tarde, às quatro horas da tarde, a gente ficava
jogando bola no meio da rua, na rua, que era areia pura, aquela areia fininha, branca,
a gente ficava jogando bola aqui. Quando Dona Aurélia pintava lá no armazém do
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Joaquim da Costa Lima, ―olha Dona Aurélia lá‖ e todo mundo caía no meio do mato
(…) aí esperava ela passar (…) mas ela já viu lá de baixo, entendeu, vista boa né, ela
viu. Aí ela ia embora, não falava nada, ia pra igreja, aí a gente ficava de olho para
quando ela voltasse, ―vem ela de novo‖, aí a gente... aí tudo bem, ia pra escola de
manhã. (CÍCERO RODRIGUES, 2014)
Não precisei perguntar se lembrava de punições pelo ―mau comportamento‖. Cícero
falou de muitas, físicas, com varas de bambu fininho e réguas, ―Dona Aurélia era fogo‖,
repetia. ―Não tinha filho de Gatto, não tinha filho de José de Lima, não tinha filho de
ninguém. Sabe a lição? Tudo bem, não sabe, apanhava‖. Mas os dois ―castigos‖ que mais se
lembrava tinham a ver com duas tarefas que o mantinham sob o controle da professora, sob
essa ―vista boa‖. Controle que se estendia para além da sua sala de aula:
Bater sino na igreja, no mês de maio, ―olha, o senhor agora vai ter que bater sino na
igreja‖. E a missa começava às sete horas da noite. [A Ladainha acontecia durante
todo mês de maio]. Agora, a segunda parte do castigo que a Dona Aurélia me deu,
sabe qual foi? De eu ter que estudar das sete às onze no Sagrado Coração de Jesus e
de meio dia às quatro na Professor Paris, então eu fiquei amarrado de pé e mão,
estudava das sete às onze aqui, onze horas eu vinha almoçar, almoçava e ia pegar
meio dia no Professor Paris. [...] Eu ia pra lá para ficar de braços cruzados na
carteira, só, mais nada.[...]É, pra não ficar na rua, bagunçando pela rua. Este foi o
segundo castigo que ela me deu. (risos) Dona Aurélia era fogo, mas era boa gente,
boa gente...[...]graças a ela, o pouco que eu sei eu agradeço a ela. O pouco que eu sei
dá para eu viver, agradeço a ela. (CÍCERO RODRIGUES, 2014)
A ideia de que as crianças deveriam ser punidas por atos considerados errôneos era
compartilhada pelo grupo social. Alguns relatos dos narradores ratificam essa afirmação de
que Aurélia chegava a receber presentes dos pais dos seus alunos quando lhes aplicava
punições.
Cícero dá a perceber que a professora não fazia distinção entre ele e os filhos dos
brancos e abastados, ―os da rua do meio‖. Mas não consegui saber com clareza o seu
posicionamento diante do que ocorreu quando Aurélia levou o orfeão para cantar no clube do
município-sede, nos Filhos de Iguaçu:
No dia que foi apresentar este bailado, da (…) fiquei embaixo tomando chuva, que
estava chovendo, fiquei embaixo da marquise tomando chuva, esperando eles
descerem para botar no caminhão, que o caminhão que transportava a gente, o
caminhão da Prefeitura de Nova Iguaçu, entendeu, para vir embora para Belford
Roxo. [...]Não, não [explicando que não pode subir para cantar com as outras
crianças]. Fazia parte do coro e fazia parte de uma peça, junto com a Terezinha
Daher. [...]Nada, vai falar o quê? Vai falar nada... [explicando a atitude de Aurélia]
[...]Não, mas outras pessoas também foram, mas eu sobrei. É fogo né...[...]Aí, não,
aí entrava gato e sapato, quer dizer, neste teatro, mas para participar do baile dos
quarenta só sócio e branco, pessoa branca, só podia entrar branco...[...]Isso mais ou
menos em 1945, 46, por aí, 47, nesta época. (CÍCERO RODRIGUES, 2014)
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A entrevista já estava quase terminando quando o narrador lembrou a vez em que
foram se apresentar no clube de Nova Iguaçu38
, o orfeão e o teatrinho, o ―bailado‖ composto
pelos alunos da E.M. Prof. Paris, a escola que Aurélia o obrigou a frequentar. Cícero não
falava em tom queixoso, nem aparentemente seu relato trazia alguma crítica à atitude da
professora quanto ao fato de deixar que as crianças negras ficassem na marquise, na calçada,
enquanto as demais se apresentavam no interior do clube. Tanto na sede do município, como
nos distritos, nessa época era comum, na Baixada Fluminense e em outros lugares do Rio de
Janeiro também, que houvesse clubes que mantinham um aviso na porta: ―preto não entra‖.
Em Belford Roxo no Clube dos 40 isso também acontecia. No Clube Belford Roxo é que
podia entrar ―gato e sapato‖, ele inclusive. Quando lhe perguntei diretamente sobre a atitude
da professora, ele mesmo a inocentou: ―nada, vai falar o quê?‖. Mas se Aurélia levou as
crianças negras, ela não devia saber dessa restrição? Ou não imaginou que fosse valer para
suas crianças?
A realidade sociocultural da infância, portanto, se mostra mais complexa do que o
determinismo psicológico, por vezes, faz parecer. Observando o relato de Cícero, percebe-se o
quanto as diferenças de classe implicam em ―ao menos três modelos de infância convivendo
ao mesmo tempo‖ (KUHLMANN, 2015, p. 21). Dentro de um mesmo pequeno território
convivem diferentes ―infâncias‖, é o que o narrador relata e se ressente. Mas, mesmo assim,
ele reafirma que teve infância porque usufruiu da rua, da socialização que esta propicia, e do
brincar que independia dos brinquedos comprados ou, no seu caso, tomados a contragosto.
Ele narrou, ainda, sobre os banhos de rio, sobre os ovos da granja do Dr. Farrula,
abandonados pelos perus nas moitas de capim limão ao longo da Estrada Retiro da Imprensa,
das laranjas e outras frutas que cresciam sem a supervisão dos donos dos quintais.
Cícero apresenta a infância marcada, e interditada, pelas exclusões raciais e
socioeconômicas. Ao mesmo tempo em que desfrutava da liberdade da rua e dos futebóis de
várzea em Belford Roxo, faltava-lhe o reconhecimento de que, como criança, tinha direito ao
tratamento igualitário. Ele mostra Aurélia preocupada em dar-lhe ocupação, não deixar que
―reine‖ sozinho. Pelas ações da professora, descritas por Cícero, parece que a escola para ela
tinha um papel de educadora integral, com funções intra e extramuros, e deveria oferecer
38
A Vila de Maxambomba recebeu oficialmente o nome de "Nova Iguassú" através da Lei 1.331, de 9 de
novembro de 1916. Passou a chamar-se Nova Iguaçu a partir da Reforma Ortográfica de 1943. ―Há diferentes
conceitos e delimitações sobre o que é a Baixada Fluminense, ainda que exista entre os especialistas o
consenso de que Nova Iguaçu e Duque de Caxias são núcleos desta região que tem um passado histórico
comum, sendo satélites os municípios de Belford Roxo, São João de Meriti, Nilópolis, Mesquita, Queimados e
Japeri (SIMÕES, apud DIAS, 2012, p. 45). A designação ―Baixada Fluminense‖ já era utilizada no período em
foco, demarcando aspectos geográficos dessa região.
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oportunidades de aprendizagens para além dos conteúdos formais. A escola deveria cuidar e
educar a infância, não somente instruí-la. Entretanto, percebi em seu discurso uma certa
conivência ou omissão da professora em relação à exclusão, por sua rede social, de uma parte
dos alunos, talvez fruto da impotência, ou ela tinha outra forma de lidar com as exclusões as
quais se submetiam as crianças?
Após aprovado no curso primário, Cícero passou no rigoroso exame de admissão para
o Ginásio Leopoldo, em Nova Iguaçu, que era subsidiado pela prefeitura, mas pago pela
maioria. Sua mãe não pode arcar com as mensalidades e ele teve que ir trabalhar em uma
gráfica no Rio de Janeiro, integrando a massa de trabalhadores mal assalariados que seguia no
trem para a capital todos os dias. Após a entrevista ele me levou para mostrar-me seu tesouro:
na laje da casa, eu fotografei suas inúmeras estantes improvisadas de livros e apostilas.
Também me exibiu com orgulho o único diploma que teve em sua vida, o do curso primário,
assinado pela então diretora Aurélia de Souza Braga.
Diferentemente de Cícero, Amilcar Fernandes foi dos alunos presentes na vida de
Aurélia por muitos anos. Ele conta que quando já adulto ela mandava-lhe recado, que ele
fosse vê-la. Ele obedecia, como fazia na infância. Faz questão de mostrar que foi um bom
aluno, inclusive trouxe uma prova sua para comprovar isto, como colaboração para a
pesquisa. O conjunto de provas do ano de 1939 foi elaborado e corrigido pela professora. A
entrevista ele fez questão que acontecesse na casa do amigo Walter. Ofereci ir a sua casa, ou
marcar na biblioteca que leva o nome de Aurélia e que fica em frente à casa do amigo, mas
respeitei o lugar que preferiu.
Em sua narrativa encontro novamente Julia Miranda, a mesma citada por Cícero, só
que desta vez Júlia é quem era a discriminada.
Eu não sei se posso contar uma historinha, posso? Antigamente, hoje eu não vejo
mais isso. Antigamente havia, periodicamente, uma avaliação de todas as escolas
municipais, era época da ditadura Vargas [...]. Então, havia uma avaliação e essa
avaliação era apresentada para os outros em Nova Iguaçu, que era o centro, e
geralmente era no Cine Verde, onde tinha o maior espaço, onde tinha mais lugares. E
D. Aurélia levou alguns alunos, entre aqueles alunos, eu era um deles. Mas tinha
uma pessoa que era cotada de uma forma especial, então, na apresentação dentro de
Nova Iguaçu havia uma certa barreira com o pessoal de Belford Roxo. Inclusive
ouvi várias vezes dizer ―você vai voltar pra taba?‖ [...] É, sapos do brejo, todas essas
coisas. Então, por representação de vários alunos de várias escolas públicas, aí
chegou a vez de Belford Roxo. [...] Então, na hora, D. Aurélia apresentou uma
menina que se chamava Julia Miranda. Aí nós vimos o preconceito e a arrogância de
determinado povo, porque uma criança era negra e feia. Mas ela que era a
representante do Colégio Professor Paris de Belford Roxo. Então, eles não podiam
ter feito o que fizeram, porque a vontade deles era vaiar, mas como não podia vaiar,
fizeram um murmuro ―hmmmhmmm‖, aí a Julia foi se apresentar, ela olhou pra nós
e nós falamos pra ela ―você é melhor do que eles todos‖, porque isso revoltava a
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gente, até hoje me revolta (lacrimejando). Então, lá ela disse ―não, eu vou cantar. O
quê? Eu vou cantar!‖ Eu não me lembro quem era o autor, só me lembro um pedaço
da música e ela cantou ―meu Brasil, para aumentar a sua glória‖39
(cantando), sei que
no meio dessa música ela canta ―lá no alto engastado o corcovado, vê-se o Cristo
redentor‖(cantando). Ah, quando ela soltou aquele vozeirão, cantando dessa forma
que abriu o braço como o Cristo Redentor, aquele público todo que tinha
murmurado, levantou pra aplaudir. Ela foi considerada a melhor de todas e ela foi
desenvolvida por D. Aurélia. ( 2013).
Amilcar não é negro, tem olhos azuis profundos, mas identifica-se com a amiga,
provavelmente por empatia, porque compartilha também do sentimento de ser discriminado
por residir em lugar menos valorizado, lugar de índio, insinuado pelo colega de Nova Iguaçu.
Dessa forma, as experiências trazidas por Amilcar e Cícero, ratificam que as condições e
representações sociais, de raça e etnia, de classe, e lugar de origem determinam as diferentes
maneiras de vivenciar o universo infantil em uma mesma cultura. Isto indica que não existe,
portanto, a infância enquanto categoria universal, e nem a infância no singular, mas diferentes
vivências do ser criança (KUHLMANN, 2015).
Ainda tateando pistas, foi por acaso que pude entrevistar um dos ―meninos da luz‖,
Jorge da Luz perdeu a memória, segundo ele mesmo, por causa dos maus tratos. Entrevistei-o
em seu local de trabalho, no Colégio Leopoldo, quando fui encontrar o narrador Paulo de
Tarso Machado, e onde, pode-se dizer, Aurélia o deixou, pois foi por sua interseção que ele
pode estudar no Ginásio Leopoldo e tornar-se seu funcionário. Ele ficou feliz porque eu usava
uma câmera, e em alguns momentos senti que tinha, ainda, alguma esperança de que a
entrevista, através da divulgação de sua imagem, pudesse ajudá-lo a encontrar sua primeira
família, principalmente sua mãe biológica. A princípio eu não consegui enxergar como um
narrador que não trazia nenhuma referência sobre o período da Era Vargas, no qual a pesquisa
se situava, poderia contribuir, mas entrevistei Jorge da Luz pela curiosidade de descobrir a
pessoa que Aurélia se tornou muitos anos à frente, quando foi sua diretora no Patronato São
Vicente, de 1960 a 1985.
A escola onde trabalha Jorge da Luz é hoje um patrimônio do município de Nova
Iguaçu, a linha sucessória do Ginásio Leopoldo passou do tio para os sobrinhos, como conta
seu atual diretor, Paulo de Tarso Machado: ―Meu tio [Leopoldo Machado] faleceu em 57, foi
quando nós assumimos a direção do colégio, nós não estávamos na direção, aí, quando nós
assumimos, assumiu o irmão mais velho, o Ney, e eu assumi em 73‖ (PAULO DE TARSO
MACHADO, 2013). A fala do narrador evidencia que ouviu muitas histórias dos membros de
sua família, sobre o descarrilamento do trem dos integralistas, sobre a política de Nova Iguaçu
39
A referência é a música de Vicente Celestino ―Terra virgem‖, de teor nacionalista.
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e outras do município. Por isso reafirma sua crença na história que é passada oralmente.
―Então, a tradição que eu estou reportando aqui é a tradição oral, válida em História, e é o
depoimento das pessoas da região‖ (PAULO DE TARSO MACHADO, 2013).
Ao que o narrador chama a atenção é para a transmissão do passado que é feita de uma
geração para outra. Para Benadiba (2007) uma geração que é dona de um passado, de uma
experiência, de uma memória, é também dona de uma responsabilidade que deve estar
presente e se manifestar nos papéis assumidos durante a vida. Segundo a autora, os pais,
educadores e comunicadores, não devem se omitir e sim agir para construir a memória das
novas gerações. Refletindo sobre o ―esquecimento‖ coletivo do passado de um grupo,
concordo que ―un pueblo ‗olvida‘ cuando la generación possedora del pasado no lo transmite
a la seguiente, o cuando ésta rechaza lo que recebió o cesa de transmitirlo a su vez, lo que
viene a ser lo mismo‖40
. A transmissão oral do passado às novas gerações torna-se assim
fundamental para a fixação da identidade e perpetuação do grupo.
A experiência com a transmissão do passado iguaçuano parece ter construído também
no narrador a responsabilidade de transmitir as histórias das quais participou. O contato direto
com a professora Aurélia aconteceu no ano seguinte em que o narrador assumiu a direção do
Ginásio, isto é, em 1974:
Dona Aurélia, eu só passei a ter contato com ela como diretora de abrigo. [...] Certa
feita, aqui do bairro de Morro Agudo, ele recebeu muitas crianças, porque havia um
abrigo, Vivenda da Luz, que a polícia estourou o abrigo e viu que haviam crianças
bonitas, bem arrumadas, que eram bem tratadas e haviam crianças que ficavam
presas o dia todo no abrigo e até acorrentadas aos seus beliches. Estas crianças,
algumas delas, nem documento possuíam, como é o caso de um funcionário que
tenho aqui no Leopoldo nos dias de hoje. Ele não tinha documentos e era conhecido
com Jorge, então a gente teve que registrá-lo, naquele momento, como Jorge da Luz.
E foi neste momento afetivo da Dona Aurélia, cuidando dos filhos adotados pelo
patronato é que nós conhecemos o trabalho dela. E aí, em determinado momento,
nos pediu socorro. [...] e ela pediu e nós recebemos aqui sessenta e quatro crianças
do Patronato São Vicente para cursarem... já era quinta série, não era primeiro
ginasial, mas já era quinta série do fundamental [1º grau]. E nós recebemos estes
alunos e conseguimos encaminhar a maioria, alguns hoje são militares. É uma
garotada que está aí com os seus cinquenta anos hoje. Esse é o trabalho que eu
conheci de Dona Aurélia, a dedicação no trabalho com relação ao próximo. Nesta
época contava o Patronato com quase duzentas crianças. Era um trabalho árduo. Ela
via o banho da molecada, saía tarde. Chegava cedo e saía tarde. Não sabia que ela
era de Belford Roxo não, pensei que ela era daqui.[Aurélia] tinha idade também já,
né, mas ela não possuía nenhum cacoete autoritário não. Agora, no que era do direito
da garotada, ela era muito chata, ela não abria mão. [...] O Patronato era a cara dela.
(PAULO DE TARSO MACHADO, 2013)
Paulo reporta-se ao episódio em que em um bairro de Nova Iguaçu, na década de
40
Yosef Hayim Yerushalmi, Reflexiones sobre el olvido. (apud BENADIBA, 2007, p. 9)
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1970, um abrigo de menores foi denunciado por recolher doações em nome das crianças que
mantinha, porém, a maioria sofria maus tratos. Uma pequena parte delas, somente, era
cuidada para serem mostradas à sociedade. Esse local foi fechado e as crianças levadas para o
Patronato São Vicente, dirigido pela professora. A maioria não tinha documentos, nem sabia
seus nomes de família. Aurélia conseguiu registrá-las, e todas receberam o sobrenome ―da
Luz‖, estava, então, na casa dos 65 anos. Conseguiu firmar convênio para que sessenta e
quatro dessas crianças pudessem estudar no Ginásio Leopoldo, para onde podiam ir a pé. O
narrador ainda descreve que ela fazia questão que os portões do Patronato ficassem abertos
para que meninos também pudessem brincar na praça em frente ao São Vicente e não terem a
sensação de aprisionamento. Baseado nas próprias memórias, Paulo narra assim a história do
Patronato, de Aurélia, do Ginásio, da educação em Nova Iguaçu, tradição oral que aprendeu
com os mestres, em casa.
John Kotre, em 1997, procura responder à questão: como criamos a nós mesmos
através da memória? No exercício de responder a esta indagação, o autor faz uma série de
reflexões e investigações sobre o ―lugar‖ da memória individual. Jorge da Luz fez um esforço
para rememorar o que conseguiu do abrigo clandestino chamado Vivendas da Luz, onde viveu
parte de sua infância, até ser resgatado por Aurélia juntamente com os demais meninos, e
levado para o Patronato São Vicente:
Era um abrigo clandestino. Muitas coisas que aconteciam ali, as crianças mortas
eram enterradas ali mesmo. Eles matavam as pessoas e aproveitavam a terra... [...]
Aí foram coisas difíceis que ocorreram lá naquele colégio, Vivenda da Luz, por isso
que meu nome é Jorge da Luz, porque Luz é o sobrenome daquela escola. E lá foi
terrível, coisas que a gente não... existia, mas a gente não via aquelas coisas,
comidas e outras coisas mais boas né, a gente nunca via isso, era sempre maltratado,
muito mesmo, muito maltratado mesmo. Então a gente sofria muito de tortura, essas
coisas todas né, então foi o caso que eu perdi a memória da minha família. Até hoje
eu não consigo encontrá-los, por que? Porque não sei o nome deles. (JORGE DA
LUZ, 2013)
Kotre (1997) diz que a alteração radical dos estados emocionais pode causar amnésia.
Mas também explica que o medo pode tanto marcar um acontecimento na memória, quanto
apagá-lo. ―O flash que dispara num momento altamente emocional pode gravar a fogo os
detalhes em sua mente, mas pode também cegá-lo‖ (KOTRE, 1997, p.105). Jorge não sabe se
teve um sobrenome, nem lembra como e quando foi levado para o abrigo no qual sofreu maus
tratos. Suas memórias parecem apagadas, e, embora tenha hoje um emprego, uma família, ele
ainda deseja recuperar uma parte da sua história, suas origens e, talvez, uma outra identidade.
Pensei nas pesquisas (auto)biográficas, no quanto a superação dos obstáculos para
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recuperação de uma memória individual pode conduzir à reconstrução de uma memória
coletiva. No quanto isto pode ser também libertador para uma comunidade. Eurídice
Figueiredo (2013) lembra Le Goff, que trata do quão importante é a memória coletiva no jogo
de poder: ―os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores destes mecanismos de
manipulação da memória coletiva‖41
.
O ―menino da luz‖ e sua amnésia podem ser aqui tomados também como uma
metáfora para o abandono da infância, principalmente dos negros na Baixada Fluminense, e
para esses mecanismos de manipulação. Contar sua história é restabelecer uma verdade sobre
o passado. ―Ao fazer isso, porém, não têm a pretensão científica de atingir uma verdade
‗autêntica‘ – o que é uma impossibilidade epistemológica -, mas, como acentuou Jeanne
Marie Gagnebin, postular ‗uma ética da ação presente‘‖ (FIGUEIREDO, 2013, p.149-150).
As ações de Aurélia em relação aos ―meninos da luz‖ foram descritas principalmente
pelo narrador Paulo de Tarso Machado, mas as relações da professora com os meninos é o que
Jorge explica. Porém, suas impressões aparecem toldadas pelas admoestações. Jorge confirma
com suas palavras o quanto é necessário proteger as memórias da infância:
A Dona Aurélia conversava muito com a gente, ela reunia a gente, conversava com a
gente, ela era uma pessoa muito boa mesmo. Ela estava sempre do lado da gente.
Quando uma pessoa fazia uma coisa errada com a gente, ela sempre...protegia... A
gente era bem tratado, agora, o erro eram aquelas pessoas já maiores que queriam se
aproveitar da gente...[...] Sempre vigilante [Aurélia]. Mesmo no quartel, eu morava
no Patronato ainda. (JORGE DA LUZ, 2013)
Entrevistar Jorge da Luz foi um aprendizado e uma confirmação da importância da
recuperação da memória individual para a memória coletiva. Uma justificativa para o
proceder de pesquisas biográficas. Para mim, um incentivo ao trabalho que estava realizando.
Mas o silenciamento das vozes infantis e juvenis não apareceu apenas nesses relatos
sobre as questões raciais e sociais. Uma outra forma de alijar e silenciar a infância e a
juventude também se dava no interior das famílias, com as mulheres. Essas, como os negros e
os mais pobres, também sofreram outras formas de alijamento e discriminação, segundo os
narradores.
O contato com a família de Aurélia não foi tão fácil. As quatro sobrinhas, e herdeiras,
filhas do irmão Vicente não moram mais em Belford Roxo. Após a morte de Aurélia em 1995
os vínculos com o município se afrouxaram, quase se perderam. Vanda Braga, Vanilce Braga,
41
LE GOFF (apud FIGUEIREDO, 2013, p. 149).
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81
e a sobrinha neta Maria Amélia, filha de Vanda, moram em Copacabana42
. Foi no apartamento
de Vanilce que as encontrei. Voltava nesse momento as atenções para a vida da família na
região de Campos, pois esse era um dos pontos mais obscuros da história de vida de Aurélia
naquele momento. Por isso tentei focar primeiramente nesse assunto:
Vanda – Olha, a última história que nós sabemos é que eles vieram de Gargaú, mas
primeiro eles... acho que você podia contar a história de Petrópolis, que a história de
Petrópolis você sabe melhor do que eu. Senta aqui pra contar a história do meu avô,
porque aí você conta a história do meu avô, até eles irem parar lá, né. Porque esta
história de Petrópolis, eu acho que não sei muito bem não (…) (VANDA BRAGA,
2013)
Ao que Vanda se referia era à história do avô de Aurélia, Álvaro Fernandes da Costa
Braga era rico e dono da indústria Moinho de Ouro, fazendo, inclusive, parte história do
automobilismo no Brasil43
. Porém o pai de Aurélia ficou órfão tragicamente e perdeu todos os
bens. Segundo a família, o avô de Aurélia suicidou-se após a morte da esposa, ficando todos
os filhos sob a tutela de um tio ―desembargador‖, que lhes suprimiu toda herança. Segundo os
relatos de Vanilce, o avô e as irmãs chegaram a estudar em bons colégios internos em
Petrópolis. Também me contaram do parentesco com um conhecido dirigente esportivo.
Necessitei de algum tempo para me fazer compreender. Não era questão de colocar o
foco nas histórias de sucesso financeiro e notoriedade da família. Interessava, naquele
momento, saber porque os Souza Braga haviam saído da região de Campos, e principalmente
sobre esse tempo de formação de Aurélia como mulher e professora, suas experiências
anteriores à Baixada Fluminense. Intrigava-me como Aurélia havia conseguido adquirir
habilidades de escrita e oralidade discursiva, de organização burocrática, pedagógica, de
leitura, de cultura formal, de edição de periódico, e principalmente de liderança. É Vanilce
quem comenta: ―Aí eu não sei o que aconteceu, porque o meu avô foi parar em Campos,
Gargaú, né, com a fabriqueta, a minha tia casou [irmã do avô], né...‖ (VANILCE BRAGA,
2013).
Sobre a formação escolar de Aurélia, havia apenas conjecturas.
Vanilce – Eu não sei, isso nós não sabemos. Ela, talvez, tenha ido a uma escola, eu
até creio Vanda, mas a maior parte da educação, eu acredito que foi meu avô que
deu, porque ele era muito paciente, muito doente, muito paciente. [...]Era o tipo de
pessoa, assim, calma, e eu acho que ele passou isso, ele estudava com ela. Como a
42
A sobrinha Vanira participou da entrevista coletiva e Vania eu não pude entrevistar.
43
Para a história do primeiro automóvel no Rio de Janeiro, com fins comerciais, ver: MELO, Victor A. O
automóvel, o automobilismo e a modernidade no Brasil (1891-1908). Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v.
30, n. 1, p. 187-203, set. 2008.
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gente estudava à noite com a tia, não tinha o que fazer[...]
Vanda – Eu não sei como que a tia tirava estas ideias, eu não sei mesmo, como ela
desenvolveu tanto assim, de onde ela tirou esta cultura, esta, este... não sei... que não
tinha acesso! Que acesso? Não tinha dinheiro, não podia ir a lugar nenhum e nem
tinha lugar nenhum para a gente ir. (VANILCE BRAGA; VANDA BRAGA, 2013)
Sobre a história da constituição da família, avô, avó e os filhos.
Vanda – A minha história, do meu avô, eu soube que eles não eram casados há
pouco tempo. (…) Eu sei que eu achei uma certidão de casamento, mas escrito em
um papel, assim, entendeu? Mas, quando eles nasceram, ela não era casada com ele.
E isso era feio, né? (VANDA BRAGA, 2013)
Se sabiam de alguma desilusão amorosa que pudesse ter feito com que Aurélia não se
casasse.
Vanda – Isso não podia falar, isso não falava e a gente não podia perguntar estas
coisas, a gente nem se atrevia a perguntar. É sim, a minha mãe que falava de vez em
quando, soltava alguma coisa, mas, assim, mas eu não sei não, quem sabe (…) não
lembro. (VANDA BRAGA, 2013)
Sobre a formação de Aurélia, se achavam que era devido apenas à participação do avô.
Vanda – Não sei, meu avô era muito parado. Eu não sei como, porque vinte anos era
muito... a moça não podia fazer nada. Eu com vinte anos não podia fazer nada,
imagine a tia com vinte anos? Entendeu, tudo era muito feio, muito... não podia nem
se falar, né, acho que foi isso. Passa tudo rápido. (VANDA BRAGA, 2013)
Aventei a possibilidade de alguém mais da família ter contribuído em sua formação.
Talvez a ―tia Corina‖.
Vanda – Não, Tia Corina casou, ela era casada. A irmã dela mais nova, por parte de
mãe, uma foi ser freira lá em Santa Catarina, tia Alzira. E tia Anita casou-se também.
As duas eram do primeiro casamento da minha avó [Aurélia tinha duas irmãs por
parte da mãe]. Os irmãos do meu avô, Irma era casada, tia Dudu era casada, tudo era
casada, cada um saiu para um lado e o meu avô, com certeza, foi para Gargaú. Tem
esta avó do Kléber [Tia Corina, irmã do avô]. Não sei onde que eles moravam, só sei
que ela separou, houve alguma confusão lá e ela veio morar com a gente, entendeu,
houve alguma confusão e ela veio morar com a gente... (VANDA BRAGA, 2013)
As respostas evidenciam como as sobrinhas sofreram interdição no conhecimento das
memórias da família. Pouco sabiam, portanto, sobre a formação de Aurélia para o magistério,
sobre sua formação cultural e como teria adquirido a capacidade de ter iniciativas de
liderança. De concreto, entendi que em Gargaú a família era muito pobre, que diretamente
suas tias não haviam contribuído para sua formação. Talvez, Ermelinda – ―Tia Catuta‖ –
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pudesse de alguma forma ter influenciado a formação de Aurélia, porque antes de morar em
Belford Roxo trabalhava em atelier de modista francesa na rua do Ouvidor, na capital federal.
A entrevista com as mulheres da família Braga contrariava não só as expectativas por
saber mais sobre o passado de Aurélia na região de Campos, mas também as relativas às
conquistas femininas. Se a professora conquistara alguns direitos e habilidades, como eu já
podia constatar, esperava que outros fossem alcançados pelas próximas gerações. A reflexão
de Conway, Bourque e Scott (2000), entretanto, permite compreender uma ruptura ocorrida
neste sentido. Eles explicam que, em 1935, Margaret Mead, no livro resultante de suas
pesquisas intitulado Sex and Temperament in Three Primitive Societies, havia introduzido na
análise social o conceito de que o gênero era uma construção social e não biológica. Porém,
nos anos 1940-50, os pontos de vista baseados no biológico dominavam de tal maneira os
estudos sobre os comportamentos dos homens e das mulheres, que as observações que
aparecem no estudo de Mead ficaram relegadas, como se pertencessem a uma escola das
ciências sociais já ultrapassada. Os autores ainda observam que:
En 1962, cuando se encontraban en preparación los ensayos para el número de
primavera 1964 de Daedalus, ―The Woman in America‖, Talcott Parsons era el
teórico social cuyo punto de vista sobre la familia y los papeles de los hombres y las
mujeres en las sociedades modernas moldeaba el discurso convencional. Los tres
ensayos suyos en el volumen Family, Socialization, and Interaction Process,1
escritos a comienzos de los años cincuenta, se basaban en la visión muy común
entonces de la modernización, que sostenía que los papeles de género tienen un
fundamento biológico y que el proceso de modernización había logrado racionalizar
la asignación de estos papeles. (CONWAY; BOURQUE; SCOTT, 2000, p. 2)
Argumentando que os papéis de gênero têm uma base biológica e que o processo de
modernização tinha conseguido racionalizar a atribuição de cada um desses papéis, a visão
parsoniana evidenciava um recrudescimento de algumas conquistas femininas da década
anterior a de 1940. Conformando a mulher às funções tradicionais e coadjuvantes, como
estavam postas no discurso convencional. Aurélia para as sobrinhas assumia também outros
papéis, segundo Vanda Roberto Braga (2013): ―protegia muito a gente de pai, né, meu pai
brigava muito com a gente e ela sempre protegendo‖. E ainda:
A gente nem sabia quem era quem que era a gente, que a gente se perdia muito,
porque nada podia, né? Se você pensasse, ah, eu vou estudar isso, moça não faz,
entendeu, vou ser costureira, Deus me livre! A gente não escolhia as coisas,
escolhiam pra gente. A gente só tinha aquilo. O que a moça fazia? (VANDA
BRAGA, 2013)
As quatro sobrinhas de Aurélia nasceram entre as décadas de 1940-50, em Belford
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Roxo, periferia da capital federal do país e evidenciam não terem conseguido desfrutar de
autonomia para a escolha da profissão. Tornaram-se professoras, por imposição da família,
segundo o que depreendi do relato, principalmente, de Vanda Braga.
1.1.5 Professoras ao espelho
A entrevista com Danilce Soares Micho aconteceu em sua casa, em Nova Iguaçu. Ela
foi das primeiras turmas da Escola Sagrado Coração de Jesus, entre 1937 e 1939, no tempo
em que funcionava na Igreja da Solidão. Foi colega de Walter, por muitos anos, também no
curso ginasial do Leopoldo, por isso ela quis que ele acompanhasse a entrevista. Danilce foi
professora, mas não havia se formado em curso regular, cursou Contabilidade à noite, também
no Ginásio Leopoldo, único secundário que existia no município-sede. Ela explica como se
iniciou no magistério:
Eu me tornei professora porque... eu não tinha pai, a minha mãe era viúva, mas a
gente não tinha uma pensão, não tinha nada, então nós começamos a trabalhar muito
cedo, e então, eu consegui fazer a prova pra prefeitura, a minha irmã, também, mais
velha um pouquinho, a Maria Eunice, pena não estar com a cabeça muito boa, que
ela tinha mais coisa pra te contar do que eu, porque ela foi secretária de educação
daqui. Foi em Nova Iguaçu, mas morava em Belford Roxo, né. (…) mas aí, foi um
tempo... mais adiantada, não tinha assim mais... No tempo dela ela fazia o que
queria e todo mundo adorava ela. (DANILCE MICHO, 2012)
Danilce foi professora por necessidade, sua formação se deu pela imitação de seus
professores, e Aurélia certamente foi um dos principais referenciais. É poeta, tendo algumas
poesias dedicadas à escola da sua infância e à Aurélia. Publicou três livros de poesia, com o
financiamento dos filhos, por ocasião de seus aniversários. Como descreve, não elegeu ser
professora, era o que se apresentava em sua época como meio de subsistência, uma
profissionalização, comum à sua condição de mulher desse período. Como ela, outras tantas
no país e fora dele:
Al realizar miradas a la inevitable dimensión estructural y de forma comparativa,
confirmamos el hecho de que el magistério a nível mudial comparte coincidências
estructurales. E neste sentido es una carrera considerada como semiprofesión por
diversos autores de la literatura educativa, pues coincide com el hecho de que al
igual que otras ―semiprofesiones‖ como la enfermeria, el trabajo social y el trabajo
em bibliotecas (especialmente em Europa), sean ―feminizados‖ (LÓPEZ, 2014, p.
49).
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A narradora lecionou na E. M. Leôncio de Carvalho e também foi professora no G.E.
Prof. Paris, segundo Eliane Barcelos, sua ex-aluna por quatro anos, era ―muito meiga‖, tinha
uma atitude sempre amável e carinhosa com os alunos. Mas não seguiu por muito tempo no
magistério. No lugar de esposa e mãe, Danilce não necessitava mais, financeiramente,
conciliar dar aulas e constituir uma carreira profissional. Como elogiava o resultado do
trabalho da professora Aurélia e dizia que ―todo mundo adorava ela‖, indaguei-lhe se não quis
ser igual à professora, no tratamento com as crianças. Aliás, necessitei indagar diretamente
muitas vezes, pois a ex-professora, de 84 anos, falava pouco.
Não, na minha época também não podia mais ser assim, né, e eu também não era
não, eu sempre fui mais calminha, sou calma, nem com meus filhos eu fui muito...
eu era exigente, exigia deles que estudasse, que fossem educados, mas também
sempre fui calma. (DANILCE MICHO, 2012)
Danilce nunca precisou ouvir nenhum ―gritinho‖ da professora Aurélia, que para ela
aparentemente vivia um grande paradoxo entre ser ―adorada‖, “porque os filhos saíam dali, na
série que fosse sabendo mesmo, né, ela fazia questão que a pessoa saísse sabendo‖ e nem
tanto porque ―só não aprendia mesmo quem não tinha condição, quem não tinha cabeça, mas
ela era muito enérgica, ninguém brincava...‖. Com Danilce, Aurélia não precisou ser enérgica,
ela nem precisou ser punida. Foi sempre aluna aplicada e obediente, a descendente de
políticos iguaçuanos, da família Soares.
O ingresso no magistério na região, na década de 1940 aparece na fala de Danilce, e, é
possível compreender a importância do exemplo na formação desse professorado, tendo em
vista que não existia uma escola pública de formação. Aprender pela imitação a ser professor
ou professora era o caminho que se apresentava nesses tempos em que a instituição escolar se
expandia, mas ainda não existiam escolas Normais em número suficiente para dar conta dessa
necessidade em todo estado do Rio de Janeiro.
- E como era, assim, pra entrar para o magistério, naquela época?
Danilce – Eu, por exemplo, fiz uma prova no... na educação... na repartição da
educação, aí eu fui, fiz a prova, aí passei, né.
- Você lembra em que ano?
Danilce – Eu tinha 16 anos, nasci em 28 (…) 44, né.
- Então, em 1944 ainda não tinha Escola Normal em Nova Iguaçu?
Danilce – Não tinha. Só no Rio, e assim mesmo era o Instituto de Educação e depois
fundaram a Carmela Dutra, né, então tinha pouca...
- Mas a própria Aurélia eu acho que não era formada em professora?
Danilce – A Aurélia não era formada em professora, a Dona Aurélia era campista.
- E lá em Campos, você sabe alguma coisa dela?
Danilce – Não sei não...
- Ela nunca falou nada...
Danilce – Não (…) só sabia que ela era campista. (DANILCE MICHO, 2012)
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Pelo depreendido da fala da narradora Danilce Micho e das práticas de Aurélia, pela
sua própria formação e a de outras alunas-professoras, o modelo artesanal ainda vigorou nesta
região por muitas décadas, além das mencionadas por Villela (2003). A cultura de uma
formação pela prática aparece em muitos momentos dos relatos de vários narradores, que se
recordavam dos colegas mais velhos, ex-alunos da professora Aurélia, como monitores em
sua sala de aula, tanto na Escola da Solidão, a Sagrado Coração de Jesus, como na E.M. Prof.
Paris. Danilce formou-se pela imitação principalmente da professora Aurélia. Mas, selecionou
o que imitar, não deixando que a memória da professora se apague, através de seus poemas e
de suas recordações.
Danilce – Era boa professora, era boa pessoa, era carinhosa com quem obedecia,
muito legal.
- Com quem obedecia, ela...
Danilce – Era boa, muito boa. Pra mim, eu sou uma fã dela.
- Você era?
Danilce – Sou. Sou até hoje. Tá na memória né... (DANILCE MICHO, 2012)
Outra professora que aprendeu o ofício com Aurélia foi Fernanda Bicchieri Soares,
que conviveu mais proximamente a ela nas extremidades, em sua infância e adolescência, e
depois na maturidade44
. Mas creio que foi nessa última fase que elas se tornaram mais amigas,
até confidentes, pode-se dizer. A entrevista foi gravada com Fernanda muito enferma, em
2013, a casa estava sendo preparada para receber o seu aparelho de diálise peritoneal. Sua
memória estava muito afetada como decorrência da doença que a debilitava em todos os
sentidos. Talvez por essa debilidade, suas lembranças sobre a vida da professora recaíam em
momentos da infância quando Aurélia para ela fazia o duplo papel de professora e mãe45
substituta. Ouvindo os narradores é possível identificar em alguns momentos esse duplo
papel, desempenhado, portanto, não só com Fernanda que tinha realmente também um duplo
papel para a professora. Além de tornar-se madrinha de várias outras meninas no mesmo
período – Cícero também menciona isto: ―e ela tinha um monte de garota lá, tudo afilhada
dela, que ela tinha batizado, mas elas também entravam no pau, não tinha este negócio a
professora‖ (CÍCERO RODRIGUES, 2014) – também desempenhava no povoado, ainda
muito rural, outras atividades junto aos alunos, que iam além da sua sala de aula, das suas
funções de professora (LÓPEZ, 2001).
Com Fernanda Bicchieri, as funções desempenhadas por Aurélia seguiram até a sua
44
Nas duas fases iniciais eu não havia nascido, e quando minha mãe a visitava, na fase final da sua vida, eu já
tinha a minha própria, por isso eu não convivi com a professora. 45
Mãe-professora é uma categoria de análise utilizada por López, em vários trabalhos sobre professoras rurais.
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preparação para o trabalho. Ela foi sua monitora, Aurélia lhe pagava para dar aulas
particulares às sobrinhas e ajudar nas classes. Também a colocou para dar aulas numa escola
fundada pelo diretório do Partido Social Democrático (PSD) local, onde orientava e
supervisionava o seu trabalho, quando a menina Fernanda completou seus 14 anos, em 1951.
Mas foi no final de sua vida que Aurélia lhe fez confidências. Quando no início da entrevista
eu mostrei à Fernanda o caderno de Aurélia, integrante do acervo CENPRE, ela leu e associou
o texto copiado pela professora a essas confidências.
(Lendo o caderno) ―A vida é um mar sem praia, até onde apenas nossos
pensamentos (…) o mar levou o próprio homem. O coração é como uma ferida
aberta‖. Ela tinha uma paixão recolhida por aquele... aqueles dois irmãos, o... por
último ela falava comigo, juiz...[...] Não, a paixão dela era Eliezer. [...] (lendo o
caderno) ―só o ignorante é intolerante‖. [...]Então, ela disse que, uma vez, ele foi lá
para se abrir com ela, né. E eles tinham aquele romance, que antigamente existia
isso, um romance bem... era um romance... romance mesmo, né. Era como se fosse
um... [...] Platônico.[...] Aí ela contava, né, que ele ia às escondidas lá pra vê-la, mas
ela não dava esperança a ele, porque ela tinha muito medo do pai. O pai era um
castrador, né... Entendeu? (FERNANDA BICCHIERI, 2013)
Então observei e verbalizei para ela: - Você tinha alguma intimidade com ela...
Ah, tinha, o que ela não falava para os outros, ela falava pra mim. Eu também tinha
um orgulho danado, quando ela chegava nas portas das salas de aula e dizia para os
alunos: Fernanda é a minha primeira afilhada de batismo, ela é minha primeira.
Falava aquilo, entendeu, e eu ficava, assim, sem graça, porque as crianças me
olhavam meio ciumentas, né, mas, ao mesmo tempo eu gostava, eu gostava...
(FERNANDA BICCHIERI, 2013)
Embora iniciasse sua narrativa pelas lembranças do final da vida da professora,
Fernanda retornava à infância e ao papel de filha. A debilidade do seu corpo a tornava mais
dependente de outras pessoas, nisto ela se confundia com a criança que teve seis irmãos. Nas
pesquisas de López (2001) sobre as professoras de escolas rurais do Vale do Mezquital, no
México, a figura da professora aparece como substituta da mãe pela falta de conhecimento
dessas sobre as questões de higiene, de educação e saúde. Madre-maestra é para essa
pesquisadora uma categoria importante de análise e que pode sinalizar vários matizes e
funções desempenhadas nessa relação professor-aluno. As razões que justificam a
mobilização de Aurélia para o exercício desse papel de mãe neste grupo social, parece que
estão mais ligadas ao afeto. As proles eram bem maiores e as mulheres se ocupavam
dividindo as atenções entre gravidezes, partos e filhos pequenos. Fernanda também observa
que os pais dos alunos: ―ia[m] à escola para pedir à D. Aurélia que desse o castigo ao filho,
porque ele andou fazendo isso, aquilo. Em vez da minha madrinha chamar os pais na escola,
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eles é que iam na escola pedir ajuda a ela‖. (FERNANDA BICCHIERI, 2013)
No arquivo privado de Fernanda Bicchieri, em meio ao acervo do CENPRE, encontrei
seus registros em um trabalho terapêutico ao qual se submeteu, na década de 1990. Um dos
exercícios se consistia em escrever sobre seu pai e sua mãe, características positivas e
negativas. Também incluía páginas para os registros dos pais e mães substitutos. Neles
constava o nome de Aurélia, como mãe substituta. Ela aprendeu, primeiramente, por imitação
da professora a profissão docente, pois somente em finais dos anos sessenta fez o curso
Normal. Como Aurélia, fundou uma escola, participou de movimentos coletivos em prol de
Belford Roxo, e ao longo de sua vida profissional, compreendeu o espaço da profissão
docente como um espaço de ação política, e como espaço de conquistas femininas46
.
1.1.6 Formação e memória
Ir a Gargaú era naquele momento o único caminho que vislumbrava para buscar saber
sobre a formação de Aurélia e os possíveis motivos da migração da família, sua vida anterior a
Belford Roxo. Como as suas sobrinhas não formaram vínculos com o local de origem do
grupo familiar, busquei, na localidade, por referências antigas. Encontrei um grupo de dança
típica, chamado Mana-Chica de Gargaú, existente desde o século XIX. O trabalho do grupo
aglutina o fado português com a dança de roda de origem africana. Foi por intermédio de
Amaro Vancredo da Silva (Amarinho) e Jean Marcos da Silva Barbosa, participantes e
descendentes do grupo fundador, que pude reunir um considerável número de pessoas na
praça em frente ao Barracão de Gargaú47
, que juntas ajudaram a chegar até Edson Martins48
,
diretor de cultura da Secretaria Municipal de Educação e Cultura de São Francisco do
Itabapoana, atual município sede de Gargaú. Mas, principalmente, esses gargauenses me
fizeram entender que o memorialista mais importante do lugar era Mário Menezes49
, que
46
Fernanda Bicchieri só aceitou o convite para frequentar o Rotary Club de Belford Roxo quando as mulheres
puderam participar do seu quadro dirigente. Foi rapidamente eleita presidente. 47
Construído em 1902 para abrigar a Feira de Gargaú, melhor detalhada no segundo capítulo desta tese.
48
Entrevistei Edson Martins, Jean e Amarinho neste mesmo dia, porém foram entrevistas de cunho jornalístico,
onde o interesse era fazer um primeiro contato com as informações sobre a história do grupo e de Gargaú. Não
havendo tempo para uma preparação prévia e criteriosa na recolha das narrativas, não os considerei como
narradores, mas colaboradores. Martins também disponibilizou à pesquisa dois textos, frutos de seu interesse
sobre a história de Gargaú e da Feira de Gargaú, que servem de fontes desta pesquisa.
49
As informações sobre o processo de escolarização de Gargaú, o memorialista reuniu no livro cujo título é São
Francisco do Itabapoana, editado por sua iniciativa em 1987.
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trabalhou por 43 anos no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e conseguiu
reunir em dois livros e vários manuscritos o muito de suas pesquisas, fruto do seu interesse
pela história da região do Norte Fluminense. Com a ajuda de um pescador cheguei a Nelson
Barreto Menezes, irmão de Mário, ainda morador de Gargaú. De sua casa, entrei em contato
com o memorialista, que, desde os tempos de Ginásio, é morador de Campos. Foi em seu
apartamento no centro de Campos dos Goytacazes que entrevistei Mário Barreto Menezes,
que em breve completaria 90 anos. Mario lembrava-se de Aurélia, ele contava quase 10 anos
quando a família Braga partiu.
Sobre o processo de escolarização na localidade de Gargaú, o memorialista reuniu
informações desde o século XIX até aproximadamente a década de 1970, lembrou Mário que o
povoado era servido apenas por um professor ou professora que iam se sucedendo até 1938, quando
foi criada a primeira escola. Esses pioneiros professores eram contratados pelo estado do Rio de
Janeiro, ministravam suas aulas em casa. Mário calculou que pela idade de Aurélia, e porque moravam
próximas na mesma rua do Comércio, ela deve ter estudado:
Mais provavelmente com a Dona Cotinha, eu tenho o nome dela aí no livro50
, era de
uma família aqui de Campos [...], o esposo dela chamava-se ―Seu‖ Nilo Valentim
Tavares. Ele era de Conceição de Macabu e ela era de Campos, casou-se com ele e
migraram lá pra Gargaú. Ele foi comerciante, chegou a ser prefeito do município de
São João da Barra. [...]Não havia o Ginásio. Eu estudei o Ginásio aqui, no Colégio
Batista, vim em 3751
. (MÁRIO MENEZES, 2014)
Maria Luiza de Aguiar Tavares, apelidada de D. Cotinha, era a professora que nesse
tempo de Aurélia de aprendizagem das primeiras letras lecionava em Gargaú. Foi quem
provavelmente serviu de exemplo à Aurélia. Mário não se lembra de Aurélia como professora
em Gargaú, ele próprio teve como professora a sucessora de D. Cotinha, Maria Rita Tavares, a
D. Princesa, já em 1932. Mas nota-se que essas professoras exerciam um papel importante e
único na localidade, desfrutando de um bom prestígio social, foram referências.
Pelas características atribuídas à Aurélia, busquei traços de sua formação ao entrevistar
suas sobrinhas. Vanda, Vanilce e Maria Amélia também procuraram demonstrar as diferenças
entre sua vida profissional e a familiar, sempre lembrando que em família Aurélia ―era muito
doce‖ e também como com o tempo a professora muda suas atitudes. Mas parece que
continuava valorizando certos aspectos da educação que a formara, como a boa caligrafia. Os
―traços de pessoa exigente‖ permaneceram, pelos relatos, até o final de sua vida. A sobrinha
50
MENEZES (1987, p.179).
51
Por este relato, fica claro que não havia curso ginasial em Gargaú, ainda por muitos anos à frente, ratificando a
falta de oportunidades para Aurélia estudar.
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neta é quem conta:
Maria Amélia – É aquele negócio, quando você pega uma pessoa mais velha, é a
mesma coisa que vocês falam do vovô, eu já não peguei esta fase...
Vanda – Mais austera, assim?
Maria Amélia – É, mais dura da pessoa, não peguei, porque mais velha, você vai
ficando sempre mais flexível, mas ela tinha sim, traços de pessoa exigente, tipo, às
vezes eu não fazia o dever na casa da vovó, porque se eu sentasse... a minha letra
sempre foi horrorosa, diferente da delas, que todo mundo tem aquela letra bonita de
professora, redonda... minha letra sempre foi horrorosa, fiz quinhentos anos de
caligrafia e continua sendo horrorosa. Hoje em dia nem escrevo mais, hoje em dia é
tudo digitado e tal... Aí a Tia Aurélia olhava aquela letra assim, eu acho que a minha
letra fazia mal pra ela, olhava assim, ―corta o t direitinho, corta‖ (risos), você via que
ela ficava incomodada daquilo. (MARIA AMÉLIA BRAGA; VANDA BRAGA,
2013)
Sobre se ainda mantinha o hábito de ler ao final de sua vida, houve divergência entre
as três:
Vanda – Não. [...] Ela gostava muito era de televisão. Mas televisão, né, gostava
muito de se alimentar, comia bem, mas, não lia mais não, nunca vi a tia ler.
Maria Amélia – Eu lembro do vovô lendo.
Vanda – Meu pai lia livro espírita, mas tia eu não me lembro de um livro na mão,
nunca me lembro.
Vanilce – Ela comprava muito livro.
Vanda – Comprava livro, mas você via ela lendo?
Vanilce – Lia.
Maria Amélia – Ela não lia naquele lugar onde tinha o piano, não?[...]
Vanilce – Tinha a coleção de Plínio Salgado, ela lia tudo. [...] É, ela tinha a coleção.
Vanda – Eu não me lembro desta parte. [...] Do Plínio Salgado? Eu sei que a gente
se desfez agora, porque ainda estava lá em casa, né? [...] É. Nós mandamos, acho,
que para o centro, aqui (…).
Vanilce – Ela tinha a coleção, ela lia, ela tinha Machado de Assis, ela tinha Jorge
Amado, ela lia tudo.
Maria Amélia – Tinha coleções, tinha várias coleções.
Vanda – Mais recente, né? (…) que Vanilce não saiu de casa, eu já saí, né? Aí
Vanilce lembra mais do que eu. [...] É, porque Vanilce ficou dentro de casa, eu não,
eu já saí, eu e Vânia saímos. [...] Não me recordo de tia fazendo coisas, assim... não
me recordo. [...] Não me lembro, nós juntamos, não sei quem levou, não sei para
quem foi. Por que, você estava interessada? Ficou toda a vida aqui aquela coleção
[do Plínio Salgado], que ficou muito tempo guardada e ficou, assim, muito sujo, né,
então não tinha mais condição da gente ler aquelas coisas, não tinha nem condição
de guardar isso, estava muito sujo, de velho. Aí, não sei quem levou. [...] Foi, até
agora. Agora que tivemos que nos desfazer dela. (VANDA; BRAGA; VANILCE
BRAGA; MARIA AMÉLIA BRAGA, 2013)
Se lia ou não, não se chegou ao acordo, as lembranças da família mostraram-se
conflitantes, mas, ao final, Vanda admitiu que havia muitos livros na biblioteca de Aurélia,
inclusive a coleção de Plínio Salgado, muito antiga, por sinal, e que foi doada após a morte da
mãe, nesse ano de 2013. A leitura, e ações autodidatas, me pareceu uma via de formação
plausível no caso de Aurélia. Entretanto, pela entrevista de Mário Menezes não foi possível
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saber exatamente sobre uma possível formação como professora em algum núcleo integralista
da região, mas a possibilidade também não foi descartada.
Para o Ginásio Leopoldo iam os alunos da professora Aurélia, depois de concluírem o
antigo curso primário. Falar das memórias da educação de Nova Iguaçu significa passar pelo
seu primeiro Ginásio, então, procurei o narrador Paulo de Tarso Machado de Barros, sobrinho
do fundador Leopoldo Machado, porque sabia que guardava um bom acervo desde a fundação
da escola e pensei que, como interessado em história, filho e irmão de historiadores, poderia
contribuir com elementos novos sobre a região e sobre a professora Aurélia. Entrevistei
Paulinho do Leopoldo, como é conhecido e gosta de ser chamado, no próprio local de
trabalho. Primeiramente pedi-lhe que contasse a história da chegada do professor Leopoldo no
município-sede, para buscar possíveis interseções com a história da professora, que chegou,
em outra parte do mesmo município, na mesma década.
É, Leopoldo Machado é um baiano de Sepa Forte, autodidata, que vai a Salvador, se
destaca em Salvador, depois é convidado para ir para o Colégio Nacional do Rio de
Janeiro, por uma amizade feita entre Manel Quintão e o Almirante Paim Pamplona,
proprietário do Colégio Nacional, e ele chega ao Rio, trabalha com o Almirante,
depois vai inaugurar uma filial do Colégio Nacional em Paraíba do Sul. E em
Paraíba do Sul, em 27, ele inaugura esta filial, lá ele também inaugura a terceira
escola Normal do estado do Rio de Janeiro, a primeira daquela região e é convidado
pelo Coronel Alberto Melo, que já tinha seus filhos educados por ele lá no Colégio
Nacional e era prefeito de Nova Iguaçu, e o Coronel Alberto Melo convida o Sr.
Leopoldo para se instalar no município. E ele aqui chega em 30, e chega em um
período conturbado, porque Leopoldo era cem por cento contra ditaduras. Então, um
fato curiosíssimo de Leopoldo, que, certa feita, trouxeram uma foto do Getúlio
Vargas, para ser colocada na secretaria e ele disse que não colocava fotos de
ditadores na sua escola. E o inspetor, na época Inspetoria Seccional, era inspetor do
Ministério da Educação, disse, mas professor, então vamos fechar a sua escola, ele
disse, não tem problema, pode fechar a escola, mas retrato da ditadura eu não
coloco. E, dentro de sua filosofia, eminentemente democrática, o Leopoldo se
contrapõe a movimentos, como a ditadura de Vargas, como o movimento
integralista, que as atitudes de Plínio, muito embora se fale em república, as atitudes
que eles explanavam nas rádios eram altamente ditatoriais [autoritárias].
[Leopoldo]Sofreu represálias, também por causa da religião, ele era espírita
kardecista. Então, são vários momentos do Leopoldo, indivíduo, como é que vou
dizer, um indivíduo polêmico, sempre polêmico, ele vai ter momentos muito
complicados no município nestas três frentes, quer dizer, ele se coloca contra Vargas,
contra a intentona comunista e contra o movimento integralista. (PAULO DE
TARSO MACHADO, 2013)
Pelas palavras do narrador, o professor Leopoldo Machado também não havia tido
uma educação formal, era autodidata, referendado até pelo nome rememorado do lugar de
nascimento, ―saber forte‖. Depreendo que não era diplomado, da mesma forma que a
professora Aurélia. E talvez, da mesma maneira, veio de uma outra região e adquiriu na
Baixada Fluminense respeito e consideração pelo que exercia e representava, não por sua
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formação acadêmica. Prestigiado pelas administrações públicas, o Ginásio foi subvencionado
pela prefeitura por muitos anos. Além de exercer a direção, o professor também era um líder
espiritual kardecista52
.
Por várias vezes, em sua entrevista, outro narrador, Amilcar Fernandes, lamentou o
esquecimento, das novas gerações, à memória da região e de Aurélia, do que ela representou
para a educação e a cultura do lugarejo, principalmente o fato de não ser lembrada com o
nome de uma escola. ―Mas, no decorrer desses anos todos, eu vejo hoje que D. Aurélia foi
injustiçada. Pela envergadura dela, pela qualidade dela como pessoa, como mestra, ela não é
lembrada como devia. Onde eu passo aí pelos arredores, eu vejo algumas escolas [com]
nome[s] de algumas pessoas estranhas à educação‖ (AMILCAR FERNANDES, 2013). Para
Mignot53
, os nomes dados às escolas devem ser compreendidos dentro de suas significações
para uma dada sociedade. O que Amilcar talvez esteja evidenciando é que as introduções
feitas pela professora nesta comunidade não perduraram pelas gerações à frente.
Apesar de só ter cursado até o ginasial, no Ginásio Leopoldo, Amilcar Fernandes
trabalhou na maior indústria de Belford Roxo, uma empresa alemã de grande porte, onde
chegou a ocupar cargos de chefia. Autodidata e livre pensador, o narrador reflete que viver em
―um quadrado, é estar morto‖, sobre a falta de horizontes, também sobre a memória, pessoal e
coletiva, e sobre os patrimônios da memória.
Bem, tem dois tipos de memória, a memória que eu tenho e a memória de um país,
de um fato, de uma religião. Pra mim, todos dois são ótimos. E tinha que ter, tem
que ter. Você quer ver uma coisa, vou te dar um exemplo. Aqui, quem vai subindo a
Rio-Petrópolis, tem uma Igreja do Pilar. No tempo em que eu era garoto, papai
botava a gente na carroceria do caminhão e levava pras festas lá. Era um colosso
aquela festa. Você passa hoje lá, tá tudo caindo aos pedaços. Conservaram a
memória? Aquilo é uma memória, tinha que ser conservado. Vê aqui no Iguaçu
Velho, na fazenda São Bernardino, tá lá caindo as paredes. Cadê? Foi destruído,
jogado às traças. Cadê a memória? [...] minha memória tá boa, tá sadia ainda, dá pra
lembrar até lá. Agora, e essa que o povo futuro precisaria conhecimento, ver e saber.
Porque aqui (mostrando a testa) o que você vê é diferente daquilo que você pensa.
(AMILCAR FERNANDES, 2013)
Pensei, nesse momento em que Amilcar falava, em Pierre Nora (1993) que questiona a
importância da memória para a história, celebrando a identificação do ato e do sentido.
―Desde que haja rastro, distância, mediação, não estamos mais dentro da verdadeira memória,
52
Sua memória ainda é cultuada nas memórias dos narradores como um professor dotado de grande saber e
elevada espiritualidade.
53
MIGNOT (1993, 2015). Na década de 1970, Aurélia chegou a ter seu nome dado a uma pequena escola, em
um bairro conhecido como violento e afastado do centro de Belford Roxo, porém, quando o prédio muito
precário foi abandonado e outra escola foi construída, outro nome, de família de político foi dado a essa escola.
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mas dentro da história‖ (1993, p.8-9). As memórias evocadas pelas lembranças do tempo de
infância dos alunos e dos que conviveram no grupo social da professora são passíveis agora
de entrarem para historiografia da região, mas enquanto memórias não seriam tão ou mais
valiosas? Neste sentido, nessas narrativas orais, as informações relatadas além dos temas da
investigação não são como adornos, como um simples acessório, mas sim como o próprio
quadro de vida, o contexto, onde as narrativas foram engendradas (COSTA, 2008). Comparto
também da visão merleaupontyana, de que uma história narrada pode expressar o mundo com
tamanha profundidade quanto um tratado filosófico.
Partindo das narrativas, para escrever sua história necessitava saber mais sobre a
formação da professora, sua vida anterior a Belford Roxo, e que território educacional e
político era esse no qual se circunscrevia na década de 1930. Para isto, teria que recorrer à
historiografia, ao que havia registrado sobre a vida das pessoas de modo geral, às fontes
documentais, para inferir sobre o que os narradores não sabiam especificamente. Ainda me
perguntava se nessas suas condições de vida, no norte do estado, era possível que tivesse tido
contato com a doutrina integralista a ponto de adotar suas orientações, principalmente para
saber até que ponto isso poderia interferir em suas ações pedagógicas. Que expressão teve
esse movimento no estado do Rio de Janeiro, território de onde a professora nunca saiu? Qual
era o cenário político da região de Campos antes da migração da família para a Baixada? Qual
o cenário da Educação neste território fluminense? O que era a região da Baixada Fluminense
para a qual migrou? Eu me perguntava qual era o quadro da profissão docente que a
professora abraçou nesse período? Mas, finalmente, a questão que perpassava por todas as
demais e não devia ser relegada: o que podia, como mulher, Aurélia aspirar naquele
momento?
Se acho que as entrevistas auxiliaram alguns dos narradores a olharem para o passado
de outra maneira, talvez de forma a compreendê-lo melhor, e que isto possa tê-los ajudado a
ter melhores lembranças? Se há realmente uma ―vocação terapêutica‖ na história oral? É
difícil saber. Mas, com seus relatos, pude reconstruir os caminhos de Aurélia de Souza Braga
nos seus anos iniciais em Belford Roxo.
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Figura 02 - Mapa ―Caminhos de Aurélia‖.
Fonte: Construção desta pesquisa, pelos relatos dos narradores
54
54
Figuram as diferentes localizações das residências da professora, bem como a relação com as distâncias da
Solidão, das escolas, da estação ferroviária, e da localização do núcleo integralista.
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2 DESVELANDO RECÔNDITOS DO TERRITÓRIO
– Pai, por que a gente veio morar aqui no mangue?
– Porque, quando viemos do interior foi aqui que encontramos a nossa terra
da promissão, o nosso paraíso – responde Zé Luiz com uma voz tranquila.
– Paraíso dos caranguejos – acrescenta em tom de revolta a mãe de João
Paulo.
Mas o menino volta à carga:
– Mas por que aqui no mangue, por que não fomos morar na cidade do outro
lado do mangue? Lá é tão bonito, tão diferente, é como se fosse um outro
mundo.
– Foi o destino, João Paulo, que nos trouxe aqui.
– Lá do outro lado é o paraíso dos ricos, aqui é o paraíso dos pobres – diz-
lhe a mãe fitando-o bem dentro dos olhos.
Josué Castro
O que era Aurélia, afinal, senão a condensação do que viveu em seu passado?55
Como
ela pensava, enquanto estabelecida em Belford Roxo, poderia revelar uma pequena parte
desse passado, mas foi com ele, seu passado, inteiro que desejou, quis, agiu. Uma parte tênue,
apenas, de tudo que havia vivido antes é que tornou-se sua representação. Voltar no tempo
faz-se por isto necessário para encontrá-la em sua formação, entender porque Aurélia
guardava silêncios sobre esse período de sua vida, e para indagar: o que levou Aurélia a tão
intensa participação política? Por que a educação foi seu espaço de lutas e conquistas? O que
a formou, enfim?
Conduzo o olhar para a vida de Aurélia de Souza Braga e deparo-me com sua luta pela
ampliação do capital social de seu grupo. De acordo com o conceito de Bourdieu (1987), o
espaço social seria um campo de disputas entre os agentes sociais e individuais, no qual
elaboram estratégias para melhorar sua posição nessa escalada. Este é um caminho que esteve
delineado desde as primeiras indagações desta pesquisa, observações que estiveram presentes
em quase todos os momentos das entrevistas, no contato com as fontes orais, verbalizadas,
55
Sobre essa visão ver BERGSON (2011, p. 48). ―É certo que pensamos apenas com uma pequena parte do
nosso passado; mas é com nosso passado inteiro, [...] que desejamos, queremos, agimos. Nosso passado, pois,
manifesta-se-nos integralmente por seu ímpeto e na forma de tendência, embora apenas uma tênue parte dele se
torne representação‖.
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insinuadas, sinalizadas sutil ou explicitamente. Tratar de sua história de vida sem adentrar por
seu exercício para elevação do capital social é quase impossível. Sua vida foi travada na
esfera de busca por ampliação e de conquistas nos âmbitos civis, políticos e sociais.
Encontrou a educação como trabalho e seu lugar de triunfo, como espaço de acesso a algum
poder. Antes mesmo de assumir a bandeira nacionalista, fazendo de sua sala de aula um palco
de valorização da nação brasileira, Aurélia se circunscrevia no território do estado do Rio de
Janeiro, e nele viveu, trabalhou e morreu. Foi cidadã fluminense desde sempre, e para sempre,
assim quis ser lembrada.
O passado campista de Aurélia não foi esclarecido por ela ou pela família, sempre que
contava sua história iniciava pela chegada à Solidão, tornando-se sua vida anterior uma zona
de opacidade e silêncio (DARNTON, 1996). Faria 26 anos no dia 13 de julho desse ano de
1935. Moça feita, já chegou com fama de ―boa professora‖. Mas, para quem e onde havia
lecionado? Por que tão rapidamente se juntou ao novo grupo social cujos primeiros nomes,
que cita em seu esboço autobiográfico, as suas famílias admitem a relação com o integralismo
de Plínio Salgado? Até mesmo suas sobrinhas relatam que não ouviram de Aurélia ou do seu
pai, Vicente, menção sobre esse período. O pouco que ainda sabem foi graças à mãe, Adir
Roberto Braga, cunhada de Aurélia, que também não tinha muitas informações sobre essa
época da vida da família, pois pertencia ao tempo deles em Belford Roxo. De acordo com as
fontes documentais recolhidas nesta pesquisa, havia na região de Campos muitos núcleos
integralistas e escolas ligadas a eles. Escondia, pois, a família, o fato de sua formação como
professora ter-se dado no cotidiano de alguma dessas escolas na região de Campos?
Figura 03 - Aurélia em Gargaú. Aurélia, na faixa
etária de 25 anos. Vê-se a Lagoa do Comércio.
Fonte: Coleção Aurélia Braga. CENPRE.
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Em meio ao manguezal, na trilha dos caranguejeiros, viveram a menina e a moça
Aurélia. Cresceu em um povoado distante da opulência da região central no município de
Campos dos Goytacazes, principal cidade do Norte deste estado, em um lugar no litoral do
município de São João da Barra chamado Gargaú56
, à época um povoado no qual a economia
era dependente de uma feira cujo apogeu e declínio marcaram a vida de seus habitantes e da
professora. Mas esse não era assunto de conversas na família, muito menos entre as novas
amizades. A quem lhe perguntasse, dizia que era de Campos, e assim constava em seus
documentos. Em verdade, Aurélia cresceu na atmosfera daquela cidade, a qual se
referenciava, e por isso provavelmente sua cultura servia-lhe de modelo.
Nascida em 1909, seus primeiros estudos e formação se deram logo nas décadas
iniciais do século XX, período em que se consolidava o ideal republicano liberal de educação.
Além desse direito social, a educação, alguns avanços sobre os direitos das mulheres, civis e
políticos, de igualdade e voto57
, aconteceram no período, com maiores repercussões na capital
da República, onde as irmãs do pai da menina Aurélia exerciam suas atividades, como
chapeleira e costureira em um ateliê de modista francesa58
na rua do Ouvidor.
A década de 1920 em Campos foi efervescente, o município buscava construir a
imagem de cidade moderna e o aval para uma maior participação nas diretrizes políticas do
Estado do Rio de Janeiro (CARNEIRO, 1999). A inauguração do monumental Teatro Trianon
em 1921 marcava um importante momento de afirmação cultural da cidade e o espírito que
reinava, de retorno ao apogeu e opulência vividos na região no século anterior, tornava-a
palco daquilo que simbolicamente começava a representar modernidade.
Na esfera política, a cidade de Campos guardava suas semelhanças aos acontecimentos
do Distrito Federal após a Revolução de 1930, também por isso o município passou a ser um
território de disputas entre comunistas e integralistas nos anos iniciais daquela década,
chegando em 1934 ao acirramento dessa batalha que ocupou o cenário campista provocando
56
A explicação de que a família migrou de Gargaú e que sempre viveu lá veio de suas sobrinhas, não de Aurélia,
seus pais e irmãos. Gargaú hoje faz parte do município de São Francisco do Itabapoana. Dista a 50 km de São
João da Barra e a 64 km de Campos dos Goytacazes. ―A localidade é cheia de lendas a respeito de seu
surgimento e os moradores mais antigos não cansam de contar. Próxima ao delta do Rio Paraíba, a praia de
Gargaú tem uma extensa área de manguezal, que é a maior do estado do Rio de Janeiro e uma das maiores do
Brasil‖. Site: Mapa de Cultura do Estado do Rio de Janeiro.
57
Foi somente em 1932 que as mulheres obtiveram o direito de votar, o que veio a se concretizar no ano seguinte.
Isso ocorreu a partir da aprovação do Código Eleitoral de 1932, que, além dessa e de outras grandes conquistas,
instituiu a Justiça Eleitoral, que passou a regulamentar as eleições no país.
58
Sobre o assunto consulto o texto de SILVA, M. dos Santos. Costureira, Artista, Prostituta ou Cidadã?: As
Francesas no Espaço Público Carioca no Século XIX e suas Vozes Dissonantes. In: FARIA, Lia e LÔBO,
Yolanda. Vozes Femininas do Império e da República: Caminhos e Identidades (2013).
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prisões. Todas as cenas produzidas na região central do município eram retratadas nos
principais jornais da cidade, Monitor Campista, e A Folha do Commércio, que alcançavam
várias localidades de toda região campista (CARNEIRO, 1999). Formada nesse tempo, a
jovem Aurélia expunha-se a essas forças em oposição. Como reagiu a elas? Como as rechaçou
ou apropriou-se? Como lhe serviram? As serviu?
As dificuldades da vida de um pequeno produtor e comerciante de seus próprios doces
caseiros no interior fluminense, periferia de outras cidades interioranas, provavelmente
ajudaram a impulsionar as ações de formação da filha mais velha de Álvaro Lisboa Braga,
Aurélia, e forjaram seu caráter e sua personalidade. Construíram as imagens de ―boa
professora‖, ―culta‖, ―inteligente‖, ―exigente‖. Dentre os assuntos que Aurélia não comentava
era sua escolarização. Pelos relatos do narrador Mário Menezes59
existia, no período em que
deveria frequentar a escola, por volta de 1915 em diante, uma professora contratada pelo
estado para dar aulas em casa. Maria Luiza Coelho de Araújo Tavares foi nesse período a
responsável por prover apenas o ensino primário aos gargauenses, o resto da formação de
Aurélia deve ter sido realizada artesanalmente60
, observando Dona Cotinha, como era
conhecida a professora Maria Luiza.
Trazendo à baila a fala de Venâncio Filho, Mignot (2002, p. 45) ―evidencia que o
acesso ao conhecimento e ao magistério [representa] a possibilidade de intervir no mundo,
forjar um espaço relativamente autônomo, uma função emancipadora na sociedade‖. Neste
sentido, questiono se as inúmeras horas dedicadas por Álvaro61
à educação da filha poderiam
indicar mais do que a falta de escolas na região, mas uma ação deliberada em prol de sua
projeção como mulher, intelectual e política, alguém capaz de intervir e transformar?
O campista pesquisador da terra fluminense Alberto Ribeiro Lamego (1945) cunhou a
expressão O homem e o brejo, título de um de seus estudos. Nesse, as regiões de Campos dos
Goytacazes e Baixada Fluminense aparecem unidas pela mesma questão. Ambas distas
regiões são vascularizadas por rios, córregos e afluentes que com o desmatamento para
plantio da lavoura e ocupação do território acabaram por tornarem-se pântanos criadores de
mosquitos causadores de epidemias. O povoado de Gargaú, um dos maiores manguezais do
estado, até os anos 1930 funcionava como um posto de abastecimento de gêneros e outras
59
MENEZES (1987, p. 179). (Mário Menezes, 2015). Além do relato, encontro referências sobre a escolarização
em Gargaú em seu livro.
60
VILLELA, Heloisa de Oliveira (26ª. Reunião da ANPEd, 2003).
61
As netas de Álvaro Braga, sobrinhas de Aurélia, narradoras nesta pesquisa mencionam tanto na entrevista com
a família, quanto na entrevista coletiva, a dedicação do avô à Aurélia, as horas que até o final de sua vida
passava em conversas com a filha.
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necessidades para a região de São João da Barra e dos pequenos povoados ao seu redor e às
margens do rio Paraíba do Sul e do Oceano Atlântico, com o qual Gargaú também se
encontra.
Em 1902 foi construído o Barracão de Gargaú, para abrigar a Feira, que recebia os
produtores e comerciantes principalmente de farinha, mas também de milho, feijão, e tudo
que se precisasse. Gargaú foi próspera, chegando a ter de 20 a 30 pranchas, embarcações,
navegando no Paraíba do Sul, que era o principal meio de transporte das mercadorias até a
Feira de Gargaú. Justamente a falta de estradas é que impulsionou o comércio. Quando outras
possibilidades de acesso à cidade de Campos se fizeram, inaugurada rodovia, a feira começou
a declinar, pois o mercado em Campos era muito mais promissor. Outros fatores também
concorreram para o declínio da feira, o que levou a um grande êxodo do povoado ao final dos
anos 1930 (MENEZES, 1987).
Quem nasce no estado do Rio de Janeiro recebe o adjetivo fluminense, aliás, porque
flumen, do latim, significa rio. Rio é o nome do estado onde os rios abundantes ajudaram a
delimitar espaços de ocupação e criação de vilas. Embora as regiões sejam diferentes, muitos
traços e semelhanças geográficas possuem. Aurélia até seus 25 anos viveu na região de
Campos, o maior município em extensão dos 48 existentes no período neste estado. Onde
morava, ficava cerca de 64km do centro da cidade, por isso os recursos aos quais tinha acesso
eram menores e mais precários, também no que tange à escolarização. Desde a primeira
década do século XX a escola vinha ganhando espaço na cena pública, como condição para
consolidação dos ideais republicanos. A instrução primária aliava-se ao ensino agrícola e
profissional, que compreendia o ensino técnico para as profissões comerciais e industriais, era
o que se apontava como uma necessidade do estado do Rio de Janeiro, conforme os
diagnósticos explícitos nas Mensagens Presidenciais entre os anos 1900 e 191062
.
A situação da educação em todo território fluminense, de 43.696 km², até o final da
década de 1920 – na chamada República Velha, quando a professora ainda vivia ao norte do
estado – não havia atingido o esperado pelas administrações, segundo Rizzini e Schueler
(2014) e o que depreendo dos relatórios contidos na ―Mensagem apresentada a Assembléa
Legislativa no dia 1° de outubro de 1930 pelo Presidente do Estado Manuel de Mattos Duarte
Silva‖63
, ano que se inicia o governo provisório de Getúlio Vargas e, também, ano conturbado
devido aos vários interventores que assumiram o comando deste estado. A expectativa gerada
62
RIZZINI, I. SCHUELER, A. Escola primária no estado do Rio de Janeiro: expansão e transformações (1930 a
1954). R. Educ. Públ. Cuiabá, v. 23, n. 54, p. 877-896, set./dez. 2014.
63
FONTE: APERJ. Lombada: ―Mensagem do Presidente do Estado do R/J/ 1930, livro n. 423.
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nas administrações públicas do estado, de criação de um grupo escolar em cada pequena vila
ou cidade, não se confirmou tão rápido, demorou ainda várias décadas à frente para que se
tornasse realidade (RIZZINI; SCHUELER, 2014).
Segundo o citado relatório64
, até o ano de 1929 em todo território estadual havia 972
escolas – para uma população estimada de 1.559.371 pessoas65
– de diferentes naturezas de
ensino primário: ―Escolas Maternaes‖; ―Jardins de Infância‖; ―Escolas de 1º gráu‖; ―Escolas
de 2º gráu‖; ―Grupos Escolares‖; ―Escolas Modelos‖; ―Escolas Complementares‖; ―Escolas
subvencionadas diurnas‖; ―Escolas subvencionadas nocturnas‖; ―Escolas nocturnas‖; ―Cursos
annexos ás escolas profissionaes‖; cuja maioria eram as escolas de 1º grau, ou seja, 400 de
alfabetização, e ainda 353, de ―2º grau‖, em continuidade às primeiras letras. Depreendo que
essas escolas se localizavam maciçamente nas regiões centrais dos principais municípios do
estado. Dos 91.633 matriculados, um total de 74.927 concentrava-se somente na 1ª. Série.
Do total geral, o número de pessoas do sexo masculino matriculado superava em 2.659
o do sexo feminino. Ainda depreendo que o número médio de crianças por escola era menos
de 100. Esse número ainda era menor, contando o fato de que apenas 60.863 eram frequentes.
Outro indicador da situação da educação no estado em 1929 é a realidade dos prédios
escolares. À página 68 do relatório é possível verificar que dos 796 prédios utilizados pelas
escolas em todo estado apenas 47 pertenciam a ele; 17 eram cedidos gratuitamente pelos
municípios; 157 gratuitamente por particulares e os demais 574 eram alugados pelo governo
estadual.
Nesse ano, a situação dos professores acompanhava a escassez de escolas no estado,
que contava com um total de 2.007 docentes – 68 ―Directores‖; 765 ―Cathedraticos‖; 1.034
―Adjuntos‖; e 140 ―Professores subvencionados‖. Dos professores catedráticos, 537 eram
diplomados e o restante, 228, não tinha diploma. Dos adjuntos, 751 eram diplomados e os
outros 283 não eram66
. Na Escola Normal de Campos neste ano de 1929, 37 normalistas
foram formados. Em todo estado o relatório dá conta que 51 cursaram o último ano da Escola
Normal de Nictheroy. Na escola Santa Isabel de Petrópolis, diplomaram-se 30 professores. À
página 77 do relatório em pauta encontra-se o seguinte texto, ao lado da observação ―Escolas
Normais Equiparadas‖: ―Os novos institutos de Santo Antonio de Padua, Nova Friburgo,
64
FONTE: APERJ, Mensagem do Presidente do Estado/RJ, 1930, livro n. 423, página 62.
65
Conforme o Anuário Estatístico do Brasil de 1936, página 49. Esse número foi estimado pelo, então, Instituto
Nacional de Estatística, porque não houve o censo decenal de 1930. Disponível em:
http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/20/aeb_1936.pdf . Acesso em 05/06/2015.
66
FONTE: APERJ. Mensagem do Presidente do Estado/RJ, 1930, livro n. 423, p. 63.
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Miracema e Valença, que vêm collaborar com o Estado na formação do professor primario,
ainda se acham no inicio de seu funcionamento, mas já apresentam optimos resultados [...]‖.
Tendo esses institutos um total geral de 123 normalistas matriculados no 1º e 2º ano.
O próximo relatório, datado de quatro anos depois, relativo às terras fluminenses é
assinado pelo interventor, trata-se de ―Exposição feita ao Chefe do Governo Provisorio da
Republica Exmo. Sr. Dr. Getulio Vargas, pelo Interventor Federal, Capitão de Corveta Ary
Parreiras‖, também direcionado aos membros do Conselho Consultivo e ―passando em revista
os actos e factos do quatriênio revolucionário‖67
, sob o título da lombada: ―Relatório do
Interventor do Estado do R/J – 1931-1934‖, pertencente aos acervos do APERJ. O relatório
aponta uma série de medidas tomadas para melhor organização da educação no estado, e ao
que parece a tônica dessa nova administração da educação recaiu nessa organização.
Dentre as muitas medidas, a criação do Departamento de Educação e Iniciação ao
Trabalho em substituição a antiga Diretoria de Instrução, a criação do Conselho de Educação,
em 1932, e a instalação, nos últimos dias de dezembro de 1934, da 5ª. Conferência Nacional
de Educação, pelo governo sediado em Niterói, a sua capital. Relata, também, a remodelação
dos serviços de inspeção escolar. Expõe sobre a impropriedade e precariedade dos prédios
alugados pelo estado para a instalação das escolas. Além disto, como fator de conquista, a
transformação das antigas escolas masculinas e femininas em escolas mistas68
, e ainda revela
que apesar do número de alunos ser maior que o de alunas, essas são mais frequentes.
As 972 escolas primárias foram explicitadas em sua composição: 850 estaduais e 122
particulares subvencionadas pelo estado. Além disto, este relatório mais recente apresenta
também o total de escolas municipais, 603, e particulares não subvencionadas, 88. A soma
total das escolas do estado, então, chega à marca de 1.643 escolas primárias que foram
contabilizadas até o ano de 1934. Do ponto de vista da profissão docente o relatório enfatiza
as conquistas da categoria, como a concessão de ―vantagens especiaes‖ aos professores que
por cinco anos tenham trabalhado no que chama de ―zonas desservidas por meios regulares de
transporte e outros recursos‖69
. Ainda como conquista, a efetivação de professores em escolas
não requeridas por professores diplomados, pelos professores não diplomados, com mais de
dez anos no magistério e que se submetessem às provas de suficiência, entre outros. O número
total de professores estaduais também não diferiu muito em quatro anos, mas o relatório
67
FONTE: APERJ. Relatório do Interventor do Estado do R/J, 1934, livro n. 502, p. 12
68
FONTE: APERJ. Relatório do Interventor do Estado do R/J, 1934, livro n. 502, p. 15.
69
FONTE: APERJ. Relatório do Interventor do Estado do R/J, 1934, livro n. 502, p. 13.
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102
apresenta o total de 3.255 professores, porque além de incluir mais uma categoria, ―Interinos‖,
157, acrescenta o número de professores municipais, 603, e o de professores das escolas
particulares, 332. Desta forma, causa a impressão de que o número de professores aumentou.
A maneira de apresentar a situação sugere que até 1934 o quadro da educação no
estado do Rio de Janeiro diferia para melhor do que foi encontrado pelo governo provisório
após a revolução de 1930, porém, se for considerado que o aumento do número de institutos
de educação primária deveu-se aos acréscimos de escolas mantidas por outros que não o
estado isto não se confirma. Na verdade, as escolas de 1º grau encolheram, passando de 400
no relatório anterior, para 331 em 1934. Este novo relatório apresenta os números relativos ao
último ano letivo de apenas duas escolas normais, e atesta que em Niterói diplomaram-se 74 e
em Campos 40 alunos. Menciona o funcionamento de nove escolas normais equiparadas no
interior, sem informações sobre quais seriam, nem sobre o número de concluintes. A análise
desses documentos vem ao encontro da afirmação:
As iniciativas do governo Vargas na área educativa, como em outros campos, tinham
uma inspiração autoritária. O Estado tratou de organizar a educação de cima para
baixo, sem envolver uma grande mobilização da sociedade, mas sem promover
também, consistentemente, uma formação escolar totalitária, abrangendo todos os
aspectos do universo cultural. (FAUSTO, 2012, p. 188)
Por esses relatórios posso inferir que seria muito difícil para uma família não abastada,
residente na periferia, a tantos quilômetros do centro de Campos, formar uma filha em
professora numa escola Normal nesse período, tendo em vista a escassez de escolas de todos
os níveis nas periferias das cidades, as dificuldades de deslocamentos – de Gargaú, a via de
acesso à cidade de Campos era o rio Paraíba do Sul pelas embarcações de pouco calado, que
levavam até São João da Barra, onde era possível o acesso pela ferrovia – e a forma de criação
das escolas Normais, alocadas nos centros das cidades, como o Liceu de Campos. Também
não era comum que as mulheres recebessem instrução formal. De acordo com Heloisa Helena
Meirelles dos Santos (2014, p. 80), no século XIX e início do século XX, poucas eram as
mulheres que podiam instruir-se devido a divisão sexual do trabalho na família, que as
limitava aos afazeres domésticos e aos cuidados de outros membros. Se por acaso elas
conseguissem estudar, não podiam almejar cargos onde fossem superiores aos homens. As que
conseguiam fugir desta pecha, ―eram consideradas mulheres singulares, diferentes das
demais‖.
A representação de mulher culta e muito bem-educada, dotada de muitos
conhecimentos está presente nas narrativas sobre a vida de Aurélia. Por inúmeras vezes me
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103
indaguei como foi formada. Minha lógica, fruto de um tempo onde as escolas são
responsáveis praticamente por toda e qualquer formação, deparou-se com uma possibilidade,
a mim inicialmente surpreendente. Provavelmente Álvaro devia ser a pessoa, ou uma delas,
que mais escolarização e cultura letrada possuía na pequena Gargaú, tendo em vista que
Augusta, a mãe, nenhuma tinha, e por isso ele tratou de encarregar-se da educação de Aurélia,
de sua irmã, Aládia, e do irmão bem mais novo, Vicente, juntando aos seus ensinamentos,
ainda, a leitura de livros e periódicos. Se não, que outros meios teria a professora para
preparar-se para o magistério e sua irmã para o exercício da enfermagem?
2.1 Efervescência fluminense dos anos 1930-1934
As motivações da família Souza Braga para migrar da região de Campos para a
Baixada Fluminense são tateadas pelas herdeiras de Aurélia, suas sobrinhas. Atribuem à falta
de saúde do avô, Álvaro, que depreendo sofria de tuberculose, e também ao fato dele ter sido
―passado para trás‖, por um conhecido, vendedor de seus produtos na capital. O mesmo teria
levado uma quantidade de doces para o Distrito Federal e desaparecido, não remunerando
nem mesmo seus custos de produção. ―Quebrados‖, não teria restado outra alternativa à
família senão procurar ajuda dos familiares no Rio de Janeiro. Entretanto, Vanda, Vanilce e
Vanira admitem que a época na qual a família viveu ao norte do estado era motivo de tabu, ou
seja, não era um assunto falado. Pouco sabem sobre esse período, que não era alvo de
conversas de seus pais, tias e avôs, que sempre residiram muito próximos a elas. Embora
gostassem de conversar sobre o passado, eles sempre se lembravam do período em que
chegaram e residiram na Baixada Fluminense.
Pode ser que as questões de saúde e os problemas financeiros do pai, também
depreendidos das publicações, por três dias consecutivos, na Folha do Commercio – diário da
Associação Comercial de Campos dos Goytacazes – de 15, 16 e 17 de janeiro de 193370
,
comunicando a dissolução da sociedade entre Ernesto Berto e Álvaro Lisboa Braga, fossem
até suficientes para que a família fizesse a opção por deixar Gargaú, mas o narrador Mário
Menezes acrescenta mais um fator, o que mais chamou a atenção do menino Mário, em 1934:
70
FONTE: Jornal Folha do Commercio, Arquivo Público Municipal de Campos dos Goytacazes, conjunto do 1º.
Semestre de 1933.
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104
Eu não tenho muita lembrança da pessoa, fisicamente, do Álvaro Braga. Aurélia eu
lembro, porque ela namorou um cidadão que se chamava João da Rocha Teixeira.
Era filho de um casal: João Batista Teixeira e Cecília Rocha. E eu não sei porque,
depois de um namoro firme prosperar por bastante tempo foi desmanchado, ele
desmanchou o namoro com ela e casou-se imediatamente com uma filha da agente
do correio local. Logo em seguida ela saiu de Gargaú. Aurélia e seus familiares se
mudaram de Gargaú. [...] Eu era muito criança, eu tinha 9 ou 10 anos de idade, mas
a minha mãe de criação, que era uma mulata, filha de escravos, que foi criada por
minha avó – eu perdi meus pais muito novos, minha mãe morreu com 42 anos, meu
pai com 59 – mas essa pessoa, chamava-se Conceição, foi criada por minha avó
paterna, era irmã de criação de meu pai, e essa pessoa, quando meu pai se casou,
meu pai era muito doente, e ela nos acompanhou. E quando minha mãe morreu,
minha mãe tinha 7 filhos e eu era o mais velho, nos entregou nas mãos dela e pediu
que ela tomasse conta. E ela cuidou da gente até os 86 anos quando ela morreu [...]
E ela era muito amiga dessa Aurélia. Então ela relatava que o ―Velhinho‖, o João da
Rocha Teixeira, por sinal uma pessoa boníssima, era muito amigo do meu pai
também, eram contemporâneos, da mesma época. [...] noivo, eu não sei se chegaram
a noivar, mas era um namoro muito firme. Aí a minha mãe de criação comentava -
Por que Velhinho desmanchou o namoro com Aurélia? Aurélia é uma pessoa tão
boa. E eu me lembro dessa Aurélia porque ela era amiga da minha mãe de criação.
(MÁRIO MENEZES, 2015)
A imagem que o narrador Mário Menezes tem de Aurélia, provavelmente, é esta
eternizada na fotografia:
Figura 04 - Aurélia e irmãos em Gargaú. Sentada, ladeada por
Vicente e Aládia. Vê-se o Barracão de Gargaú ao fundo.
Fonte: Coleção Aurélia Braga. CENPRE.
Nesta imagem, que tem como segundo plano o Barracão de Gargaú, Aurélia aparece
visivelmente amparada pelos irmãos, provavelmente foi uma das derradeiras fotografias
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105
tiradas antes de migrarem para a Baixada. Motivos não faltavam à professora para colocar-se
no lugar daquela que necessita apoio, conforto. Num lugar onde a única rua era a que morava,
a rua do Comércio, por onde passavam os carros de boi transportando todas as mercadorias
para o Barracão e a Feira, onde moravam as pessoas mais importantes de Gargaú – onde havia
casas de pau-a-pique, porque de resto, próximo dos manguezais, somente as de palha –, ser
trocada pela filha da agente do correio local, depois de um namoro de longo tempo, não era
coisa de se passar em silêncio. Ao contrário, Mário, o menino que só queria saber de brincar,
lembra-se disto até hoje!
Assim, o declínio da saúde e financeiro do pai, econômico de Gargaú, e o namoro
desfeito de Aurélia seriam justificativas suficientes para a família deixar o povoado.
Entretanto, necessário se faz continuar buscando outras possibilidades de investigação,
esgotar todas as chances de encontrar novas nuances, porque nesse exercício é provável
conhecer ainda mais sobre a professora. Outros acontecimentos locais poderiam concorrer
para que Aurélia e a família abandonassem Gargaú?
Recorrendo à historiografia do período que antecede à migração dos Souza Braga,
enveredo pelas cenas político-econômicas do país e do estado, de Campos e de Nova Iguaçu,
então município-sede de Belford Roxo, para compreender não só os motivos dessa mudança
de região, mas a atmosfera na qual esse marco na vida da professora se passou. Boris Fausto
faz uma análise do país no período que antecede à Revolução de 1930, desde 1889, atestando
que ―as economias regionais se desenvolveram‖, e também que:
Um grande surto imigratório ocorreu no Centro-Sul, a urbanização ganhou
extraordinário ímpeto em algumas cidades. Em decorrência dessas transformações,
cresceu a classe média urbana, tomou forma o primeiro contingente de uma classe
operária, ao mesmo tempo em que a expansão do setor agroexportador e sua
crescente especialização acentuou a demarcação entre produtores, comércio
exportador e setor financeiro. Do ângulo sociopolítico, ganhou maior força e
conteúdo uma opinião pública vinculada a setores da classe média urbana, ao
mesmo tempo em que surgiu o conflito social, embora ele não estivesse no centro
dos confrontos que brotavam na sociedade. (FAUSTO, 1997, p. 20)
Do ponto de vista do estado do Rio de Janeiro, parece não haver contradições entre
esse texto com o que depreendo dos relatórios contidos na Mensagem do Presidente do Estado
do R/J71
de 1930, no que tange às preocupações com a formação de pessoas que pudessem
fazer frente às novas demandas da economia, com mais instrução e com alguma iniciação para
o trabalho. Destarte disto, regiões como Campos e Nova Iguaçu possuíam características
71
FONTE: APERJ. Mensagem do Presidente do Estado do R/J/ 1930, livro n. 423.
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106
muito rurais. O saudosismo do campista pela época de ouro do açúcar, descrito por
Carneiro72
, quando trata da cidade onde cresceu Nina Arueira, dá pistas do que foi para os
fluminenses esse período de transição entre o rural e o urbano, entre uma lavoura arcaica e
outra preparada, em novos parâmetros de exigência, para a exportação. Porém, como bem
analisa Fausto, neste mesmo estudo, as questões que estão postas são mais complexas do que
a simples dualidade entre as oligarquias rurais em contraposição aos novos grupos médios
urbanos. Afinal, o novo conserva ainda algo do velho e o velho enseja de alguma forma o
novo.
Se os anos finais do século XIX colocaram a cidade de Campos dos Goytacazes na
vanguarda do processo de ―modernização tecnológica‖ do estado e do país, pode-se
dizer que, no que diz respeito aos costumes e tradições, a cidade mantinha o
conservadorismo peculiar da aristocracia açucareira e latifundiária. (CARNEIRO,
1999, p. 13)
No alvorecer da década de 1930 a cidade de Campos foi abalada pela crise econômica
que enfrentou devido à dependência do mercado internacional na exportação do açúcar. A
revolução, ocorrida nesse ano emblemático, de certa forma tenta romper de vez com as
oligarquias, mas não apresenta ainda um modelo político alternativo. Como propostas de
solução à crise política surgem duas forças que se apresentaram em Campos, na Baixada
Fluminense e demais regiões do estado. Por um lado, o ultra nacionalismo dos integralistas e
por outro a organização comunista.
A Ação Integralista Brasileira (AIB) encontrou campo fértil na cidade de Campos, e –
menos de um ano após lançado o seu manifesto, as bases do movimento, em 7 de outubro de
1932 – em setembro de 1933, dois dos seus principais líderes nacionais, Plínio Salgado e
Gustavo Barroso73
, o líder no Estado do Rio de Janeiro, Raymundo Padilha, acompanhados
pelo escritor espírito-santense Madeira de Freitas (CARNEIRO, 1999) visitaram a cidade e
reuniram-se com diversos importantes setores da sociedade, no Liceu de Humanidades de
Campos. O discurso de Salgado encontrou muita ressonância, pois conclamava as famílias
para lutarem contra a ―revolução vermelha que iria assolar os lares, espalhando o ateísmo e
72
CARNEIRO, J. S. P. O Despertar de Nina: da disputa de memórias à construção do mito. Dissertação de
Mestrado UFF. Ano de obtenção: 1999
73
Segundo TRINDADE (1979), o movimento integralista não era homogêneo, cada um dos líderes do
movimento possuía ideias próprias que por vezes diferiam no enfoque e na ênfase. Barroso representava na
AIB as visões mais conservadoras e radicais, que depreendo mais semelhantes ao fascismo europeu. Como os
livros de Plínio Salgado eram os que pertenciam à biblioteca da professora Aurélia, penso que este lhe servia
de maior referência.
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107
desapropriando os bens das famílias campistas‖74
. O lema do movimento, Deus, Pátria,
Família, vinha ao encontro dos setores conservadores da sociedade saudosista do seu grande
apogeu canavieiro, e nisto a presença de Barroso era significativa, porque das três principais
lideranças era a que mais buscava referências no passado imperial do país.
A Revolução de 1930 era muito criticada pelos integralistas e vista como uma luta de
caudilhos ou simples troca entre governantes (CRUZ, 2012). Para Miguel Reale, o terceiro
entre os principais líderes da AIB, o conceito de revolução não é apropriado para se referir a
este movimento político, e sim o conceito de ―golpe de Estado‖. A Revolução de 1930 é
apresentada da seguinte forma por Reale: ―Há movimentos políticos que só apresentam
valores negativos. São movimentos de homens congregados a fim de combater este ou aquele
princípio [...] um conluio de ambiciosos‖ (REALE, 1983, p. 73). O autor, e também um dos
idealizadores do integralismo, antagonizava assim a política implantada a partir de 1930 tendo
Vargas como principal expoente.
O movimento integralista, em Campos, ganhou adeptos e força a partir da visita, de
1933, do que se chamou caravana integralista na cidade. As ações e discursos da caravana
foram divulgados nos jornais locais e nos periódicos integralistas, uma imprensa articulada
que aumentava a expressão do movimento. Os integralistas faziam manifestações de rua
organizadas e padronizadas segundo as orientações da AIB. Essas manifestações tinham
caráter cultural e social, eram comemorações, saraus literários e musicais, conferências, entre
outros eventos, que, segundo Carneiro, movimentavam a vida da cidade com o objetivo de
atrair seguidores.
O narrador Mário Menezes lembra-se bem das marchas integralistas em Gargaú.
Na época o integralismo foi muito forte em todo Brasil, até Getúlio fechar a coisa.
Quando Plínio Salgado falou com Getúlio que colocava tantos mil homens em
armas, Getúlio disse: isso tá me incomodando... Mas então havia passeatas em
Gargaú, houve muita passeata, eles vinham geralmente de São João da Barra pra lá.
Mas lá eu não me lembro, não formou-se... Tinham simpatizantes, mas formar
grupos mesmo lá em Gargaú eu não sei, acho que não chegaram a formar não.
[Passeatas] Em São João da Barra, em dias de sábado ou domingo desfilavam lá e
em Gargaú, mas logo veio o golpe de 37, e coisa e tal... [...] Em Gargaú tinham
alguns comerciantes egressos de São João da Barra, filhos de São João da Barra,
mas que comerciavam em Gargaú, tinha lá o Edgard Trindade... teve casa comercial
lá justamente nessa época, ele era muito entusiasta do integralismo, talvez por isso
carreava esse pessoal pra fazer essas passeatas e demonstrações. Eu sei que
gargauenses tiveram alguns (rindo) que se entusiasmaram e chegaram até fazer
camisas, sabe? Camisas verdes... mas não me lembro de nenhum desses, não posso
afirmar com certeza isso. Agora, se esse Antenor Cordeiro foi chefe em
Convivência, ele devia ser sanjoanense e na organização ele ficou responsável por
Convivência e Gargaú, que é a outra margem do rio. (MÁRIO MENEZES, 2015).
74
CARNEIRO (1999, p. 21). A citação é de um memorialista campista, Hervé Rodrigues.
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108
Em contraposição ganhavam, no mesmo período, forças as ações das organizações
sindicais oficiais e as do Partido Comunista Brasileiro (PCB), embora Mario Menezes afirme
que em Gargaú não existiam comunistas. 1933 foi o ano da instalação da Assembleia
Constituinte, de acirramento das polarizações ideológicas, de criação de novos partidos
políticos e de manifestações em prol da redemocratização. Campos também foi palco de
episódios envolvendo comunistas, e, inclusive em 1934, em uma dessas manifestações no dia
1º de maio, a bandeira brasileira apareceu queimada, gerando uma enorme comoção na cidade
e fazendo da jovem jornalista comunista Nina Arueira protagonista desse desenlace. Apesar
disso, e talvez mais ainda por isso, na cidade de Campos ―o partido integralista era uma das
maiores referências do Estado do Rio de Janeiro‖ (CARNEIRO, 1999, p. 26), além disso, a
cidade também era um grande colégio eleitoral.
Em 1934 Plínio Salgado novamente visita Campos para reunir-se com membros do
partido e simpatizantes, mais força ganhava o movimento nesse período, mais acirrada a
polarização integralistas-comunistas evidenciada nos jornais locais e nas movimentações de
rua. Na cidade de Vitória, no estado vizinho do Espírito Santo, próximo à região de Campos,
acontece um importante congresso integralista. Nesse conclave foram tirados seus estatutos e
estabelecida a estrutura organizacional da AIB, através de uma rede de órgãos relacionados
hierárquica e verticalmente, ―desde o nível nacional até os bairros urbanos‖ (TRINDADE,
1979, p. 172). Esta estrutura só foi modificada em 1936 em um dos dois congressos que
aconteceram em Petrópolis.
Embora o movimento tenha nascido em São Paulo, decisões importantes foram
emanadas na Província do Rio de Janeiro75
, e isso evidencia a importância da região para o
movimento. Entretanto, no Fundo Plínio Salgado, pertencente ao Arquivo Público Histórico
de Rio Claro, constituído com o legado do acervo pessoal do líder nacional do movimento
integralista, poucas menções encontrei sobre a Província do Rio de Janeiro – nenhuma sobre
possíveis visitas do chefe nacional à Baixada Fluminense ou outras menções à região –,
apenas algumas escassas fotos, pois o movimento cuidava de produzir muitos registros
imagéticos das suas ações.
―Pensar historicamente a política é pensar segundo uma premissa básica: a
inseparabilidade entre ação política e ação simbólica‖76
. Apresentando o livro Imagens do
Sigma, sobre as imagens e fotografias do Integralismo, Ana Maria Mauad analisa também as
75
Província do Rio de Janeiro era a denominação que a AIB utilizava para o estado do Rio de Janeiro. Província
da Guanabara era a denominação por eles conferida ao Distrito Federal.
76
MAUAD, Ana Maria. Na apresentação do livro de SOMBRA e GUERRA, Imagens do Sigma (1998, s/p.)
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109
estratégias de propaganda utilizadas pelo movimento na construção de sua imagem. As suas
ações simbólicas foram muito pensadas e utilizadas de forma abrangente. Envolveram uma
imprensa articulada que produzia fotos, desenhos e textos, e fazia-se chegar aos rincões mais
afastados, também através dos núcleos integralistas que foram disseminados em muitas
cidades e lugarejos, do estado que, para os integralistas, era chamado Província do Rio de
Janeiro.
Jornais e periódicos de modo geral cumpriram um papel relevante de levar
informação, mas também de disseminar ideias de qualquer natureza, aos recônditos do interior
do estado. Poderiam faltar escolas, professores e livros, mas os jornais chegavam. Pelo
comportamento adotado por Aurélia, familiares e outros de sua rede de sociabilidade
posteriormente em Belford Roxo, descritos na entrevista coletiva, era comum lerem três
jornais diários. Era a maneira que tinham, muitos que habitavam as periferias, de acompanhar
os principais acontecimentos políticos, sociais e culturais. Desta forma, é possível supor, com
muita probabilidade de acerto, que a família Souza Braga recebia informações sobre o
movimento integralista nesse período em Gargaú, tendo em vista as repercussões da Ação
Integralista Brasileira na região na qual vários núcleos também se formaram, como apresento
mais adiante.
Dada a natureza do movimento, inspirado em visões autoritárias europeias do pós-
primeira guerra mundial, apesar de nascido em condições histórico-sociais diferenciadas, os
primeiros estudos sobre o partido nacional com organização de massa no Brasil, a AIB,
aconteceram somente três décadas depois, nos anos 70 e 80, e se concentraram nas regiões do
sul, tendo em vista a imigração alemã e italiana e a tentativa desses autores de estabelecer
algumas relações com os movimentos fascistas europeus. Em outras regiões, segundo João
Caldeira (1999), incluído o Rio de Janeiro, em 1999 quase não se tinha estudos. De lá para cá
houve esforços de pesquisadores para levantar, analisar e divulgar o que se passou
regionalmente no país, a partir do trabalho de René Gertz (2002) sobre os teuto-brasileiros no
Rio Grande do Sul. Ainda assim, é mais fácil encontrar fontes sobre a chamada Província da
Guanabara, como era designada a capital federal pelos integralistas. Inclusive no Aquivo
Público do Rio de Janeiro encontrei uma disparidade de quantidade de fontes entre as duas
províncias.
]
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110
Sobre a Província do Rio de Janeiro conta-se ainda com menos levantamentos de
fontes e estudos. Em 2010, Oliveira77
destaca apenas um trabalho sobre o Rio de Janeiro, o de
Márcia Regina da Silva Ramos Carneiro (2000), ―A questão da memória dos militantes é
abordada [E] Tem o mérito de reconstruir o cotidiano da militância integralista no Rio de
Janeiro‖ (OLIVEIRA, 2010, p.134). Os estudos de Carneiro (2002, 2007) trazem ao cerne da
questão as três fases que dividem a história do integralismo, desde a sua concepção até a
atualidade, e são importantes nesta pesquisa, pois a primeira fase, que a autora denomina em
sua tese ―O tempo da anta: a construção da AIB‖ – que vai do lançamento do Manifesto de 07
de outubro de 1932 a 1938 – coincide com a fase onde se reconhece que Aurélia, e o grupo
social ao qual passou a pertencer na Baixada Fluminense, partilhavam desse ideário ou teve
amplo acesso a ele. Esta fase é marcada por uma percepção católica de enxergar o mundo.
Também de uma necessidade de ordenação deste diante de uma nova perspectiva social ditada
pela era industrial. Essa ordenação se dava pelas suas formas pautadas na hierarquização, no
autoritarismo e conservadorismo. O manifesto integralista cita a encíclica papal de 1891,
Rerum Novarum, de Leão XIII, que trata da condição dos operários. Desta forma o
movimento se coloca como doutrina, também, espiritual. Segundo o manifesto de outubro
―Deus dirige os destinos dos povos‖.
Ainda segundo Carneiro (2000), a fase do integralismo que compreende a década de
1930 é também caracterizada pelas expressões do movimento modernista. O chefe supremo
do Integralismo, Plínio Salgado, é reconhecido por sua participação no ―Manifesto da Anta‖,
juntamente com Menotti Del Picchia e Cassiano Ricardo. Catolicismo, nacionalismo e
conservadorismo, portanto, era o que provavelmente apontavam as ações da professora
Aurélia nesses anos de suas primeiras inserções na Baixada Fluminense.
Relevante levantar essas informações, porque a figura da professora Aurélia aparece
ligada ao movimento na narrativa de alguns entrevistados. A narrativa de Mario Menezes
evidencia que em Gargaú foi no seguimento dos comerciantes, o do pai de Aurélia, que se deu
o maior envolvimento com o integralismo. Há evidências da participação de integralistas em
sua rede de sociabilidade e de que tinha acesso, pelo menos, às obras de Plínio Salgado, sendo
estas, parte integrante de sua biblioteca até o final de sua vida. Compreender a professora,
neste caso, passa também pela aproximação de suas ações, sociais, assistenciais, culturais e,
principalmente, pedagógicas, aos preceitos e orientações do movimento criado e desenvolvido
77
OLIVEIRA (2010), conduz um estado da arte das pesquisas sobre o Integralismo até aquele ano. Entretanto,
também encontrei os trabalhos de Lígia Coelho (2003), com base no periódico integralista O Terezópolis,
região serrana do estado do Rio de Janeiro.
Page 113
111
em uma época de formação e afirmação profissional de Aurélia. Indagar se as ações do
movimento coincidem de alguma maneira com as ações da professora é um exercício para
compreender melhor a tessitura de sua vida.
Para buscar esta compreensão, poucas referências ao movimento integralista na região
da Baixada Fluminense encontrei nas pesquisas já realizadas ou nas fontes consolidadas sobre
o assunto. Isto incita buscar saber mais sobre os núcleos que se formaram nessas duas regiões,
de Campos e de Nova Iguaçu, e ampliar as possibilidades de análise. Que expressão neste
estado teve o movimento integralista? Afinal, teve expressão?
2.2 Província do Rio de Janeiro
Como os núcleos integralistas de Campos e de São João da Barra, os núcleos de
Belford Roxo e Nova Iguaçu localizavam-se nas regiões de maior visibilidade do centro
urbano. Segundo o narrador Luiz Scapin, o de Nova Iguaçu era sediado em um sobrado ao
lado da antiga prefeitura. Lembra o advogado que, antes da Ação Integralista ter sido alçada à
clandestinidade, em fins de 1937, os núcleos integralistas ocupavam localizações destacadas.
O núcleo de Nova Iguaçu, como o núcleo de Belford Roxo, fazia festas e comemorações
cívicas – estas com desfiles nas ruas principais. A sede da 7ª. Região da província também
estava localizada, em sobrado, em uma das principais praças do município de Campos, a
Praça São Salvador, e foi palco de uma grande tragédia, envolvendo integralistas, comunistas
e a polícia local, em 1937.
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112
Figura 05 - Sede da 7ª. Região Integralista. Sobrado da Praça São Salvador – centro de
Campos dos Goytacazes. Além de sede do núcleo, sede da região que abarcava grande
parte do norte fluminense.
Fonte: cedida do acervo pessoal do memorialista Wellington Paes.
O memorialista Célio Aquino (1997), de São João da Barra – cidade que possuía um
núcleo municipal pertencente à 7ª. Região de Campos, e que congregava, além de outros, o
núcleo distrital de Gargaú, onde residia a professora até 1934 – conta sobre a expressão do
movimento em sua cidade e reflete sobre o que significou para os sanjoanenses o movimento
integralista:
As passeatas percorriam a cidade de ponta a ponta. A cada instante, a uma ordem
dum chefe qualquer, mais anauês. E voltavam a massacrar os ouvidos dos neutros
com os repetitivos – ―Queremos Plínio Salgado!‖ ―Queremos... Queremos...
Queremos...‖ Imponentes e audaciosos pareciam. Logo, a outra ordem, iniciava-se o
―eterno‖ Avante: – ―Avante! Avante!/ Pelo Brasil toca a marchar/ Avante! Avante!/
Nosso Brasil vai despertar...‖. Se a memória não me falha, a letra desse hino
começava assim. [...] Era na sua sede, num sobrado ao lado do casarão dos Araújo,
que os camisas verdes recebiam oradores de outras cidades. Lá havia um sigma
grande na parede todo cravado de lâmpadas, por trás de um palanque de onde se
falava das grandezas – sob constantes anauês e aplausos do fanático. (AQUINO,
1997, p. 37-38)
O autor ainda diz que o movimento integralista ―cresceu muito por aqui. Se foi algo
contrário às leis do país, os seus adeptos nesta cidade não devem ter percebido, ou não
acreditavam, pois viam o lema pliniano ‗Deus, Pátria, Família‘, como verdade insofismável‖
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(AQUINO, 1997, p. 42). Citando as palavras e o sentimento de João Patrício, integralista
local que entrevistou para escrita de seu livro, ele ainda acrescenta sobre o movimento: ―Era
formado de homens que dispensavam adjetivos. Todos com um só objetivo: a prática do bem,
como alfabetizar, dar remédios, ensinar a amar antes de tudo o Brasil. Era um ensino de
brasilidade, sadio, puro e sem demagogia‘. (AQUINO, 1997, p. 39). Aquino nesse trabalho
conclui que sobre o integralismo e o comunismo em São João da Barra, os sanjoanenses não
sabiam de todo o que estavam seguindo, ―nem tiveram tempo de pensar nas consequências
duma vitória dessas ideias para o Brasil‖ (AQUINO, 1997, p. 39). O memorialista e seu
entrevistado podem estar retratando assim o que se passava nos pequenos municípios
espalhados pelo território deste estado.
Alocados no Fundo do Departamento de Polícias Políticas do APERJ, encontram-se os
documentos referentes à Província do Rio de Janeiro, como era denominado o estado do Rio
de Janeiro pela Ação Integralista Brasileira. Incluso no Setor Integralismo, Notação 16, o
―Relatório do mês de abril de 1937‖ encaminhado ao Chefe Provincial Raymundo D. Padilha,
também chefe da região de Petrópolis, em 13 de maio daquele ano, por três signatários. De
cujo conteúdo extraio as informações para a elaboração do mapa e para as interpretações.
Figura 06 - Mapa das Regiões Integralistas do Estado do Rio de Janeiro
Demarcações das regiões e municípios sedes dos principais núcleos integralistas citados no ―Relatório do mês de
abril de 1937‖, constante na documentação relativa ao Fundo do Departamento de Polícias Políticas, APERJ,
Setor Integralismo, Notação 16. Fonte: acervo desta pesquisa, com base nas fontes consultadas.
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Para o controle da AIB, a Província estava dividida em onze regiões, contando com
Petrópolis, que para os integralistas equivalia à capital do estado, cujos demais chefes eram os
seguintes:
Tabela 01 - Província do Rio de Janeiro/Integralismo.
Rezende
Barra Mansa
Barra do Pirahy
Raiz da Serra
Friburgo
Campos
S. Sebastião do Alto
Pureza
Miracema
Porciuncula
Bernardo Alves Pinheiro Jr.
Dr. Alvaro Sardinha
Lincoln F. de Carvalho
Tte. José Anchieta Paz
Francisco Berlink Silva
Christovão P. Devoto
Dr. Hermes Baptista Ferro
Dr. Antonio Carchet Santos Rezende
Dr. Sylvio Campos Freire
Dr. José Antonio Vieira Silva
Fonte: APERJ. Fundo Departamento de Polícias Políticas, Setor Integralismo, Notação 16 – Regiões e
respectivos chefes.
O município de Petrópolis chefiado por Raymundo Padilha, portanto, ocupava lugar
de destaque no estado, sendo a sede da chefia de toda Província. Os municípios da Baixada
Fluminense pertenciam à região de Raiz da Serra nessa divisão. Essas regiões estavam
subdivididas em núcleos municipais e núcleos distritais. A própria capital do estado, Niterói,
não se constituía em uma região, mas em um núcleo municipal que também pertencia à região
de Petrópolis. O que causa a impressão de que as regiões não estavam exatamente divididas
pela importância política no estado, mas pelo engajamento e representatividade de seus
chefes, e pela quantidade de núcleos dos quais se constituíam.
Havia 47 núcleos municipais em toda Província do Rio de Janeiro e 280 núcleos
distritais – Belford Roxo e Gargaú eram dois deles. Por esse relatório fica explícito que havia
um núcleo distrital em Gargaú, lugar do qual migrou a família Braga, pertencente ao núcleo
municipal de São João da Barra, cujo chefe, Antenor Cordeiro, também chefiava o núcleo de
Convivência, igualmente subordinado ao núcleo sanjoanense e ao núcleo municipal de
Campos, sede da chamada 7ª Região pelos integralistas. Com isto, posso inferir, pelo menos,
que oportunidades não faltaram aos Braga de conhecer alguém ligado ao movimento
integralista na pequena Gargaú.
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Estas oportunidades podem ser, talvez, perscrutadas também pelo fato de ter
encontrado uma família Braga, citada pelo memorialista Celio Aquino (1997), em São João da
Barra. A família do médico Antônio Braga, que possuía um jornal e estava ligada ao teatro do
Grupo Manoel Braga.
Na época do Dr. Antônio Braga – único doutor que tínhamos, naquele tempo,
nascido em São João da Barra – toda vez que ele chegava à cidade, a banda de
música ia aguardá-lo na estação. Elas, as Braga, ensaiavam numerozinhos na casa
delas para fazer a recepção. Os Braga tinham muita influência, possuíam jornal. E
convidavam, pediam, saíam de porta em porta convidando o povo para a recepção.
(AQUINO, 1997, p. 69-70).
Ainda afirma o memorialista que a família Braga ―organizava sempre grandes festas e
teatros‖ (AQUINO, 1997, p. 67). Uma seção do livro de Aquino, entretanto é dedicada à
morte de Antenor Cordeiro, artista amador de teatro, com intensa em São João da Barra, onde
nesse período existiam vários grupos que recebiam os nomes de seus ensaiadores. ―Antenor
morreu dias depois que levamos a peça Os Transviados. [...] já era doente, tuberculoso, como
todos sabiam. Se disserem que o que apressou a morte dele foi sua dedicação ao teatro, isto
sim, acredito‖. (AQUINO, 1997, p.68)78
.
O núcleo de Belford Roxo, de acordo com alguns narradores, localizava-se na Av.
Francisco Sá79
, próximo ao segundo endereço de Aurélia em Belford Roxo, e era chefiado por
Francisco Trévia, também chefe do núcleo de Caxias. Como o relatório é referente ao ano de
1937, não é possível afirmar que o núcleo já existisse quando da mudança de Aurélia para o
lugarejo. Mas é certo, segundo o narrador Walter Vicente, que a professora residia a menos de
200 metros desse núcleo, que se localizava: ―onde hoje, em frente, mais ou menos em frente,
quase em frente, onde hoje é o banco Real, [...], ali era o núcleo da Frente Integralista‖
(WALTER VICENTE, 2015).
Segundo o jornal Correio da Lavoura de 11 de abril de 1935, portanto dois meses
depois da chegada da família Braga à Baixada Fluminense – e um mês depois do encontro de
Aurélia com o prefeito Arruda Negreiros, do qual saiu empregada como professora do
município – houve um grande comício integralista na principal praça do município-sede,
Nova Iguaçu, noticiado logo na primeira página do jornal:
78
As sobrinhas de Aurélia disseram desconhecer parentescos em São João da Barra. Entretanto, também não
descartam essa possibilidade. Confirmam a falta de informações sobre a vida da família no norte do estado e
também que quando a tia retornava à Gargaú falava em visitar São João da Barra.
79
Atual Av. Benjamim Pinto Dias.
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COMICIO INTEGRALISTA – Realizou-se na tarde de domingo, 07 do corrente,
conforme estava anunciado, realizou-se na Praça Ministro Seabra80
, um grande
comicio, promovido pelo nucleo da Acção Integralista, desta cidade. [...] Perante
uma numerosa assistência os milicianos acadêmico Salim81
, poeta José Mayrink82
e
Revdo. Eurypedes Cardoso83
, dissertaram com vehemencia e abundancia de
argumento sobre o Catholicismo em face das ideias integralistas. Sempre ouvidos
com interesse e demonstração de applausos por parte do auditório, os oradores com
firmesa e claresa esgotaram o assunto que deu motivo ao comício coroado de exito
pela concorrencia, excellencia dos discursos proferidos e sobretudo pela ordem
reinante durante sua duração. (Correio da Lavoura, 11-04-1935).
A relação catolicismo e integralismo estava presente nesse comício, cujos palestrantes
se propunham a dissertar a respeito. A intenção de angariar adeptos pode ser depreendida pelo
tema, pois que a ―numerosa assistência‖ era maciçamente de católicos, característica marcante
da região ainda por muito tempo. Chama a atenção na notícia a ênfase dada à ―ordem
reinante‖, que pode ser um indício de que em outras ocasiões do gênero isto não acontecesse.
Nova Iguaçu também teve expoentes tanto comunistas como integralistas, duas figuras
que parece terem ficado no imaginário popular como os que melhor traduziam os seus
ideários, conforme lembra o narrador Robinson Azeredo:
Como os integralistas não eram majoritários, mas eram muito decisivos nas suas
posições ideológicas, os comunistas também, todos eles eram conhecidos. O Scapin
chegou, de uma certa forma, ficar como o único integralista que Nova Iguaçu possui,
porque ele concentrou seguramente a presença dele na sociedade iguaçuana, ele
também foi um homem de negócios, empreendedor. Ele praticamente como que
catalisou toda ideologia pra si próprio, para a sua individualidade. Comunistas
também como Dr. Brigagão, quer dizer, aqueles que tinham filiação não só ao
80
Atual Praça da Liberdade, em Nova Iguaçu, que continua sendo a principal do município.
81
Algumas possibilidades para ―acadêmico Salim‖ foram encontradas, sem que fosse possível afirmar.
82
Poeta José Mayrink de Souza Motta, em 1934, publicou um pequeno volume de poemas intitulado Anauê.
Neles Ramos (2011), depreende o conceito de revolução para os integralistas, chamando a atenção para a
revolução interior. É citado em Trindade (1979, p. 310) como Chefe Provincial da Paraíba.
83
―O primeiro diretor de Anauê! foi Eurípedes Cardoso de Menezes, figura importante da sociedade carioca e da
AIB nos anos 1930. Sua escolha pode remeter ao caráter espiritualista da AIB, já que era um cristão fervoroso.
Nascido em Campinas, em setembro de 1909, Menezes tornou-se pastor presbiteriano depois de estudar
filosofia e teologia, tendo sido diretor educativo da Associação Cristã de Moços, em Lambari (MG). Depois de
passar por um curso de revisão teológica com o reverendo Hasse, realizou um exame oral e escrito que durou
quatro dias, perante uma banca formada no Seminário Concórdia, em Porto Alegre (RS). Aprovado, foi
designado segundo pastor da Congregação de Paz, no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro. Serviu ao Sínodo
Luterano entre 1933-1935, período no qual esboçou suas aptidões jornalísticas contribuindo assiduamente com
o Mensageiro Luterano, periódico voltado aos jovens cristãos, assim como tendo efetivo envolvimento com a
comunidade local (JUNIOR, 2008). Ainda em 1935, Menezes abandonou o luteranismo e ingressou no
catolicismo, período em que já estava à frente de Anauê! Não é possível saber se sua atuação na revista
integralista, dentro de um movimento de cunho católico, tenha sido determinante para essa mudança, mas o
fato é que em pouco tempo atuando como diretor da publicação, o ex-pastor tornou-se católico. Além disso,
também não se sabe o que o levou ao cargo de dirigente da revista, mas é importante notar que se tratava de
figura conhecida no Rio de Janeiro, com grande admiração dos fiéis protestantes dali, o que poderia atrair
muitos deles ao integralismo‖ (FIORUCCI, 2011, p. 4)
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partido comunista, à esquerda e à direita, ao fascismo que tiveram alguma projeção,
acabaram concentrando sobre si a ideologia do próprio partido, como representantes
mais importantes. Deixando os demais, por mais importância que tivessem dentro do
partido, em plano secundário. É o caso do Scapin, como integralista, que ficou sendo
a referência. É claro que houve outros integralistas em Nova Iguaçu, evidentemente,
mas ele ficou sendo a referência. O Brigagão ficou sendo a referência à esquerda,
grande médico, chegou a exercer uma influência muito grande na organização do
partido, era amigo pessoal de Prestes, era médico do Jorge Amado, tinha um
histórico, tinha um ... no Instituto Cultural Brasil-Rússia [URSS]. (ROBINSON
AZEREDO, 2013)
O que a fala do editor do Correio da Lavoura sinaliza é que alguns sujeitos parecem
capitanear para si, e ao mesmo tempo ofuscar os demais participantes, as representações
sociais de uma dada entidade ou mesmo de uma ideia ou ideologia. No caso, do integralismo
em Nova Iguaçu, não foi o chefe do núcleo, Otílio Carneiro da Silva, quem ficou presente nas
memórias dos cidadãos iguaçuanos como integralista. O mesmo aconteceu em Belford Roxo.
Francisco Trévia não é lembrado senão por três narradores que estudaram com Aurélia na
igreja da Solidão.
Características pessoais são importantes para a manutenção dessas lembranças, mas o
fato de não terem ficado nas memórias locais permite também pensar que esses chefes
migraram de outros locais para instalarem e desenvolverem núcleos, fizeram o trabalho,
residiram na Baixada por um período e se foram quando por volta da época da extinção da
AIB como partido, após fins de 1937. Mario Scapin, bem como o comunista Dr. José
Brigagão, permaneceram em Nova Iguaçu, construíram redes e desenvolveram laços de
amizade e pertencimento na Baixada. Como pessoas queridas, seus gestos e ações são mais
lembrados. Portanto, outros sujeitos certamente desempenharam papéis importantes e talvez
ações mais realizadoras nessas duas vertentes políticas de Nova Iguaçu, mas não são evocados
com tanta facilidade pelas lembranças. Na análise de Bosi,
O membro [do grupo] amado por todos terá suas palavras e gestos anotados [...],
Palavras de afeto, gestos de solidariedade que partiram dele são ciosamente
guardados e agradecidos. Outros gestos mais nobres, outras palavras mais doces do
colega menos querido podem cair no esquecimento e ser dados como insignificantes
pelo grupo. (BOSI, 1979, p. 336)
A percepção de que a região captou novos integralistas atraídos possivelmente pela
expansão da citricultura, as promessas de prosperidade da Cidade Perfume, o aumento
populacional e a relativa proximidade da capital, é reforçada pelo fato da transformação
editorial de um outro jornal de Nova Iguaçu, citado por Cavalari84
em seu trabalho sobre o
84
CAVALARI, Rosa M. F. (1999). Sobre a imprensa integralista existem muitos trabalhos, tendo em vista que
foi um forte instrumento de divulgação e fomento do movimento
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118
integralismo. A autora refere-se à Gazeta de Iguassú como um dos periódicos vinculados à
AIB. Sobre esse periódico muito pouco pude encontrar, mesmo consultando alguns
colaboradores da imprensa iguaçuana do período. Mas, uma menção feita pelo Correio da
Lavoura dá pistas de que havia intenção de crescimento do movimento integralista na cidade.
Sob o título ―Publicações‖, no dia 15 de janeiro de 1936, a nota dizia:
GAZETA DE IGUASSÚ, – Após pequena interrupção de publicidade, acaba de
entrar em nova phase de actividade o novel periódico – ―GAZETA DE
IGUASSÚ‖.[...] O bem quisto quinzenário apresenta-se radicalmente modificado,
quer em sua orientação, quer em sua direcção, obedecendo, agora, neste segundo
cyclo, a um rumo nitidamente politico. [...] Ao seu director, Sr. José Carlos Dias, e
todos os seus cooperadores, nossos votos de prosperidade.
José Carlos Dias, pelo que diz a nota, assumiu nestes termos a direção do periódico
que optou neste momento pela linha editorial integralista, como se pode depreender, mas, ao
que parece, não pertencia à Baixada Fluminense, e, ao que tudo indica, ficou apenas um
período, de modo que não se tem notícias de sua participação em outros periódicos ou outras
ações na região. Encontro referências de um José Carlos Dias na imprensa do estado de
Pernambuco85
, como gerente e redator dos jornais Estado e A Cidade, tendo assinado o
Manifesto Integralista do Recife, um desdobramento do Manifesto de outubro de 1932, base
do movimento. Para arregimentar adeptos e doutrinar seus quadros, a AIB lançou mão da
palavra impressa; livros, jornais, panfletos de propaganda chegavam às mãos principalmente
daqueles para os quais o movimento mais se voltava, a classe média urbana86
.
Nesses anos, em Nova Iguaçu, era justamente a classe que se expandia, pois, apesar da
citricultura envolver, com atividades agrícolas, uma grande extensão do território do
município, contando com uma parte de Belford Roxo, as áreas urbanas cresceram em função
das exportações. As chamadas packing houses, de beneficiamento e encaixotamento da
laranja, situavam-se no distrito-sede, mas o crescimento da lavoura também impulsionava os
pequenos polos urbanos que se formavam ao redor das estações de trem, pois esses lhes
serviam de locais de provisionamento87
. As atividades comerciais e industriais de pequeno
85
De acordo com COSTA, Evaldo. Crônica de uma viagem entre os extremos. Cronologia (vida e obra) de
Andrade Lima Filho.
86
CAVALARI (1999). TRINDADE (1979). CHASIN (1999), este no que diz respeito às obras literárias de
Salgado.
87
DIAS (2014, p.305-306) menciona o fenômeno no distrito-sede, mas depreendo das narrativas nesta pesquisa
que outros pequenos polos urbanos, como Belford Roxo, também se expandiram por causa da lavoura. Depois
do distrito-sede, Belford Roxo foi o lugar onde mais se cultivou a laranja. Nesse trabalho a autora também
aborda as origens patriarcais da sociedade iguaçuana.
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porte estavam em franca expansão. Por isso a região recebeu muitos migrantes e imigrantes
estrangeiros nesse período. A 4ª Região integralista, correspondente à Baixada Fluminense,
não se configurava como uma das maiores em quantidade de núcleos integralistas, mas
possuía 13 destes. Não consta que Plínio Salgado esteve pessoalmente na região, porém o
comício de abril de 1935 é indicativo de prestígio e pode ter colaborado para ampliar a
abertura de núcleos na região.
Figura 07 - Núcleos da 4ª. Região – Raiz da Serra/Baixada Fluminense.
Relação de núcleos da região correspondente à Baixada Fluminense, com seus respectivos chefes, constantes do
―Relatório do mês de abril de 1937‖.
Fonte: APERJ. Fundo do Departamento de Polícias Políticas, Setor Integralismo, Notação 16.
Os deslocamentos que aconteceram nessa década de 1930 também favoreceram à
mobilidade social. No caso de Aurélia e de sua rede de sociabilidade isto é notório. Havia um
clima de luta ―por um lugar ao sol‖, sendo para isso decisivas as relações, as redes que se
estabeleciam naquele momento. A região, remanescente de um passado marcadamente de
coronéis mandatários nas fazendas e na política, via o poder deslocar-se de mãos, porém
continuar em mãos masculinas e autoritárias. O integralismo, neste sentido, também
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favoreceu novos arranjos e pode-se dizer que não deixava de proporcionar aos seus militantes
uma possibilidade de inserção em uma dessas redes, cujos expoentes também eram os
homens. Tanto a igreja, quanto a escola, quanto o núcleo integralista eram centros
catalizadores e organizadores dessas redes.
2.3 Recôncavo da Guanabara88
: lugar da Solidão
[...]Pois muito bem. Vou voltar as páginas. 28 de janeiro de 1935. Chega a
Belford Roxo e vai residir no alto da colina de Solidão, uma família constituída
de 5 membros. Vinha da cidade de Campos. Era a família Braga. Já no dia
seguinte tinha amigos na localidade. Primeiros conhecimentos, primeiras
amizades, a família Emídio Vicente e o convite para assistir à festa de
inauguração de um trecho da Rua São Sebastião. Compareci com o meu pai.
No dia 15 de março subia pela primeira vez as escadas da Prefeitura Municipal
de Nova Iguaçu. Acompanhada por meu pai e do Senhor Ernesto Pinheiro
Barcelos. Fui apresentada ao Senhor Prefeito Dr. Arruda Negreiros. Quando
desci, já estava com a responsabilidade da Escola Municipal ―Arruda
Negreiros‖, hoje, ―Professor Paris‖. Na mesma ocasião, na Colina da Solidão,
outra Escola já dava início as suas tarefas. A Escola Sagrado Coração de Jesus.
Os três primeiros alunos, Joaquim, Carlos e Walter Vicente. Daquela época até
hoje não regateei esforços para retribuir à Nova Iguaçu, toda hospitalidade,
todo carinho amigo que ela nos proporcionou, deixando-nos que criássemos
raízes em Belford Roxo. Estou certa que um dia a colina da Solidão será a
nossa eterna morada, como já é dos meus pais. Posso dizer a todos que me
ouvem, tomei parte em todas as campanhas para as quais me achei com
direito de iguaçuana de estar presente. [...]
Aurélia Braga, 198689
88
A Baixada Fluminense insere-se na região de terras mais baixas que o nível do mar ao redor da Baía da
Guanabara, o chamado recôncavo.
89
Trecho do discurso proferido por Aurélia de Souza Braga, quando recebeu o título de cidadã iguaçuana em
1986. Segundo ela, a pedido do vereador Otávio da Silveira contou sua história. O grifado é meu. Acervo:
Câmara Municipal de Nova Iguaçu.
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Aurélia respondia assim ao pedido do vereador de Nova Iguaçu que, nas
comemorações ao Dia do Mestre, havia solicitado que contasse, em sua próxima homenagem,
a sua história. Desta forma sempre atendia a quem lhe fizesse a mesma indagação, iniciava
sua história de vida pelo período em que chegara em Belford Roxo, ―à colina de Solidão‖.
Por inúmeras vezes me vi pensando no quanto o nome Solidão ficou tão fortemente
ligado à migração da família nesse esboço autobiográfico de Aurélia. E também no tanto de
sentimentos que podem ser gerados em quem deixa sua terra, seu local de nascimento, para
radicar-se em outro lugar. Criar uma nova identidade, um novo pertencimento, demanda
algum tempo e conhecimento, há que se estabelecer relações entre pessoas, meios, espaços, e
guardar lembranças de tudo isto. Até lá, parece restar a solidão. Mas a de Aurélia causa a
impressão de que foi povoada, à semelhança do que descreve Le Moing na biografia de Pedro
Nava, que trata disto desde o título90
. A biógrafa do médico e literato conclui que Nava era
um homem só, e tinha necessidade de povoar sua solidão, ―caminhava atrás de máscaras‖, de
cuja derivada melancolia nomeava ―saudade‖.
Na verdade, não estavam sozinhos, a família hospedou-se na casa de veraneio da tia,
que também foi morar definitivamente no lugar chamado por eles de ―roça‖ naquela época. E,
como ela mesmo conta, logo fizeram amizades que, percebo, deram início à criação de sua
nova rede de sociabilidade. Ainda assim, a ênfase dada à ―colina de Solidão‖, nesse seu texto
autobiográfico indica o que Aurélia guardou daquele tempo. Note-se que a preposição não é
da, mas sim de, o ato falho dá a perceber que não se refere ao lugar, mas ao sentimento. Neste
sentido, sua memória elegeu o que trazer à tona a partir dos sentimentos envolvidos.
Diante das incertezas, e talvez da necessidade de povoar a solidão, as ações da
professora foram muito rápidas e determinadas logo que chegou à Baixada Fluminense, como
depreendo do seu texto e das falas dos narradores de sua vida. Mas que lugar era esse onde
criaria novas raízes e permaneceria até o final de seus dias?
90
LE MOING, M. A solidão povoada: uma biografia de Pedro Nava (1996).
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122
Figura 08 - Mapa da Baixada Fluminense. Posição relativa ao Distrito Federal 1930.
Fonte: acervo do Instituto do Patrimônio Histórico da Câmara Municipal de Duque de Caxias. (A
intervenção feita, do lugar de Belford Roxo, é da pesquisadora).
A região91
, nos primeiros anos da exploração portuguesa, viu desaparecer seu pau
brasil, e logo nos séculos iniciais da colonização despertou suas vocações. A Vila de Iguassú
havia possuído engenhos, fábricas de aguardente e olarias, mas a relativa proximidade da
Corte implicava em características próprias. O recôncavo da Guanabara, extensão das terras
baixas que circundavam a baía de mesmo nome, também servia de passagem de tropeiros que
carregavam em lombo de mulas e em carros de boi as produções do interior do estado e da
região de Minas Gerais, o ouro, a cana de açúcar e posteriormente o café, também
provenientes das serras do estado. Em seus rios caudalosos foram construídos ancoradouros e
pequenos portos que facilitavam o escoamento desses produtos, em faluas e batelões, até o
porto do Rio de Janeiro de onde eram exportados.
A construção da primeira via férrea do Brasil, em 1854, pelo Barão de Mauá, ligando
as margens da Baía da Guanabara à Raiz da Serra de Petrópolis, foi decisiva para a criação da
Vila do Brejo. A estrada de ferro marcaria um novo momento onde as pequenas vilas
deixavam de se estabelecerem em função dos rios – por essa época já meio assoreados pelo
desmatamento, principalmente da Serra do Tinguá – e tinham como referência as estações de
parada dos trens. No centro do arraial, a ―Bica da Mulata‖92
, um chafariz instalado em 1880,
91
TORRES, G. P. CARVALHO, G.P. Pequena história da Baixada. In: SIMÕES, S. Organizadora. Mulheres da
Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: CEDIM, 2004
92
Essa escultura foi levada de Belford Roxo na década de 1950, ficando perdida por mais de trinta anos, foi
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123
doado por Manoel Coelho da Rocha à Vila, ligado a uma caixa d‘água capaz de abastecer a
cerca de 500 pessoas com água de muito boa qualidade. A escultura era em ferro fundido, que
oxidado escureceu, motivo do apelido dado pela população. Representava uma deusa grega,
Euterpe, a deusa da música. Por várias décadas ela foi a única fonte de água potável, pública,
do lugarejo. Nos anos 1930, relembram os narradores, a fonte ainda era crucial à
sobrevivência da população. O narrador Walter Vicente lembra que a água extraída de poço na
Solidão era salobra, não se prestava para beber, somente para o banho e alguns trabalhos da
casa. Aliás, o nome Solidão tinha origem nas febres causadas pelos mosquitos, e que
afugentavam a população daquele rincão. Muitas doenças foram evitadas pelo consumo da
água da ―Bica da Mulata‖, por isso mostra-se tão cara nas lembranças dos antigos
moradores93
.
Figura 09 - ―Bica da Mulata‖. Escultura recuperada pelo empenho dos membros do CENPRE
junto ao primeiro prefeito de Belford Roxo, José Júlio Costa dos Santos, o Joca94.
Fonte: Coleção Aurélia Braga. CENPRE.
devolvida à Praça Getúlio Vargas pelos esforços do Centro de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural
de Belford Roxo – CENPRE, criado pelos ex-alunos da professora Aurélia.
93
O narrador Walter Vicente distinguiu esta como ―a verdadeira‖, pois após a incursão que alguns membros do
CENPRE realizaram, em 1987, ao Largo dos Leões, no bairro do Humaitá, no Rio de Janeiro, para examinarem
uma escultura similar, constataram que aquela não poderia ser a ―Mulata‖. A ―verdadeira‖ teve, nos anos 1940,
seu braço decepado e soldado, devido ao acidente que envolveu um bêbado conhecido local. A marca, da
soldagem, distingue.
94
Por este motivo, quando recuperada pelo poder público para o município de Belford Roxo, primeiramente a
escultura ficou exposta na instituição ligada ao CENPRE, a FABEL, de onde foi extraída a foto.
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124
Belford Roxo também era lugar do cultivo da laranja, como o seu distrito-sede Nova
Iguaçu, mas não se tem registros de que existisse algum armazém de beneficiamento das
laranjas produzidas, estes ficavam no distrito-sede. A citricultura estava, em 1935, em seu
apogeu na região e atraía as atenções para a ―Califórnia brasileira‖, a ―Cidade perfume‖,
como era citada no jornal Correio da Lavoura. A qualidade do barro, vermelho, também
favoreceu o surgimento de olarias, porém os dados relativos ao lugarejo são difusos, porque
até 1938 ainda fazia parte do 1º distrito, cuja sede tinha muito maior importância política e
econômica, e, consequente, visibilidade.95
Figura 10 - Lavoura de laranja em Belford Roxo, anos 1930. Granja Santo
Antônio, de propriedade do Conde de Pombeiros e do Dr. Almeida Braga.
Fazia divisa com as terras do Comendador Barone, também laranjal em
Belford Roxo96, área rural do então 1º distrito. À esquerda Emigdio
Vicente, administrador.
Fonte: álbum da família Vicente.
95
Poucos memorialistas se dedicaram a escrever o que se passava em Belford Roxo, encontrei dois trabalhos em
forma de apostilas mimeografadas, dos professores Ruy Afrânio Peixoto e o da narradora Sara Rozinda
Martins. O da professora com fins didáticos, para uso nas escolas. O trabalho de Fábio Martins Ribeiro, de 17
páginas, é a única pesquisa publicada que se tem voltada para a história de Belford Roxo. O trabalho do
historiador foi encomendado, e escrito em 2008, para fazer parte de uma publicação que marcou os 50 anos da
Bayer S.A., em Belford Roxo, maior indústria em funcionamento no município.
96
Áreas que hoje compreendem Vila Pauline e o Parque São Vicente. Ainda segundo o narrador Walter Vicente,
durante o período da guerra, as laranjas não foram exportadas, suas cascas serviram à produção de
combustível, e os caminhões descarregavam laranjas descascadas à beira das estradas. Não encontrei
referências a essa utilização na historiografia da região.
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Na foto, um raro registro de uma lavoura de laranja em Belford Roxo nessa década de
1930. Brejo era o antigo nome do arraial, devido ao Engenho do Brejo, mais tarde
denominado Fazenda do Brejo, adquirida pela firma Carvalho & Rocha ao Visconde de
Barbacena, em 185197
. A família Coelho da Rocha, herdeira, loteou as terras que
compreendiam parte de Belford Roxo e a localidade de Coelho da Rocha, em São João de
Meriti, mas preservou sua sede até os primeiros anos da década de 1990.
Figura 11 - Fazenda do Brejo – sede. Fazenda que deu primeiramente nome a Belford Roxo
Fonte: Coleção Aurélia Braga. CENPRE.
A pequena estação, muito próxima dessa fazenda, recebeu o nome do engenheiro que
foi responsável pela captação das águas da Baixada para o Rio de Janeiro, a mando do
imperador D. Pedro II: Engenheiro Raymundo Teixeira Belfort Roxo. Foi por causa da
estação de trem que o primeiro padrinho político de Aurélia, Ernesto Pinheiro Barcelos, se
estabeleceu em Belford Roxo. Ele era um ―caixeiro viajante‖, nascido no Rio Grande do Sul,
e se encantou pela filha de um comerciante, cujo diminuto estabelecimento também tinha a
função de ser o correio local. A narradora Eliane Barcelos conta que no início do século XX o
trem parava na estação do Brejo por uma hora para depois seguir adiante. Durante esse tempo
as pessoas saíam para comprar no pequeno armazém, com isso foram surgindo outros
97
FONTE: acervo pessoal da narradora Eliane Barcelos. História da Família Coelho da Rocha. Admite também
que o nome do Engenho era devido ao rio chamado Brejo que por ali um dia existiu.
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estabelecimentos que ajudaram a formar o que é hoje a região central do município.
O meu avô como gaúcho e de uma família de alguma forma influente em Porto
Alegre, ele fez um contato com Vargas e recebeu Vargas aqui em Belford Roxo [em
1931]. Organizou um almoço e Vargas veio com a assessoria dele. E aí o prefeito de
Nova Iguaçu na época, não me lembro quem, nem se era prefeito ainda ou se já era
interventor, não sei dizer, por que ouvi tudo isso através de uma tia minha, Tia
Amália, até porque a mãe era bem pequenininha na época, mas mamãe se lembrava
do Vargas visitando Belford Roxo. Durante um certo tempo, o meu avô foi
Varguista, depois ele assume um outro lado político. Primeiro, ele foi da aliança
liberal que foi quem apoiava Vargas e aí, mais tarde, tudo indica que ele começou a
fazer parte da AIB, partido integralista. Não sei o nível de participação dele, o nível
de importância dentro disso aí. Eu não sei. Se era um simpatizante comum ou se
teve uma participação mais profunda. (ELIANE BARCELOS, 2013)
Indaguei à narradora quanto à suposição de que Aurélia tivesse vindo de Campos com
alguma indicação para procurar o seu avô, por duas vezes, porque da primeira, por uma falha
do equipamento não ficou gravada.
Eu acho, acho que é possível sim. Acho que é possível que ela, como integralista, se
aproximou, se aproximou rápido. Eu até conversando com você mesmo, Kátia, a
gente até levantou a hipótese dela já ter vindo de Campos com o endereço ―procura
lá o fulano, pra ver se... procura lá o Ernesto pra ver se ele consegue alguma coisa
pra você‖. A gente acha que pode ter acontecido mesmo. (ELIANE BARCELOS,
2013)
A narrativa ilustra primeiramente os acontecimentos pós revolucionários, onde as
forças políticas da Baixada Fluminense buscavam afirmar-se junto à nova ordem. No jornal
Correio da Lavoura, principal órgão impresso de informação da região, a visita de Vargas à
Nova Iguaçu é noticiada, em 25 de junho de 1931, fazendo menção a sua passagem por
Belford Roxo e Nilópolis. Como um jornal localizado no município-sede, a cobertura, com
fotografias e muitos outros detalhes, deu enfoque às comemorações do aniversário de 40 anos
da cidade de Nova Iguaçu e aos festejos em homenagem ao Chefe do Governo Provisório
nesse município. Entretanto, a narradora, neta de Ernesto Barcelos, descreve os detalhes do
almoço oferecido à Vargas na Fazenda do Brejo, alugada por seu avô para a ocasião. Até
pouco tempo a família ainda guardava as toalhas, baixelas e jarras que foram especialmente
confeccionadas e compradas para esse acontecimento, quando também foi inaugurada em
Belford Roxo a praça principal com o nome de Getúlio Vargas98
.
A cobertura do jornal evidencia ainda o quanto o que se passava em Belford Roxo não
merecia destaque em relação aos acontecimentos do município-sede. A região começava a
98
Correio da Lavoura, 25 de junho de 1931 e DIAS (2014).
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ganhar maior importância econômica e política, mas por essa época o antigo Brejo ainda era
um lugarejo, não era ainda um distrito. Pesquisando o acervo do jornal Correio da Lavoura,
do período de 1930 a 1936 não encontrei notícias sobre Belford Roxo, a não ser essa menção
à ―passagem‖ de Vargas em 1931. Quanto à suposição de que Aurélia chegou à Baixada com
algum aval de integralistas da região de Campos, para que tivesse o apoio de outros militantes
no lugar que a acolheria, não consegui levantar outras fontes que possam atestá-la, mas a fala
do narrador Robinson Azeredo, pode ser ouvida como mais um indício. Ele diz que os
partidos políticos nesse tempo tinham coesão entre seus correligionários, pois os vínculos
eram ideológicos e, talvez, por isso: ―Era comum um militante de um partido que vivia lá no
Nordeste conhecer outros membros no Sul, Sudeste. Eles se correspondiam, se relacionavam,
se ajudavam‖. (Robinson Azeredo, 2013).
O perfil da região de Nova Iguaçu, localizada no recôncavo da Guanabara, pela
proximidade relativa ao Distrito Federal esteve sempre a este atrelado99
. Muitos proprietários
e negociantes tinham duas residências, na capital e nesta região, ou nem residiam na Baixada,
desfrutando dos bens culturais e de consumo disponibilizados na capital, o que não favoreceu
o crescimento desses sinalizadores de desenvolvimento nesta região. As atenções dos meios
de informação se voltavam muito mais para os centros políticos e econômicos, não para suas
periferias. Mas, o que significava politicamente a região no Estado do Rio de Janeiro? Como
Aurélia penetrou neste mundo dominado pelos ―coronéis‖ da política? O que afinal Aurélia
quis dizer com ―tomei parte em todas as campanhas para as quais me achei com direito de
iguaçuana de estar presente‖?
2.4 Repressão na “política de Iguassú”
Scapin – Plínio Salgado escreveu um livro, A Vida de Jesus100
.
–A Vida de Jesus, eu tenho este livro.
Scapin – Tem?
–Tenho.
Scapin – Também tenho. [...]
99
Hoje faz parte da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
100
SALGADO, P. Obras Completas. A vida de Jesus é primeiro volume da coleção, publicada em 1954, mas
com ―apontamentos iniciais‖ de Salgado datados em 1942, quando este já se encontrava exilado em Portugal.
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Scapin – Eu acredito muito no perdão, porque o perdão tem duplo sentido,
de perdoar aquele que errou e perdoar a si próprio. Eu li a respeito e achei
bonito. Tanto é que eu transmiti isso ontem na... [loja maçônica] e o perdão
nos abre o caminho da divindade, para aqueles que sabem perdoar. Falei isso
ontem na Loja, daí eu recordei agora.
Luiz Scapin, 2013
Desta forma estava quase encerrada a entrevista com o narrador Luiz Scapin, filho de
Mario Scapin, o mais conhecido integralista de Nova Iguaçu. Eu havia escolhido Luiz como
narrador porque queria compreender o porquê de tanto mistério quanto à participação de
Aurélia no movimento integralista. Porque tantas meias palavras e tantas omissões, já que
Scapin, o pai, sempre se posicionou como integralista, sendo inclusive filiado ao Partido de
Representação Popular (PRP), fundado por Plínio Salgado depois que voltou do exílio, ao fim
da ditadura Vargas. Mario sempre foi um homem respeitado e bem visto nos meios sociais e
políticos de Nova Iguaçu.
Por essa época do encontro com o narrador eu estava juntando o que podia do que
Plínio Salgado tinha escrito, já que a família de Aurélia afirmava que essa literatura era lida
por ela. Minha intenção era perceber o período pelo olhar do líder desse movimento de ações,
também, doutrinárias. Do integralismo, nada aparentemente havia resistido ao fogo na casa
dos Scapin, após a extinção do partido e a perseguição aos militantes impetrada por Vargas.
Apenas A vida de Jesus, um dos livros publicados por Salgado, ainda inspirava Luiz em seus
discursos na loja maçônica iguaçuana.
Pensei no quanto a memória seleciona o que traz à lembrança a partir das sensações, e,
também, refleti sobre as memórias dos demais narradores que estava recolhendo. Como Ecléa
Bosi, entendi que a memória retira do passado o que está enterrado, apenas aguardando
―amadurecer em segredo para os tempos que virão‖ (1979, p. 48). Quantas lembranças
recalcadas trazidas à tona nesta entrevista! Quantos ―diamantes brutos‖, essas memórias para
lapidar, eu começava a ter nas mãos. A recolha desses depoimentos, em si, não significava
apenas a reunião de informações para o cruzamento de fontes, não era uma operação lógica,
mais se assemelhava a um cristal complexo, com tantas faces quanto o número de lembranças.
O que esses diálogos podem despertar nessas pessoas de idade mais avançada? Como dar
conta de tantas emoções mobilizadas? E, ainda, como trazer tudo isto em um texto? As
palavras de Mignot pareciam-me pronunciadas ao ouvido:
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129
Como enlaçar a emoção dos depoimentos em minha narrativa? Como recuperar o
significado [...] na vida de cada um? Como contemplar os diferentes olhares de
diversos lugares? Atualizados, enfeitados, transformados, deformados, ajudavam a
retirar uma trajetória do esquecimento. (MIGNOT, 1997, p.43)
Difícil descrever o que se passou entre nós, eu e o narrador, nesta hora. Estava
alimentando o diálogo, com a finalidade de incentivar suas lembranças, por isso mencionei
que também tinha o livro. Mas foi como se tivesse acionado uma chave para ir mais além do
que as recordações. Ficamos muito próximos, irmanados pelo livro. Este, e a reflexão sobre o
perdão surgiram logo após Luiz narrar a invasão dos soldados a sua casa. Percebi que até falar
sobre isto, até aquele momento, ele não havia se dado conta do que representou em sua vida o
que se sucedeu naquele episódio. Talvez ainda não se dê, mas as sensações estavam presentes.
No início da entrevista ele havia dito que não se lembrava de nada, que era muito pequeno.
Enquanto falava, parece que tudo de mais importante lhe veio à mente. Luiz havia
mencionado antes, rapidamente, que sua mãe não gostava da participação do pai no partido
integralista, e pensei que esse relato poderia ser útil, então indaguei a esse respeito:
Não, porque ele se dedicava muito, ele largava os afazeres, fazia as coisas depressa,
para atender alguns integralistas, que precisavam de auxílio, eu me lembro bem
disso. Ele ajudava muitas pessoas, não sei com qual objetivo, não sei se era para
convertê-los para o integralismo, ou se era por caridade mesmo. Não sei por que
razão, mas sei que procuravam com um integralista, Dr. Mario Scapin, procura o Dr.
Mario que ele resolve, que isso, que aquilo, e isso eu me lembro bem. Então mamãe
ficava triste, porque ele largava a gente lá... Inclusive teve que fugir de Nova Iguaçu,
porque se pegassem ele iam matar aqui. [...]Ah, agora eu me lembro, eu e o meu
irmão, chegamos a botar roupinha, calcinha branca a blusinha com o signo do lado,
nós chegamos a tirar retratos com a roupa de integralista. Agora eu estou me
lembrando disso, eu tinha esquecido, me lembrei agora, nós chegamos... não tem
nenhuma fotografia desta, não tem, porque mamãe... quando papai partiu, né, e
quando houve a Revolução, a perseguição sobre os integralistas, mamãe e papai
tentaram de todas as formas desfazer de tudo que tinha relação ao integralismo, né.
A polícia chegou a vir aqui em casa, mamãe sozinha, papai já tinha... procurando
meu pai, ele teve que fugir de Nova Iguaçu, se eu não me engano ele foi para
Petrópolis. Lá até, ele como consultor, foi trabalhar numa fábrica de tecidos que tem
lá em Petrópolis, não sei se ainda tem até hoje. Ele ganhava também, disto eu
também eu me lembro, muito tecidos da... não sei se era como pagamento ou se era
como presente da diretoria lá da fábrica. Mas só sei que a polícia veio aqui em casa,
invadiu a minha casa, com minha mãe eu e meu irmão de criança, roubaram os
tecidos da mamãe e do papai, isso era a polícia que tinha na época, né, também me
lembro disso. E o tempo passou, passou, papai retornou, nós também não ficamos
em Nova Iguaçu, fomos morar lá no Rio [...]. (LUIZ SCAPIN, 2013).
Luiz Scapin precisou perdoar, o pai, os soldados, a política, e a si mesmo – quem sabe
o que uma criança depreende de um episódio desses, talvez se sinta culpada também pelos
atos do pai, ou necessite se perdoar por tê-lo culpado pelo abandono. Para exercer o perdão
foi buscar um dos elementos utilizados na doutrina integralista, o livro de Salgado. Ele
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relembra, então, que o pai teve que refugiar-se em Petrópolis, para trabalhar em uma fábrica
de tecidos, com o apoio de Álvaro Sardinha101
e Raymundo Padilha que eram seus amigos e
visitavam o núcleo de Nova Iguaçu. – ―Papai mencionava muito os nomes dos dois, eles
vinham à Nova Iguaçu, no núcleo‖. Lembra ainda que ―quando Padilha foi governador, papai
tinha trânsito livre no seu gabinete‖ (LUIZ SCAPIN, 2013). Ele rememora, emocionado, o
temor nos olhos da mãe ao ver a casa invadida pelos soldados, que procuravam pelo pai, mas
acabaram levando os rolos de tecidos que ela guardava. Álvaro Sardinha consta em Trindade
(1979, p.311) como membro da Câmara dos Quatrocentos, a instância que hierarquicamente
vinha logo abaixo da cúpula. Foi governador da 2ª. Região, cuja sede era Barra Mansa, onde
também exerceu mandato como vereador pelo partido integralista. Raymundo Delmiriano
Padilha foi Chefe Provincial do Rio de Janeiro (TRINDADE, 1979, p.310), cuja sede era
Petrópolis.
Residindo em Belford Roxo, Aurélia provavelmente não fazia parte da rede política de
Mario Scapin. O integralista visitava o núcleo de Nilópolis, mas pode ser que não visitasse o
de Belford Roxo. Nilópolis102
já era um distrito a caminho de sua emancipação, que ocorreu
em 1947. Relativamente, o que se passava entre o município-sede e o lugarejo, agora
pejorativamente chamado de brejo, parece corresponder à descrição de uma comunidade de
periferia urbana estudada por Elias e Scotson103
que mostra uma divisão clara em seu interior,
entre os estabelecidos desde longa data no local e os outsiders, o grupo mais novo de
residentes. Neste caso, os outsiders acabam por construírem alianças fortes entre si.
Por isto, Aurélia era constante na rede de Ernesto Pinheiro Barcelos do qual era
vizinha e mantinha intensa amizade, desde que chegou em 1935, no lugarejo pertencente à
Nova Iguaçu. A narradora Eliane Barcelos Ferreira, neta de Ernesto, fala com maior
tranquilidade do episódio que traz à luz que também em Belford Roxo a busca pelos
integralistas, pela polícia do Estado Novo, aconteceu. Indaguei sobre o que mais sua tia
Amália, irmã de sua mãe, lhe contara. A narradora havia mencionado que sua mãe sempre se
fechara e não comentava sobre fatos, acontecimentos que poderiam comprometer a imagem
da família para os próprios membros. Assim, a tia era sua única fonte:
101
FONTE: APERJ. Fundo de Polícias Políticas, Setor Integralismo, Notação 16, Dossiê 1, página 147. Neste
mesmo Dossiê há uma relação de vereadores integralistas, na página 05, ele também aparece por Barra Mansa.
102
FONTE: APERJ. Fundo de Polícias Políticas. Setor Integralismo, Notação 16, uma ata de presenças das
reuniões do núcleo de Nilópolis, do ano de 1936, encontrei visitas de Scapin a esse núcleo. Percebi que os
integralistas tinham por hábito visitarem-se entre si, nos núcleos da região.
103
Para as relações entre a periferia e o centro ver ELIAS & SCOTSON (2000).
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131
Ihh... ela relatou, por exemplo, que, numa noite, a polícia bateu lá na casa deles, já
noite adiantada. E, foi na época que o Getúlio rompeu com o integralismo e, então,
ela teria dito ―vocês não podem entrar porque não se entra numa casa de família, de
acordo com o código civil, depois de 8 horas da noite‖ e tal e ela conseguiu
contornar a situação. Eu deduzo que, quando ela me relatou isso era bem jovem, que
deve ter sido quando foram feitas várias prisões devido o Getúlio ter colocado a AIB
na ilegalidade. (ELIANE BARCELOS, 2013).
Neste momento achei que deveria consultá-la sobre os sentimentos de sua mãe a
respeito de tudo isto, mas ela concluiu que a mãe jamais falou...
Nada, porque, primeiro, nessa época era nova, depois, tudo que ela achava que podia
afetar, assim, o bom nome da família não relatava. E, a polícia na porta é estranho.
Pra ela, soava estranho. Já minha tia Amália, ela relatava tudo e mais alguma coisa.
Tudo que ela podia ela falava, da família mesmo. Fatos, desentendimentos
familiares. É o cunhado que não trabalhava esse tipo de coisa assim, ela gostava.
―Sabe, Luisito, Luisito não trabalhava não. Quem sustentava era meu pai‖ essas
coisas[...]. (ELIANE BARCELOS, 2013)
A forma como a mãe de Eliane reage aos acontecimentos pode ser uma pista dos
motivos do assunto ter se tornado tabu. Nascida em 1923, a Profa. Léa Barcelos Porto teria
cerca de quinze anos quando ocorreu o episódio descrito pela irmã Amália. Entretanto, não
mais comentou sobre o assunto, mesmo em família. Ciosa de proteger a imagem dos seus e,
principalmente, do pai. De acordo com John Kotre (1997), esses relatos são pontos de partida
e não de chegada, pois estão permeados por apagamentos, silêncios, atos falhos, e memórias
que, também pela repetição, foram cristalizadas como verdades. Memórias que são criadas a
partir do que se ouve de outros e não do que se vive. A memória recria o passado, não o
recupera e o ato de relembrar é um ato de reconstrução. Para esse autor, também pode ser um
ato de reparação: ―mesmo que uma lembrança seja dolorosa, podemos sentir a necessidade de
retornar a ela e repará-la‖. Isto fez-me lembrar que, talvez, o narrador Luiz Scapin pode ter
tido, na entrevista concedida à pesquisa, esta chance.
Mas, a interpretação de Eliane quanto às omissões de sua mãe sobre a participação
do avô e a sua perseguição por ser integralista, tanto pode estar correta como um pouco
equivocada. Talvez a professora Léa Barcelos não tivesse apenas uma preocupação com a
imagem da família, quem sabe não quisesse relembrar acontecimentos tristes, pois ou o seu
pai não estava em casa, havia fugido, ou, numa atitude humilhante para os homens de sua
época, teve que esconder-se na própria casa, e esta foi defendida pela filha. Não é possível
saber agora como a mocinha de quinze anos reagiu a isto. O que se pode dizer é que se calou.
Provoquei o tema do integralismo com a narradora Fernanda Bicchieri, sobre o que se
lembrava que haviam lhe contado da perseguição aos integralistas em Belford Roxo, que
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acabou por levar seu pai preso pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), porque
antes nunca, como Léa Barcelos, havia falado sobre o assunto em família:
Mamãe disse que os soldados é que entravam, ela tinha que me tirar da cama, que
era uma estupidez tremenda, do berço, pra ver por baixo do colchão se tinha algum
livro, alguma coisa do integralismo. Era nesta violência, chegavam de madrugada.
(FERNANDA BICCHIERI, 2013).
Sobre o integralismo, a narradora Heloisa Bicchieri Antonio, interpreta que Aurélia
parecia se pautar nos ideais ―porque era Educação, Pátria, Família. Era o lema dela. Eu me
lembro disso‖ (HELOISA BICCHIERI, 2013). Mas pode lembrar por ter ouvido falar, como
ouviu sobre a perseguição e algumas estratégias dos integralistas para fugir da repressão,
como esconder provas de participação no forro da igreja da Solidão, a Igreja do Sagrado
Coração de Jesus.
Acho que não, não chegaram a encontrar, que eles não sabiam que estava na igreja,
porque a igreja foi construída pela família, né, então, quando eles começaram a ser
perseguidos, aquelas revistas, os livros, as bandeiras, tudo ficou escondido no forro
da igreja (…) a gente escutava falar nisso. Mas quando a gente é criança a gente não
quer saber destas coisas, quer saber? Quer saber de brincar. [...]E quando você ia lá
na igreja, era igual a um alçapão, que você subia uma escada que você ia para o sino.
Então, naquele alçapão é que foram escondidos os livros e as coisas todas do
integralismo, as bandeiras, os emblemas... (HELOISA BICCHIERI, 2013).
Mas, o que se passava naqueles tempos na Baixada Fluminense que motivava essa
perseguição? Pelo que depreendo das fontes orais e documentais, os anos de 1936 e 1937
foram os mais profícuos do movimento integralista nesta região, quando ganhou maior
número de militantes e maiores ações. A Baixada foi palco de um acontecimento trágico, às
vésperas do golpe de 10 de novembro de 1937, quando o comboio que conduzia, de volta à
cidade de São Paulo, os integralistas que haviam participado da ―Marcha dos 50 mil‖ foi
abalroado por um outro de carga, próximo à estação de Mesquita, deixando sete ―legionários‖
mortos e ―setenta e tantas pessoas feridas‖, atendidas na região.
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Figura 12 - Desastre de trem dos integralistas em
Mesquita, Baixada Fluminense, 1937.
Matéria sobre o acidente com o trem que conduzia de volta os
integralistas de São Paulo, que participaram da ―Marcha dos 50
mil‖ na capital, em 01-11-1937.
Fonte: Correio da Lavoura de 04-11-1937.
Luiz Scapin ainda se lembra dos mortos levados à estação central de Nova Iguaçu,
acompanhou o pai, e relata que ficou muito impressionado. O narrador Paulo de Tarso
Machado, levanta a suspeita de que foi sabotagem. Entretanto, o Correio da Lavoura não dá
destaque, limitando-se a divulgar como mais um acidente, entre tantos nas linhas férreas,
colocando a matéria na segunda página. A marcha da qual esses integralistas participaram,
segundo Dotta (2011, p. 6), foi mais uma demonstração de forças do movimento:
O que foi visto momentaneamente como um grande trunfo da Ação Integralista, e
toda sua imprensa divulgou amplamente, foi a chamada ―Marcha dos 50 Mil‖,
ocorrida no dia 1º de novembro na capital da República. Oficialmente, a marcha foi
divulgada como uma homenagem ao centenário de nascimento do General Couto de
Magalhães (1837-1898), folclorista que se dedicou ao estudo dos indígenas
brasileiros. Na realidade, porém, tratava-se de uma demonstração de força perante
Getúlio Vargas e demais autoridades, já que Plínio Salgado, procurado por
emissários de Vargas, sabia antecipadamente do iminente fechamento do regime.
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Os ventos da política mudaram radicalmente no final de 1937. O jornal iguaçuano
Correio da Lavoura, principal veículo de informação do município, mostra sua visão dos
fatos.
Figura 13 - Manchetes do Correio da Lavoura.de 09-12-1937, no momento em que o
município se adequava à nova ordem instaurada em 10-11-1937.
Fonte: Correio da Lavoura (09-12-1937).
Logo após ao golpe de estado de novembro de 1937, que colocou Getúlio Vargas na
presidência da república instaurando o regime ditatorial, a situação exigia que novos acertos
fossem feitos por esses atores políticos. No Correio da Lavoura de 09 de dezembro, as
principais mudanças eram anunciadas. A ênfase local era a nomeação do interventor Ricardo
Xavier da Silveira. Além da extinção dos partidos, a proibição de qualquer divulgação destes
por seus símbolos parecia um recado direto aos integralistas, os que mais faziam uso destes
para propagação do movimento.
Inconformado, com o que chamou de traição de Getúlio Vargas, Plínio Salgado que
imaginava ter lugar de destaque justamente na educação no novo regime, viu o presidente dar-
lhe as costas. Em maio de 1938 os integralistas fizeram um levante contra o presidente,
reunindo militantes com a intenção de invadir o Palácio Guanabara. É de um homem lendário
por suas atitudes violentas na região, Natalício Tenório Cavalcanti de Albuquerque, o ponto
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135
de vista das primeiras investidas contra os integralistas na Baixada Fluminense, trazido por
Souza (2002), a partir dos livros sobre o pai, escritos pelas filhas de Tenório, Sandra e Do
Carmo Cavalcanti Fortes:
Segundo o próprio Tenório, [Joaquim] Peçanha era simpatizante do integralismo, e
essa agremiação possuía forte penetração em Caxias, principalmente entre os
ferroviários. Os integralistas organizaram um movimento em maio de 1938,
investindo contra o Palácio da Guanabara. Tenório foi acionado pelo delegado de
Nova Iguaçu, para que impedisse a investida dos irmãos Dantas, as principais
lideranças integralistas de Caxias (SOUZA, 2002, p. 88)104
.
Os relatos de Tenório Cavalcante sobre o assunto descrevem que o delegado de Nova
Iguaçu, seu amigo, telefonou-lhe para pedir sua ajuda. Este não queria permitir que os
integralistas atravessassem a fronteira para o Rio. As fronteiras para o Distrito Federal já
estavam bloqueadas, mas as de Caxias ainda eram frágeis. Sobre esse pedido, Tenório teria
dito: ―Concordei, não era favorável às atitudes agressivas em relação ao presidente [...]
Consegui, com a ajuda dos meus homens, prender os integralistas e entreguei-os à Delegacia
de Nova Iguaçu‖ (SOUZA, 2002, p. 88). O político já era conhecido e muito temido na
Baixada, porque comandava uma milícia que lhe conferia o poder pela força.
Nesta região da Baixada Fluminense, especificamente em Nova Iguaçu do qual
Belford Roxo era uma pequena parte, na sede do município por ter maior número de
habitantes, os integralistas estavam mais dispersos. Imagino que em Belford Roxo, pelo lugar
possuir uma população urbana menor, mais concentrada, e aparentemente mais unida, porque
constituída de muitos imigrantes que tinham a intenção de criar raízes no lugar, se dava
importância às amizades e tinha-se uma disponibilidade para as relações de compadrio e para
a participação em redes de alianças verticais e horizontais105
. Pelo que evidenciam através dos
relatos, ansiavam pela sensação de pertencimento, enfim, a algum lugar. O lugarejo, então,
contava com um número de adeptos e simpatizantes do integralismo mais concentrados que
em Nova Iguaçu106
.
104
―Não podemos esquecer que, nesse período, o prefeito de Nova Iguaçu era Ricardo Xavier. Tenório atendeu a
uma solicitação de seus aliados iguaçuanos‖ (SOUZA, 2002, p.88).
105
Ver LOMNITZ, L. A. (2009), sobre redes sociais, cultura e poder.
106
De acordo com os narradores, alunos de Aurélia na década de 1930, Danilce e Walter, em Belford Roxo quem
não era integralista gostava da organização deles. Não foi possível mensurar o número exato de participantes
dos núcleos de Nova Iguaçu e Belford Roxo. Em uma ata do núcleo de Nilópolis, é possível estimar os
frequentadores daquele núcleo em cerca de quarenta. No APERJ, no Fundo de Polícias Políticas, Setor
Integralismo, Notação 16, Dossiê 1, folha 52, encontrei registros sobre os resultados eleitorais (número de
votos obtidos pelos candidatos integralistas) na Província Fluminense. Em 1934, 1960 votos; em 1936, 10.006.
Em 1937 a AIB contabilizava até abril 8.504 eleitores e 4.510 ―alistandos‖, num total de 13.018 eleitores
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Alguns membros da rede de sociabilidade construída por Aurélia nos primeiros anos
de sua chegada em Belford Roxo sofreram perseguição. Além do ocorrido na família
Barcelos, seu compadre, foi tirado de sua casa, preso e torturado, conforme relatos de Walter.
Esse era um método utilizado pelo Estado Novo, imposto por Vargas, para deter os
integralistas. Além de apanhar, eles eram obrigados a ficarem de cócoras, diante dos soldados,
para humilhá-los, por isso o apelido jocoso, ―galinha verde‖, como referência à cor da
bandeira e dos uniformes do movimento. A tentativa de criação de um estigma, uma marca de
vergonha relacionada aos integralistas, pelo governo varguista, foi bem-sucedida.
O chefe do núcleo integralista local, Francisco Trévia107
, e sua família, também
participantes da rede de Aurélia, fugiu do distrito e foi morar primeiramente no Sul, só
retornando ao Rio de Janeiro anos mais tarde. Pelo que se sabe, nunca mais a família Trévia
voltou a Belford Roxo. O movimento foi estancado no distrito e aparentemente apagado da
memória dos que de alguma forma participaram ou tinham conhecimento. Como na casa dos
Scapin, as fogueiras foram acesas em Belford Roxo. Quase não sobraram registros nem do
núcleo, nem da possível participação da professora neste. O narrador Paulo de Tarso
Machado, expressa o seu sentimento sobre o que se passou no período, e mesmo após a este,
quanto à repressão aos comunistas e integralistas, que aconteceu na Era Vargas:
Quer dizer, você fica assim... e quando se fala em tortura, parece que só houve
tortura no Brasil no período militar, parece que o Departamento de Ordem Política e
Social do Getúlio, que teve o Sr. Filinto Müller como chefe, teve o Sr. Isidoro,
parece que não existiram, parece que isso não existiu no Brasil. Aí eu fico pensando,
meu Deus do céu, será que tudo que eu li, que soube, que falavam na época, está
todo mundo errado, isso nunca aconteceu? O Brasil tem estes hiatos, né, que a
sociedade que está no poder faz e que, de repente, você fica, ―será que eu estou
maluco, será que eu já estou com Alzheimer? (Risos) que isto nunca aconteceu? Será
que eu estou imaginando‖, esclerosado, né? Você começa a achar que o defeito é
seu. (PAULO DE TARSO MACHADO, 2013)
Interpreto o apagamento das evidências da participação do grupo social no movimento
registrados em suas fileiras nesta Província. Deste total, 461 eleitores pertenciam a Região da Raiz da Serra,
onde se localizavam os núcleos da Baixada Fluminense.
107
Contatei, por telefone, Geovani Trévia, filho de Francisco Trévia, chefe dos núcleos distritais de Belford Roxo
e de Caxias. Estava, no início de 2014, com 89 anos, e, em decorrência de graves problemas de saúde tinha
dificuldades na fala. Residindo em Curicica, Jacarepaguá, Rio de Janeiro. Lembrou-se de Aurélia,
demonstrando afeição e consideração, disse que falou com ela por muitos anos ainda, após deixar Belford
Roxo, e que era uma ótima professora. Relatou que quando saíram de Belford Roxo foram morar no Paraná.
Evitou, e ficou calado, quando da minha tentativa de saber sobre seu pai e a ligação de Aurélia com o
integralismo. Devido a sua resistência em falar do assunto e aos problemas de saúde relatados, não insisti em
gravar entrevista. Encontrei duas notas sobre o falecimento de Francisco Trévia, no Correio da Manhã, em 24-
06-1950, por problemas cardíacos. Uma era da família, outra mandada publicar pelo Partido de Representação
Popular (PRP), fundado por Plínio Salgado em 1945.
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137
integralista, não só como uma estratégia para se defenderem da repressão do Departamento de
Ordem Política e Social do governo Vargas, mas também como uma tentativa dessa rede de
não se colocar estigmatizada. Ora, o movimento integralista guardava muitas semelhanças
com os regimes fascistas e nazistas. Principalmente nos símbolos, rituais, e na rígida
hierarquização de seus quadros, dentre outros discutidos ao longo deste trabalho. Tais
semelhanças ficaram em maior evidência e foram fortemente denunciadas nesse período, e
isto não aconteceu somente no Brasil, mas em grande parte do mundo que caminhava para a
Segunda Guerra. Bosi traz pistas de como um grupo pode manter a lembrança de um episódio
ou esquecê-lo:
As lembranças grupais se apóiam umas às outras formando um sistema que subsiste
enquanto puder sobreviver a memória grupal. Se por acaso esquecemos, não basta
que os outros testemunhem o que vivemos. É preciso mais, é preciso estar sempre
confrontando, comunicando e recebendo impressões para que nossas lembranças
ganhem consistência. (BOSI, 1979, p.336)
Mas com que finalidade a rede de amigos de Aurélia quereria recordar algo que os
colocava agora em posição de inferioridade, e no duro lugar de perseguidos? Para que manter
essa lembrança? E se algo não é conversado, confrontado, não é alimentado de impressões e,
ao menos, evocado, não se torna uma lembrança consistente.
A submissão, e o ―esquecimento‖ do ocorrido com os integralistas, a uma História
oficial hegemônica, foi interpretada por Rogério Lustosa Victor (2005), para o autor, o
esquecimento intencional do integralismo por essa historiografia teria sido arquitetado já no
momento da derrota da AIB, após a tentativa de golpe integralista em 11 de maio de 1938. A
imprensa e o governo de Getúlio Vargas teriam a intenção de afastar as identificações do
Estado Novo com as ações do movimento. Levar ao descrédito, portanto, seria a forma usada
para que o movimento passasse a ser identificado, simplesmente, como cópia satirizada do
fascismo europeu.
Além disto, para Goffman108
, um indivíduo que possua um atributo que o torna
diferente dos outros em uma dada sociedade, que tenha um traço possivelmente menos
desejável, pode ser afastado dos demais, dos comuns, que tendem a não enxergar os seus
outros atributos. Este traço é o estigma. Também para esse autor, o indivíduo acaba por
desenvolver técnicas de controle de informação e uma dessas estratégias é esconder ou
eliminar signos que se tornaram símbolos de estigma. Ser integralista passou a ser um
estigma, pelo menos, esse grupo em Belford Roxo, ao que parece não quis carregá-lo.
108
Sobre a questão do estigma ver GOFFMAN (1988) e FROSI (2010).
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Na tese, propulsora dos estudos sobre o movimento integralista, de Helgio Trindade,
encontrei, com surpresa, muitos nomes de pessoas reconhecidas no país e que não são
lembradas como integralistas. Uma em especial chamou-me a atenção, Luís da Câmara
Cascudo, que sabia haver escrito uma autobiografia, O tempo e eu. Famoso etnógrafo
brasileiro, ele foi professor e um dos autores que subsidiaram muitos dos trabalhos de
professores que buscavam, no resultado de suas pesquisas etnográficas no Brasil, temas para
aulas, principalmente a partir do final dos anos 1930 e anos 1940, quando sua obra começou a
ter maior publicação e circulação. ―Não há roteiros para esse país de revelações assombrosas,
submergidas no meu peito‖ (2008, p. 159), disse em sua autobiografia Câmara Cascudo, na
qual omite o fato de ter pertencido à Câmara dos Quatrocentos da Ação Integralista Brasileira
(AIB), e ter sido um dos articulistas de A Offensiva, jornal integralista da cidade do Rio de
Janeiro, que circulou até o final de 1937. A ―Câmara dos quatrocentos‖ fazia parte da
hierarquia da AIB, era formada pelos chefes dos núcleos principais espalhados pelo país
(TRINDADE, 1979; CAVALARI, 1999). O exemplo ilustra o que se sucedeu com muitos
integrantes do partido e movimento após sua extinção.
Ao mesmo tempo em que ocorriam buscas e prisões na região de Nova Iguaçu, uma
outra rede política estava se formando, uma aliança ainda mais poderosa e importante na
região, a qual Aurélia viria unir-se e ainda por várias décadas à frente. A rede liderada por
Getúlio Barbosa de Moura, eminente político de Nova Iguaçu. Segundo Ney Alberto
Gonçalves de Barros, o dito popular ―Deus nos livrai da política de Iguassú‖109
voltaria a ser
repetido por causa do político.
No ano de 1930, Getúlio de Moura havia realizado uma tentativa de golpe que ficou
conhecido como ―Revolução Iguaçuana‖, quando o político tentou tomar a prefeitura à força,
contando com seu prestígio junto às forças policiais, em decorrência e aproveitando-se da
instabilidade política do período. Em dezembro deste mesmo ano, Getúlio de Moura foi
afastado do cargo após a ocupação da cidade pelas tropas do Exército. Posteriormente, foi
processado por ter acusado o Governo Provisório de crime político e, em 1931, foi anistiado
por Vargas. Na ocasião, o chefe do governo provisório nomeou o interventor Sebastião de
Arruda Negreiros, que acabou colocando Aurélia no cargo de professora, em 1935.
109
BARROS (2012, p.50). A frase ficou conhecida no século XIX, em toda região da Província do Rio de
Janeiro, ―alcançando os limites mineiros e paulistas‖, devido às disputas políticas, em 1836, entre Inácio
Amaral e Francisco José Soares. Este último, pleiteando legalmente uma eleição, foi salvo por um negro, seu
escravo, de um tiro desferido pelo adversário.
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139
Getúlio de Moura, pela União Progressista Fluminense (UPF)110
, foi eleito vereador de
Nova Iguaçu e foi presidente da Câmara Municipal entre 1936 até novembro de 1937, ano em
que o Estado Novo extinguiu o Poder Legislativo em todo país. Nesta eleição, por seu partido,
Getúlio de Moura foi responsável por iniciar na política Tenório Cavalcante111
, com o qual
romperia relações mais tarde. Tenório acabou tornando-se vereador de Nova Iguaçu com seu
apoio nesta eleição de 1936. Com a instalação do Estado Novo em 1937, os partidos foram
extintos, bem como os órgãos legislativos do país foram suprimidos.
O chefe político iguaçuano, Getúlio de Moura, perdeu o domínio da polícia local,
que foi substituída por investigadores da Polícia. Acabaram, então, as concessões
para assegurar o acesso aos cargos públicos e aos benefícios. Tenório e Moura
teriam de se posicionar frente ao Governo Vargas e do governador Amaral Peixoto,
que manteve Ricardo Xavier da Silveira na prefeitura de Nova Iguaçu até 1943,
marcando a posição política de aliança de Xavier da Silveira com o getulismo.
(SOUZA, 2002, p. 87)
Em 1945, Moura foi nomeado interventor na prefeitura de Nova Iguaçu, participando
da gestão amaralista, indicou o prefeito que o substituiu, Manoel Augusto da Silva, e lançou-
se candidato a deputado federal, compondo, assim, as forças do Partido Social Democrático
(PSD) na região. A estratégia política de Getúlio de Moura era apoiar alguns expoentes
políticos nos distritos de Nova Iguaçu e da região de modo geral, em troca do apoio destes.
Foi desta forma que também iniciou na política a José Haddad, político de Belford Roxo e
amigo pessoal de Aurélia. Eram dados os primeiros passos para uma relação que duraria
décadas e que ensejava a prática de prestação de favores a uma população que crescia.
Segundo a narradora Maria José Haddad, filha do político, todos os dias o pai se
reunia com Aurélia em sua residência e passavam um tempo em conversas privadas.
Ela também ia lá em casa todos os dias conversar com papai. Todos os dias eles se
sentavam, trocavam ideias e era uma longa conversa. Sempre muito discretos, papai
era muito discreto, não falava alto, era de falar baixinho e ela conversava muito com
ele. Eles trocavam muitas ideias e todas as atividades eram propostas e resolvidas,
tinham soluções, né? (MARIA JOSÉ HADDAD, 2015)
110 Para Marlucia Santos de Souza (2002, p. 86), a UPF foi criada porque: ―Preocupados com o papel da Região
Fluminense na sucessão presidencial em 1938, os governos estaduais de outras regiões e o governo federal
intervieram na disputa eleitoral de 1935. Essa interferência levou os políticos fluminenses a criarem a União
Popular pela Autonomia Fluminense no mesmo ano‖.
111
Segundo Mario Grynszpan (2012). Em 1906, nasceu em Alagoas Natalício Tenório Cavalcanti de
Albuquerque. ―Tenório Cavalcanti, como era conhecido, chegou ao Rio de Janeiro, em meados dos anos 1920
em busca de melhores condições de vida. Tenório afirmou-se pelo poder das armas, reunindo migrantes,
inclusive parentes, em sua guarda. Impôs-se organizando e gerenciando a violência e oferecendo proteção,
importantíssima para a população recém-chegada, carente de tudo, inclusive de segurança‖.
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A década de 1940 foi decisiva para a consolidação dessa aliança entre os três, Getúlio
de Moura, José Haddad e Aurélia Braga. Sua herdeira, e sobrinha, Vanira Braga, fala desta
união.
E, se Getúlio Moura e Tio Zé davam tanta força pra ela é porque eles eram da
mesma linha que ela. Porque eu me lembro muito que pra ela Getúlio Moura e Zé
Haddad era uma religião, era uma religião. Tia nunca foi uma pessoa religiosa, mas
a religião dela era Getúlio Moura e Zé Haddad. (VANIRA BRAGA, 2015)
Ao fim do Estado Novo, em 1945 Moura foi eleito como Deputado Federal, atuando
na Assembleia Constituinte, e Haddad eleito para ocupar mandato na Câmara Municipal de
Nova Iguaçu, em 1947. A imagem ilustra o cotidiano de um evento importante, o lançamento
da pedra fundamental da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, principal paróquia de
Belford Roxo, da sua padroeira. Mostra Getúlio de Moura, curvado, Aurélia próxima à
esquerda do político, projetando o rosto para frente e Haddad em destaque, à frente dos
demais. O padre José Beste, de tapa olho, está de batina.
Figura 14 - Pedra Fundamental da I. N. S. da Conceição, em Belford Roxo, seu lançamento.
No terreno onde hoje está edificada a igreja, encontram-se o padre José Bestes, Getúlio de Moura, Aurélia de
Souza Braga, José Haddad e moradores do distrito. (Estima-se nos anos finais de 1940).
Fonte: Coleção Aurélia Braga. CENPRE.
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141
Getúlio de Moura é citado em vários trabalhos voltados para a história, a imagem e
sobre a política da região da Baixada Fluminense, com destaque para os da historiadora
Marlucia Souza (2002, 2012) e os das antropólogas Ana Lucia Enne (2002) e Alessandra
Barreto (2006, 2007). É lembrado como o político que iniciou Tenório Cavalcanti, o ―homem
da capa preta‖, na política da Baixada, em 1936, na qual ambos fizeram parte da mesma rede
política e o que, segundo a historiadora, deu ―início, assim, a polêmica trajetória que
inauguraria a vinculação entre Baixada e violência no imaginário político carioca‖
(BARRETO, 2006, p. 36). As representações sociais a respeito de Tenório estão associadas à
violência. A vinculação do nome de Moura ao de Tenório parece desaparecer quando o
primeiro se compromete com o PSD e o segundo com a União Democrática Nacional (UDN).
A orientação da cúpula do movimento integralista é que seus quadros optassem pela UDN,
mas não foi essa a opção de Aurélia.
O trabalho da professora, em Belford Roxo, para eleição de Getúlio de Moura e José
Haddad sempre foi intenso. Como rememora Eliane Barcelos e outros narradores, em
períodos de campanhas políticas Aurélia transformava sua casa em um comitê eleitoral.
Reunia os amigos ao redor da eleição desses candidatos. Pelos relatos da filha, Maria José
Haddad, que todos conhecem por Zezé Haddad, foi possível conhecer alguns aspectos da vida
do político, que nasceu em Xerém em 30 setembro de 1913, radicando-se em Belford Roxo e
elegendo-se vereador por Nova Iguaçu por diversos mandatos, chegando a exercer cargos
eletivos no legislativo estadual e federal. Em 1969, outra ditadura, a militar, pediria sua
cassação. Na justificativa ao pedido de cassação, o seguinte relato:
Consta seguir orientação política do Deputado Getúlio de Moura, de quem é amigo
íntimo. Tem filiação partidária no antigo PSD; [...] O Sr. José Haddad, líder arenista
de Nova Iguaçu, vem promovendo reuniões, não só partidárias, como também de
elementos cassados e de oposição; Os elementos daquela área, incursos em IPMs,
eram imediatamente chamados à casa do Sr. José Haddad, para falar a respeito das
perguntas feitas e respostas dadas; [...] Proposto seu enquadramento no Ato
Institucional nº 5; Tradicional político do município de Nova Iguaçu, que manobrou,
endossou, influenciou nas decisões do prefeito de Nova Iguaçu.112
Mais uma vez a aliança entre José Haddad e Getúlio de Moura é confirmada e esse
avanço no tempo serve para compreender o período, anterior, estudado. O relato evidencia
que Haddad ―manobrou, endossou e influenciou‖ Getúlio de Moura desde que ambos
112
FONTE: APERJ. Fundo de Polícias Políticas, Setor Secreto, Notação 11, Dossiê José Haddad, prontuário do
político pertencente à Secretaria de Segurança Pública, exercício de 1969. Getúlio de Moura foi cassado pelo
AI 5, e teve seus direitos políticos cessados por 10 anos. José Haddad foi detido para investigações, porém não
chegou a ser cassado, disputando as eleições pela Aliança Renovadora Nacional em 1970.
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ingressaram no PSD, como também confirmam os narradores, mas eles também contam o
quanto Haddad ouvia Aurélia em longas conversas em sua própria casa. Logo, se Aurélia
tinha ascendência sobre o político Haddad, indiretamente, também ao próprio prefeito do
município.
A política é entendida, no contexto do Brasil, segundo Karina Kuschnir (2002), como
um meio de acesso aos recursos públicos, principalmente. Neste, o político tem papel
mediador entre comunidades locais e diversos níveis de poder. Essa noção foi divulgada como
uma prática na América Latina, comumente chamada de ―clientelismo‖ porque o político
estaria dando acesso a bens e serviços públicos que do contrário as pessoas não teriam. Por
essa ótica, o ―público‖ não é compreendido como algo pertencente a todos, mas a apenas às
elites políticas e econômicas, o que contraria o modelo teórico, considerando que não existe o
empírico, da democracia.
Por outro lado, a autora traz as perspectivas de Mauss – para quem este ―fluxo de
trocas é regulado pelas obrigações de dar, receber e retribuir, o que o antropólogo Marcel
Mauss ([1924] 1974) chamou de ‗lógica da dádiva‘‖ (KUSCHNIR, 2002 p. 164) – e Roberto
da Mata, que entendem o termo clientelismo como expressão dos valores culturais que
privilegiam as relações sociais. ―Isto é, trata-se de trocas e relações sociais que envolvem
noções como honra, gratidão e dívida moral‖ (KUSCHNIR, 2002, p. 165-166). A autora ainda
considera que o universalismo, que compreendo como uma atitude única adotada para com
todos os envolvidos, é um valor inspirado no paradigma da modernização, na crença de que a
imparcialidade e a objetividade devem sobrepujar as emoções e a subjetividade. Estas duas
últimas ela vê que estão presentes nas relações baseadas na honra e na dádiva.
A narradora Sara Rozinda observa algumas características da professora, junto aos
seus alunos, que podem explicar o que outros narradores relatam sobre a facilidade com que
Aurélia transitava nos gabinetes dos políticos iguaçuanos, desde que se filiou ao PSD, até
muitos anos à frente. ―Sem precisar marcar audiência, eles sempre a recebiam com muito
respeito‖ (HELOISA BICCHIERI, 2013).
E eles falavam dela, e assim, como é que pode? Uma mulher que não era um tipão
de mulher, ela não era (…) mas como é que ela conseguia fazer com que eles... é
como se ela tivesse eles na mão, assim, ela tinha eles na mão (batendo com
veemência na mão). Mas era o jeito dela, a maneira de como ela os seduzia, ela tinha
um poder de sedução que não era físico, eu acho que era no diálogo, na forma dela
falar, porque a maneira que todos eles falavam da Dona Aurélia era isso, de adoração
(SARA PASSOS, 2013).
O olhar de Getúlio de Moura para Aurélia nesta foto deixa entrever o que a narradora
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143
Sara também observa nos políticos que foram alunos da professora. A memória desses
narradores, neste caso, proporciona um ponto de vista inédito para os acontecimentos
silenciados pela historiografia.
Figura 15 - Getúlio de Moura e Aurélia Braga, desfile cívico.
O político olha para Aurélia enquanto ela sorri para a câmera.
Fonte: Coleção Aurélia Braga. CENPRE.
Souza coloca da seguinte forma a participação política de Moura nesse período na
Baixada, associando-o a Tenório Cavalcanti, reconhecido pelo estigma da violência na região:
Uma outra marca da região era a presença de grupos armados, liderados por
políticos com projeção. Apesar de Tenório ter obtido maior destaque na mídia, ele
afirmava que Getúlio de Moura sempre teve uma participação direta ou indireta em
todos os grandes episódios que o envolveram. Moura era visto como um grande
coronel de Nova Iguaçu e também possuía seu bando de homens armados. Contudo,
ele conseguia manter a aparência de homem pacífico, principalmente quando se
tornou o representante do PSD na Baixada Fluminense. Talvez esse fato justifique a
afirmação recorrente no período de que Tenório seria apenas um ―testa-de-ferro‖ de
Moura. Logo, adquiriu importância política, deixando de ser apenas um
subordinado, para se tornar um aliado de peso. (SOUZA, 2002, p. 89)
Por este trecho da dissertação de Marlucia Santos de Souza, e em outras entradas de
seu trabalho, Getúlio de Moura e Tenório Cavalcante estão imbricados, da mesma forma, em
relação à truculência com que se tratavam as questões de interesse político na região. Na
entrevista coletiva com os narradores, entrei por essa questão e indaguei-os diretamente sobre
essa associação. A pergunta suscitou um ―não‖ coletivo. Os narradores recusaram a
comparação entre as atuações dos dois políticos. ―Não, no momento em que você compara a
atuação do Sr. Haddad com Tenório, eu acho que ficou um pouco assim[...] truncado. (Eliane Barcelos,
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2015)
Voltei-me novamente ao grupo, desta vez mais explícita, indaguei se Moura não
estaria para Nova Iguaçu de igual forma que Tenório para Caxias.
Eliane– Digo que estava, mas digo que a atuação de Tenório era em outras frentes
também, né? É isso que eu tô falando. Era em outras frentes. Eu pelo menos não
tenho conhecimento que o Sr. Haddad e o Getúlio Moura agissem nessas outras
frentes que Tenório, era totalmente diferente. [...]
Zezé – [...] Fui fazer uma entrevista com Getúlio Moura e era uma pessoa refinada,
com alto conhecimento, era uma pessoa um pouquinho [...] que? Atenciosa, uma
pessoa que tinha uma boa biblioteca, era uma pessoa bastante [...], se interessava
bastante até pra colaborar com a gente estudante, da cultura.
Eliane– Muito conservadora, né? Daquele velho PSD, aquela coisa, uma linha
política muito conservadora, a gente sabe disso aí, mas pra mim não tem nada a ver
com Tenório Cavalcante, só, talvez, a liderança.
Zezé- Liderança política, em Caxias, realmente, era do Tenório na época e isso eu
acho que vale. Com diferença dos métodos que usava, mas era, né? (ELIANE
BARCELOS; MARIA JOSÉ HADDAD, 2015)
Ricoeur (2003, 2007), proporciona pensar que a memória e a história não se
contrapõem, mas se relacionam mutuamente. A memória proporciona um conhecimento vivo,
afetivo, existencial do passado de forma a se evitar uma neutralização distanciada e inerte que
é a história com base apenas nos documentos, desta forma:
O testemunho é, num sentido, uma extensão da memória, tomada na sua fase
narrativa. Mas só há testemunho quando a narrativa de um acontecimento é
publicitada: o indivíduo afirma a alguém que foi testemunha de alguma coisa que
teve lugar; a testemunha diz: ―creiam ou não, em mim, eu estava lá‖. O outro recebe
o seu testemunho, escreve-o e conserva-o. O testemunho é reforçado pela promessa
de testemunhar de novo, se necessário; o que implica a fiabilidade da testemunha e
dá ao testemunho a gravidade de um sermão. [...] Mas o testemunho é, ao mesmo
tempo, o ponto fraco do estabelecer da prova documental. É sempre possível opor os
testemunhos uns aos outros, quer no que diz respeito aos factos relatados, quer no
que respeita à fiabilidade das testemunhas. (RICOEUR, 2003, p. 3).
A par de todas as evidências de que o início da vida política de Tenório Cavalcanti
teve muito da participação de Getúlio de Moura, e inclusive ambos em matérias destacadas no
Correio da Lavoura aparecem defendendo-se mutuamente em 1937113
, a visão desses
narradores coloca mais um ponto de vista, de forma que certas cristalizações possam, ao
menos, serem repensadas pela historiografia. Garantem os narradores que, na maior parte da
vida pública de Moura e Haddad, além de não haver vínculos com a rede de Tenório
Cavalcante, os ―métodos‖ dessas lideranças eram diferentes. Na visão de Paul Ricouer (2007),
113
Destaco a de 03-06-1937, sobre o debate, na Câmara, do atentado político sofrido por Getúlio Moura, em
Caxias, quando na companhia de Tenório. Inclusive, em 10 de junho, o Correio da Lavoura destaca as palavras
de Moura: ―Sei que a política, principalmente a de esquina, tudo desvirtua e corrompe‖, referia-se ao episódio
próximo passado.
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aquilo que está finalizado ou superado deve dar lugar a busca por um caráter originário, que
possa ensejar uma maneira de olhar o passado sempre com a possibilidade de atualizá-lo no
presente.
2.5 Esperanças e utopias: a escola rural
El campo y sus escuelas, han sido escenarios de resistencia y de
utopías, impulsores de esperanzas democráticas, de proyectos
solidarios, plataforma de sueños y de realizaciones lentas. Pero
también han sido el espacio del clientelismo político, de la retórica
electoral constante, de promesas incumplidas, de autoritarismos y
misérias
Pérez, López,2009, p.12
Na região da Baixada Fluminense, nesse tempo da década de 1930, quando boa parte
da população era classificada como rural, a educação assim se apresentava. Segundo a
História Cronológica de Belford Roxo, de Ruy Afrânio Peixoto114
, em 1940 Belford Roxo
possuía 7.434 habitantes, dentre os quais 4.071 eram considerados como população urbana e
3.383 situavam-se como população rural. Estima-se que a cada ano a população urbana
proporcionalmente aumentava em relação à população rural. Entretanto, na perspectiva da
administração do distrito-sede, Nova Iguaçu, tudo que não fazia parte da região central do
município era tido como zona rural.
Aurélia trazia na bagagem para o lugarejo um fato novo, seria a primeira professora a
residir no lugarejo de Belford Roxo, também por isso logo conseguiu trabalho.
114
Documento pertencente ao acervo do Instituto do Patrimônio Histórico da Câmara Municipal de Duque de
Caxias.
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Figura 16 - Carteira Funcional – frente e verso, identifica Aurélia de Souza Braga professora
do município de Nova Iguaçu e confirma data de nomeação: 15-03-1935.
Fonte: Coleção Aurélia Braga. CENPRE.
Em 10 de março de 1931, à página 2, o Correio da Lavoura publicava uma lista com o
nome das 24 escolas do município de ―Iguassú‖. Dentre elas ainda não figurava a Arruda
Negreiros. Em Belford Roxo não aparecia nenhum nome de escola municipal nesse ano.
Apenas a matéria mencionava uma escola na Prata, Valério Rocha115
, a região hoje pertence à
Nova Iguaçu, porém faz divisa com Belford Roxo, era a mais próxima, portanto. Em 22 de
março de 1932, à página 12, o mesmo periódico publicava sob o título ―Instrucção publica‖:
―Existem no municipio 29 escolas mantidas pela municipalidade e duas subvencionadas. As
escolas municipaes foram localisadas, de preferência, na zona rural, nos núcleos de população
mais afastados da sede‖. E dá conta de que existiam um total de 1566 alunos em todos os oito
distritos, e 1938 se somados os 402 das escolas subvencionadas. No 1º. Distrito, o de Nova
Iguaçu, do qual Belford Roxo fazia parte, havia 432 alunos e pelo visto estes não eram
moradores de Belford Roxo.
115
FONTE: APERJ. Fundo do Departamento da Educação, código 02727. Também encontrada pelos mapas de
frequência.
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Aurélia começou no magistério em Belford Roxo dando aulas em casa para os três
filhos de Maria do Carmo Vicente, moradores da Solidão. Mas logo o interesse pelo trabalho
da professora cresceu no lugarejo. O pai dos meninos, Emigdio, era zelador da primeira igreja
católica em alvenaria de Belford Roxo, a Igreja do Sagrado Coração de Jesus ou a Igreja da
Solidão, que ficava na colina bem ao lado da casa dos tios da professora. Era a única
construção que realmente poderia abrigar uma turma inteira.
Aquelas terras, que outrora pertenceram ao Mosteiro de São Bento116
, era a Solidão.
Em 1935 o recanto comportava cerca de umas sete famílias dispersas que não possuíam água
encanada nem luz elétrica. Era praticamente uma chácara que abrigava um casarão, a fábrica
de botões e acessórios de couro para o exército – cujo proprietário de ambos, Carlos Bicchieri,
foi o responsável pela construção da igreja e por doá-la à Mitra Diocesana local –; um
armazém acanhado de duas portas do Sr. Antonio Vilela; os familiares de Aurélia; dos
Vicente; do Sr. Aprígio Tavares, de Dª Leonarda e Sr. João Dias; e Dª Carolina. Ficava em
área considerada rural pela administração pública, e se estendia até os bambuzais do Vilar
Novo, lá bem perto do pau barbado117
.
Com a permissão do padre João Müsch118
– que vinha a pé, ou em lombo de burro,
celebrar missa na Solidão um domingo ao mês, para, provavelmente considerar exercido seu
ofício e atender os fiéis de tão longe morada – Aurélia iniciou seu magistério com uma turma
ainda naquele ano. Walter e os irmãos ajudaram a divulgar o trabalho através de uns papéis
manuscritos, do tipo panfleto, feitos por ela, com as informações principais do trabalho de
alfabetização na igreja. Os irmãos entregaram os panfletos nos estabelecimentos e nas casas
de Belford Roxo, onde sabiam que havia crianças. A mensalidade da escola custava cinco mil
réis119
. Os alunos, em sua maioria, vinham a pé, percorrendo distâncias de outros rincões de
Belford Roxo, de áreas onde só abundavam laranjais, porque a escola era a mais próxima.
116
CARVALHO, M. C. W. (2010). Depreendi dos mapas contidos na publicação, financiada pelo Ministério da
Cultura, CONCER e Bradesco.
117
Depreendido das narrativas dos que estudaram na igreja – Walter, Danilce, Ester. E da narrativa de Cícero,
que me falou da árvore centenária, que me lembro, ficava na entrada do Jambuí.
118
O padre José Artulino Besen considera João Müsch o ―Apóstolo da Baixada Fluminense‖. O circuito de
peregrinação dos fiéis, que buscam na devoção ao padre conforto e cura, inicia-se na Igreja do Sagrado
Coração de Jesus na Solidão, fundada em 1928, no mesmo ano em que o padre chegou à diocese de Barra do
Piraí da qual fazia parte Nova Iguaçu. Nascido em Colônia, na Alemanha, no ano de 1880, faleceu na Baixada
Fluminense em 06 de dezembro de 1965, sua cripta encontra-se na catedral de Nova Iguaçu.
https://pebesen.wordpress.com/padre-joao-musch-apostolo-da-baixada-fluminense/
119
O salário mínimo no Brasil surge como lei em 1938, mas ele só entra em vigor em 1940 e era de 240 mil reis,
valor que fica até 1943, quando surge o Cruzeiro. Em 1940, com 5$000 se poderia comprar uma caixa de
sabonete.
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Muito mais que a escola do centro, a municipal, Arruda Negreiros. Era mista, em gênero e
etnia120
. Mas, além da Escola da Solidão, Aurélia se comprometeu com outra naquele mesmo
ano, a municipal, Arruda Negreiros, conforme já citada em seu esboço autobiográfico.
As narradoras pertencentes às famílias de Ernesto Barcelos e Emigdio Vicente contam
que eles foram integralistas. Há indícios de que essas ligações eram conhecidas pela família
de Aurélia e um dos motivos da escolha pelo novo local de moradia. Além do lugar, o ponto
de união dessas relações poderia ser o pensamento integralista, disseminado principalmente
pelas ideias de Plínio Salgado. Muitas ações da professora parecem coincidir com o ideário e
as orientações emanadas, que foram amplamente divulgadas no período por uma imprensa
ligada à cúpula do movimento, que produzia jornais e outros materiais de divulgação
impressos em muitos municípios brasileiros.
Havia um número muito maior de escolas de alfabetização do que de outras voltadas
para profissionalização ou canto orfeônico dentre essas escolas criadas pelos integralistas. O
movimento penetrava desta forma nos pequenos lugarejos, oferecendo um bem que começava
a ser percebido como valioso a essa população. No núcleo de Belford Roxo havia uma escola,
mas não consta dos documentos pesquisados no APERJ a participação da professora nessa
escola, como não há nomes de professoras na relação das escolas integralistas ligadas a esses
núcleos da Província Fluminense. Tão pouco Aurélia menciona essa participação ou qualquer
relação com o movimento em seu esboço autobiográfico ou em entrevistas. Segundo Amilcar
Fernandes, narrador que foi dos destacados alunos da professora na E.M. Prof. Paris e Walter
Vicente, as aulas nessa escola do núcleo eram dadas pela filha mais velha dos Trévia,
Walkyria Ponte Trévia.
Situado na região central, no final da Praça Getúlio Vargas, o grupo era atuante em
Belford Roxo, promovia encontros, cerimônias e festividades121
. Várias crianças, inclusive
Walter e os irmãos, o frequentavam vestidos com o uniforme, a camisa verde com o símbolo
120
Sobre o público atendido pelas escolas integralistas, Marcia Regina Carneiro (2002, p. 98) traz em sua
dissertação a história e os relatos de Maria Brito Silva: ―E não tinha esse negócio de escolher, porque aquele é
preto não se ensina, que ele é amarelo, não se ensina, que é branco... Não senhora, todo mundo tinha o direito,
desde que quisesse aprender, tinha os mesmos direitos‖. Encontrei Maria Brito Silva Lopes, como única
mulher a ocupar o cargo de chefe de núcleo – no núcleo distrital de São Sebastião das Palmeiras, pertencente
ao Núcleo Municipal de Cambuci, na 9ª. Região de Pureza – entre os 280 núcleos existentes. (Fonte: APERJ,
Fundo de Polícias Políticas, Setor Integralismo, Notação 16).
121
Também de acordo com os relatos de Danilce Micho. Essas cerimônias, pelas descrições dos narradores,
seguiam as orientações da AIB, elencadas por Cavalari (1999) em capítulo dedicado ao tema. Havia
recomendações quanto à formação; postura; hinos a ser cantados; a saudação que era feita - Anauê, que em
língua nativa indígena brasileira quer dizer: somos irmãos -; e vários outros elementos que faziam parte dos
rituais implantados nos núcleos, seguindo as ordens da cúpula do movimento. Digitalizei essas orientações em
manuais nos documentos originais. FONTE: APERJ. Fundo do Departamento de Polícias Políticas, Setor
Integralismo, Notação 16.
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do sigma na manga, e a calça branca ou caqui. Nas reuniões do núcleo, os meninos e os
homens eram levados a formarem fileiras e receberem ordens de comando. Essas ordens
vinham da chefia do movimento e tinham uma ritualística especifica e muito bem descrita em
manuais, inclusive com ilustrações em desenhos, para que os movimentos executados pelos
militantes fossem rigorosamente uniformes.
Como rememora Danilce, o Sr. Trevia e o Sr. Jair122
também ajudavam nas festinhas e
nos teatrinhos que faziam na Escola da Solidão. Para a doutrina integralista, a cultura era um
bem, repassado por quem tinha ao povo que não a possuía. Por isso, para o integralismo, nas
palavras de Salgado, ―um dos grandes planos que temos que executar no Brasil, não é
simplesmente o da alfabetização: é o da elevação cultural das massas‖ (CAVALARI, 1999, p.
42). Festas, celebrações e cerimônias tinham o objetivo de elevar a cultura das crianças e suas
famílias, portanto. Essa massa popular era vista pelo movimento, como ―o inapto, o
despreparado, o imaturo, o incapaz, o inconsciente, o mal-educado, o ingênuo‖123
. Apesar de
fundamentalmente bom, o povo deveria ser instigado, para que pudesse romper com o
passado a fim de ganhar uma nova consciência. Aurélia realizava nessas festas e
comemorações um preparo esmerado de cenários, figurinos e ensaios, e cobrava dos alunos
um desempenho impecável. A professora ou tinha capacidades diferenciadas e apuradas, ou
contava com quem as tinha. Seus ex-alunos relatam as produções, para essas festas escolares
que ela realizava, com muita admiração pela época, o lugar e a qualidade do que era
apresentado.
Em outro mapeamento, feito por Helgio Trindade (1979, p. 315-321), com base no que
foi publicado no jornal nacional integralista A Offensiva, o autor mostra um quadro do que
chamou de ―tendências gerais de expansão‖, do movimento pela criação de núcleos, entre os
anos 1934-1937. Nesse levantamento, de caráter nacional, percebe-se que em 1934 o Rio de
Janeiro concorre com o maior número de núcleos – 15 espalhados pelo estado, em rincões,
alguns, de nomes pouco conhecidos124
– contra três no Paraná e nenhum em outros estados.
Nos anos de 1935, 1936 e 1937, a tendência apontou uma criação maior de núcleos nos
122
FONTE: APERJ. Fundo do Departamento de Polícias Políticas, Setor Integralismo, Notação 16.
Possivelmente Jair Rocha, chefe do núcleo de Nilópolis, conforme ata manuscrita das reuniões do núcleo. Os
documentos foram buscados a partir dos nomes lembrados por Danilce Micho.
123
A autora Rosa Maria Feiteiro Cavalari (1999) cita um trecho do jornal integralista A Razão, em dezembro de
1931. O mesmo texto foi publicado novamente na obra Despertemos a Nação (SALGADO, 1935, p.174).
124
São eles: Perdição, Caeté, Dona Emília, São Sebastião da Vista Alegre, São Lourenço, Varre e Sae, Santa
Clara, Jacutinga, Santana do Rosa, Itaperuna, Retiro, Carangola, Bom Jesus do Querendo e Bom Jesus do
Itaperuna.
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estados do Sul, seguido do Sudeste e, em muito menor quantidade, o Nordeste. Com isto,
posso inferir que o estado do Rio de Janeiro foi propulsor na criação de núcleos integralistas e
que esse ideário tinha muitas chances de chegar até a professora antes de sua vinda para a
localidade mais próxima da capital. Também se percebe que os levantamentos não são
precisos – tanto os realizados com base no periódico, quanto os do relatório integralista de
1937 que contava 280 núcleos e 124 escolas no estado – possivelmente havia mais núcleos e
escolas do que os mapeamentos conseguem apontar125
.
A região da Baixada Fluminense ficava circunscrita àquela que tinha como centro
administrativo a localidade de Raiz da Serra126
, cujo governador, como chamados os chefes
regionais pelo movimento, era José Anchieta Paz, e contava com dois núcleos municipais, o
próprio, que possuía três núcleos distritais e o núcleo municipal de Nova Iguaçu, chefiado por
Otílio Carneiro da Silva e que contava oito núcleos distritais – Belford Roxo, o primeiro
citado, Caxias, Fazenda da Saudade, Marapicú, Nilópolis, Queimados, Xerém, e Mesquita – e
aparecem no relatório com duas escolas em Queimados, uma Escola noturna de
alphabetização e outra chamada Escola Alberto Torres; uma em Mesquita, a Escola de
alphabetização Euclydes da Cunha; e em Belford Roxo, a Escola de alphabetização
Tiradentes. No núcleo municipal de Nova Iguaçu, não aparecem escolas integralistas
mapeadas pelo movimento. Talvez, uma das possíveis razões é que esse município-sede
contava com número maior de escolas em relação aos seus distritos e arraiais.
Na visão de Plínio Salgado, a educação era o fator que poderia impulsionar a nação,
por isso várias ações da AIB nessa área e vários de seus discursos e escritos voltavam-se para
ela. A sua concepção de homem é dependente da questão dos estudos, para o chefe nacional
do movimento o homem vale pelo trabalho, pelo sacrifício em favor da Família, da Pátria e da
Sociedade. Vale pela inteligência, pela honestidade, pelo progresso nas ciências, nas artes, na
capacidade técnica. Em vários textos de Salgado, e no Manifesto de Outubro, de forma
explícita ou depreendida, a educação aparece como uma ação capaz de impulsionar o
movimento, mediante o conhecimento e consequente aprofundamento dos fundamentos que o
constituem. Nesse sentido, Salgado separa o conceito de educação do conceito de instrução.
Para o chefe nacional do integralismo, cabia à instrução o papel de formar e informar
intelectualmente, a partir do desenvolvimento de vários aspectos que compõem o todo
humano – a arte, a técnica e ciência –, e à educação o de formar o caráter.
125
Há locais como Mussurepe, em Campos, por exemplo, que não aparecem no relatório, mas aparecem em
notas no periódico.
126
Ou Vila Inhomirim, localiza-se próxima do município de Petrópolis e faz parte do município de Magé.
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151
Para Coelho (2003), a educação integralista, concretiza-se pelas relações hierárquicas,
de conformidade e de obediência. Trindade (1979) também intitula os anos 1930 como ―anos
autoritários‖, pois de maneira geral os regimes políticos em grande parte do mundo tenderiam
ao padrão. Essa tendência se consolida em textos e ações do movimento, durante essa década.
A Ação Integralista Brasileira (AIB) colocou em prática uma dada visão de educação integral,
que além de promover conhecimentos, tinha a intenção de formar o caráter. Tal caráter, nesse
caso, refere-se à exaltação nacionalista, ao sentido de pertencimento a uma nação, e aos
valores de obediência às autoridades em geral e à família e à Igreja principalmente.
Figura 17 - Escola Sagrado Coração de Jesus na Igreja da Solidão127
.
Fonte: Coleção Aurélia Braga. CENPRE.
A Escola da Solidão, de Aurélia, não fazia parte das estatísticas da AIB. Não constava
dos levantamentos produzidos pela Ação Integralista, mas isso não significa que não se
inserisse no contexto das escolas orientadas pelo seu ideário. A foto mostra duas crianças,
uma cujos pais vieram da Turquia, e outra descente de negros, elas seguram um quadro com a
127
A menina que segura o quadro é Maria da Penha Daher. Aurélia está à esquerda. Provavelmente está à direita
a Profa. Nadyr Assumpção, que assina a dedicatória dos alunos da Escola da Solidão à Profa. Aurélia em outra
foto. Os narradores não se lembraram dessa professora. Pode ter pertencido à Escola Municipal Arruda
Negreiros.
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fotografia do fundador da igreja, Carlos Bicchieri128
, filho de italianos. O próprio Francisco
Trevia, chefe do núcleo de Belford Roxo, tinha ascendência italiana. Sobre a aproximação do
integralismo com o fascismo europeu existem inúmeros trabalhos que divergem sobre este
assunto, ora os aproximando, ora afastando-os. Porém os estudos de Bertonha129
evidenciam,
pelo menos, que houve um interesse pela AIB por parte do governo italiano. Uma dessas
aproximações, os rituais e símbolos próprios que identificavam seus membros.
Paulo de Tarso Machado, narrador, conta histórias que ouvia de seu tio Leopoldo
Machado e seu pai Newton de Barros, diretor e professor de história, respectivamente, do
Colégio Leopoldo, o primeiro ginásio de Nova Iguaçu, inaugurado em 1930. Os filhos dos
integralistas, no Ginásio Leopoldo, utilizavam os códigos aprendidos nos núcleos da região.
Não se configuravam como maioria, mas se mostravam em número considerável, e causavam
contrariedade ao diretor por se recusarem a cantar a segunda parte do hino nacional, entre
outros. Quando cobrados da entoação de todo hino, por exemplo, eles repetiam a saudação
integralista por várias vezes – anauê, anauê.... As crianças eram bem-vindas nos núcleos e
desde muito pequenas vestiam o uniforme, as camisas verdes130
com o símbolo do sigma na
manga e, para os muito pequenos, bermudas brancas ao invés da calça. A intenção era a
disseminação das ideias do movimento e impregná-las de maneira efetiva desde a infância. A
simbologia e os códigos de irmandade serviam ao propósito de uma convivência aceita em
sociedade e, ao mesmo tempo, à propagação do movimento.
A obra de alfabetização, feita por Aurélia na igreja, pautava-se numa visão de nação e
isso estava explícito no seu trabalho, pois de modo geral a educação no período possuía esse
foco. Era alimentada por uma ideia de nação e de pertencimento a ela. Mas o nacionalismo
não é aquilo que se desperta para a autoconsciência, é algo que, ele próprio, inventa nações
128
Carlos Bicchieri até o governo do presidente Washington Luiz fornecia fardas para o exército brasileiro. Os
botões e cintos eram confeccionados na fábrica situada na Rua Virgilina Bicchieri, em Belford Roxo. Os
uniformes eram confeccionados na fábrica da Rua do Ouvidor no Rio de Janeiro. Sua residência oficial era em
Botafogo. Ele foi amigo, pessoal, de Oswaldo Aranha, segundo a narradora Fernanda Bicchieri, sua neta mais
velha.
129
BERTONHA, João Fábio (2001, p. 87). ―A partir de 1936, a atitude italiana diante da AIB mudou e esta
passou a ser vista como movimento de importância e analisada com maior positividade. Tal mudança de
política foi devida ao evidente crescimento do poder político do Integralismo, maior atenção do governo
italiano e a agudeza e capacidade de observação do encarregado de negócios italiano Menzinger, que tomou
conta dos assuntos da Embaixada a partir de meados de 1936 [...] Não é de estranhar essa mudança de atitude
italiana: o novo governo era simpático a Roma; Vargas tinha, nos altos círculos fascistas, um juízo mais alto do
que Plínio Salgado, e o Brasil, sob o Estado Novo varguista, parecia se fascistizar com rapidez‖.
130
Nas fotografias publicadas em livro de SOMBRA e GUERRA, Imagens do Sigma (1998), existem várias de
crianças uniformizadas, com dois, três anos de idade. Além disto, muitas fotos de reuniões e cerimônias trazem
crianças em ambientes que normalmente só eram frequentados por adultos. Este pode ser interpretado como
um sinal do interesse das lideranças do movimento em formar desde a infância dentro das ideias do partido.
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onde elas não existem. Como aquilo que é criado no imaginário coletivo, demanda que seja
feito como processo. Nisto a escola de Aurélia também pode ser observada. Suas práticas
estavam a serviço dessa criação do conceito de comunidade, de Belford Roxo, e nação
brasileira. É até possível que cerca de 5 ou 6 mil pessoas se reconhecessem, ao menos de
vista, ao longo de alguns anos, mesmo distribuindo-se em áreas consideradas urbana e rural;
mas embora isso, a ideia de comunidade é imaginada, principalmente porque, independente
das desigualdades e de explorações efetivas que possam existir dentro dela, a nação sempre é
concebida como uma irmandade horizontal.
Segundo Benedict Anderson (2008), foi essa ideia de fraternidade que, nos dois
últimos séculos, tornou possível que milhões de pessoas tenham se proposto não tanto a
matar, mas a morrer por essas ―criações imaginárias‖. A alfabetização realizada pela
professora tinha, portanto, vários objetivos implícitos e essa subjetividade é importante
perceber para que se possa mais aproximar da professora.
A formação da professora Aurélia se deu nesta atmosfera e recebeu aportes das ideias
de Plínio Salgado, isto se percebe pelas semelhanças dos seus discursos, em suas posturas e
ações. Mas não é possível afirmar que foi uma professora integralista na medida em que não
se assumiu assim. Compreendo que isto pode ser devido à forma como o movimento foi
extinto após Getúlio Vargas instituir um regime ditatorial. Em 1938 Aurélia já havia
conquistado posições como professora e membro da comunidade de Belford Roxo, com
expressão nos meios políticos e educacionais iguaçuanos.
Rever a história de vida de Aurélia também é inserir a mulher na historiografia da
região fluminense, sempre repleta de nomes e feitos masculinos. É, ainda, poder colocar em
pauta a participação feminina na política e na economia, assuntos onde sempre estão em foco
os homens. Poder olhar sua vida como um caso permite tentar compreender como as mulheres
estiveram presentes na história do Estado do Rio de Janeiro, como buscaram visibilidade e
poder? Em que brechas conseguiram penetrar? Quais papéis assumiram nas tramas da vida
social, cultural e política? O que podia uma mulher na terceira década do século XX? Que
direitos tinha para fazer-se e sentir-se cidadã?
2.6 Mulher fluminense
Em uma sociedade patriarcal, autoritária e hierárquica como a realidade em que
Aurélia vivia e para a qual migrou, conseguir o tal ―lugar ao sol‖ necessitava não só uma boa
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154
disposição para o trabalho, mas também para a criação de uma boa rede de compadrio e
alianças. A família chegou completamente falida, financeiramente, na Baixada Fluminense e
pelo que se percebe das narrativas de familiares e contemporâneos, foi o trabalho da
professora que proporcionou os primeiros recursos para que obtivessem uma moradia, e uma
forma de investir em novas frentes de trabalho para ela e o irmão Vicente. Foi com o dinheiro
ganho, fruto do trabalho da professora na escola municipal e em sua escola particular, Sagrado
Coração de Jesus, que o irmão abriu o pequeno armazém.
O trecho de seu esboço autobiográfico, trazido no início deste capítulo, evidencia bem
as estratégias que a professora Aurélia utilizou para conseguir sustentar a família sozinha por
um bom período. Ela conta que no dia seguinte que chegou à Solidão – para morar na casa de
parentes que acolheram gentilmente sua família – foi com seu pai à inauguração de uma rua.
Nisto ela evidencia sua disposição em buscar apoio político, de se aproximar do poder. E,
pelas mãos de um integralista, em dois meses chegou ao prefeito do município que
imediatamente a empregou na única escola municipal de Belford Roxo, sem ela ser portadora
de um diploma. Estreitou laços de amizade com os Vicente, que tinham três filhos em idade
escolar e que acabaram por serem valiosos aliados na criação de sua escola particular, talvez
no único local possível de fazê-lo, a igreja.
Belford Roxo nesse tempo era, aliás, um local apropriado para se estabelecer relações,
pois recebia muitos migrantes e imigrantes estrangeiros, que também como os Braga
precisavam criar vínculos com pessoas do lugar. Essas relações eram importantes não só do
ponto de vista emocional, como para auxiliar à sobrevivência. Muitos, como a família de
Aurélia, viam a região como uma chance de melhoria de vida e ascensão social. Isto
proporcionou o estabelecimento rápido de uma rede de relações que favoreceram também o
desenvolvimento do arraial. Foi tão importante para a projeção do lugarejo no cenário
municipal, que em 1938 Belford Roxo foi elevado à categoria de distrito. Essas características
locais possivelmente também favoreceram a implantação do núcleo integralista. E é possível
que Aurélia tenha utilizado esse espaço político também como meio de acesso a algum poder.
Pesquisando as quase invisíveis mulheres que trabalharam em ferrovias no interior
paulista, Lidia Possas (2001) encontrou várias ligadas ao movimento integralista na região de
Bauru, onde o patriarcalismo fincara suas marcas de hierarquização social e de
conservadorismo, do mesmo modo que a Baixada Fluminense.
As mulheres ferroviárias interiorizaram o Integralismo como ideias que clamavam
por esperança em detrimento ao pessimismo liberal vigente e principalmente pela
possibilidade de tornarem-se visíveis, de terem participação e voz ativa nos assuntos
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155
da comunidade, enfim no espaço urbano público, nas ruas. O proselitismo as incluía.
(2001, p. 268)
Ainda que com intenções proselitistas, a retórica integralista incluía as mulheres e lhes
conferia algum poder. O integralismo resumia em dois os papeis das mulheres na sociedade,
um excludente do outro. Ou elas seriam mulheres trabalhadoras, ou donas do lar:
Era uma concepção ambígua, na medida em que o Estado Corporativo Integral
proposto distinguia a ―Mulher Operária‖, trabalhadora, inscrita no sindicato de sua
classe, aquela que produza e exerça o direito público de cidadã política, da ―Mulher
Doméstica‖, que não exerça profissão e viva no lar e para o lar, companheira do
marido, sua inspiradora e colaboradora na educação dos filhos. (POSSAS, 2001, p.
272)
Nos discursos de Plínio Salgado, a importância do trabalho feminino para a
consecução dos objetivos da doutrina era reforçada e traduzia-se nas orientações aos
militantes e na hierarquia da AIB, que reservava aos homens os papeis principais, e às
mulheres os semelhantes às visões de professoras e assistentes sociais, afeitas ao que
socialmente acreditava-se como próprias ao feminino. Laís Ferreira (2009) traz à baila um
outro ponto de vista, depreendido no seu estudo do periódico integralista, publicado na Bahia
entre 1933 e 1936, O Imparcial. A autora assinala que o trabalho feminino fora do lar
encontrava forte resistência onde havia influência do modelo patriarcal, como era também o
caso baiano.
Assinalar as consequências desse êxodo das mães tornou-se necessário: esgotamento
de excesso do duplo encargo; restrição dos nascimentos, mortalidade infantil,
deficiências na educação dos filhos; enfraquecimento da união conjugal; declínio do
ideal e da moralidade na família etc. (O Imparcial, 11 de setembro de 1937, p. 5,
apud FERREIRA, 2009, p. 77)
Mais do que estimular a participação da mulher trabalhadora, a doutrina da AIB
pregava o trabalho da mulher militante, as ―blusas verdes‖. Entre as pesquisas de maior
projeção sobre o tema da mulher no Integralismo, estão aquelas orientadas pela Professora
Lídia Possas, a pesquisa sobre a educação integralista de Rosa Maria Cavalari e a análise das
fotografias de mulheres no integralismo de Tatiana Bulhões, como observa Márcia Carneiro
(2008), estudiosa do integralismo e que também tem trabalhos sobre o tema das mulheres no
movimento. As análises dessas estudiosas apontam para a importância da figura feminina na
composição da AIB considerando as restrições impostas às mulheres em inícios do século XX
e a construção do papel específico da mulher integralista.
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As definições de como deveria ser esta mulher estavam inscritas em todos os
documentos e artigos publicados pelo movimento que se referissem à família e à conduta
feminina na sociedade. Nos anos 1930 o cenário era de tensões e conflito, os valores e
comportamentos eram questionados e alterados e isso se evidenciava pelas novas
possibilidades de relações sociais tanto no espaço público como no privado. Diante do
cosmopolitismo em voga no momento, a AIB fazia o movimento contrário com um forte
discurso de crítica a esses novos tempos. Entretanto, a militância feminina era importante,
porque estas eram responsáveis pelos trabalhos de educação nas escolas integralistas, e de
assistência social e de saúde, nos ambulatórios e nas visitas domiciliares. Elas eram também
doutrinadoras dos jovens ―plinianos‖ e muitas faziam as secretarias dos núcleos, trabalhando
nessa organização. Ou seja, muito das realizações desse abrangente movimento de massas no
Brasil dependia do trabalho feminino.
Nas Páginas de Combate, seu livro de 1937, Salgado escreveria que ―cem mil
senhoras e moças no país se empenham como enfermeiras, professoras e visitadoras de
bairros humildes, na obra social portentosa do movimento do Sigma‖131
. No Relatório da
Província do Rio de Janeiro132
, referente ao mês de abril de 1937, o núcleo integralista de
Cantagalo é o único que aparece com maiores informações sobre a estrutura e funcionamento
de um núcleo da região fluminense e evidencia como a educação estava atrelada ao
departamento feminino. A este departamento também estava afeito o Departamento de
Plinianos, que congregava os meninos até quinze anos. Após um relato das atividades do
núcleo e as da Escola Carlos de Mattos que funcionava em sua sede, inclusive constando um
mapa de frequência à escola, a secretária do núcleo apõe sua assinatura, Amélia Thomaz.
Pouquíssimos nomes femininos aparecem nos relatórios. A partir do ano de 1934
houve um redimensionamento do papel da educação no movimento no país, já que somente as
pessoas alfabetizadas tinham direito ao voto. Então, a partir desse ano o papel da mulher no
movimento teve sua importância duplamente ampliada pelo fato de que, em 1934, ela teve
assegurado o direito de exercer seu voto e a AIB necessitava ampliar seus quadros, portanto,
necessitava alfabetizar, e isso era o trabalho exercido pelas militantes femininas. Mas, além de
não haver nenhuma mulher chefiando núcleos no estado, também não aparecem nomes de
professoras nos relatórios sobre as escolas integralistas.
A hierarquia da AIB se iniciava pela Chefia Nacional, exercida por Salgado e seu
131
SALGADO (1937, p. 48). Como já citado, sigma é um dos símbolos do movimento, utilizado em sua
bandeira e nas braçadeiras nos uniformes masculinos e femininos. É uma letra grega que significa soma.
132
FONTE: APERJ. Fundo do Departamento de Polícias Políticas, Setor Integralismo, Notação 16.
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157
gabinete; depois contava com um Secretariado Nacional; logo abaixo com um Conselho
Supremo; abaixo a Câmara dos Quarenta; um Conselho Jurídico Nacional, com
Procuradores Nacionais; Chefes Arqui-provinciais; Chefes Provinciais; e a Câmara dos
Quatrocentos. Na pesquisa de Trindade (1979, p. 310-311), importante referência do Brasil
sobre o Integralismo, Irene de Freitas Henriques aparece como um dos ―Membros do
Secretariado Nacional‖, na Secretaria Nacional da Organização Feminina e da Juventude, na
―Câmara dos Quatrocentos‖, formada por esse número de componentes, encontrei dois nomes
femininos, o de Adelina Silva Prado e o de Irene Ribeiro. Nos levantamentos que fiz no
APERJ, entre os 280 núcleos existentes no estado, constatei que apenas uma mulher chefiava
o que se poderia chamar da parte mais abaixo desse organograma, os chefes municipais e
distritais dos núcleos. As mulheres ocupavam lugares mais abaixo nessa hierarquia, mas eram
imprescindíveis. O narrador Walter Vicente, aluno de Aurélia na Solidão, explica que ele e os
irmãos eram ―plinianos‖. Isso pode ser uma indicação de que havia um departamento
feminino no núcleo de Belford Roxo, ao qual pertencia, pois que no movimento a juventude
estava vinculada ao feminino. O narrador também afirma que Aurélia era secretária desse
núcleo, era quem se encarregava das atas. Mas este foi um assunto tabu nas entrevistas de
alguns narradores, de outros o assunto nem surgiu.
- E vocês nessa época na Igreja, ouviam falar alguma coisa do integralismo?
Danilce – Sim, ouvimos. Sr. Trévia.
Walter– Ele era ―galinha verde‖.
Danilce– D. Aurélia era muito chegada ao senhor que tomava conta desse...
―Galinha‖ é o Sr. Trévia?
- Trever?
Danilce– Trévia.
Walter – Trévia. Tinha uma filha chamada Walquíria...
Danilce – Tinha Antônio, tinha Geraldo, né?
Walter – Giovanni...
Danilce – Eliseu, não? O mais velho...
Walter – Não lembro, só lembro do Giovani.
Danilce – Eu lembro do Antônio...
Walter – Walquíria.
Danilce – Walquíria, alta, né?
- Mas eles participavam da escola também?
Danilce – Estudavam com D. Aurélia. Walquíria acho que não chegou a estudar,
não. Mas os meninos estudaram.
E eles eram ligados ao Integralismo?
Danilce – Eram ligados ao Integralismo.
- E ela chegava a falar alguma coisa pra vocês?
Danilce – Ela não falava, assim, sobre isso, não. Ela ia a reuniões. Ela chegava lá no
Sr. Trévia, né? D. Aurélia!?
Walter– Naquelas festas, aquelas festinhas.
Danilce – É, na igreja, e às vezes eles faziam na praça, ela tava junto com eles. Mas
acho que ela nunca foi assim, inscrita, tudo, não. Só amiga, né?
- Você acha que ela não era integralista, era só amiga...
Danilce – Ela podia até ser, mas aí pra não... a situação dela... acho que as ideias
dela... ela aceitava as do Sr. Trévia. A gente não pode dizer nada, não sabia, não
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tinha certeza.
- Mas vocês viam as reuniões?
Danilce – É, não via reunião, não. Só via quando faziam festinha na praça, aí a gente
ia passear, porque não tinha nada pra fazer em Belford Roxo...
- Aí vocês iam na festinha.
Danilce – Às vezes. Não tinha nem cinema, né?
Walter – Quem construiu cinema ali foi o...
Danilce – Foi Seu Antônio, irmão do Zé? [E passaram a falar do cinema]133
.
(DANILCE MICHO; WALTER VICENTE, 2012).
Os Trévia participaram da rede de sociabilidade de Aurélia, logo nos primeiros anos
em que ela chegou em Belford Roxo, pois os filhos de Francisco Trévia foram seus alunos na
Escola Municipal Arruda Negreiros, e em 1936 eles constam do ―Termo de Exame‖134
de sua
turma. Outra fonte que comprova essa ligação é o relicário de orações que foi presente dos
irmãos Trévia à professora Aurélia.
Figura 18 - Relicário e dedicatória família Trévia, assinada por Elisio, Giovani e Antonio
Ponte Trévia, presenteado à Aurélia, 1936.
Fonte: Coleção Aurélia Braga. CENPRE.
133
MICHO (2012). Acompanhou Walter Vicente. Ambos estudaram com Aurélia na Igreja da Solidão.
134
FONTE: Centro de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural de Belford Roxo – CENPRE, os Termos
de Exame do ano de 1936 da Escola Municipal Arruda Negreiros encontram-se nos acervos do CENPRE.
Nesses documentos, Aurélia põe o adjetivo ―Catedrática‖, antes de seu nome.
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A intenção revelada nas ações de Aurélia, desde suas primeiras inserções no novo
grupo social, de fazer parte do rol das mulheres de fora do espaço doméstico é reforçada pelo
fato de que permaneceu solteira, morava com os pais, e deixava com a mãe o encargo de
cozinhar e cuidar da casa135
. Provavelmente pensava em si mesmo como uma intelectual,
mulher pública, profissional. A foto, tirada um ano depois de sua chegada em Belford Roxo,
corrobora com essas observações, e a pasta de documentos, pertencente ao universo
masculino à época, passa a mensagem de que esta não é uma mulher do mundo privado. Suas
iniciativas ao criar uma escola, liderar outra municipal e, de alguma forma, participar de uma
rede pertencente ao movimento político também envolvido com a educação, em curto espaço
de tempo, servem à reflexão. Sua atuação como professora também representou o esforço para
sair do espaço privado e se afirmar autonomamente no espaço público nesta região. Aurélia,
nesta comunidade e nesse período histórico, também representava algo diferente no tocante à
posição de mulher. O que significa a presença dessa mulher, em uma terra comandada pelos
sucessores dos senhores de escravos (HÖGEMANN, 2004), à época políticos-coronéis, e
habitada por mulheres invisíveis? Por várias vezes esta pergunta foi feita no decorrer da
pesquisa.
135
Vanda e Vanilce Roberto Braga, sobrinhas de Aurélia, filhas do irmão Vicente de Souza Braga, confirmaram
que a professora viveu a vida toda próxima a seus pais, ou, no final da vida, morando com eles, e não era dada
a nenhuma tarefa do lar. ―Não sabia fazer nem café‖.
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Figura 19 - Aurélia de Souza Braga em 1936, Belford
Roxo – aproximadamente um ano após chegada à
Baixada – em torno dos 26 anos.
Fonte: Coleção Aurélia Braga. CENPRE.
Oresta López (2001-2002) também observa a integração de mulheres professoras no
processo de escolarização de uma região a partir das relações que conseguem estabelecer
desde suas salas de aula, no constante diálogo com os membros das comunidades locais.
Neste sentido, Aurélia assumiu muito rapidamente um papel protagônico em um fenômeno
local, mesclado em uma complexa rede de relações sociais. Nas minúcias de sua vida
cotidiana, ela passou a tecer relações que acabaram por intervir no lugarejo de tal forma que
suas opiniões foram cada vez mais ouvidas e levadas em consideração. As narradoras Zezé e
Vanira, falam do respeito e da atitude de Aurélia como mulher e professora no rincão.
Zezé – Ela era uma figura de muito respeito. Ela entrava em qualquer lugar e ela era
considerada uma pessoa de nível, como um político, como um diretor. Sem cargo,
porém ela era muito respeitada e isso é incontestável. E todos os acontecimentos
políticos e culturais ela era convidada.
Vanira – Ela era convidada não por ser uma vereadora, uma deputada, nada, por ser
A Dona Aurélia. D. Aurélia, professora. D. Aurélia, educadora, Aurélia diretora.
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Tudo sem um cargo político. Pra você ver, se fosse hoje, ela teria sido vereadora,
teria sido o que ela quisesse ali. Mas ela nunca pensou em tal coisa. O negócio dela
era escola. (MARIA JOSÉ HADDAD; VANIRA BRAGA, 2015).
A vida de Aurélia dedicada totalmente à profissão, exercendo papéis que naquele
momento ganhavam status, colaborou para a posição de respeito que conquistou, e que a
levou à direção de escolas. Como afirma Mignot (2004, p.37): ―Dirigir uma escola significou
para Armanda provar que as mulheres eram capazes de contribuir para a formação da
nacionalidade‖. Os objetivos de Armanda Álvaro Alberto – contemporânea educadora no
distrito de Caxias, à época também município de Nova Iguaçu – relativos ao trabalho
educativo, poderiam ser muito semelhantes aos de Aurélia no que diz respeito à formação dos
estudantes. Entretanto, tudo indica que trilharam caminhos políticos e pedagógicos distintos.
Ambas professoras tiveram suas participações nos anos 1930 na mesma região, construindo o
nacionalismo, pela educação, de maneiras diferentes. Entretanto, a historiografia da região
pouco revela sobre a participação das mulheres no desenvolvimento da Baixada Fluminense,
neste e em outros períodos históricos. Esses exemplos podem significar o quanto se faz
necessário investigar sobre a participação feminina na Baixada Fluminense.
Aurélia foi referência para muitas mulheres em Belford Roxo e no seu entorno, que
viram em seu perfil e em suas ações um exemplo de possibilidade de conquistarem direitos e
serem respeitadas. Além de dirigir a escola, foi presidente da primeira Caixa Escolar do
Município de Nova Iguaçu, em 1937, liderando as professoras nessa função, em todo
município. Nos anos 1940 formou e liderou um grupo de mulheres de Belford Roxo para
fazer parte da Legião Brasileira de Assistência (LBA), que foi um órgão assistencial público
brasileiro, fundado em 28 de agosto de 1942, pela então primeira-dama Darcy Vargas com o
objetivo de ajudar as famílias dos soldados enviados à Segunda Guerra Mundial, contando
com o apoio da Federação das Associações Comerciais e da Confederação Nacional da
Indústria. O reconhecimento por todo esse trabalho chegava para Aurélia de várias formas,
algumas muito significativas.
Como era costume acontecer nos encontros com os narradores, no dia da entrevista
coletiva também recebi novos elementos para compor o acervo de Aurélia e ―auxiliar na
pesquisa‖, como diziam. Vanda, uma de suas sobrinhas, entregou-me, entre outros objetos,
uma biografia de uma mulher. O livro presenteado pela aluna que ingressava em sua turma em
1943, revela as expectativas de uma mãe – que escreve a dedicatória pela filha de seis anos de
idade. Além de dar-lhe a filha em batismo, esperava que esta fosse uma ―discípula‖ da
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madrinha. A biografia de Mary Stuart, por Stefan Zweig136
, pode indicar também uma
intenção de comunicar que a mãe reconhecia a valorização do feminino que Aurélia
representava. Identifiquei a caligrafia de minha avó.
Figura 20 - Biografia de Maria Stuart, dedicatória/segunda capa. Presenteada
à professora em 1943, ano seguinte à edição do livro.
Fonte: Coleção Aurélia Braga. CENPRE.
Scott (2000) atenta para o fato de que as pesquisas vêm tratando de duas maneiras as
participações femininas nos processos históricos, uma delas é relatando os casos, a outra é
buscando suas causas. Neste sentido, vejo como proveitoso aliar as duas vertentes, pois todos
os relatos sobre a participação de mulheres no movimento integralista, ou sobre o pioneirismo
de Aurélia como mulher ouvida e referendada fora do lar nesta comunidade, poderiam pouco
significar não fora o fato de que na região da Baixada Fluminense, nas décadas anteriores a
educação das mulheres era:
Familiar e voltava-se para a vida caseira, sem muitas preocupações com relação a
uma melhor instrução, ou mesmo uma educação nos moldes europeus. Desta forma,
136
Stefan Zweig (Viena, 28 de novembro de 1881 — Petrópolis, 23 de fevereiro de 1942 foi um escritor,
romancista, poeta, dramaturgo, jornalista e biógrafo austríaco de origem judaica. A partir da década de 1920 e
até sua morte foi um dos escritores mais famosos e vendidos do mundo. Suicidou-se durante seu exílio no
Brasil, deprimido com a expansão do nazismo na Europa, durante a Segunda Guerra Mundial.
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ficava a cargo da família uma educação básica e voltada para o casamento, que
costumava acontecer no início da adolescência. [...] Com exceção das escravas, que
devido aos trabalhos mantinham contato com homens e o restante da sociedade, as
mulheres, em especial as mais moças, eram mantidas em permanente reclusão. [...] A
vida feminina girava em torno da religião. Traço este sempre presente, em todos os
relatos até o dia de hoje. As mulheres tinham o direito de sair somente no dia de
domingo, pela manhã, quando se dirigiam à Igreja. Geralmente, se juntavam a outras
presentes e, separadas dos homens, sentavam-se ao chão para os sermões
dominicais. (HÖGEMANN, 2004, p. 19)
As informações sobre a vida das mulheres na Baixada Fluminense, no século XIX,
trazidas nesse texto, baseiam-se nos relatos de viagem de John Luccock, comerciante inglês, e
nas imagens da vida cotidiana de mulheres, captadas pelo artista Johan Moritz Rugendas.
Depreendo das informações contidas no texto da pesquisadora, Raquel de Castro Högemann,
que a tentativa de generalizar a vida das mulheres na Baixada torna-se um exercício difícil já
que a senhora e a escrava conviviam nessa mesma sociedade. Se por um lado as senhoras
eram corpulentas por falta de exercícios, da lida doméstica, que eram feitos pelas escravas,
por outro também assumiam responsabilidades com a maternidade e as questões do
casamento ainda muito jovens. Luccock acrescenta uma informação relevante sobre toda
região do Rio de Janeiro, um dado a impressionar é que 25% dos lares na região, no XIX,
eram liderados por mulheres. Provavelmente por escravas libertas, viúvas e abandonadas.
Entretanto, o perfil da mulher que a ―instituição‖ (HÖGEMANN, 2004) patriarcal e
conservadora vem marcar – mesmo que transgredido sempre de alguma forma pelos arranjos
decorrentes, principalmente, do regime escravocrata – é o de uma mulher submissa e voltada
para o lar e a família.
A consolidação do estado nacional, passou a exigir uma participação maior das
mulheres no trabalho, principalmente nas áreas urbanas que cada vez se adensavam
demograficamente e demandavam por trabalhadores mais qualificados. Mas, do ponto de vista
individual, pode ter sido o infortúnio da perda dos bens da família do pai de Álvaro, seu avô,
que auxiliou a forjar em Aurélia um perfil mais proativo e mais autônomo ao que era comum
nas mulheres em Belford Roxo e região. Segundo as informações fornecidas por sua família,
as irmãs de seu pai, Corina e Ermelinda, trabalharam em ateliê de modista francesa na Rua do
Ouvidor, no Rio de Janeiro. A disponibilidade para trabalhar nesse ambiente, que desde o
século anterior era visto como local ligado à prostituição, pode indicar uma visão menos
conservadora do papel da mulher, ou a pobreza absoluta que lhes suprimia as opções.
Não tiveram muitas escolhas, pois ficaram órfãs, após a trágica morte da mãe e o
suicídio do pai. Marinete dos Santos Silva (2013), chama de ―vozes dissonantes‖ as mulheres
que trabalhavam nesses ateliês no século XIX.
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A rua do Ouvidor tornou-se um local de concentração de costureiras e modistas
francesas entre 1821 e 1822. [...] em1818 havia no Rio de Janeiro apenas duas e, já
no início de 1821, somavam 54 ao todo. [...] As acusações de práticas de prostituição
feitas às modistas e costureiras francesas podem ser entendidas, em um primeiro
momento, como exteriorização de um preconceito contra qualquer atividade
exercida pela mulher fora do ambiente doméstico. A existência da escravidão, por
sua vez, contribuía para a desvalorização do trabalho manual. Sair à rua
desacompanhada e trabalhar era coisas ligadas à condição de escrava ou prostituta.
Essa constatação, entretanto, não anula a possibilidade de que nos ateliers de costura
as mestras e suas aprendizes complementassem seus ganhos através do comercio
sexual. (SILVA, 2013, p. 186-187)
Embora em outro período, as atividades das costureiras da rua do Ouvidor ainda
guardavam as representações construídas no passado. A disponibilidade desses membros da
família da professora para ocuparem posições que estavam de certa forma, ainda na década de
1930, ligadas ao estigma da prostituição pode sinalizar que eram mulheres ―dissonantes‖ na
sociedade. As tias, de alguma maneira, serviam de exemplo à Aurélia, que nas dedicatórias
das fotografias de sua juventude direcionadas a elas assinava: ―de sua Jeca‖. Assinalava,
assim, que via as parentes como mulheres citadinas e cosmopolitas, enquanto ela própria se
representava como provinciana. Jeca significava uma posição de inferioridade e atraso em
relação aos valores do meio social das tias.
Mas, o que tornou Aurélia conhecida e respeitada não foram somente suas
intervenções políticas, suas ações inéditas para uma mulher. Antes, o que a fez conhecida
foram suas ações pedagógicas e ações assistenciais. Quais seriam suas estratégias e as
evidências desse trabalho? Como a professora conquistou o lugar que ocupou, talvez
principal, nesta comunidade?
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3 INFÂNCIA, ALFABETIZAÇÃO E ASSISTÊNCIA
Ao terminar deixo minha gratidão a todas as professoras que lutaram e lutam contra o
analfabetismo de nossa gente, na pessoa dessa batalhadora criatura amiga que é
Aurélia Braga.
Jesus de Castro Vieira137
Contribuir de algum modo para o amparo social da infância de Belford Roxo, para que
ela se sinta feliz dentro desse pedaço sagrado de terra do Brasil.
Aurélia de Souza Braga138
A primeira vez que o menino viu Aurélia não esqueceu. O cabelo em duas tranças
estava enrolado próximo às orelhas. A moça tinha um semblante fechado, era alta, bem
morena – mistura antiga de branco, índio e negro –, muito magra e cerimoniosa. Mesmo
sendo assim, pelo visto, adivinhou-lhe algum encanto. A tia da professora a levou em casa e
foi logo elogiando os dotes da sobrinha para sua mãe. Disse que era boa e conhecida no lugar
de Campos de onde vinha. Walter139
ficou espiando a moça do seu jeito, provavelmente com o
canto dos olhos. Muito diferente da sua irmã e da mãe – que ainda usava os cabelos envoltos
em lenços cheios de cores da camponesa de Trás os Montes, região agrícola de Portugal –,
Aurélia era um tipo de mulher ao qual o menino, então com seis anos, não estava acostumado.
Por isso ele atribui ―as tranças‖ o fato de ter guardado na lembrança aquele momento. Walter,
como vários dos entrevistados neste trabalho, é um dos dois tipos de narradores descritos por
Bosi, é ―aquele que ficou e conhece sua terra, seus contemporâneos, cujo passado o habita‖140
.
137
Primeiro vereador eleito, em Nova Iguaçu, de Belford Roxo. O trecho faz parte de um discurso proferido por
ele em 1986, e traz inúmeras informações relativas à história do então distrito. O texto pertence ao acervo do
Centro de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural de Belford Roxo – CENPRE. O vereador exerceu
apenas um mandato, de 1951 a 1954, segundo os arquivos da Câmara Municipal de Nova Iguaçu. Foi
colaborador do jornal escolar editado por Aurélia, O Infantil, entre os anos 1939 e 1940 (aproximadamente).
138
Discurso de Aurélia no lançamento da pedra fundamental da Sociedade de Proteção à Infância e à
Maternidade de Belford-Roxo, em 1948.
139
Walter Vicente, o único sobrevivente dos três primeiros alunos na Solidão, que Aurélia elenca em seu esboço
autobiográfico. Em uma peça teatral, organizada em 1936 (ou 1937) pela professora e seus alunos, ele fazia o
papel de Dunga, surdo-mudo, personagem de Branca de Neve e os Sete Anões, dos irmãos Grimm, porque era
o menor e o mais tímido. Deu a entrevista olhando a câmera com o canto dos olhos.
140
BOSI, Ecléa (1979, p. 43). O outro tipo de narrador é aquele que viaja e descreve o que vai encontrando em
outros lugares diferentes do seu.
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Aurélia, assim, ainda o habita.
A comunidade do povoado de Belford Roxo ganhava maior número de atores sociais,
principalmente a partir das décadas de 1920-30, com maior acréscimo em 1940. Grande parte,
trabalhadores rurais vindos das decadentes regiões cafeeiras, negros do período pós-abolição,
e comerciantes atraídos pelo crescimento da citricultura (COSTA, 2013), dentre eles também
imigrantes e descendentes de portugueses, italianos, espanhóis, turcos, sírios e libaneses.
Havia demanda tanto para as funções agrícolas, quanto para o comércio e a pequena indústria
semiartesanal. Com as perspectivas de modernização da agricultura, essas atividades
necessitavam que os trabalhadores fossem alfabetizados. No periódico de Nova Iguaçu,
Correio da Lavoura, intensificaram-se as matérias sobre a necessidade de alfabetizar, de criar
escolas para população. Em todas as edições, matérias em torno do assunto apareciam.
FALTA DE ESCOLAS – De onde deve partir o melhor exemplo de sacrificios em
favor da Alphabetização do paiz? Seria quase superfluo responder: do Districto
Federal, que é a capital do Brasil. Infelizmente isso ainda é um problema de causar
apprehensões. As escolas mantidas pela prefeitura não bastam. [...] Não está certo;
contrasta com o esforço em prol do progresso nacional em todos os ramos de nossa
ativicdade. [...] Mande o prefeito levantar uma estatistica, ainda que aproximada, das
creanças que deixaram de estudar por falta de escolas e verá o alcance das
providencias [...]. (Correio da Lavoura, 31/03/1932, p.1).141
A professora tinha pressa em começar a dar aulas. Não havia escolas na Solidão, um
lugarejo distante uns três quilômetros do centro do arraial de Belford Roxo. Somente uma
escola pública na região central, na Avenida Francisco Sá142
; a Escola de Coqueiros,
oficialmente Escola Municipal Arruda Negreiros143
, que até esse ano de 1935 possuía uma
141
Observando o periódico Correio da Lavoura, que circula desde 1917 em Nova Iguaçu, percebi que no espaço
de tempo compreendido entre 1930 e 1935 intensificaram-se as matérias que exortavam a importância da
alfabetização e da criação de escolas no município, passando a existir uma coluna permanente tratando do
assunto.
142
Hoje Avenida Benjamim Pinto Dias.
143
Em 10 de março de 1931, à página 2, o Correio da Lavoura publicava uma lista com o nome das 24 escolas
do município de Iguassú (não havia recebido o nome de Nova Iguassú). Dentre as escolas ainda não figurava a
Arruda Negreiros. Em Belford Roxo não figura o nome de escola municipal nesse ano. Apenas menciona a
matéria uma escola na Prata, Valério Rocha, a região hoje pertence à Nova Iguaçu, porém faz divisa com
Belford Roxo, era a mais próxima, portanto. Em 22 de março de 1932, à página 12, o mesmo periódico
publicava sob o título ―Instrucção publica‖: ―Existem no municipio 29 escolas mantidas pela municipalidade e
duas subvencionadas. As escolas municipaes foram localisadas, de preferência, na zona rural, nos núcleos de
população mais afastados da sede‖. E dá conta de que existiam um total de 1566 alunos em todos os oito
distritos, e 1968 se somados os 402 das escolas subvencionadas. No 1º. Distrito, o de Nova Iguaçu, do qual
Belford Roxo fazia parte, havia 432 alunos e pelo visto estes não eram moradores de Belford Roxo. Ainda
destaco que mantenho a grafia original dos textos aqui transcritos.
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turma. A professora Maria Emília Caldas144
vinha de longe, de trem, o principal meio de
transporte e ligação com a capital do país, o Rio de Janeiro, para dar aulas às crianças. Não
morava em Belford Roxo. Alguns anos antes outra professora, Aurora Labarque145
, também
percorrera o mesmo caminho para dar aulas no arraial146
. Por isso Aurélia logo ficou
conhecida. Sua família tinha intenção de se fixar no lugarejo, e este fato foi significativo e
divulgado para uma parcela da população urbana de menos de quatro mil habitantes147
.
Aurélia começou no magistério em Belford Roxo dando aulas em casa para os três filhos de
Maria do Carmo Vicente, moradores da Solidão. Mas logo o interesse pelo trabalho da
professora cresceu no lugarejo. O pai dos meninos, Emigdio, era mantenedor da primeira
igreja católica em alvenaria de Belford Roxo, a Igreja do Sagrado Coração de Jesus ou a
Igreja da Solidão, que ficava na colina bem ao lado da casa dos tios da professora. Era a única
construção que realmente poderia abrigar uma turma inteira.
O que significava a presença dessa mulher, em uma terra habitada por mulheres
invisíveis? Nesse sentido, é possível observar o quanto esta história se conecta, pelos
diferentes vieses, com a história da educação e com a história das conquistas de autonomia
feminina no Brasil e no continente. Seria a ―caixa-preta‖148
da sala de aula de Aurélia uma das
chaves para o entendimento não só de como ―a escola participou – principalmente a partir de
fins do século XIX e ao longo do século XX – como agente ativo e de grande centralidade.‖?
E também de como possibilitou que as professoras pudessem conquistar e exercer alguma
144
―Termo de exames‖ da Escola Arruda Negreiros de 16 de novembro de 1936, do acervo do CENPRE. Em
outro ―Termo de Exame‖, datado do mesmo dia, Aurélia aparece assinando como ―Catedrática‖ e como
―Adjunta‖ Odette Andrade Silva. Também depreendido dos relatos dos narradores, mas que não citaram a
professora Odette.
145
A professora Aurora Labarque é citada por Jesus de Castro Vieira, no mesmo texto donde extraí a epígrafe.
Depreendi que a professora trabalhava dando aulas em Belford Roxo, mas no APERJ, nos ―Mappas de
frequencia‖, nessa escola não consta o seu nome, e sim o nome de Dogelina Acir Caldas. Pode ser que a escola
já existisse anteriormente no mesmo local, e tenha passado a pertencer ao município somente em 1934.
FONTE: APERJ. Fundo do Departamento da Educação, códigos 02653, 02641, 02640.
146
Pelas informações encontradas no periódico Correio da Lavoura, a escola foi criada entre 1932 e 1934,
quando o governo municipal intensificou o processo de criação de escolas, gerando matérias de caráter de
prestação de contas das ações da prefeitura nesse âmbito.
147
Segundo a Cronologia de Belford Roxo, escrita por Ruy Afrânio Peixoto e encontrada no acervo do Instituto
Histórico e Geográfico da Câmara Municipal de Duque de Caxias, em 1940, quando o lugar já tinha o status de
6º Distrito de Nova Iguaçu, sua população constituía-se de 7.434 habitantes, sendo 3.383 localizados em área
rural. Essa área não distava muitos quilômetros do centro, considerado área urbana, e nela não havia escolas
nem professores rurais. Depreende-se que cinco anos antes a população rural ou era maior ou se igualava à
urbana.
148
ALVES E MIGNOT (2012, p. 378). Na página 4, citando Ramos (1992): ―[...]em primer lugar, averiguar
cuântas son, qué hacen, qué dicen, como viven, qué significa su presencia em una sociedad determinada em um
período histórico especifico.‖
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liberdade? Os mistérios dessa ―caixa-preta‖, sala de aula, vêm sendo revelados pelos manuais
escolares. Mas as próprias práticas pedagógicas, como o uso de cartilhas, livros e
procedimentos didáticos, são ―portadores de uma memória específica sobre como se elaboram
as interpretações e representações sobre a história nacional, os valores e modelos de cidadãos,
a moral religiosa e laica‖ (ALVES; MIGNOT, 2012, p. 379). A memória dessa sala de aula de
Aurélia pode favorecer a conexão com outras regiões para auxiliar na compreensão de
elementos mais amplos da história da educação e das lutas femininas? Para saber preciso abrir
a caixa, revirar seu conteúdo.
3.1 (I)Materialidades na Escola do Sagrado
Chegamos à raiz da colina, olhamos, lá está a nossa igreja e também a
nossa escola. Subimos o outeiro. Descansamos um pouco. Até que sôa a
sineta nos convidando a entrada. Uma vez em nossos lugares cada um toma
de seu livro e esquece os folguedos.
Iêda Rodrigues, 9 anos, 2º ano149
. Escola Sagrado Coração de Jesus
Imagem mais próxima da que Iêda tem de sua escola e também da sua igreja:
149
Iêda não foi localizada, não é uma narradora, seu texto faz parte da coleção de manuscritos dos alunos de
Aurélia pertencentes aos acervos do CENPRE.
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169
Figura 21 - Escola e Igreja do S. C. de Jesus150, fundada
em 1928, na Solidão, fotografada em 1986, hoje
pertencente à Diocese de Nova Iguaçu.
Fonte: Coleção Aurélia Braga. CENPRE.
No alto da colina, de frente para o nascente e janelas para o poente, a escola não havia
sido pensada como tal. Diante do altar-mor e rígida, como convinha à época, escondia Aurélia
o fato de não ter sido formada para o ofício em cursos regulares, embora fosse uma prática
legitimada que pessoas com mais estudos lecionassem, esse era um dos segredos guardados
por ela e pela família. Era tida como ―culta‖, gostava de ler e andava acompanhada pelos
livros. Escrevia muito bem, e tinha a caligrafia tão prestigiada desse tempo que entendia o
traço da letra como marca de cultura. As práticas de sua educação eram exigentes dos critérios
150
CORREIA, Telma de Barros. (2011, p.23). Sobre a arquitetura da igreja, que faz parte de um conjunto
composto pela pequena fábrica Bicchieri & Cia., e duas casas de operários, entende-se: ―Em casas, igrejas,
escolas e instalações industriais pertencentes a fábricas, vilas operárias e núcleos fabris erguidos entre as duas
últimas décadas do século XIX e as primeiras do XX é possível localizar exemplares de arquitetura com
fachadas recobertas por decoração de viés eclético. A noção de racionalidade que rege o mundo fabril não o
impediu de se deixar contaminar pela profusão de ornatos, que constitui uma das expressões externas da
arquitetura eclética nos prédios principais, em frontões no centro da fachada ou em torre, foram dispostos
relógios, ocupando posições relevantes na composição. A presença desses relógios (substituindo óculos ou
elementos decorativos), além do tratamento sóbrio das superfícies – em tijolo aparente ou com reboco
ornamentado com linhas paralelas em baixo-relevo – também traduz a linguagem eclética segundo o
utilitarismo inerente ao mundo industrial‖ Anais do Museu Paulista. v. 19. n.1. jan.- jun. 2011.
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170
de sua época e a professora não media consequências para conseguir seus intentos com os
alunos. As crianças sentavam-se mal, sem equilíbrio, os bancos não eram próprios para a
tarefa do ensino. O ambiente não remetia às necessidades do aprendizado. Mas ainda assim
ela exigia disciplina, demonstração de empenho nos estudos e obediência.
A relação das crianças e da professora com os objetos dessa escola merece atenção,
afinal, ―é a relação física entre os objetos e os sujeitos que faz a cultura‖, lembra Marcus Levy
Bencostta (2015) em sua apresentação de recente dossiê sobre as abordagens históricas da
cultura material escolar, a partir das colocações de Marie-Pierre Julien e Céline Rosselin:
Os objetos possuem forma, cor, dimensões, matéria. Mas, além disso, eles exercem
funções sociais, estéticas e simbólicas. Nesse sentido, os objetos possuem
significações polissêmicas que são ressemantizadas ao longo de suas existências e
usos. Ainda na compreensão das autoras, o sujeito não se constitui um receptor
passivo face à mensagem comunicada pelo objeto, ao contrário, ele constrói a
significação graças a um processo ativo de percepção. (BENCOSTTA, 2015, p. 15)
A Igreja do Sagrado Coração de Jesus foi construída como um monumento, erguida
por católicos fervorosos a partir de 1928, em 1935 ainda recebia os adornos, os santos e os
paramentos. Em estilo eclético, no frontão vislumbra-se o relógio como ornamento, e
respeitando o modelo de construção das tradicionais igrejas europeias para medidas e
localização dos símbolos151
, conserva no altar-mor a Sagrada Família, o Sagrado Coração de
Jesus ladeado por uma Virgem Maria e por São José. Além da pia batismal, esculpida em
mármore de carrara, situada à esquerda de quem adentra em sua nave pela porta principal, a
igreja possui uma pedra assentada trazida de Roma. Santos vindos da Europa de muito valor,
trabalhos de alta marcenaria para os móveis da sacristia, confessionário e liteira. Ostensório e
paramentos banhados a ouro. Os alunos e a professora conviviam com verdadeiras obras de
arte todos os dias, o que incita pensar como esses ―receptores ativos‖ significaram os objetos
dessa sala de aula, que ao invés de murais ou quadros negros possuíam santos nas paredes?
Como perceberam e criaram significações para esses objetos?
Dos materiais escolares usados na Escola da Solidão, e que foram descritos pelos
alunos, encontrei o principal que se refere à alfabetização, a cartilha, e o caderno doado por
uma indústria também foi mencionado. Mas, vê-se que a cultura material dessa escola
151
Nos anos da Ditadura, quando a igreja católica na Baixada Fluminense acabou por assumir Don Adriano
Hipólito como bispo, a Igreja do Sagrado foi fechada pela Mitra, que a devolveu à família Bicchieri, alegando
a falta de comprovação da propriedade do terreno da igreja, que fazia parte das terras da chácara. A
comunidade continuou abrindo-a para cuidar e rezar, mas sem a presença de um padre. A devoção nunca
deixou de se fazer presente na Igreja da Solidão. Nos anos 1980 a família insistiu e fez uma nova doação para a
Mitra Diocesana de Nova Iguaçu, que lhe proveu um padre, anexando-lhe à Paróquia de Nossa Senhora da
Conceição, no centro de Belford Roxo.
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171
identifica-se mais com o processo de transmissão da cultura, no sentido empregado por
Bencostta: ―Os objetos na escola adquirem um sentido educativo, muitos são auxiliares do
ensino e instrumentos de transmissão da cultura‖ (BENCOSTTA, 2015, p.15). Referindo-se a
esses objetos como testemunhos da história, Agustin Escolano Benito (2010) diz que se
consistem na ―caixa preta‖ por onde pode-se perceber as relações e estereótipos nos quais os
sujeitos foram socializados.
En estos materiales residen probablemente ciertos testimonios de la ―gramática de la
escolarización‖ de la que hablan algunos, un código invisible pero reglado que hace
que la cultura escolar sea en parte un orden sistémico relativamente cohesionado y
estable, expresión al tiempo del habitus profesional de los enseñantes y de los
estereotipos en que se han socializado los sujetos. (ESCOLANO, 2010, p.14).
Claudia Alves (2010) discute a educação, a memória e a identidade como ―dimensões
imateriais‖ da cultura material, enxergando esta cultura como ―Recortada na ampla rede de
relações culturais que constrói a escola e suas práticas‖ (ALVES, 2010, p.104). Alerta, a
pesquisadora, que a cultura material da escola não pode ser vista apartada dessas relações,
considerando que a memória materializada exerce um ―fascínio sobre o historiador‖, que por
vezes toma e interpreta o objeto sem vê-lo como recurso ao debate historiográfico mais
amplo, este que permite encontrar parâmetros de análise que articulem a materialidade da
escola à produção cultural que envolve outros aspectos da vida social. Neste sentido, os
materiais pertencentes à sala de aula da professora Aurélia na Igreja do Sagrado são tomados
aqui conjuntamente às suas práticas e suas relações sociais e político-pedagógicas, ou seja,
percebidos inclusive como partícipes das relações culturais. ―Os objetos, assim como os
edifícios, para produzirem sentidos, participam de sistemas simbólicos integrados em amplos
circuitos de produção sócio-cultural‖ (ALVES, 2010, p.120). Entendendo, ainda, que:
Um repertorio dos elementos materiais da cultura escolar, desde os prédios até as
lousas, passando por manuais, uniformes, cadernos escolares, instrumentos de
escrita e os mais diversos materiais, vem sendo construído, paulatinamente, como
resultado de pesquisas e projetos de preservação de acervos escolares. Tomá-los
como portas de entrada para a compreensão dos processos educativos que ocorrem
no espaço escolar exige o movimento de conectá-los às práticas que os
circunscrevem. (ALVES, 2010, p.105)
As práticas da professora, segundo a narradora Ester Gomes, acrescentavam ao
currículo as aulas preparatórias para o sacramento da 1ª. Comunhão. Ensinava, Aurélia, o
catecismo como matéria na Escola da Solidão.
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Católica, católica. Que eu saiba, acho que era católica. Eu fiz comunhão, tudo com
ela, quando estudava com ela. Se ela não fosse católica, não ia se empenhar com a
gente pra fazer comunhão, porque na minha família ninguém fez, só eu que estudei
com ela. Minha mãe nem era católica. [...]Dava! Catecismo. Sim, senhora, sim.
Estudava o catecismo, sim. [...]Com ela mesmo. [...]Tinha dia que ela dava mesmo,
um dia lá ela dava. Tomava lição do catecismo, eu esqueci tudo, coitada. (ESTER
GOMES, 2013)
Apesar do duplo papel, parecia haver uma espécie de pacto entre os alunos e a
professora de que naquele momento se tratava da escola e não da igreja. O sino do
campanário era o que soava anunciando pela manhã o início das aulas, mas Iêda diz que ―soa
a sineta‖, num gesto de legitimação da sua escola. Compreendo isto pelo fato de que a criação
da escola não foi uma iniciativa da Igreja, apesar de Aurélia promover o ensino religioso, ela
apenas emprestou suas instalações. Naquele momento a Igreja Católica estabelecia uma
estratégia de ―reforma pelo alto‖ em decorrência da separação com o Estado, confirmada pela
Constituição republicana de 1891. ―Também a Igreja não se preocupava em abrir escolas para
o povo (...) estando sua estratégia voltada para os filhos das classes dominantes‖ (HORTA,
1994, p. 94, apud BEOZO, 1984). Mas a devoção era ensinada na escola de Aurélia na igreja,
e estava também presente nas encenações da Paixão de Cristo; nas coroações de Nossa
Senhora, promovidas no mês de maio, onde as crianças encenavam o louvor à Maria; nas
festas em homenagem aos santos de junho; e nos festejos do nascimento do Menino Jesus.
Sobre os prédios escolares, o próprio Relatório da Interventoria ao Conselho
Consultivo 1931-1934152
reconhece, na página 35, ―a impropriedade da maioria dos prédios
alugados para funcionamento das escolas públicas‖. A escola retrata o quadro de precariedade
semelhante aos locais de atividades de ensino na capital política do país entre 1910 e 1935.
Muitas vezes, casas alugadas transformadas em escolas, tornavam-se focos de alastramento de
epidemias e funcionavam com deficiências de asseio, conservação e localização (NUNES,
1996). Pode-se entender, com isto, que se tais aconteciam na capital do país, o que seria na
sua periferia, e ainda em zona mais rural que urbana? Nisto, as escolas do início dos anos
1930 eram semelhantes àquelas do final do século XIX, pelo sentimento religioso, pela
necessidade de se forjar um heroísmo, até pelos castigos físicos e morais, que aconteciam sem
muitas explicações (NUNES, 1996).
Os pais apoiavam a professora Aurélia em tudo isto. E quando os filhos se queixavam
de alguma ação da professora, ainda eram punidos pelos pais. A prática pedagógica de Aurélia
também era apoiada por eles, pois vinha ao encontro dos seus valores e do modo como
compreendiam que os filhos deveriam ser tratados e ensinados, inclusive, dentro das tradições
152
FONTE: APERJ. Lombada: Relatorio da Interventoria ao Conselho Consultivo, livro n. 504.
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católicas. Esses pais referendavam uma educação que provavelmente foi a que receberam, ou
a que imaginavam deveriam ter recebido muitos anos antes, já que nem todos tinham
frequentado escolas. As imagens dos santos, portanto, faziam parte desse repertório de
elementos da cultura material dessa escola.
As condições da sala de aula improvisada na igreja são lembradas pela narradora Ester
Gomes, bem como a determinação de Aurélia em levar a cabo o seu projeto:
Muito precário, muito precário. Acho que naquela igreja não tinha nem carteira,
mesmo, carteira. Acho que eram bancos, que tinham da igreja, que a gente estudava
ali, escrevia na perna. [...] Ah tinha, isso que eu falo sempre, ela tinha prazer em
ensinar, prazer em que o aluno aprendesse. Não era daquelas que ―ah aprendeu,
aprendeu, menos um pra me chatear‖, como tinha antigamente, algumas assim. Ela
tinha prazer em ensinar, era vocação mesmo. (ESTER GOMES, 2013)
Os objetos contam dessa escola e por eles procuro entender as práticas educativas da
professora Aurélia, e do cotidiano vivido ali. Conforme os relatos de alguns desses alunos,
percebi que o lugarejo não oferecia ainda nenhum local para venda e distribuição de materiais
escolares. Os mínimos recursos necessários ao ensino, como cadernos, lápis e borrachas, eram
artigos de luxo adquiridos com sacrifício. Tomados esses objetos como indícios
(GINZBURG, 1989) foi possível trazer à memória como se processava a educação nessa
escola e as suas relações com a comunidade, e perguntar sobre a professora, tal como Cecília
Meirelles traz à cena, em A escola atraente (MIGNOT, 2010), esses objetos que traduzem as
relações na escola e evocam, também, a possibilidade de resgate biográfico.
Eram improvisados, e de poucas páginas, os cadernos usados por muitos alunos da
Escola da Solidão, doados pela pequena indústria ―Anil Rikitea‖, fabricante do produto,
derivado de uma planta, amplamente utilizado na época para colorir de azul as roupas brancas
ao final da lavagem. O produto fazia em seu nome, estampado na capa do caderno, uma
referência ao azul de uma praia da Polinésia Francesa. O único armazém da Solidão cuidava
de receber do fabricante a doação e entregar às famílias, e também à própria Aurélia. Nesse
sentido, o emprego desse caderno poderia significar mais do que apenas a falta de
disponibilidade de outros. A opção pelo uso de algo proveniente de uma campanha de vendas
de uma fábrica poderia vir ao encontro dos ideais dessa época de fomento e criação da
pequena indústria, colocando esses ideais em relevo, e ratificando ―as estruturas
socioeconômicas das sociedades que elaboram, utilizam e manipulam estes produtos
[cadernos]‖ (CASTILHO GÓMEZ, 2012, p. 67).
À primeira vista, tingir de azul parece ser aqui uma preocupação estética, sem
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nenhuma função prática, para uma comunidade que tinha tanto por construir. Entretanto,
entende-se que pelo uso, com o tempo, as roupas de cama, banho e mesa, bem como as
íntimas, ficavam amarelecidas, envelhecidas. O anil era uma forma de maquiagem, de criação
de uma aura de civilidade e higiene, de talvez possibilitar uma aproximação com uma elite
que podia usufruir do novo e do que representava uma bela praia na Polinésia. O produto fruto
da indústria passava a ser mais valorizado do que os manufaturados artesanalmente ou as
produções caseiras, marcando o momento de transição econômica e social pelo qual a
comunidade passava. E evidenciando que na ―Cidade Perfume‖153
, ao mesmo tempo,
houvesse uma tendência de representação social de uma lavoura arcaica, e uma política do
Distrito Federal de incentivo à industrialização e modernização do campo154
.
Eles ainda se lembram, e se ressentem por não terem outros cadernos para passar a
limpo as lições que, pela borracha que utilizavam, ficavam suas folhas borradas. Como
depreendo dos relatos de Danilce Micho, seus erros ficavam sempre marcados. Nesse sentido,
―o caderno escolar depõe sobre a pluralidade de significações: orientação do ato educativo em
que se captam objetivos políticos e sociais‖, assim:
O caderno escolar assume um significado negativo ou positivo junto ao aluno que
diariamente o manuseia. Sua apresentação reflete a escola, mas também aquele
aluno. [...] A utilização do caderno gerou uma relação curricular e educacional que
se deixou penetrar pela vivência da escola, entre margens de interdições e
consentimentos. (FERNANDES, 2008, p. 49-50)
O que a aluna de Aurélia parece evidenciar é que os ―erros‖ na sua infância não eram
enfrentados como possibilidades de novos acertos, mas assumiam uma visão fatalista que
circunscrevia no aluno uma culpa insuperável. Isto pode remeter, portanto, à reflexão do
quanto a cultura material da escola pode revelar dos aspectos mais subjetivos da ação
pedagógica e o quanto esses consentimentos e interdições (FERNANDES, 2008, 2005)
deixam marcas tão profundas que podem influenciar e repercutir por todo um grupo social. O
movimento contrário também acontecia.
Talvez o que Danilce esteja dizendo, também, é que recebeu na infância, e na escola
da Solidão, uma série de conceitos que até esse período da gestão de Vargas eram comuns. A
partir de 1938 foram rechaçados, no Estado Novo, quando Getúlio Vargas extinguiu os
153
Como era conhecida a cidade de Nova Iguaçu, pela florescência dos laranjais.
154
Para uma análise da situação agrária da região ver Dias, Amália (2012, p. 37). Sobre os paradigmas e
paradoxos vividos em Nova Iguaçu nesse período. ―O rompimento com a lavoura arcaica se construía à medida
que a agricultura era propagandeada como indústria, como a principal indústria do país, a pioneira, da qual
dependeriam todos os outros ramos‖.
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partidos e perseguiu os membros da Ação Integralista Brasileira. A polícia sob o seu comando
bateu às portas de várias famílias em Belford Roxo nesse ano, à procura de materiais
impressos, livros, símbolos, bandeiras, uniformes e integralistas155
.Ser integralista a partir de
então era ser mal visto socialmente. A narradora, em seu relato, dá a perceber lembrar-se de
passagens de sua infância com culpa, em sua narrativa fala das festinhas que ocorriam no
terreno que os integralistas utilizavam próximo à sede do núcleo, ao final da Praça Getúlio
Vargas. Essas festas eram organizadas e promovidas pelos participantes desse núcleo. Logo
após a lembrança, a narradora passa a desculpar-se, envergonhada, ―nós íamos, não tinha
outra coisa...‖. (DANILCE MICHO, 2012).
A concepção de educação integral, presente no movimento integralista, e com indícios
nas práticas de Aurélia – quando determina, por exemplo, que as crianças estudassem nas
duas escolas nas quais atuava concomitantemente – aparece nas páginas do periódico
integralista O Therezópolis, do município serrano do Rio de Janeiro, na Província Fluminense
segundo a hierarquia da organização. O periódico anunciava, entre outras ações do
movimento, as escolas de alfabetização integralistas que se formaram na década de 1930.
Através desse órgão de imprensa, pode-se depreender que havia inúmeras escolas
integralistas, quase tantas quanto o número de núcleos, que no país chegaram a somar 3 mil
(COELHO, 2003), em municípios, distritos e lugarejos espalhados pelo território nacional. As
matérias apontam, ainda, para atividades educativas e sociais que, de certa forma,
solidificaram uma concepção singular de educação integral para os integralistas. ―Deus,
Pátria, Família‖ formam a tríade do pensamento integralista, conforme o Manifesto de 07 de
outubro de 1932, que lança as bases do movimento e para Lígia Coelho (2003) concretiza não
só a visão de homem e sociedade, mas também a visão do movimento em relação à educação.
Os núcleos integralistas espalhados nos pequenos municípios e povoados do estado do
Rio de Janeiro incentivavam a criação de escolas. Como já abordado anteriormente, a região
da Província Fluminense, para a hierarquia do movimento, dividia-se em onze regiões e uma
região especial156
. Cada uma delas tinha um governador e estava subdividida em núcleos
municipais e núcleos distritais. Campos, das maiores regiões em número de núcleos,
constituía-se na 7ª região e possuía cinco núcleos municipais. Totalizando 45 núcleos,
segundo o relatório integralista datado de abril de 1937. Toda Província Fluminense possuía,
155
Conforme relatos de Eliane Barcelos, da Família Bicchieri e de Walter Vicente. Com relação a esta
perseguição, Luiz Scapin dá seu testemunho sobre o que ocorreu em Nova Iguaçu no mesmo período.
156
FONTE: APERJ. Fundo de Polícias Políticas, Setor Integralismo, Notação 16. As informações sobre núcleos
e escolas integralistas da Província Fluminense fazem parte de relatório do movimento, datado de 1937.
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mapeadas, 124 escolas. No núcleo municipal de Campos encontravam-se mais de dez escolas,
seis delas dedicadas à alfabetização. O número de escolas ligadas aos núcleos é significativo,
se comparado ao número total de escolas do estado do Rio de Janeiro. Até junho do ano de
1934157
havia 999 escolas primárias em todo o estado, e dessas estatísticas as escolas
integralistas não faziam parte. Belford Roxo aparece, no relatório do mês de abril de 1937, da
Província do Rio de Janeiro, denominação do movimento integralista para este estado, com a
Escola de alphabetização Tiradentes. Como instalada no núcleo de Belford Roxo, a Escola
Tiradentes seguia o pensamento de Plínio Salgado e pautava-se pelas orientações da AIB.
Figura 22 - Relatório nominal das escolas integralistas do estado, 1937, constante Belford
Roxo, onde se lê os nomes das 124 escolas, em ordem alfabética, a de Belford Roxo é a
10ª.
Fonte: APERJ. Fundo do Departamento de Polícias Políticas, Setor Integralismo, Notação 16.
Segundo Trindade, a base filosófica inicial do integralismo coincide com a da ―nova
intelectualidade católica‖ (TRINDADE, 1979, p. 33), que teria no pensamento de Jackson
Figueiredo as suas raízes. Figueiredo aglutinaria as ações no Centro D. Vital e na Liga
Eleitoral Católica e um grupo de jovens que se propunham a promover a renovação espiritual
– anteriormente afirmada por D. Sebastião Leme, arcebispo de Olinda, em sua Carta Pastoral,
publicada em 1916 – dentre esses jovens destacava-se Alceu Amoroso Lima, crítico literário.
157
FONTE: APERJ. Sobre a instrução pública no estado do Rio de Janeiro, levantei os dados na Mensagem do
Presidente do Estado do R/J, livro n. 423, de 1930; e no Relatório do Interventor Federal do Estado do R/J, de
1934, livro n. 502, onde constam esses dados na página 71. Publicados nas oficinas gráficas do diário oficial de
Niterói.
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177
A questão lançada por Trindade pode ensejar o entendimento da rápida comunhão das
intenções de Aurélia, e do seu grupo social, às propostas da Igreja e da educação religiosa
naquele momento no qual se estabeleceu o trabalho da Escola Sagrado Coração de Jesus, na
igreja da Solidão. Mas, diferentemente da Tiradentes não poderia assumir posição política.
Para ratificar a ligação entre catolicismo e integralismo, no comício integralista de em 07 de
abril de 1935158
, que teve lugar no distrito-sede de Nova Iguaçu, os discursos dos
proeminentes militantes do movimento giraram em torno dessa relação, permitindo a reflexão:
[...] até que ponto a espiritualização da intelectualidade brasileira se relaciona com
as opções políticas dos anos 30? A relação entre os dois fenômenos é estabelecida
pelo próprio Amoroso Lima: ―O movimento integralista da década de 1930, como o
movimento democrata-cristão, da década de 1940, são movimentos, embora
contraditórios, em alguns dos seus ideais e seus métodos, que têm raízes ideológicas
embebidas na mesma reação espiritualista, embora com resultados opostos‖.
(TRINDADE, 1979, p. 34).
Tanto Jackson de Figueiredo, quanto Alceu Amoroso Lima e Plínio Salgado coadunam
com a ideia de buscar alternativas para a ―salvação‖ do Brasil, segundo Renata Duarte Simões
(2005), todos eles influenciados pelas ideias autoritárias que preponderaram nos anos 20 e,
principalmente, nos anos 30. Cada um a seu modo defende ―a revolução do sistema em termos
antiliberais, propondo uma forma de organização do sistema social e político em que
sobressai o papel primordial de um Estado forte e centralizado‖ (SIMÕES, 2005, p.12).
Porém, a autora também levanta as minúcias de cada pensamento onde eles não são
convergentes. ―Naquele período, Figueiredo, Lima e Salgado, de um modo ou de outro,
assumiram a posição de direita, antiliberal ortodoxamente autoritária. Isso era o que havia em
comum entre eles, no mais, cada detalhe fazia muita diferença‖ (SIMÕES, 2005, p.13).
O discurso de Salgado, de uma certa forma, assemelha-se com o discurso religioso:
Salgado fundamenta seu pensamento na doutrina cristã ortodoxa, afirmando ser seu
pensamento ―[...] um pensamento que vem de Cristo e vai para o Cristo [...]‖, pois,
segundo ele, ―[...] sua base está em Deus e sua inspiração nos Ensinamentos do
Evangelho‖ (SIMÕES, 2005, p. 1)
Mas as duas principais diferenças entre os discursos católicos e integralistas, ora
representados por Figueiredo e Lima de um lado e Salgado de outro, estão justamente na
esfera dos projetos educacionais. Os primeiros condenam a militarização educativa da
infância e das mulheres, e o juramento de fidelidade incondicional ao chefe nacional. Para os
158
Noticiado no Correio da Lavoura de 11-04-1935, trazido no capítulo II.
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católicos, somente a Deus se pode prestar essa incondicionalidade. Mas, segundo Simões
(2005), nem Figueiredo, nem Lima, nos seus discursos declaram oposição ou ataque ao
movimento ―[...] dado que o Integralismo possui, no campo social, em grande parte os
mesmos amigos e adversários que a Igreja‖ (LIMA, 2001, p. 187, apud SIMÕES, 2005, p. 4).
A relação catolicismo e integralismo é ratificada pelos integralistas também em um dos
folhetos apreendidos pela Delegacia Especial de Segurança Política e Social (DESPS), sob o
título: ―Os CATHOLICOS e o INTEGRALISMO‖159
, publicado pela Secretaria Nacional de
Propaganda integralista. No documento, após o título ―O Episcopado Brasileiro e o
Integralismo‖, onze160
bispos e arcebispos de várias cidades demonstram apoio ao
movimento, bem como ―O que Tristão de Athayde pensa sobre o Integralismo‖ intitula o texto
onde aparece a relação direta entre as ideias integralistas e as do intelectual católico.
Em outra esteira de pensamento está Olavo Bilac, responsável por desencadear
campanha em favor do serviço militar obrigatório. ―Sob a influência da pregação do escritor,
são fundados, em 1917, a Liga Nacionalista e o Centro Nacionalista‖ (TRINDADE, 1979, p.
21). Bilac não se considerava um militarista, mas via na ―nação armada‖ e na figura do
―soldado-cidadão‖ a forma de combater a supremacia militar. ―A estatocracia é impossível
quando todos os cidadãos são soldados‖ (HORTA, 1994, p. 10). Desta forma, foi divulgada a
ideia de que pela educação se formaria soldados, não somente nos quartéis. As práticas
educacionais da professora Aurélia são por vários narradores descritas como militares, Sara –
―como se fossem mesmo soldadinhos do Brasil isso aqui, é como eu vejo‖ (Sara Passos,
2013) – e Heloisa – ―A gente tinha que ficar enfileirado igual soldado‖ – falam disto com
muita propriedade. (HELOISA BICCHIERI, 2013).
159
FONTE: APERJ. Fundo da Delegacia Especial de Segurança Política e Social – DESPS (1911-1946), folheto
n. 5. Por tratar-se de uma publicação de propaganda do movimento, o documento deve ser relativizado.
160
FONTE: Fundo da Delegacia Especial de Segurança Política e Social – DESPS (1911-1946), folheto n. 5.
Após um referendum de apoio ao movimento, o nome e o lugar da autoridade católica. São elas:
―OCTAVIANO, arcebispo de Campos‖; ―FRANCISCO, bispo de Campinas‖; ―LUIZ, bispo de Uberaba‖,
―JOSÉ, bispo de Bragança‖; ―JOSÉ, bispo de Nictheroy‖; ―INOCENCIO, bispo de Campanha‖; ―ANTONIO,
arcebispo de Jaboticabal‖; ―MANOEL, bispo de Aterrado‖; ―FERNANDO, bispo de Jacarézinho;
―FRANCISCO, arcebispo de Cuyabá‖; ―JOAQUIM, arcebispo de Florianópolis‖.
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179
Figura 23 - ―Festa Auvre: Escolas Reunidas‖. Ano 1936.
No verso da fotografia, que traz um desfile na Praça Getúlio Vargas, em Belford Roxo, a inscrição: ―Festa Auvre.
Escolas Reunidas‖, e o ano. Aurélia aparece na frente, próxima à bandeira.
Fonte: Coleção Aurélia Braga. CENPRE.
Entre os ideais do Estado Novo, proclamados por Getúlio Vargas no Manifesto à
Nação de outubro de 1931, a educação do povo e a glorificação da Pátria são dos mais
exaltados. Segundo o chefe político da nação, ―o Brasil estava destinado à conquista das mais
puras glórias‖, mas essa glória da Pátria só seria alcançada pelo aprimoramento da educação
do povo e da valorização da sua capacidade de trabalho (HORTA, 1994, p.146). Neste
sentido, muitas ideias integralistas e católicas encontraram ressonância no ideário do Estado
Novo. As práticas da professora Aurélia evidenciam o quanto tudo isto estava presente em seu
projeto educacional, sendo difícil separar o que caberia às orientações do integralismo, das
visões do catolicismo e das legislações emanadas do Estado Novo.
As relações entre integralismo e catolicismo e integralismo e Estado Novo, discutidas
por Trindade, bem como as relações entre catolicismo e Estado Novo, discutidas por Horta,
convergem de várias formas na pedagogia utilizada pela professora, vindo ao encontro dos
relatos dos narradores, que descrevem que na escola da Solidão havia um dia da semana para
o ensino do catecismo; que todos os dias eles rezavam, antes e depois das aulas; e que
também a disciplina era rígida, com a entoação dos hinos e a exaltação da Pátria. Portanto, o
objetivo de investigar se as práticas de Aurélia seguiam o ideário integralista, neste sentido, é
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de difícil consecução, tendo em vista essas convergências. Necessário se faz, entretanto,
aprofundar o estudo também por suas práticas de alfabetização. Teriam especificidades tais,
capazes de identificar o trabalho da professora com práticas integralistas distintas das outras –
católicas, militares, estadonovistas?
3.1.1 Mistérios da ―caixa-preta‖
E nas manhãs frias, caminhava
Um bom pedaço até a Solidão,
Com os alunos a quem tanto amava,
Só alegria sentia em seu coração.
Micho, 1982161
Os alunos vinham de vários lugares de Belford Roxo162
. A alguns deles a professora
chamava no portão e levava, a outros ia encontrando na Estrada da Solidão. Caminhavam
juntos e apressados nas manhãs, que se coloriam do cinza ao laranja, em alvoroço. Era um
estirão até a Escola do Sagrado. Aurélia no mesmo ritmo que as crianças e, ali mesmo,
andando apressada, ela aproveitava para passar suas lições de como deviam se comportar.
Chegavam muito cedo, mas quando ouviam o barulho daquela algazarra, Carlito e Walter
corriam para abrir a porta principal da igreja e tocar o sino. Em 1936 a família de Aurélia já
havia se instalado em residência própria no centro de Belford Roxo, ao lado de onde ficava a
Escola Municipal Arruda Negreiros. Com a saída do prefeito, interventor, nesse ano, a escola
ganhou outro nome masculino, Escola Municipal Professor Paris163
, que não era um político,
mas um professor famoso de Nova Iguaçu. Se antes ela caminhava da Solidão a Belford
Roxo, para trabalhar nas duas escolas, agora ela fazia o trajeto invertido. A Professor Paris,
por essa época tinha uma turma pela manhã e outra à tarde. De manhã estudavam as meninas
e à tarde o ―turno masculino‖, com Aurélia. Todos concordavam que ela exercia muito mais
161
FONTE: acervo de Eliane Barcelos. Poema de Danilce Micho, escrito em 22-07-1982.
162
Depreendido principalmente dos relatos de Ester Gomes e Danilce Micho, que não moravam na Solidão.
163
A mudança do nome fica implícita na matéria de março de 1937 do Correio da Lavoura.
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181
domínio sobre os meninos que Dª Maria Emília, que ―era muito mais doce com as meninas‖
(Danilce Micho, 2012). Aurélia os sabia manejar, e disto ninguém discordava.
Laudelino Gatto164
é lembrado pela narradora Ester Gomes como monitor na Escola da
Solidão, principalmente era ele o encarregado de tomar a tabuada e cobrar a solução de
operações matemáticas dos colegas. Aurélia utilizava assim uma prática que remontava ao
século anterior, o uso de monitores para auxiliarem no ensino dos mais novos. O método
mútuo não foi colocado em prática no Brasil como concebido na França, devido às questões
arquitetônicas, às condições físicas das escolas. O modus operandi implantado por Aurélia é
uma adaptação às condições locais de falta de professores para o exercício do magistério e a
precariedade das escolas que, em geral, contavam com uma ou duas salas pequenas para o
número de alunos. Portanto, penso que esta maneira de conduzir o trabalho utilizando-se de
monitores seria uma apropriação livre e espontânea do método mútuo, dadas as circunstâncias
locais. Desta maneira ela formou muitas professoras, inclusive Fernanda165
e Danilce. Ambas
prosseguiram seus estudos no curso de Contabilidade do Ginásio Leopoldo, nas décadas de
1940-50. As duas ex-alunas trabalharam como professoras somente com a formação dada por
Aurélia, na monitoria, por longo período166
..
Isso vem evidenciar, também, o quanto Aurélia entendia o trabalho do professor como
um ofício assimilado pela experiência, pois que ela própria era um exemplo disto. Na região
de Campos, havia instalado um dos dois institutos estaduais que se destinavam à formação de
professores, o Liceu de Humanidades de Campos167
que, de acordo com as estatísticas, em
1929 formara apenas 40 professores. Aurélia não era formada. Como consta nos ―Mappas de
164
Laudelino Gato, foi monitor na Escola da Solidão e ajudou em 1939-1940 na edição do periódico O Infantil.
Por toda sua vida profissional foi tabelião do cartório de José Haddad em B. Roxo, não seguiu no magistério.
165
Fernanda Bicchieri só se formou como professora no Instituto de Educação Silveira Leite, em Nova Iguaçu,
em fins dos anos 1960.
166
―No Brasil, o ensino monitorial/mútuo é introduzido oficialmente pelo Decreto das Escolas de Primeiras
Letras, de 15/10/1827, primeira lei sobre a Instrução Pública Nacional do Império do Brasil, que propõe a
criação de escolas primárias com a adoção do método lancasteriano como método oficial‖ A prática da
monitoria na história da educação brasileira no período em que prevalecia o método mútuo, ou lancasteriano,
na primeira metade do século XIX, nas chamadas ‗escolas das primeiras letras‘ [...] era vista como uma forma
do professor conseguir disseminar a educação mais rapidamente [...] O monitorial system ou methode mutuelle,
nome adotado na França, baseia-se no ensino dos alunos por eles mesmos. Todos os alunos da escola, algumas
centenas sob a direção de um só mestre, estão reunidos em um vasto local que é dominado pela mesa do
professor, esta sob um estrado. Na sala estão enfileiradas as classes, tendo em cada extremidade o púlpito do
monitor e o quadro negro‖. (BASTOS, 2005, p. 34-36).
167
FONTE: APERJ. Relatórios da Interventoria da Província de 1931-1934, livro 504, página 39, com o
propósito de formar professores, existiam dois institutos oficiais, os Liceus de Niterói, a capital, e de Campos.
O total de matriculados nos cursos era de 504 e 237 respectivamente. Além desses institutos, funcionavam no
estado as ―escolas normais equiparadas, de Petrópolis (duas), Valença, Padua, Miracema, Nova Friburgo e
Barra do Piraí‖.
Page 184
182
frequencia‖168
mensal da Escola Municipal Arruda Negreiros, no ano de 1935, ao lado de sua
assinatura como Professora Municipal ela colocava entre parênteses a expressão ―não
diplomada‖. Enquanto a professora Maria Emília Caldas colocava, da mesma forma, a
expressão ―diplomada‖.
Em ambas as escolas, a professora utilizava a mesma cartilha e a maneira de
alfabetizar, mas havia diferenças entre a cultura material das duas escolas. Um dos possíveis
motivos é que na igreja não se poderia fixar nada em suas paredes cobertas de santos. Em
visita à escola Professor Paris, conforme matéria divulgada no jornal Correio da Lavoura,
datada de março de 1937, o diretor de Higiene e Instrução do Município de Nova Iguaçu, Dr.
José Manhães, relata o que encontrou da cultura material dessa escola e na sala de aula de
Aurélia. Dentre os materiais,
Conta ella com mappas dos Estados Unidos do Brasil, do Estado do Rio. Mappa da
Baixada Fluminense, quadros com muitas partes da Historia Patria e do Ensino
Intuitivo, do Systema Metrico, de Iniciação Geografia, esqueleto humano e quadro
negro. (Correio da Lavoura, 06/03/1937, p. 2).169
A referência ao ensino intuitivo mostra por parte da professora a intenção de uma
didática que evidenciasse os conhecimentos pelos estímulos sensórios visuais. Porém, se
refere ao método de ensino que já era utilizado no Brasil no século XIX, também concebido
na França. Maria Pape-Carpantier foi responsável por adaptar o método intuitivo e as lições
de coisas, concebidos por Ferdinand Buisson, como procedimento pedagógico à primeira
infância (BASTOS, 2013, p. 233). Os quadros aos quais se refere o Dr. José Manhães, são
descritos por Maria Helena Câmara Bastos:
Os quadros são classificados e se sucedem progressivamente. Por exemplo, no
quadro 2, os alunos aprendem o alfabeto em minúsculo, a distinguir a forma e o
som; no quadro 3, aprendem a conhecer as letras pela função, isto é, como signos
que representam as duas partes constituintes da palavra: os sons e as articulações.
Para a autora, as crianças, ―após percorrer todos os quadros deste silabário, não
saberão ler completamente nem contar, mas serão capazes, por assim dizer, [de]
colocar-se nos trilhos, e preparadas para receber sem dificuldade o ensino que lhe
sucede‖. (PAPE-CARPANTIER, 1885, p. 5, apud BASTOS, 2010, p. 24-25)
Os quadros do Ensino Intuitivo presentes na sala de aula de Aurélia referem-se,
portanto, ao ensino das letras do alfabeto, à distinção de suas formas e sons. O trabalho de
Bastos (2010, 2013) sobre as concepções metodológicas do Ensino Intuitivo é a principal
168
FONTE: APERJ. Fundo do Departamento de Educação, códigos 02653, 02641 e 02640.
169
Correio da Lavoura de 06 de março de 1937, página 2. Respeitei a grafia da época em todos os textos.
Page 185
183
referência no Brasil neste estudo, mas quando trata dos signos como ―sons e articulações‖,
não fica claro se os quadros continham a preocupação com os significados das palavras, se a
concepção de signo empregada pela autora vem ao encontro das ideias de Sausurre170
. Por
isto, não se pode afirmar se realmente Aurélia objetivava ensinar o signo, isto é, significante e
significado conjuntamente, mas há indícios que sim.
Os quadros da ―História Pátria‖, do sistema métrico, de iniciação à Geografia, o
esqueleto humano, os mapas e o quadro negro são suportes de ensino de várias matérias e
ensejam também a aprendizagem pelos estímulos visuais. Bastos (2013) ainda destaca que,
para Buisson, o método intuitivo possui três dimensões, a intuição sensível, a intuição
intelectual e a intuição moral. A lição de coisas é ―um procedimento de ensino, uma das
aplicações do método intuitivo, não é uma disciplina, mas deve estar presente em todas as
atividades de ensino em todo o período escolar, pois envolve tudo que se refere à vida e a
todos os fenômenos da natureza‖. (BASTOS, 2013, p. 234). Nesse texto da autora sobre o
pensamento de Buisson, ela ainda acrescenta que ―O método intuitivo, o ensino pelos
sentidos, especialmente a visão (enseignement pour lês yeux) e a lição de coisas estimulam
uma produção variada de recursos didáticos‖ (BASTOS, 2013, p. 234).
Para tornar tudo isso exequível na sala de aula seria, então, necessária uma produção
significativa de materiais didáticos, com ênfase principalmente em um dos sentidos, que é a
visão. Por isso, a sala de Aurélia, na escola pública municipal, descrita pelo Diretor de
Instrução e Higiene, possuía tantas referências visuais em suas paredes. Os recursos
pedagógicos utilizados em ambas as escolas também poderiam se diferenciar porque, segundo
Bastos: ―Para Buisson, o método intuitivo seria a doutrina pedagógica da escola laica‖171
.
O caderno de Aurélia, que primeiramente encontrei para iniciar esta pesquisa, traz
também pistas sobre os autores aos quais a professora tomava como referências.
170
(CUNHA, 2008, p.1): ―O signo é um conceito freqüentemente revisto nas teorias lingüísticas. O termo signo,
que designa a face fonológica da linguagem, pertence a uma antiga tradição metafísica que vigorava nos
séculos XVII e XVIII. Mas, será principalmente após a apresentação feita por F. de Saussure do par famoso,
significante/significado, que as discussões em torno do signo serão mais freqüentes. Signo é empregado por
Saussure, ao longo das aulas ministradas em Genebra entre 1907 e 1911, o que compreende três cursos sobre
Lingüística Geral, e seus escritos, que incluem notas de aula e escritos para um futuro livro jamais escrito, em
duas acepções: como entidade lingüística global, composta de uma face fonológica e outra conceitual; e como
designando apenas a face fonológica desta entidade. A razão desta dupla acepção reside numa tradição que usa
o termo signo das duas maneiras explicitadas‖.
171
BASTOS (2010, p.272): ―Em 2008, Agnes Van Zanten dirige o ‗Dictionnaire de l'éducation‘, em que o
verbete ‗Laicité‘ é escrito por Jean-Paul Delahaye, que afirma que a primeira missão da escola é partilhar os
valores da República. Considera que a ‗laicidade é a pedra angular do pacto republicano, que repousa sobre
três valores indissociáveis: liberdade de consciência, igualdade de direitos em opções religiosas e neutralidade
do poder político‘‖
Page 186
184
Figura 24 - Página do caderno de Aurélia. Exemplo de
uma página. As datas apostas após trechos reproduzidos
variam de 1938 a 1941.
Fonte: Coleção Aurélia Braga. CENPRE
No caderno, de capa dura, Aurélia transcrevia trechos de escritos com os quais, de
alguma forma, parecia se identificar. O escritor Rui Barbosa foi um dos mais evocados.
Durante um período de sua vida profissional, o escritor também serviu de inspiração para as
ideias integralistas, incluindo as atinentes à educação. Barbosa escreveu sobre educação
durante um curto período de sua trajetória política. Bastos (2000), ao analisar a influência de
Ferdinand Buisson, e das teorias voltadas à educação de origem francesa, em fins do século
XIX, ressalta que Miguel Reale172
―assinala que o pensamento de Rui ‗congregava teorias
diversas, unidas, no entanto, pela aceitação comum de algumas ideias básicas [...] afirma o
predomínio da escola leiga e um aprendizado inspirado pelos valores das ciências empíricas".
Para Benzaquem, Miguel Reale era um conservador, suas ideias se remetiam a Rui Barbosa,
172
BENZAQUEM, Ricardo (CPDOC, 1988, p. 5). ―Desse modo, não deve causar estranheza que Reale,
conquistando rapidamente um lugar na liderança do Integralismo, viesse a ocupar exatamente a chefia do seu
departamento nacional de doutrina. Este cargo logo o transforma em uma figura pública, que editava revistas,
publicava livros e assinava colunas em jornais do movimento, responsabilizando-se, de certa maneira, pelo
lado mais ‗racional‘ da AIB‖.
Page 187
185
cujo pensamento também buscava referências francesas e de Buisson. Este pode ter sido o
caminho trilhado para que o método intuitivo chegasse até a sala de Aurélia.
Os passeios realizados com os alunos à Serra do Tinguá, presentes nas fotografias do
acervo da professora, são mais um sinal do emprego da visão de Buisson nas práticas de
Aurélia, pois uma das ―virtudes educativas da visão liberal‖ (BASTOS, 2013, p.234) são as
excursões escolares.
Figura 25 - Passeio à Serra do Tinguá. E.M. Prof. Paris. Aurélia e seus alunos na estação do
Tinguá. Baixada Fluminense, 1936.
Fonte: Coleção Aurélia Braga. CENPRE.
Em outra parte da Baixada Fluminense, segundo as pesquisas de Mignot173
, a
educadora Armanda Álvaro Alberto na Escola Regional de Merity, no período entre 1920-30,
praticava as ideias da Escola Nova, ensejadas no Manifesto dos Pioneiros de 1932, do qual foi
signatária. Baseada em Maria Montessori, a escola de Armanda buscava trazer aos alunos
materiais concretos para o manuseio. Assim, elementos recolhidos na natureza, fotografias de
lugares, visita a locais onde pudessem ser observadas partes do conteúdo, a própria área
externa da escola, serviam de cenário e de possibilidades de aprendizagem. Nessa proposta de
173
Baú de memórias, bastidores de histórias: o legado pioneiro de Armanda Álvaro Alberto, de Ana Chrystina
Mignot, que articula as práticas pedagógicas de outra educadora que, na Baixada Fluminense, desenvolveu um
trabalho pedagógico, inclusive nesse período da Era Vargas.
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186
educação, os órgãos sensoriais acionados na manipulação dos objetos são o que podem
proporcionar aprendizagens174
.
A sala de aula de Aurélia, ao estampar em suas paredes os quadros do método
intuitivo, presentes no trabalho de escolas desde décadas atrás, evidencia como mudanças e
permanências convivem, também pelas atitudes mais conservadoras ou mais vanguardistas
dos educadores.
3.1.2 Cartilha da Infancia e suas apropriações
A cartilha de Thomaz Galhardo era a utilizada nas duas escolas de Belford Roxo onde
Aurélia lecionava, a municipal e a particular, e também era a escolha de muitas outras
professoras em diversas escolas de Nova Iguaçu. As apropriações feitas por Aurélia do
material didático para o ensino da leitura, comumente reconhecido com o nome de ―cartilha‖
permitem a percepção de seu modo de lidar com orientações presentes nos manuais escolares.
Embora sendo uma cartilha primeiramente produzida em São Paulo, na última década do
século XIX, passou a ser editada pela Livraria Clássica de Francisco Alves e Cia., no Rio de
Janeiro, a partir de 1901 (SANTOS, 2007). Vários de seus textos faziam alusão direta a
lugares e expressões paulistas.
De acordo com os relatos do ex-aluno de Aurélia, na década de 1930 na Igreja da
Solidão, Walter Vicente, a professora ensinava também soletrando:
Ela ensinava letra por letra primeiro, a gente lia cada uma e depois dizia qual era a
palavra. [...] Não! Não tinha esse negócio de sílaba não. Tinha até um cartão de
papelão, era assim uma máscara, que ela cobria o resto da folha. [...] Um buraquinho
que ela ia mostrando a letra. [...] Não, o buraco só deixava ver uma letra, duas não.
(WALTER VICENTE, 2014)
Percebo que, com isto, desconsiderava as insistentes recomendações do autor do
método e da cartilha que ela utilizou para alfabetizar, Thomaz Galhardo, autor da Cartilha da
Infancia: ensino da leitura. O paulista, cuja cartilha também foi alvo de estudos de Mortatti
(2000b, p. 55-56), nas recomendações que faz ―Ao leitor‖ sobre o porquê de sua escolha por
174
A escola mantém um centro de memória o qual visitei e também pude observar o acervo de fotografias,
materiais e objetos utilizados nas décadas de 1920-30 da antiga Escola Regional de Meriti, hoje Escola
Municipal Dr. Álvaro Alberto, pertencente à rede de Duque de Caxias, para compreender melhor o trabalho da
escola naquele período.
Page 189
187
um método silábico, deprecia nesse texto, veementemente, o método da soletração colocando-
lhe empecilhos; e argumentando contra a utilização do método global e também dos que se
utilizam da fonética.
A edição da Cartilha da Infancia pesquisada por Mortatti nesse estudo é a 141ª., de
1939, que me parece a última antes que Romão Puiggari, discípulo de Galhardo na Escola
Normal de São Paulo, modificasse a cartilha para a utilização do método global. Entretanto,
localizei uma edição bem anterior a da cartilha estudada pela pesquisadora. Na 41ª. edição, de
1908, o prefácio é escrito pelo discípulo Romão Puiggari, e este não era, como habitual na
escrita de prefácios, um autor mais renomado que o primeiro. Assim, por que um autor mais
jovem e, ao que tudo indica, com menos notoriedade que o autor da Cartilha, foi escolhido
para apresentar a obra durante tantos anos da forma como o faz neste prefácio, apontando os
defeitos do trabalho do seu mestre?
O methodo de leitura organisado pelo professor Thomaz Galhardo tem offerecido
vantagens extraordinárias sobre todos os methodos até hoje empregados em nossas
escolas [...] Entretanto, alguns defeitos encontrámos nelle, e a pratica que temos do
ensino animou-nos a corrigi-los. Si, depois de escripto o methodo, tivesse seu ilustre
autor continuádo no exercicio do magisterio, a elle cabia esta correcção. Mas outros
labores occupam seu precioso tempo. Assim, permitta o distincto mestre que o mais
humilde de seus discipulos termine a obra por elle tão brilhantemente começada.[...]
Mogi-myrim, Julho de 1890. ROMÃO PUIGGARI. Professor pela Escola Normal
de São Paulo. (1891, p. 4, grifos nossos)
O professor Romão Puiggari era aluno do professor Thomaz Galhardo, porém faz uma
crítica ao método do mestre no prefácio da própria cartilha dele, apontando ―defeitos‖ e
propondo-se a ―corrigi-los‖. Assume assim a obra do seu professor, alegando que o mesmo
agora ocupava seu tempo com ―outros labores‖. A narratividade que Mortatti utilizou nesse
trabalho seu publicado em 2000 abre espaço para muitas pesquisas, pois faz um mapeamento
abrangente de muitos autores e métodos. Imagino quantas intrigas existiram entre os autores,
editores, prefaciadores e ilustradores, dos métodos formulados e utilizados em São Paulo e
irradiados por todo país – relacionados e descritos pela autora dos ―Sentidos da
Alfabetização...‖– que poderiam se tornar conhecidas e fomentar a leitura, e, ao mesmo
tempo, a compreensão desses inúmeros pontos de vista sobre a melhor maneira de alfabetizar.
Também pelos relatos dos alunos da escola da Solidão175
, compreendi que Aurélia
iniciava o processo de Alfabetização conforme os outros métodos sintéticos, isto é, pela
175
Os ex-alunos da professora, de modo geral, lembram-se da cartilha utilizada, mas os detalhes de como Aurélia
se apropriou da cartilha são de Walter. Danilce mostrou-se insegura em suas afirmações e pode ser que
confundia com seus próprios usos, tendo em vista que como professora também utilizou a Cartilha da
Infancia.
Page 190
188
apresentação das letras e seus nomes, ―de acordo com certa ordem crescente de dificuldade‖
(MORTATTI, 2000a, p.2). Contava com um recurso, uma máscara feita de papel de maior
gramatura, com um orifício que permitia a visualização de uma letra de cada vez. Sem quadro
de giz, ou qualquer possibilidade de uso das paredes – apinhadas dos santos da Igreja na qual
sua escola estava sediada – ela interpunha a máscara individualmente em cada cartilha e
promovia a leitura aluno a aluno, como fazia quando dava aulas em casa. Entretanto,
contrariando as orientações existentes também nesta edição que estudo, essas letras não eram
juntas em sílabas logo a seguir, pelos relatos desses alunos não eram reconhecidas as famílias
silábicas. As crianças liam as letras até formarem as palavras, o que indica o uso de um
processo de soletração e não de silabação.
Estudando a Cartilha da Infancia e a prática pedagógica da alfabetizadora Aurélia,
pude me deparar com uma questão sobre a autoria verdadeira desse método e de um material
didático que foi bastante utilizado no Sudeste e em outras partes do país. Nesta 41ª. edição
não se tem claro que tipo de modificações foram feitas na obra pelo discípulo; se foram tão
substanciais não se pode inferir. Romão Puiggari promoveu sim mudança substancial quanto
ao método da cartilha em fins dos anos 1930 – passando da silabação para o método global –,
porém continuou sendo reconhecida como Cartilha da Infancia de Thomaz Galhardo até o
final de suas edições, por volta de 1992. Possivelmente essa foi uma estratégia mercadológica,
o fato de não dar a Puiggari a prerrogativa de elaborar uma nova cartilha e atribuir-lhe a
autoria. Talvez, para aproveitar as visões do senso comum que em geral tendem a dar crédito
ao que já foi experimentado e ao que de alguma forma se reconhece os resultados.
Nesse jogo do esconde-mostra, como em um quadro que alterna luz e sombra, percebo
que práticas aparentemente simples, como o recurso da máscara propiciadora da escolha do
que se evidencia – utilizada pela professora Aurélia provavelmente com a intenção de
ludicidade –, podem proporcionar outras interpretações e confirmar a importância dos rastros
da cultura material para a compreensão da escola. Com o recurso lúdico, a Alfabetizadora
empregava o método mais antigo, encobrindo sílabas transformadas em letras, pelo uso da
máscara.
Isto pode remeter a outro quadro; no afã de divulgar o novo e combater o velho, o
autor e o prefaciador da Cartilha da Infancia defenderam outro método sintético que nada
acrescentou para que os significantes ensinados – as sílabas – estivessem na alfabetização
promovendo a integração com os significados, continuando a separação do signo
Page 191
189
linguístico176
. Por este ângulo, a ―martirização das criancinhas‖ continuaria a acontecer,
portanto, porque tanto as letras quanto as sílabas deveriam ser memorizadas e juntadas sem
nenhum sentido até que o aluno conseguisse sintetizar e compreender177
uma palavra, não
havendo dessa forma nenhuma vantagem com relação a um dos dois métodos. Aurélia, ao
desprezar um dos principais textos orientadores da Cartilha da Infancia, seu prefácio, talvez
tivesse em certo nível essa compreensão, pela intuição.
As observações e interpretações sobre as apropriações do livro didático eleito por
Aurélia só vieram à tona por ter esta pesquisa uma escala que permite um olhar mais
localizado, por ser ―uma história vivida ao rés-do-chão [que] pressupõe a imbricação da
história na grande história‖ (RICOEUR, 2007, p. 257). Na escala escolhida por Mortatti isto
não aparece. Primeiramente, não seria possível à pesquisadora deter-se em várias edições de
cada material estudado, pois foram inúmeros; segundo, seriam tantas as observações do tipo
que fiz nos últimos parágrafos, que demandaria muito mais tempo e espaço para escrevê-las;
e, só a título de concluir essa reflexão, mas sem esgotá-la, ainda a pesquisadora teria que
recolher dados sobre as práticas pedagógicas realizadas pelos alfabetizadores que utilizaram
cada um dos métodos. Seriam muitos dados para recolher, interpretar e escolher para narrar.
Analisando ―os sentidos da alfabetização‖, o para quê e o porquê alfabetizar, observo
que um caminho de compreensão pode ser o da história dos métodos e das cartilhas. Desde o
final da década de 1870, os livros de ensino de leitura, chamados Cartilhas já são conhecidos
nas províncias do Rio de Janeiro e de São Paulo (MORTATTI, 2000a). No imaginário de
educadores expressivos do final do século XIX, como Silva Jardim, a soletração estava
vinculada ao ―brocado medieval „La letra com sangre entra‟, até então tradicionalmente
utilizado no Brasil‖ (MORTATTI, 2000a, p. 42). A intenção dos novos autores que buscavam
métodos silábicos ou mais arrojados, para o período, como a palavração, era transpor a ideia
de que para aprender a ler o aluno deveria passar pelo ―sofrimento‖ da repetição, e
procuravam formas de tornar o ensino da leitura mais atraente. Tendo em vista as disputas que
se seguiram relativas aos diferentes métodos e autores, considerando o que havia até chegar
ao trabalho de Aurélia – soletração, silabação e palavração –, é possível notar o quanto o
processo de alfabetização utilizado por essa professora estava aquém, no sentido de anterior,
em relação ao que já se fazia e pesquisava.
176
Signo = significante + significado.
177
O que nem sempre acontecia, principalmente, a compreensão.
Page 192
190
A Cartilha da Infancia178
, metodologicamente, partia do conhecimento das sílabas na
sistematização e instrumentação da alfabetização. Por esta instrumentação entendo a
mediação da aquisição de elementos que permitam a aprendizagem de novas palavras, e isso
pode ser feito pelo ensino da letra (soletração), do fonema (fônico ou fonético), da sílaba
(silábico ou silabação), ou das palavras, no caso dos métodos chamados globais. Esta cartilha
baseava-se no método da silabação que, também como o da soletração, é um método de
marcha sintética (MORTATTI, 2000a), porque parte dos menores elementos para chegar ao
todo da palavra. A maioria das leituras, com exceção das últimas, encontrava-se, na Cartilha
da Infancia, separadas por sílabas. Porém, pelo depoimento de Walter Vicente, percebo que
após a identificação do nome da letra, os alunos as juntavam até formarem as palavras, sem
ênfase na sílaba, “era assim que a professora ensinava”. Em seguida, Aurélia ensinava frases
isoladas ou agrupadas. E, quanto à escrita, ―esta se restringia à caligrafia e seu ensino, à cópia,
ditados e formação de frases, enfatizando-se a ortografia e o desenho correto das letras‖
(MORTATTI, 2000b, p. 2).
Quanto a essa caligrafia, Rosa Maria de Souza Braga (2008) observa que esse ensino
implicava em outras questões diferentes da valorização estética, como usualmente o senso
comum costuma considerar. Conformar e disciplinar o sujeito, para torná-lo parte da
engrenagem social seria o sentido mais próximo do trabalho que era realizado no ensino da
escrita. Com a ênfase na repetição e o apelo criterioso em seguir-se as regras para a bela
escrita, de acordo com um pré-determinado padrão, estaria o professor cumprindo seu papel
social de educar para a disciplina e obediência. ―Ensinar um tipo de letra significava, também,
conformar o aprendiz dentro de uma lógica socialmente imposta‖ (BRAGA, 2008, p. 164).
A partir da república, com a finalidade de imprimir no aluno a noção de pertencimento
a uma nação, porque essa ainda se consolidava não só ideologicamente como territorialmente,
a leitura era um dispositivo importante para a educação cívica e moral. Estes dois valores
poderiam ser adquiridos também através dos livros literários, de suas leituras. O ideário que
informa os aspectos ligados à cidadania, no texto dessa cartilha, se refere à família, à escola e
à religião. A família é representada como um clã apartado do mundo, separada da realidade
social e econômica. Os textos da Cartilha da Infancia procuram moldar uma personalidade de
178
É celebrada entre as cartilhas de sucesso duradouro (RAZZINI, 2011), foi escrita e organizada por Thomaz
Galhardo em 1889 e nesse ano editada, chegando ao número de 233 edições. foi reeditada da mesma forma até
1939, quando sofreu nova mudança, e passou a adotar o método global, da palavração. Esse método
permaneceu até os anos iniciais da década de 1990, quando a cartilha parou de ser reeditada. O prefácio, que
indica que foram introduzidas ―correções‖, a partir de 1890, foi escrito por Romão Puiggari, discípulo de
Galhardo. Além disto, Puiggari é que é apontado como um dos autores cujos livros foram editados por mais de
50 anos.
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191
indivíduo subordinado às autoridades, com ênfase nas familiares e escolares. Além disto,
vários textos têm o foco no estímulo às crianças para ingressarem na escola, tendo em vista
que, para muitas, as horas de confinamento e as rotinas escolares significavam o afastamento
da família, das brincadeiras, e dos pomares repletos de liberdade, como era o caso da Baixada
Fluminense. O apelo à matrícula e permanência das crianças na escola passava por vários
mecanismos nos textos da cartilha como ―A carta‖.
A CARTA – Julia tinha feito sete anos quando sua mãe a mandou para escola. A mãe
de Julia não sabia ler; mas não queria que sua filha tivesse a mesma infelicidade.
Um mez depois da entrada de Julia na escola, sua mãe recebeu uma carta e ficou
muito afficta por não poder ler. Julia chega então da escola e a mãe lhe diz: ―minha
filha espera-me aqui emquanto vou pedir à tua professora que veja o que esta carta
diz‖. – Não, mamãe; dê-me a carta, que eu já sei ler, respondeu Julia. – Não é
possivel. Ha apenas um mez que começaste a estudar. – E se eu a puder ler? – Se
leres a carta terás muitos beijos e muitos abraços. – Ora, mamãe, eu antes queria
uma boneca... – Pois sim. Julia tomou o papel e o leu perfeitamente e com muita
graça. Grande foi o contentamento da mãe e maior ainda a felicidade da filha.
(GALHARDO, 1908, p. 60).
Ter ciência da cartilha que acompanhou os primeiros passos no ensino da leitura dos
alunos da professora Aurélia é importante para perceber que esses textos estiveram presentes
em suas formações, corroborando na construção das suas subjetividades. Mostra, também, que
pelas crianças se educavam as famílias, pilar da educação republicana que desejava civilizar o
povo. As representações da escola, da família e da sociedade como um todo, elaboradas a
partir da Cartilha da Infancia, eu posso inferir que ajudaram a criar os significados que
conduziram esses sujeitos. Segundo Silva (2009), com base em estudos de Vygotsky, o signo
é uma ferramenta mediadora de natureza psicológica que conduz à compreensão e leitura,
como entendimento, das coisas no mundo. É uma representação criada a partir das interações
entre os sujeitos na cultura. É o que participa na construção da subjetividade, e o que permite
a conceituação de mundo.
As relações entre as práticas de alfabetização da professora Aurélia com o instrumento
didático que elegeu para essa tarefa, auxiliam compreender quais foram os usos e as
apropriações feitas por ela (CHARTIER, 1998). Na edição 41ª, os valores do trabalho, do
estudo, da família e os espirituais – havia um que continha toda oração do ―Pai Nosso‖ e a
primeira estrofe da ―Ave Maria‖ – faziam parte do repertório dos textos tomados, e retomados
incansavelmente pela professora. Muitos alunos, dos milhares, alfabetizados por Aurélia e
pelas professoras que formou e orientou, nesta e em outras épocas à frente, não esqueceram,
de alguma forma, esses textos, tantas foram repetições e tomadas de leitura.
Page 194
192
Uma das possibilidades com as quais trabalho é que Aurélia utilizava-se da soletração,
porque também foi alfabetizada desta maneira. Isto poderia sugerir que embora o
temperamento da professora fosse empreendedor, e precursor em áreas como a da conquista
de autonomia feminina, apresentava traços mais conservadores da tradição, porque sua
formação, na maior parte, passada de pai para filha, não fora influenciada por novas visões e
teorias pedagógicas mais recentes. ―O trabalho dos professores está impregnado de tradição, o
mesmo acontecendo em relação à vida das escolas‖179
, afirma José Pintassilgo, concordando
com Peter Burke que reabilita o conceito de tradição ou, mais fielmente, tradições,
observando estas como patrimônio e memória da educação e não como algo a ser meramente
ultrapassado pelas inovações. Não obstante a introdução feita pelo Professor Galhardo,
constante da cartilha, estivesse revestida de ―cientificismo‖, pois argumentava em favor da
sílaba dando seus motivos e expondo sua teoria, os professores ―não podem ser reduzidos a
meros executores de programas ditados‖ (ESCOLANO, 2011, p. 17). Por isso eles
prosseguem referendando seus conhecimentos práticos, por serem sujeitos com alguma
autonomia, que resistem se apropriando do que eles entendem, e como entendem. Talvez, não
fosse apenas uma questão de conservadorismo, mas de simplesmente Aurélia dominar o
método antigo com maior facilidade e acreditar mais em sua própria experiência.
Outra possibilidade é a de que Aurélia adquiriu o ofício de professora em um dos
núcleos integralistas na região de Campos e São João da Barra. Se assim fora, esta
recomendação poderia ter sido passada nessa prática? Sua irmã, Aládia180
, tornou-se
enfermeira, uma formação oferecida pela Ação Integralista e, como a prática de professora,
alvo de suas orientações. A família Souza Braga também desconhece que Aládia tenha
cursado enfermagem em escola regulamentada. O ―Departamento Feminino tinha por objetivo
arregimentar, orientar e controlar as atividades femininas no Movimento” (CAVALARI,
1999, p. 66). O Departamento Feminino Nacional possuía cinco divisões: Expediente; Cultura
Física; Educação; Estudos; e Ação Social. A Divisão de Educação era uma das mais atuantes
e importantes e orientava as ações femininas dos setores de ―Alfabetização, Enfermagem,
179
Para introduzir esta discussão o autor faz as seguintes colocações neste texto: ―À noção de tradição foi
atribuída, com frequência, uma conotação negativa, no que se refere à sua articulação com as ideias e com as
práticas educativas. Em contraponto, à noção de inovação é conferido, em geral, um maior prestígio. O recurso
a métodos inovadores parece ser inquestionavelmente positivo. Que dizer do recurso a métodos tradicionais?
Entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, a retórica da Educação Nova contribuiu para
radicalizar essa dicotomia, ao deslegitimar a chamada escola tradicional na procura de reafirmar a bondade das
propostas inovadoras por ela propagandeadas. Em muitos dos discursos da actualidade, esta contraposição
continua presente‖ (PINTASSILGO, 2011, p.4).
180
Aládia de Souza Braga, poucos anos mais nova, foi por muito tempo enfermeira sem ter formação em cursos
regulares. Casou-se e foi morar em um dos subúrbios do Rio de Janeiro na década de 1940.
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Puericultura, Datilografia, Culinária, Corte e Costura, Boas Maneiras e Contabilidade Caseira
e Economia Doméstica‖ (CAVALARI, 1999, p.67).
Percebo a máscara de papelão, com a qual cobria o texto, como uma alegoria para
outro ―texto‖; uma imagem que me conduz no labirinto pelo qual trilho para tentar encontrá-
la. Aurélia não era somente católica, sua família admite que também fosse espírita, como o
pai. Seus alunos ainda hoje falam sobre isso com muita reserva, pois a comunidade a qual se
filiou era maciçamente católica. Além disto, em muitas situações, na condição de uma mulher,
precisou se submeter ao que o social esperava, embora não evidenciasse traço de submissão
em seu caráter. Aurélia, portanto, sabia como usar as máscaras, para colocar na penumbra sua
formação, a sua religião, e, por vezes, sua própria personalidade. Talvez, também usasse a
máscara para encobrir as crenças políticas que norteavam suas ações.
3.1.3 Alfabetização integralista
Embora as entrevistas tenham um valor de contribuição inestimável neste trabalho,
porque é a partir delas que busco as demais fontes, percebi que não dão conta, sozinhas, do
objetivo de me aproximar do conhecimento da história de vida de Aurélia. Por duas razões
principais: a forma como o movimento integralista foi propagado pelo seu aparato de
divulgação, orientando por vezes para a dissimulação, e a maneira como foi extinto como
partido por Getúlio Vargas em fins de 1937, evidenciando o seu viés fascista. No que diz
respeito à educação, sobre a maneira de propagação do movimento, O Therezópolis, de 09 de
setembro de 1934, transcreve as orientações da AIB:
Campanha de Alphabetisação – O Departamento Municipal de Estudos da Acção
Integralista Brasileira, está elaborando um programa de ensino, a fim de iniciar a
obra de alphabetisação. A recomendação que temos do Departamento Provincial de
Estudos é o seguinte: 1º Aceitam-se alunos de qualquer credo politico ou religioso.
2º Não se fará pregação doutrinária, mas a orientação geral será: espiritualisada
rumo DEUS, PATRIA E FAMILIA. 3º Não se provocarão discuções com alunos,
nem se permitirão debates entre eles. 4º Não se forçarão os alunos ao
comparecimento das reuniões do Nucleo. 5º Faça a obra de alfabetisação com a
maior elevação ―pelo bem do Brasil‖, e que ninguem possa vir atacar nos,
alegando que a escola é, para nós, uma arma de propaganda da doutrina.
Departamento M. de Estudos. (COELHO, 2005, p. 4, grifos nossos)
Essas orientações indicam que o trabalho educacional deveria ensejar o ideário
integralista, porém tinha que ser feito de maneira sutil, não declarada. O projeto de educação
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integralista visava fortalecer a tríade: ―Deus, Pátria e Família‖, pois na perspectiva de Plínio
Salgado, a educação de forma ampla deveria formar o caráter do povo, no campo doutrinário,
onde a abertura de escolas integralistas seria um dos caminhos (COELHO, 2003). Assim,
defendia Plínio Salgado: ―a minha palavra foi a mesma de 32: é preciso educar, educar,
educar. Hoje, acrescento outra palavra: educar e vigiar (...). Hoje temos de educar como uma
sentinela à porta da Grande Escola‖ (BULHÕES, 2007, p. 23).
Os textos da Cartilha da Infancia vinham ao encontro de certos ideais da década de
1930, como o estímulo ao trabalho, e auxiliavam a difundir seus valores, que coincidiam com
muitos valores do ideário integralista, como os ligados à família, ao trabalho, ao estudo, e, de
um modo geral, os morais e cristãos. No documento ―Relatório do mez de abril de 1937‖181
sobre o ―Movimento Escolar‖ do núcleo de Cantagalo, região serrana da Província do Rio de
Janeiro, sobre os materiais disponibilizados para a escola de Alfabetização, Escola Integralista
Carlos de Mattos, ligada a esse núcleo, as cartilhas estão presentes, fazendo parte do
inventário dos materiais doados pelos participantes do núcleo ao trabalho de alfabetização.
Nesse ano constam do inventário, mas não havia referência a qual das cartilhas era a adotada.
A falta desse detalhamento pode evidenciar que essa não era talvez uma preocupação. De um
modo geral os textos das cartilhas no período tinham mais ou menos os mesmos objetivos, o
que diferia era o método e também suas apropriações. Não encontrei nos documentos, ou na
bibliografia sobre o movimento, recomendações diretas sobre como realizar o processo de
alfabetização com adultos ou crianças. As orientações são mais generalizadas, não tão
específicas.
Um dos folhetos integralistas apreendidos pela Delegacia Especial de Segurança
Política e Social (DESPS)182
, trata-se de uma tabela de preços dos produtos comercializados
com a marca integralista. Dentre eles, ―Material de expediente e escolar‖, o que contém
―cadernos escolares n 2, capa integralista, quantidade mínima de 25‖. Há também o ―lápis
preto ‗Anauê‘, (John Faber n. 2)‖, além de vários outros produtos, mas não há cartilhas sendo
comercializadas. No relatório do núcleo de Cantagalo é possível visualizar que não eram
especificadas as cartilhas, somente o número.
181
FONTE: APERJ. Fundo de Polícias Políticas, Setor Integralismo, Notação 16.
182
FONTE: APERJ. Fundo da Delegacia Especial de Segurança Política e Social – DESPS (1911-1946),
folhetos, n. 13 e 14. Esses folhetos encontram-se catalogados e digitalizados ―tabela de preços dos produtos‖ e
―outra tabela de preços dos produtos‖.
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195
Figura 26 - Lista de materiais da Escola Carlos Mattos – Núcleo de Cantagalo, estado do Rio
de Janeiro.
Fonte: APERJ. Fundo do Departamento de Polícias Políticas, Setor Integralismo, Notação 16.
Neste relatório é possível perceber que os materiais inventariados eram doados pelos
participantes do núcleo ao trabalho da escola. Que eram usadas lousas individuais de ardósia
para escrita, e os lápis de pedra de uso com as lousas. Os cadernos também estavam presentes,
bem como os lápis e canetas. Canetas de penas, do tipo tinteiro, e a tinta correspondente
também faziam parte do inventário. Havia um mobiliário, constante de bancos como carteiras
e um quadro negro em um cavalete, porque provavelmente a sala deveria ser utilizada também
para as reuniões do núcleo. O ―material de uso especial‖ suponho que deveria ser de uso da
professora para anotações importantes sobre o trabalho, a frequência, os exames e resultados,
entre outros, pois que no relatório também figuravam essas informações. Não há, portanto,
outras referências da cultura material dessa escola, que possam de alguma forma aproximá-la
ao trabalho realizado por Aurélia nas suas escolas. Na falta de informações sobre a Escola
Tiradentes, pertencente ao núcleo de Belford Roxo, a Escola Carlos de Mattos pode servir de
parâmetro para o que se sucedia no trabalho da Escola Tiradentes.
Fica explícito no relatório do núcleo de Cantagalo que, já em 1936, as escolas
integralistas vinham sendo alvos de combate tanto quanto o movimento, pelo menos nesse
núcleo, que perdia alunos. No relatório do núcleo pode-se ler o nome da professora Irene
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Freire, na Divisão de Educação, ligada ao Departamento Feminino, mas não fica explícito se
ela era a professora.
Figura 27 - Núcleo de Cantagalo – Divisão de Educação. Relatório das atividades da Escola
Carlos de Mattos.
Fonte: APERJ. Fundo do Departamento de Polícias Políticas, Setor Integralismo, Notação 16.
O jornal simpatizante do movimento integralista, O Terezópolis, estudado por Ligia
Coelho (2003), aponta que nesse período existiam no Brasil 3 mil núcleos, donde a
pesquisadora estimava que houvesse em cada um uma escola, porém isto não se confirma no
estado do Rio de Janeiro por esse relatório. Dos 280 núcleos existentes no estado, derivaram
apenas 124 escolas listadas no documento, e 98 eram escolas que realizavam a tarefa de
alfabetizar, como a escola do núcleo em Belford Roxo, a de número dez do relatório, que
expõe as escolas por localização em ordem alfabética. Mas não encontrei informações tão
detalhadas, quanto à Escola Integralista Carlos de Mattos, do trabalho dessas escolas. A não
ser pelos depoimentos orais de alguns dos narradores, que não estudaram na Escola
Tiradentes, mas ouviram falar de Walquíria Trévia, filha do chefe do núcleo, como
professora, pouco se pode saber do trabalho dessa escola em Belford Roxo.
Pelo que pude depreender dos documentos encontrados e dos trabalhos dos autores
que se esforçaram para estudar o movimento, Plínio Salgado e a cúpula da AIB teriam
intenções, em 1934, de elaborar um programa de ensino, ―O Departamento Municipal de
Estudos da Acção Integralista Brasileira, está elaborando um programa de ensino, a fim de
iniciar a obra de alfabetização‖, como consta da matéria de O Terezópolis, aqui transcrita, mas
não encontrei esse documento no acervo do Fundo Plínio Salgado do Arquivo Público e
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Histórico do Município de Rio Claro, nem nos acervos do APERJ. Se a tarefa foi realmente
concluída, seria também alvo de interessantes estudos.
Por outro lado, a perspectiva de Silva Jardim, de João Köpke e Julio Ribeiro,
explicada por Mortatti (2000a), baseava-se na visão positivista, dotada de ―cientificismo‖. Por
exemplo, para Zeferino Candido e a filosofia comtiana que defendia, ―o processo de leitura,
na sua evolução histórica, passou pelos tres estados da lei. Foi theologico na soletração,
tornou-se metaphysico na syllabação, e é finalmente positivo ou scientifico na palavração‖183
.
Candido ainda explica que as ―lettras, tomadas em separado, eram as entidades sobrenaturaes,
que tinham o miraculoso poder de construir palavras sem que o espírito podesse descortinar a
relação entre a causa e o effeito, entre o elemento e o composto‖ (MORTATTI, 200ª, p. 42).
Essas ―entidades abstratas‖ completamente desvinculadas, embora constituintes das palavras,
que são as letras e as sílabas, no entender de Candido e Silva Jardim estariam ligadas a
concepções teológicas e metafísicas, porque abstratas como depreendo. Isto pode remeter aos
princípios que norteiam o ideário integralista, que tinha como horizonte refutar as teorias
positivistas que aboliam a vertente teológica e os valores espirituais. A proposta integralista
era justamente um retorno a esses valores (TRINDADE, 1979). Este pode também ter sido o
motivo da opção pelo método da soletração que Aurélia utilizava, poderia ser uma orientação
da cúpula da AIB repassada por vias que não enxerguei.
Em 1937 a professora Aurélia já era um nome conhecido na educação de Nova Iguaçu,
pelo trabalho desempenhado em Belford Roxo, sua rápida ascensão não pode deixar de ser
sinalizada. Ela teve uma participação direta também na criação de escolas no lugarejo. Ao
trabalho exigente ela uniu ações políticas que a promoveram. Mas, afinal, como a professora
se fez presente no processo de escolarização de Belford Roxo?
3.2 Criando escolas em Belford Roxo
CREADA A CAIXA ESCOLAR MUNICIPAL – Por louvável iniciativa do dr. José
Manhães, director de hygiene e instrucção neste Municipio, creou-se no dia 3 do
corrente mez, a Caixa Escolar Municipal. [...] o dr. José Manhães disse da significação
do que se pretendia crear, e frisou, numa atittude elegante, que não influiria de modo
algum nas decisões independentes das professoras. Ellas que resolvessem tudo como
achassem justo. [...] Por isso, elegeu-se a diretoria da Caixa pelo processo de
183
CANDIDO, Zeferino (apud Mortatti, 2000a, p. 60).
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acclamação, como desejaram as professoras. Ficou ela assim constituída: presidente
Profa. Aurélia de Sousa Braga [...].
Correio da Lavoura, 06/05/1937
Dois anos antes da data de 03 de maio de 1937, data da criação da 1ª. Caixa Escolar de
Nova Iguaçu, Aurélia chegava a um lugarejo deste município que somente tornou-se distrito
em 1938. Observando o periódico Correio da Lavoura, desde o ano de 1930, não foi possível
encontrar matéria que se referisse aos acontecimentos atinentes a Belford Roxo diretamente,
exceto em 1931 quando Vargas fez parada, para inaugurar a praça que tem o seu nome, a
caminho de Nova Iguaçu. Entretanto, nesse ano de 1937 o nome de Aurélia aparece em três
matérias, carreando implícita ou explicitamente as atenções para o antigo Brejo. Uma sobre
seu trabalho em sala de aula, outra sobre os exames finais realizados no município, onde foi
examinadora, e essa sobre a criação da entidade.
Estiveram presentes ao evento de criação da Caixa Escolar, e que teve lugar em um
dos maiores clubes do município, o grêmio Filhos de Iguassú, 52 professoras. O número é
expressivo, porque, em matéria publicada no mesmo veículo, datada também de maio de
1937, havia igual quantidade de escolas em toda ―Califórnia brasileira‖, como o periódico
gostava de referir-se, lembrando a produção de laranjas do município. A aclamação das
professoras ao nome de Aurélia evidencia sua força política, e o quanto já era conhecido. Por
certo havia, entre elas, professoras muito mais antigas, de famílias tradicionais e conhecidas
da sede do município. Isto, naquela época, era significativo, pois Belford Roxo não tinha
ainda a importância política que viria a ter nas décadas seguintes. Até então, não havia sido
eleito ninguém do distrito para atuar na Câmara Municipal, muito menos na estadual.
O diretor de instrução conduziu a tarefa de forma estratégica, a fim de conseguir
recursos para o provimento das crianças matriculadas nas escolas do município, pois na
verdade a Caixa era mantida com as doações provenientes do salário das professoras, a título
de contribuição para aquisição de uniformes e outras necessidades dos alunos e das escolas, a
importância doada era de 2$000. Ele deu a ―ellas‖ o direito de ―escolha independente‖, como
uma grande concessão, deixando que se elegessem entre si, para cargos não remunerados e
que tinham por função administrar o dinheiro que elas doariam para comprar materiais para
uso dos alunos, que na verdade deveriam ser subsidiados pela administração pública aos que
necessitavam. Vale ressaltar, que ceder aos interesses dos administradores públicos projetou
ainda mais o nome de Aurélia na educação do município e trouxe inúmeros benefícios a
Belford Roxo.
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199
Sua escola, E. M. Professor Paris, por exemplo, funcionava em um prédio muito
antigo, alugado, com apenas duas salas de aula. Como ela mesmo conta em entrevista ao
jornal O Dia, de 28/08/1994, foi por sua manobra política que o prefeito, provavelmente pela
época o interventor Ricardo Xavier da Silveira184
, ao passar em comitiva por Belford Roxo
indo na direção de São João de Meriti, em fins dos anos 1930, foi abordado por ela e seus
alunos e aceitou ser conduzido até sua sala de aula. Na sala ela já havia confeccionado faixas
e organizado uma comitiva de mães e crianças para pedir que construísse uma escola nova e
maior, capaz de abrigar mais alunos.
Figura 28 - Escola Municipal Prof. Paris/ Primeiro prédio: ―Villa União‖
Aurélia está à direita, atrás dos alunos, ladeada pela Profa. Maria Emília Caldas e um homem jovem, não
identificado - Ano: 1936.
Fonte: Coleção Aurélia Braga. CENPRE
A foto mostra o prédio anterior, que ficava em outro terreno, na Av. Francisco Sá, duas
ruas abaixo de onde foi construída a Professor Paris. Na parede do prédio, ao alto, lê-se a
inscrição ―Villa União‖. O prédio, outrora, serviu de casa de hospedagem, como moradia
184
Xavier da Silveira esteve como interventor de Nova Iguaçu de 1937 até 1943. (SOUZA, 2002).
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200
temporária dos tropeiros e caixeiros viajantes185
. Apesar de seu prédio antigo e acanhado, a
escola possuía recursos didáticos e se destacava entre as escolas públicas do município.
Segundo o Correio da Lavoura,
VISITANDO AS ESCOLAS MUNICIPAES – [...] A Escola Belford-Roxo, na
localidade desse nome, dirigida pela prof. Enedina Barbosa Moreira, tem a
frequência de 56 crianças no turno da tarde. Tem regeitado inumeras matriculas por
falta de acomodações. A escola Professor Pariz, ex-Escola dr. Arruda Negreiros, em
Belford-Roxo, dirigida pela profa. Aurélia de Sousa Braga tem a frequência de 131
crianças, em dois turnos. É um pouco acanhada para o numero de alumnos que
possue, mas pode-se dizer que está regularmente installada.[...] A sua professora
merece elogios pelo carinho que dedica aos seus alumnos e, especialmente, à Escola
Prof. Pariz. (Correio da Lavoura de 06 de maio de 1937).
Surge no cenário das escolas, nesse ano de 1937, a E. M. Belford Roxo, com apenas o
turno da tarde e 56 alunos. Situa-se na região entre o centro e a Solidão, também nas
proximidades da Fazenda do Brejo. Aurélia se destacava pelo trabalho apresentado na Prof.
Paris, mas a diretora continuava sendo a professora Maria Emília Caldas, ―diplomada‖, que
nessa reportagem não foi citada. Os anos de 1936 e 1937 foram de grande expansão do
número de adeptos do integralismo. Os inscritos em suas fileiras saltaram de 380.000 em
1935 para 918.000 em 1936; em 1937 atingiram a marca de 1.352.000 militantes
(CAVALARI, 1999, p. 34). Nesse ano de 1937 depreendo que o prestígio de seus militantes
aumentou também na região.
Dada à veemência dos apelos de Aurélia e seus alunos, atestando a debilidade da
construção muito antiga da escola, e também ao prestígio da professora, o prefeito atendeu. A
nova escola foi inaugurada no dia 04 de setembro de 1944, tendo à frente Aurélia como
diretora, e tornando-se o primeiro Grupo Escolar Municipal186
de Belford Roxo187
. Na
inauguração da Prof. Paris, Aurélia discursa, contando a história do professor que empresta o
nome à escola, e dirige-se também às crianças para exaltar a glória da Pátria:
Recebe hoje esta localidade um régio presente que há muito ambicionava, o prédio
em que funcionará o Grupo Escolar ―Professor Paris‖. [...] Senhor Prefeito. Durante
tôda a sua carreira política nenhuma outra obra permanecerá mais viva na memória
da juventude deste município que a da instrução bem cuidada. Ao relembrarmos o
185
O que pode reafirmar o papel da região como lugar de passagem até o século XIX, início do século XX.
186
DIAS, Amália (2012, p. 119) ―Uma escola mista primária em Belford Roxo, no 5º distrito, foi transformada
em Grupo Escolar Municipal Professor Paris, em 1947. Em agosto de 1948, a escola registrava mais de 600
alunos e 17 nomes constavam no mapa de adjuntos, com apenas 2 professoras concursadas‖. Parte desta
informação também foi recolhida da autobiografia da professora, datada de 1986.
187
Somente em 1947 a escola é elevada a Grupo Escolar.
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patrono desta escola vem-nos à lembrança um nome que é uma glória, um homem
que é um símbolo: o professor Augusto Monteiro Paris. Além do magistério, o
Professor Paris exerceu diversos cargos a bem do interêsse do município. Lecionou
por vários anos, fundou o colégio Paris. Foi diretor de instrução pública do
município, a cujo desempenho devotou todo carinho. Como político galgou vários
postos da administração. [...] Criança! É a ti que eu me dirijo agora. Atenta bem
quanto representa esta casa. Ela constituirá uma escola onde ampliarás teus
conhecimentos; uma bigorna onde temperarás teu caráter em formação.
Brasileirinho me escuta! Não te esqueças do dia de hoje, lembra-te que existem
professôres que se sacrificam, transpõem barreiras, mas vencem o analfabetismo.
Lembra-te ainda que a tua pátria é grande; que tu tens belos exemplos das gerações
passadas e cabe a ti conservar a tradição de bravura dos nossos heróis, para que o
Brasil, de hoje e de amanhã, seja a Pátria imortal de um punhado de bravos e sua
glória imperecível, pelo valor de seus filhos‖. (FONTE: a transcrição da matéria do
periódico Correio da Lavoura de 07 de setembro de 1944 encontra-se na Coleção
Aurélia Braga, do CENPRE, sob o título ―Histórico do Grupo Escolar Professor
Paris‖).
Neste discurso é possível reconhecer os valores da época, e também do ideário do
Estado Novo. O culto aos ―heróis‖, ao ―imperecível‖, e à ―tradição‖, são referências trazidas
pela diretora da E.M. Prof. Paris, mesmo após o golpe de 10 de novembro de 1937 e às ações
que se seguiram a ele, quando Vargas surpreendeu os integralistas. Aparentemente a
professora integrou-se rapidamente à nova ordem implantada pelo Estado Novo. Em seu
esboço autobiográfico ela enumera algumas de suas iniciativas na E.M. Prof. Paris, como a
criação de um Grêmio Literário Dr. Getúlio Vargas. Criou também o Orfeão Professor Paris,
um dos dispositivos da Era Vargas para disseminação dos seus valores188
. Ainda como diretora
organizou a Merenda Escolar 189
e a Biblioteca Escolar Prof. Paris. Em 1938, Belford Roxo,
enfim, torna-se um distrito de Nova Iguaçu.
Por volta do ano de 1941-42 a Escola da Solidão também enfrentou séria
reestruturação. Aurélia levou sua escola particular, a Escola Sagrado Coração de Jesus para
uma sala construída ao lado do armazém do Vicente, seu irmão, no centro do distrito. Os
alunos que moravam mais próximos à Solidão foram acolhidos por nova escola que se
localizava na rua da igreja, na varanda da casa da comadre, Zaira Vicente Bicchieri190
, Aurélia
a visitava e fazia a supervisão do trabalho dessa escola também. A professora assumiu, então,
funções não somente nas escolas que dirigia, mas passou a desempenhar um papel
protagonista na criação de escolas em Belford Roxo. Como presidente da Caixa Escolar, tinha
acesso direto ao gabinete do Diretor de Instrução e do próprio prefeito, e nessas redes de
188
Sobre o Orfeonismo no Brasil, consultar Monti (2009).
189
Por esse discurso depreende-se que essa escola foi precursora no oferecimento de merenda escolar na região.
190
(1920-1989). O Centro de Apoio Psicológico – CAPsi– do Município de Belford Roxo tem, desde sua criação
em 2002, o seu nome.
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relações conquistava as atenções do poder público para educação em Belford Roxo.
Também em 1944 foi inaugurada a terceira escola municipal criada em Belford Roxo,
a E. M. Carlos Leôncio de Carvalho, situada no Morro das Palmeiras. À época o morro era
considerado como pertencente à Solidão191
. O nome da nova escola homenageava o político e
educador iguaçuano que muito contribuiu para o processo de escolarização no Brasil. Leôncio
de Carvalho, filho do médico Carlos Antonio de Carvalho, nasceu em Nova Iguaçu, em 1847,
e faleceu em 1912. Ocupou a pasta dos Negócios do Império, em 1878, tendo sido eleito
deputado pela província de São Paulo até 1881. Por meio do Decreto de 19 de abril de 1879,
reformou a instrução pública primária e secundária no Município da Corte e o ensino superior
em todo o Império. Esse decreto autorizava o governo a criar, ou auxiliar a criação nas
províncias, cursos para o ensino primário. Buscava também estimular a alfabetização dos
adultos, exigindo a leitura e escrita, dando preferência para obtenção de empregos nas oficinas
do Estado aos indivíduos que cursaram a instrução primária. Voltou para o Rio de Janeiro
onde foi diretor da Faculdade Livre de Direito. A esse educador, Thomaz Galhardo dedicou a
sua Cartilha da Infancia, ―Ao mais esforçado propugnador do ensino popular no Brasil‖192
.
A narradora Danilce Micho trabalhou nessa escola desde a sua fundação, contratada
por intermédio de Aurélia. Nos mapas de frequência da escola de 1944 a 1949, que pesquisei,
ela é a professora mais constante, não foram relatadas faltas suas no período, o percentual de
faltas de seus alunos também pude constatar que foi o mais baixo, mesmo tendo suas turmas
um total de alunos superior a 50. A professora Adélia Haddad, irmã do político José Haddad,
assumiu a direção da escola por mais de uma década.
Os nomes que foram dados às escolas de Belford Roxo eram todos masculinos, como
o próprio nome do lugar. Em 10 de março de 1931193
, o decreto do então interventor de Nova
Iguaçu, Sebastião de Arruda Negreiros, suprime as escolas criadas até esse ano e cria vinte e
quatro espalhadas ―nos núcleos de população mais importantes de acordo com as
necessidades do ensino‖. Vinte e duas destas escolas tinham nomes de homens, apesar de
serem em sua maioria conduzidas por uma ou duas professoras. Somente duas dessas escolas
receberam nomes de mulheres, Francisca Rosa em Marapicú e Maria de Souza em Riachão,
que suponho fossem elas mesmas as professoras, pois não são nomes que tenha encontrado
nas memórias da região. Coronéis, majores, vereadores, barões, nomeavam as escolas de
191
FONTE: APERJ. Fundo do Departamento da Educação, códigos 02752 e 02753, Escola Mista em Solidão nº
13, Denominação Especial Leôncio de Carvalho.
192
.FONTE: Glossário Unicamp - verbete escrito por Maria Cristina Gomes Machado.
193
Publicado no Correio da Lavoura, à página 2, em 12/03/1931.
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Nova Iguaçu. Neste sentido, os nomes das escolas até aqui nesta região evidenciam o quanto o
masculino sobrepujava o feminino nas expectativas, e, além disto, os homens que ocupavam
as posições de poder, desde o império, eram as suas principais referências.
Tabela 02 - Escolas pelo Decreto do Interventor Sebastião de Arruda Negreiros em 10-03-
1931. Município de Nova Iguaçu
Nº Escola Localidade
1ª Duque de Caxias Estrela
2ª. Barão de Tinguá Tinguá
3ª. Dr. Tavares Guerra São João
4ª. Prof. Pariz Santa Branca
5ª. Francisca Rosa Marapicú
6ª. José dos Reis Rancho Novo
7ª. Dr. França Carvalho Jacutinga
8ª. Barão de Mesquita Mesquita
9º Valerio Rocha Prata
10ª. Rangel Pestana Coelho da Rocha
11ª. Cel. França Soares Morro Agudo
12ª. Ignacio Serra Merity
13ª. Guilherme Guinle Posse
14ª. Dr. Thibau Madureira
15ª. Custodio Baptista Chatuba
16ª. Maria de Souza Riachão
17ª. Coronel Elyseu Itinga
18ª. Nilo Peçanha K11
19ª. Major Souza Antunes Passa Vinte
20ª. Desembargador Eloy Teixeira Queimados
21ª. Bernardino Mello Bomfim
22ª. Vereador Sá Freire Rio d‘Ouro
23ª. Vereador Salustiano de Andrade Xerem
24ª. França Leite Palmeiras
Fonte: Correio da Lavoura.12-03-1931, à página 2.
Com a virada política, nos anos 1940 Aurélia engajou-se na campanha do Partido
Socialista Democrático, PSD, contrariando de certa forma as expectativas, pois grande parte
de militantes da AIB migrou para a União Democrática Nacional (UDN). Destacou-se no
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trabalho em prol das eleições de Getúlio Barbosa de Moura194
, eleito deputado federal pelo
Rio de Janeiro, em 1945, e José Haddad195
, que em 1947 elegeu-se vereador em Nova Iguaçu,
tornando-se por muitos anos o principal representante de Belford Roxo no legislativo do
município e do estado, e o parceiro político de Aurélia, que trabalhou para elegê-lo desde seu
primeiro mandato.
A alfabetização de crianças, e principalmente de adultos eleitores, ganhou destaque
neste cenário, passando a ser trabalho realizado pelo PSD para eleger seus correligionários no
– a partir de 1948 – 5º Distrito de Nova Iguaçu. Na Estação da Piam, local onde havia nos
anos 1930 importante granja pertencente ao médico Dr. Farrula, Aurélia participou
incentivando o trabalho de alfabetização de uma escola instalada em uma pequena sala de
cinema, que ficou conhecida assim como a ―Escola do Cinema‖. Oportunizou que algumas de
suas ex-alunas dessem aulas, orientando o trabalho realizado por elas. A narradora Fernanda
Bicchieri iniciou ali no magistério, levada pelas mãos de Aurélia, na escola do PSD e depois
na Condessa Infante, alfabetizando adultos. Desta forma, a professora continuava colocando
em prática as ações que havia incorporado na Era Vargas.
As terras da Sociedade Anônima Farrula, em 1951, foram vendidas para os italianos
Geovani e Justino Infante que ali inauguraram a firma chamada Piam Farmacêutica.196
Em
1952 os irmãos doaram para a prefeitura de Nova Iguaçu, na gestão do Prefeito Dr. Luiz
Guimarães, médico e udenista, uma pequena parte das terras e as demais lotearam, criando
assim o bairro Piam e proporcionando que fosse construída no terreno, pela prefeitura, uma
escola que ganhou o nome da esposa do médico Dr. Geovani, que parece ter sido na Itália uma
condessa, ou assim era considerada, Maria Gianna Zappi Recordati Infante197
. As memórias
sobre a criação do bairro Piam e da escola fazem parte dos materiais recolhidos com os
194
SOUZA, Marlucia Santos de (2002, p. 129) ―As relações pessoais e políticas travadas no passado e a forte
presença do chefe político local – expressa na votação da Baixada Fluminense que o reelegeu como deputado
federal pelo PSD em 1950 e também em 1954 – mantinham Getúlio de Moura como um nome expressivo.
Moura ocupou ainda a vice-presidência e a presidência da Rede Ferroviária Federal (1956/61) durante o
governo de Juscelino. Controlava também os donos de cartórios, a distribuição de favores provenientes da
máquina administrativa local e regional, possuindo uma clientela que se servia de seu ofício como advogado e
de um conjunto de práticas assistencialistas‖.
195
Nascido em 30/11/1913, foi político e dono do único cartório de Belford Roxo até a emancipação do
município e a primeira instalação do governo, em 1993. Aurélia participou ativamente de todas as suas
campanhas.
196
Conforme documento do cartório, constante do acervo do CENPRE.
197
No relato de Rosângela Hernandes de Carvalho encontrei o nome Geanna Maria Recordati Infante. O nome
Zappi foi acrescentado à caneta vermelha. Em busca pelo nome correto, encontrei o de Maria Gianna Zappi
Recordati Infante, pelo período (1897-1961) acredito ser a mesma imigrante italiana. FONTE: MyHeritage.
Disponível em https://www.myheritage.com.br/ Acesso em 26-12-2014.
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205
antigos moradores de Belford Roxo por iniciativa do CENPRE. Essas memórias foram
baseadas na escritura de doação do terreno da escola para a prefeitura e escritas pela
professora da escola, em 1986, Rosângela Hernandes de Carvalho, que adjetivou a condessa
italiana como ―encantadora, justa e com ideais futuristas‖. A terceira escola municipal de
Belford Roxo recebeu um nome diferenciado no cenário dos nomes de escola da região,
Escola Municipal Condessa Infante, localizada na Rua Monte Pascoal. Com a sua construção,
ainda no ano de 1952, foi inaugurada e entregue pelo representante legal à Diretora Enedina
Moreira de Carvalho e recebeu os alunos e professoras, da ―escola do cinema‖, a escola do
diretório do PSD.
A primeira diretora, Profa. Enedina Moreira de Carvalho198
, exemplo de
profissional. Dedicada, orientava as professoras quase meninas. Naquele tempo o
ingresso ao magistério dependia do grau de escolaridade, sem levar em conta a
idade. A equipe extra-classe era mínima, contava com uma auxiliar, pois o antigo
ensino primário (de 1ª. a 4ª. série) não era documentado. O grau de conhecimento
era demonstrado no ―vestibular‖ da época (Exame de Admissão) para chegar ao
Ginasial. Não havia no primário a burocracia atual [...] Voltando a Condessa Infante,
era a arquitetura mais bonita da época, só perdia para a Escola Estadual Rangel
Pestana, hoje o Instituto de Educação no centro de N. I. O prédio no centro de um
grande gramado tinha ao fundo a estação ferroviária da Piam e a fábrica de tijolos
com o mesmo nome. Os bois pastavam em liberdade, colocando fim ao ciclo
agrícola da região. A Professora Aurélia de Souza Braga era a chefe de toda
Educação, dirigia o Departamento de Educação do município de Nova Iguaçu. O
destaque para a seriedade do ensino, até o final da década dos anos cinquenta, os
Exames Finais eram realizados por Inspetores de Ensino – esses técnicos iam aplicar
provas nas Escolas e as professoras das turmas seguiam para o Rangel Pestana e
Monteiro Lobato para colaborar com as estatísticas e outros assuntos, com a
preocupação com a rigidez [fidelidade] nos resultados de promoção dos seus alunos.
(FERNANDA BICCHIERI, 1986. Rascunho. Fonte: CENPRE)
Aurélia tornou-se referência na educação e na política do Distrito de Belford Roxo, a
professora Dulcenéia Couto Nunes199
– antiga professora e colaboradora do município que na
década de 1980 iniciou uma escola de educação básica, particular, no bairro de Nova Piam –
lembra que Aurélia esteve à frente dessa educação de Nova Iguaçu por um período na década
de 1950, e inclusive contratou-a professora pelo município para atuar em Belford Roxo. Dª
Dulce foi diretora por longos anos da Escola Municipal Condessa Infante, após a saída de Dª
Enedina, somente deixando o posto quando exigida a formação. O fato de ter sido o nome
principal da educação do município é omitido por Aurélia em sua autobiografia
Pelo visto, durante esse período ela trabalhou pela inauguração de novas escolas em
198
A Professora Enedina é a mesma citada na matéria do Correio da Lavoura em 1937, antes com o sobrenome
de solteira, Barbosa Moreira, era diretora da E. M. Belford Roxo.
199
A Profa. Dulce não faz parte do grupo dos Narradores, colaborou com a pesquisa com este dado.
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206
Belford Roxo, tanto assim que no dia 08 de junho de 1956 foi inaugurada a escola que
recebeu o nome de Álvaro Lisboa Braga, seu pai. A escola foi construída no bairro de
Heliópolis, essa localização vem ratificar que o processo de interiorização das escolas
municipais em Belford Roxo era lento. As escolas eram criadas na área central, ou próximas a
ela, e, de início, seguiam na mesma direção da Avenida Retiro da Imprensa. Mas nessas
décadas de 1950-60 a Baixada Fluminense e Belford Roxo perceberam significativo aumento
do número de habitantes, proporcionalmente muito maior do que nas demais décadas. A
chegada de migrantes de várias regiões do país e do estado, sobretudo de nordestinos, em
busca do sonho de um pedaço de terra e/ou da possibilidade de morar mais próximo ao local
de trabalho, no município do Rio de Janeiro, resultou no período de maior crescimento
populacional da região, bastante superior às taxas observadas para o restante do estado, que
teve crescimentos de mais de 100%, só na década de 1950 (BARRETO, 2007).
Aurélia200
prosseguiu prestigiada no município, respeitada e sendo ouvida. O prestígio
político, entretanto, é evidente na trajetória da professora. Tal prestígio não foi somente
construído com suas ações educacionais e pelas redes de relações, mas também com ações
assistenciais ligadas à infância. Nesta esfera quais foram as suas ações no período do Estado
Novo?
3.3 Proteção à Infância e à Maternidade de Belford Roxo201
Assistir à Infância e à Maternidade foi uma das atividades propostas por Aurélia ainda
no Estado Novo. O governo de Getúlio Vargas, entre 1940 a 1943, estabeleceu uma série de
ações de proteção às crianças pobres e suas famílias. Essas práticas tinham por finalidade a
formação dos futuros cidadãos através do preparo profissional. Nesse período foram criados:
200
Em sua homenagem, estimo que na década de 1970, uma escola recebeu seu nome, na localidade do Babi,
bairro afastado e portador de um dos mais altos índices de pobreza em Belford Roxo. A Escola Municipal
Aurélia de Souza Braga hoje é uma escola extinta, a documentação de seus alunos encontra-se precariamente
arquivada na Secretaria Municipal de Belford Roxo, SEMED, até a data de 13 de setembro de 2013, quando
realizei busca aos acervos da Secretaria. Com a emancipação do município, muitas documentações se
perderam, ou não foram transladadas de Nova Iguaçu para Belford Roxo. O novo município não tem registros
de sua criação, como não tem nenhum órgão destinado a guarda da memória das escolas.
201
Toda documentação dessa entidade está no acervo do CENPRE, separada, porém ainda não catalogada.
Fazem parte da pasta não só os estatutos, mas toda correspondência oficial mantida pela entidade com as
autoridades públicas do município, estado e da capital, bem como o manuscrito do discurso de Aurélia, quando
tomou posse como sua presidente eleita em 1948, aqui reproduzido em sua íntegra.
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o Departamento Nacional da Criança, o Serviço de Assistência ao Menor, a Legião Brasileira
de Assistência, o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, o Serviço Social do Comércio
e a Campanha Nacional de Educandários Gratuitos202
.
Em 1942, a primeira dama Darcy Vargas criou a Legião Brasileira de Assistência
(LBA). Esta instituição pretendia auxiliar às famílias dos soldados convocados para a
Segunda Guerra Mundial, contudo o estatuto previa a sua continuidade após o final do
conflito. Aurélia e seu grupo social, então, promoveram uma campanha de arrecadação de
metais, para doação à Força Expedicionária203
e também organizaram um grupo de mulheres,
lideradas por ela, e fundaram um braço da LBA em Belford Roxo. Com o final da Segunda
Guerra Mundial, cessaram os compromissos da LBA com os soldados e suas famílias e a
instituição transformou seus objetivos e se dedicou a assistir à infância e à maternidade.
Há rumores, entre os narradores, de que a própria primeira dama Darcy Vargas esteve
em Belford Roxo, e que teria vindo de trem para prestigiar o trabalho das senhoras da LBA –
com Aurélia à frente das demais pertencentes a sua rede de sociabilidade, todas vestidas de
paletós azuis e saias brancas –, porém não encontrei documentos deste episódio, podem ser
apenas especulações porque o comentário partiu da segunda geração, dos filhos dessa rede.
De toda essa movimentação, surgiu a ideia da criação da Sociedade de Proteção à Infância e à
Maternidade de Belford-Roxo. Seus estatutos datam de 28 de maio de 1948, mas acredito que
o movimento para sua criação tenha ocorrido algum tempo antes. Aurélia descreve suas
intenções para com a entidade em seu discurso de posse como presidente204
:
Sr. Dr. Prefeito de Nova Iguaçu e demais autoridades presentes, senhores e senhoras
que me hão de ouvir. [...]De há séculos a palavra do Cristo vem incentivando os
corações bem formados para a prática do bem. [...] A bem-aventurança da palavra
sagrada, quando definiu o amparo infantil naquele ―Todo aquele que receber um
desses pequeninos em meu nome, é a mim que recebe‖, tem agregado forças bem-
intencionadas para, no atribulado da vida quotidiana trabalharem em prol do bem-
estar da criança em nossa terra. [...] Diante do quadro desolador da época atual, em
que a infância, a pobre infância de nossos dias, aparece, talvez por descuido nosso,
forjando seus carácteres na mais sórdida promiscuidade dos deboches, dos jogos de
azar e das atitudes imorais das ruas, quando devia estar sendo beneficiada pelo
constante lidar com as boas ações e atitudes retas, leva-nos a meditar um pouco no
202
RIZZINI, Irma e VOGEL, Arno. O menor filho do Estado: pontos de partida para uma História da assistência
pública à infância no Brasil. In: PILOTTI, Francisco e RIZZINI, Irene. A arte de governar crianças: a história
das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto
Interamericano Del Nino, Editora Universitária Santa Úrsula, Amais Livraria e Editora, 1995.
203
Segundo alguns narradores ela reuniu esse material na Praça Getúlio Vargas.
204
Mantive a íntegra do discurso, o [...] foi colocado para indicar o parágrafo, apenas coloquei de acordo com as
novas regras da ortografia. Aqui a intenção é buscar compreender o conteúdo do discurso para relacioná-lo a
outros dessa época.
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208
futuro, esse futuro que ansioso nos aguarda, e no qual depositamos nossa confiança,
de nele encontrar paz de espírito a par dum fim de vida digno e honesto como nosso
passado. [...] E é meditando nisso, meus senhores, e recordando que por nós muito
fizeram os que foram para que fôssemos, que buscamos forças em nós mesmo, para,
enlaçados por uma única finalidade, desafiarmos as agruras da atualidade e
trabalharmos um pouco em benefício dos que hão de ser nosso amparo, nosso
conforto e nosso orgulho nos dias que hão de vir. [...] De há muito se vem fazendo
sentir em nossa localidade a necessidade de iniciarmos aqui uma obra de amparo
social à criança de nossa terra, que pudesse, de algum modo, suprir certas
necessidades de meio ambiente para que a nossa sociedade não viesse a se ressentir
de certos deslizes morais. Tão comuns em nossa época. Sabemos que é amparando
moral e materialmente os menos protegidos da sorte, que evitamos certos males
diários. [...] É visando precisamente isso, que unindo-nos como acabamos de fazer,
nos propusemos, a nós mesmos, como dever sagrado, trabalhar pelo amparo da
criança de Belford-Roxo, tudo fazendo para que ela se sinta feliz dentro desse
pedaço sagrado de terra do Brasil. [...] Sabemos que, no futuro, essas mãozinhas,
que constituirão o nosso melhor aplauso e maior incentivo, hão de postarem-se em
intenção de Deus numa atitude de gratidão aos que de algum modo trabalharam em
benefício delas. [...]Nelas, nós seremos, assim como foram, para que fossemos.
Nelas, que constituem o reflexo de nosso passado, a promessa de nosso futuro e a
glória maior do porvir de nossa pátria, nós nos eternizaremos pelo desprendimento
com que nos houvermos para assegurar-lhes o futuro reto, digno e promissor. [...]
Sociedade de amparo social forjada no mais puro sentimento cristão de bem servir à
criança, sem credos políticos ou religiosos, sem dogmas ou princípios, a não ser
aqueles que visam exclusivamente o benefício da infância como dívida que temos
para com ela, é de se esperar, que compreendida em sua mais alta finalidade se
desenvolva pela estrada do progresso e que não pereçam jamais os seus sãos
princípios e após nós, outros possam vir para que ela se eternize através dos tempos
sempre cumprindo com a tarefa a que se impôs – Contribuir de algum modo para o
amparo social da infância de Belford-Roxo, para que ela se sinta feliz dentro desse
pedaço de terra do Brasil. [...] Tenho dito. (FONTE: pasta da Sociedade de Proteção
à Infância e à Maternidade de Belford Roxo, discurso de posse, 15-06-1948)
Além do apelo aos valores cristãos, nota-se que as motivações da professora para a
criação da entidade parecem ter acontecido anos antes, como ela mesmo diz. Também a
preocupação em olhar para a infância como uma responsabilidade comum aos adultos da
localidade aparece clara. Fica também explícita em sua fala uma desesperança para com os
tempos atuais e os valores morais nos quais são formadas as crianças. Aurélia ainda faz
questão de dizer que a Sociedade não estava alicerçada em credos políticos ou religiosos. Mas
será que isto seria possível? Seu discurso parece estar calcado em outros que encontrei no
decorrer da pesquisa. Primeiramente no próprio discurso do Estado Novo.
―O governo Vargas empregava um discurso moralizador que preconizava o
estabelecimento de uma prática pública que pudesse promover maior promoção social, para
tal a ―elite moral‖ era convidada a auxiliar o governo na assistência aos menos favorecidos‖
(FERREIRA, 2010, p. 10). Ferreira, em seu estudo que busca analisar as políticas públicas, a
repressão e as práticas assistenciais em relação aos menores, da Proclamação da República ao
Estado Novo, aponta que a política ―menorista‖ sofreu significativas mudanças nos primeiros
anos da república. Mas a autora conclui que nesses dois períodos, da 1ª. e da 2ª. república, há
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209
um caráter permanente que percebe o menor desamparado como um problema e como alguém
que deve ser disciplinado para garantir a ordem social.
As questões de assistência social e de educação no período adquirem feições de
segurança pública, portanto, cuidar da infância seria garantir um futuro melhor para todos e
isto Aurélia deixa claro em seu discurso. ―Em palestra na Academia Brasileira de Letras, o
Juiz de Menores, Sabóia Lima, defendia que cuidar da criança fazia parte da ‗defesa da pátria
e da sociedade‘, uma vez que ‗a criança é um dos elementos mais disputados pelo
comunismo‘‖ (FERREIRA, 2010, p.9). Prestar socorro à mãe e à criança necessitada através
de métodos científicos era visto como um instrumento na defesa da nacionalidade e da
dignidade do país.
No período do Estado Novo foi instituído o primeiro programa estatal de proteção à
maternidade, à infância e à adolescência no Brasil. O implementador deste programa era um
órgão do Ministério da Educação e Saúde (MES), o Departamento Nacional da Criança
(DNCr). A proposta do departamento envolvia e dependia de uma participação ativa da
sociedade, ou de certos atores principais – médicos, professoras, autoridades públicas e as
mulheres em geral. Atribuía-se a estes sujeitos uma afetividade natural para com a criança, de
forma que bastava boa vontade e articulação nacional, comandada pelo governo, para que os
problemas fossem superados. O modelo assistencialista do DNCr era baseado na criação de
certos equipamentos públicos, principalmente os chamados Postos de Puericultura, onde todas
as mães, e não só as pobres, deveriam receber orientação médica desde o início da gravidez,
seguindo-se o acompanhamento da criança até a fase escolar, quando poderia ter acesso às
Casas da Criança, um tipo de escola com orientação médica (PEREIRA, 1999).
Apesar de ser fruto da ditadura, o programa dependia de uma grande articulação com a
sociedade, ao que André Ricardo Pereira (1999) menciona como um fato curioso. Outro fato
que aparece nesse discurso é o da relação dessas obras assistencialistas com a Igreja. Esse
discurso do Estado Novo combina, portanto, com o apelo aos sentimentos cristãos no discurso
de Aurélia, apesar de:
Tais estabelecimentos seriam supostamente construídos e mantidos por iniciativa
local. Ao Departamento cabia dar apenas a orientação técnica e, eventualmente,
algum subsídio em dinheiro. O programa, portanto, dependia da boa vontade de
certas figuras sociais que podem ser divididas em três categorias: a) os profissionais:
médicos e professoras; b) as autoridades públicas: prefeitos e juízes; c) a elite moral:
os ricos e especialmente as brasileiras. Outros grupos, como o clero católico, as
assistentes sociais, os dentistas etc eram lembrados, mas sem tanta insistência como
os anteriores. Quanto aos últimos, tal esquecimento se deve ao fato de serem
técnicos, que ainda precisavam ser formados e não possuíam grande tradição no
campo assistencialista. O clero, por sua vez, era de incorporação mais difícil. Das
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210
figuras sociais em destaque sempre se esperava iniciativa, independência e
disposição para aceitar as diretrizes vindas da sede do DNCr. O mesmo não se
poderia esperar da Igreja. (PEREIRA, 1999, p. 120)
A Sociedade de Proteção à Infância e à Maternidade de Belford-Roxo, articulada e
organizada por Aurélia, ajustava-se aos preceitos do Departamento Nacional da Criança
(DNCr), porém, sua diretoria tomou posse apenas em 15 de junho de 1948, no governo do
General Eurico Gaspar Dutra. As finalidades descritas em seus estatutos, registrados, são
elencadas em seu Art. 2º:
A Sociedade tem por finalidade a proteção e assistência à Maternidade e à Criança
desprovida de recursos, zelando pela saúde e bem estar dos mesmos. a) – higiêne da
Maternidade e da infância, sua proteção e assistência, antes, durante e depois do
parto. b) – assistência médica à criança, à gestante e à nutris enferma. c) –
assistência alimentar à criança reconhecidamente pobre, que se encontra em estado
de sub-nutrição. d) – proteção a educação de crianças órfãs abandonadas, que vivam
nas vias públicas, sujeitas a fome, sujeitas ao vício, ao analfabetismo, a
contravenção, a perversão e ao crime, por falta de amparo, bem como de pais
comprovadamente pobres, por meio de colocação familiar, internamento, etc. e) –
proteção e educação de crianças cujas mães trabalhem fora. f) – divulgação de
preceitos de higiêne, puericultura, recreação orientada e serviços sociais por meio de
palestras, cursos e exposições, e, outros meios de propaganda. g) – outras iniciativas
ou empreendimentos médicos sociais em benefício da maternidade e da infância
desprovidas de recursos pecuniários.
Para dar consecução a esses fins, a Sociedade seria mantida por doações, promovendo
festivais e campanhas e solicitaria auxílio ao governo municipal, estadual e federal, conforme
seus estatutos. A diretoria era composta por ela como presidente; como vice-presidente,
Miguel Palmieri; 1ª. Secretária, Jamille Oazem; 2ª. Secretária, Jacy da Silva Freitas; 1ª.
Tesoureira, Percilia Domingos; 2ª. Tesoureira Therezinha Machado; no Conselho Fiscal,
Nassib El Chaer, Salmo Rodrigues de Souza, e Accacio Augusto do Nascimento; e como
suplentes desse conselho, Francisco Ignacio Roberto e Hildebrando de Paula e Silva. Entre as
participantes, membros da LBA local. A sessão solene de posse dessa diretoria aconteceu na
sede do Club dos 40 e foi presidida pelo, então, deputado federal Getúlio de Moura e
secretariada por Maria Eunice Soares dos Anjos205
.
A participação do deputado foi fundamental, pois no balanço de 1950 aparecem as
subvenções federais, obtidas por Moura, Cr$50.000,00, as estaduais, obtidas por indicação do
deputado estadual José Manhães, Cr$10.000,00 e por indicação do então vereador José
Haddad, Cr$20.000,00 de subvenções municipais. O patrimônio da Sociedade constituía-se do
lote nº 15, da Avenida Francisco Sá, doação da Companhia Isa, avaliado em Cr$30.000,00.
205
Ex-aluna de Aurélia e irmã da narradora Danilce Micho.
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211
Um lote s/nº na mesma avenida, adquirido pela Sociedade no valor de Cr$20.000,00. A
construção do prédio onde iria funcionar o Posto de Puericultura começou no dia 30 de maio
de 1950, sob a direção do Sr. Eugeniano Sá Freire, ―nos moldes da planta fornecida pelo
Departamento Nacional da Criança‖206
.
Nas trocas de correspondência, encontrei uma resposta da Divisão de Cooperação
Federal do Departamento Nacional da Criança. O próprio diretor, Martagão Gesteira, em 26
de julho de 1948 respondia à presidente da Sociedade, Aurélia, que ―de posse da carta datada
de 31 de maio do corrente ano, dirigida ao Sr. Presidente da República‖ ele esclarecia que o
―Departamento não dispõe de dotação orçamentária para construção, ampliação, remodelação
e equipamento de obras de proteção e assistência à maternidade, à infância e à adolescência‖,
A parte de manutenção, no governo federal, no momento, está a cargo do Conselho
Nacional de Serviço Social deste Ministério, que conta com dotação específica para
essa finalidade. Além disso, lembro-vos que também costumam auxiliar a
manutenção de obras dêsse gênero o Estado, pelo Conselho ou Serviço de
Assistência Social, a Prefeitura Municipal, a Legião Brasileira de Assistência,
através de Centro Municipal ou Comissão Estadual, e os particulares em geral. [...]
Entretanto, o vosso pedido foi anotado na Divisão de Organização e Cooperação
dêste Departamento para qualquer oportunidade futura207
.
O documento evidencia que desde a fundação da Sociedade de Proteção à Infância e à
Maternidade a professora vinha procurando meios junto ao poder público de dar provimento
às suas finalidades, ―para atender as 15.000 almas, compostas de operários e pequenos
lavradores‖208
. Evidencia também o quanto o Departamento era um mero articulador e
orientador de ações, porém não participava efetivamente delas, deixando, na prática, a cargo
de outrem e da sociedade a consecução das suas intenções. Também junto às
correspondências, solicitações para realização de ―festas joaninas‖, com fins de arrecadação
de verbas para a Sociedade são evidências dos expedientes da professora para juntar os meios
necessários para a construção do Posto de Puericultura, segundo as orientações do DNCr.
Uma dessas estratégias seria justamente a emissão de cartas a quem entedia que
poderia de alguma forma auxiliar. A troca de correspondências faz parte da cultura política do
206
―Relatório apresentado e lido em Assembleia Geral da Sociedade de Proteção à Criança e a Maternidade de
Belford-Roxo, realizada em 31 de maio de 1950‖. FONTE: CENPRE.
207
Trechos do ofício em resposta ao pedido de subvenção ao Departamento Nacional da Criança, do Ministério
da Educação e Saúde. FONTE: CENPRE.
208
No Relatório da Sociedade, dos anos de 1948 e 1949, Aurélia descreve as doenças mais frequentes
decorrentes da falta de saneamento, alimentação adequada, educação e higiene em Belford Roxo, além de dar
conta que o distrito tinha 15.000 habitantes, em sua maioria operários e pequenos lavradores.
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212
período para dar provimento aos interesses individuais e institucionais e exige, tanto daquele
que solicita quanto ao que responde à solicitação, todo um procedimento indicador de
civilidade (MIGNOT, 2004). Ao investigar as correspondências do educador Anísio Teixeira,
quando diretor da Instrução Pública do Distrito Federal, constantes do acervo do CPDOC,
Ana Chrystina Mignot observa que grande ―parte das cartas, no entanto, tinha uma letra que
indicava boa educação e respeito pelo outro, civilidade‖ (MIGNOT, 2004, p. 50). Pelo visto a
professora adquiriu os atributos necessários a essa atividade e os exercia com a diplomacia
necessária. Mas, apesar da bela letra, atestada de uma maneira ou de outra pela maioria dos
narradores, e visível nas atas e outros documentos da Sociedade, as correspondências emitidas
pela entidade eram datilografadas, possivelmente para conotar profissionalismo, talvez uma
imagem de novas competências na realização do que ora se propunha, empregando um caráter
menos pessoal. Embora isto, essas correspondências são testemunhos de que Aurélia tinha
habilidades para conduzir as relações interpessoais utilizando-se da escrita epistolar, tradutora
da cultura política do período.
A documentação da Sociedade, pesquisada no acervo do CENPRE, conta com cópias
de correspondências trocadas com várias autoridades, muitas de congratulações pela
iniciativa, inclusive do governador do estado, Edmundo Macedo Soares e Silva que esteve no
cargo de 1947 a 1951, eleito pelo PSD. Aurélia atuava, desta forma, como mediadora entre as
instâncias do governo e a comunidade, comunicando as atividades desta em prol do lugar, ao
mesmo tempo buscando o apoio das administrações públicas e dos políticos para dar
prosseguimento aos seus intentos como líder da Sociedade, como havia feito à frente da
administração da E. M. Prof. Paris e do jornal O Infantil, editado em 1939/1940. Essas
relações de troca poderiam ser rotuladas como ―clientelistas‖, entretanto, Kuschnir (2002)
desloca essa visão:
A antropologia pode contribuir nesse debate porque sua principal tarefa é estudar
não o que a política deve ser, mas o que ela é para um determinado grupo, em um
contexto histórico e social específico. Compreender, ―do ponto de vista do nativo‖,
práticas muitas vezes diferentes daquelas que idealizamos pode gerar incômodo,
intelectual ou cívico, mas um incômodo necessário, pois, como disse Geertz, ―se
quiséssemos verdades caseiras, deveríamos ter ficado em casa‖ (KUSCHNIR, 2002,
p. 166)
Além disto, havia real necessidade de ações na esfera social, trocar apoio político por
verbas governamentais seria o caminho de solução para questões sérias da comunidade de
Belford Roxo. Na ata decorrente da sessão de fundação, datada de 28 de maio de 1948, quem
presidiu a reunião foi o médico Dr. Ruy Moraes que explicou aos presentes as finalidades da
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213
nova sociedade, procurando colocar em relevo que havia na localidade a ―necessidade de uma
permanente assistência às gestantes e às crianças pobres‖. E acrescentou ―que era desolador o
número de óbitos extraídos, por dia, em seu consultório, óbitos esses resultantes da péssima
alimentação a que estão sujeitas as pessoas pobres‖209
. Na prestação de contas do ano de
1949, Aurélia lembra o médico:
Figura 29 - Infância e maternidade – obra de assistência. Abertura do
relatório da Sociedade de Proteção à Infância e à Maternidade de
Belford Roxo, realizada em 31 de maio de 1950
Fonte: Acervo do CENPRE.
Entendo, primeiramente, a organização da Sociedade como um desdobramento do
trabalho de Aurélia à frente da LBA local, também em sua ata de fundação outras senhoras
209
Dr. Ruy Moraes foi o primeiro médico residente em Belford Roxo e prestou um serviço inestimável à
localidade, seu aval neste momento deve ter sido muito importante para o reconhecimento da necessidade da
Sociedade, vários narradores citaram Dr. Ruy em alguma oportunidade, pois sua amizade foi muito cara à
Aurélia.
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são citadas como chefes da ―comissão de visitadoras‖: Nemezia Ferreira Haddad – esposa de
José Haddad – e Julieta Maghelli Palmieri – esposa de Miguel Palmieri. Essa rede de
mulheres foi importante para a consolidação de seu prestígio e exercício de liderança. Ainda
nesta ata ficaram identificadas as autoridades que seriam convidadas para a posse, no topo da
lista o General Eurico Gaspar Dutra, presidente da república; seguido do governador do
estado, Coronel Edmundo de Macêdo Soares; Dr. Getúlio de Moura; o prefeito Sebastião de
Arruda Negreiros, que havia voltado ao cargo, agora eleito; o Diretor do Departamento
Nacional da Criança; membros locais da política e outras autoridades, como Dr. Mario
Guimarães, Dr. José Manhães, Dr. Lucas de Andrade Filgueiras, Dr. Humberto Baroni, Otávio
José Soares, Jesus de Castro Vieira, José Haddad, a presidente da LBA de Nova Iguaçu, Padre
João Müsch, o delegado regional de Nova Iguaçu, o delegado de Belford Roxo, presidente da
Cruzada Espírita de Belford Roxo, presidente do Social Club Belford Roxo e o presidente do
Club dos 40. O então vereador José Haddad usou a palavra para encerrar a sessão. Essas
foram as pessoas que para a Sociedade recém-criada e para Aurélia, provavelmente, seriam as
mais importantes, política e socialmente.
Um fato curioso, que me remeteu a outras pesquisas, entretanto, aconteceu com
relação aos documentos dessa Sociedade. Eu havia procurado por dados relativos ao lactário
criado por Aurélia, era assim que se referiam à entidade alguns narradores. Eu sabia que o
atual posto de saúde de Belford Roxo, o Neuza Brizola, havia sido construído por seus
esforços e era ali que me diziam que ele foi localizado. Como não encontrava nada que tivesse
a palavra lactário, resolvi ir mais fundo na investigação e descobri nesses documentos que não
se tratava apenas de um lactário, mas um posto de puericultura, ou, mais além, uma sociedade
que se voltava para à maternidade e à infância com propostas mais amplas e orientação que
remontava à ditadura Vargas. Mas por que então o nome lactário?
―O desenvolvimento histórico dos lactários no Brasil teve advento com o Dr.
Fernandes Figueira. Esse médico iniciou no Rio de Janeiro o serviço de puericultura
sistematizado quando em 1909 assumiu a direção da Policlínica das Crianças, localizada na
Rua Miguel de Frias‖ (PIMENTA; MOREIRA; NEVES; PORTO; BRAGA, 2010, p. 3). Aos
poucos seguia-se a conscientização de que a alimentação era um dos mais importantes
quesitos para a saúde das crianças, algo fundamental à vida, principalmente no primeiro ano, e
que era fator decisivo de saúde e bem-estar. Na década de 1930 o índice de mortalidade
infantil era expressivo, nessa fase da vida do lactente. Era elevado o número de moléstias
advindas da alimentação incorreta, levando ao óbito cinquenta por cento das crianças abaixo
Page 217
215
de um ano210
, como confirma o médico local na justificativa que faz para criação da
Sociedade, Belford Roxo e toda região tinha um alto índice de mortalidade infantil, como
depreendo também dos anúncios de indenizações pela Caixa Escolar pagas às famílias dos
alunos das escolas municipais, publicados em O Infantil, no ano de 1939. A foto, encontrada
nos acervos do CENPRE sem outras indicações, ilustra esse quadro.
Figura 30 - Enterro de criança, E.M. Prof. Paris, pela Praça Getúlio Vargas. As crianças
conduzem. Anos 1930.
Fonte: Coleção Aurélia Braga. CENPRE.
No final da década de 30 e na de 40 do século XX, inauguram-se os lactários no
Brasil, experiência trazida da França e implantada em vários países da América Latina
também. Na cidade de São Paulo, é criado o lactário na Santa Casa de Misericórdia de São
Paulo, em 1938, e, em 1940, o lactário pela Cruzada Pró-Infância de São Paulo (BARBIERI;
COUTO, 2012). A nomenclatura utilizada, portanto, o nome lactário, remonta há anos
anteriores à criação do Departamento Nacional da Criança e da Legião Brasileira de
Assistência. Mas parece que o nome se popularizou criando uma maior identidade entre a
população leiga. Além disto, a proposta dos Postos de Puericultura passava a mensagem de
210
PIMENTA, MOREIRA, NEVES, PORTO e BRAGA (2010, p. 7), com base nos Annaes de enfermagem,
jan.,1935.
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216
que seria mais ampla no atendimento materno-infantil, que este seria um serviço mais
completo. Entretanto, os lactários existentes em instituições conceituadas evidenciavam o
trabalho sério e criterioso que era realizado. A palavra, lactário, já trazia em si, para o leigo,
todo conteúdo de sua proposta, enquanto a palavra puericultura demandava conhecimento da
raiz etimológica da expressão. Anos e anos à frente a instituição criada pela professora era
conhecida como lactário por uma questão semântica?
3.3.1 Ações sociais das ―blusas-verdes‖
Na hierarquização do movimento integralista, consta uma Secretaria Nacional de
Arregimentação Feminina e Plinianos (S.N.A.F..P.), de cujo regulamento se verifica que tinha
por fim: ―orientar, dirigir, controlar e arregimentar todo trabalho da mulher e da juventude
integralista‖211
. Tal regulamento encontra-se na Enciclopédia do Integralismo, objeto de
estudo de Christofoletti (2013) e fonte de pesquisa de Cavalari, também autores que se
debruçaram sobre o acervo do Fundo Plínio Salgado, pertencente ao Arquivo Público
Histórico de Rio Claro. Nesse acervo também foi possível a outros pesquisadores do
movimento levantar questões como a da participação feminina no integralismo, como
Bertonha, Barbosa e Simões212
.
Esses estudos buscam também compreender um aparente paradoxo, observando que
para o movimento as posições femininas e masculinas eram marcadamente diferentes e com
ênfase em fatores biológicos, os papéis desempenhados pelas mulheres seriam sempre
coadjuvantes. Ocupando a mulher um lugar subalterno, porém interessante à consecução dos
objetivos integralistas, tendo em vista que, além de eleitoras, as ―blusas-verde‖, como
denominadas as militantes pelo movimento, tinham domínio de conhecimentos e práticas que
permitiam sua penetração em funções estratégicas para a AIB, como de professoras e
enfermeiras. As mulheres deveriam ser as guardiãs dos lares, as que preparavam as novas
gerações dentro das famílias, mas ao mesmo tempo precisavam assumir esse lugar de
executoras de ideais integralistas na sociedade. Na visão do movimento, ―A mulher integral
211
Com base nas pesquisas de CAVALARI (1999), esse regulamento encontra-se na Enciclopédia do
Integralismo.
212
BERTONHA (2013), BARBOSA (2013) e SIMÕES (2013), contribuíram com artigos na publicação ―Dos
papéis de Plínio: contribuições do arquivo de Rio Claro para a historiografia brasileira‖.
Page 219
217
terá cérebro de homem, físico de mulher e coração de criança‖213
.
―Para muitas mulheres, militar no integralismo, mesmo numa posição menos
importante, era uma forma de superar os limites impostos pela sociedade e agir na mesma, de
forma ativa e não passiva‖ (BERTONHA, 2013, p.61). A contradição seria, portanto, a
mulher atuar politicamente em um espaço público, mas fazendo parte de um movimento que
negava a ela condições de igualdade. Ao regulamentar a S.N.A.F.P., a AIB pretendia ―criar
uma ‗atividade feminina‘ ordenada, em todos os campos que lhe são próprios, despertando e
habilitando assim a mulher brasileira para o cumprimento de sua missão na família e na
pátria‖ (CAVALARI, 1999, p.65). Como campos próprios às mulheres, delimitava-se seus
papéis aos cuidados com a educação e a saúde da família, tanto dos filhos como dos maridos.
Por isto, o movimento direcionou as mulheres militantes também para o campo da
enfermagem, porque entre os atributos considerados da natureza feminina este se encaixava, o
da prestação de cuidados. Essas enfermeiras tinham o papel de combater as endemias, de
forma a tornar o brasileiro um povo forte. ―Desse modo, a AIB investiu em propagandas e
cursos integralistas de enfermagem, formando diversas turmas que atuariam em seus
laboratórios, lactários e ambulatórios"214
. Era, então, da competência da Divisão de Ação
Social, por meio dos setores Lactários, Bandeirantes e Dispensários, ―aplicar no terreno social
as atividades das integralistas, contribuindo assim de maneira eficiente e constante para o
melhoramento material e moral das condições de vida da família brasileira‖ (SIMÕES, 2012,
p. 146).
Em 1935, mais precisamente em 03 de outubro, foi inaugurada a primeira Escola
Integralista de Enfermeiras, que, segundo Simões (2012), além de preparar as ―blusas-verdes‖
para o trabalho também nos lactários, acabou por ser uma fonte de arregimentação de outras
mulheres, atraídas pela possibilidade de profissionalização. Com isto, o movimento também
ganhava terreno junto a essas prováveis eleitoras no futuro pleito de 1937. Alguns núcleos
integralistas, além das escolas, ofereciam serviços ambulatoriais e lactários. No núcleo de
Belford Roxo, percebi na fala do narrador Walter, parece que também era oferecido algum
serviço, ―A coisa era boa, tinha escola, tinha assistência médica, tinha tudo aquilo ali‖
(WALTER VICENTE, 2014).
213
BARBOSA (2013, p. 73). Com base no artigo publicado na revista Anauê de 1936. O artigo foi escrito por
uma mulher militante, Nair Nilza Peres.
214
SIMÕES (2012, p. 144). Com base também no Regulamento da S.N.A.F.P. presente na Enciclpédia do
Integralismo.
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218
Figura 31 - Lactário Anna Francisca, São Paulo.
Fonte: cedida pelo Arquivo Público Histórico de Rio Claro.
A memória desses lactários, entretanto, até aqui aparece concretamente nas inúmeras
fotografias constantes dos acervos do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro e do
Arquivo Público Histórico de Rio Claro, presentes também em publicações oriundas desses
acervos, como no livro Imagens do Sigma e Dos Papéis de Plínio, respectivamente, que
mostram pelas fotografias o cotidiano desses lactários215
. No Relatório da Província do Rio de
Janeiro, do mês de abril de 1937216
, não há dados sobre lactários. Mas são listados
ambulatórios e postos médicos integralistas nas seguintes localidades e regiões: Joaquim
Távora (4ª. Região217
); Campos (7ª. Região); Itaocara (10ª. Região); São Sebastião do Alto
(8ª. região); Miracema (10ª. Região); Teresópolis (Região Especial); Ponte Nova (Região
Especial); Petrópolis (em número de dois, Região Especial); Tristão Câmara (Região
Especial); Jaguará (Região Especial); São José do Rio Preto (Região Especial).
215
Imagem d lactários integralistas constantes do Fundo Plínio Salgado do Arquivo Público de Rio Claro
também foram reproduzidas por Cavalari (1999).
216
FONTE: APERJ. Fundo de Polícias Políticas, Setor Integralismo, Notação 16. Relatórios da Província
Fluminense.
217
Na Baixada Fluminense, cuja chefia encontrava-se em Raiz da Serra. Imagino que seja o nome do posto
médico, ou do próprio núcleo. O posto poderia pertencer a qualquer núcleo da 4ª. Região, inclusive a Belford
Roxo.
Page 221
219
Junto com a Divisão de Educação, a Divisão de Ação Social servia à arregimentação
feminina, e também era ―locus privilegiado de propaganda integralista‖ (CAVALARI, 1999,
p.67). Além da distribuição de leite, também distribuía alimentos aos ―menos favorecidos‖ e
promovia o ―Natal dos Pobres‖, momentos que eram aproveitados para a doutrinação. As duas
divisões realizavam ações conjuntas, também na Baixada Fluminense.
Figura 32 - Ingresso ao Festival Artístico Integralista em Nilópolis. Atividade cultural
promovida em benefício à escola e à Secretaria de Assistência Social.
Fonte: APERJ. Fundo do Departamento de Polícias Políticas, Setor Integralismo, Notação 16.
O ingresso para o festival artístico e as assinaturas na ata de presenças às sessões do
núcleo de Nilópolis,218
evidenciam que mulheres219
estiveram engajadas no movimento
também na Baixada Fluminense, apesar dos poucos vestígios. E, embora a mulher não tivesse
218
FONTE: APERJ. Fundo do Departamento de Polícias Políticas, Setor Integralismo, Notação 16.
219
FONTE: APERJ. Fundo do Departamento de Polícias Políticas, Setor Integralismo, Notação 16. Foi possível
identificar, entre as assinaturas do livro de presenças do núcleo de Nilópolis, as seguintes: Anna Barbosa da
Silva, Elisete Martins, Clemilde Santos Martins, Durcilia Mello Schmidt, Léa Cardoso Menezes, Beatriz
Antunes, Maria José Antunes, Amalia de Souza Goes, Francisca Barreto Menezes, Djanira da Encarnação
Vigné, Maria Francisca de Sá, Maria Conceição Silva Montes, Elza Ferreira Guimarães, Julieta Lucia, Emilia
Barreto Paula, Divette Mentzinger Guiguer, Ermelinda Felix. Ao lado dos nomes de Celia Serpa e Wanda
Serpa, entre parênteses a anotação ―Realengo‖. A ata possui os registros do ano de 1936.
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220
a oportunidade de ocupar cargos mais altos na AIB e a ela fossem destinadas funções que na
hierarquia do movimento, ficavam abaixo.
Para atingir seus intentos, o integralismo buscou ampliar a participação feminina nos
lactários, ambulatórios e nos núcleos integralistas, incentivando as ―blusas-verdes‖ a
se inscreverem nos cursos de enfermagem que ofertava. Ainda que a atividade como
enfermeira e os cursos de enfermagem fossem esteados com o fim nem tanto oculto
de divulgação e convencimento ideológico, a atuação de mulheres integralistas
como enfermeiras possibilitou a ampliação da circulação feminina em espaços
públicos e a sanção dos novos papéis sociais atribuídos à mulher (SIMÕES, 2012,
p.148).
Na esteira da educação e da assistência social, portanto, mulheres encontraram a
oportunidade de tornarem-se visíveis e exercerem a liderança, ainda que apenas entre si. O
aproveitamento dessas brechas, concedidas e também conquistadas pelo esforço do trabalho,
foi importante para ampliar a participação feminina na política e na vida profissional. Aurélia
poderia ter aprendido deste período da expansão do integralismo no estado essa lição de como
promover ações sociais e, quem sabe, por isto o posto de puericultura construído
principalmente pelos seus esforços continuou sendo lembrado como um lactário. Como ela
diz em seu discurso de posse: ―De há muito se vem fazendo sentir em nossa localidade a
necessidade de iniciarmos aqui uma obra de amparo social à criança de nossa terra‖. Nesse discurso
também se pode perceber a exaltação dos valores cristãos, uma característica dos discursos de
Salgado. Ou não? Ou foi tudo uma aprendizagem adquirida somente no Estado Novo? Neste
sentido, ainda, seria possível identificar outras ações da professora com ações do movimento?
O jornal que criou, editou e fez circular entre 1939 e 1940 poderia ser identificado com a
imprensa integralista, outra das ações do movimento bem articulada e eficaz? Ou essa
imprensa criada por ela tinha apenas fins pedagógicos?
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221
4 ESCRITAS E MEDIAÇÕES NAS PÁGINAS DE O INFANTIL
Os narradores conduziram esta pesquisa com suas oralidades, mas no decorrer dessas
entrevistas também pude recolher escritas deles, de Aurélia, e dos familiares de muitos dos
que formavam a comunidade letrada em Belford Roxo e que pertenciam à rede de
sociabilidade da professora. As escritas são precedidas pela oralidade e em todo texto ressoam
outros textos de outros escritores, por isto, desde uma perspectiva histórico-antropológica, a
questão das relações entre escrita e oralidade vem sendo vista como um processo onde se
perde e ganha, de trocas, transformações e consequências que afetam ambos os modos de
expressão do pensamento (VINÃO FRAGO, 1996). Entrecruzar o que disseram os narradores
com o acervo de O Infantil, que não só se constitui das edições do próprio jornal, mas de
quase uma centena de manuscritos originais das crianças e dos jovens que estudavam na E.M.
Professor Paris, além de correspondências e outros textos oficiais, e perscrutar pelas suas
escritas também as leituras veiculadas e presumidas, buscando nessas escrituras a maneira
como a professora utilizava o impresso é o horizonte deste capítulo.
Em 1939 Aurélia começou a editar o periódico com textos dos seus alunos, crianças e
jovens de até cerca de 14 anos, cursando a educação primária. Sob o título de O Infantil, o
mensário circulou por Belford Roxo de agosto daquele ano, aparentemente até janeiro do ano
de 1940, em uma, a primeira, edição de quatro páginas e as demais edições em seis páginas,
em formato tabloide. A partir da quarta edição, de novembro, passou a ser órgão oficial da
educação do município, continuando a ser feito por crianças, mas aceitando matérias de
alunos das demais escolas do município e de alguns adultos. Empreendi um esforço
infrutífero na localização de outras edições do periódico, nos acervos das Câmaras Municipais
de Nova Iguaçu e de Duque de Caxias, na Biblioteca Nacional, na Biblioteca Parque Estadual
(BPE), no Arquivo Nacional, no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ), no
Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC), no Arquivo
Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ) e no Centro de Memória de Nova Iguaçu.
Existindo cinco edições do periódico no acervo do CENPRE, não faz parte dessa sequência da
coleção a de outubro, que também não foi possível localizar.
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222
Tabela 03: Coleção de O Infantil do Coleção Aurélia Braga/ CENPRE.
Número Mês Ano Número de Páginas
01 Agosto 1939 4
02 Setembro 1939 6
03 Outubro 1939 Não há no acervo
04 Novembro 1939 6
05 Dezembro 1939 6
06 Janeiro 1940 6 Fonte: Coleção Aurélia Braga. Acervo de O Infantil. CENPRE.
Essas escritas poderiam lançar luzes sobre a trajetória da professora e do distrito?
Sobre o estudo de periódicos em análises históricas destaco:
O interesse em se estudar periódicos para a realização de análises históricas reside
na possibilidade da leitura de manifestações contemporâneas aos acontecimentos.
Desta maneira, realizamos uma aproximação do momento de estudo não pela fala de
historiadores da educação, mas pelos discursos emitidos na época. Em lugar do
grande quadro explicativo da História, da grande síntese que para ser efetuada
desconhece detalhes e matizes, lidamos com a pluralidade: as diversas falas colorem
a compreensão do período e indicam lutas diferenciadas, muitas vezes irrecuperáveis
no discurso homogêneo do historiador de grandes quadros, fazendo-nos recuperar
vieses que ficaram perdidos nas análises historiográficas posteriores (VIDAL;
CAMARGO, 1992, p.408).
Já seria de grande relevância estudar um jornal publicado nesse tempo na localidade
de Belford Roxo pela possibilidade de interpretações de ―manifestações contemporâneas aos
acontecimentos‖, mas este em especial é mais do que isto, trata-se de buscar entender ―as
lutas diferenciadas‖ pelas produções escritas dos alunos e de Aurélia. Com isto, o estudo
possibilita mapear a cultura escolar nessas precursoras escolas de Belford Roxo; perceber as
construções das escritas infantis e juvenis; entender as relações estabelecidas pela professora
com os escritores do periódico e com outros agentes locais, comerciantes, políticos e
profissionais liberais que divulgavam anúncios e também financiavam O Infantil; indagar
como Aurélia utiliza o veículo de comunicação para disseminar suas ideias; encontrar alguns
dos narradores em outra época, e poder observá-los como crianças; entre outras possibilidades
que no decorrer desta escrita não foram percebidas, mas que certamente serão encontradas no
futuro por algum leitor atento desta tese. Antes de serem escritas em um periódico escolar,
estas são escritas de um grupo especifico, com as quais é preciso dialogar para buscar
entender os sujeitos e seu tempo.
Page 225
223
4.1 Infância e cultura escrita
Sempre houve crianças, todavia nem sempre houve infância como categoria
com identidade, nem tampouco desde sempre as crianças escolarizadas
mereceram a atenção científica.
Diaz, 2006, p.99
Muitos autores vêm se debruçando sobre as escritas infantis, como levanta Mignot220
em suas investigações sobre esses estudos, mostrando que ganharam força na década final do
último século. A percepção de que a infância deveria ser observada a partir das suas escritas
surgiu há apenas, aproximadamente, duas décadas entre a comunidade de pesquisadores, e
abriu um leque de possibilidades de entendimento da escola contemporânea a essas escritas.
Valho-me desses estudos, do paradigma indiciário, e também, como caminho metodológico,
das observações da autora quanto aos cuidados e passos a tomar nessas análises.
Sigo essas orientações quanto à consideração de que essas escritas estão submetidas às
normas e ao controle do adulto, pais ou professores; e que, principalmente, deve-se considerar
primeiro o que se escreve; o quando se escreve, a época na qual foi escrito; o onde, lugar onde
a escrita foi realizada; o como se escreve, com que técnicas, sobre que suportes; quem
procede a escrita, seu ambiente sociocultural; para que se escreve, a finalidade do escrito; e
para quem, a quem se destina o que se escreve. Ou seja, deve-se procurar um conhecimento
mais abrangente sobre a geração dessas escritas para se proceder às interpretações.
Ainda seguindo a autora, considerar que essas escritas estão permeadas pelo modo
como a criança vê a vida, nem sempre condizente com o que ela vive, e nesse exercício ela
própria torna-se responsável pelo que elege, omite e fantasia. Necessário se faz, portanto,
apurar o olhar e não cair em ―armadilhas‖, pois essas escritas são, além de resultados da
censura, também invenção. Entretanto, elas são também oportunidades de se trazer à tona o
que ainda não pertence à historiografia, versões silenciadas e relegadas a ―zonas de sombra‖.
Desta mesma forma, o periódico, cuja redação estava ao encargo das crianças e,
também, dos jovens das escolas que Aurélia protagonizava – tendo em vista que muitas
crianças ingressavam na escola primária mais velhas e de lá saiam na juventude –, pode ser
220
MIGNOT (2014) e vários outros trabalhos da autora, que analisam as escritas infantis em diferentes suportes
e finalidades, como cadernos escolares e escritas de si (2003, 2008, 2010, 2013).
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224
analisado juntamente com os manuscritos que servem de fontes para a edição de O Infantil.
Tanto os jornais quanto os manuscritos foram guardados por ex-alunos da professora. Os
originais dos jornais chegaram, como doação aos acervos do CENPRE, por volta de 1986, e
os manuscritos foram entregues a mim, pelo narrador Walter Vicente, como doação para
pesquisa e hoje fazem parte do Coleção Aurélia Braga, pertencente ao centro de memória que
incentivou à criação.
Como foi a própria professora que entregou a Walter os manuscritos e provavelmente
tenha sido ela mesmo quem doou os jornais ao Centro de Preservação do Patrimônio
Histórico e Cultural de Belford Roxo, a impressão que tive foi que Aurélia cuidou de deixar
com aqueles que ela sabia iriam dar um bom destino ao material. Seu senso de prioridade do
que guardar e deixar à posteridade surpreende, pois, as escritas infantis estiveram por muito
tempo relegadas ao esquecimento, à falta de preservação, como afirma Bastos:
Os impressos de alunos, em diferentes níveis de ensino, são documentos importantes
para analisar a cultura escolar e suas práticas. Na historiografia da História da
Educação no Brasil encontram-se poucos estudos com impressos escolares ou
impressos estudantis (Amaral, 2002), especialmente aqueles produzidos por alunos
da escola primária e anteriores à década de 1950, fato que decorre, principalmente,
da pouca conservação de exemplares dos periódicos (BASTOS, 2013, p. 147-148).
Aliás, o estudo da cultura escrita no cotidiano das escolas tem sido o foco de inúmeros
pesquisadores que têm partido da análise dos cadernos escolares para articular as propostas e
as práticas da escola, principalmente: os indícios escritos dos ensinamentos dos professores;
os indicadores de desempenhos escolares; os testemunhos das práticas de aprendizagem; e a
iniciação a uma cultura escrita que tem categorias de recepção específicas221
. Neste sentido, as
escritas infantis são testemunhos das práticas escolares e por elas é possível identificar o
pensamento dos professores que as incentivam e orientam. Considero que o periódico
produzido como prática pedagógica pode ser útil a esses mesmos objetivos.
As escritas infantis, realizadas intra ou extramuros escolares, aparecem na maioria das
vezes mediadas pela professora Aurélia e pelos pais. Porém, mesmo nos manuscritos, feitos
em papéis que Aurélia distribuía aos seus alunos para escreverem suas redações para O
Infantil, é difícil detectar essas intervenções dos adultos, tendo em vista que na sua maioria
são textos visivelmente passados à limpo, provavelmente por algumas vezes, pelas crianças.
Mas ainda, desde a escolha dos temas para a escrita – numa mirada nesses inúmeros
221
RAMOS (2011, apud CHARTIER, ANN MARIE, ―Prácticas escolares con la lengua escrita: visión
comparativa Francia-México‖, Seminario celebrado en DIE/Cinvestav, Enero 2006). Sublinho que esses
estudos sobre os cadernos não foram ainda realizados em Belford Roxo.
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225
manuscritos –, é possível perceber que pouquíssimos refletem os interesses das crianças.
Além disto, utilizam-se de bordões e ―lugares comuns‖, expressões aprendidas pela imitação
dos adultos, mas pouco providas de significados para as crianças. Desta forma, a primeira
impressão que causam os manuscritos é que elas escreviam pela repetição das escritas do
adulto, o que necessariamente não significa que aprendiam a escrever, no sentido da criação
de uma escrita autônoma, e que refletisse suas preocupações, elaborações e pensamentos
próprios.
Seria possível, então, considerar essas crianças como escritoras? Teriam elas a
capacidade de narrar histórias autênticas, de criar prosas livres e redações espontâneas?
Estudar tanto O Infantil, impresso, quanto os textos produzidos para compô-lo pode conduzir
às respostas a essas questões? O que contam essas escritas sobre Aurélia? Sobre a escola, a
vida escolar, e o próprio contato dessas crianças com a cultura escrita?
Mas, afinal, o que significava ser criança leitora e escritora nesta comunidade nos anos
1930/40? O narrador Amilcar Fernandes melhor explica quando relembra as dificuldades de
acesso aos livros, mesmo fazendo parte de um grupo privilegiado, já inserido em meio
urbano, na região central de Belford Roxo. ―Naquela época não tinha muito literatura infantil
não. A literatura infantil que eu me lembre era de Monteiro Lobato [...] A revista infantil era
do Popye... Brucutú [...] Foi ela [Aurélia] que me apresentou José de Alencar, eu li todos,
todos os livros de José de Alencar. Iracema foi o primeiro‖ (Amilcar Fernandes, 2013). Além
disto, nenhum dos livros que Amilcar conseguiu por meio de empréstimo com Aurélia ou com
Emigdio – um dos poucos disseminadores de livros literários no lugar – era destinado às
crianças. Walter guarda até hoje sua rara obra, editada por Monteiro Lobato, uma tradução de
―Pinocchio‖ escrita pelo autor italiano Carlo Collodi, possivelmente um dos primeiros
exemplares de livros voltados para crianças que existiu pelo distrito, já que os livros do
próprio Lobato feitos para crianças nas décadas de 1920 e 1930 só começaram a ter
circulação, nesta localidade, anos mais tarde222
. Mesmo as revistas tinham que ser
encomendadas ao jornaleiro, para que trouxesse do Rio de Janeiro.
Mapear, ainda que sucintamente, a situação da circulação de livros e de possibilidades
de leitura nesse momento em Belford Roxo ilustra o quadro de uma infância cujo acesso aos
livros literários era feito diretamente às obras escritas para adultos. O que se esperava da
222
De acordo com LAJOLO (2000), em 1921 Lobato lança A menina do narizinho arrebitado, considerada a
obra que inaugura o gênero para crianças no Brasil, em São Paulo, com tiragem de 500 exemplares para as
escolas, que depreendo do mesmo estado. Em 1931, o autor organiza coleção de histórias infantis sob o título
de Reinações de Narizinho. A coleção de livros de Monteiro Lobato para crianças começou a circular em
Belford Roxo, pelas mãos de livreiro ambulante, na década de 1960. Até hoje a cidade não tem livraria. Foi
inaugurada uma pequena biblioteca pública somente em 2015.
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226
escrita infantil era que se assemelhasse a do adulto, apesar do nome emblemático escolhido
para o periódico. Percorrer as páginas de O Infantil, para encontrar nessas escritas essas
crianças, atuais narradores e seus colegas, e buscar os saberes e as intenções dessa professora
ao criar e editar o jornal é mais uma tarefa desafiadora que as iniciativas de Aurélia
conduzem.
4.2 Impresso escolar
Um veículo de comunicação de massa viria calhar e se fazer eficaz aos objetivos da
professora, afinal sua circulação iria além dos muros das escolas, gratuitamente aos alunos da
Prof. Paris e Sagrado Coração de Jesus, ou ao custo de capa de $100, seria distribuído entre a
população urbana, primeiramente, de Belford Roxo, e a partir do quarto número também em
todas as escolas municipais de Nova Iguaçu. Com isto, amplificaria sua voz ao alcance de
alguns milhares223
.
Figura 33 - Cabeçalho de O Infantil – 1ª. Edição. Agosto de 1939.224
Fonte: Coleção Aurélia Braga. CENPRE.
Lançava-se Aurélia a mais uma empreitada, que, certamente, junto com o trabalho nas
suas duas escolas, preencheria todo o seu dia. Politicamente o jornal só viria fortalecer a
professora no, então, 9º225
distrito de Nova Iguaçu e junto ao governo do município. Tanto que
223
Estimo sua tiragem em alguns milhares, pois não consta em nenhuma edição.
224
Todas as imagens dos manuscritos e do periódico que fazem parte deste capítulo estão em formato reduzido.
225
Em sua Cronologia de Belford Roxo, o memorialista Ruy Afrânio Peixoto afirma que em 1938 Belford Roxo
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227
se fez notar, que o memorialista Ruy Afrânio Peixoto, em seu trabalho intitulado ―Cronologia
de Belford Roxo‖, saúda sua criação, colocando-o como marco importante no ano de 1939. E
a diretora da Escola Regional de Merity Armanda Álvaro Alberto, signatária do Manifesto dos
Pioneiros da Educação Nova, para ele enviou seu texto ―No Cincoentenario da Republica‖
para publicação.
Seria, portanto, ingenuidade pensar o periódico produzido por Aurélia e seus alunos
como apenas uma ferramenta pedagógica, embora também o fosse. Ele se apresenta como
mais um instrumento usado pela professora para ampliação do capital social e cultural do seu
grupo. Neste sentido, é possível ratificá-la naquele momento como um agente empenhado em
elevar e fortalecer a posição social dessa comunidade, e a sua evidentemente, com ações
educacionais e culturais. O Infantil seria então uma de suas ferramentas, um veículo de
cultura e propagação de ideias.
Outros materiais pertencentes à cultura material da escola, como cadernos e livros
didáticos, hoje também são vistos como meios de educação de massa (MEDA, 2015) porque
produzidos pela indústria criada a partir da massificação da instrução primária e popular, em
curso também em Belford Roxo principalmente pelo incentivo e ações de Aurélia. Portanto, o
jornal produzido pelas crianças e jovens de suas escolas teria funções muito mais abrangentes
nesta localidade, ambicionava educar toda população.
Tomando o conceito de cultura a partir de Clifford Geertz 226
que, pela semiótica, a
define como um sistema inter-relacionado de signos interpretáveis e que também define a
estrutura simbólica como una forma de dizer algo sobre algo, esses signos estão no seio da
vida social e são portadores de um modo de ser ambíguo, porque possuem qualidades
materiais perceptíveis à primeira vista, mas também significados que necessitam serem
interpretados (DIAZ, 2002). Por isto, considero possível observar e buscar no veículo uma
visão dessa comunidade que, alijada em seu tempo, pode emergir em suas páginas, por sua
materialidade e seus significados interpretáveis.
No que diz respeito ao periódico como instrumento pedagógico, as evidências trazidas
anteriormente nesta tese de que a professora se utilizava de materiais didáticos do método
intuitivo, dão pistas para que se perceba que Aurélia entendia a escrita como algo a ser
ensinado simultaneamente à leitura. A escrita também era enfatizada tanto como habilidade
passou a ser um distrito de Nova Iguaçu, antes fazia parte do Distrito-sede. Porém, no periódico é possível
identificar que Belford Roxo é tratado como 9º distrito em 1939.
226
O conceito de cultura do renomado antropólogo está presente em inúmeros trabalhos do autor e na
Enciclopédia Britânica.
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228
manual, quanto em relação à capacidade de redigir textos. Pelas dificuldades de se produzir o
impresso, a pedagogia de Aurélia estava inserida em uma sociedade na qual ter uma caligrafia
inteligível era condição necessária para se comunicar pelo escrito. O método intuitivo ainda
destacava a necessidade de dar um cunho prático ao ensino, principalmente, da língua
portuguesa, ou seja, ensinar a gramática pela língua e não a língua pela gramática (GALVÃO,
2007). O jornal era, portanto, um incentivo às escritas e um recurso para estimular a leitura,
tanto dos alunos como dos membros da comunidade letrada local.
Como documento histórico, o jornal produzido por alunos faz parte da cultura material
da escola, permitindo o exercício de ler os objetos presentes no cotidiano escolar. Permite
também percorrer em suas páginas, ―descrições variadas sobre a vida interna da escola, as
concepções didáticas, os signos escolares e suas mensagens, as representações de uma época
sobre o ler e o escrever [...] onde se pode fazer confluir os interesses da História da Educação
com a História da Cultura Escrita‖ (SANTOS, 2014, p. 65).
Em 1937 as ideias de Ferdinand Buisson aparecem na prática pedagógica de Aurélia,
estampam-se nas paredes de sua sala de aula as evidências da visão do educador francês e do
chamado método intuitivo. Dois anos depois, outra de suas ideias pedagógicas, o jornal
escolar, surge no cenário da vida dessa professora, de cuja obstinação brotam iniciativas. Diaz
(2015) atribui a Buisson a prerrogativa de ter sido o primeiro a utilizar a elaboração do jornal,
que existia apenas como veículo de comunicação de massa, como uma prática pedagógica, ou
seja, como um recurso trabalhado como atividade colaborativa entre os alunos em sala de
aula.
Os jornais produzidos por estudantes foi uma das instituições ou associações escolares
incentivadas também pela Escola Nova, isto é, embora tenham existido iniciativas anteriores,
desde as últimas décadas do XIX, ganhou força na década de 1920, segundo as pesquisas de
Maria Helena Camara Bastos227
. ―Mas foi Celéstin Freinet, com suas experiências a partir de
1924, que ampliou a divulgação e utilização do jornal escolar como texto livre, considerando-
o ‗a expressão natural, a base, da vida infantil em seu meio normal‘‖ (BASTOS, 2013a, p.7).
Visto por esse prisma, o jornal feito por estudantes como atividade de aula ou extracurricular,
permitiria a expressão infantil de sua vida cotidiana possibilitando o conhecimento da criança,
da sua percepção sobre seu entorno, facilitando tanto o conhecimento de sua vida social como
de seu mundo interior.
227
A pesquisadora foi a responsável por apresentar, organizar e contribuir com artigo, em 2013, para o volume
17, número 40, do importante dossiê da Revista História da Educação, Pelotas, sobre as ―Escritas estudantis
em periódicos escolares‖.
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229
Outra função dessa instituição seria propiciar o trabalho coletivo, em equipe,
contribuindo para o desenvolvimento da participação cooperativa. Também proporcionaria a
prática de diferentes habilidades, como de desenho, de fotografia, e administrativas. Bastos
ainda enumera as vantagens da utilização do jornal pelos estudantes, baseadas nas concepções
de Freinet:
O ensino da língua pelo método natural, sem redações formais, sem exigências
gramaticais; permite a expressão natural e viva; estimula o desejo e a necessidade de
escrever, ler, experimentar e calcular, que são a base de uma formação cultural.
Explica, ainda, que o jornal é um arquivo vivo da classe, do cotidiano da sala de aula
e da escola que aproxima a escola do bairro e da cidade, reflete a classe de alunos, o
trabalho realizado e as aquisições de conhecimentos e desperta a curiosidade e o
interesse. (BASTOS, 2013a, p.8).
Elaborado e editado em 1939, O Infantil, seria então uma fonte onde se perceberia um
alinhamento da professora com as ideias da Escola Nova? Teria Aurélia contato com as mais
recentes ideias lançadas sobre a educação? Ela própria descreve, em seu esboço
autobiográfico, e os narradores ratificam, que criou vários outros meios de levar cultura à
escola e à localidade, que para ela andavam sempre imbricadas, como teatro e o canto
orfeônico. Além disto, também criou outras instituições como a biblioteca, a caixa escolar, a
merenda escolar. Tudo isto seria fruto de suas próprias ideias pedagógicas sobre meios de
desenvolvimento do aluno e da escola? O nacionalismo que pregava seria decorrência do
conhecimento das visões da Escola Nova?
Um relato do narrador Amilcar Fernandes possibilitou-me adentrar por mais um
aspecto na investigação dos objetivos educacionais da professora:
Porque é como eu disse pra você, encadeava, se formava uma cadeia, uma corrente,
que as pessoas se aglutinavam, se uniam, é a mesma coisa que se você tá com dor de
dente, acaba doendo a dentadura toda. E se tiver tudo bom, tá todo mundo sorrindo.
Era o nosso caso, se tivesse um mal, o resto tava mal também, não tava bem. Porque
isso era colocado de uma forma que nós mesmos não percebíamos na época, mas era
de uma forma que Dna. Aurélia encadeava isso. (AMILCAR FERNANDES, 2013)
O sentimento de coletividade e de pertencimento a um dado grupo e a uma nação,
aparecem construídos pela professora em diversas ações. Para o narrador, a forma de estímulo
à interação dos alunos, por exemplo, fazendo-os participar de sabatinas onde eles mesmos
tinham a função de se avaliarem, era uma das maneiras utilizadas pela professora para fazê-
los compreender que pertenciam ao mesmo grupo, que ali eram apenas um, o jornal seria
outro elemento importante no fortalecimento do nacionalismo. Não se pode esquecer que
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230
1932 foi o ano em que os Pioneiros da Educação Brasileira lançaram seu manifesto, tendo
dito, um de seus expoentes, Anísio Teixeira (1960, p. 205),
Nacionalismo é, fundamentalmente, a tomada de consciência pela nação de sua
existência, de sua personalidade e dos interêsses dos seus filhos. Pelo nacionalismo,
os indivíduos da nação se fazem verdadeiramente irmãos e tudo que atinja a cada um
passa a atingir a todos. Por isto mesmo, antes de mais nada, o nacionalismo aguça
em cada um o sentimento de justiça para com os demais habitantes do país, impondo
a participação de todos na vida nacional e fazendo crescer a coesão e a consciência
de igualdade entre êles. Passam todos, efetivamente, a se sentirem cidadãos da
mesma pátria, com direito à mútua solidariedade e a certa igualdade fundamental.
No entanto, muitas vertentes políticas opostas, por esse período, concordavam com o
ideal de formar as novas gerações, desenvolvendo o sentimento nacionalista. O que poderia
divergir eram os métodos educacionais, as concepções de educar. Aurélia partilhava desse
ideal de formar para o nacionalismo, segundo o que depreendo do relato do narrador, porém
as maneiras como busca desenvolver nos alunos a sensação de pertencimento à mesma pátria,
à mútua solidariedade e uma certa igualdade fundamental talvez não fossem as mesmas eleitas
pelos Pioneiros da Educação Nova.
Do ponto de vista da elaboração do jornal, pode-se depreender, observando essas
fontes, jornais e manuscritos, que Aurélia tinha conhecimento do assunto. As laudas que
distribuía aos alunos para escreverem os manuscritos e submetê-los ao seu crivo eram as
mesmas utilizadas pela imprensa de fins do século XIX, início do XX, que por esse período
ainda tinha que transpor muitas matérias manuscritas para a composição tipográfica. Pelo que
se percebe do material, a maioria dos textos que iam para confecção do impresso não eram
antes datilografados, seguiam nessas laudas manuscritas direto para a composição tipográfica.
Percebe-se nos originais as marcações do tipógrafo.
No acervo do conjunto de jornais há uma boneca228
que evidencia como a professora
procedia para editar o jornal, calculando os espaços reservados ao cabeçalho229
, títulos,
colunas, e textos, pormenorizando detalhes, de modo que o tipógrafo tivesse todas as
instruções necessárias para compô-lo. Suponho, pois não consta no jornal, que ele era
228
Segundo o Dicionário de Jornalismo de Juarez Bahia: século XX (2010), boneca é roteiro, esquema de
paginação ou diagramação. Projeto gráfico (jornal, revista, livro ou outra publicação). No mesmo formato de
impressão de um trabalho, funciona como leiaute, com o desenho das páginas a serem montadas na disposição
definitiva.
229
BAHIA (2010), segundo o autor, no Brasil é usual seguir-se o padrão originário do jornalismo norte-
americano, com dados sumários na sua essência: nome, local onde é editado, data, número, preços do exemplar
avulso e de assinatura, e, eventualmente, o fundador e editor principal, epígrafe ou slogan. Esse formato remete
o leitor para o expediente em página interna, com informações complementares. Ainda, acrescenta o autor, na
Europa é comum reunir-se o cabeçalho, a identidade e o expediente. O Infantil obedecia ao formato europeu.
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231
impresso na tipografia do tio de Aurélia, Benedito Francisco Souza, localizada no Rio de
Janeiro. Seria o caminho mais natural, entretanto, como não continha fotografias ou desenhos,
não havia um trabalho de clicheria. Como descreve o narrador Robinson Azeredo, do jornal
de Nova Iguaçu Correio da Lavoura, por essa época não havia esse trabalho em Nova Iguaçu,
depreendo em toda Baixada, somente na capital, no Rio de Janeiro. O fato de não se utilizar
de clichês, pode indicar que seria composto e impresso na Baixada Fluminense, ou que
simplesmente era uma questão de minimizar custos. Considero uma perda não poder analisar
desenhos e fotografias nesse periódico. Todavia, esse detalhe pode sinalizar o quanto a
oralidade e a escrita para Aurélia eram muito mais valorizadas que qualquer outra forma de
expressão. Ela não guardou desenhos infantis. Esse incentivo também não aparece nas
entrevistas com os narradores.
Figura 34 - Capa de O Infantil nº 2, de 1º de setembro de
1939. A segunda edição é comemorativa da Independência e
contém 6 páginas.
Fonte: Coleção Aurélia Braga. CENPRE.
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232
No cabeçalho, já incorporado o seu expediente, podem-se ler três nomes de seus
alunos mais velhos, de 16, 14 anos e 12 anos respectivamente. Como diretor, Mariano José
dos Passos; secretário, Laudelino Gonçalves Gato; e tesoureiro, Carlos Vicente. Todos os três
pertencentes a grupos familiares onde outros membros também aparecem assinando matérias,
evidências de que deveria haver convívio e a assistência familiar nas práticas de leitura e
escrita nesses grupos (LINS; SILVA, 2007). Aurélia coloca-se como fundadora, o que já se
pressupõe o seu papel de editora, porém não é ela quem assina os editoriais. Há o preço de
capa, o local responsável pela publicação, no caso a Escola Municipal Prof. Paris, com seu
primeiro endereço, na Francisco Sá, ao lado de onde nessa época residia a professora. O
município e o estado, sede do jornal. Ano, número da publicação e o nome do jornal em caixa
e fonte que criam uma identidade visual. Todas as edições mantêm essa identidade, embora a
diagramação de alguns demonstre que talvez não foram feitos com o mesmo apuro, pelo
mesmo tipógrafo. Não há em nenhuma edição informações sobre a sua tiragem, o que
dificulta saber exatamente a quantidade do seu público alvo.
O tamanho considerado tabloide (33x23cm) era o mais comum para os jornais de porte
pequeno, embora O Infantil fosse cerca de cinco centímetros mais estreito, a maioria media
28cm de largura, a altura estava de acordo. A primeira página vinha dividida, em todas as
edições, em três colunas, confirmando a busca de uma identidade visual. As demais páginas
variavam conforme o número de matérias e número de páginas, quatro ou seis. Uma certa
unidade de colunas e abordagens marcava a organização do jornal, algumas eram constantes
desde a primeira edição, porém as vezes variavam de lugar nas suas páginas. Nas cinco
edições encontradas é possível perceber as seguintes colunas:
Tabela 04 - Colunas de O Infantil – edições pesquisadas.
Colunas 1ª. Edição 2ª. Edição 4ª. Edição 5ª. Edição 6ª. Edição
Editorial X X X X X
Crítica Escolar X X X X X
Tesoura Escolar X X X X X
Fantasia X X X
Vultos Nacionais X X
Notas Sociais X X X X X
Através do Brasil X X X X
Publicidade X X X X X
Publicações
Necessárias
X X
Vida Escolar do
Município
X X X X X
Exames X X
Fonte: Coleção Aurélia Braga. Acervo de O Infantil. CENPRE.
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233
Havia a coluna do diretor, o editorial, essa sempre à esquerda da primeira página;
colunas, duas delas, dedicadas à crítica e à censura, sob os títulos de ―Crítica Escolar‖, e
―Tesoura Escolar‖; as ―Notas Sociais‖; a publicação de trechos do livro Através do Brasil, de
Olavo Bilac e Manoel Bonfim, em sequência, como capítulos de novela. Apesar de ter
passado a órgão oficial da educação do município a partir da 4ª. edição, desde a primeira
havia a coluna intitulada ―Vida Escolar do Município‖ que dava conta das exonerações,
licenças e abonos, e tudo o que dizia respeito às relações de trabalho do professorado e
trabalhadores da educação em geral, o que pode indicar que tornar-se imprensa oficial era um
objetivo almejado desde a sua criação, o que evidencia que, apesar do nome, não era um
periódico feito por crianças. Ao final, as propagandas do comércio e profissionais liberais, que
também financiavam a publicação. Nas duas primeiras edições, há uma coluna intitulada
―Fantasia‖ que trazia prosas ou poesias de caráter romântico, imaginativo, e voltadas para
temas como o luar, o amor de mãe, infância, entre outros congêneres.
Figura 35 - Coluna Tesoura Escolar de O Infantil
Edição nº 1, p. 2. e edição nº 4, p. 5.
Coleção Aurélia Braga. Acervo de O Infantil. CENPRE.
Jesus de Castro Vieira, futuro vereador eleito por Belford Roxo e colaborador do
jornal, e Aurélia eram os responsáveis por selecionar os textos para publicação, mas isto não
era explícito. As duas formas de críticas explicitas, as duas colunas, não eram assinadas.
Olhando as entrelinhas nas páginas dos jornais, e comparando os manuscritos com as
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234
publicações, pode-se perceber Jesus como avaliador dos textos que mereciam ser publicados e
que a própria Aurélia era quem as vezes escrevia ou passava à limpo, a primeira coluna,
assinada por Mariano José, membro da família da narradora Sara dos Passos, e a coluna
―Crítica Escolar‖. Essa tentava usar de humor para apontar as crianças, alunas da professora,
com críticas, por vezes até ácidas, direcionadas nominalmente, como as que se referiam ao
seu aluno que trocava fonemas na fala, descrevendo como era sua forma de falar. As duas
colunas procuravam exercer um certo controle, tanto sobre as escritas publicáveis quanto
sobre o comportamento dos alunos, e este é um dos atributos dos periódicos escolares,
funcionar como sinalizadores de condutas desejáveis e como repressores das indesejáveis
(CARUSO, 2006). Ambos, Aurélia e Jesus, foram os únicos adultos responsáveis pelo que era
publicado no jornal, o que se pode perceber de suas páginas e nos manuscritos.
Raramente o texto assinado de um ou outro adulto era publicado, somente percebi
acontecer por três ou quatro vezes. Suponho que devido ao crivo logo no primeiro número, as
matérias que foram enviadas posteriormente pelas crianças foram melhor revisadas e passadas
a limpo maior número de vezes até que fossem entregues, por isso a ―Tesoura Escolar‖ pouco
funcionou nas últimas edições. A coluna aparece em todos, mas brinca com os leitores
dizendo que está ―quase enferrujando‖. Entretanto, há uma discrepância entre os textos
publicados e os que foram guardados como manuscritos, revelando que ―a tesoura‖ não fez o
que prometeu, guardou alguns dos ―julgados maus‖. Também há textos que foram publicados
cujos manuscritos não fazem parte do acervo.
Os textos que não aparecem nas cinco edições, somente como manuscritos, podem ter
sido publicados na terceira edição, a de outubro, que não foi guardada juntamente com essa
sequência. Aliás, esse fato é para se estranhar porque se Aurélia teve o cuidado de guardar as
bonecas, os manuscritos, até um conjunto de letras de chumbo para determinar os tamanhos
de letra a serem usados, por que não guardaria um dos exemplares da edição de outubro? Em
vários manuscritos há anotações de edições nas quais supostamente seriam publicados, da 7ª.
até a 17ª., esses jornais foram realmente publicados?
―Materializados em papel e tinta, produzidos pela mediação da escola, a grande
maioria desses documentos enfrentou a passagem do tempo, e, agora estudados podem
emergir como re-conhecimento, como possibilidade de não-esquecimento, como ‗lugar de
memória‘‖ (MIGNOT; CUNHA, 2006, p. 41). Claro está que esse ―lugar de memória‖ que
representa O Infantil tem também outras características, de reconhecimento do trabalho de
Aurélia e o não-esquecimento disto. Mas por que esquecer a edição de outubro ou, se
houveram, as edições posteriores? Ao que remeteriam lembrar? Esquecer também seria
Page 237
235
importante a esse reconhecimento?
Entre os guardados, também as correspondências oficiais não só as que tratavam das
informações da prefeitura, afeitas à educação, a serem publicadas, mas principalmente
agradecimentos de autoridades pelo envio do impresso, como o do oficial de gabinete do
presidente Getúlio Vargas, Décio Coimbra, endereçado à Aurélia, datado de 02 de setembro de
1939, mas que só existe como manuscrito transcrito do documento original, por Aurélia, creio
que pode ter sido publicado na edição, perdida, de outubro.
Já no segundo número, de setembro, O Infantil publicava, na íntegra, a
correspondência enviada pelo temido e, então, poderoso Chefe de Polícia do Distrito Federal,
Filinto Müller, endereçada ao diretor de instrução de Nova Iguaçu, Dr. José Manhães. A
correspondência oficial agradecia ao responsável por enviar-lhe o primeiro número de O
Infantil. Entretanto, o ofício original não faz parte das correspondências de Müller constantes
do acervo do CPDOC, e no acervo do periódico há apenas a transcrição feita por Aurélia. A
matéria foi publicada na coluna sob o título de ―Publicações necessárias‖.
No quarto número do jornal escolar, de novembro, na mesma coluna, é publicado que
Filinto Müller enviou carta de agradecimento à Aurélia, fazendo ―votos pela patriótica
colaboração de O Infantil‖. Na sequência da matéria, foi publicada, na íntegra, carta do
Diretor Geral do Departamento Nacional de Educação, Abgar Renault, datada de 7 de outubro
de 1939, enviada ao diretor de O Infantil, Mariano dos Passos. O original da carta de Müller
endereçada à Aurélia não consta do acervo, nem foi transcrito na íntegra, apenas mencionado.
No processo de busca das correspondências de Filinto Müller pertencentes ao acervo
do CPDOC230
, consta o nome de Nova Iguaçu, entretanto, na pasta indicada não há qualquer
correspondência recebida ou endereçada a alguém do município. Por mero acaso, encontrei,
em outro arquivo, correspondências recebidas pelo chefe de polícia oriundas do distrito-sede,
tendo em vista que a pasta destinada a guarda das correspondências de Nova Iguaçu não
continha nenhuma do município231
. Do gabinete do diretor de instrução iguaçuano, Dr. José
Manhães, há duas cartas endereçadas ao Serviço de Inquéritos Políticos e Sociais (SIPS)232
,
230
CPDOC (id: FM chp ad 1933.01.01, pastas 1, 2, 3 e 4).
231
No arquivo FGV/CPDOC, FM chp SIPS Rio de Janeiro, encontram-se as correspondências de Manhães,
Pimenta e Machado a Müller. Entretanto, as correspondências do chefe de polícia do Distrito Federal tanto à
Manhães, quanto à Aurélia não foram encontradas nesse acervo, também não há correspondências expedidas
pelo órgão, somente as recebidas. Precisei insistir em procurar às cegas por outras pastas para encontrar alguma
correspondência de Nova Iguaçu para Filinto Müller.
232
Órgão de informação e segurança nacional, encarregado da coordenação de elementos informativos da polícia
preventiva, atividade de controle ideológico, que visava à repressão de qualquer discurso contrário à ideologia
do Estado Novo. Sua chefia estava a cargo de Filinto Strubing Müller.
Page 238
236
uma datada de 02 de agosto de 1939 contém o seguinte trecho: ―Tomando em consideração a
CIRCULAR Nº 3 da SIPS, envio a V. S. o INFANTIL, cientificando-vos que já foram
fundados no município de Nova Iguassú dois jornaes escolares, sendo que o segundo enviarei
em ocasião oportuna‖.
Dessa correspondência se pode concluir, primeiramente, que a remessa e informação
do lançamento de novo periódico era exigência do órgão. Também pode-se pensar que a
criação de jornais escolares era uma orientação desse mesmo serviço, tendo em vista que a
segunda correspondência de Manhães ao SIPS, datada de 09 de novembro de 1939, diz o
seguinte: ―Em resposta ao vosso pedido de colaboração nas homenagens prestadas ao segundo
ano do Estado Novo, remeto-vos a opinião dos alunos das escolas municipais, deste
Município, sobre a individualidade do Presidente da República, Exmo. Snr. Dr. Getúlio
Vargas‖. As palavras dos alunos não acompanham o documento nesse acervo do CPDOC,
também não foi possível localizá-las na Secretaria de Educação de Nova Iguaçu, porém pode-
se supor que essas fossem utilizadas na propaganda do regime. A educação do município
colaboraria assim com fortalecimento da figura do presidente.
Durante o Estado Novo (1937-1945), houve significativo esforço no sentido de
justificar o regime e divulgar uma imagem positiva deste junto às camadas populares. A
preocupação com a propaganda evidencia-se em 1931, quando foi criado o Departamento
Oficial de Publicidade (DOP), que, em 1939, derivou o Departamento de Imprensa e
Propaganda (DIP), diretamente subordinado à presidência da República. A Constituição de
1937 considerou a imprensa um serviço de utilidade pública e lhe impôs muitas restrições. Os
jornalistas e os jornais tiveram que se registrar no DIP e passaram a conviver com a censura.
As atividades do órgão incluíam a edição de revistas, onde se destacavam a Cultura Política,
a mais importante, Brasil Novo e Estudos e Conferências, assim como a produção e
publicação de uma ampla gama de livros, desde cartilhas até obras que justificavam o golpe
de 1937, e louvavam as realizações governamentais e a figura de Vargas (LUCA, 2011). No
livro de memórias do repórter e escritor Joel Silveira (1998), intitulado Na fogueira:
memórias, encontro um de seus depoimentos representativos da censura aos meios de
comunicação neste período, e os efeitos do trabalho do DIP junto aos órgãos de imprensa:
Poucos dias depois da instituição do Estado Novo, Lourival Fontes [...], que já era o
encarregado da propaganda do governo, o constitucional, transferiu-se com toda sua
curriola para o Palácio Tiradentes, de onde os deputados haviam sido enxotados, e lá
instalou, com toda pompa, o DIP, Departamento de Imprensa e Propaganda, cópia
fiel do Ministério della Coltura .Populare, de Mussolini [...].cabia ao DIP ditar as
regras, dizer o que devia ser publicado e irradiado, censurar, suspender ou mesmo
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237
fechar em caráter definitivo, jornais, revistas e estações de rádio. Qualquer um que
―passasse dos limites‖. De um modo abrangente, ―passar dos limites‖ era falar mal
do novo regime e particularmente de Getúlio; e também não falar bem, que no caso
já era considerado oposição – a neutralidade ou indiferença eram tidas como
suspeitas. (SILVEIRA, 1998, p.177)
As publicações com fins de propaganda do ideário, portanto, chegavam à Baixada e
em outros municípios do estado do Rio de Janeiro, como figuram nessas correspondências a
várias outras prefeituras. Por isto, o chefe de uma secretaria de Nova Iguaçu, Athayde
Pimenta, agradece o envio de Novo Brasil, que depreendo ser a revista Brasil Novo, ao
Capitão Filinto Müller, em 12 de abril de 1939. E o delegado do município, Anibal Antonio
Nelson Machado, agradece ―a grande honra com que me distinguiu, dignando-se oferecer-me,
acompanhado de amável cartão, o belo exemplar da ótima obra de Avilmar Silva, ‗A Filosofia
do Estado Novo‘‖. Ainda diz que como policial deseja ver mais forte o regime que ―salvou o
Brasil‖. Das prefeituras de Campos, Barra do Piraí, Petrópolis, Niterói, São Fidelis, entre
outras, partiam correspondências semelhantes, e que também se encontram nesse mesmo
acervo. Diretores de escolas, de praticamente todas as regiões do estado, agradecem o envio
das mesmas publicações, o que ratifica que as escolas eram lugares alvos de propaganda
maciça do regime, e que o SIPS se voltava também para o controle do que era veiculado nelas
e por elas.
Sob o título em caixa alta, à primeira página do nº 5, edição de dezembro: ―UMA
MANIFESTAÇÃO DE APREÇO AO PRESIDENTE DA REPÚBLICA‖, ―O INFANTIL
compartilhando da manifestação de apreço prestada ao Exmo. Sr. Presidente da República Dr.
Getúlio Vargas no dia 17 de novembro pela criança brasileira‖ publicava na íntegra a matéria
do Correio da Manhã, periódico do Rio de Janeiro, que descrevia a manifestação promovida
pela Cruzada Nacional da Educação, com o ―concurso de alunos de suas escolas de São Paulo
e do Distrito Federal, representando as cento e trinta mil crianças do país‖. A matéria descreve
o evento realizado e cita o discurso proferido por uma criança em nome de todas as crianças
do Brasil, de cunho apelativo e emocional, exaltando o presidente com palavras escritas por
um adulto: ―Depois das palavras da pequena intérprete, o sr. Getúlio Vargas abraçou-a, sob
aclamações de todos os presentes, entoando o coro de alunos o Hino da República‖. Isto
reforça a impressão de que era comum que crianças ―interpretassem‖ aquilo que era de
interesse dos adultos. Também que o periódico criado por Aurélia tinha a intenção de
promover não somente a divulgação de acontecimentos, da educação, locais, mas também de
âmbito mais abrangente, principalmente os que estivessem de acordo com o crivo da SIPS.
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238
Figura 36 - O Infantil: ―Manifestação de apreço ao Presidente da
República‖. Matéria do nº 05 – de 01 de dezembro de 1939.
Fonte: Coleção Aurélia Braga. CENPRE.
Nos arquivos do CENPRE não consta o texto original enviado por Armanda Álvaro
Alberto, que foi publicado na íntegra, à página três em duas colunas, na edição número seis de
O Infantil, sobre o cinquentenário da Proclamação da República. Como citou o colunista
anônimo da ―Tesoura Escolar‖, à página quatro desse número: ―Recebemos a conferência
intitulada ‗No cincoentenario da Republica‘. A tesoura desta vez não funcionou, ao contrário,
com justiça agradece à professora Armanda Álvaro, da Escola de Merity, seu belo trabalho,
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239
que é sem dúvida um atestado honroso para o nosso O INFANTIL‖. Como desde a edição de
novembro o periódico passou a ser órgão oficial da educação do município, as escolas de
todos os distritos, e do, então, distrito de Caxias, também faziam parte do grupo ao qual se
destinava o periódico. A Escola Regional de Merity, deveria, portanto, receber também o
jornal editado por Aurélia, e, mesmo oferecendo uma pedagogia diferenciada das demais,
também seus alunos eram submetidos aos exames procedidos pela diretoria de instrução do
município233
.
Figura 37 - ―No Cincoentenario da Republica‖, Armanda Álvaro Alberto. Publicação
de O Infantil nº 6, página 3.
Fonte: Coleção Aurélia Braga. Acervo de O Infantil. CENPRE.
233
No Correio da Lavoura de 04 de novembro de 1937 também encontrei a relação da banca examinadora da
Escola Regional de Merity.
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240
A professora Armanda Álvaro Alberto neste texto reafirma sua opção republicana sem,
entretanto, deixar de denunciar sutilmente o regime ditatorial ao qual estavam submetidos.
―Liberdade/ Liberdade/ Abre as asas sobre nós‖, aparentemente o trecho do hino republicano
é uma inocente anotação totalmente pertinente à homenagem ao cinquentenário. Segundo as
pesquisas de Mignot (2002, p. 276), a educadora:
não ficou imune à exacerbação do autoritarismo. Na “onda de terror” para conter e
combater a subversão social, o governo não se detinha diante de nada que
representasse ameaça à ordem: “a selvageria policial não respeitou nem categoria,
social ou política, nem idade nem sexo”. As mulheres não escaparam da censura,
perseguições, prisões.
Isto permite pensar sobre a violência com que foram combatidas e vistas como
―subversivas‖ quaisquer ações entendidas como contrárias ao regime e também as estratégias
utilizadas para que se continuasse o exercício de algum tipo de liberdade de expressão, nesse
período, por aqueles que mantinham sua cultura política.
Dos poucos textos assinados por adultos publicados no periódico, consta também o
texto da professora Maria de Lourdes Costa Viana, da Escola Dr. Francisco Portela234
, nesta
mesma edição de número 5, que trata do tema exames escolares, defendendo uma visão
menos ―tradicional‖, que chamou de práticas ―medievais‖, no momento de se proceder a esses
exames, buscando com seus argumentos, e citando Binet, apelar às colegas, que participavam
das bancas de exame em todo município, para um proceder ―mais amistoso e menos
aterrorizante‖ aos alunos na hora dos exames. O periódico era responsável por divulgar as
bancas examinadoras as quais se submetiam os alunos ao término do curso primário, função
anteriormente exercida somente pelo Correio da Lavoura, maior jornal da região.
Com as novas funções incorporadas ao O Infantil, era necessário, portanto, que ele
sofresse algumas modificações e fizesse concessões à publicação das escritas de outros que
não somente as das crianças. Ainda assim, foi mantida a linha editorial que o iniciou em
agosto, publicando a maioria das matérias assinadas pelos alunos. O hibridismo do jornal fica
notório, mas ele continua sendo órgão da Escola Municipal Prof. Paris.
Outro texto não infantil, da professora Judith de Castro, também publicado na edição
de número 5, descreve uma homenagem de um grupo de professoras do município prestada à
esposa do diretor de instrução, Sra. Dulcília de Campos Manhães, e é mais uma evidência de
como o periódico servia aos propósitos de estabelecimento e ampliação das redes de relações
234
A professora termina seu artigo para o jornal datando e colocando a localidade de Nilópolis, onde depreendo
ser essa escola nessa época.
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241
entre Aurélia, as professoras, e o governo municipal.
O periódico parecia cumprir suas finalidades, atendendo tanto aos interesses de
incentivo e divulgação das escritas infantis, quanto à elevação social do grupo de Belford
Roxo e da professora, quanto à afirmação de suas ideias. No decorrer dos meses em que
circulou ele melhorou sua editoria, aprimorou-se do ponto de vista gráfico, evidenciando um
crescimento visível da sua qualidade, como é possível constatar, por exemplo, nas duas
pequenas colunas ―Tesoura Escolar‖, constantes aqui como ―Figura 35‖, nas edições de nº. 1 e
nº 4. Além disto, tinha o apoio da prefeitura, do órgão de educação municipal, dos
comerciantes e profissionais liberais, da comunidade em geral. Não foi possível precisar por
quantos números ainda circulou O Infantil, o 6º pode não ter sido o último número, mas se
parou de circular após esse número, isso não foi avisado aos leitores, ficando obscuros os
motivos de sua suspensão.
4.2.1 Parcerias na produção do jornal
A seção dos anunciantes de O Infantil revela algumas características tanto do jornal
quanto dos diferentes tipos de negócios que estão na pauta das atividades da nova classe
média que surge na região, e, que neste momento perde características rurais para tornar-se
semiurbana. Dos 54 estabelecimentos e profissionais liberais que anunciam no periódico ao
longo das edições estudadas, apenas quatro são divulgados sem o nome do responsável, o
dono do empreendimento aparece à frente e representando seu negócio. 17, ou seja, 31,48%,
não têm endereço em Belford Roxo, enquanto 68,62%, precisamente 37, estão estabelecidos
no distrito e concentram-se em sua maioria na região central, principalmente na Praça Getúlio
Vargas. Dentre os 37, 45,95%, ou 17 dos estabelecimentos, estão ligados à venda de bebidas e
comestíveis, são armazéns, açougues, bares e restaurantes. Três médicos possuem
consultórios em Belford Roxo, dois clínicos gerais e um clínico infantil. Há duas farmácias,
que depreendo estarem ligadas aos serviços dos médicos, como comum na localidade.
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242
Quadro 04 - Perfil dos Anunciantes de O Infantil. Estabelecidos em Belford Roxo. Frequência
de publicações. Anunciante/Atividade Responsável Nº 1 Nº 2 Nº 4 Nº 5 Nº 6
Novo Armazém São Jorge Arnaldo da Costa Lima X X X X X
Barraca Flor do Céu/ verduras Agostinho Ferreira X X
Café, Bar e Restaurante Irmão Costa Lima X X X X
Café, Bar e Restaurante São Jorge Gonçalves Gato X X X
Farmácia Santa Terezinha Não traz X X X X X
Construções, Reconstruções e Obras Moysés Negri X X
Vila Seabra/ terrenos, vende-se José Seabra X X X X X
Armazém Estrela do Oriente Augusto Daher X X
Açougue São Sebastião José Medeiros X X X X X
Dr. Lucas Labandera/ clínica geral Dr. Lucas Labandera X X X X X
Carvoaria Santa Fé J. Lima X
Armazém Império Domingos Silva e Irmão X X X X X
Vila Souza/ terrenos, vende-se Luiz Fernandes de Souza X X
Dr. Fernandes Filho/clínica infantil Dr. Fernandes Filho X X X X X
Armazém de Secos e Molhados,
moagem de Café Mauá
José França X X X
Armazém Flor da Solidão Carlos Neves X
Santos Neto/despachante
municipal/contador
Santos Neto X X X X X
A Fluminense/ fazendas, armarinho
e materiais escolares, entre outros.
Nassib El Chaer X X X X X
Padaria e Confeitaria Central Bernardino M. Correa X
Caldo de Cana, Moagem de Café
Gaúcho
Ernesto Pinheiro Barcelos X
Panificação Flor do Oriente Pinto & Cia. X X X X X
Café, bar, bilhares e restaurante
Gaúcho
Joaquim da Costa Lima
Junior
X X X X X
Armazém Barcellos José Jorge Primo X
Mercadinho Para Todos P. A. Quintanilha X
Bairro Sublime/ terrenos, venda Almerio Coelho da Rocha X X X X
Oficina de Bombeiro Mario Carvalho Bastos X X X
Quitanda São Sebastião João Pedro da Silva X
Carpintaria e depósito de materiais M. Duarte X X X X
Vila Dagmar / terrenos, vendas Não traz X X X X
Dr. Faria/ Clínica geral/ Dr. Faria X
Açougue Modelo Flavio Monteiro X
X
Cartório do 9º Distrito de Nova
Iguaçu
Tab. Carlos Fraga
Sub pretor Antonio Santos
Neto
X X X X
Alfaiataria Tupy Miralma Amirato X
Sapataria e Tamancaria Aliança Adelino Marques
Gonçalves
X
Despensa Brasileira/ líquidos e
comestíveis finos
José Marques X
Café, bar e bilhares Ponto Chic Fadu Daher X
X
Farmácia Medeiros J. Xavier Medeiros X
Fonte: Coleção Aurélia Braga. Acervo de O Infantil. CENPRE.
Pelos anunciantes do periódico, pode-se observar que quatro negócios ocupam-se com
vendas de terrenos, são os loteamentos de terras sinalizadores do processo de urbanização e
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243
transformação que se intensificara ao final dessa década, dando início à formação de vários
bairros, como o Sublime, Vila Seabra, Vila Dagmar e Vila Souza.
A paisagem de Belford Roxo se modificara desde que os Braga chegaram no lugarejo,
que em 1935 ainda apostava nas atividades citricultoras, no plantio da laranja. Agora, ao final
da década:
A grande máquina loteadora possuiu como motores alguns fatores díspares: de um
lado o tradicional raquitismo da agricultura baixadense não sustentou por muito
tempo o título de maior produtor mundial de cítricos, e afundou os fazendeiros em
um mar de dívidas que os levaram a enxergarem na partilha e na venda das frações
de terra em forma de lotes a solução mais vantajosa entre as disponíveis. De outro
lado, a necessidade proletária de obter moradia a baixo custo e a ausência de uma
política oficial de assentamento de trabalhadores, determinou que a autoconstrução
se estabelecesse como regra. (MONTEIRO, 2005, p. 492).
Por isso, há negócios voltados para construções e reformas, para venda de materiais
necessários a obras desse tipo, e profissionais liberais ou estabelecidos, como bombeiro,
carpinteiro, construtor. O perfil é variado, mas é possível nele reconhecer o que está em voga
no ano de 1939 em Belford Roxo, e também pode-se perceber o que não está. Há apenas uma
casa comercial que se define como também vendedora de ―artigos escolares‖, A Fluminense,
de Nassib El Chaer, mas que comercializa vários outros produtos da indústria, como
―fazendas, armarinho, roupas feitas, chapéos, guarda-chuvas, calçados, brinquedos, malas,
etc.‖ A Fluminense aparece como único estabelecimento que comercializa produtos para a
criança. Nenhum negócio volta-se para divulgação da cultura, do tipo comércio de livros em
Belford Roxo. Como contado pelos narradores, o jornaleiro era o único comerciante que, por
encomenda, provia algumas revistas e publicações que ele próprio trazia da capital, mas não
anunciava no jornal. Estimo o cartório como recentemente instalado, tendo em vista que
somente em 1938 o lugar passou a ser um distrito separado do município-sede. Provavelmente
esse fator também teve impacto na criação de outros negócios no recém-criado 9º distrito.
Os anunciantes estabelecidos em outros distritos e na capital, surgem mais nas últimas
edições da coleção do CENPRE.
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244
Quadro 05 - Perfil dos Anunciantes de O Infantil. Estabelecidos fora Belford Roxo.
Frequência de publicações. Anunciante/Atividade Responsável Nº 1 Nº 2 N° 4 Nº 5 Nº 6
Café Rialto/ São João de Merity A. A. Souza X X
Fábrica de cervejas Nova
Aliança em São João de Merity
Casemiro Araujo & Cia. X
Tamancaria e sapataria Santo
Antonio em São João de Merity
Henrique Guedes
Martins
X
Casa Nohra/ fazendas e roupas,
em São João de Merity
José A. Nohra X
Escritório Jurídico e Comercial/
São João de Merity
Eliezer Rosa X
Pontos de História do Brasil/
para o Exame de Admissão/
livro ou apostila.
Prof. Eliasar Rosa
Do E. Fluminense e do
Ginásio Republicano
X
Instituto de Puericultura São
Jorge/ Nilópolis
Não traz X
Madeiras para todos os fins/ Av.
Rio Branco. Rio de Janeiro
José Furtado X
Materiais para construção novos
e usados/ Rua Frei Caneca. Rio
de Janeiro
A. Oliveira Branco X
Armazém Leal/ Nilópolis Antonio Ferreira X
Móveis escolares para crianças.
Rua Frei Caneca no D. F.
F. Crivanos X
Armazém Haddad em Xerém –
Rio D‘Ouro
José Haddad X
Calçados Cara Elza/ Rua Frei
Caneca no Distrito Federal
Não traz X
Café Luso. Em São João de
Merity
Viúva Iracema Freire
Chaves
X
Trapiche de Nilópolis/
Depositário de Cervejas. Em
Nilópolis
Delfim Silva X
José Kushnir /Aceita
encomendas do seu ramo de
negócios. Do Meyer, mas
diariamente na Estação de B.
Roxo
José Kushnir X X X X
Nossa Casa/ Vidraceiros/ São
João de Merity
Reis Rosa e Cia. X
Fonte: Coleção Aurélia Braga. Acervo de O Infantil. CENPRE.
O segundo empreendimento que menciona a escola, do Sr. Crivanos, vende ―móveis
escolares para crianças‖, localiza-se bem distante de Belford Roxo, na Rua Frei Caneca, no
centro do Rio de Janeiro. Na mesma rua, outros dois anunciantes demonstram o percurso de
divulgação do jornal para obtenção de financiadores no Distrito Federal. Outros lugares da
Baixada, como São João de Meriti, Nilópolis e Xerém também fazem parte desse percurso.
Não há anunciantes entre os comerciantes do município-sede de Nova Iguaçu.
O único anúncio relativo à divulgação de livro – este destinado à preparação para o
Page 247
245
exame de admissão – é o do professor Eliasar Rosa235
, que depreendo ser o advogado, e mais
tarde juiz da infância e da juventude, mencionado pela narradora Fernanda Bicchieri como
pretendente de Aurélia. Eliasar não faz parte da comunidade local, como seu irmão Eliezer
Rosa que também anuncia seu escritório de advocacia em São João de Meriti. Nota-se que a
publicação do livro pelo professor em O Infantil não possui objetivos comerciais, pois nem
menciona como e onde adquiri-lo.
Apenas duas mulheres figuram como responsáveis por negócios, dentre os
anunciantes, uma delas devidamente denominada ―viúva‖. O jornal deixa claro, desta forma,
os motivos pelos quais Iracema Freire Chaves assume as funções à frente do Café Luso, que
se situa em São João de Meriti. Em Belford Roxo, Miralma Amirato, imigrante, é a
responsável pela Alfaiataria Tupy.
Figura 38 - Anunciantes do nº 6 de O Infantil. Constantes na página 6236.
Fonte: Coleção Aurélia Braga. Acervo de O Infantil.
235
Eliasar Rosa – na home page do município de São Fidelis, RJ, figura como marco do município o seu
nascimento, no dia 04 de junho do ano de 1914, ―nasce o grande jurisconsulto Dr. Eliasar Rosa, na localidade
de Tabua, 3º distrito [...]. Além de vários cargos de importância, foi conselheiro da Ordem dos Advogados do
Estado da Guanabara‖. Disponível em: http://www.saofidelisrj.com.br/historia/Maio. Acessado em 26-11-2015.
Eliasar aparece em matéria publicada no Correio da Lavoura, em 14/10/ 1937, nas comemorações cívicas do
Dia da Criança no distrito de Belford Roxo, nas quais Aurélia e dois alunos participam. Na solenidade a
professora discursa logo após o jurista.
236
Outros aparecem na página 5, em meio as demais publicações.
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246
O número de anunciantes do jornal de nº 6, de janeiro de 1940, supera os outros em
69,70%, são 33, quando os demais chegam a apenas 23 no máximo, evidenciando que nesse
último número da coleção do CENPRE o periódico estava mais prestigiado e, provavelmente,
com maior receita, se pode supor mesmo não havendo nada no acervo que sinalize os valores
pagos pelos financiadores. Mas por manter o mesmo número de páginas e colaboradores, que
não eram remunerados, estima-se uma lucratividade maior. Além disto, ganha novos
anunciantes no Rio de Janeiro e em outros distritos de Nova Iguaçu, deixando evidenciar que
expandia seu público.
O outro financiador de O Infantil é a prefeitura de Nova Iguaçu. Na coleção de
documentos, pertencente aos acervos do CENPRE, não há contratos ou recibos, ou livro caixa
do periódico, nada que indique qual o montante dos subsídios pagos pela prefeitura pelas
publicações. Apenas correspondências com o teor do que deveria ser publicado. Dentre esses
documentos, é possível depreender que a comunicação era informal, e que o Sr. Álvaro Lisboa
Braga, pai de Aurélia, era quem fazia a parte comercial do jornal. Provavelmente também era
responsável por vender espaços de propaganda. Em observação, no canto esquerdo do
memorando encaminhado à Aurélia vê-se uma anotação da remetente, que menciona a
―Caixa‖. A funcionária pode estar se referindo ao pagamento pelos serviços do jornal, ou à
Caixa Escolar e alguma questão referente a esta. Entretanto, as aspas permitem pensar na
primeira hipótese.
Figura 39 - Memorando da Inspetoria de Instrução de Nova
Iguaçu, sobre O Infantil.
Comunicação da ―Inspectoria da Instrucção‖, dirigida pelo Dr. José Manhães.
Fonte: Coleção Aurélia Braga. CENPRE.
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247
A informalidade da correspondência evidencia as relações entre o órgão de educação,
os funcionários do órgão, e a professora, reafirmando a rapidez com que Aurélia conquistou
vários espaços na cena pública do principal e maior município da Baixada Fluminense. Ao
mesmo tempo, é possível perceber que ela carreava para o 9º distrito um importante lugar
nesse cenário, até então somente ocupado por jornal do município-sede. O capital social
conquistado pela professora e seu periódico repercutia nesses negócios locais que por esse
período prosperavam, porque:
No hay experiencia de la posición ocupada en el macrocosmos social que no esté
determinada o, al menos no sea modificada, por el efecto directamente
experimentado de las interacciones sociales dentro de esos microcosmos sociales:
officina, taller, pequeña empresa, vecindario, y también familia extensa.
(BOURDIEU, 1999, p. 10)
Os pequenos comerciantes e profissionais liberais se fortaleciam como classe média
local, ao mesmo tempo que cresciam em prestígio e resultados as iniciativas de Aurélia. É
possível perceber, assim, que essas experiências vividas no microcosmo das famílias, das
pequenas empresas, nas escolas e vizinhanças repercutiam e ampliavam o capital social do
grupo. A obstinação da professora na promoção de suas ações para edição de O Infantil não
foi em vão.
4.2.2 Formando almas: traços da Primeira República
É na escola primária que a nossa alma se forma
237
Slogan do rodapé da última página de O Infantil nº 2, edição de
setembro/1939
―Sem instrução não há civilização‖/ ―A independência do Brasil é o nosso maior
padrão de glória‖/ ‖Nunca esquecemos na vida os conselhos dos nossos primeiros mestres‖.
E, logo após, a conclusão de que a escola primária era o lugar onde se forjaria a alma. Nos
rodapés de todas as páginas eram colocadas frases como estas, que parecem reflexos da
Primeira República em O Infantil.
Buscando pistas onde poderia encontrar as ideias que figuram nos rodapés do
237
Slogan do rodapé da última página de O Infantil nº 2, edição de setembro/1939.
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248
periódico belforroxense, encontrei a expressão usada pelo cientista político e historiador José
Murilo de Carvalho, tratada em A formação das almas: o imaginário da República no Brasil
(CARVALHO, 1990), da passagem do Império para a República, do período que compreende
as duas décadas finais do XIX e as primeiras décadas do XX. Minha intenção não seria
referir-me à Primeira República, tendo em vista que a partir de 1930 inicia-se a Segunda, não
fosse a observação de que vários textos dos alunos de Aurélia faziam referências tanto ao ato
fundador de 1889, como aos símbolos e mitos que foram usados pelos intelectuais do novo
regime, com fins de legitimação deste, nas primeiras décadas após a proclamação.
As investigações e reflexões de Carvalho repousam no fato de ter sido a proclamação
da República brasileira um conluio das elites, sem qualquer participação popular, mas esse
seu trabalho em especial procura descobrir com quais ―armas‖ o novo regime buscaria sua
legitimação perante a maioria da população e quais seriam os resultados. Ao autor interessa
nesse livro discutir principalmente o extravasamento dessas visões de república para além das
elites educadas, ou como tentaram operar esse extravasamento. Tendo em vista que o discurso
só poderia penetrar por meio de uma educação formal não acessível à população, isso teria
que ser feito por meio de ―sinais universais de mais fácil leitura, como as imagens, as
alegorias, os símbolos, os mitos‖ (CARVALHO, 1990, p. 10). Ou seja, penetrariam pelo
imaginário, pois essa elaboração pelas massas seria sua forma de legitimar-se como regime. O
exemplo clássico dessa estratégia seria encontrado na Revolução Francesa. Citando Mirabeau,
o autor considera que ―não basta mostrar a verdade, é necessário fazer com que o povo a ame,
é necessário apoderar-se da imaginação do povo‖ (CARVALHO, 1990, p.11). Ainda
acrescenta que para a Revolução Francesa a educação pública tinha o propósito de ―formar
almas‖. Inclusive, tendo exatamente como nome Bureau de l‟Esprit a seção de propaganda do
Ministério do Interior francês. ―Isto porque, ‗os traços de heroísmo, de virtudes cívicas,
oferecidos aos olhos do povo, eletrificam suas almas e fazem surgir as paixões da glória, da
devoção à felicidade de seu país‘‖238
.
Olhar o periódico editado por Aurélia como mais um instrumento de afirmação do
imaginário republicano, incluindo a Segunda República, observando as mensagens veiculadas
não só sobre o seu ato fundador, sua proclamação, mas todos os outros símbolos criados em
função desse objetivo de afirmá-la, como a bandeira e o hino nacional, implica também
considerar os efeitos da Revolução de 1930 e da decretação do Estado Novo em 1937, com
Vargas na liderança, que, como um novo regime, por essa ótica também careceria de
238
CARVALHO (1990, p. 11), com base no relatório reproduzido em Nineteenth-century theories of art.
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249
legitimação e estava passível, portanto, da criação de símbolos, imagens e mitificações.
O uso da voz infantil para chegar ao coração adulto na homenagem ao Presidente
Vargas, mostrada primeiro no Correio da Manhã e transcrita em O Infantil nº 5, de dezembro,
parece ser uma estratégia adotada para fins de aproximação com o político. O periódico
editado por Aurélia pode também ser retratado por este prisma, tendo em vista que pelas
escritas infantis e juvenis o jornal conseguia apelar à população para o mesmo fim e criar no
imaginário local uma aura de participação política do pequeno distrito nos destinos da pátria.
Impressionam os esforços de aproximação do periódico àqueles que decidiam esses destinos,
tanto nos textos veiculados como no envio e recebimento de correspondências a esses
protagonistas do governo.
Ao observar os temas escolhidos para as escritas infantis e juvenis, tanto os que foram
publicados quanto os que foram guardados como manuscritos por Aurélia, percebe-se que
esses textos vêm ao encontro do que Carvalho refere-se, muitos procuram exaltar justamente
os símbolos que foram buscados para a república, ou seja, primeiramente, os heróis
(CARVALHO, 1990, p.56). O autor ainda afirma que em busca de símbolos e heróis que
fossem de maior identificação com o povo, acabaram por encontrar Tiradentes e as ―tradições
culturais mais profundas‖:
Só quando se voltou para tradições culturais mais profundas, às vezes alheias a sua
imagem, é que conseguiu algum êxito no esforço de se popularizar. Foi quando
apelou à Independência, e à religião; no caso de Tiradentes; aos símbolos
monárquicos, no caso da bandeira; à tradição cívica, no caso do hino. (CARVALHO,
1990, p. 128)
Alguns desses temas surgem mais do que uma, duas ou três vezes: ―O Brasil‖;
―Bandeira Nacional‖; ―O pão‖; ―O trigo‖; ―Sete de setembro‖; ―Grito do Ipiranga‖; ―O
soldado‖; ―D. Pedro I‖; ―Dia da Pátria‖; ―O príncipe‖; ―Rios do Brasil‖; ―O café‖; ―A cana‖;
―10 de novembro‖; ―15 de novembro‖; ―Indígenas do Brasil‖; ―Vultos nacionais‖; ―Os
primeiros habitantes da terra do Ibirapitanga‖; ―Capitão Feliz‖ – narrativa sobre o
Descobrimento do Brasil dedicada a Getúlio Vargas –; ―A Pátria‖; ―A Guerra‖, entre outros.
Pelos títulos das matérias pode-se notar que o Brasil retratado pelas mãos dos alunos
de Aurélia é uma grande nação, uma das maiores do globo, e isto não estava apenas vinculado
aos acontecimentos pós revolucionários de 1930, mas desde seus primórdios e,
principalmente, desde os símbolos criados a partir da proclamação da República.
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250
Figura 40 - O Infantil, nº 4. ―15 de
novembro‖. De Joaquim Vicente (irmão
do narrador Walter).
Fonte: Fundo Auréllia Braga. CENPRE.
―A busca de uma identidade coletiva para o país, de uma base para a construção da
nação, seria a tarefa que iria perseguir a geração intelectual da Primeira República (1889-
1930)‖ (CARVALHO, 1990, p. 32). Tendo em vista que havia um desencanto com o regime,
expresso nas palavras de Alberto Torres, proferidas na segunda década do século XX: ―Este
Page 253
251
Estado não é uma nacionalidade; este país não é uma sociedade; esta gente não é um povo.
Nossos homens não são cidadãos‖239
. Desta forma, os símbolos patrióticos ganharam ênfase
nas páginas de O Infantil, cumprindo o papel de divulgador da nacionalidade, partícipe da
formação de uma identidade coletiva. O hino e a bandeira, símbolos nacionais mais evidentes,
aparecem enfatizados nas publicações do jornal escolar. Tais elementos, entretanto, foram
decorrentes das clivagens que ocorreram entre as correntes ideológicas que disputavam a
organização do pensamento republicano, sendo a bandeira fruto da tradição, associada ao
jacobinismo com o positivismo, enquanto o hino baseava-se apenas na tradição240
.
O Estado Novo, instaurado em fins de 1937, também iria servir-se da criação de
símbolos para legitimação deste regime político, por uma imprensa a seu serviço, e faria isto
de forma muito bem organizada, pela criação do Departamento de Imprensa e Propaganda
(DIP). Dirigido por Lourival Fontes e subordinado diretamente ao presidente da República, o
departamento tinha órgãos espalhados por todo país, os Deips (VELOSO, 1982). O DIP se
constituiria num dos mecanismos fundamentais na difusão da imagem do Estado Novo a
partir de dezembro de 1939, quando O Infantil já estava em sua edição número cinco. Talvez
por isso, a sensação de que o jornal criado e editado pela professora buscava maior inspiração
em ideias republicanas que estadonovistas241
. A própria Aurélia, nascida em 1909, esteve mais
exposta ao ideário pós-republicano.
4.2.3 Pelas escritas: disseminando ideias
Em novembro de 1939 O Infantil publicava o texto do menino Manoel Melo, do 2º
ano primário da Prof. Paris, então com 9 anos de idade. Relatava o acontecimento de 10 de
novembro de 1937, de dois anos antes, logo na primeira página, quando Getúlio Vargas impõe
o Estado Novo, substituindo a constituição de 1934 por outra que instaura o regime ditatorial
239
CARVALHO (1990, p. 33, citando Alberto Torres, A organização nacional).
240
CARVALHO (1990), analisa esses símbolos patrióticos em suas origens, sob a ótica das ideologias
formadoras concorrentes no período inicial da República.
241
Aurélia iria colaborar na divulgação dos ideais do Estado Novo em outras empreitadas, de caráter cultural,
como a introdução do Canto Orfeônico na Prof. Paris, e assistencial, como a criação Sociedade de Proteção à
Infância e à Maternidade, com seu posto de puericultura, no decorrer da década de 1940, como aparece
anteriormente nesta tese.
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252
no Brasil. A narrativa traz elementos que traduzem não só como percebeu aquele momento.
Em sua produção infantil, muito provavelmente orientada por adulto, encontro informações
sobre as brincadeiras de ―soldados‖ que faziam na escola imitando as práticas militares; conta
também as dificuldades de comunicação de quem morava afastado dos centros urbanos mais
desenvolvidos; e evidencia a falta de recursos e de meios de comunicação do lugarejo, sem
deixar de mostrar o orgulho de ser brasileiro, mas, principalmente, a expectativa de
participação de um Brasil Novo com Getúlio Vargas.
Figura 41 - Manuscrito de Manoel Melo,―10 de novembro de 1937‖.
Fonte: Coleção Aurélia Braga. CENPRE
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253
Manoel nomeia a amiguinha Léa Barcelos, mãe da narradora Eliane Barcelos, como
porta-voz das notícias que a fizeram retornar de sua escola, E. E. Paulo de Frontin, na capital
federal, para sua casa ao lado da escola de Aurélia. Mas cita também Geovani Trévia, filho do
então chefe integralista em Belford Roxo, Francisco Trévia. É Geovani quem reúne e lidera os
colegas para formação de três fileiras para marcharem com os chapéus de soldados feitos de
jornais, e varas que serviam de bastões, que eles mesmos improvisaram. Os irmãos Trévia não
aparecem em nenhum outro momento no periódico escolar, o que permite perceber que, a esta
altura, em 1939, eles não mais estavam em Belford Roxo. O próprio chefe nacional do
integralismo, Plínio Salgado, estava exilado em Portugal.
Em 11 de maio de 1938 a AIB tentara uma demonstração de forças no país, incitando
seus militantes a se reunirem em levante, pois o ditador Vargas havia extinguido todos os
partidos, relegando o movimento integralista à clandestinidade. Gustavo Felipe Miranda242
valeu-se das investigações de Edgard Carone para defender que o que se viu após maio de
1938 foi ―a repressão contra uns e a representação da farsa contra os maiorais‖, dentre esses
Plínio Salgado. E diz que Carone leva em consideração que entre as prisões e condenações
realizadas não constavam os nomes de figuras como Gustavo Barroso, Miguel Reale,
Raymundo Padilha, entre outros. Ainda afirma que segundo a interpretação do outro autor,
Vargas demorou a agir contra Salgado, e foi ―preciso haver a existência de pequenos boatos,
de que os liberais estariam se unindo novamente aos integralistas‖, para que o ditador tomasse
uma atitude. E quando a tomou deu a Salgado todas as garantias, inclusive, uma mesada, pelo
tempo que permanecesse a serviço do governo em Portugal. Sobre este ponto Carone é
enfático: ―os manifestos e atitudes dos chefes integralistas parecem continuar a ser
independentes, mas, de agora em diante Plínio só lança Manifestos e toma atitudes depois de
consultar Getúlio Vargas‖. Miranda acredita que por estar muito bem documentada a linha de
interpretação de Carone é convincente, mas acha certa dose de exagero o fato do autor
acreditar que Salgado estivesse totalmente submisso a Vargas, principalmente entre os anos
1938 e 1940.
As interpretações desses dois estudiosos me servem para a percepção do cenário no
qual O Infantil foi publicado. Por esses estudos, é possível perceber que após as perseguições
aos militantes dos quadros mais abaixo na hierarquia da AIB, empreendidas pela polícia
política do Estado Novo, houve uma certa conformação e conivência com o novo regime, por
parte do seu principal dirigente:
242
MIRANDA (2009, p. 97) com base em CARONE, Edgard. O Estado Novo (1937-1945). Rio de Janeiro – São
Paulo: Difel, 1977, p. 208.
Page 256
254
A continuidade dessa posição política se atesta na carta destinada a Raimundo
Padilha, sublinhe-se bem no contexto de fundação da Cruzada Juvenil da Boa
Imprensa. Seu conteúdo versa sobre algumas resoluções tiradas após a visita do Gal.
Francisco José Pinto (Chefe do Gabinete Militar de Vargas) a Lisboa (MIRANDA,
2009, p. 99).
A análise recai no fato de terem sido criados pelo menos dois tipos de associações que
foram importantes na divulgação e manutenção das ideias integralistas nesse período do
Estado Novo em que se manteve clandestinamente, uma delas destinada a uma ação muito
presente e atuante nos cinco anos em que o integralismo se constituiu como doutrina e como
partido de massas, entre 1932 e 1937, a imprensa. A Cruzada Juvenil da Boa Imprensa (CJBI)
foi criada por setores integralistas, com a finalidade de dar continuidade à divulgação de suas
ideias de forma não declarada. A outra organização foi o Apollo Sport Club. A criação dessas
organizações aconteceu em consequência ao quadro político instalado a partir da tentativa
frustrada de golpe, em maio de 1938. ―Os impactos na doutrina como um todo foram
inestimáveis, a desarticulação, em um prazo relativamente curto, atingiu a grande maioria dos
núcleos espalhados pelo território nacional‖ (MIRANDA, 2009, p.91).
A CJBI foi uma entidade que buscou reorganizar, e conseguiu, parte dos integralistas
da capital. Não foi uma organização, como outras, nacionalista desinteressada da atuação
política. Objetivava também promover eventos que reunissem os integralistas, sem, contudo,
reorganizar o integralismo, pois este estava ligado a Plínio Salgado e ninguém além de seu
grande porta-voz conseguiria esta façanha (MIRANDA, 2009). Retornando à questão da
participação dos integralistas no cenário político do Rio de Janeiro durante o Estado Novo,
Miranda, baseado no relatório da polícia política, destaca as ações da CJBI como um bastião
das ideias integralistas naquele momento. Conclui o autor que sua criação não foi por ordem
de Plínio Salgado, que nesse momento, apesar do poder que ainda possuía, não detinha o
controle das aspirações de seus antigos militantes, podendo estes se organizarem à revelia do
chefe.
A imprensa havia sido um importantíssimo instrumento nas mãos dos integralistas.
Segundo Paschoaleto, a Ação Integralista Brasileira foi o primeiro movimento/partido que
utilizou a imprensa de forma sistemática e radical. Até então, esses movimentos e partidos
mantinham jornais mais informativos que doutrinários. ―Assim, no que se refere à propaganda
política no Brasil, podemos dizer que foram os camisas-verdes os primeiros a pô-la em
prática‖ (PASCHOALETO, 2011, p. 97). Ao longo dos cinco anos de atuação da AIB, a
imprensa integralista contou, ao todo, com 138 jornais e revistas publicados em 19 estados
brasileiros. Havia três tipos de circulação: local, regional e nacional. A grande maioria era
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255
composta por exemplares do primeiro tipo, geralmente ligados aos núcleos integralistas locais
e tinham periodicidade semanal ou quinzenal (RAMOS, 2013).
De modo mais amplo, a palavra impressa, como o livro e o jornal, era a forma de
veiculação das ideias integralistas. De acordo com Cavalari (1999), os livros243
divulgavam as
ideias produzidas pelos ideólogos e os periódicos as popularizavam:
A arregimentação de adeptos, a unificação e a consolidação do Movimento foram
conseguidas graças a um conjunto de estratégias adotadas pela AIB que se
consubstanciava em uma rede constituída pelo impresso, pelas sessões doutrinárias,
pelos símbolos e rituais integralistas e pelo rádio. Nessa rede que envolvia e cercava
totalmente o militante, esses elementos constituintes trabalhavam perfeitamente
integrados de modo a conseguir que ―um integralista do Amazonas pensasse
exatamente como um integralista de Goiás‖ (CAVALARI, 1999, p. 212).
As estratégias de disseminação do ideário integralista baseavam-se tanto na criação de
núcleos, como nas ações promovidas por estes, dentre elas o principal veículo de
comunicação de massa, os periódicos. Cavalari, nesse seu trabalho, também chama a atenção
para o fato de que havia nesses jornais poucas notícias locais, e que em geral estas apareciam
numa coluna denominada ―Notas Sociais‖. Subliminarmente ou de forma direta, as matérias
veiculavam o ponto de vista dos integralistas para questões nacionais. Havia, portanto, o
chamado sentido único nessas publicações, tanto no que tange aos conteúdos, quanto à forma,
pois obedeciam, mais ou menos, as mesmas regras de diagramação. Para a autora, a chamada
―revolução do espírito‖, como era denominada por Plínio Salgado a transformação que
almejava para a sociedade, passava-se no seio do movimento pela prática principalmente de
três elementos. Primeiramente pela educação de todas as camadas sociais, incluindo mulheres
e crianças; em seguida pela rede de periódicos e livros; e pelas atividades doutrinárias e uso
do rádio.
Portanto, pode-se considerar a utilização de jornais e revistas como uma das tarefas
complementares à educação no que tange aos interesses de ―transformação interior‖ de
pessoas e grupos sociais, segundo as linhas traçadas pelos ideólogos do movimento. Esses
periódicos circularam até 1937, alguns de caráter nacional até 1938. Daí em diante todo o
aparato foi desmontado (MIRANDA, 2009), permitindo supor o impacto que isto pode ter
causado àqueles que se empenhavam para publicá-los. Suponho, também, que poderiam haver
movimentos de criação desses periódicos em andamento.
Isto remete pensar que a publicação de O Infantil pode ter sido acalentada por Aurélia
243
Os núcleos possuíam bibliotecas com esses livros disponíveis aos frequentadores, conforme trago no capítulo
II. Os periódicos integralistas também costumavam publicar listas desses livros.
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256
e seu grupo em Belford Roxo alguns anos antes. Uma matéria escrita por Laudelino Gato e
publicada no segundo número, sob o título de ―Cronica Esportiva‖, contava como foi
introduzido o futebol na Prof. Paris, e sobre a estratégia da professora Aurélia em dividir os
alunos em dois grupos aos quais denominava ―Talento‖ e ―Aplicação‖244
. Referia-se o
cronista juvenil a acontecimentos do ano de 1936 com muita riqueza de detalhes, explicando
as várias modalidades de competição das quais os alunos disputavam. Observo as outras
matérias e percebo que em sua maioria poderiam ter sido escritas em tempos anteriores. Penso
que é possível que entre a concepção e a ação tenha havido um hiato e por isto O Infantil
começou a ser publicado apenas em 1939, não sendo possível afirmar, no entanto. Isto não
quer dizer que o jornal tivesse sido pensado para ser um órgão de imprensa do núcleo
integralista em Belford Roxo, ou que os que escreviam para o jornal estavam ligados ao
movimento, mas a ideia de utilizar o periódico como estratégia política pode ter sido inspirada
nas práticas integralistas.
O movimento integralista, portanto, obteve sucesso em várias de suas propostas,
inclusive no que tange à ―revolução do espírito‖, e a isto a educação, conjuntamente aos livros
e periódicos e a doutrinação estiveram à serviço. Considero possível que aqueles que
participaram desse processo ―revolucionário do espírito‖ continuassem a se pautar por muitas
dessas ideias no decorrer da ditadura Vargas. Logicamente que de forma não declarada devido
à repressão.
4.2.4 Editoriais e suas pautas
Os três primeiros editoriais encontrados, assinados pelo jovem diretor do periódico
em questão, abordam assuntos esperados, de praxe nesse tipo de publicação, como o anúncio
dos seus objetivos, as repercussões do seu lançamento e o acontecimento de ter se tornado
órgão oficial da imprensa nos assuntos da educação, recebendo algum subsídio da prefeitura
de Nova Iguaçu para as publicações. Nas suas edições de nº 5 e 6, entretanto, dois temas
fogem à pauta trivial, um fato local e outro global, e deixam perceber como esses assuntos são
olhados pela rede social de Aurélia.
244
Até 1936 a escola ainda era denominada Arruda Negreiros, no livro derivado da tese de Amália Dias (2014),
sobre o processo de escolarização do município-sede, Nova Iguaçu, nesse período encontra-se à página 358
uma foto da escola e de duas bandeiras, onde se lê uma das palavras, Talento e Aplicação. Se a data realmente
corresponde ao ano de 1933, como consta no acervo do Instituto de Pesquisas Históricas e Análises Sociais da
Baixada Fluminense (IPHAB), essas palavras já estavam presentes no trabalho da escola antes de Aurélia
iniciar-se como sua professora em 1935.
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Tabela 05 - Editorais de O Infantil. Ed. Título Assunto
1º Nossa apresentação Apresenta o objetivo de servir de órgão da educação primária
do município.
2º Nosso primeiro número Expõe sobre a boa repercussão do jornal no município.
4º Modificação Explica que o jornal passa a ser o órgão oficial da educação do
município.
5º Infortunio Relata o assassinato da professora Felismina Vieira do Espírito
Santo, como crime passional, dentro da E.M. Prof. Paris,
diante dos seus alunos, em novembro de 1939.
6º Confraternização dos povos Relaciona o ano novo e a guerra eclodida, nesse ano de 1939,
na Europa.
Fonte: Coleção Aurélia Braga. Acervo de O Infantil. CENPRE.
A tragédia do assassinato da professora Felismina não foi lembrada por nenhum dos
narradores, considero-a como uma memória apagada. Belford Roxo foi palco de alguns
crimes passionais que marcaram sua história, porém, a morte da professora diante das crianças
da Prof. Paris, onde lecionava, não foi mencionada nas entrevistas e, ao contrário, causou
espanto aos narradores quando mencionada. O editorial trata como fatalidade o fato de
Leovigildo de Castro Rocha ter entrado na escola e desferido quatro tiros certeiros que
atingiram a professora, matando-a na hora. Descreve que o autor desses tiros ainda tentou
suicidar-se, atirando contra o próprio peito. Percebe-se no editorial uma certa compaixão pela
agonia do assassino que, afinal, não morreu245
.
245
A década de 1930, em muitas cidades do Brasil, representa um período de surgimento de uma sociedade
urbano-industrial e o consequente enfraquecimento dos laços familiares, pois que propiciaria às mulheres a
descoberta e a possibilidade de novas aspirações e escolhas, o que viria intensificar os conflitos entre os sexos
(GOMES; IOTTI, 2012). Ainda lembram, esses autores, as afirmações de Boris Fausto, para quem a
criminalidade expressa tanto uma relação individual como uma relação social indicativa de padrões de
comportamento, de representações e valores sociais. A maneira como o editorial trata o assassinato da
professora Felismina pode ser indicativa de como a comunidade via as mulheres e sua participação na nova
ordem social nesse momento em Belford Roxo e na Baixada Fluminense. ―Isso, de certa forma, significa dizer
que um homem mata a sua mulher quando ‗considera que não há mais como controlar a mulher e seu todo,
tanto o corpo como seus desejos, pensamentos e sentimentos‘. [...]‖ (GOMES; IOTTI, 2012, p.269). Nas
primeiras décadas do século XX houve um aumento do número de crimes passionais, principalmente nas
cidades do Rio de Janeiro e em São Paulo, e os jornais publicavam isto com grande interesse. O que de certa
forma influenciou a filmografia do período no Brasil, que em seus primórdios já retratava esse tipo de
assassinato. Mas outros meios de comunicação começaram a se preocupar com a situação, assim, a ―Revista
Feminina e outras publicações da época contribuíram para o surgimento, no Brasil, de uma campanha ―para
acabar com a tolerância aos crimes da paixão‖ (GOMES; IOTTI, 2012, p. 272). A campanha surge em 1925,
liderada por promotores públicos, como Roberto Lyra, Carlos Sussekind de Mendonça, Caetano Pinto de
Miranda Montenegro e Lourenço de Mattos Borges e organizada pelo Conselho Brasileiro de Higiene Social
(CBHS). A campanha alcança sua vitória mais significativa em 1940, com o novo Código Penal.
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258
Figura 42 - O Infantil nº 5 – Editorial Infortunio – Assassinato da Profa. Felismina.
Fonte: Coleção Aurélia Braga. Acervo de O Infantil. CENPRE.
A vida da professora Felismina foi subtraída em um momento de transição de
configurações na sociedade. Assim:
As vidas das professoras, como de qualquer pessoa, nunca coincidem
completamente com uma época, e sempre se defrontam com sucessivas mudanças,
com configurações que emergem e submergem no decorrer de várias décadas. Não
obstante, é interessante ressaltar aqueles aspectos das vidas das mulheres que
refletem – e ajudaram a formar – os contornos das tensões nas relações que lhes
coube viver. (ROCKWELL, 2008, p. 320, tradução nossa).
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259
A história da colega de trabalho de Aurélia na E.M. Professor Paris reflete o
enfrentamento dessa questão que estava em vigor na sociedade, e a forma como O Infantil
primeiramente aborda seu assassinato segue o pensamento vigente até então, ou seja, encara
como um ―infortúnio‖. Embora relembrando a conduta moral acima de suspeitas da
professora, de uma certa maneira o editorial evidencia um compadecimento pelo assassino
que tenta suicidar-se. Como era comum nesses casos descritos nos trabalhos dos
pesquisadores citados, o criminoso, após o homicídio, atenta contra a própria vida, o que
também reforça sua característica de crime passional.
Contrastando com esse texto do editorial, na próxima edição do periódico, é publicada
a matéria do aluno Marinho Ramos de Farias.
Figura 43 - Ed. nº 6 de O Infantil. Texto do aluno Marinho sobre a morte da
Professora Felismina.
Fonte: Coleção Aurélia Braga. Acervo de O Infantil. CENPRE.
O tom que o menino emprega ao falar do algoz da professora é outro. Em um pequeno
parágrafo ele clama por justiça e que o criminoso pague pelo seu crime. A ―gangorra‖
editorial de O Infantil parece refletir não só os aspectos pertinentes ao caso, que, após os 48
dias decorridos como menciona o menino, ganha nuances diferentes, reflete também o
momento em que novos valores eram introduzidos na sociedade, desnaturalizando antigas
concepções. A vida da professora Felismina, afinal, não foi um infortúnio, como conclui o
editorial, mas uma ausência muito sentida pelos alunos, como traduz o texto publicado a partir
do manuscrito de Marinho, uma perda que exige reparação.
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260
Uma análise do período, mostra que a sociedade brasileira atribui à família um papel
importante na nova ordem nacional. Ou seja, nessa década de transição, quando uma nova
elite assume o poder, com Vargas, há uma preocupação maior com os crimes passionais, pois,
―se a família fosse ser o pilar da nova sociedade burguesa, as relações entre marido-mulher
deveriam se ‗modernizar‘, adquirindo ao menos uma aparência de igualdade e reciprocidade‖
(BESSE, 1989 apud GOMES; IOTTI, 2012, p. 272). Assim, os textos infanto-juvenis do
periódico editado por Aurélia também transitam entre ideias há muito consolidadas no grupo
local e valores em transformação.
Possivelmente o editorial sobre a confraternização entre os povos e a guerra, que foi
publicado no último número da coleção reunida pelo CENPRE, não assumiria posição
contraria à guerra se acaso o Brasil, pela liderança de Vargas, já tivesse se decidido a
colaborar com os aliados. Na redação de Paulinho, ―A Guerra‖, que não foi publicada em
nenhuma das edições da coleção de jornais, mas que pertence aos manuscritos desse acervo, é
possível entender o posicionamento contrário à participação do país na guerra. Como também
é possível depreender do editorial, ―Confraternização dos povos‖, assinado pelo jovem
Mariano Passos, a pregação da paz: ―Primeiro de janeiro!... Dia em que a humanidade
escolheu para a data da paz Universal... Dia em que devíamos festejar um Ano Bom, mas
infelizmente o ano de 1940 traz o seu primeiro dia turbado pelos horrores da nefasta guerra‖.
Em outro parágrafo o jovem afirma: ―O velho mundo endoideceu! A imposição de
regimes causou a guerra [...] O Brasil sente-se feliz com sua vida interna. Deus se compadeça
da situação penosa que a Europa atravessa, pois a alma da grande família brasileira há de por
certo rogar a Deus [...] abstendo-nos desse flagelo, para que possamos festejar [...] a paz no
continente sul-americano ‖.
Os editoriais de O Infantil refletiam, desta forma, o posicionamento vigente a partir
das visões do governo, sempre vigilante e pronto para exercer a censura a toda e qualquer
imprensa, mesmo a escolar. Por isso, oscilam com os novos pensamentos, pareceres e
legislações.
4.2.5 Formação do escritor no periódico escolar
De acordo com o menino Paulinho, se fosse dirigente do Brasil não permitiria que este
enviasse a Força Expedicionária Brasileira à 2ª. Guerra Mundial. A posição de neutralidade
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261
assumida pelo país acabou em 1942 quando algumas embarcações brasileiras foram atingidas
e afundadas por submarinos alemães no Oceano Atlântico. A partir deste momento, Vargas fez
um acordo com Roosevelt e o Brasil entrou na guerra ao lado dos países aliados. Em 1939
quando Paulinho escreve, a posição era uma, em 1942, entretanto, como se posicionariam os
redatores de O Infantil? Provavelmente apoiando a nova ordem, tendo em vista que além de
acompanhar o pensamento dos que estavam à frente do governo, as crianças já vinham sendo
preparadas como ―soldadinhos do Brasil‖, por Aurélia, como aparecem em diferentes
momentos da tese, e em textos que exaltam a figura do soldado no próprio jornal, que
publicou por duas vezes textos das crianças sob o título ―O Soldado‖.
Além disto, heróis nacionais como Duque de Caxias e Deodoro da Fonseca aparecem
para lembrar as glórias militares do Brasil no periódico. Ainda assim, é possível perceber que
apesar de afastados do centro da guerra já iniciada no velho continente, essa é também uma
preocupação das crianças, que ao final do ano de 1939 deixam transparecer essa mesma
posição em textos sobre o Ano Novo de 1940. Nenhuma delas viveu em território de guerra,
mas ouviram falar, se emocionaram, temeram por seus familiares, por seus pais e irmãos.
Paulinho sabia o que significava para uma família perder seus entes em uma guerra.
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262
Figura 44 - Manuscrito ―A Guerra‖. Paulinho – 2º Ano da E.M. Prof. Paris246
Fonte: Coleção Aurélia Braga. Acervo de manuscritos de O Infantil. CENPRE.
A infância, a criança, e o Dia da Criança aparecem nas páginas de O Infantil. Em um
texto escrito por um adulto, Constantino Reis247
, e em textos dos alunos e notícia sobre as
comemorações da data, que traduzem algumas visões e representações sobre o que é ser
246
Paulinho. Idade 8 anos – 2º ano. A Guerra – Meus amigos a guerra é o pior dos males que podem afligir a
humanidade. A guerra traz a peste e a fome a desgraça para um lar, transforma o homem em fera matando o
inimigo sem compaixão.
Nestas terríveis lutas perdemos nossos entes queridos que tanto estimamos. Quantos pobres defensores da
Pátria ficam com braços e pernas mutilados para defender seu torrão querido. Quantas pobres criancinhas
ficam órfãs de pai, quantas viúvas ficam sem seus maridos por causa da guerra./ Por isso meus companheiros,
quando formos dirigentes do nosso Brasil devemos lutar denodadamente para que o Brasil nunca se veja
empenhado numa guerra. Eis aí meus amigos o que é a guerra.
247
Foi comerciante local e é hoje lembrado com o nome de um CIEP, o 177, municipalizado e localizado no
bairro de São Bernardo. Seu texto foi publicado no primeiro número de O Infantil, sob o título ―A infância‖,
logo na primeira página, terminando na página 2.
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263
criança naquele momento. O conjunto de publicações permite perceber primeiro uma visão
romantizada da infância pelo adulto: ―botões de rosa desabrochando [...] o sabiá canta
alegremente como anunciando um futuro próspero e feliz [...] Dias de glória, de grandeza
[...]‖. Depois o texto de Reis ratifica o que é presente em todos os demais: ―É nas escolas
primarias que se cavam fundo os mais sólidos alicerces, sobre os quais vai repousar mais
tarde o majestoso pedestal da grandeza e da glória de uma nacionalidade e de um povo‖. Ou
seja, seu texto segue marcando a importância da infância apenas como um estágio de
preparação, o alicerce, para as futuras gerações que construirão a pátria.
Paulinho, o mesmo que escreve sobre a guerra, volta a publicar na edição de
novembro, de nº 4. Seu texto tem a mesma organização do texto de Reis. Sob o título ―A
Criança‖, ele escreve primeiramente: ―É alegria que povoa os lares como os passarinhos os
bosques e as flores os jardins‖. Para depois prosseguir: ―Deve pois ser tratada com carinho e
desvelo para que o seu caráter seja bem formado e com verdadeira noção de patriotismo para
amanhã poder conduzir a sua pátria ao píncaro da glória fazendo assim jus ao seu passado‖. A
lógica do adulto é, portanto, imitada pela criança, que neste caso não parece acrescentar de si,
aparentemente não cria um texto original, próprio, a partir do que já existe.
―As festividades do Dia da Criança‖ é o título da matéria ao lado do texto de Paulinho,
â página 3. Nela é detalhado o programa organizado pelo diretor de instrução do município
para comemoração da data. ―A semana foi solenizada, em todo município, com vários atos
festivos e de significação patriótica, destacando-se a parada escolar realizada na sede do
município em que tomaram parte as escolas municipais, estaduais, ginásios, grupos de
escoteiros, a Linha de Tiro, formando o mais belo conjunto [...]‖. As comemorações relativas
às crianças, portanto, têm o objetivo cumprir o papel incentivador do patriotismo, visando à
preparação dos futuros cidadãos. Conclui a matéria que as festividades foram uma
demonstração: ―da grande abnegação e do esforço de todos aqueles que têm sobre si a
responsabilidade da educação da infância‖. Portanto, a abnegação e o esforço dos educadores
voltavam-se para a submissão das crianças ao exercício da repetição e para a demonstração da
obediência, aspectos vistos como de grande relevância na educação, de maneira geral e no
ensino da escrita também.
Ainda assim, alguns dos manuscritos de Paulinho, de narradores como Danilce e sua
irmã Maria Eunice, Walter, e seus irmãos Carlos e Joaquim, e as outras crianças pertencentes
à rede de sociabilidade desses narradores, como Maria da Penha Daher, Manoel Melo,
Mariano Passos, Laudelino Gato, Marinho Farias, Carrusca, entre outros, são textos que
podem ser vistos e considerados também como autobiográficos, pois ainda que expostos à
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264
imitação, ao controle e à correção do adulto, deixam entrever características pessoais,
maneiras próprias de ver o mundo e narrar suas histórias. Mesmo que essas expressões
tenham que ser garimpadas entre as interferências, afinal elas são ―papéis guardados de um
tempo escolar [...] amarelados pelo tempo que guardam segredos. Emoções, sonhos,
expectativas, projetos, costumes, práticas‖ (MIGNOT, 2003, p. 6-7), e ainda que esses papéis
não tenham sido escritos com a intenção de contar sobre si eles contam. Além disto, são
realizados com a centralidade dos autores, onde são apostos seus nomes (SANTOS, 2014).
Os textos de Danilce e de sua irmã Maria Eunice, em especial, chamam a atenção para
o que talvez fosse um tipo de exercício que Aurélia, ou o grupo familiar das meninas,
desenvolvia que suscitava à escrita autônoma. Em ―Branca de Neve‖, manuscrito de Danilce
publicado no primeiro número de O Infantil, na coluna ―Fantasia‖, ela escreve baseando-se
em um quadro, uma gravura da personagem de conto infantil ao qual antes havia conhecido
apenas oralmente, como descreve neste trecho, na história contada por sua mãe: ―A sobreveste
é comprida e branca; ela a traz suspensa com as mãos, e por isso vejo a saia enfeitada de
rendas e bordados. Por que será que ela tem o vestido assim suspenso?‖. Maria Eunice
aparece no segundo número do periódico, na mesma coluna, com o texto ―O meu desejo‖, ela
narra que após assistir ao ―lindo filme natural ‗O salto das sete quedas no Paraná‘ fiquei
pensando como seria bom assistir ao ‗Grito do Ipiranga‘ também na tela‖, e passa a imaginar
como seria este filme, contando a história a partir das primeiras iniciativas, de Felipe dos
Santos e Tiradentes, pela Independência do Brasil. As imagens, tanto a fixa como a em
movimento, serviram ao propósito de instigar a imaginação gerando rumos diferentes, mais
complexos, aos dois textos.
Na edição de número quatro do periódico, as composições das duas irmãs aparecem
lado a lado, e é possível nelas perceber que se trata o ―Filho pródigo‖ de uma interpretação a
partir de uma gravura, e ―Manhã na roça‖ de uma impressão pessoal do cenário da infância da
autora. Apesar de Danilce ter sido alfabetizada por Aurélia na Cartilha da Infancia, os textos
sobre o amanhecer – há dois sobre a temática na cartilha – não se assemelham ao de Danilce
que enseja um certo estilo e originalidade, principalmente, nas comparações entre os
amanheceres ―no Rio‖ e ―na roça‖. Ambos os textos permitem perceber os modos de ver das
meninas, tanto nas características atribuídas ao pai, representado na gravura alvo das
interpretações de Maria Eunice, quanto na preferência pelo ambiente bucólico do interior, o
meio ambiente de Danilce Micho.
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265
Figura 45 - O Infantil nº 4 – Textos das irmãs Danilce e Maria Eunice.
Fonte: Coleção Aurélia Braga. Acervo de O Infantil. CENPRE.
O uso de gravuras, filmes e da paisagem local pode ter sido uma estratégia utilizada
pela professora para suscitar as escritas. No texto ―O luar‖, outro exemplo, é possível observar
Maria José, da Escola Sagrado Coração de Jesus, publicado na edição de número quatro, e
perceber que seu texto se torna mais ainda evidente como autobiográfico, introduzindo
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266
elementos originais, distanciando-se dos tantos outros que tratam do mesmo tema.
Principalmente nos dois parágrafos finais, quando diz: ―Lembro então do meu torrão natal
(Guaranhus) e sinto tanta saudade! Os meus olhos se enchem de lágrimas/. Para me distrair, a
boa amiguinha Altair conta-me então histórias da ‗Bela e Fera‘, ‗O Veadinho Encantado‘, que
as ouço com atenção‖ [...]. Mais do que um ensino ativo, esses tipos de texto pressupõem um
sujeito ativo, ou seja, que além de descrever as coisas com palavras, ―opera com as imagens
das coisas e [para] expressá-las‖ (SANTOS, 2014, p. 67).
Neste sentido, O Infantil além de oportunizar o exercício coletivo e incentivador das
escritas, pressupunha um trabalho anterior feito pela professora, que propiciaria a formação
das imagens para que os alunos, ao pensá-las, pudessem expressá-las na escrita. De alguma
maneira, fica implícito nas ações de Aurélia que para formar o escritor era necessário formar o
leitor, pois a leitura enseja essa operação com as imagens.
4.2.6 Através do Brasil – formação do leitor pelo folhetim
A valorização do livro como formador de mentalidades levou ao movimento
integralista promover publicações de um grande número de livros que divulgavam a doutrina,
ou de literatura que ensejava suas ideias. O próprio Plínio Salgado possui uma vasta obra
nesse sentido, porém outros líderes do movimento também constavam do acervo
recomendado àqueles que se interessavam pelo seu ideário e aos frequentadores dos núcleos.
Nos periódicos integralistas, como em A Offensiva, era comum a publicação da lista dos livros
recomendados. Também faz parte do relatório do núcleo de Cantagalo, o inventário da sua
biblioteca, organizada pelas doações dos correligionários. O número de obras dessa biblioteca
é muito pequeno, considerando o número de livros produzidos com fins de definição e
propagação do movimento, pois além de Salgado, Gustavo Barroso e Miguel Reale, também
publicavam livros vários outros integrantes da AIB.
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Figura 46 - Inventário da Biblioteca do núcleo integralista de
Cantagalo, enviado ao Chefe Municipal do movimento, Paulo
Lontra, datado de 06 de janeiro de 1937.
Fonte: APERJ. Fundo do Departamento de Polícias Políticas, Setor Integralismo, Notação 16.
Mas a publicação de Através do Brasil – escrito em 1910, em parceria, por Olavo
Bilac e Manoel Bonfim – sempre na última página de O Infantil, parece exercer outra função,
a de proporcionar aos leitores uma das primeiras iniciativas de escrita de cunho nacional, feita
por brasileiros, voltada para crianças (SANTOS; OLIVA, 2004). Vinha ao encontro dos
objetivos de formação de uma dada visão de país e se encaixava no perfil do periódico feito
por crianças e jovens, pois que dois meninos são os protagonistas de uma viagem pelo Brasil,
que se constitui na ficção que sustenta a argumentação deste que tinha também função de
livro didático.
Figura 47 - Através do Brasil nas páginas de O Infantil, nº 2, p. 6.
Fonte: Coleção Aurélia Braga. CENPRE.
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268
Das ações da professora Aurélia, as que mais o narrador Amilcar Fernandes exalta, e
diz que aprendeu com ela, foram as ligadas à leitura. Ele gosta de ler e explicou que Aurélia o
incentivava muito nesse seu exercício, emprestava-lhe livros, e estes eram temas de muitas
conversas entre ele e a professora. Senti como uma maneira de promover a aproximação dela
com o menino. O que possibilitou buscar saber sobre a circulação desses livros em Belford
Roxo, como ele e outros tinham acesso a esses bens culturais.
Ela me trazia muitos livros dela, pra ela ler, aí eu lia de carona. Meu pai também,
constantemente estava com um livro, e também ―seu‖ Emigdio [...], muitos! ―Seu‖
Emigdio carregava o livro aqui (mostrando a cintura). Pegava o livro, botava na
cintura, e quando lá no bar tava maré mansa ele tava lendo. Aí eu ficava por cima do
balcão pra ver o que ele tava lendo. [...] ―Os três mosqueteiros‖, de Alexandre
Dumas, aí eu fiquei olhando por cima e ele: - você gosta de ler rapaz? (Imitando o
sotaque português). - Muito ―seu‖ Emigdio. - Então vou te emprestar o livro, mas é
pra devolver, hein? (Risos). Aí volta e meia ele me emprestava livro. Tinha aqueles
livros condensados, livro de bolso que dava o nome, que ele comprava. Você
encomendava o jornaleiro, ele encomendava e botava na cintura. - ―Seu‖ Emigdio
vai emprestar esse? - Esse eu te dou! O outro que também era um leitor compulsório
era o Enéas Barcia. Onde ele arranjava livro não me pergunta porque eu não sei.
Engraçado é que só ele, e mais tarde o Egas é que eram dados à literatura, os outros
não gostavam de ler. (AMILCAR FERNANDES, 2013)
Pelas dificuldades de obtenção, principalmente de livros infantis, suponho que a
publicação de Através do Brasil, em partes, no periódico visava formar leitores,
proporcionando de alguma maneira a chamada viagem de formação àqueles que não tinham a
oportunidade de fazê-la literalmente. Marisa Lajolo organiza e apresenta o livro na edição que
faz parte da Coleção Retratos do Brasil. Nessa apresentação, ela o inscreve em duas matrizes:
como cânone da literatura infantil e didática e como gênero de narrativas de viagem, cuja
genealogia seriam os romances de formação, dos quais Através do Brasil representaria,
segundo Lajolo, uma transculturação da literatura infantil e escolar europeia, mais
precisamente dos livros Le tour de la france.. e Cuore, respectivamente francês e italiano,
considerados como versões simplificadas dos romances de formação.
A visão do que seriam viagens de formação foi melhor evidenciada no personagem
Wilhelm Meisters Lehrjahre, de Goethe. As novelas de formação (Bildulgsroman), como a do
escritor, romancista, dramaturgo e filósofo alemão, criam a imagem da viagem presente na
literatura para descrever o processo de busca interior empreendida visando o encontro da sua
própria maneira de ser e de interpretar o mundo. Nessa formação a leitura é um entendimento
profundo de mundo, descoberto na interação do personagem com os outros e com a realidade
circundante. É a experiência dessa dada viagem que transforma o leitor em escritor, e essa
escrita é entendida como o estágio mais alto daquele que empreende a tal leitura (SOARES,
2009; LARROSA, 2006).
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269
A viagem dos irmãos Carlos e Alfredo percorre o Brasil de norte a sul, oportunizando
aos leitores aos quais se destinava o livro, os jovens estudantes, conhecer os aspectos
geográficos, sociais e culturais de praticamente todo país. Ao longo dessa viagem os meninos
contracenam com diferentes brasileiros, ex-escravos, comerciantes, caixeiros-viajantes,
tropeiros. Os protagonistas ampliam assim seus conhecimentos e visões sobre o Brasil, e, por
tabela, os leitores do livro também. ―Destinado à leitura escolar de jovens, Através do Brasil
correspondia à expectativa de quase todos os movimentos que, nos arredores da República,
viam na educação o remédio para os males brasileiros‖248
. A publicação da viagem de
formação Através do Brasil, como folhetim nas páginas de O Infantil vinha ao encontro,
portanto, dos objetivos da professora de dar a conhecer o país aos seus alunos.
A ideia de publicar o livro em capítulos a serem acompanhados no decorrer das
edições pode ter origem na leitura do jornal Folha do Commercio, de Campos dos
Goytacazes, que circulava em Gargaú, terra natal de Aurélia, nos anos, de 1933 e 1934, que
antecederam à vinda da família Braga para a Baixada Fluminense. O periódico campista,
como pude perceber nas pesquisas que realizei no acervo do Arquivo Público Municipal de
Campos, publicava a obra Os miseráveis, do francês Victor Hugo, também em capítulos. Essa
prática de publicação de livros literários em jornais, no gênero folhetim, era comum no século
XIX e muitos escritores brasileiros tiveram publicadas suas primeiras obras dessa maneira,
fazendo-se reconhecidos por essa junção da literatura com o jornalismo (GONÇALVES,
2013). O gênero, portanto, também colaborou para a formação de leitores, tornando acessíveis
obras literárias, ao baixo custo, a um número maior de alfabetizados. Suponho que um dos
objetivos da publicação de Através do Brasil em O Infantil fosse oportunizar a leitura literária
aos jovens, despertando e incentivando a prática, prestando assim também um serviço.
Ao buscar saber sobre como se processou a formação do leitor Graciliano Ramos em
sua obra Infância, Márcia Cabral da Silva (2009) localiza, neste relato autobiográfico do
romancista, pessoas, livros e situações que contribuíram para que o escritor se fizesse por suas
leituras. Utilizando o conceito de mediação, como concebido por Vygotsky, Silva identifica os
principais mediadores entre Graciliano e a leitura – mediadores estes que podem ser tanto o
―espaço e materiais disponíveis quanto a convivência com outros membros mais experientes
da cultura‖ (SILVA, 2009, p. 95) –, mapeia, a autora, os perfis dos familiares, e as demais
pessoas que fizeram parte da trajetória, desde os primeiros passos da infância, de Ramos.
Conclui que em um lugar distante da capital, cujos membros da comunidade teriam pouco
248
BILAC; BONFIM (2000, p. 18, Apresentação de LAJOLO).
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270
acesso aos meios culturais, algumas pessoas foram fundamentais à formação do leitor-criança
Graciliano, como o tabelião que possuía uma biblioteca que franqueava ao menino.
Aurélia foi, portanto, mediadora da leitura literária e o fez de diferentes formas no seio
da comunidade em Belford Roxo, adotando livro de literatura no trabalho pedagógico em
sala249
; emprestando livros literários aos que se interessavam; publicando Através do Brasil
no seu periódico; montando e inaugurando a biblioteca da E. M. Prof. Paris; servindo como
exemplo de leitora; e alimentado o imaginário coletivo com sua pasta de livros e sua
biblioteca pessoal. Outros poucos membros da comunidade também aparecem como
mediadores de obras literárias aos pequenos leitores, de acordo com Amilcar, porém não
surgem nos relatos dos narradores outras iniciativas que tivessem a abrangência e a qualidade
dessas ações da professora em prol da formação dos leitores nessa localidade. Como disse
Danilce, em matéria intitulada ―Recordação‖, uma homenagem à mestra publicada na edição
de número 6, ―Dona Aurélia pode bem ser chamada professora das iniciativas [...] despertando
em nós o gosto pelas artes‖.
A partir do trabalho de Silva (2009) sobre a visão Vygotskyana, também é possível
refletir a respeito do papel e valor da arte, no caso a literatura, na formação do sujeito e
compreender que as preocupações de Aurélia ao introduzir os textos literários na comunidade
de Belford Roxo não tinham apenas a intenção de forjar um verniz de erudição aparente, mas
de formar leitores e escritores. Muitos dos manuscritos dos seus alunos, publicados ou não em
O Infantil, pareciam cópias ou imitações de textos produzidos por adultos, repletos da
realidade do senso comum vigente. Mas é Vygotsky, nas palavras de Silva, quem faz-nos
compreender que:
A oposição entre imaginação e realidade – própria do senso comum – é infrutífera,
uma vez que o artista extrai matéria-prima da realidade, a reelabora e o resultado do
material artístico, seja no campo das letras ou das artes plásticas, retorna à realidade
com potencial transformador. Assim a fantasia e a imaginação criadora não
significam formas de escape da realidade. Ao contrário, se constituem em maneira
qualitativamente diferenciada de se relacionar com a realidade. (SILVA, 2009, p.
147)
Muitos desses textos infantis e juvenis deixam entrever os autores, que emergem em
meio aos lugares comuns, para trazerem os reflexos de suas imaginações e individualidades.
Como na Poética de Aristóteles, iniciam-se pela mimese, pela imitação, mas acrescentam algo
que lhes confere originalidade, ineditismo. Pode-se vislumbrar aí o princípio da arte.
249
Alguns dos narradores citaram Iracema de José de Alencar como leitura obrigatória.
Page 273
271
Figura 48 - ―Joia Rara‖. Texto de Maria Eunice
publicado em O Infantil nº 6.
Fonte: Coleção Aurélia Braga. CENPRE.
O texto da irmã da narradora Danilce, Maria Eunice, de 12 anos, ao tratar de tema
comum em muitas redações de crianças e jovens, traz alguns acréscimos e arranjos
interessantes que conferem originalidade ao texto sobre o tema mãe, na comparação da ―casa‖
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272
com o ―estojo‖ ou na determinação de não ―feri-la com galanteios vãos‖, por exemplo.
Falando sobre a arte, mais especificamente a literatura, Vigotski250
(1999, p.254) menciona
que: ―o procedimento em arte é o de dificultar a percepção, retirá-la de seu habitual
automatismo [...] a linguagem poética está vinculada às regras de Aristóteles, para quem essa
linguagem devia soar como se fosse uma linguagem estranha‖. Nessa concepção de arte, ela
pode ser considerada aquilo que faz olhar e perceber novas nuances e abordagens. Com isto,
entende-se a literatura como um ponto importante a ser considerado na educação, pois suscita
à imaginação e ao sentimento. Ela é capaz de desestabilizar e revolucionar o pensamento,
fomentando a escrita criativa e autônoma (SOARES, 2009).
As ações da professora Aurélia Braga ligadas à divulgação da literatura e à formação
de leitores em Belford Roxo deixaram suas marcas em vários narradores, dentre os quais
Danilce Micho, a poeta, Amilcar Fernandes e Walter Vicente, bons leitores, Fernanda
Bicchieri, memorialista, e também Cícero Rodrigues, organizador de inusitadas estantes de
livros, são os mais evidentes. Foram iniciativas que contrastavam com a aridez local relativa à
cultura, como se pode depreender dos empreendimentos que cresciam na região voltados para
suprir às necessidades de uma população que aumentava em número, e ansiava por produtos e
serviços, concentrada nas práticas de sobrevivência e no senso comum, com pouco espaço
para as viagens da imaginação, de formação. Com a mediação da professora, essas ―viagens‖
parece que foram realizadas.
250
Respeito a forma de escrita do nome que os diferentes autores e tradutores adotam.
Page 275
273
GUARDANDO VELHOS PAPÉIS
Política vem do grego, quer dizer cidadão – homem polido – forma de
organização do Estado; Aristóteles dizia que o homem é um ser
naturalmente político; Ruy dizia que a política era indispensável ao
equilíbrio social dos povos.
Aurélia Braga, caderno, p. 146251
Revisito derradeiramente os papéis guardados pelos ex-alunos de Aurélia, fundadores
do CENPRE, organizados no Coleção Aurélia Braga. Mais uma vez, tomo o caderno
encontrado há quase cinco anos atrás, única materialidade que tinha em mãos para iniciar esta
investigação. Muitos achados neste mesmo centro de memória, agora acrescidos de tudo que
contém esse acervo de pesquisa: os arquivos digitais das entrevistas, os documentos que
encontrei em diversas outras instituições de guarda, as doações e contribuições de imagens e
documentos daqueles que participaram da vida dessa professora na Baixada Fluminense, em
Belford Roxo, e no Norte do estado. Realoco mais uma vez alguns deles, organizo as fotos,
percorro as imagens que me acompanharam ao longo desta pesquisa, para buscar, afinal,
Aurélia, ou aquilo que melhor a definiria.
As últimas palavras escritas por ela nesse caderno, à lápis e sem a autoria – o que faz
presumir que esta não foi uma cópia de algum escrito de outrem como as demais, mas que
foram traçadas por suas reflexões – é essa definição de política que trago como epígrafe. Para
mim, uma constatação da intencionalidade da professora em suas ações formadoras desse
homem político, do cidadão polido, imbuído de seu pleno papel social. Trilhei muitos
caminhos de pesquisa para encontrar o amalgama que uniria tantas ações de Aurélia e que
daria algum sentido comum a elas. Pensei primeiramente na cultura, naquela que dá
significado às coisas para um grupo, mas hoje entendo que esse significado era mais focado,
tinha um viés cultural político e um objetivo principal: projetar Belford Roxo no cenário
público, aumentado o capital social de sua população.
Ao buscar conhecer melhor Aurélia de Souza Braga, sua história de vida, o que se
evidenciou foi a cultura política na qual foi formada, a qual esteve exposta no decorrer de sua
251
FONTE: Fundo Aurélia Braga. CENPRE.
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274
trajetória até o fim do Estado Novo. E a que, possivelmente, transferiu aos seus alunos, tendo
em vista que, para isto, não lhe faltaram ideias, teorias propaladas disponíveis, ou impostas, e
determinação.
As forças que corroboraram nessa formação não foram estáticas, e sofreram mudanças
ao longo do percurso. Mas estiveram presentes tanto a visão católica para a educação; o
ideário republicano, em constante afirmação, como reflete José Murilo de Carvalho (1990);
como a ideologia estadonovista; e a visão integralista, que, como doutrina, pode ter penetrado
tanto mais eficaz quanto mais sorrateiramente. Todas elas diferentes em inúmeros sentidos,
porém com vieses que a professora de alguma maneira se apropriou e fez convergir. Neste
sentido, sua vida pública, junto aos seus alunos e sua rede, seria uma evidência da construção
e incorporação de uma dada cultura política em uma região, experimentada pelo seu grupo
social.
A abordagem da política pela antropologia pode ser definida de uma forma simples:
explicar como os atores sociais compreendem e experimentam a política, isto é,
como significam os objetos e as práticas relacionadas ao mundo da política. A
compreensão de grupos específicos, em circunstâncias particulares, leva a
comparações e diálogos com a literatura sobre contextos sociais mais amplos.
(KUSCHNIR, 2002, p. 163)
Para Gilberto Velho (2001) a atividade política não está ligada apenas aos políticos
profissionais, ela é um campo para atuação de lideranças de bairro, locais, comunitárias,
sindicais, entre tantas. É uma atividade de mediação. ―Suas biografias estão indissoluvelmente
associadas a sua atividade de mediação. Pode-se dizer que são políticos porque são
mediadores e são mediadores porque são políticos‖ (VELHO, 2001, p.26). O antropólogo
ainda reflete que as viagens de formação, para ele traduzidas pela literatura desde a Odisseia,
suscitam à individualização, possibilitam trajetórias biográficas únicas, e propiciam o
surgimento do papel de mediador entre subculturas diferenciadas em sociedades tratadas, pelo
autor, como mais complexas, nas quais a participação do indivíduo se dá em múltiplos
mundos sociais e níveis de realidade.
Assim a viagem pode se dar internamente a uma sociedade específica diferenciada,
não significando mais necessariamente um deslocamento geográfico, físico-espacial,
mas sobretudo um trânsito entre subculturas, mundos sociais, tipos de ethos ou,
mesmo, entre papéis sociais do mesmo indivíduo. [...] certos indivíduos mais do que
outros não só fazem esse trânsito mas desempenham o papel de mediadores entre os
diferentes mundos, estilos de vida e experiências. (VELHO, 2001, p. 20)
No que diz respeito ao indivíduo e à sociedade, ―fica cada vez mais presente a
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275
importância da dimensão interna, da subjetividade para construção de personagens singulares‖
(VELHO, 2001, p. 18) revela o autor, como forma de refletir sobre a importância das histórias
de vida para os estudos nas ciências sociais. Nesses exemplos de vida, aparece um movimento
de aproximação entre tradições distintas no seio da sociedade. ―Existem redes de relações
sociais e fluxos de relações que permitem esses contatos e diálogos que não apagam, mas são
paralelos à desigualdades econômica e da distribuição de poder‖ (VELHO, 2001, p. 25).
Percorrendo esta biografia, é possível compreender que Aurélia, num processo de
metamorfose, adquiriu diferentes papeis e lidou com diversos códigos (VELHO, 2001). Ao
realizar essa tarefa sistematicamente tornou-se mediadora, agente de transformação, na
medida em que estabeleceu e ampliou a comunicação entre grupos sociais distintos, o que
aumentou a importância do, então, distrito no cenário político, cultural e social da Baixada
Fluminense e do estado do Rio de Janeiro.
Observando a trajetória de Aurélia percebe-se que a professora foi mediadora, no
sentido dado pelo antropólogo, das relações entre políticos e eleitores; professores e políticos;
professores e sua classe; adultos, crianças e jovens; comerciantes, profissionais e políticos;
poder público e comunidade. No sentido vygotskyano, sua mediação esteve presente nas
relações entre livros e leitores; periódico escolar, leitores e escritores; cultura, com destaque
para a material da escola, arte e comunidade.
Estabelecendo mais fortes vínculos com alguns desses partícipes, sem deixar de
mediar tanto na esfera de produção de conhecimentos e aprendizagens quanto na esfera
política, nas relações de troca e de compadrio. Nesse sentido ela afirma-se como mediadora,
transitando nessas frentes como uma viajante contumaz, mas cujo único deslocamento
geográfico foi do norte ao sudeste do mesmo estado, para fixar residência.
A trajetória de Aurélia serve à observação do quanto um mediador pode chamar a
atenção daqueles que exercem o poder para as causas de um grupo social, e produzir efeitos
duradouros, coletivos – como a criação de escolas e assistência social à infância –, ou que
transformem a vida de outros indivíduos, como depreendido nos depoimentos e histórias
individuais de seus ex-alunos a partir da passagem por sua sala de aula ou sob sua direção. Os
narradores desta trajetória, nesta tese, revelam que o seu envolvimento e devotamento às
causas foram bem-sucedidos, e que estas variaram desde a alfabetização das crianças e futuros
eleitores, à educação reconhecidamente boa ministrada em suas escolas, e ao fortalecimento
da imagem do lugarejo frente às autoridades, de âmbito municipal – e, por seus esforços de
correspondência, enquanto à frente da Sociedade de Assistência à Infância e à Maternidade e
de O Infantil, também na esfera estadual e da capital federal –, com ações educacionais,
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276
políticas, assistenciais, culturais e artísticas.
Sua história de vida, portanto, pode evidenciar como a profissão docente exercida de
forma mediadora se manifesta em uma sociedade. E, também, como o conjunto de suas
atitudes, as normas que segue, as crenças e valores políticos, ou seja, a sua cultura política é o
objeto e o meio dessa mediação.
Alguns aspectos em sua biografia, entretanto, suscitam questionamentos, dentre eles, a
sua participação e envolvimento no movimento integralista ou, mesmo, o quanto a doutrina
corroborou em sua formação e em suas ações. Claro está que em sua rede de sociabilidade –
tanto em São João da Barra e Gargaú, norte do estado, quanto em Belford Roxo, Baixada
Fluminense – estiveram presentes integralistas autodeclarados ou reconhecidos na hierarquia
da AIB. Mas não foi possível encontrar seu nome em documentos do partido, ou em
publicações atinentes ao movimento, ou mesmo que todos os narradores pudessem afirmar,
sem sombra de dúvidas, esse envolvimento. Nem todos foram categóricos quanto a essa
participação.
Não é possível afirmar, pelas ações que promoveu em Belford Roxo, que tenham sido
suas iniciativas motivadas ou orientadas pelo movimento integralista, tendo em vista que
várias delas estavam revestidas dos ideais da época, do pensamento católico, do ideário da
República e do Estado Novo, que algumas vezes coincidiam com as visões da cúpula da AIB.
E, considerando, também, que pela rejeição de uma parcela da sociedade, a maneira como a
doutrina se imiscuiu no seio desta, em muitos momentos, não foi explícita, ou declarada, mas,
pode-se dizer, dissimulada.
Ainda, penso que podem ser consideradas como indícios as palavras com as quais a
narradora Danilce Micho (2012)252
conclui sua poesia em homenagem à professora e à escola:
―[...] e a nossa Dona Aurélia tão querida, não há quem esqueça por um só momento, e à Deus,
numa prece comovida, peço que a guarde de muitos sofrimentos‖, o que pode sinalizar que,
desde a repressão impetrada pelo governo Vargas ao movimento integralista, essa pode ter
sido uma atitude assumida pelos companheiros. De certo, Aurélia guardou a coleção de livros
de Plínio Salgado por toda sua vida, e esta foi mantida pela família ainda por dezoito anos
após sua morte em 1995. Também alguns de seus discursos assemelham-se aos de Salgado,
principalmente nas evocações do Cristo, na exortação ao patriotismo e rigidez próxima à
militar. Entretanto, não há relatos de que em suas relações ela se manifestasse a favor do
integralismo, apenas que participava das festas promovidas pelo núcleo em Belford Roxo, e o
252
Na entrevista, a narradora fez questão de ler seus poemas em homenagem à professora, à escola e a Belford
Roxo.
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277
frequentava, segundo dois dos narradores mais velhos.
Por esses motivos, procedi às investigações procurando aproximar suas práticas com
as ações integralistas, buscando, de alguma maneira, que pudesse se manifestar essa
participação. Realizei esforços para encontrar evidências irrefutáveis desse engajamento: ouvi
narradores, os mais variados, que a conheceram ou conheceram o movimento na região da
Baixada e no Norte do estado; investiguei tanto os acervos do movimento no APERJ, como
em periódicos pertencentes ou simpatizantes da AIB; busquei as escritas de memorialistas de
São João da Barra e Gargaú e da Baixada Fluminense e Belford Roxo; em periódico de Nova
Iguaçu e da região de Campos dos Goytacazes, tentando encontrar também o desaparecido
Gazeta de Iguassú, jornal que se assumiu integralista em 1936; e em várias bibliotecas e
arquivos públicos e privados, já citados, do Rio de Janeiro, da Baixada Fluminense, Rio Claro
em São Paulo, e em Campos dos Goytacazes; escrutinei até as entrelinhas manuscritas do
jornal escolar produzido por Aurélia e seus alunos; vasculhei a cartilha e os métodos
pedagógicos usados pela professora; enveredei por suas ações em prol da assistência à
infância e à maternidade, observando suas correspondências e correspondentes; realizei um
estudo sobre o movimento integralista que está presente em toda tese, de forma que pudesse
confrontar as ações de Aurélia com as visões da AIB e do partido. Nesse percurso, busquei
trazer à luz o quanto a doutrina esteve presente no estado do Rio de Janeiro, também nos
pequenos municípios e lugarejos, como Gargaú e Belford Roxo, penetrando inclusive onde
faltava a presença do poder público no atendimento às necessidades da população. Após todo
o caminho, não posso afirmar, categoricamente, que Aurélia foi integralista.
Mas, tomando nas mãos o presente que me foi entregue por sua sobrinha, no decorrer
da pesquisa, o livro que foi também regalado à Aurélia em 1943253
, e que pertenceu a sua
biblioteca por todos esses anos, encontro as seguintes primeiras palavras:
O que é claro e manifesto explica-se por si mesmo, mas o mistério tem efeito
creador. Por isso os personagens e os acontecimentos da história envoltos num veu
de incerteza pedem reiteradas interpretações e poesias. A tragedia da vida de Maria
Stuart póde representar o exemplo francamente clássico dum problema histórico.
Quase que nenhuma outra mulher da história forneceu assunto para tanta literatura:
dramas, romances, biografias, discussões. Por mais de três séculos ela atraiu os
poetas e eruditos, e sua figura continua sem diminuição de força, a exigir novas
configurações, pois tudo que é confuso anseia pela clareza e tudo que é escuro pela
luz. (ZWEIG, 1942, p. V).
O mistério tem efeito criador, e que efeito! Não fosse o desejo de elucidá-lo, muito
253
Trazido, aqui, no capítulo II, seção 2.6.
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278
caminho seria abreviado, menos teria escrito, menos teria aprendido, menos ousaria. A
biografia de Mary Stuart, objeto do livro de Stefan Zweig, editado no Brasil em 1942, traz
pistas sobre esse processo254
. O escritor esclarece que não faltaram documentos, provas em
profusão, tanto para inocentá-la como para condená-la das acusações que a levaram à
execução. Depoimentos, cartas, documentos foram utilizados por ambas as correntes, e
acabaram por ratificar, dependendo de quem os tinham em mãos, as duas possibilidades. Isto
leva a pensar na fragilidade dos documentos e das ―provas‖ e no que Michel Certeau (1982, p.
57) diz tão claramente:
Há quarenta anos, uma primeira crítica do "cientificismo" desvendou na história
"objetiva" a sua relação com um lugar, o do sujeito. Analisando uma "dissolução do
objeto" (R. Aron), tirou da história o privilégio do qual se vangloriava, quando
pretendia reconstituir a "verdade" daquilo que havia acontecido. A história
"objetiva", aliás, perpetuava com essa idéia de uma "verdade" um modelo tirado da
filosofia de ontem ou da teologia de ante-ontem; contentava-se com traduzi-la em
termos de "fatos" históricos... Os bons tempos desse positivismo estão
definitivamente acabados.
Seguindo documentos, à primeira vista, um investigador poderia considerar como
―fatos históricos‖ o que sob pressão, ou mesmo tortura, afirma-se por assinaturas e
depoimentos. Em compensação, Carlo Ginzburg (2002), evocando a escrita de Flaubert em
Educação Sentimental, analisa que os ―espaços em branco‖, as lacunas deixadas, podem ser
traduzidos como evidências. Nessa obra literária, Ginzburg encontra a metáfora para
evidenciar que os silêncios e as pausas, presentes na escrita de Flaubert, dizem mais do que
outros documentos sobre a sociedade francesa. Quando, por exemplo, o autor francês diz:
―Viajou‖ e deixa um espaço em branco, o que ele quis fazer sentir ao leitor foi a censura que
uma parte da sociedade francesa percebeu quando a ditadura bonapartista substituiu a
República. Ginzburg quer evidenciar com isto que também o que não é dito, daquilo que não
encontramos a ―prova‖, comunica.
Na língua italiana a palavra prova é igual à evidência. Nela, assim como em outras
línguas modernas, como a portuguesa, a palavra prova tem o sentido de experimentar.
Provare, implica em um ato continuo de aferição permanente: provar e confirmar. Assemelha-
se ao trabalho do luthier, relembrado da imagem trazida por Marc Bloch, que às apalpadelas,
batendo na madeira delicadamente, vai forjando o seu instrumento. Em um torno mecânico
254
Logo na apresentação, o autor tece considerações a respeito do que ainda permanecia nas discussões sobre a
rainha da Escócia – que também chegou a ser rainha da França e pretendente ao trono da Inglaterra – três
séculos após a sua morte. O trabalho de Zweig investiga sobre a culpa imputada à Mary Stuart de ter tramado
para obtenção do poder, o que a fez prisioneira por cerca de vinte anos e que a levou à execução, em 1587, com
44 anos, na Inglaterra.
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279
não seria possível encontrar a mesma perfeição. O trabalho do historiador é, portanto,
artesanal e exige que percorra pistas, rastros, evidências, por vezes sutis ao ponto de
aparecerem como vazios (GINZBURG, 2002).
No caso de Aurélia, o vazio de provas contundentes de sua participação no movimento
integralista pode comunicar a interdição, pela censura e repressão do Estado Novo, que
atingiu a toda sociedade e disseminou uma visão bastante negativa das ações da AIB. Suas
crenças e valores políticos se expressam de maneira difusa, não permitindo deixar clara a sua
vinculação partidária antes de se definir como militante ativa do PSD. Mas, não é irrelevante
o fato de Aurélia ter recebido a biografia de Mary Stuart, como presente, de uma família cujo
pai era integralista. Sua história de vida, portanto, nesse sentido talvez se assemelhe a do
personagem de Zweig, sempre haverá evidências, opiniões, dados a acrescentar –
―apalpadelas‖ não deverão faltar! –, para trazê-la ao debate, afinal, ressalto que ter percorrido
as pistas sinalizadas pelos narradores, embora muitas vezes dificilmente garimpadas em suas
memórias, permitiu adentrar pelo integralismo na Baixada Fluminense, até aqui um tema
silenciado e esquecido pela historiografia da educação.
No sentido dado por Ginzburg (2002), a literatura também é um caminho para se
compreender uma época e as relações nela vividas. Nas palavras de um dos escritores
preferidos da professora Aurélia, encontro indícios do que o historiador italiano também se
refere.
– E o que há de mais inverossímil que a própria verdade?
– retorquiu Aurélia repetindo uma frase célebre. (ALENCAR, 1874, p. 98)
―Com uma existência calma e um amor feliz, Aurélia teria sido meiga esposa e mãe
extremosa. Atravessaria o mundo como tantas outras mulheres envolta nesse cândido enlevo
das ilusões, que são a alva pura do anjo, peregrino na terra‖ (ALENCAR, 1874, p. 97).
Aurélia, a protagonista de Senhora255
, representa o perfil de mulher da sociedade brasileira
por uma visão de época do Romantismo. Por esse perfil, o escritor busca compreender os
sentimentos e os motivos que a impulsionam, pelo relato minucioso dos pensamentos e ações
dessa mulher.
Aurélia de Alencar, sendo pobre era frágil, meiga, compreensiva e sonhadora. Após a
decepção, por ser abandonada em troca de um casamento por interesse, assume as rédeas de
sua vida e trama o próprio destino.
255
Um romance urbano do escritor brasileiro José de Alencar, primeiramente publicado como folhetim, participa
da tríade do autor, juntamente com Lucíola (1962) e Diva (1864).
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280
Como uma cera branda, o homem de coração e de honra se formara aos toques da
mão de Aurélia. Se o artista que cinzela o mármore enche-se de entusiasmos ao ver a
sua concepção, que surge-lhe do buril, imagine-se quais seriam os júbilos da moça,
sentindo plasmar-se de sua alma, a estátua de seu ideal, encarnação de seu amor.
(ALENCAR, 1874, p.114)
Cinzelar, moldar, burilar, seriam os verbos que melhor corresponderiam ao trabalho
de educação realizado por Aurélia, a professora, cujo nome pode ter sido inspirado no
personagem de Alencar. Por pura ironia, a real protagonista desta tese se assemelharia a da
ficção? Possuiria marcas deixadas por acontecimentos contundentes que desencadeariam
transformações radicais em sua vida? A crítica às desigualdades sociais que é feita em
Senhora também remete o autor construir uma trama onde os revezes e as injustiças levam à
superação. As duas ―Aurélias‖ dariam assim ―a volta por cima‖ de situações humilhantes e
desalentadoras? Buscaria também a professora a superação, com astúcia, manejando e
conduzindo o outro a aprender? Aurélia da literatura investe, com êxito, em ensinar
justamente aquele que lhe levou ao desconsolo, e denuncia uma sociedade que transforma o
afeto em transação de interesse econômico.
Aurélia da realidade busca investir-se da profissão para afinal ensinar os meninos a
serem homens a respeitar mulheres, e a sua luta pessoal adquire um caráter coletivo. As lições
que esta protagonista ensina, principalmente aos meninos, poderiam ser uma forma de
elaboração da dor. Uma atitude assumida de segurar a responsabilidade por sua vida, não
deixando ao outro a prerrogativa de tomar essa decisão, e nisto servir de exemplo às meninas.
O magistério e a mediação política seriam, assim, seu caminho de redenção das mazelas dos
acontecimentos fatídicos que fizeram-na sair de Gargaú para Belford Roxo, mas, acima de
tudo isto, seriam as duas vias por onde conseguiu penetrar para ter voz e ser ouvida como
mulher.
Após minha estada na região de nascimento de Aurélia, em julho de 2015, em Gargaú,
São Francisco do Itabapoana, próximo a Campos dos Goytacazes, pude constatar que Aurélia
tinha muitos motivos para uma grande virada existencial. As muitas horas que passei no
retorno dessa viagem foram-me gratas à reflexão. Percebi que a oportunidade foi
esclarecedora de fatos, porém, lançava-me a outras questões de caráter mais subjetivo, que
servem ao entendimento do mais privado de sua trajetória, mas eficazes à compreensão de
suas tomadas de decisão na vida pública. Passei várias horas entre a espera do ônibus e o
percurso de volta ao Rio. Entre cochilos e solavancos pude dimensionar melhor o que foi a
vida da professora no norte fluminense e o que significou para Aurélia fazer o percurso que
agora fazia em condições infinitamente mais confortáveis.
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281
Busquei outros vestígios em tudo que havia ouvido falar sobre Aurélia no decorrer da
pesquisa. Revisei uma a uma cada entrevista, como num grande documentário, em minha
mente. Vasculhei na memória tudo aquilo que realizara até ali, e me lembrei do depoimento de
um narrador cuja fala não havia surgido ainda na tese, o do professor Antonio Ferreira (2015):
Penso que Aurélia ao chegar aqui veio com uma ideia formada, ela já chega com
uma ideia do que pretende fazer, ela busca saber que papel a mulher representa nesta
sociedade e o que ela pode fazer, por isso ela se posiciona, busca apoio e cumpre
uma missão. A missão dela é mostrar que uma mulher é capaz.
Sim, ela mostrou isso aos homens e às mulheres da Baixada Fluminense que com ela
conviveram. Mas, na verdade, o que ainda ansiava era me livrar dessas representações, das
interpretações que haviam sido construídas pelos narradores sobre quem era Aurélia, para
tentar encontrá-la sem esses estereótipos. Concluí que isso não seria possível, ela só realmente
aparece na interface com o outro. Mas o instinto me dirigia a pensar no que haviam dito dessa
passagem do Norte para o Recôncavo do estado do Rio de Janeiro. Num misto de sonho e
imaginação eu era Aurélia, após ver desabar todos os planos de constituição de sua própria
família, como me disse Mário; com o pai muito doente e sem dinheiro, como as sobrinhas me
disseram; em meio a uma ―tempestade‖, como me disse Fernanda a quem ela descreveu a
tenebrosa ―viagem‖, de múltiplos sentidos. Então pude sentir sua dor, ―visitar seu coração‖,
compreender sua amargura. Voltei com a sensação de que havia vislumbrado Aurélia, e
entendi que este trabalho explica, enfim, como ela lidou com a sua solidão.
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